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Marcos Napolitano

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Discutindo a História do Brasil

CEE ODDS CE ESSES SS SS

O regime militar brasileiro:


1964-1985

Marcos Napolitano

Coordenação:
Maria Helena Capelato
Maria Lígia Prado
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O Marcos Napolitano, 1998.

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Copyright desta edição:

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SARAIVA S.A. Livreiros Editores, São Paulo, 2000.
Av. Marquês de São Vicente, 1697 — Barra Funda
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Napolitano, Marcos. 1962-


O regime militar brasileiro : 1964-1985 / Marcos Napolitano ; coordenação
Maria Helena Capelato, Maria Lígia Prado. — São Paulo : Atual, 1998. — (Discutindo
a História do Brasil)

Bibliografia
ISBN 85-7056-871-]

1. Brasil — História — 1964-1985 1. Capelato, Maria Helena. II. Prado, Maria


Lígia. IH. Título. IV. Série.

98-0060 CDD-981.08

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil ; Regime militar, 1964-1985 : História 981.08
Coleção Discutindo a História do Brasil
Desenvolvimento de produto
Gerente: Wilson Roberto Gambeta
Editora: Vitória Rodrigues e Silva
Assessora editorial: Dolores Fernández
Editor de texto: Roberto B. de Albuquerque
Pesquisa iconográfica: Cristina Akisino
Produção editorial
Gerente: Cláudio Espósito Godoy
Assistente: Sandra A. Celestino de Oliveira
Revisores de texto: Maria Luiza X. Souto (coord.)
Maria Cecília F. Vannucchi
Editor de arte: Celson Scotton
Diagramação: Rosi Meire Martins Mariano
Editoração eletrônica: Silvia Regina E. Almeida (coord.)
Graçe Alves/Adriana M. Nery de Souza
Produção gráfica
Gerente: Antonio Cabello Q. Filho
Coordenador: José Rogerio L. de Simone
Assistente: Adriana Poffo Rodrigues
Colaboradores

Preparação de texto: Eloiza Helena Rodrigues


Projeto gráfico: Tania Ferreira de Abreu (capa)
Marcos Puntel de Oliveira (miolo)
Imagem de capa: Marcos Rosa/Angular
Filmes (D.T.B): Binhos Fotolito

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Sumário

.. .. .. .. .. es ee es ee ne en ce ne er eo re nc en eo ne oo 1
Bate-papo com O autor ..
um re gi me U N E M an gana na cometida= 4
1. A ar qu it et ur a de

uc io na li za çã o do re gi me mi li ta r e a
2 A instit 28
vi l .. .. .. .s cc ce ec en se re ce re re so ns en er or ne en es ce ss on on te ns
sociedade ci

de ch um bo ” — re pr es sã o po lí ti ca e
2. Os “anos 39
on ôm ic o .. .. .. .. .. c. ee ec ee ee me ne ee en en ee ee es s
crescimento ec
círculo do medo............ esses: 22
4. Rompendo o
e lu ta pe la de mo cr ac ia .. .. .. .. .. .. .. .c ee et em ee se ss s 70
5. Abertura

6. A crise do regime militar e a transição


88
democrática ..........enetenececanenereenameremancocenennenacannas

..e pea ere ree rap une eae rec ess asc epe aca rav eve rec cen sco pen es 10 0
7. Conclusão ...

. sc ees ers ers enc ere ena vee ren cen err asa eer see ser sco noe nco nen nas 10 2
Cronologia .,.

Bibliografia co me nt ad a ... ... ..r .ee ner een mae sen ere res eee ene nee os 105

O te xt o ... ... eem ene eae ere ece nne een ace nsa een ene sen nce nan emo 10 7
Discutindo
Bate-papo com o autor
Nelson Toledo

ANA Napolitano nasceu na capital pau-


lista, em 1962. Graduou-se em História pela Uni-
versidade de São Paulo em 1985, tendo concluído
seu mestrado nessa mesma instituição em 1994.
Nesse ano ingressou na Universidade Federal do Paraná, como
professor do Departamento de História. Atualmente é doutorando em
História Social na Universidade de São Paulo, onde desenvolve
pesquisa sobre os festivais da canção dos anos 60.
O interesse do autor pelo regime militar de 1964 levou-o a
pesquisar os protestos de rua ocorridos entre 1977 e 1984, analisados
em sua dissertação de mestrado intitulada Nós que amávamos tanto a
democracia: protestos de rua contra o regime militar na grande São
Paulo (1977-1984). Embora tenha escrito vários artigos para revistas
acadêmicas, O regime militar brasileiro (1964-1985) é seu primeiro
livro publicado.
Vamos conhecê-lo melhor, iniciando nosso bate-papo:

P Como é ser um historiador especializado num período tão


recente da história brasileira? Quais são os eventuais proble-
mas que isso pode acarretar?
R. Ser um historiador especializado num tema tão contemporâneo é
muito difícil, sobretudo porque as questões herdadas daquele perío-
do ainda estão muito vivas, com muitos dos personagens históricos
ainda atuantes na sociedade. Em outras palavras, a memória dos
grupos e indivíduos que passaram por aquelas experiências ainda
está viva e presente, como mostram os debates veiculados pela mídia,
O maior problema é que, ao buscarmos uma análise histórica mais
crítica, precisamos tomar cuidado com o peso da memória social
sobre nosso objeto, que tende a ser muito parcial e comprometida. Se
é verdade que o historiador não pode querer ser “neutro” em sua
análise, ele também não pode ficar preso às experiências que alguns
segmentos ideológicos específicos tiveram do período. Mesmo que o
historiador tenha alguma identificação pessoal com algum desses
segmentos...

P. Sua experiência pessoal como cidadão que vivenciou parte


daqueles temas analisados dificultou a análise histórica?
R. Bastante. Mas a própria experiência profissional vai ajudando a
superar essas dificuldades, que geralmente se resumem na confusão
entre a memória subjetiva e a análise histórica. No meu caso vivenciei
sobretudo as experiências de oposição ao regime a partir de 1981-82.
Portanto, tenho opiniões e considerações pessoais em relação a essa
experiência específica, que fazem parte da minha memória pessoal e
da memória dos segmentos sociais com os quais me identifico. Mas a
atividade de historiador exige que você tome contato com muitas
fontes diferentes, produzidas por segmentos e instituições quase
sempre conflitantes entre si. É nesse processo que você, mesmo com
todas as dificuldades, aprende a fazer uma reflexão mais distante e
crítica, ainda que marcada pelo seu compromisso ético e político.
P. Quais são as fontes e temas ligados ao período do regime
militar que você gostaria de destacar e que ainda esperam
por uma análise mais detalhada?
R. Apesar de ser um tema muito presente nas conversas do dia-a-dia
e mesmo na mídia, eu acho que o regime militar brasileiro só
recentemente começou a ser objeto de uma análise histórica que dá
conta de suas contradições, das suas realizações e das inúmeras
formas de dominação e resistência que ele suscitou. O tema da
resistência da sociedade civil ao regime foi bem estudado pela
sociologia e pela ciência política dos anos 70 e 80, mas muitos
aspectos ainda pedem uma análise histórica com base numa perspec-
tiva temporal mais ampla. O problema maior para os historiadores é
que os arquivos só agora começam a ser abertos e organizados. É o
caso da documentação do DOPS, que só há alguns anos pôde ter um
tratamento adequado e ainda pode revelar muitos aspectos da
repressão. Certos documentos das Forças Armadas ainda não estão
acessíveis. O conjunto de leis e decretos (como os Atos Institucionais
e as leis especiais) ainda espera uma análise global. No campo da
cultura, sobretudo em relação à música popular, à televisão e ao
teatro, o período militar ainda pode fornecer muitos aspectos a
serem
pesquisados. O próprio momento do golpe, em 1964, ainda tem
aspectos pouco conhecidos.
P. Com o voc ê exp lic a uma cer ta “no sta lgi a” que alg uma s pes -
soas têm em relação aquele período autoritário?
R. A primeira reação que tenho, enquanto cidadão que acredita na
democracia como valor, é considerar esse tipo de opinião como fruto
da ign orâ nci a polí tica e da fam osa falta de mem óri a do bras ilei ro.
Mas, analisando melhor, percebo que o problema é mais complexo.
Inegavelmente, os governos civis que vieram após o período militar
foram, em geral, incompetentes para resolver Os problemas básicos,
como edu caç ão, saú de, seg ura nça . Isso ref orç ou a des cre nça na
democracia em muitos segmentos que, diga-se de passagem, nunca
simpatizaram com ela. Mas o problema não está só no governo civil.
No fundo, reflete um problema sério de nossa sociedade, que é a
ausência de noção de espaço público, o espaço onde todos devem
ser tratados igualmente, independentemente da vontade subjetiva,
das simpatias, amizades, preconceitos, etc., e isso envolve governo,
sociedade e indivíduos. Na minha opinião, a grande confusão que se
faz no Brasil entre espaço privado e espaço público é uma constante
ameaça às frágeis e incompletas conquistas democráticas.
A arquitetura de
UM regime militar

o dia 30 de março de 1964, o Brasil foi dormir sonhando


com as reformas sociais propostas pelo governo João
Goulart. Na manhã seguinte, porém, a nação acordava
com o rumor de um golpe de Estado realizado pelas Forças
Armadas. A perplexidade e a surpresa tomaram conta de boa parte da
sociedade brasileira, sobretudo dos setores identificados com as
idéias nacionalistas e de esquerda, que possuíam amplo espaço no
governo deposto. Como um governo eleito pelo voto direto, com boa
capacidade de mobilização popular a seu favor, havia caído sem a
menor resistência, arrastando consigo todo um sistema político?
Hoje, decorridas mais de três décadas, é possível fornecer algu-
mas respostas a essa pergunta, através da análise dos mecanismos e
das contradições internas desse sistema, conhecido como democra-
cia populista.

A crise da
democracia populista

A queda de Getúlio Vargas, em 1945, marcou o início da


democracia populista. Nesse sistema, boa parte das massas popu-
lares podia se expressar politicamente através do voto direto, ao
mesmo tempo que as elites socioeconômicas mantinham seu poder
de mando no país. Produto de um “pacto político” entre essas
elites, a democracia populista era o resultado de um complexo jogo
de forças que, por um lado, mobilizava as massas urbanas, sobre-

4
each

AUTO
tudo nos períodos eleitorais, e, por outro, pressupunha o controle
político das organizações populares, impedindo ou dificultando
suas iniciativas mais autônomas. Assim, todo o sistema convergia
para as máq uin as part idár ias e para O pod er de Esta do, amb os
cen tra liz ado s em lid era nça s per son ali sta s — os chef es polí tico s. A
ação desses líderes era decisiva no controle das constantes tensões
políticas, ao evitar que elas se transformassem em crises mais
agudas que ame aça sse m o sist ema. Tais cris es tant o pod iam ser
produt o das div erg ênc ias entr e seto res da pró pri a elit e com o de
conf lito s soci ais mais pro fun dos , entr e clas ses soci ais ant agô nic as.
O
Cabia, portanto, a tais lideranças (e aos partidos) administrar
frágil jogo entr e o con tro le das mas sas pop ula res e as con ces sõe s
para apa zig uá- las , vis and o à man ute nçã o do pod er das
necessárias
elites. Vejamos como isso se dava.
Um dos legados do longo governo de Getúlio foi o chamado
um
varguismo, um conjunto de idéias e práticas sustentadas por
ideário naci onal ista ; def ens or da mod ern iza ção indu stri al do país e de
sua aut ono mia polí tica dian te das gra nde s pot ênc ias , sob ret udo os
o
Estados Unidos. Durante seu governo democrático (1951-1954),
Brasil passou por profundas mudanças: a industrialização acelerou-
se, aum ent and o sig nif ica tiv ame nte o pro ces so de urb ani zaç ão; a
classe média e o operariado tornaram-se parcelas expressivas da
população, convertendo-se em agentes destacados no jogo político.
Tais mudanças davam à realidade brasileira uma nova feição, exigin-
do da elite a implantação de uma nova dinâmica, que, de alguma
forma, viabilizasse a expressão e participação política desses novos
agentes.
Assim, do ponto de vista político-partidário, todo o período que
se seguiu à deposição de Vargas foi marcado pela aliança no poder de
duas das maiores agremiações partidárias então existentes: o Partido
Social Democrático (PSD), que reunia parte das elites agrárias, e O
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), representando setores mais po-
pulares. Na oposição destacava-se a União Democrática Nacional
(UDN), que representava setores da elite conservadora, e cuja princi-
pal bandeira era exatamente o combate ao populismo, ou seja, à
tradição varguista que persistia mesmo após a morte de Getúlio.
Os governos de 1950 a 1961 tentaram manter-se dentro desse
jogo de forças entre setores dominantes que ora conseguiam conver-
gência, ora produziam sérias tensões, uma vez que os interesses dos
fazendeiros eram frequentemente conflitantes com os dos industriais,
5
Nesse período não foram poucos os momentos de crise em que
ameaças de golpe foram aventadas.
A esse cenário de instabilidade interna deve-se somar o quadro
mundial dominado pelo tenso clima da Guerra Fria, do qual o Brasil
não escapava. O país era considerado território de influência norte-
americana, e a forte presença de empresas desse país em nossa eco-
nomia consolidava essa tese. Entretanto, como em quase todos os
países subdesenvolvidos da América Latina, Ásia e África, eram cres-

PRE
centes os defensores da busca de uma certa autonomia diante do

=
embate Leste-Oeste. Em outras palavras, eram os partidários da políti-

SPAS da
ca de não-alinhamento, que pregava uma postura de equidistância,
tanto dos países capitalistas mais avançados como da União Soviética.
No final do governo de Juscelino Kubitschek, ao cenário de
conflitos políticos somou-se um quadro econômico preocupante. O
Brasil não conseguia mais manter as elevadas taxas de crescimento,
principalmente no setor industrial; as finanças públicas estavam
desequilibradas, gerando déficits e, consequentemente, inflação; e os
salários não aumentavam na mesma proporção que o custo de vida.
Naturalmente, o resultado disso foi o aumento das tensões sociais, em
que as classes trabalhadoras começaram a pressionar o governo a
adotar políticas que revertessem o processo de agravamento das
desigualdades sociais.
Não bastassem esses problemas, o presidente Jânio Quadros,
eleito em janeiro de 1961, renunciou oito meses após sua posse.
Como determinava a Constituição, o vice-presidente, João Goulart,
deveria assumir. Ocorre que Goulart — a essa altura alçado à condi-
ção de principal herdeiro do varguismo, junto com Leonel Brizola —
era visto com muita desconfiança por parte da elite. Essa desconfian-
ça era antiga, desde quando ele, como ministro do Trabalho de Var-
gas, havia autorizado um aumento de 100% no salário mínimo, medi-
da considerada demagógica e que jogava patrões contra empregados.
Visto pela elite como nacionalista e próximo da esquerda, Jango
— como João Goulart era popularmente conhecido — foi impedido
de assumir a plenitude do poder, submetendo-se às novas regras do
parlamentarismo, instituído por meio de uma emenda constitucional,
fruto de manobras políticas dos setores conservadores do poder.
Quando, porém, um plebiscito restituiu ao presidente a plenitude
do comando do governo, em janeiro de 1963, os acontecimentos
tomaram um novo rumo. É que nesse momento ganhava força a
mobilização popular em torno do plano das Reformas de Base — um

6
conjunto de ações governamentais que deveriam promover a reforma
agrária, a reforma urbana, a reforma fiscal e a reforma bancária, entre
outras. O objetivo geral dessas ações era garantir a continuidade do
desenvolvimento econômico, ampliando o mercado interno, e aten-
der às demandas populares, que eram cada vez maiores.
Para completar o cenário que antecedeu a deposição de João
Goulart, é importante acrescentar mais dois aspectos. O primeiro
refere-se ao apoio que o PTB, partido de Jango, havia recebido do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma vez que os ideais nacionalis-
tas e a defesa da modernização industrial desvinculada dos interesses
econômicos norte-americanos eram pontos comuns em ambos os
partidos. O PCB acreditava que, ao apoiar o desenvolvimento políti-
co-econômico do país, expandindo as relações capitalistas em todos
os setores da economia, estava criando as condições para que, no
futuro, a revolução socialista ocorresse. A adesão dos comunistas ao
programa de reformas consolidou ainda mais a aliança, a despeito das
divergências entre os militantes das duas agremiações. Para os setores
conservadores, sobretudo os latifundiários, banqueiros e industriais,
além de empresários ligados às multinacionais, essa aliança e mesmo
as Reformas de Base eram muito malvistas, pois eram entendidas
como a implantação do comunismo no país.
O segundo aspecto a ser acrescentado é que o sucesso da Re-
volução Cubana (em 1959), ao tornar realidade o sonho da experiên-
cia socialista na América Latina, passou a representar uma ameaça
para a influência norte-americana no continente. Assim, a política
externa dos Estados Unidos estava orientada para impedir a ocorrên-
cia de conflitos e revoltas sociais (de inspiração socialista) que
implicassem qualquer mudança na ordem interna dos países sob sua
influência.
Assim, os últimos meses do governo Goulart foram marcados por
muitas tensões. Até mesmo alguns setores da esquerda aumentavam
suas críticas ao governo, acusando-o de tímido ou de reformista,
quando, para eles, a saída seria a radicalização através da revolução
popular. Jango se viu, então, pressionado pela esquerda e pela
direita, ou seja, pelos pólos antagônicos que formavam o “pacto
político” da democracia populista. Sem poder atender completamen-
te às exigências de ambos, o governo foi se tornando indeciso e fraco,
enquanto boa parte das elites civis e militares conspirava contra
Jango. Diante da crescente mobilização popular em torno das Refor-
mas de Base, as correntes que defendiam a derrubada do governo

7
pela força ganhavam cada vez mais adeptos, sobretudo entre a classe
média, cujo grande medo era que O “comunismo” viesse junto com as
Reformas. Diga-se de passagem que esse conservadorismo da classe
média será um dos pilares de apoio do golpe que logo ocorreria.
O agravamento da crise socioeconômica e a crescente organiza-
ção dos trabalhadores na forma de movimentos sociais e sindicais
eram entendidos pelas elites como sinônimos de fraqueza do gover-
no, incapaz de controlar a instabilidade econômica e os conflitos
sociais. Para perturbar ainda mais a conjuntura política do Brasil, o
governo Jango, dependente do apoio das elites (sobretudo aquelas
ligadas ao PSD), estava impedido de radicalizar sua política de
reformas, para atender às reivindicações dos trabalhadores. Se o
fizesse, perderia parte importante daquele apoio, fato que efetiva-
mente ocorreu, aliás, mesmo sem a radicalização do governo.
Cercado pelos conspiradores e prisioneiro de seus próprios
limites, já que identificado com um sistema democrático-populista, o
governo Jango foi derrubado pelo golpe militar de 1964, o que não
implica afirmar que toda a sociedade brasileira tenha se rendido ao
golpe e ao regime imposto. O Brasil entrava, assim, na era do “regime
militar”, que não só afetou a face política do país como acabou por
transformar outros aspectos da vida nacional.

O golpe de Estado

As tensões políticas que culminaram na queda do governo


Goulart se desenvolveram num quadro de crise socioeconômica e
radicalização político-ideológica muito explorado pelos conspirado-
res. Aliás, pode-se dizer que o golpe militar significou a convergência
de diversos núcleos de conspiração contra o governo, alguns deles já
atuantes na crise que resultou no suicídio de Getúlio Vargas em 1954.
Destacamos a seguir três grupos básicos:

a) Conspiradores ligados à UDN e demais setores civis antivarguis-


tas: esse núcleo tinha à frente líderes civis como Carlos Lacerda
(no Rio de Janeiro), Magalhães Pinto (em Minas Gerais), Ademar
de Barros (em São Paulo), entre outros. Compartilhava a oposição
aos herdeiros políticos do varguismo, sobretudo Leonel Brizola &
João Goulart, e era a favor do afastamento do nacionalismo
político-econômico que caracterizava o PTB,

8
b) Oposição militar: esse núcleo também remonta à decada de 50 e
foi atuante ao longo da crise de 1954. Compartilhando um
anticomunismo radical com um alinhamento com os “interesses
ocidentais”, representados pelos Estados Unidos da América, esse
setor militar conspirativo se fortaleceu sobretudo quando a hierar-
quia e os interesses das Forças Armadas se viram ameaçados pela
política populista. A crescente politização dos quartéis, entre 1963
e 1964, quando a tropa fez uma série de reivindicações de
participação política (por exemplo, o direito ao voto), levou
diversos comandantes militares a engrossar esse núcleo.
O núcleo ligado ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
foi criado em 1962, pelo general da reserva Golbery do Couto e
Silva. Além de articular a conspiração dos setores militares —
ligados à Escola Superior de Guerra (ESG) — e empresariais —
oriundos principalmente das empresas multinacionais instaladas
no Brasil, que se viram ameaçadas pela política nacionalista —, o
IPES foi o responsável pela elaboração de um projeto político
alternativo à democracia populista. Tal projeto, que se tornaria
mais claro nos anos seguintes ao golpe, era baseado nos princí-
pios da Doutrina de Segurança Nacional: crescimento econômico
dentro do capitalismo internacional, controle da sociedade civil
por parte do Estado (para evitar que os conflitos levassem a
revoluções sociais), racionalização da administração do Estado
(evitando que as pressões das camadas assalariadas interferissem
nas políticas públicas). A Doutrina de Segurança Nacional foi
criada pelos estrategistas norte-americanos após a Segunda Guer-
ra Mundial e apresentada aos militares da América Latina, tendo
como objetivo básico conter a ação dos “comunistas” na vida
política dos países subdesenvolvidos. Esse núcleo conspirativo,
segundo o cientista político Rene Dreifuss, foi o responsável pela
sistemática desestabilização do governo Goulart, através da pro-
paganda de massa e outras ações coordenadas.

Os acontecimentos do início de 1964 selaram a convergência


desses e outros grupos de conspiradores. Uma combinação explosiva
de crise econômica (o país não crescia desde 1960, e a inflação
chegava a 100% ao ano), crise política (o governo perdia parte de
seus aliados no Congresso Nacional), crise social (os trabalhadores
urbanos e rurais cada vez mais se faziam presentes no cenário
político) e crise militar (a tropa de subalternos exigia maior participa-
9
ção política) criou o clima para o golpe. As palavras de Luís Carlos
Prestes, secretário-geral do PCB, em janeiro de 1964, caíram como
uma bomba na cabeça dos conservadores: “Os comunistas não estão
no governo, mas estão no poder”.
Com a mobilização popular, o governo e seus aliados de esquer-
da (como o PCB) esperavam reverter a crise política e fortalecer o
presidente. No Comício da Central do Brasil, realizado no dia 13 de
março, sindicatos e partidos aliados do governo conseguiram reunir
mais de 300 mil pessoas, que puderam ouvir o presidente Goulart
prometer as Reformas de Base e a convocação de uma Assembléia
Constituinte (o que era visto pela oposição como um “golpe”. Ao
mesmo tempo, o governo dizia possuir um “dispositivo militar” de
defesa em caso de um golpe de Estado patrocinado pela direita.
A repercussão do Comício da Central nos meios militares foi
grande. A presença de faixas com slogans a favor das reformas e a
nítida hegemonia da esquerda na manifestação provocaram a rápida
reação da direita. Em São Paulo, no dia 19 de março, organizou-se,
com o apoio da Igreja Católica e da oposição política ao governo, a
“Marcha com Deus pela Família”, uma grande manifestação contra o
governo de Jango, que reuniu cerca de 400 mil pessoas. Um dia
depois era dada a senha para o golpe por parte do próprio chefe do
Estado-Maior do Exército, general Humberto de Alencar Castelo
Branco, que procurou dar-lhe uma fachada legalista:

Compreendo a intrangiiilidade e as indagações dos meus


subordinados nos dias subsegiientes ao comício de 13 do corrente
mês [..] São evidentes duas ameaças: o advento de uma Consti-
tuinte, como caminho para a consecução das reformas de base, e
o desencadeamento em maior escala de agitações generalizadas
do ilegal poder da CGT [Comando Geral dos Trabalhadores) [..J
Os meios militares nacionais e permanentes não são propriamen-
te para defender programas de governo, muito menos a sua
propaganda, mas para garantir os poderes constitucionais [..] À
ambicionada Constituinte é um objetivo revolucionário pela vio-
lência com fechamento do atual Congresso e a instituição de uma
ditadura (apud IANNI, O. p. 138).

Conforme o “cronograma” dos golpistas, o movimento político-


militar deveria ser desencadeado no dia 2 de abril, quando uma
passeata similar à de São Paulo seria realizada no Rio de Janeiro. Foi

10
difícil, porém, controlar todos os líderes conspiradores, cada qual
motivado por interesses próprios a derrubar o presidente. Em 28 de
março, o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto (um dos
donos do extinto Banco Nacional), reuniu-se com o general Olímpio
Mourão, comandante da IV Região Militar (sediada em Minas Gerais),
e resolveram antecipar o golpe, pois queriam ser os primeiros a
colher os frutos da vitória. Na madrugada de 31 de março, o general
Mourão ordenou que suas tropas marchassem para o Rio de Janeiro.
No dia seguinte, o general Amaury Kruel fazia o mesmo em São
Paulo, depois de uma breve hesitação.

José de Campos

E e M nba = ” i a

Tanques ocupam as ruas do Rio de Janeiro, em 1964.

11
Num documento “entregue” em 31 de março ao presidente da
República, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Pery
Bevilacqua, assumia o movimento:

Os chefes militares das três Forças Armadas, em todos os graus


de hierarquia, veem com crescente apreensão o desenvolvimento

E.
da grave crise de autoridade que, nos dias que correm, forma,
com a crise inflacionária, um círculo vicioso, a um tempo causa
e efeito dos males que assoberbam a vida do nosso povo. A
ignomínia de uma ditadura comuno-sindical paira sobre a Na-
ção Brasileira [..] a segurança do Governo e das instituições
democráticas só pode repousar nas Forças Armadas. Não é possi-
vel, neste terreno, a coexistência pacífica do Poder Militar com o
“poder sindical” subversivo e fora da lei (apud IANNI, O. p. 141). E

Esperava-se que o “dispositivo militar” do governo entrasse em


funcionamento. Mas a hesitação de Goulart, que, como vimos,
traduzia uma contradição da democracia populista, acabou por selar
seu destino,
Do Rio de Janeiro, Jango foi para Brasília, deixando a capital
federal algumas horas depois. Rumou, então, para o Rio Grande do
Sul, sua principal base política e militar, mas facilitou a armadilha
golpista, já articulada com o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli.
No dia 2 de abril, Mazzilli seria empossado como presidente da
República, estando Goulart ainda em território nacional. Em 1º de
abril, o Congresso havia aprovado a declaração de vacância da
Presidência da República, com apoio de parte do PSD, antigo aliado
do PTB de Jango. “Legalmente” sem presidente, o caminho para o
poder ficava ainda mais fácil para os golpistas. Boa parte da imprensa
apoiou o golpe. Os casos mais famosos foram os dos jornais O Estado
de S.Paulo e Tribuna da Imprensa, esse último de Carlos Lacerda.
Ambos não só apoiaram como também tomaram parte na conspira-
ção golpista, ao ajudar a desestabilizar e a desgastar a imagem do
governo, com a publicação de notícias negativas. Além da articulação
interna, o golpe também foi apoiado pelos Estados Unidos, que
chegaram a preparar uma operação de apoio militar, em caso de
=

resistência — a “operação Brother Sam” .


As poucas iniciativas de resistência armada, por parte de sindica-
listas e políticos, foram rapidamente desarticuladas. A tentativa de
greve geral em apoio ao presidente, convocada pela Confederação

12
mm — id sd dns To
É t5 a

4
José de Campos
«
O presidente
João Goulart,
derrubado pelo
golpe militar de
1964, nos seus
últimos
momentos em
solo brasileiro.

Geral dos Trabalhadores (CGT), não surtiu o efeito esperado, esva-


ziando-se. Em Pernambuco, onde o movimento popular camponês
era relativamente intenso, desencadeou-se uma brutal repressão,
patrocinada pelos grandes proprietários de terras, ao mesmo tempo
que o governador Miguel Arraes era preso pelo Exército. No dia 2 de
abril, boa parte da sociedade, simpática ao golpe militar, saiu às ruas
e ajudou a depredar a sede do jornal Última Hora (simpatizante do
governo recém-destituído) e a sede da União Nacional dos Estudan-
tes. No dia 4 do mesmo mês, completamente vencido, o presidente
Goulart embarcou para o exílio no Uruguai.
O Brasil inaugurava, assim, a era das “ditaduras militares”, basea-
das na Doutrina de Segurança Nacional, que ao longo dos anos
seguintes tomariam conta de quase toda a América Latina. O golpe
militar brasileiro fornecia, desse modo, um modelo para a chamada
“contra-revolução”, tendo como contrapartida a Revolução Cubana,
que inspirava muitos grupos de esquerda latino-americanos. ÃO
mesmo tempo, ele propiciava o realinhamento dos países da região
com a política externa norte-americana e se apresentava como via
para uma solução modernizante, do ponto de vista capitalista. Segun-
do essa doutrina, a modernização capitalista (criação de uma base
industrial forte, com uma classe média significativa e ampliação do
mercado de consumo) servia como contraponto às tensões sociais
geradas pelo subdesenvolvimento econômico, base das revoluções
socialistas no Terceiro Mundo.

13
SE desafios do novo regime

Na primeira quinzena após o golpe seguiram-se importantes


articulações políticas para criar uma base institucional e dar uma
aparência de legitimidade ao novo regime, ao mesmo tempo que se
iniciava o processo de perseguição aos membros mais “ameaçadores”
do antigo governo e a simpatizantes do Partido Comunista.
Essa estratégia de institucionalização do poder político e dos
mecanismos de decisão administrativa foi, aliás, o que diferenciou o
regime militar brasileiro de outras ditaduras latino-americanas. Com
isso, evitava-se que o regime político dependesse do prestígio deste
ou daquele indivíduo, garantindo-lhe, assim, maior estabilidade polí-
tico-institucional, Essa estratégia era parte de um projeto político
nascido na ESG e no IPES, que procurava combinar autoritarismo
político-militar, instituições tipicamente liberais, como partidos políti-
cos e parlamento, e burocratização das decisões políticas mais
importantes. Como resultado, os principais atores do regime militar
brasileiro foram os altos oficiais militares, parlamentares civis sem
expressão popular e administradores tecnocratas. Por esse motivo, os
líderes carismáticos que apoiaram o golpe, sobretudo Carlos Lacerda,
Juscelino Kubitschek e Ademar de Barros, tiveram seu espaço de
poder cada vez mais reduzido até a cassação de seus direitos polí-
ticos, logo após o golpe. Mesmo as lideranças militares mais direta-
mente ligadas à tropa (como os comandantes de quartéis e de
unidades militares) não eram muito bem vistas pelos estrategistas do
novo regime. A preferência para ocupar os principais cargos de co-
mando recaiu sobre os generais de alta patente, ligados a instituições
militares mais burocráticas.
A junta militar que passou a comandar o país, nos primeiros
dias após o golpe, formada pelo marechal Artur da Costa e Silva,
pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Corrêa de Melo e pelo
vice-almirante Augusto Rademaker, e auto-intitulada “Supremo Co-
mando da Revolução”, procurou tomar o controle da situação e
centralizar as decisões mais importantes. Feita uma “revolução” em
nome do Congresso Nacional (contra a convocação da Constituinte)
e da preservação da ordem constitucional vigente, os militares
sabiam que era preciso encontrar uma fórmula institucional para
legalizar o regime autoritário e aglutinar o apoio dos civis,
funda-
mental naqueles primeiros momentos do novo governo. Não era
possível simplesmente fechar o Congresso (o que seria feito mais
14
tarde, como veremos) nem tampouco anular a Constituição. Mas
obviamente os golpistas não pretendiam atuar nos limites das leis
vigentes. Surgiram, então, os Atos Institucionais, decretos jurídicos
de caráter centralizador e autoritário, que se sobrepunham à Cons-
tituição Federal.
Ao mesmo tempo, para manter os bolsões de apoio na sociedade
civil, o novo governo deveria retomar a política de crescimento
econômico baseado na industrialização e na expansão do consumo
de bens duráveis (automóveis, eletrodomésticos, etc.), modelo já
implantado desde os anos 50, mas que estava ameaçado pela crise
econômica e pela dificuldade do Estado em manter seus investimen-
tos em infra-estrutura produtiva (transporte, energia, infra-estrutura
urbana). Dessa combinação de desafios emergiu o novo autoritaris-
mo militar e, junto com ele, uma nova estrutura socioeconômica que
mudaria radicalmente a face da sociedade brasileira.

As vrearticulações políticas e a
institucionalização do golpe

No dia 9 de abril de 1964, o Congresso Nacional, devidamente


expurgado dos simpatizantes do governo Goulart, dos nacionalistas e
da esquerda em geral, elegia com 361 votos o novo presidente do
Brasil; o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, chefe do
Estado-Maior do Exército do governo deposto.
Na corrida ao poder presidencial, participaram três militares: o
general Amaury Kruel, um dos primeiros golpistas, apoiado pelo PTB;
o general Eurico Gaspar Dutra, presidente da República entre 1946 e
1951, que contava com o apoio de parte do PSD; e o marechal Castelo
Branco, apoiado pela UDN (de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto),
por parte do PSD (inclusive Juscelino Kubitschek) e pela ESG (que,
embora não constituísse um partido político, passava a ser uma das
instituições mais importantes da política nacional). Como se vê, foi
Castelo Branco quem conseguiu articular o maior número de forças
políticas em torno de si.
As promessas de que o novo governo seria apenas uma solução
passageira, para limpar o país da corrupção, da subversão e retomar
o crescimento econômico, fizeram de Castelo Branco o nome mais

15
|
aceitável pelas elites políticas

Nelson Di Ragol/Abril Imagens

oca
e econômicas que apoiaram
o golpe. O apoio de impor-

sos
tantes líderes civis, como La-
cerda e Juscelino, ampliava
ainda mais a legitimidade do

TOO
novo governo. A não-extin-
ção dos partidos políticos e a
manutenção do Congresso e
da Constituição de 1946 cria-
vam uma fachada legalista,

TS
importante perante a opinião
pública.
Contudo, a promulga-
ção do Ato Institucional nº 1

)
(AJ-1), em 9 de abril de 1964,
dava início à era dos Atos
Institucionais, que só termi-

j
naria em 1978, demonstrando
como o legalismo golpista era
artificial. O Al-l, elaborado
por Francisco Campos (o re-
dator da Constituição fascista PE | | o a
do Estado Novo em 1937), O marechal Castelo Branco,
deveria vigorar até 31 de ja- líder dos golpistas.
neiro de 1966. Estabelecia
uma série de medidas de controle da sociedade e dos poderes
Be
públicos por parte do Executivo (ou seja, o governo federal), tais
como: o poder de cassar os direitos políticos dos cidadãos, decretar
estado de sítio (suspensão dos direitos individuais e concessão de
plenos poderes às forças de repressão policial), controlar o Congres-
so Nacional. Por outro lado, marcava a data das próximas eleições
presidenciais: 3 de outubro de 1965, que acabaram não acontecendo.
Em vista disso, aqueles que inicialmente apoiavam Castelo Branco,
como Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, então os principais
candidatos à Presidência, deixaram de acreditar na transitoriedade do
novo governo militar. Logo perceberam que a revolução tinha vindo
para ficar. Aliás, Juscelino foi cassado poucos meses após o golpe
militar, causando mal-estar mesmo entre os setores conservadores da
sociedade.

16
As primeiras medidas da política
econômica e o controle sobre a
sociedade

Já em abril de 1964, o ministro do Planejamento e Coordenação


Econômica, Roberto Campos, resumia a política econômica do novo
govern o: “O pro ces so cos tum eir o de rev isã o sala rial , em pro por ção
or ou igua l ao aum ent o do cust o de vida , é inc omp atí vel com o
superi
199).
objetivo de desinflação com desenvolvimento” (apud IANNI, O. p.
Em out ras pal avr as, o min ist ro sin ali zav a que m iria pag ar o cus to
social da nov a polí tica eco nôm ica : os tra bal had ore s. A ant iga prát ica
de aumentos salariais motivados por pressões sindicais deveria ser
revista. As prioridades econômicas do governo Castelo Branco eram
outras: conter a inflação através do controle dos custos da produção
(so bre tud o o cus to da mão -de -ob ra) ; dev olv er ao Est ado a cap aci da-
de de investimento em infra-estrutura produtiva, reorganizando as
finanças públicas e redimensionando o sistema tributário; renegociar
a dívida externa para conseguir novos emprêstimos, fundamentais
para a recuperação da capacidade produtiva do capitalismo brasilei-
ro, tão dependente de recursos e tecnologias do exterior, Obviamen-
te, tudo isso deveria ser feito sem prejudicar os interesses dos grandes
capitalistas nacionais e estrangeiros, entusiastas do novo regime.
Se o novo governo anunciava que os assalariados iriam “pagar a
conta” da política econômica, também se sabia que não seria possível
controlar as reivindicações dos trabalhadores simplesmente com re-
pressão policial e intervenção em sindicatos (medidas que, por sinal,
não foram economizadas). Era preciso algum tipo de política social
que compensasse os efeitos da contenção salarial (a curto prazo, pelo
menos). Dentro da nova mentalidade tecnocrática, ou seja, a gestão
aparentemente técnica da economia, supostamente alheia aos inte-
resses político-partidários, o novo governo tentou administrar a ques-
tão social, visando despolitizar as classes trabalhadoras.
Para viabilizar uma política de moradias populares, foi criado, em
abril de 1964, o Banco Nacional da Habitação (BNH), complementado
mais tarde (1966) pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS), que servia, ao mesmo tempo, como uma fonte de financiamen-
to para a construção de casas populares e um fundo de pecúlio para o
trabalhador, resgatável no caso de demissão sem justa causa. Na
17
prática, o FGTS foi um importante instrumento de barateamento de
mão-de-obra, facilitando o processo de demissão de trabalhadores.
Em junho de 1964, demonstrando a “boa vontade” do governo
norte-americano com o novo governo brasileiro, a dívida externa foi
reescalonada, ou seja, os prazos de pagamento foram alargados. Essa
medida era muito importante para o capitalismo nacional, pois os
US$ 3 bilhões da dívida externa brasileira da época eram empréstimos
de curto prazo, O que prejudicava o crédito do país no exterior. Como
o projeto político-econômico que havia triunfado em 1964 pressupu-
nha o reforço dos elos do capitalismo brasileiro com o capitalismo
internacional (sobretudo o norte-americano), o Brasil necessitava de
dólares, a moeda das transações internacionais, para implementar sua
modernização industrial. A par disso, caberia ao Banco Central, criado
em novembro de 1964, a centralização da política financeira do país.
É importante ressaltar que essas medidas econômicas eram uma
tentativa de trazer para o aparelho de Estado o controle não só da
economia, mas também dos conflitos sociais. Por trás da busca de
uma nova “racionalidade” administrativa, ocultava-se a idéia de
despolitizar a questão social, burocratizando e retirando do controle
da sociedade as iniciativas, os recursos e a implementação das
políticas públicas (saúde, educação, etc.). Um exemplo disso foi a
legislação salarial que passou a vigorar a partir de 1966: os salários
eram reajustados conforme as variações de um índice obtido pela
média da inflação dos últimos 24 meses. Complicações aritméticas à
parte, tal medida procurava arrefecer o conflito entre patrões e
empregados e diluir as conquistas de categorias com maior poder de
negociação sindical, mediante um índice “técnico” e “neutro”. AO
burocratizar a gestão econômica e priorizar o desenvolvimento esco-
rado no consumo de bens duráveis (automóveis e eletrodomésticos),
pouco acessíveis à maioria da população, o regime militar conseguiu,
por um lado, desenvolver o capitalismo brasileiro, mas, por outro,
acabou agravando uma tendência histórica: a concentração de renda.
Como dissemos, a gestão econômica não estava separada da ten-
tativa de estabelecer uma nova relação com a sociedade, As organiza-
ções dos trabalhadores do campo e da cidade sofriam intervenção do
Estado, O que significava, no mínimo, a destituição da diretoria sindi-
cal eleita, Sob a acusação de “subversivos”, vários líderes sindicais
foram presos, enquanto muitos trabalhadores perderam seus empre-
gos, sobretudo nos meios operários e nas empresas estatais, onde a
repressão foi muito grande. Ao longo de 1964, mais de quatrocentos
18
sindicatos sofreram intervenção do governo militar. Entre os campo-
neses, cuja organização sindical era muito fraca e recente, a repressão
ficou a cargo dos proprietários de terras (os coronéis) e, na maioria
dos casos, significou a tortura e a morte de líderes, especialmente nos
Estados do Nordeste. A ação violenta das elites sobre os trabalhadores
organizados, uma constante na história do Brasil, não precisou espe-
rar o maior fechamento institucional do regime em 1968: começou
logo após o golpe, sem muitas formalidades.

O controle do movimento estudantil

Com a oposição estudantil, geralmente composta por membros


oriundos da classe média, de início os militares empregaram outra
tática. Pela Lei Suplicy (que levava o nome de Flávio Suplicy de
Lacerda, então reitor da Universidade do Paraná, notório por seu
conservadorismo), editada em 9 de novembro de 1964, todas as
entidades estudantis ficavam sujeitas ao controle do Estado, assim
como os Diretórios Acadêmicos e os Diretórios Centrais de Estudan-
tes. No meio secundarista, os Grêmios Livres foram substituídos pelos
Centros Cívicos, sob controle da diretoria dos colégios.
Ao mesmo tempo, na tentativa de mudar o sistema universitário
brasileiro e ampliar o número de vagas (antiga reivindicação do
movimento estudantil), o governo propôs, em junho de 1965, uma
reforma universitária, fruto do acordo com uma agência educativa
norte-americana, a United States Agency for International Develop-
ment (USAID). O Acordo MEC-USAID, como ficou conhecido, encer-
rava uma concepção de educação e universidade que enfatizava a
tecnicização do aprendizado, fragmentária e específica, destinada
prioritariamente às necessidades de mão-de-obra do mercado, com
pouco espaço para formulações intelectuais mais críticas. Além disso,
o estímulo à privatização do ensino superior incentivou as fundações
privadas a abrir faculdades. Essa “modernização conservadora” do
ensino acabou por provocar a reação do movimento estudantil
organizado, que até 1968, aproveitando-se da relativa tolerância dos
militares, conseguiu articular grandes manifestações públicas de
protesto. A partir de 1966, quando políticos e setores liberais que
haviam apoiado o golpe começaram a perceber que não tinham
espaço no novo regime, e como se tornava cada vez mais clara a
política de arrocho (contenção) salarial sobre os trabalhadores, os

19
estudantes se tornaram o foco principal da oposição da sociedade
civil ao regime militar.
ER
f

et

processo
ja

O controle do 1

E
Ê

político-eleitoral pone e

Mas o novo governo não estava disposto a ceder. O projeto de


permanecer no poder por um longo prazo ficava cada vez mais
nítido. O comando ficaria a cargo dos estrategistas oriundos da ESG
(Golbery do Couto e Silva, Orlando e Ernesto Geisel e o próprio
Castelo), apoiados por tecnocratas civis. A vitória da oposição liberal
nas eleições estaduais em Minas Gerais e na Guanabara, em 1965,
tornou clara a necessidade de também reformar e controlar o sistema
eleitoral como um todo, neutralizando as máquinas partidárias herda-
das da democracia populista. Tendo em vista esse problema e para
atender às pressões da “linha dura” militar, o governo promulgou, em
27 de outubro de 1965, o Ato Institucional nº 2 (AI-2), visando
sobretudo ao controle do processo político-eleitoral de 1966, no qual
deveriam se eleger nove governadores estaduais. Além disso, 1966
seria um ano fundamental para a sucessão presidencial, já que, a
princípio, o mandato do presidente estava acabando.
A edição do AI-2 não deixava dúvidas acerca das intenções
políticas do novo regime em perpetuar-se no poder, Ao mesmo
tempo, porém, procurava dar ao regime uma fachada democrática: ao
extinguir todos os partidos políticos então existentes, substituía-os
por dois únicos partidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) —
governista — e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) —
supostamente congregando a oposição, mas limitado em sua organi-
zação e no campo das manifestações públicas.
Além disso, o ato permitia que civis fossem julgados por tribunais
militares e estabelecia o princípio de eleições indiretas para presidente
da República, realizadas via Colégio Eleitoral, composto basicamente
de parlamentares. Somada à prorrogação do mandato de Castelo
Branco, que passava a vigorar até março de 1967, essa última medida
colocava o governo militar em confronto direto com as lideranças civis
liberais, que inicialmente apoiaram o golpe e agora se sentiam traídas.
E, para aqueles que ainda acreditavam no caráter transitório da
revolução de março de 1964, o texto do AL-2 reservava uma frase
lapidar: “Não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará”.

20
A institucionalização
do regime militar e a
sociedade civil

O Estado de
Segurança Nacional

o último ano do governo Castelo Branco, entre março de


1966 e março de 1967, foi ficando cada vez mais claro o
caráter permanente do regime militar. Em março de 1966,
o governo editou o Ato Institucional nº 3, complementan-
do o Al-2 e estabelecendo eleições indiretas para governadores dos
Estados. O governo temia a perda do controle político das unidades
da federação e a volta do poder civil pela via eleitoral, desestabilizan-
do o poder central. Ao lado dos Atos Institucionais, outras medidas
legais mais específicas eram preparadas. A Lei de Imprensa, de
fevereiro de 1967, e a Lei de Segurança Nacional, de março de 1967,
cercearam ainda mais a exígua liberdade de expressão que restava
desde o golpe de 1964.
A Lei de Segurança Nacional transformava em legislação a doutri-
na do mesmo nome, fundamento do Estado construído após o golpe.
Como vimos, essa doutrina, elaborada por militares norte-americanos
e aperfeiçoada na ESG, tinha como objetivo fornecer às elites dirigen-
tes (sobretudo aos militares) um conjunto de princípios ideológicos
que pudessem se contrapor à ameaça das revoluções comunistas.
Seus princípios básicos podem ser resumidos nos seguintes aspectos:
a) as fronteiras políticas entre os países eram mais ideológicas que

21
iza 7
hn a

ã
a

ud
wo”
Â

Ra

A,

a
A

is
territoriais; b) como consequência, o inimigo da nação poderia estar
dentro do território nacional, professando, sub-repticiamente, uma
ideologia inimiga e ameaçadora da ordem; c) a estratégia para
combater o inimigo interno e externo deveria ser global, isto é,
política, militar e econômica; d) o desenvolvimento nacional, portan-
to, reforçava a segurança interna, ao passo que a segurança interna
era a condição básica do desenvolvimento nacional; e) segurança e
desenvolvimento eram vistos como “Objetivos Nacionais Permanen-
tes”, incompatíveis com o liberalismo político que havia norteado a
relação dos Estados modernos com a sociedade civil; ) logo, o Estado
não deveria ceder às pressões dos grupos sociais em conflito, mas
garantir os Objetivos Nacionais Permanentes, vigiar e reprimir tais
conflitos, que poderiam ser explorados pelo inimigo interno para
desestabilizar a nação; g) o poder político do Estado deveria estar
centralizado numa instituição de caráter nacional, hierárquico e
disciplinado, vista pelos ideólogos dessa doutrina como “neutra” e
“acima dos interesses localizados” — as Forças Armadas.
Na prática, os princípios da Doutrina de Segurança Nacional,
acima resumidos, significaram a militarização do Estado nacional e a
vigilância constante sobre qualquer cidadão que pudesse se constituir
em inimigo interno “a serviço do comunismo internacional”. O
Estado, em vez de ser o administrador dos conflitos sociais, dentro
dos princípios da democracia, passou a ser o repressor dos grupos
sociais insatisfeitos com a política vigente. Além disso, as Forças
Armadas nunca foram uma instituição acima dos interesses localiza-
dos: não só sofriam pressão dos grandes grupos econômicos (os
principais beneficiários da política econômica do regime) como
também foram palco de lutas internas que ameaçaram a unidade e a
hierarquia, tão caras aos militares. No fundo, essa doutrina servia de
base para uma opção política autoritária das elites dos países capita-
listas dependentes (aqueles menos desenvolvidos) dentro do contexto
da Guerra Fria, que dividia o mundo em dois sistemas opostos,
liderados pelos Estados Unidos, de um lado, e pela União Soviética,
de outro.
Apesar de ter passado para a história como um período liberal do
regime militar, o governo Castelo Branco realizou de fato o aprofun-
damento da institucionalização autoritária e a sistematização legal da
Doutrina de Segurança Nacional. O objetivo era impedir, a médio e
longo prazos, a volta do poder civil e, ao mesmo tempo, atender às
pressões dos quartéis.
Lembremos que, entre os diversos grupos de pensamento dentro
das Forças Armadas, havia dois tipos básicos em constante conflito ao
longo dos 21 anos de regime militar: os generais ligados ao chamado
“sistema”, articulados em torno da ESG, das Escolas Militares, da bu-
rocracia militar, e a oficialidade que comandava mais diretamente os
quartéis e tropas, que era conhecida como “linha dura” por desejar a
militarização completa do Estado e o controle repressivo permanente
sobre a sociedade. Conforme o cientista político João Roberto Martins
Filho, tais grupos não podem ser vistos simplesmente como “modera-
dos” e “duros”, uma vez que traduzem uma complicada dinâmica
política interna à instituição militar, durante o regime imposto em
1964. A diferença entre eles estava na forma pela qual encaravam o
papel do Exército dentro do sistema político. Era principalmente nos
momentos de sucessão presidencial que as diferenças acabavam vin-
do a público, revelando os vários matizes do pensamento político das
Forças Armadas, todos eles, porém, de fundo autoritário.

A oposição civil ao regime militar —


liberais e estudantes
O golpe de 1964 e os primeiros meses do governo Castelo Branco
haviam criado um clima de euforia entre os políticos liberais, oposito-
res do governo João Goulart. Muitos deles, inclusive, eram favoráveis
ao golpe militar, por acreditarem que uma ditadura de curto prazo
possibilitaria a volta a um regime civil em que não houvesse espaço
para a esquerda e os nacionalistas. Mas não demorou para surgirem
as dissidências. Como vimos, a cassação do primeiro aliado —
Juscelino Kubitschek — ocorreu ainda em 1964. Em 1966, setores
empresariais e políticos deixaram de apoiar o governo e, logo depois,
passaram a criticá-lo de forma explícita. Alguns setores, como a
Confederação Nacional da Indústria (CNI), ainda apoiavam o regime,
mas exigiam mudanças na política econômica. Segundo os grandes
empresários, não bastava controlar a inflação e conter os salários; era
necessário retomar o crescimento industrial. A política de austeridade
do ministro Roberto Campos passou a ser criticada.
Entre as elites políticas era ainda maior o descontentamento com
o governo Castelo Branco em especial e com o regime militar em
geral. A edição do Ato Institucional nº 4, em dezembro de 1966,

23
convocando extraordinariamente o Congresso Nacional e regulando
suas atividades, visava garantir a aprovação da nova Constituição
Federal. A nova Carta sofreria duras críticas por parte dos liberais, e
até daqueles que haviam conspirado contra o governo Goulart. O
ponto mais polêmico era o aumento do poder do Executivo, em
detrimento dos outros poderes constitucionais.
Em novembro de 1966, antigos simpatizantes do golpe militar,
Jiderados por Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, lançaram a
Frente Ampla, uma entidade suprapartidária de oposição civil. Apesar
das divergências, aproximaram-se do ex-presidente João Goulart,
exilado no Uruguai. Lá, firmaram o Pacto de Montevidéu, um acordo
para superar as antigas divergências e unificar a oposição civil ao
regime que se consolidava. Até abril de 1968, quando de sua
dissolução pelo governo, a Frente Ampla não havia conseguido
ampliar suas ações para O conjunto da sociedade civil, permanecendo
restrita ao apoio de alguns setores da burguesia nacional.
Mas as dissidências não ocorriam só da parte dos antigos aliados
civis. Em maio de 1966, o general Olímpio Mourão Filho, por meio de
um depoimento distribuído à imprensa, rompia publicamente com o
governo. Os militares perdiam o apoio daquele que havia iniciado o
movimento militar,
As expectativas da oposição civil acabaram sendo catalisadas
pelo movimento estudantil. A Reforma Universitária proposta pelos
militares não agradava nem às lideranças nem a amplos segmentos da
massa estudantil. Em setembro de 1966, a questão estudantil explodiu
na forma de protestos de rua. Às reivindicações específicas da
categoria juntaram-se palavras de ordem mais amplas, que exigiam
“liberdades democráticas”. No dia 22 de setembro de 1966, o movi-
mento estudantil convocou o Dia Nacional de Luta contra a Ditadura,
ocasionando vários conflitos com a polícia nas principais cidades do
país. Daí até o final de 1968, o movimento estudantil se tornaria O
grande ator político da oposição, atuando como protagonista em
vários protestos de rua, além de fornecer o maior número de
voluntários para os movimentos guerrilheiros que então se organiza-
vam para combater o regime.
Se em 1964 a maior parte da imprensa liberal, composta pelos
grandes jornais diários, apoiou o golpe, a Lei de Imprensa, decretada
no início de 1967, causou grande mal-estar entre os jornalistas e entre
os próprios donos das empresas jornalísticas. A edição final da lei
acabou acatando algumas modificações propostas pela imprensa, mas
24
isso não dissipou por completo o mal-estar causado pela imposição
do decreto governamental. Mesmo longe da radicalização da oposi-
ção estudantil, a imprensa passou a dar mais espaço para as críticas
ao governo e ao regime. O jornal carioca Correio da Manhã chegou a
publicar um manifesto contra essa lei, em 3 de janeiro de 1967. Geral-
mente, a imprensa liberal tentava interferir no processo político, suge-
rindo a liberalização do regime, sem usar argumentos que pudessem
provocar a linha dura. Essa forma de oposição liberal, dúbia e conci-
liadora, foi mantida até a saída dos militares em 1985. Essa posição
ambígua da grande imprensa é explicável: se a repressão política
desagradava aos liberais, nem sempre a política econômica lhes era
desfavorável. Além disso, enquanto porta-voz do liberalismo, temia
que a radicalização das críticas fortalecesse a oposição de esquerda.
Outro pólo importante na oposição ao regime militar foi consti-
tuído pelos artistas. A sociedade civil brasileira encontrou em muitos
deles um canal de expressão contra o regime. Boa parte do público
desses artistas era constituída de jovens e estudantes ativistas, o que
favorecia a inclusão de temas políticos nos produtos culturais em
circulação. O teatro, através do show Opinião (estreado no Rio de
Janeiro em novembro de 1964), reafirmou, simbolicamente, a aliança
de classes derrotada com Goulart: um “favelado” (Zé Keti), um
“camponês” ( João do Valle) e uma “classe-média de esquerda” (Nara
Leão) alternavam músicas e anedotas contra o regime. Na música
popular, surgiram os festivais da canção, patrocinados pelas TVs Excel-
sior, Record e Globo, que acabaram se tornando centros de verdadeiros
debates musicais, ao premiar canções politizadas e críticas ao regime,
como Disparada (1966) e Caminhando — Pra não dizer que não falei
das flores (1968), de Geraldo Vandré; Arrastão (1965) e Ponteio (1967),
de Edu Lobo; e Roda Viva (1967), de Chico Buarque. A música popular
e o teatro, aliás, seriam as maiores vítimas da censura cultural imposta
a partir de 1969. No cinema, Glauber Rocha consagrava-se com Deus e
o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em transe (1967), obras que
problematizavam as lutas populares e as contradições da democracia
populista, deposta em 1964. Na literatura, coube destaque a Antônio
Callado, com seu romance Quarup (1967), no qual se narra a trajetória
de um padre que, em viagem pelo interior do Brasil, após sofrer um
processo de conscientização, descobre um novo sentido político e
existencial para sua vida nos valores e nas lutas do povo.
Ao mesmo tempo que redimensionavam, através das suas obras,
os valores políticos e ideológicos herdados do período pré-golpe, os

25
EEPe
artistas engajados serviam como porta-vozes de importantes parcelas
da sociedade civil. Paralelamente, a circulação de obras mais críticas

ame
e comprometidas expressava um conjunto de insatisfações em rela-
ção à ordem vigente, forjando uma contundente cultura de oposição
que sobreviveria, até mesmo, ao furor da censura.

O governo Costa e Silva — das


expectativas de liberalização à

a
realidade da repressão

e
Empossado em 15 de março de 1967, o marechal Artur da Costa e
Silva vinha de uma “corrente” diferente da de seu antecessor, o mare-
chal Castelo Branco. Considerado mais nacionalistae menos alinhado
à política externa norte-americana, o novo presidente chegou a pro-
vocar uma expectativa positiva por parte de alguns opositores. Entre
os políticos civis acreditava-se que esse “nacionalismo militar” traria
consigo maior liberdade política, por se tratar de uma corrente contra
a doutrina disseminada pela ESG, de linha castelista. Segundo o cien-
tista político João Roberto Martins Filho, o presidente Costa e Silva
estava cercado de, pelo menos,
quatro grupos militares: a) os cas-
ai te

A GAR
= A,
RE AMME E " Mm

telistas, reunidos em torno da ESG: e AS

b) a linha dura, aglutinada por al-


; % | fera -—

guns generais comandantes de tro-


pa; c) uma tendência mais nacio-
nalista, liderada pelo general Albu-
querque Lima; d) o chamado “gru-
po palaciano”, composto pelos mi-
nistros Mário Andreazza, Emílio
Garrastazu Médici e Jarbas Passari-
nho, diretamente ligado ao exerci- qd nçres
cio do Poder Executivo, ainda que RI j IVA
não se aglutinasse em torno do À nt Ra q
presidente. Pesquisas mais recen- 2à Age
tes tentam demonstrar O importan- Is EULTR N ab
te papel desse último grupo no fe- emo
Capa da Fatos e Fotos noticiando a
chamento político pós-1968. posse do marechal Costa e Silva.

26
RE CR

Com a posse de Costa e Silva, a política econômica também


sofreu uma reorientação significativa, visando reconquistar o apoio
da classe média e do empresariado. Agora sob o comando de Antonio
Delfim Netto, a economia brasileira voltava a se direcionar para o
PAPEL EPE

desenvolvimento econômico, abandonando a política de estabiliza-


ção e contenção dos gastos públicos, e portanto recessiva, realizada
pelo governo de Castelo Branco. Assim, o Brasil entrava na era do
“milagre econômico”, cuja fórmula era: expansão do crédito para o
consumo, facilitado pelos juros baixos no mercado financeiro inter-
nacional, e controle dos preços básicos e, sobretudo, dos salários
(a maioria dos operários sofreu enormes perdas salariais a partir
de 1967).

A radicalização do protesto estudantil e a


luta armada contra o regime

Ao longo de 1967 e 1968, os estudantes radicalizaram suas


palavras de ordem e suas formas de protesto. Temas estudantis
específicos cada vez mais cediam espaço para o protesto contra a
ditadura. Paralelamente à radicalização do protesto estudantil, os
grupos de esquerda, mesmo atuando na ilegalidade, se reorganiza-
vam e preparavam a luta armada. Os dois movimentos frequentemen-
te iriam se entrecruzar: os estudantes forneciam quadros para a
guerrilha, e a guerrilha estimulava as ações de massa. Em 1968, o
movimento sindical, que parecia completamente reprimido pelo
regime, voltou à cena em duas greves operárias, em Contagem (MG)
e Osasco (SP). Para o governo, esse quadro político configurava uma
guerra revolucionária. Exageros à parte, eram visíveis o desgaste do
regime militar junto a amplos setores da sociedade e a radicalização
das formas de protesto político. No caso do movimento estudantil, o
mundo todo assistia naquele ano a um crescimento da participação
política dos estudantes, na forma de protestos de massa extremamen-
te radicalizados, contra a ordem dominante. Ficaram famosos os
protestos estudantis na França, no México, nos Estados Unidos e na
Alemanha, entre outros países.
No campo das organizações de esquerda, o ano de*1967 marcou
uma série de rupturas. Após o fracasso político de 1964, o principal
partido de esquerda no Brasil, o PCB, fragmentou-se em meio às
avaliações e autocríticas de seus membros. O Partido, capitaneado

27
pelo legendário Luís Carlos Prestes, insistia na formação de uma
frente democrática (que incluía setores da burguesia liberal) contra a
ditadura, atuando por vías pacíficas pela derrubada do regime militar.
Por não concordarem com essa linha, muitos dirigentes resolveram
sair do PCB e fundar seus próprios grupos. Carlos Marighela, após
participar da assembléia da Organização Latino-Americana de Solida-
riedade (OLAS) em Havana (Cuba), fundou a Ação Libertadora
Nacional (ALN). A proposta básica da ALN era iniciar um processo de
guerrilha urbana a fim de conseguir recursos para a formação de uma
guerrilha rural, base de um futuro “Exército de Libertação Nacional”,
que deveria derrubar o regime.
Outro grupo importante, fruto de uma dissidência do PCB ocorri-
da antes do golpe, em 1962, era o Partido Comunista do Brasil
(PCdoB). A partir de 1967, inspirado em outro tipo de tática revolu-
cionária, o PCdoB decidiu montar uma base guerrilheira na região do
Araguaia, enviando para lá mais de sessenta guerrilheiros. A idéia do
PCdoB era a de explorar os conflitos pela posse da terra, comuns na
região, e organizar um exército camponês que deveria desencadear
uma “guerra popular prolongada”, criando “zonas liberadas”, até a
derrubada do governo central e do regime vigente. A base guerrilhei-
ra foi localizada por volta de 1972, quando o governo passou a
desencadear uma verdadeira operação de guerra no Araguaia, dizi-
mando os últimos guerrilheiros por volta de 1975.
Outros grupos foram surgindo entre 1967 e 1968, e também
foram importantes na tentativa da derrubada do regime pela via
armada: o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR), cujo membro mais conhecido foi o
capitão Carlos Lamarca, que em abril de 1969 desertou do quartel
de Quitaúna, em Osasco (SP), levando consigo um caminhão
carregado de armamentos. Apesar de muito divididos pelas diferen-
tes análises teóricas sobre o caráter da revolução brasileira e pelas
táticas e estratégias de luta que julgavam ser as mais corretas, OS
diversos grupos de esquerda conseguiram provocar algum impacto
na opinião pública pelos assaltos a bancos (para angariar fundos
para a guerrilha) e pelos sequestros de diplomatas estrangeiros.
Nesse particular, a ação mais ousada foi o sequestro do embaixador
norte-americano pelo MR-8, em 1969. Normalmente tais sequestros
também eram uma forma de libertar companheiros presos, reestru-
turando, assim, a organização.

28
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E

Iconographia
E
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AJU D E A P R O T E G E R
S U A V I D A E A D E
SEUS FAMILIARES

Cartaz distribuído pelo governo com fotos de "terroristas" procurados. O primeiro rosto,
no canto superior esquerdo, é de Carlos Lamarca, um dos guerrilheiros mais conhecidos.

29
A luta armada, patrocinada pelos diversos grupos de esquerda,
foi uma forma de resistência contra O regime que não se expandiu
pela sociedade com a rapidez que imaginavam seus ideólogos. A
violenta reação do governo foi um dos fatores da derrota, mas não o
único. Até hoje a esquerda brasileira tenta avaliar sua “dupla derrota”,
em 1964 e 1968. Alguns dizem que a primeira derrota deveu-se ao
legalismo e ao pacifismo, enquanto a segunda foi devida à clandesti-
nidade e ao sectarismo dos diversos grupos, que não conseguiram
realizar um trabalho de conscientização das massas e dispersavam
suas forças, fragmentando-se, enquanto o governo os enfrentava de
forma unificada e centralizada. Outras análises procuram enfatizar O
momento inoportuno escolhido pelas organizações de esquerda para
desencadear a luta armada, pois o governo, ao controlar a crise
econômica capitalista, passou a desfrutar de prestígio junto a grande
parte da população, enquanto as organizações populares estavam
reprimidas, o que dificultava o trabalho de massas. O historiador
Daniel Aarão Reis Filho chega mesmo a sugerir que a
“revolução faltou ao encontro” (aliás, título do seu
livro sobre esse tema). Segundo o autor — que
discorda da idéia de que a esquerda brasileira era
fraca e desorganizada —, foi a sociedade que não
abraçou a causa revolucionária. Os grupos esta-
vam organizados e preparados para a ação, mas
Hamilton Correa/Agência JB

não conseguiram superar seu isolamento político.


De qualquer forma, a dupla derrota da esquerda
mudou a face da resistência civil ao regime mili-
tar, que seria redimensionada ao longo dos anos
70, a partir de outros princípios políticos.

1968 -— ano tatídico

O período que vai de março a outubro de


1968 foi marcado por inúmeros eventos que
ficariam na memória da sociedade brasileira. O
primeiro ato desse verdadeiro drama teve como
palco um restaurante frequentado por estudan-
tes, situado no centro do Rio de Janeiro, chama-
do Calabouço. Em fins de 1967, o restaurante
foi citado no relatório militar sobre a questão

30
Em 19668, o movimento estudantil viveu um momento de
efervescência. Na foto, Vladimir Palmeira, um dos
líderes do movimento, discursa numa assembléia.

estudantil, redigido pelo coronel


Meira Matos, como ponto de en-
contro e organização de subver-
sivos. Em março de 1968, pres-
tes a ser fechado, o Calabouço
foi ocupado pelos estudantes,
que protestavam contra a deci-
são. No conflito que se seguiu
entre estudantes e policiais, o
secundarista Édison Luís Lima
Souto foi baleado e morreu,
tornando-se o primeiro grande már-
tir da luta estudantil. A morte de
Edison Luís serviu para ampliar
ainda mais o movimento, cau-
sando grande comoção na so-
ciedade em geral.
A sequência de conflitos en-
tre soldados e estudantes atingiu
seu ponto máximo em 21 de ju-
nho de 1968, na chamada “sexta-
feira sangrenta”: a cidade do Rio
de Janeiro foi palco de um vio-
lento conflito de rua, no qual
morreram quatro manifestantes,
e mais de vinte foram feridos a
bala. Se a morte de Edison Luís
havia chocado a opinião pública,
a sexta-feira sangrenta causou
um impacto ainda maior, A res-
posta à repressão foi eloquente:
no dia 26 de junho de 1968, com
a presença de políticos, artistas,
intelectuais, trabalhadores e, ob-
viamente, uma grande massa es-
tudantil, a sociedade civil marca-

31
va sua presença contra O regime

Iconographia
militar, no evento conhecido
como “Passeata dos Cem Mil”.
Esse evento atingiu tais propor-
ções que foi formada uma co-
missão (escolhida durante a ma-
nifestação) para ter uma audiên-
cia com o próprio marechal Cos-
ta e Silva, visando negociar a
libertação dos estudantes presos
nos dias anteriores e a reabertura
do restaurante Calabouço. Mas O
que estava por trás dessas reivin-
dicações específicas era a luta
ampla contra o regime militar. E
O governo sabia disso.
Os dias de outubro de 1968
foram fatais para o movimento
estudantil. Nos dias 2 e 3. um
conflito público de grandes pro-
porções colocou em confronto
direto os estudantes da Faculda-
de de Filosofia, Ciências €& Letras
da Universidade de São Paulo.
identificados com a esquerda, e
os alunos da Faculdade Macken-
zie, sede do Comando de Caca
aos Comunistas (CCC). Os dois
prédios, vizinhos, localizados na
rua Maria Antônia, no centro da
capital paulista, se transforma-
ram em verdadeiros quartéis. O
conflito terminou com a ocupa-
ção policial e a destruição do
prédio da USP, deixando como
saldo a morte de um estudante
secundarista e dezenas de feri

A Passeata dos Cem Mil no


Rio de Janeiro (26/0/1968).
dos. No dia 12, a polícia invadiu um sítio em Ibiúna (SP), onde se
realizava, clandestinamente, o XXX Congresso da UNE, prendendo
cerca de setecentos estudantes. Depois desse golpe, o movimento
estudantil de massa perdeu a força organizativa, e muitos estudantes
acabaram optando pela luta armada clandestina.

Crise sucessória e repressão política — a


montagem do Estado policial

Enquanto a crise entre governo e sociedade civil se desenrolava


de maneira dramática, correntes militares iniciavam um processo de
luta pelo poder. Era uma das diversas crises sucessórias para a
Presidência da República que agitaram o meio militar ao longo de
todo o período. Mas essa crise intramilitar acabou tendo uma conse-
quência mais grave: o fechamento do regime. Ao lado da ameaça da
guerrilha e dos movimentos de protesto, a luta pelo poder no próprio
meio militar ajuda a explicar o fechamento, ou seja, a radicalização da
repressão sobre a sociedade civil.
Tendo como estopim a recusa do Congresso Nacional, na sessão
de 12 de dezembro de 1968, em conceder licença para que o
deputado Márcio Moreira Alves fosse processado por ofender os
militares num discurso na Câmara, no qual os responsabilizou pela
violência contra os estudantes, o governo editou o mais repressor de
todos os Atos Institucionais: o AI-S.
A partir de 13 de dezembro de 1968, o Brasil entrava numa era
de “terror de Estado”, tornado legal pela nova lei. Além da cassação
generalizada de parlamentares e cidadãos, o AI-5S suspendia o
habeas-corpus de presos políticos, reforçava a centralização do
poder no Executivo federal (diminuindo a força política dos gover-
nadores), permitia a decretação de estado de sítio, sem prévia
autorização do Congresso. Em 1969, o governo regulamentou a
censura prévia sobre os meios de comunicação e sobre os produtos
culturais como um todo,
A partir do AI-S, o Gabinete Militar da Presidência passou a
coordenar diretamente a repressão, o que significava maior poder
dentro do aparelho militar. O Conselho de Segurança Nacional
também teve seu poder político ampliado, tornando-se praticamente
o centro das decisões até meados de 1969. O apoio desses dois
núcleos de poder foi fundamental para a definição da disputa

59
sucessória para a Presidência da República, que se tornaria mais
acirrada após a doença e o consequente afastamento de Costa
e Silva,
em agosto de 1969.
Com o afastamento de Costa e Silva. uma junta milita
r Ocupou
provisoriamente o poder, a fim de impedir a posse do vice-presiden-
te, o civil Pedro Aleixo (opositor do AI-5). Por mei
o de uma emenda
à Constituição, novas regras institucionais foram estabelec
idas para a
sucessão presidencial: um militar, e não um civil. ocuparia
a Presidên-
cia. Prevalecia, assim, a vontade do Alto Comando
Militar, e a disputa
sucessória se daria exclusivamente no meio militar.
Nesse contexto, Albuguerque Lima — porta-voz da
corrente
nacionalista e ministro do Interior — entrou em
conflito com o
general Lira Tavares, ministro do Exército. ligado ao
castelismo e à
ESG. Em meio a tal disputa, o nome que acabou sendo escolh
ido, por
votação direta entre os generais do Alto Comando,
foi o de Emílio
Garrastazu Médici. Médici — além de ser o general de mai
or patente
entre os pré-candidatos — pertencia ao grupo palaciano,
que havia
apostado no fechamento político do Estado para favorecer-se
no jogo
sucessório e conquistar a simpatia dos quartéis, cujos co
mandantes
exigiam uma repressão mais eficaz contra os subversivos.
Começavam os “anos de chumbo”.

en

O general Emílio
Garrastazu Médici,
presidente entre
1969 e 1974.
O

SH Os “anos de chumbo”
— repressão política e
crescimento econômico

A derrota da luta armada e as novas


formas de repressão

uperada a crise sucessória provocada pelo afastamento do


general Costa e Silva, que se encontrava doente, o regime
militar, amparado pelos mecanismos “legais” permitidos
pelo Al-5, aprofundou ainda mais o controle e a repressão
sobre a sociedade. Aproveitando-se de um momento de retomada do
desenvolvimento industrial e de inflação baixa que lhe rendia
apoio na classe média —, o governo estabeleceu um verdadeiro
“terror de Estado” contra os opositores mais ativos.
De acordo com a Doutrina de Segurança Nacional — base
ideológica do regime militar —, qualquer cidadão era passível de ser
acusado de “subversão”, podendo ser detido, torturado e morto, com
base numa simples suspeita. As forças policiais-militares, sob pretexto
de combater o que chamavam de “guerra revolucionária”, não preci-
savam prestar satisfação a nenhuma autoridade constitucional nem se
ater a formalidades jurídicas no combate aos ditos “subversivos”. Os
que exerciam profissionalmente qualquer atividade de pensamento
(professores, jornalistas, artistas, estudantes) eram os mais vigiados,
Líderes sindicais e comunitários, de esquerda ou não, também eram
cerceados em suas atividades. Mas a repressão mais violenta recaiu
sobre os guerrilheiros de esquerda.

55
A esquerda dita “revolucionária”, cuja gênese vimos no capítulo
anterior, havia conseguido realizar, até o fim de 1969, algumas ações
ousadas e constrangedoras para o governo. Marighela (ALN) e
Lamarca (VPR) eram os guerrilheiros mais conhecidos pelo público e
também os mais procurados pelas forças de repressão. Marighela
comandava a guerrilha urbana (primeira fase de sua estratégia) e
Lamarca montou um foco de operação no vale do Ribeira (SP). O
primeiro foi morto numa emboscada, em plena região central
da
cidade de São Paulo, e o segundo, após escapar de um enorme cerco
no vale do Ribeira, fugiu para o interior da Bahia, onde foi capturado
e morto em 1971. Nesse mesmo ano, com o cerco dos guerrilheiros
do PCdyl3 no Araguaia, a luta armada estava praticamente derrotada:
a muior parte dos grupos (constituídos por dezenas de grandes e
pequenas organizações) estava desmantelada, e seus membros esta-

nei
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.
4
vam presos, mortos ou no exílio.

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Em pouco mais de três anos, o regime militar não só havia

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cotada Pa tp SO,
vencido a guerra revolucionária como também fechara o cerco sobre

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toda a sociedade organizada. A declaração do coronel Fiúza de Castro

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(criador do Centro de Informações do Exército) ilustra bem esse fato:

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“Nós vamos organizar um martelo-pilão para matar uma mosca,

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o diabo é que espanadores do DOPS não vão mais adiantar. Talvez

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não seja uma boa solução, mas a mosca será esmagada” (apu

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Ventura, Z. p. 187). Nas metáforas

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do coronel,

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a “mosca” eram os

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grupos guerrilheiros; os “espanadores” eram os vários Departamentos

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de Ordem Política e Social (DOPS), ligados às polícias estaduais;
O
“martelo-pilão” era a “comunidade de informações”, conjunto dos
órgãos de repressão política. Construía-se, assim, o que mais tarde
seria chamado de “o círculo do medo”, cujo objetivo estratégico era
a
despolitização da sociedade (pois o outro pólo da vida nacional,
o
Estado, já estava sob controle desde o golpe), desmobilizando
qualquer manifestação contrária às políticas vigentes.
As siglas que designavam os diversos órgãos de info
rmação
(espionagem interna) e repressão eram muitas: Serviço Naci
onal de
Informações (SND), criado em 1964, objetivando ser uma asses
soria de
espionagem do governo; Centro de Informações da Marinha
(CENI-
MAR), mais antigo, modelo para outros centros,
como o Centro de
Informações do Exército (CIEX) e o Centro de
Informações da
Aeronáutica (CISA), criados respectivamente
em 1967 e 1968. Tais
órgãos pareciam, entretanto, ineficazes no combate
à guerrilha, pois
atuavam de forma pulverizada e no âmbito
da instituição militar à
36
ma

qual pertenciam, o que lhes retirava parte da liberdade de ação.


Foi assim que, em julho de 1969, em São Paulo (onde a guerrilha
era mais atuante), os órgãos de repressão organizaram a Opera-
ção Bandeirante (OBAN), na tentativa de centralizar e coordenar
as operações antiguerrilha. Por ser uma organização clandestina,
não oficial, suas ações mais violentas não causariam constrangi-
mento para O governo, que, obviamente, coordenava indireta-
mente a iniciativa. A OBAN recrutava membros das polícias
estaduais (civil e militar), das Forças Armadas e mesmo entre os
civis, ligados sobretudo a grupos paramilitares, como o CCC,
composto por civis, policiais e militares. Além disso, para não
depender das verbas públicas, a OBAN recolhia dinheiro de
muitos empresários para o combate à subversão.
Junto com a OBAN, a prática do sequestro e da tortura (muitas
vezes em locais clandestinos) de suspeitos tornou-se sistemática.
No Brasil, o recurso à tortura como forma de repressão política não
foi exclusividade do regime militar. Na época colonial, a tortura
chegou mesmo a ser legalizada pelo poder público, e, mais recen-
temente, durante a repressão à revolta comunista de 1935, o
governo de Getúlio Vargas utilizou-a sistematicamente contra os
presos políticos.
Conforme as justificativas dos militares, a tortura era necessária
para extrair informações rápidas do preso. Além de injustificável de
qualquer ponto de vista humano, essa prática revelou-se desnecessá-
ria enquanto técnica de obtenção de informações. Na verdade, esse
era o seu objetivo secundário. Através de infiltração de agentes,
delação espôntanea de muitos ex-guerrilheiros, interrogatórios sem
uso de violência física, cruzamentos de informações e outros meios,
seria perfeitamente possível vencer qualquer guerra. Ao montar um
aparato de vigilância e repressão baseado na tortura, alguns setores
ligados ao regime militar queriam de fato atingir outro objetivo: a
destruição física e psicológica do militante de oposição, impedindo
não só sua recomposição como pessoa humana, mas também a
própria recomposição da organização à qual ele pertencia. A tortura
era a materialização do “círculo do medo”. Nesse sentido, sim, ela foi
eficaz.
Quando se fala em tortura, deve-se ter em mente que práticas
ela implica. Não se trata de uma violência física (por exemplo, um
soco ou tapa) praticada por um policial sob tensão, contra um
preso rebelado. A tortura aos presos políticos foi uma prática

37
dotada de métodos sistemáticos. Equipes especializadas, com
assessoria de psicólogos e médicos, infligiam ao preso imobili-
zado uma série de violências previamente estudadas (aprendidas
em cursos com aulas práticas), cujo objetivo era fazer com que ele
chegasse ao limite da dor física e da humilhação moral. As sessões
se repetiam diariamente, com violência crescente. Inclufam diversas
técnicas, utilizadas alternadamente sobre uma mesma pessoa: es-
pancamentos, afogamentos, choques elétricos em

RESTA IE
partes sensíveis,
isolamento do preso em locais inóspitos, e outras. Nos casos mais
extremos, alguns presos (e presas sobretudo) sofreram estupro

deEr DEE
+ l Eh
coletivo dos torturadores e empalamento (introdução de objetos

onCA
perfurantes no intestino pela via anal). Tudo isso executado em

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nome da “ordem”

des
e dos

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“bons costumes”, por profissionais pagos

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com dinheiro público. A triste história dos porões do regime militar

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está muito bem contada e documentada no livro Brasil: nunca

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mais, escrito com base num estudo da Comissão de Justiça e Paz

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da Arquidiocese de São Paulo.

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1
Quando um preso morria sob tortura, geralmente depois de ser

du
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ae
ãa
detido ilegalmente, sem mandado de prisão, por agentes sem identi-

e
:
ficação, era providenciado o seu “desaparecimento”. O processo era
o seguinte; ou o corpo era jogado no mar ou enterrado numa vala
comum, misturado a outras ossadas. Os presos oficialmente dados
como mortos eram enterrados em caixões lacrados, com atestados de
óbito que falsificavam a causa mortis. Oficialmente, a maioria dos
presos mortos “resistiu à voz de prisão, reagiu e foi baleado”, como
atestam documentos forjados.

A comunidade de informações — um
poder paralelo

A comunidade de informações acabou se revelando um poder


paralelo. Mesmo depois de 1970, quando a clandestina Operação
Bandeirante foi oficializada com o nome de Departamento de
Operações Internas-Comando de Operações de Defesa Interna
(DOI-CODD, incluída no organograma do Exército, tais órgãos
dispunham de uma grande autonomia de ação. Ao longo dos anos
70, a “comunidade” seria um dos pesos na balança dos conflitos
internos das Forças Armadas, principalmente durante as crises de
sucessão presidencial posteriores. Generais, interessados em subir

38
a e Cr
a a

Dados macroeconômicos do período militar *

Tabela 1:

Percentual de inflação ao ano (IGP/DLD


250 T

200 +
150 +T

0 Le l —+
1964 1966 1968 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984

Tabela 2:

Crescimento real do PIB

PIB %
15

melada taco filter bb rol ano teta lhe Jedi


64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83/4

= Fontes EGV — Projeto Áries (Bancode Dados); at


CRER o RO MO ro do Poço NA CR Pd a

“ GYSNE, Rubens Penha. “A economia brasileira ri


Periodo militar”. m D'Arauio, M. CG etalii to US.) 2] Anos
y : E nr, ; - Ê E a, = d - a a E] )

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'

iii Te dm O so E a a O seia oleo ento ma eee nes = O dE aii nd O RSA ma a sa À |

Duas tabelas com dados macroeconômicos do período do


regime militar brasileiro: inflação e produto interno bruto.

59
ao poder, tentaram aproximar-se delas e beneficiar-se do seu amplo
espectro de ação. Além disso, muitos agentes, aproveitando-se
dessa autonomia de ação, passaram a vender seus Serviços a
criminosos comuns, como traficantes de drogas, quando não se
tornaram eles próprios bandidos. Assim nasceram os “esquadrões
da morte”, outro nome para a velha prática de assassinato sob
encomenda.

As armadilhas do “milagre
econômico”

O governo do general Médici coincidiu com o período do


chamado “milagre brasileiro”, nome dado pelos capitalistas interna-
cionais para qualificar o período de retomada do crescimento eco-
nômico a uma taxa média de 10% ao ano, uma das maiores de toda à
história do capitalismo, A expansão industrial se concentrou no setor
de bens de consumo duráveis, tais como eletrodomésticos e automó-
veis, e foi sustentada pelo crédito fácil, a juros baixos, criando um
clima de euforia entre os setores médios da sociedade, transformados
agora em vorazes consumidores.
Apôs o período de austeridade econômica de Castelo Branco, o
Brasil entrava num novo ciclo de crescimento (maior ainda que
aquele do governo Juscelino Kubitschek), consolidando seu parque
industrial. Nem por isso, entretanto, o país deixava de ser dependente
das economias capitalistas centrais, uma vez que não dominava as
tecnologias de ponta nem possuía uma poupança interna baseada
em moeda forte, isto é, no dólar norte-americano (fundamental para
a compra de máquinas no exterior). Para superar esses entraves à
expansão econômica, o então ministro Delfim Netto usou duas
estratégias básicas: o endividamento, ou seja, a captação de recursos
financeiros, internos e externos, e o aprofundamento do arrocho
salarial,
Tanto o endividamento quanto o arrocho, base desse modelo
econômico consolidado pelo regime militar, acabariam por gerar
contradições sociais e econômicas. Para estimular os credores inter-
nos a comprar títulos da dívida pública, financiando os gastos do
Pp
-

governo, foi criada, logo em 1964, a chamada “indexação” da moeda


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RR

nacional. Por esse mecanismo, o aplicador tinha assegurada a corre-


a
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Ro
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PEC
Es
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EEE
ção dos valores dos títulos, compensando as perdas provocadas pela
inflação. Através das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional
(ORTNS), O índice inflacionário era repassado automaticamente a
todos os preços da economia, iniciando um processo inflacionário
auto-alimentado que duraria até recentemente. A partir de 1980, esse
processo saiu do controle: o índice da ORTN, que servia para
atualizar os preços em relação à inflação passada, passaria também a
servir de base para novos aumentos, gerados a partir da expectativa
de inflação futura.
O único valor da economia mantido fora desse reajuste automáti-
co era o da mão-de-obra, ou seja, os salários. Mediante uma legisla-
ção especial, os salários eram reajustados pela média (rebaixada)
anual da inflação. A aplicação dessa política salarial era amplamente
facilitada por uma legislação trabalhista que cerceava a organização
dos trabalhadores e diminuía seu poder de negociação, de luta por
reajustes salariais e ganhos de produtividade.
Através de mecanismos baseados na indexação de preços infla-
cionados, do arrocho e do não-pagamento dos índices de produtivi-
dade aos trabalhadores do setor industrial, o modelo econômico do
regime militar consolidava um processo histórico do capitalismo
brasileiro: a concentração de renda. Enquanto a economia aumenta-
va sua produtividade, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres
aumentava de forma acelerada.
A princípio, a constituição de um modelo capitalista baseado na
concentração de renda poderia apontar para um paradoxo: todo
sistema capitalista precisa de mercado consumidor. Em outras pala-
vras, quanto maior o mercado, maior o lucro das empresas, pois elas
passam a vender mais. Portanto, seria lógico aumentar a renda dos
trabalhadores — a maioria da população — para que eles compras-
sem mais mercadorias. Mas essas regras simples não valem para o
modelo capitalista brasileiro, implantado na década de 50 e consoli-
dado pelas políticas econômicas do regime militar.
Esse modelo — baseado no fortalecimento dos grandes oligopó-
lios (setores produtivos comandados por pouquíssimas empresas),
sem concorrência efetiva, voltados para a produção de mercadorias
caras e elitistas — criou um dos capitalismos mais dinâmicos do
mundo, movimentando grandes somas em dinheiro e produtos, A
mão-de-obra, barata e abundante, permitia a produção de mercado-
rias mais baratas que as importadas. Os antigos consumidores (que já
compravam produtos duráveis importados), ao lado da nova
41
classe média (gerada pelos novos empregos criados pelas indús-
trías e serviços que então se instalavam), formavam um mercado
consumidor relativamente limitado, mas garantido. A maioria da
população trabalhadora, tradicional consumidora de bens de con-
sumo não duráveis (roupas, alimentos industrializados, produtos
domésticos), não só permanecia fora desse mercado mais sofisti-
cado, mas também era obrigada a consumir cada vez menos, por
causa da crescente perda de seu poder aquisitivo. Para compensar
esse estrangulamento de mercado interno, o governo passou a
incentivar a exportação de bens de consumo não duráveis e de
alimentos em geral. Com isso, o regime militar habilmente dimi-
nuía a pressão dos industriais desse setor (majoritariamente nacio-
nal), ao mesmo tempo que criava um novo pólo gerador de
divisas. No início de sua implantação, devido à inflação, ainda em
patamares baixos, e ao crédito popular facilitado, os efeitos do
arrocho não foram sentidos.
O que importava, para o sucesso do modelo, era manter os níveis
de consumo do pólo mais dinâmico da economia: o setor de bens
duráveis, capitaneado pela indústria automobilística sediada em São
Paulo. Esse setor, embora não dependesse do mercado de consumo
externo, necessitava do financiamento e das tecnologias estrangeiras.
Além disso, ele não precisava expandir obrigatoriamente seu merca-
do, pois seus lucros eram altíssimos. Nessa época, por mais alto que
fosse o preço de um produto nacional, ele jamais chegaria perto do
valor de um importado, pois o principal custo da produção — a mão-
de-obra — era reduzido. Isso era possível porque, de um lado, os
salários eram baixos, se comparados com os pagos na Europa e nos
Estados Unidos, e, de outro, havia na prática uma reserva de mercado
para as montadoras instaladas no país: a alta tributação sobre os
veículos importados e as constantes desvalorizações da nossa moeda
tornavam praticamente proibitiva a importação de automóveis. Por-
tanto, a fixação dos preços desses produtos não tinha limitações.
No setor agropecuário, a estratégia do governo era promover,
mediante subsídios fiscais e empréstimos a juros baixos, a mecaniza-
ção das grandes propriedades, sem alteração da estrutura fundiária
do país. Com isso, os economistas do regime acreditavam ser possível
produzir mais alimentos (diminuindo o custo da cesta básica do
trabalhador urbano) utilizando menos trabalhadores agrícolas. A
adoção dessa política gerou um excedente de mão-de-obra agrícola
que migrou em massa para as cidades, em busca de emprego na
42
indústria. Esse enorme contingente, formado de candidatos a um
emprego mal-remunerado, fechava o círculo do barateamento da
mão-de-obra, favorecendo os grandes empresários nacionais e multi-
nacionais: como todo preço, o excesso de oferta (nesse caso, de mão-
de-obra) gera o rebaixamento do seu preço unitário (o salário).
A migração em massa, consequência da mecanização do campo,
incrementou o aumento da população urbana, fortalecendo uma
tendência que se delineava desde os anos 50. Entretanto, nenhuma
política eficaz fora criada para administrar os novos problemas daí
decorrentes. Nas cidades, os recém-chegados se amontoavam em
bairros distantes do centro e do trabalho, desprovidos de serviços
básicos (hospitais, moradias e escolas) e de infra-estrutura urbana e
sanitária (transportes, energia, saneamento). Com o tempo, contudo,
esses segmentos passaram a se organizar para reivindicar melhor
qualidade de vida. Na medida em que essas organizações se transfor-
mavam em movimentos sociais, elas acabaram por se constituir num
novo foco de tensão entre o regime, a administração pública e a
sociedade civil.
Resumindo: se, por um lado, o milagre econômico conseguiu
resolver alguns problemas do capitalismo brasileiro, por outro, não
solucionou os problemas sociais, no sentido de gerar melhores
condições de vida e trabalho para a maioria da população. Obvia-
mente, a modernização econômica trouxe consigo muitas riquezas,
mas que acabaram concentradas na parcela socioeconômica mais
alta. Além disso, o endividamento externo e interno e o arrocho
salarial se mostraram problemas quase insolúveis quando os preços e
OS juros internacionais aumentaram a partir da crise do petróleo de
1975. Essa crise — causada pela guerra entre árabes e israelenses, no
Oriente Médio — fez elevar os preços internacionais do petróleo
Unsumo básico da economia capitalista), abalando a economia mun-
dial, Por sua vez, a economia brasileira — grande importadora dessa
mercadoria e financeiramente dependente dos países capitalistas
desenvolvidos — não demoraria a mostrar sua fragilidade: inflação
em alta e crescimento econômico reduzido já a partir de 1974. Tais
consequências se transformariam, nos anos 80, numa crise econômi-
ca sem precedentes, causando recessão, inflação crônica e desempre-
go em massa.
Quando os ideólogos do regime militar se vangloriavam de ter
alçado o Brasil à condição de décima potência capitalista do planeta,
omitiam o fato de que, no mesmo período, o país passava a ocupar os

43
últimos lugares entre os indicadores de qualidade de vida da popula-
ção (acesso à saúde, concentração de renda, mortalidade infantil,
etc.). O que torna a análise histórica ainda mais difícil, nesse caso
, é
que os dois processos não se excluíam, nem eram paradoxais.
Pelo
contrário, o crescimento da economia, dentro desse modelo, alimen-
tou e foi alimentado pelo rebaixamento dos índices sociais.
Esse processo socioeconômico, somado à impunidade dos casos
de corrupção (na medida em que a repressão tornava difícil q
denúncia e a investigação desses casos, sob pena de ser tachado de
“ato de subversão”) e de violência policial, acabou por criar um
conjunto de relações sociais igualmente autoritárias, reflexo e susten-
táculo do Estado de Segurança Nacional.

O controle sobre a sociedade e as


novas formas de resistência

O quadro histórico aqui traçado não indica que o regime militar


não tenha conseguido obter o apoio de amplos segmentos da socie-
dade. Para tanto, a propaganda de massa foi amplamente utilizada
pelo regime, em especial para promover a figura do presidente Médi-
ci como homem “simples”, ligado aos valores populares, como o
futebol. O regime militar, aliás, tentou vincular suas conquistas políti-
cas e econômicas à conquista da Copa do Mundo de Futebol em
1970. Somada às facilidades de consumo trazidas pela estabilidade
econômica, sobretudo para a classe média, e à censura (que impedia
a veiculação de qualquer notícia que comprometesse o governo), a
propaganda oficial conseguiu criar um clima de ufanismo generaliza-
do. O slogan mais repetido era então: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

3 BRASIL
Iconographia

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AME-O OU DEIXE-O
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Slogan oficial do governo Médici.


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44
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1
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Além disso, para muitos jovens da classe média, o milagre econômi-
co representou, efetivamente, o acesso a uma carreira bem-remunerada
nas empresas multinacionais, uma vez que crescera significativamente o
número de postos médios nessas empresas. Um pequeno setor de
operários qualificados se beneficiou com a expansão dos postos de
trabalho e com a demanda por esse tipo de mão-de-obra. A maioria dos
operários, porém, que sempre havia sido superexplorada nas fábricas,
através dos baixos salários e das longas jornadas de trabalho, nada
herdou do regime militar. Para os camponeses, a situação também não
foi diferente de outras épocas. A ênfase repressiva recaífa sobre as
instituições (universidades, escolas, imprensa) e entidades organizativas
(sindicatos, partidos, associações comunitárias). A única instituição que
conseguiu escapar do controle do govemo foi a Igreja Católica, pois
enquanto instituição religiosa internacional estava ligada a outro Estado
(o Vaticano) e, portanto, relativamente protegida das ações repressivas.
Apesar de ter apoiado o golpe, a maioria dos sacerdotes e agentes
pastorais ampliava, desde 1968, o espaço de resistência ao regime militar,
a partir de suas atividades comunitárias.
Apesar da indiferença, ou mesmo satisfação, de um amplo
segmento da sociedade em relação ao governo Médici, o círculo do
medo transformou-se na experiência básica de muitos brasileiros,
politicamente conscientes ou não. Mesmo para as classes trabalha-
doras, para as quais a repressão policial foi constante na história
do Brasil, o AI-5 inaugurava uma nova etapa, mais terrível ainda.
Mas para a geração crescida nos anos 70 — conhecida como
“geração AI-S” — foi uma experiência de alienação, de medo em
participar da vida em sociedade e de impotência diante dos rumos
da vida nacional. Mas nem tudo era conformismo e passividade.
Na luta contra a censura e a ditadura, concorreram muitos grupos
e indivíduos. Nos anos 70, por exemplo, artistas populares — sobretu-
do aqueles ligados à música, como Chico Buarque de Holanda, Ivan
Lins, Vitor Martins, Gonzaguinha, João Bosco, Aldir Blanc, Milton
Nascimento, Elis Regina, entre outros —, aproveitando-se do próprio
crescimento da indústria cultural no Brasil, tornaram-se porta-vozes
dos valores democráticos e emancipadores, que se contrapunham à
realidade política vigente. Mesmo sob censura, a música popular foi
fundamental para disseminar na sociedade, sob forma poética e
metafórica, o imaginário da liberdade, constituindo-se naquilo que José
Miguel Wisnik chamou de “rede de recados” pela democracia. Na
segunda metade da década de 70, o público desses artistas aumentou

45
consideravelmente, sobretudo entre os jovens da classe média, que
cada vez mais se tornavam atuantes na oposição ao regime.
Mesmo na TV — na qual a Rede Globo se consolidava como um
grande império de comunicação aliado dos governos militares e onde
a censura era muito presente — muitos artistas conseguiram fazer
passar algum típo de crítica. Exemplo disso foi a exibição, com
grande sucesso, do seriado A grande família, escrito por volta de
1973 pelo dramaturgo comunista Oduvaldo Vianna Filho. Nele era
retratada, em tom jocoso, uma típica família da classe média que não
conseguia desfrutar do “milagre econômico”, vivendo em permanen-
te dificuldade financeira.
ÂÀ imprensa escrita, por sua vez, sofreu uma censura mais sistemá-
tica, nem sempre efetivada pelos agentes do governo. Na maioria das
vezes, a censura era feita pelos próprios editores, homens de confian-
ça dos donos das empresas jornalísticas, que recebiam instruções do
governo acerca dos temas que poderiam ou não ser publicados.
Notícias sobre corrupção de altos funcionários, guerrilha, torturas a
presos, críticas à política econômica, greves, entrevistas com líderes
políticos cassados, eram os itens da pauta jornalística mais vigiados e
proibidos. No caso do jornal O Estado de S.Paulo, estabeleceu-se uma
censura prévia muito rígida, como mostra a tese de Maria Aparecida
Aquino, Censura, imprensa, Estado autoritário (1968-1978), na qual
a autora afirma que a ação da censura chegava a ameaçar a distribui-
ção do jornal, pois todo material a ser editado deveria passar antes
pelo censor, o que atrasava o fechamento das edições e a chegada do
jornal às bancas. Esse foi um ponto de conflito permanente entre o
tradicional periódico paulista e o governo. Muitas vezes, para preen-
cher o espaço vazio das notícias censuradas, o jornal precisava
colocar receitas de bolo e poemas de Camões. Ironicamente, O
Estado de S.Paulo havia sido um dos mais entusiasmados defensores
do golpe militar de 1964. Apesar de perseguida e censurada, a
imprensa escrita — sobretudo seus periódicos mais importantes,
como o já citado Estadão, a revista Veja, a Folha de S.Paulo, o Jornal
do Brasil, enue outros — se destacaria no processo de abertura
política como importante interlocutor entre a sociedade civil e O
governo.
Havia, porém, outro tipo de imprensa que começava a se desen-
volver em meados da década de 70, q “Imprensa alternativa”, assim
denominada por publicar jornais econômica e politicamente inde-
pendentes das grandes empresas jornalísticas. O mais fa
moso jornal
46
“nlternativo”, ou “nanico” (também chamado assim porque seu for-
mato era reduzido), foi O Pasquim, criado por alguns humoristas
cariocas em 1969. Conforme Bernardo Kucinski, em Jornalistas e
revolucionários, a grande inspiração para a imprensa alternativa
brasileira foi a revista Realidade, editada pela Editora Abril entre 1966
e 1968, que veiculava tanto matérias sobre comportamento quanto
sobre política (nacional e internacional). Segundo o autor, havia duas
correntes principais do jornalismo alternativo: os jornais que enfatiza-
vam os temas existenciais e comportamentais (cujo maior exemplo
foi O Pasquim, já citado) e os que veiculavam preferencialmente
temas políticos (como Movimento, Opinião, Em Tempo, entre outros).
Essas tendências, porém, não se opunham, antes se complementa-
vam como espaços críticos ao regime.
Se, por um lado, a grande imprensa representava o espaço dos
opositores liberais, frequentemente ligados a parcelas significativas
das elites, por outro, a imprensa alternativa foi o grande espaço de
rearticulação da esquerda brasileira, sobretudo após 1974. Embora
parte de suas organizações tenha sido destroçada na derrota militar
imposta pelo governo, os sobreviventes se juntaram às organizações
mais resistentes à repressão e fizeram dos jornais nanicos seu fórum
de debates privilegiado. Na segunda metade da década de 70, os
jornais alternativos tiveram uma boa aceitação popular, e alguns
números chegaram a vender mais de 100 mil exemplares.
Apesar do controle da expressão do pensamento e da opinião, as
universidades e centros de pesquisa, como o Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (CEBRAP), foram importantes focos de oposi-
ção ao regime. Na década de 70 havia nessas instituições uma grande
efervescência intelectual, estimulada sobretudo pela falência das
explicações tradicionais para a dinâmica política das sociedades em
países subdesenvolvidos como o Brasil. Novos temas entravam para o
debate: a dinâmica do capitalismo dependente, as novas formas de
relação entre Estado e sociedade, os movimentos sociais urbanos, a
questão democrática, entre outros.

Os novos movimentos sociais e a


rearticulação da organização popular

Outro espaço de rearticulação política da esquerda, em plena


repressão policial imposta pelo governo Médici, foram os novos

47
movimentos sociais. Surgidos a partir das dificuldades sentidas
pelos trabalhadores no dia-a-dia das grandes cidades, tais como
custo de vida alto, dificuldade de encontrar moradia, deficiência de
serviços básicos (transporte, saúde e educação), entre outras, esses
movimentos nasceram no começo dos anos 70. Inicialmente se
expressando de forma tímida e fragmentada, eles acabariam se tor-
nando, cinco anos depois, uma referência política contra a situação
vigente no Brasil ao promover grandes manifestações públicas.
A politização em torno dos problemas urbanos básicos se deu
graças a dois fatores: de um lado, à percepção crescente dos morado-
res organizados de que o poder público municipal ou era incapaz de
reverter uma política econômica maior, ou protegia os interesses de
alguns setores empresariais (como donos de empresas de ônibus,
empresários da construção civil, as grandes imobiliárias, entre outros)
que viviam da exploração dos serviços e dos espaços na cidade. De
outro, o trabalho de organização realizado pela Igreja Católica,
principalmente através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
contribuiu para a politização dos setores populares. A repolitização
da sociedade, a partir da ação dos movimentos sociais, decorreu dos
movimentos de lutas locais e cotidianas, e não da busca de uma
ruptura imediata e total com o sistema.
Conforme Vera da Silva Telles, no artigo “Anos 70: experiên-
cias, práticas e espaços coletivos”, o autoritarismo e o fechamento
político consolidado em 1968 forçaram a “introjeção” dos cidadãos
no mundo cotidiano (já que os espaços públicos tradicionais da
política — parlamento, sindicatos, partidos, imprensa — estavam
fechados). Ainda segundo a autora, muitos militantes de esquerda
optaram por uma espécie de “exílio” voluntário nos bairros distan-
tes das metrópoles, visando continuar seu trabalho político, intima-
mente ligado ao cotidiano urbano. Assim, essas lutas voltadas para
a solução de problemas urbanos básicos acabaram favorecendo a
politização das questões cotidianas, e marcaram profundamente a
década de 70. A política de resistência e a abertura de novas frentes
de atuação coletiva transformariam os espaços do dia-a-dia em
espaços públicos de reorganização política e oposição ao regime.
Assim, bares (locais de divertimento) e igrejas (locais de culto
religioso) foram utilizados para reuniões e encontros, onde proble-
mas comuns de trabalho e moradia eram discutidos coletivamente.
Num momento de grande repressão, essas pequenas ações assumi-
ram um papel importante na luta pela democracia.

48
Os movimentos de base, como também eram chamados, agluti-
naram vários tipos de militantes: esquerdistas oriundos dos grupos
desarticulados pela repressão, moradores que se destacavam como
líderes comunitários, sindicalistas que estavam impedidos de exercer
à atividade sindical, padres e agentes pastorais filiados à Teologia da
Libertação (conjunto de idéias nascidas nos anos 60 que procuravam
dar um sentido mais social e político à mensagem do Evangelho
cristão). As CEBs, surgidas em 1969, embora estivessem ligadas
formalmente à Igreja Católica, abrigavam todo tipo de militantes e
incentivavam a discussão de temas de interesse coletivo. As reuniões
eram iniciadas com a leitura de um texto religioso, seguida de uma
discussão sobre os problemas concretos da comunidade. Depois
desse processo, em que todos podiam declarar sua opinião, buscava-
se uma forma de ação coletiva, viável e segura (por exemplo, um
abaixo-assinado, uma audiência com os poderes públicos ou um ato
público em frente à prefeitura).
O governo não via com bons olhos esse tipo de movimentação,
mas a aparente banalidade das reivindicações (escolas, creches,
linhas de ônibus, postos de saúde) e a proteção da Igreja Católica
dificultavam uma repressão mais contundente.
O Movimento do Custo de Vida (MCV) foi um exemplo de
como uma pequena ação localizada acabou por se articular com
outras e formar um poderoso movimento social. Em fins de 1971,
numa distante paróquia da periferia de Santo Amaro, na zona sul
de São Paulo, duas freiras propuseram a criação de um “clube de
mães”. Inicialmente, apenas cinco mulheres resolveram investir na
idéia. Já na primeira reunião, em janeiro de 1972, cerca de 46
donas de casa compareceram, dividindo suas atividades entre o
aprendizado de tarefas domésticas, leituras de textos cristãos e
discussão sobre problemas cotidianos (como o custo de vida). A
cada reunião, realizada semanalmente, comparecia um número
maior de pessoas. Outros clubes de mães foram surgindo e discu-
tindo prioritariamente o tema “custo de vida”, já que eram as
mulheres que experimentavam, como donas de casa, o problema
de administrar o pequeno orçamento familiar,
Em 1973, no auge do milagre econômico, um desses clubes
produziu um documento intitulado “A situação da classe trabalhado-
ra”, distribuído de casa em casa, em vários bairros de trabalhadores, e
acompanhado de uma pesquisa sobre os preços dos gêneros básicos.
Em 1975, o documento inspirou a criação de um movimento organi-

49
E
fim a

.
a
zado que reuniu mais de setenta clubes e outros movimentos sociais
Em 20 de junho de 1976, o Movimento do Custo de Vida reuniu mais
de 4 mil pessoas, numa assembléia realizada no pátio de um colégio
católico, e apresentou um abaixo-assinado contra a carestia. Esse
documento continha mais de 18 mil assinaturas e exigia o congela-
mento dos preços. Ao longo de dois anos, o movimento cresceu e
passou a elaborar um discurso mais estruturado e politizado. Conse-
guiu realizar em 1978 uma assembléia gigante na Praça da Sé, na qual
cerca de 20 mil pessoas entregavam às autoridades, simbolicamente,
o abaixo-assinado de 1976, contendo então mais de 1,2 milhão de
assinaturas.
A trajetória do MCV traduz o espírito da nova resistência civil
construída nos anos 70. Representava a sociedade auto-organizada,
atuando politicamente fora dos partidos, sem lideranças das elites
tradicionais, sem os grandes projetos utópicos da esquerda “orto-
doxa”. Nesse sentido, era o nascimento de uma nova forma de
participação política, diferente da tradição da democracia populista
da década de 50 e parte da de 60, que favorecia a barganha entre
a comunidade de eleitores e as elites políticas tradicionais. Surgiu
uma outra noção: a de direitos coletivos, base da cidadania. Nos
anos 70, a novidade dos movimentos sociais consistia na percepção
de que não se deveria trocar os direitos por votos, mas exigir que
esses fossem respeitados.
Preocupados com a manutenção da estabilidade do regime e
com as pressões sociais que então se renovavam, os altos escalões
do regime, em meados da década de 70, elaboraram outra estra-
tégia política. Passada a ameaça da esquerda armada, os mesmos

nte
estrategistas que estavam por trás do golpe de 1964 passaram a
E
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conjeturar sobre uma forma de institucionalizar, a médio prazo, Os bi
Tibia,

princípios da “revolução” de 64, mediante a implantação de um


regime civil conservador, tutelado pelos militares. Era a política de
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abertura, que procurava trazer para o controle do regime o ritmo


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e o conteúdo das transformações políticas exigidas pela sociedade.


A discussão sobre a abertura (que até 1978 era chamada política de
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“distensão” do regime) vinha a público no mesmo momento em


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que a sucessão do general Médici estimulava uma nova crise dentro


a

das Forças Armadas. Os diversos grupos militares agiam no sentido


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de influenciar na escolha do próximo presidente. Nesse contexto,


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o nome do general Ernesto Geisel se firmou como o sucessor de


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Médici. Um castelista voltava ao poder, disposto a implementar


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uma nova fase na institucionalização do regime militar: a chama-
da transição “lenta, gradual e segura” para o poder civil.
Assim, por volta de 1974, o Brasil entrava numa nova fase de
incertezas. Mas dessa vez as incertezas eram portadoras de algu-
mas esperanças.
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O general Ernesto Geisel, presidente entre 1974 e 1979, um dos militares de maior
influência durante todo o regime.

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A sucessão presidencial eo projeto


de abertura

m fins de 1973, o general Ernesto Geisel foi indicado como


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candidato da Arena à Presidência da RepúbESSO lica, sendo
empossado em 1974. Geisel já havia sido chefe do Gabine-
te Militar do governo Castelo Branco, membro do Superior
Tribunal Militar e, entre 1969 e 1973, ocupara um importante cargo na
Petrobrás. Era um oficial identificado com a linha castelista, assim
como seu principal assessor político, o general Golbery do Couto e
Silva, nomeado chefe da Casa Civil.
Apesar de adversário político do general Médici (seu antecessor),
Geisel teve sua indicação respeitada, pois naquele momento era
necessário evitar uma nova crise interna das Forças Armadas. O fato
de seu irmão, Orlando Geisel, ser o ministro do Exército do governo
Médici também garantiu que a maioria dos oficiais de linha dura e
nacionalistas aceitasse sua indicação. Para o grupo ligado a Médici e
para os linhas-duras como um todo, um castelista no poder era mais
tolerável que um militar populista-nacionalista (haja vista a candida-
tura do general Albuquerque Lima, em 1969, que havia provocado
uma forte reação dos outros grupos). Mas, segundo Bernardo Ku-
cinski, Médici só dera o aval para a candidatura de Geisel porque
recebera a informação do general João Baptista Figueiredo, então
chefe do SNI, que Geisel e Golbery haviam rompido relações e que
este último não teria nenhuma influência no seu governo. Quando

52
Médici percebeu o “golpe” de Figueiredo (orientado e identificado
com os castelistas), era tarde: a candidatura Geisel recebia o aval do
Colégio Eleitoral do Congresso, com 400 votos a favor, contra os 76
da candidatura de protesto (na vigência do regime militar era impos-
sível derrotar o candidato oficial) do líder do MDB, deputado Ulysses
Guimarães, um dos mais destacados opositores liberais da ditadura.
Conforme Thomas Skidmore, autor de Brasil: de Castelo a Tan-
credo, o novo governo, empossado em 15 de março de 1974, tinha
em mente quatro objetivos estratégicos: a) manter o apoio majoritário
dos militares, reduzindo ao mesmo tempo o poder da linha dura e
restabelecendo o caráter mais puramente profissional dos membros
das Forças Armadas; b) controlar os subversivos e a oposição de
centro-esquerda como um todo; c) retornar a um tipo de democracia,
ainda que restrita e controlada; d) manter altas as taxas de crescimen-
to, fator fundamental para a legitimação política do governo perante
os empresários e a sociedade. Dessas quatro metas nasceria o projeto
de “distensão” do regime militar, comandado por Ernesto Geisel e
Golbery do Couto e Silva.
A necessidade da distensão política, ou abertura, não era vista
somente como um problema moral; ou seja, Geisel, Golbery e os
castelistas não propuseram a abertura só porque a repressão e a
censura sobre a sociedade eram indignas e ilegítimas, mas sobre-
tudo porque eram insustentáveis a longo prazo. Com a oposição
armada derrotada (os últimos focos de guerrilha no Araguaia ha-
viam sido destruídos em 1975), parecia acertado enfrentar os sinais
de crise econômica à vista (sob o impacto da crise geral do
capitalismo internacional a partir de 1973) com uma nova estrutura
de poder, baseada na recomposição do sistema político. Para os
comandantes da abertura, essa recomposição deveria seguir alguns
procedimentos: abrir frentes de diálogo com a sociedade (sobretu-
do com as instituições mais importantes, como imprensa, Igreja e
universidades); dividir o poder, de forma gradual, com os civis
“confiáveis”, fortalacendo aos poucos o Legislativo e o Judiciário:
permitir o exercício (controlado) dos direitos políticos básicos,
como a liberdade de expressão; controlar e neutralizar a influência
política, dentro do aparelho militar, dos órgãos de repressão, cuja
existência era uma constante ameaça à hierarquia militar (devido à
sua autonomia de ação) e à estabilidade dos próprios governos
militares (como ficaria provado nos incidentes ocorridos no início
do governo Geisel).

53
O sentido geral da política de abertura era instituir uma “demo-
cracia forte” (a expressão foi criada pelo governo), que, em palavras
mais diretas, queria significar uma democracia sem participação po-
pular, uma democracia plebiscitária, na qual as alternativas políticas
fossem limitadas, reduzindo-se ao “sim” ou “não” ao governo. Na
idéia de abertura, a sociedade deveria se expressar mediante formas
institucionais restritas, ou seja, as permitidas e controladas pelo regi-
me. As eleições parlamentares e os partidos legalizados deveriam ser
os espaços privilegiados da manifestação política da sociedade civil.
Com isso, os militares tentavam evitar a politização de entidades civis
mais ligadas às massas, como, por exemplo, sindicatos de trabalhado-
res, Órgãos de representação estudantil, movimentos sociais de base,
O sistema político deveria absorver e direcionar as reivindicações desses
segmentos sociais e impedi-los de exercer influência direta sobre as
políticas de Estado, interferindo nos “objetivos nacionais”, tão caros à
Doutrina de Segurança Nacional. Ao mesmo tempo, caberia ao regime
controlar as regras de funcionamento do sistema, evitando que a oposi-
ção conquistasse o poder, pelo menos a médio prazo.
Em resumo, a abertura — enquanto tentativa de institucionaliza-
ção de alguns princípios da Doutrina de Segurança Nacional sem
supervalorização do papel da repressão policial direta — deu mais
espaço político à sociedade civil, principalmente à oposição liberal,
mais ligada aos interesses da elite socioeconômica. Em outras pala-
vras, a abertura tentou realizar o ideal autoritário da “democracia sem
povo”, como se dizia na época. Mas tais objetivos não eram facilmen-
te atingíveis, se é que chegaram a ser atingidos. O período que vai de
1974 a 1984 caracteriza-se por um conflito permanente entre o Estado
e amplos setores da sociedade civil: o primeiro tenta controlar O
segundo, que, por sua vez, tenta ampliar sua influência sobre O
primeiro, exigindo o fim do regime militar. Mas, nesse processo, nem
o Estado nem a sociedade estavam isentos de conflitos internos de
interesse, disputas pela hegemonia política, tensões entre os atores
políticos e entre as diversas classes sociais.

A luta contra a censura e a


repressão policial
Para conseguir a reestruturação do sistema político e abrir frentes
de diálogo (mesmo restrito) com a sociedade, o governo Geisel co-
54
meçou por se aproximar da imprensa liberal, rompida com os méto-
dos políticos do regime desde 1969. A imprensa já havia tido uma
importante participação na fase da sucessão presidencial e por isso
alguns jornais sofreram uma censura prévia mais dura ainda. Foi esse
o caso do jornal O Estado de S.Paulo, que desafiara a ordem do gover-
no Médici de não publicar notícias sobre as disputas sucessórias.
Na visão do governo Geisel, era preciso dar mais espaço à
imprensa liberal, pois essa era a melhor forma de o governo dialogar
com setores importantes da sociedade que, devido ao fechamento do
sistema político depois do AI-5, estavam afastados do Estado, mas
eram formadores de opinião. Ao mesmo tempo, a imprensa liberal,
por causa de sua influência junto à sociedade, deveria se constituir
num contraponto às pressões dos adversários do governo situados
dentro das Forças Armadas e dentro do próprio regime. Conforme a
pesquisadora Celina Duarte, em sua tese A imprensa no processo de
distensão (1974-1978), a imprensa liberal, historicamente, tinha uma
tendência a estimular a “calma” no ambiente político e apaziguar os
conflitos mais agudos, o que a levava a se aproximar dos governos
mais conservadores. O governo Geisel, com sua política de abertura,
respondeu em parte aos anseios desses liberais, ao criar um ambiente
político de “concórdia” e evitar os radicalismos de direita e de
esquerda. Ainda segundo a pesquisadora, o governo Geisel via o
papel da imprensa como um instrumento nos seguintes aspectos: 4)
legitimar, perante os formadores de opinião, o projeto de distensão;
b) acompanhar o debate político e as reações da sociedade à política
do governo; c) reverter as expectativas da classe média em relação à
situação econômica, preparando a opinião pública para os tempos de
crise; d) abrir um canal de retorno, buscando verificar a opinião da
sociedade civil, para ajudar as decisões políticas do governo; e)
neutralizar as pressões dos órgãos de repressão e da burocracia
militar contra a distensão, pois esses órgãos, estruturados para agir
clandestinamente, tendiam a se tornar mais fortes quanto maior fosse
a necessidade de manter o segredo e o controle das informações.
Os órgãos de repressão e a direita militar como um todo, ao
perceber que a aliança tática do governo com a imprensa liberal
representava não só a diminuição do seu poder de pressão, mas
uma ameaça à impunidade de seus atos de tortura e corrupção,
reagiram com o método que lhes era mais comum: a violência.
Uma violência que recaiu principalmente sobre os jornalistas e
funcionários dos grandes orgãos de comunicação do país. A per-

25
seguição a comunistas infiltrados na imprensa, realizada entre 1974
e 1975, ao mesmo tempo que justificava a existência desses órgãos
perante as Forças Armadas (já que a guerrilha não era mais
ameaça) colocava o governo Geisel em situação constrangedora, na
medida em que o governo buscava parceiros liberais no apoio à
distensão política.
O recrudescimento da repressão atingiu membros ou simpatizan-
tes do PCB, que até então fora preservado da repressão mais brutal,
por ser contrário à luta armada. Isso coincidiu com um momento
político delicado para o governo: a vitória do MDB, contra todos os
prognósticos, nas eleições parlamentares de novembro de 1974,
Imediatamente após as eleições, os órgãos de segurança díssemina-
ram a idéia de que o Partido Comunista estaria se infiltrando no MDB,
ampliando o voto oposicionista.
Na verdade, o voto na oposição foi uma forma de manifestação
da sociedade contra as políticas do regime militar, que, além de
abusar da violência policial, dava sinais de esgotamento no campo
econômico e não favorecia os trabalhadores mais pobres. Nesse
contexto, o MDB se apresentava ao mesmo tempo como oposição e
como fiador da política de distensão, que começava a ser cogitada
pelo novo governo. Tendo um relativo acesso à propaganda eleitoral
na TV, o MDB conseguiu ampliar seu número de votantes, sobretudo
nas áreas urbanas mais modernas. Com isso, a oposição cresceu na
Câmara e no Senado (ainda que não conseguisse fazer a maioria das
cadeiras) e obteve o controle das Assembléias Legislativas de São
Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná. Segundo Thomas
Skidmore, a ênfase do discurso eleitoral do MDB recaiu sobre três
pontos: justiça social, liberdades civis e denúncias de desnacionaliza-
ção da economia.
Para complicar a situação do governo, estudos realizados por
assessores políticos demonstravam que, nas eleicões seguintes
(1978), os votos da oposição iriam crescer ainda mais, fazendo O
governo perder completamente o controle do Congresso Nacional
(e do Colégio Eleitoral). Portanto, o avanço da repressão policial
ocorreu num momento em que a política oficial de abertura pas-
sava por uma reavaliação de conjuntura. O afastamento do general
Golbery, em janeiro de 1975, por problemas de saúde, abriu ainda
mais os caminhos para a linha dura. As novas vítimas da repressão,
na sua maioria jornalistas e sindicalistas, foram as tristes peças
desse jogo.

56

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O caso tlerzog e à repolitização da


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sociedade civil
No dia 27 de outubro de 1975, o comando do II Exército, com
sede na cidade de São Paulo, divulgou a notícia do suposto suicídio
de um jornalista, muito respeitado no meio profissional, chamado
Wladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura. Intimado a
comparecer ao DOI-CODI, Herzog havia se apresentado voluntaria-
mente para prestar depoimento. No dia seguinte, ele apareceu morto
numa cela, depois de ter assinado uma “confissão” na qual admitia ser
membro do Partido Comunista,
Obviamente ninguém acre-
Folha Imagem
ditou na notícia de suicídio.
Nem o DOI-CODI esperava
que acreditassem. A morte
de um importante jornalista,
completamente desvincula-
do de qualquer grupo de
guerrilha, servia para de-
monstrar o poder desafiador
do aparato repressivo, sob a
guarda do comando militar
local. Tanto foi assim que pe-
la primeira vez um prisio-
neiro não desaparecia, nem
eram simuladas sua fuga e
“morte por atropelamento”.
A foto do corpo de Herzog,
amplamente divulgada nos
jornais, pendurado na janela
da cela, numa posição em
que dificilmente alguém con-
seguiria se enforcar, era uma
montagem artificial e maca-

Corpo de Wladimir Herzog,


enforcado” numa cela do DOI-
CODI em São Paulo
(31/10/1975),
bra, carregada de cinismo. Diante disso, Geisel não tomou nenhuma
medida mais contundente, além das advertências ao comandante do
II Exército, Ednardo D'Avila Melo.
O impacto do caso Herzog sobre a sociedade civil foi muito
grande. Na Universidade de São Paulo foi declarada uma greve
estudantil de três dias. O Sindicato dos Jornalistas e a Ordem dos
advogados do Brasil (OAB) exigiram a apuração do caso. A Confe-
rência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que realizava sua
assembléia anual, redigiu um agressivo documento contra a tortura
(“Não oprimas teu irmão”), assinado por 42 bispos do alto clero:
“Assistimos, de fato, a flagrantes desrespeitos à pessoa humana |[..lo
mais grave é que estes atos, que levam a um clima de insegurança,
são praticados sob o pretexto de defender e manter a paz e a
tranquilidade da sociedade, alegando seus patrocinadores estarem
alicerçados em princípios cristãos.
Entretanto. a mais significativa reação da sociedade se deu na
forma de ato ecumênico que se transformaria em ato público de
protesto em plena catedral da Sé, no centro de São Paulo. Tendo
ampla cobertura da imprensa, O ato ecumênico, ocorrido em 31 de
outubro de 1975, foi celebrado pelo arcebispo de São Paulo, dom
Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel (Ulerzog era judeu) e
pelo pastor James Wright. Apesar das ameaças veladas do governo,
que procurava esvaziar O sentido político do ato, cerca de 8 mil
pessoas compareceram à catedral. Num discurso contundente, dom
Paulo, declarou: “A liberdade humana nos foi confiada como tarefa
essencial [...] Deus também é o Senhor da História |...) não aceita à
violência em fase alguma, como solução dos conflitos. Quem matar
não será maldito apenas na memória dos homens, mas também no
julgamento de Deus”.
O ato marcou a primeira grande manifestação pública contra O
regime militar desde a edição do AI-S, em 1968, juntamente com
missa pela memória do estudante Alexandre Vannucchi Leme, em
1973, morto pelas forças da repressão. Em torno do tema dos direitos
bumanos e da justiça social, a oposição se rearticulava contra O
regime militar, passando a reocupar o espaço público. A partir daí, a
sociedade civil iria ampliar sua participação em atos públicos de
protesto, em torno de valores democráticos. Por outro lado, muitos
liberais que se aproximaram de Geisel ficaram decepcionados com
sua tolerância diante dos desmandos dos órgãos de repressão, que
mostravam impunemente sua força e autonomia.

58

E a
+ + à
Tudo isso não impediu, contudo, que em janeiro de 1976 ocorres-
se mais uma morte no DOI-CODI, em São Paulo, consolidando a
“déia de que o comando do II Exército articulava as sabotagens ao
projeto de abertura do governo. O sindicalista Manoel Fiel Filho
apareceu morto, depois de ser interrogado pelas forças de repressão.
Percebendo a ameaça à sua autoridade política e a franca indisciplina
de setores do Exército, Geisel não hesitou: um dia depois da morte do
sindicalista, o presidente demitiu sumariamente o comandante do TI
Exército, nomeando um general de sua confiança. A linha dura militar
perdia um importante pólo de ação. Se essa mudança de posto não
neutralizava completamente a ameaça dos órgãos de repressão à
sociedade, ela trazia de volta para a Presidência da República a
iniciativa política da abertura. Mas, dentro das estratégias do governo,
tal política só teria sucesso se a economia se mantivesse em cresci-
mento, o que representava outro desafio.

Um novo patamar de inclustrialização


e a questão operária

Para a economia brasileira, o governo Geisel representou um


avanço da industrialização pesada (setor elétrico, petroquímico, nu-
clear e de equipamentos industriais), ao mesmo tempo que incremen-
tou a estatização da economia. Essa, aliás, não era a única contradição
do regime. Sua forte propensão ao planejamento econômico centrali-
zado não correspondia exatamente ao modelo de capitalismo ao qual
O Estado brasileiro se alinhava. Nesse contexto, o II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II PND), de 1975, procurava estimular o setor de
bens de capital, visando ampliar a autonomia produtiva do parque
industrial brasileiro, mediante um detalhado planejamento, em que se
previa uma forte presença do Estado. Em 1974, o governo havia
conseguido manter o crescimento econômico, mas a viabilização das
metas para os próximos anos dependia de uma grande soma de
investimentos, quase sempre vindos do exterior, pois a poupança
interna do país não era suficiente. O problema era que, após a guerra
árabe-israelense de 1973, em represália ao apoio norte-americano a
Israel, os países árabes — os maiores produtores de petróleo —
triplicaram o preço do barril, afetando a economia mundial.

59
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Mesmo sentindo os efeitos da crise do petróleo, como a diminui-
ção do crescimento e o aumento da inflação, o país conseguiu evitar
o colapso geral da economia. Os tecnocratas da economia (funcioná-
rios do alto escalão do governo que se diziam administradores
públicos de caráter “técnico”, isto é, sem interesses político-partidá-
rios, O que sempre foi muito discutível) criaram várias estratégias para
a obtenção de recursos necessários aos investimentos. Outro proble-
ma a ser enfrentado era a cobertura do déficit do balanço internacio-
nal de pagamentos (diferença entre os recursos que o país recebe e os
que envia ao exterior ). O governo abriu mão do depósito obrigatório
que os investidores deveriam fazer no Banco Central, diminuiu à
taxação sobre a remessa de lucros para o exterior e reduziu o prazo
mínimo de permanência dos recursos no país. Outra fonte de
recursos capaz de viabilizar o novo modelo industrializante e promo-
ver o equilíbrio da balança comercial era o empréstimo puro e
simples, em dólares, tomado dos bancos internacionais,
O problema estava se agravando porque, para cada dólar que
entrava no Brasil, o governo deveria emitir a quantidade equivalente
em cruzeiros (a moeda vigente na época), aumentando a soma total
de cruzeiros em circulação, enquanto a produção de bens de consu-
mo e alimentos não crescia na mesma proporção. Além disso, o fato
de haver cada vez mais cruzeiros em circulação não significava que

ar,
eles estavam sendo distribuídos de maneira equitativa entre os

pesaçÃ
diversos segmentos sociais.
Alguns dados apontam para o início da crise econômica que se
estenderia, intercalada por períodos de crescimento, até o início da

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década de 80, crise essa provocada pelo descontrole inflacionário,
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pelo crescimento da dívida externa e pelo empobrecimento geral dos Uri
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segmentos assalariados. Em 1974, a dívida externa duplicou, e a


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inflação anual saltou de 15,7% (índice falsificado pelo governo, como


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veremos a seguir) para 34,5%. A balança comercial acusou um déficit


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de mais de USS 4 bilhões, devido ao aumento do valor das importa-


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ções, provocado pela elevação do preço do petróleo e pela compra


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de máquinas industriais pesadas.


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Em julho de 1977, a Folha de $.Paulo, jornal que começava a se


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destacar como o mais ativo da oposição civil, publicou uma nota


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sobre o relatório do Banco Mundial (BIRD) que mostrava, tecnica-


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mente, como o governo brasileiro, por ordem do ministro Delfim


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Netto, havia manipulado os índices inflacionários. O Instituto Brasilei-


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ro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão de estatística oficial,


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reconheceu o “erro”, e o movimento sindical calculou as perdas, que
não foram repassadas aos salários: 34,1%. Como o índice de inflação
oficial era a base para os reajustes salariais da maioria dos trabalhado-
res. à falsificação do índice de 1973, somada ao aumento da inflação
(que nunca era reposta integralmente no salário), começou a inquie-
tar os segmentos mais pobres. Os movimentos sociais, entre os quais
se destacava o já citado Movimento do Custo de Vida de São Paulo, e
o movimento operário reiniciaram suas manifestações contra a políti-
ca econômica do governo.
O Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e
Diadema comandou a luta pela reposição salarial e denunciou a falta
de “seriedade” do governo no trato da questão salarial. Era o primeiro
choque mais direto entre o regime e os trabalhadores organizados
desde as greves de 1968. Uma grande assembléia, se considerarmos
os tempos de repressão então vividos, foi realizada em setembro de
1977, atraindo mais de 5 mil operários à sede do sindicato. Naquele
contexto, a Tribuna Metalúrgica, órgão do Sindicato dos Metalúrgi-
cos de São Bernardo e Diadema, trazia a seguinte declaração: “Para
nós interessa muito aquela democracia que também dê liberdade aos
sindicatos. Esse negócio de democracia só para políticos não dá pé,
porque a gente vai continuar espremido aqui no pedaço” (nº 43, set.
1977, p. 8).
Os desajustes da ordem econômica se uniam às deformidades do
sistema político imposto pelo regime, criando vários focos de resis-
tência e oposição democráticos, colocando lado a lado liberais e
esquerdistas, classe média e operariado, na luta contra o regime
militar. O aumento da interferência direta do Estado na economia,
mediante a atuação no mercado das empresas estatais, acabou
desagradando muitos empresários, que passaram a criticar a falta de
liberdade econômica e a excessiva burocratização dos negócios.
Mesmo os Estados Unidos, tradicional aliado do regime militar,
entravam em choque com vários pontos do governo Geisel: a
orientação nacionalista de sua política econômica (para os setores
nuclear e de informática, por exemplo), o crescimento do setor estatal
na economia e da violação sistemática de direitos humanos, que
passavam a ser um tema da política internacional do presidente norte-
americano Jimmy Carter.
Entretanto, mesmo debaixo de crescentes críticas, o governo Gei-
sel conseguia manter o controle do jogo político e da sociedade civil.
Uma das estratégias fundamentais do regime como um todo (e do

61
governo Geisel, em particular) consistia em manter a sociedade des-
politizada e, sobretudo, desmobilizada. Mas essa tática começava à
dar sinais de esgotamento. Nesse ponto, o ano de 1977 seria decisivo.
Em abril de 1977, preocupado com o processo eleitoral de 1978,
que poderia redundar na derrota da Arena, o governo editou uma
série de medidas autoritárias que ficou conhecida como o “pacote de
abril”. Os pontos mais importantes desse pacote eram: a extensão do
mandato do próximo presidente da República, de cinco para seis
anos; as eleições para governadores de Estados seriam indiretas (ao
contrário do que previa a própria Constituição do regime); um terço
dos senadores seria nomeado pelo presidente; mudança do cálculo
do número de cadeiras por Estado na Câmara Federal (visando
diminuir a representatividade dos Estados em que a oposição ganha-
va força, como Rio de Janeiro e São Paulo).
Além disso, as Polícias Militares estaduais teriam sua própria
justiça interna, livrando-se do controle dos civis. Todas essas medi-
das, além de outras, foram impostas pelo fechamento do Congresso
por quinze dias. Junto decretou-se a chamada “Lei Falcão” (que
recebeu esse nome de Armando Falcão, ministro da Justiça do
governo Geisel), que praticamente proibia o acesso da oposição à TV.
Desse modo, o governo tinha em mãos um verdadeiro arsenal
jurídico para reestruturar O sistema político,
Se, de um lado, tínhamos, então, o Pacote de Abril e a preo-
cupação do governo em controlar o sistema político, de outro, a
sociedade se movimentava com desenvoltura cada vez maior, exi-
gindo democracia e ampliando as manifestações de rua: estas
violentamente reprimidas pela polícia, Mas a batalha das ruas esta-
va só começando.

1977 — À volta do protesto popular

Ão longo do ano de 1977, certos acontecimentos traduziram a


reconquista do espaço público de manifestação por parte da socieda-
de civil e, consequentemente, o rompimento do círculo do medo. A
luta por “liberdades democráticas” se ampliava cada vez mais, como
expressão da oposição ao regime militar. am
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Os primeiros a se manifestarem publicamente, ocupando as ruas


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e ganhando espaços nos jornais, foram os estudantes. Em abril de


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1977, eles voltaram a ocupar a cena sociopolítica, protagonizando


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Quadro comparativo — eleições: 1970-1978
a) Composição da Câmara Federal (eleição proporcional) |
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Arena MDB

b) Composição do Senado (eleição majoritária)


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Arena MDB

c) Percentual de votação no Senado (eleição majoritária)


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% D. "Manipulações casuísticas do sistema eleitoral durante 0.


irao, C, et alli (orgs. )21 anos s de, regime militar. Gde E
Janeis dd, po 154197. | | ARDE EE;
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Quadr Omara das eleições para a2 Cáâmara Federal e para o Senado entre 1 970 e
os

1978. O crescimento dos votos na oposição (MDB) preocupava o regime.

63
de
grandes manifestações que atraíram a simpatia de outros segmentos.
Após várias manifestações de menor impacto, os estudantes de
importantes cidades brasileiras realizaram uma série de protestos de
rua, mesclando reivindicações estudantis com exigências de redemo-
cratização política. Um grande conflito entre estudantes e polícia teve
lugar em São Paulo, no início de maio de 1977. Mesmo cercados pela
Polícia Militar, um grupo de estudantes, sentados no asfalto do
viaduto do Chá, leu, em coro, a “Carta aberta à população”: “Hoje,
consente quem cala. [...) É por isso que conclamamos todos, neste
momento, a aderirem a esta manifestação pública sob as mesmas e
únicas bandeiras: fim às torturas, prisões e perseguições políticas;
anistia ampla, geral e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados
políticos; pelas liberdades democráticas”.
Ainda em maio de 1977 foi marcada a data do Dia Nacional de
Luta pela Anistia, e os conflitos de rua tornaram-se ainda mais
violentos. O movimento estudantil conseguiu realizar grandes mani-
festações em Belo Horizonte e Brasília (onde a Universidade de

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Em 1977, o movimento estudantil voltou às ruas, realizando grandes
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protestos, duramente reprimidos pela polícia.


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Brasília entrou em greve e, posteriormente, foi invadida pela PM),
além de São Paulo. Em junho, o Dia Nacional de Luta se repetiu.
Mediante uma tática que denotou muita organização, os estudantes
conseguiram enganar a vigilância policial no centro de São Paulo e
realizaram inúmeras minipasseatas durante todo o dia. Embora as
rádios e TVs estivessem proibidas de divulgar os fatos, a imprensa
escrita deu grande destaque para o protesto, parte dela apoiando a
luta estudantil.
No segundo semestre de 1977, entre agosto e setembro, o
movimento cresceu ainda mais, ganhando simpatizantes em outros
setores da sociedade brasileira. A Igreja Católica, o MDB e entidades
civis divulgaram seu apoio ao movimento estudantil, outorgando-lhe
a função de porta-voz da sociedade civil pela causa democrática.
Mesmo integrado por grupos de esquerda, como os trotskistas
(adeptos das idéias do líder da Revolução Russa, Leon Trótski), ou
ligados a setores católicos, o movimento estudantil extrapolou suas
fronteiras ideológicas, recebendo a simpatia e a solidariedade dos
democratas em geral.
Em setembro, a brutal invasão da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC) — uma das poucas instituições de ensino que
desenvolviam um pensamento crítico sem o controle do regime —,
quando aí se realizava o Encontro Nacional de Estudantes, só
aprofundou essa solidariedade. A invasão e a destruição da PUC,
comandada pelo próprio Secretário de Segurança do Estado de São
Paulo, coronel Erasmo Dias, teve grande repercussão nacional e
internacional. Atingia, de uma só vez, a Igreja Católica (à qual a PUC
era ligada), o movimento estudantil, além da própria PUC, uma
universidade de prestígio. A violência policial não ficou só na
depredação das instalações físicas da universidade: provocou inúme-
ros feridos entre estudantes, funcionários e professores.
Enquanto o movimento estudantil se ampliava, desafiando o
controle do espaço público pelo regime, o ambiente político do país
era agitado por outros fatores adicionais. Agosto fora um mês
partircularmente tenso para a vida política nacional. Dois eventos
merecem destaque, uma vez que ajudaram a redefinir os rumos do
processo de liberalização política: a divulgação (em agosto de 1977)
de um manifesto dos liberais, conhecido como “Carta aos brasileiros”,
e o acirramento do choque político entre o ministro do Exército,
Sílvio Frota, e o presidente Ernesto Geisel, em razão da indicação do
próximo presidente da República.
65
A “Carta aos brasileiros”, escrita pelo professor da USP e jurista
Gotredo Telles Junior, foi lida em coro como um manifesto pela
redemocratização, no pátio da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, reunindo centenas de estudantes, que depois saíram em
passeata pelo centro da cidade. O documento foi reproduzido em
alguns jomais da grande imprensa e recebeu apoio e divulgação
nacional e intemacional. Esse evento simbolizou o afastamento defi-
nitivo dos liberais brasileiros com relação aos princípios da Doutrina
de Segurança Nacional. O manifesto, de catorze laudas, continha uma
discussão sobre a natureza do governo, das leis, do poder político,
e também sobre as origens e a legitimidade da democracia. Numa
clara alusão à maquiagem jurídica que o regime usava para legitimar
o seu autoritarismo, o documento afirmava: “Distinguimos entre legal
e legítimo. Toda lei é legal. Mas nem toda lei é legítima [...] O único
outorgante do Poder Legislativo é o Povo. Somente o Povo tem
competência para escolher seus representantes”. O documento termi-
nava com uma palavra de ordem: “Estado de direito Já!”. Mesmo entre
segmentos da esquerda, conforme observa Bernardo Kucinski em
Jornalistas e revolucionários, o manifesto provocou uma discussão
muito acirrada, e grupos como o PCdoB e o MR-8 passaram a defender
a idéia de que a esquerda deveria, naquele momento, deixar que os
liberais tomassem a frente do processo de redemocratização do Brasil.
No bojo das disputas pela sucessão presidencial, uma grave crise
quase provocou o colapso da política de abertura. Para manter a
estratégia de institucionalização do regime, a dupla Geisel-Golbery
precisava manter o controle do poder sob os castelistas, partidários da
abertura. Mas, desde março, o ministro do Exército, Sílvio Frota,
tentava articular sua candidatura, arregimentando o apoio dos quar-
téis e do Alto Comando do Exército.
Pelas regras internas das Forças Armadas, Sílvio Frota seria O
candidato natural à Presidência, pois era o general mais graduado.
Embora não fizesse parte do grupo castelista, o general Frota fora
nomeado ministro do Exército, por imposição das circunstâncias: O
general escolhido por Geisel morrera antes de tomar posse, e o
próximo nome na hierarquia era o de Frota. Percebendo a insatisfa-
ção dos “duros” diante da perspectiva de volta dos civis ao poder, O
general Frota tentou se aproximar dessa corrente, aproveitando-se de
sua situação de comandante de tropa. Criticava abertamente à condu-
ta do presidente Geisel em relação às manifestações de rua, acusan-
do-o de ser tolerante com os subversivos.

66
"rm outubro de 1977, a tensão chegou ao máximo: a rebelião de
uma unidade militar em Minas Gerais, a mesma que havia iniciado o
de 196 4, rep res ent ava à pos sib ili dad e de gol pe. Mas o
movimento
grupo lígado ao presidente agiu mais rápido. Em 12 de outubro,
tendo já convidado secretamente outro general para ser ministro,
Geisel exonerou O general Frota. Esse, ao saber da exoneração,

te ntou reunir o Alto Comando, mas a reunião foi desarticulada por


agentes do governo. Com a rebelião nas unidades militares controla-
da e o principal articulador do golpe exonerado de seu cargo, o
presidente reconquistou O controle total sobre o Exército.
Ainda que fracassada, a tentativa de golpe traduziu o grau de
desgaste interno das Forças Armadas em razão de questões da
política nacional. Nesse contexto, surgiram muitos grupos de milita-
res favoráveis à “volta aos quartéis”, expressão que designava a
passagem do poder aos civis o mais rápido possível.
A indicação do general João Baptista Figueiredo — que assu-
mia o compromisso de consolidar a abertura do regime militar —
representava a vitória do grupo castelista em composição com
outros grupos militares, como os medicistas, que se reaproximavam
do poder palaciano. A eleição do novo presidente seria indireta,
por meio do Colégio Eleitoral, reunindo os membros do Congresso
e representantes dos legislativos estaduais. Mesmo sem chance, o
MDB adotou uma postura ousada: escolheu um general quatro
estrelas como seu candidato, revelando a divisão interna nas Forças
Armadas.
Assim, foi lançada a candidatura do general Euler Bentes, um
militar de linha nacionalista favorável à redemocratização, apoiado
por boa parte da tropa. Se as possibilidades de vitória da oposição já
não eram muitas, elas se tornaram ainda mais reduzidas quando o
principal articulador militar da candidatura Bentes, o general Hugo
Abreu (figura-chave no contragolpe de Geisel, agora rompido com o
presidente por ter sido preterido na indicação como seu sucessor)
teve seu nome divulgado como o principal comandante da repressão
à guerrilha do Araguaia. Os grupos de esquerda que estavam ligados
ao MDB, principalmente o PCdoB (derrotado naquela guerrilha),
pressionaram a direção do partido contra a candidatura de Bentes,
que acabou esvaziada.
Os estrategistas do governo, além de garantirem a Presidência
da República, passavam agora a se preocupar também com a
imagem pública do próximo presidente. Para tanto, coordenaram

67
Carlos Namba/Abril Imagens
uma grande campanha de propaganda em torno da imagem de
Figueiredo, apresentado-o como um homem “simples” e “simpáti-
co”. A perspectiva da perda de controle sobre a crise econômica
já era uma realidade por volta de 1978, e exigia novas formas de
legitimação do governo. Apesar de toda a propaganda, o presidente
Figueiredo foi infeliz em algumas declarações públicas, como na
ocasião em que disse preferir o “cheiro dos cavalos ao cheiro do
povo”,
Tendo reconquistado o controle do sistema político, garantindo
seu sucessor e aproveitando o relativo refluxo dos protestos de rua
estudantis, o governo Geisel fechou seu mandato com uma série de
reformas liberalizantes. Em 1978, depois de dez anos, o governo
acabou com a vigência do Ato Institucional nº 5, além de permitir a
volta do recurso do habeas-corpus. Com isso se definia a pauta
(conjunto de itens a serem atingidos) da transição política para um
regime mais aberto, obra que deveria ser realizada por Figueiredo.
Essa pauta incluía ainda a reforma partidária, a promulgação de uma
anistia aos presos políticos e perseguidos pelo regime e as eleições
diretas para governadores de Estado. Era a chamada “abertura lenta,
gradual e segura” que se consolidava,
Quanto às distorções sociais geradas pela política econômica
do regime, não havia nenhum sinal de alteração. No máximo,
estudava-se uma nova lei salarial que permitisse um repasse mais

68
inflação. Portanto, ainda fiel aos princípios da Doutrina
eficaz da
de Segurança Nacional, a estratégia de abertura não previa uma
ipa ção mai or das cla sse s tra bal had ora s na def ini ção da vid a
partic
ec on ôm ic a. Mas o go ve rn o não pod ia con tro lar a his tór ia:
solítica e
a partir de 1978-1979, os trabalhadores passaram a ocupar a cena
politica do país, deixando claros os limites da política de abertura.
r
Eles se tornariam os principais atores da oposição ao regime milita
e apontariam para um novo projeto de sociedade que colocava em
xeque a Doutrina de Segurança Nacional, as idéias liberais clássicas
e mesmo as posturas da esquerda, representada pelos partidos
comunistas mais antigos.

09)
A be tura e | Uta
O la de mM OC FACA

A classe trabalhadora e a luta pela


democracia

o dia 12 de maio de 1978, os trabalhadores da Scania —


montadora de veículos automotivos — entraram na fábri-
ca, marcaram o cartão de ponto, mas não trabalharam. Em
poucos dias, milhares de operários metalúrgicos de outras
fábricas do ABC paulista cruzavam os braços, reivindicando reajustes
salariais.
Essa greve trouxe muitas novidades. A participação do sindicato
dos metalúrgicos havia sido indireta, A organização do movimento foi
praticamente preparada no interior das fábricas. Não houve uma
assembléia formal que deflagrasse o movimento, nem piquetes nas
portas das fábricas para que a greve funcionasse. Em apenas dois
dias, cerca de 12 mil trabalhadores pararam “espontaneamente”, pelo
menos assim viam a imprensa, o governo e à sociedade em geral.
Além das reivindicações de melhorias sala riais, o movimento exigia
a
democratização interna das fábricas, ou seja, maior participação
dos
trabalhadores em algumas decisões ligadas ao processo
de produ-
ção e liberdade de organização por meio das “comissõe
s de fábri-
cas”. A questão democrática, que unificava as
lutas sociais contra O
regime militar, era colocada em outra perspectiva pelos
trabalhadores
organizados,

70
ist a de um cor one l do II Exé rci to à rev ist a Ist oÉ (de 24
A entrev
8) traduz a pe rp le xi da de ger al. In da ga do pel o rep órt er
de maio de 197
rn o iria rep rim ir o mo vi me nt o, ele re spondeu: “Repressão
ce O gove
novo. Greve sem violência, ses
como? Este é um fato absolutamente
nec ess ári o re co nh ec er que nes ta gre ve não há ingerências
agitação. É
ma, não se po de faz er nad a. E im po ss ív el pre ten -
externas. Dessa for
a pol íci a em açã o par a obr iga r os ope rár ios a
der que se deva colocar
trabalhar à força”.
e e r á r i a n o A B C p a u l i s t a e m m a i o d e 1 9 7 8 d r i b l a v a d e
A grev op
maneira inédita a vigilância do governo militar. Preparado no coti-
diano das fábricas, a partir de reuniões informais nos intervalos para
o cafezinho e idas ao banheiro, o movimento conseguiu formar um
tipo de organização muito difícil de controlar e reprimir. O controle
do governo sobre as entidades dos trabalhadores, como os sindicatos,
acabou forçando a necessidade de uma organização mais invisível e
informal, mas nem por isso menos organizada. Tanto assim que, em
agosto daquele ano, o governo editou uma nova lei de greve,
modificando a legislação vigente desde 1964, que visava agilizar os
mecanismos jurídicos de controle e repressão das atividades sindicais.
Outro fato novo foi o não-acatamento, pelos grevistas de 1978, da
decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), que declarou a
greve ilegal. Ao contrário, após a sentença do TRT de São Paulo, o
movimento ampliou-se ainda mais.
Diversamente de 1964, quando os grupos de esquerda organiza-
dos (como o PCB) ou os grupos ligados ao sindicalismo oficial
varguista (como o PTB) tinham supremacia nos sindicatos e consti-
tuíam as principais lideranças operárias, o novo movimento dos
trabalhadores possuía um caráter muito mais democrático e descen-
tralizado. Não exigia só a democracia formal, fora das fábricas, mas se
colocava contra o sindicalismo centralizado e controlado pelo Minis-
tério do Trabalho e pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a
legislação vigente desde a época do Estado Novo (1937-1945). Essa
legislação, promulgada num contexto autoritário, se somava àquela
específica do regime militar no controle da vida profissional e social
dos trabalhadores. Além disso, as novas lideranças do movimento
eram efetivamente operárias, surgidas a partir da experiência das
fábricas. Esse foi o caso de Luís Inácio da Silva, o “Lula”, e de outros
líderes.
As greves de 1978 apresentaram um balanço positivo: além do
atendimento parcial das reivindicações, elas trouxeram novas formas

71
de atuação e organização para o movimento operário, contribuindo
para a ampliação das lutas democráticas do período, na medida em
que representavam uma possibilidade histórica inédita de participa-
ção efetiva das classes trabalhadoras na vida nacional. O já citado
jornal sindical Tribuna Metalúrgica, em seu número de junho de
1978, foi feliz ao resumir as novas perspectivas políticas dos trabalha-
dores: “Finalmente nos revelamos a nós mesmos: percebemos que
temos força e que somos capazes, quando unidos e organizados, de
levar O patronato ao diálogo produtivo com o nosso sindicato,
respeitando nossas reivindicações”.
O crescimento da organização e da participação operária do setor
mais dinâmico e moderno do capitalismo brasileiro exigia uma
recolocação das estratégias de ação não só do governo militar, mas da
oposição civil em geral. As ameaças que a luta operária trazia ao
sistema construído em 1964 eram grandes, pois o regime militar se
colocava como o tutor dos conflitos sociais mais profundos e admi-
nistrador da modernização capitalista, sem a participação dos traba-
lhadores. O ativismo sindical autônomo foi percebido pela opinião
pública como uma novidade histórica. Ao lado dos movimentos
sociais de bairros, acabou redefinindo os valores democráticos que
norteavam a luta contra o regime: já não bastava exigir liberdades
democráticas, era necessário lutar pela justiça social efetiva e pela
participação dos assalariados na riqueza nacional. Os acontecimentos
de 1979 e 1980 acabariam levando a classe trabalhadora ao centro da
vida política nacional, deixando claros os estreitos limites da política
de abertura proposta pelo governo.

1979 — o ano dos trabalhadores


Em março de 1979, em meio à posse do presidente João Baptista
Figueiredo, uma nova greve operária explodiu no ABC paulista, mais
ampla e mais organizada que a greve do ano anterior. O sindicato
havia encampado a luta desde o início da campanha salarial e
realizado grandes assembléias, exigindo reajustes salariais compat
í-
veis com a inflação. Nem o anúncio de uma nova lei salarial, que
diminuía para seis meses o período entre um reajuste e outr
o,
dissuadiu os trabalhadores da opção pela greve.
Tanto o governo quanto os donos das fábricas est
avam mais
preparados para enfrentar o movimento. Apesar de reconhecer qa
12
çõ es , O go ve rn o mi li ta r nã o es ta va di sp osto
i d a d e d a s re ivindica
legitim is ela po de ri a ra pi da me nt e se tr an sf ormar
greve, po
à tolerar nenhuma À Os patrões também mudaram
polític o contra o regime . 1/5 pátfts &
em protesto mi as
tática: impediram erários em | gere
que os op
de
ar O pa ga me nt o do s di as pa ra do s. Se E am
Fábricas e decidiram cort l pú bl ic o,
ta s na s po rt as da s em pr es as , em lo ca
era deixar os grevis
através da violência. Quando a
para que à polícia Os intimidasse
greve eclodiu, o presidente da Federação das ps inio pe a e
IE SP ) ch eg ou à de cl ar ar : “O s op er ár io s nã o vão SEpROR EA
são Paulo (F
li sa çã o, um a ve z qu e as em pr es as nã o es tã o
mais de dois dias de para
dispostas a pagar os dias parados”.
A despeito dessa opinião, a greve durou catorze dias. Deflagrada
em 13 de março (dois dias antes da posse de Figueiredo), na primeira
de muitas assembléias históricas realizadas no Estádio de Vila Eucli-
des em São Bernando do Campo, a greve recebeu a adesão de mais
de 150 mil operários já no dia seguinte. Apesar de Lula, então
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diade-
ma, declarar que os trabalhadores não estavam fazendo uma greve
política contra o governo, e sim uma greve econômica por reajustes
salariais, o movimento acabou sendo visto pelo governo como uma
afronta ao regime e à sua política econômica. Aos poucos, o movi-
mento assumiu caráter político, mas de outro modo, como fica claro
no discurso de Lula, feito durante uma das assembléias: “Se brigar por
melhores salários é fazer política, então nossa greve é política. Uma
política para encher o estômago e para dar escola a nossos filhos”.
Agência Estado

”: >

Assembléia
Ma

operária no
Estádio de Vila
Euclides, em São
Bernardo do
Campo (março de
1979),

AS

2 Ri
e
Diante disso, O governo resolveu endurecer, o que acabou favo-
recendo a politização do movimento e tornou os operários metalú rgi-
cos a categoria social mais destacada na oposição ao regime militar. O
govemador do Estado de São Paulo, Paulo Maluf, político afinado
com o golpe de 1964, tomando o partido das grandes empresas, li-
berou a polícia para agir “com rigor”, leia-se, com violência acima do
normal. Dois dias depois de sua eclosão, o TRT declarava a greve
legal, fato que não intimidou os trabalhadores. Dez dias depois, o
Ministério do Trabalho usaria a tática de 1964: a intervenção federal
no sindicato organizador do movimento e a destituição de sua
diretoria eleita.
A intervenção federal, longe de desorganizar e esvaziar o movi-
mento, acabou transformando-o num protesto público generalizado
contra o regime. Na cidade de São Paulo e em outras cidades brasi-
leiras, várias categorias sociais organizaram atos de protesto, exigindo
o fim da intervenção e a abertura das negociações. Em São Bernardo,
no dia da intervenção, uma assembléia se transformou em passeata,
que, impedida de entrar no sindicato, se dirigiu à praça da igreja ma-
triz, onde ocorreu uma das cenas mais marcantes da época, ampla-
mente documentada em fotos jornalísticas: centenas de operários, ao
tentar formar com seus corpos a palavra “democracia”, eram dispersa-
dos pela polícia.
Imagens
Eduardo Simões/N.

Err de dig
= Ji ã a E aja

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E E gaten me A Mim o %

ua E A 4% Fa

Repressão policial a operários em São


Bernardo do Campo, em 1980,
A greve de 1979 serviu para consolidar ; tornar pública a aliança
o movimento PuerAno: As missas. sobretudo
da Igreja Católica com
as nas cida des dos oper ário s em greve , se tran sforma-
aquelas realizad
ram em atos públicos contra O regime militar. A organização de
fundos de greve — um meio de garantir a sobrevivência dos grevistas
e suas famílias — foi apoiada pela Igreja. Além disso, muitas lideran-
nas pa st or ai s op er ár ia s, gr up os de di sc us sã o e ação
cas se formaram
coordenados pela Igreja Católica.
Apesar do apoio de importantes entidades civis e da forte
organização, as negociações chegaram a um impasse. Os patrões
não estavam dispostos a dialogar. A repressão policial também foi
um fator de desgaste do movimento. Em fins de março de 1979,
a greve chegou ao fim. Mas o ano dos trabalhadores estava apenas
começando.
A comemoração do 1º de Maio, Dia do Trabalho, foi particular-
mente significativa: a “missa do trabalhador”, rezada no paço munici-
pal de São Bernardo do Campo, reuniu cerca de 30 mil pessoas e
contou com a presença não só de operários, mas de artistas, estudan-
tes, líderes partidários e comunitários. Em seguida, um grande ato no
Estádio de Vila Euclides, na mesma cidade, reuniu mais de 100 mil
pessoas. Todos os principais movimentos pela democratização da
sociedade brasileira estavam presentes, transformando aquela come-
moração num grande protesto de oposição ao regime militar. Um
panfleto, distribuído durante o evento por representantes do Comitê
Brasileiro pela Anistia (CBA), fundado em 1978, continha a frase
“Tem gente de menos neste 1º de Maio”, numa clara alusão aos
exilados e presos políticos, que deveriam estar ali, mas estavam
impedidos por força das circunstâncias. Esse comitê organizava outro
ramo da luta pela redemocratização: a campanha pela “anistia ampla,
geral e irrestrita”.
Em setembro, uma tentativa frustrada de greve por parte dos
bancários da cidade de São Paulo terminou num grande motim
urbano. Office-boys, transeuntes e bancários enfrentaram a tropa de
choque da PM durante mais de seis horas. Ocupantes dos prédios do
centro da cidade atiravam objetos nos policiais, que respondiam com
bombas de gás lacrimogêneo. A greve fracassara, mas o impacto
desse conflito urbano foi grande, demonstrando o grau de tensão
social existente. Como uma reação em cadeia, os movimentos grevis-
tas se alastravam por outras capitais brasileiras, em ondas de protesto
contra o regime, duramente reprimidas pela polícia.

75
=
o
TEM GENTE DE MENOS
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Fac-símile de um panfleto do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA).

No final de outubro, uma greve metalúrgica na capital paulista


acabou ocasionando a morte do líder sindical e comunitário Santo
Dias, assassinado pela PM durante um piquete na porta de uma
fábrica. O cortejo conduzindo o corpo do operário, entre a igreja da
Consolação e a catedral da Sé (onde seria realizada uma missa de
corpo presente), se transformou numa grande passeata, com cerca de
30 mil pessoas. Na catedral da Sé, a multidão que aguardava o início
da missa recebeu o féretro com a música Caminhando, de
Geraldo
Vandré, proibida desde 1968. Novamente dom Paulo Evaristo
Arns
sintetizou em palavras os sentimentos da Oposição ao
regime, tal
como ocorrera no culto ecumênico a Wladimir Herzog:
“Eles nos
exploram, nós reivindicamos: eles roubam nossos
salários, nós faze-

76
q

greve;3 eles= nos silencia m, nós ocupamos as ruas; eles nos


mos | SS A
nós ir ro mp em os em multidão”.
«assinam,
abertura oficial do regime militar,
ASado: í 1

to questionar OS limites da
à questão democrá-
a
Bic

i s a m e n t e as mu lt id õe s que trouxeram
foram p r e c
- |

tica dos palácios € 8 abinetes do poder para o meio da rua.

Desafios e limites da política de


abertura

O principal estrategista político do regime continuava sendo Gol-


bery do Couto e Silva, mantido como chefe da Casa Civil no governo
Figueiredo. Golbery havia estabelecido uma agenda para a transição
ao poder civil, que deveria se realizar mediante diversas reformas
políticas, como a reorganização partidária, a eleição direta para
governadores, anistia política, etc. Na linguagem dos militares da
ESG, era chegada a hora da “descompressão” do regime; ou seja, a
sociedade civil era chamada a participar do sistema político, mas tu-
telada e vigiada pelas Forças Armadas, evitando que os conflitos ca-
minhassem para uma ruptura radical com a ordem social, política e
econômica vigentes.
O crescimento da organização e das lutas operárias e dos assala-
riados em geral era um fator preocupante para o governo, na medida
em que pressionava o sistema a incorporar reformas incompatíveis
com os princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Tais reformas
implicavam profundas modificações na ordem econômica e atingiam
Os interesses dos grandes empresários nacionais e internacionais.
Nesse sentido, Maria Helena Moreira Alves, autora de Estado e
oposição no Brasil (1964-1984), afirma: “Do ponto de vista do
Estado de Segurança Nacional, o ano de 1979 definiu os limites da
política de abertura. AO mesmo tempo em que negociava a questão
da anistia política com os partidos e com instituições civis da elite, o
governo deixava claro que a liberalização não se aplicava à classe
trabalhadora”. O movimento sindical exigia o fim da CLT (que era
vista mais como uma legislação de controle do que de proteção ao
trabalhador), plena liberdade de organização, direito de greve, além
da revisão da política econômica e salarial. O governo não estava
disposto a dialogar. Por esse motivo, as greves e mobilizações
sindicais adquiriram um caráter de confronto com o governo e com o

Pk
regime militar como um todo, desafiando os limites impostos pelo
processo de abertura.
À ense econômica, materializada pela inflação e pelo arrocho
salarial crescentes, era a maior causadora de tensões sociais. O
modelo de desenvolvimento capitalista patrocinado pelo regime
mostrava claramente suas duas faces: se, por um lado, o govern
o
Geisel havia conseguido aumentar o parque industrial brasileiro, ao
incentivar as indústrias pesadas (máquinas e equipamentos ind
us-
triais) e de tecnologia mais sofisticada (como a informática), manten
-
do o crescimento industrial num contexto de recessão do capitalismo
mundial, por outro, tinha sido responsável pela perda do controle das
contas extemas. O Brasil virava a década endividado em US$ 40
bilhões. O general Figueiredo manteve, a princípio, o economista
Mario Henrique Simonsen no Ministério da Fazenda, ocupado por ele
desde a gestão anterior. Percebendo, contudo, que o crescime
nto
baseado no endividamento externo era insustentável, Simonsen co-
meçou a defender o desaquecimento (crescimento menos acelerado)
da economia, o que na prática significava recessão, um dos remédios
clássicos para reorganizar as finanças públicas e controlar a inflação.
Agravando ainda mais esse cenário, em 1979 os preços internacionais
do petróleo tiveram um novo aumento, e o Brasil, grande importador
desse produto, viu suas contas externas se desequilibrarem ainda
mais. Pressionado por empresários e banqueiros, o presidente demi-
Uu Simonsen, e em seu lugar nomeou Delfim Netto, o administrador
do milagre econômico dos anos 70 e pouco compromissado com a
saúde das finanças públicas.
Delfim Netto tomou posse prestigiado por banqueiros e empre-
sários, prometendo crescimento econômico “a qualquer preço”
,
conforme foi sintetizado no II Plano Nacional de Desenvolvimento.
O preço foi alto e acabou, como de costume, sendo pago pel
os
assalariados. Em 1979, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu cerca
de 6%, mas a inflação dobrou em relação a 1978, chegando a
quase
80% ao ano. Em 1980, a inflação deu um novo salto, pulando par
a
110%, e a dívida externa beirava os US$ 50 bilhões. Par
a agravar
ainda mais a situação econômica, os juros internaciona
is — que
estipulavam os valores a serem pagos anualmente aos
bancos
credores — estavam em alta. Em 1981, para uma dív
ida global de
US$ 61 bilhões, o Brasil teve de pagar quase
US$ 10 bilhões aos
banqueiros, entre juros e principal. Pela pri
meira vez em quatro
décadas, o PIB brasileiro acusava um índice neg
ativo, ou seja, O
srs

ko)
:

E
iso
oaís não s6 deixava de res como também diminuía globalmente
a] |
qe
cas atividades econômicas. exterior di mí nu ia a ca da ano , poi s
en tr ad a de di nh ei ro do
— Comoa nã o in ve st ia m ma is na
€ ba nq ue ir os in te rn ac io na is
empresários divisas ( moeda
O Brasil deveria gerar
economia Intino-americana, as ex po rt ações.
dí vi da s, in ce nt iv an do
internacional) para pagar SUdo Figueiredo,
ve rn o
rt a, la nç ad o pe lo go
O lema “Exportar é o que impo me rc ad or ia s (b as ic a-
ra ex po rt ar
escondia a face perversa do plano: pa a ba ix o pr eç o era
um o nã o du ráveis e al im en to s)
ment e be ns de co ns
à ba ix o cu st o € im pe di r qu e as ve nd as pa ra O
necessário produzi- las josa s a o s e m p r e s á r i o s q u e as
fossem mais vanta
mercado interno
a nã o é di vi sa ac ei ta pa ra pa ga me nt os
exportaçõe s Como nossa moed r e s , p a r a
r re cu rs os , OU se ja , d ó l a
, era preciso gera
internacionais
ad e em co ns eg ui r em pr és ti mo s ex te rn os .
compensar a dificuld u O
lo ec on ôm ic o, nã o é dif íci l de du zi r qu em pa go
Com esse mode
po lí ti ca de fe nd id a po r De lf im Ne tt o: os as sa la ri ad os em ge ral,
preço da
da s mé di as e os op er ár io s. Co mo a in fl aç ão au me n-
sobretudo as cama
qu e os sa lá ri os , os em pr es ár io s ga nh av am du pl a-
tava muito mais do
nor
mente, pois a mão-de-obra representava uma parcela cada vez me
dos custos, embora o preço dos produtos aumentasse sempre. Conse-
quentemente, o consumo interno tendia a ser decrescente, já que O
co mp ra do s as sa la ri ad os ia di mi nu in do , au me nt an do po ré m
poder de
o po te nc ia l de ex po rt aç ão . Is so tu do , so ma do a um a po lí ti ca de de sv a-
lo ri za çã o ca mb ia l (q ue re nd ia ma is cr uz ei ro s pa ra ca da dó la r ex po rt a-
do) e à em is sã o de se nf re ad a de mo ed a (p ar a co br ir os ga st os pú bl ic os
não cobertos pelos impostos), deu origem à “década perdida”, como
muitos caracterizam o ciclo econômico brasileiro nos anos 80. É impor-
tante destacar que ela foi perdida para a maioria do povo, mas para
a pe qu en a pa rc el a co ns is ti u nu m pe rí od o de en or me pr os pe ri da de .
um
Assim, embora ainda em seu início, a crise trava do regime militar
um dos seus maiores trunfos: o sucesso na área econômica. Se Os
ár io s ti nh am su a su bs is tê nc ia am ea ça da , a cl as se mé di a as sa la -
oper
riada via desaparecer suas possibilidades de ascensão social, consu-
mo e conforto. A explosão de greves em 1979 era uma resposta da
sociedade à falência do modelo econômico desenvolvimentista e à
de r de co mp ra do s sa lá ri os , ag ra ad a po r um a in fl aç ão
perda do po
que crescia em progressão geométrica,
Apesar da tensão política causada pela perda do controle sobre à
economia e pela mobilização sindical crescente, Os estrategistas do regime
conseguiram manter sob seu controle O processo de reformas políticas.
o
Ê
Anistia e novos partidos políticos

A Campanha pela Anistia era um dos vários movimentos pela


democracia, disseminando pela sociedade brasileira a luta pelo
respeito aos direitos humanos. Ao longo de 1979, os organizadores da
campanha — cujas origens remontam ao ano de 1975, quando surgiu
o Movimento Feminino pela Anistia — realizaram grandes concentra-
ções públicas, exigindo não só a anistia aos presos e perseguidos
políticos, civis e militares (que acabaram excluídos da lei), mas
também a punição daqueles que cometeram atos de tortura em nome
da Segurança Nacional.
O governo, por sua vez, dentro da pauta de abertura, promulgou
uma lei em agosto de 1979, prescrevendo a maioria dos crimes e
delitos cometidos entre 1964 e 1979, seja por subversivos, seja pelos
agentes das forças de segurança. Consequentemente, os últimos
presos políticos foram libertados, os exilados puderam retornar ao
Brasil e os que tiveram seus direitos políticos cassados puderam
voltar à vida pública. Com isso, protagonistas históricos da vida
política dos anos 60 voltaram ao cenário nacional: Leonel Brizola,
Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes, para citar os mais famosos. Além
desses, muitos ex-guerrilheiros retornaram ao país.

Ibarra Júnior/Agência JB

Em 1979, o último preso político — Roberto Jabour —


deixa a prisão, após a Lei de Anistia.

SU

a
4
ga çã o da Lei de An is ti a nã o at en de u a to das
ve rdade, a promul
Na
qu e vi nh a cr es ce nd o de sd e o
s da campanha popular
as reivindicaçõe mi té Brasileiro pela Anistia (CBA).
co m a fu nd aç ão do Co
fim de 1975, momentaneamente
apesar disso, à comunidade de informações,
id or es do Es ta do , nã o ta rd aria a
bast
desativada, mas atuante nos so ci ed ad e ci vi l. Em
ên ci as de pu ni çã o feitas pe la
responder as ex ig pu ni r Os
ve rn o admi ti u à hi pó te se de
mo me nt o, al iá s, o go
ne nhum
re s, cu jo s no me s iam aparecendo em relatórios de investiga-
torturado
ções das entidades civis.
do importante ano de 1979, uma nova legis-
“Ainda em novembro
aprovada, acabando com O bipartidarismo (regi-
lação Pp artidária foi
partidos) e tornando possível fundar novas organizações
me de dois
governista era beneficiar-se das di-
(pluripartidarismo). A estratégia
internas do MDB, que a essa altura reunia muitas forças
vergências
conflitantes e, por isso, certamente se fragmentaria em diver-
políticas
sas organizações, tão logo o bipartidarismo fosse extinto. Os defenso-
do regime, entretanto, deveriam concentrar-se num só partido
res
político, com base na antiga Arena. Conforme Bernardo Kucinski, em
Abertura: história de uma crise, os assessores políticos do governo
previam que a oposição se dividisse entre “liberais! (liderados por
Tancredo Neves e Ulysses Guimarães), “trabalhistas” (base do antigo
PTB acrescida de novos sindicalistas, liderados por Leonel Brizola,
mas sem a máquina do Estado em suas mãos) € “esquerdistas mais
radicais” (articulados por Miguel Arraes, ex-governador de Pernam-
buco). Em linhas gerais, esse prognóstico se cumpriu.
A Arena se transformou no Partido Democrático Social (PDS). A
maior parte do MDB se manteve no Partido do Movimento Democrá-
tico Brasileiro (PMDB), atraindo também parte da esquerda, como
Miguel Arraes e os comunistas do PCB e do PCdoB (ilegais). Os
liberais mais conservadores, como Tancredo Neves e Magalhães
Pinto. formaram inicialmente o Partido Popular (PP), de vida curta, já
que logo se fundiria com o PMDB, com vistas às eleições de 1982. Em
torno do novo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de inspiração
varguista, houve uma disputa legal entre Ivete Vargas ( sobrinha de
Getúlio) é Leonel Brizola. Essa disputa foi estimulada pelo governo,
que pretendia desgastar Brizola, considerado o mais temido nome da
oposição, o grande “incendiário” de 1964, como diziam os oficiais
militares. Perdendo a presidência da legenda PTB, Brizola fundou o
Partido Democrático Trabalhista (PDT), muito mais fiel ao antigo
populismo varguista do que o novo PTB.
Mas a grande novidade partidária, como reconheceram na época
todos os analistas políticos, foi o surgimento do Partido dos Trabalha-
dores (PT). O PT surgiu, inspirado em algumas organizações sindicais
e populares, com o apoio da esquerda católica (remanescentes da
Ação Popular dos anos 60) e da esquerda desvinculada do Partido
Comunista Brasileiro (parte dos trotskistas). Também foi importante a
adesão de setores intelectuais, especialmente nos meios universitá-
nos. Mas a grande ousadia protagonizada pelo PT foi que, pela
primeira vez na história do Brasil, criou-se um partido político de
massas completamente desligado das elites socioeconômicas e dos
partidos comunistas tradicionais, de linha marxista-leninista. Parado-
xalmente, a criação do PT não era vista como um problema a curto
prazo pelo governo, embora não tenha sido prevista por seus
estrategistas. Pelo contrário, o general Golbery pensou que a criação
do PT iria dividir e enfraquecer os dois agrupamentos ideológicos
mais ameaçadores ao sistema: o PDT, brizolista, e os comunistas, até
então hegemônicos no campo sindical.
Com efeito, os comunistas ligados sobretudo ao PCB não viram
positivamente a criação do PT. Na concepção dos mais antigos e
ortodoxos, os sindicalistas e os militantes dos movimentos de base
deveriam fazer um trabalho sindical e comunitário, enquanto o
trabalho propriamente partidário e político, no plano nacional, deve-
ria ser feito pelos partidos de esquerda já existentes.
Mesmo desacreditado pelo governo e sofrendo críticas da própria
esquerda, o PT logo se consolidou, atraindo um grande número de
simpatizantes, sobretudo em parcelas da classe média intelectualizada e
entre os operários mais organizados. Ao contrário do ultracentralizado
PCB, o PT pregava a participação da militância em todas as decisões
partidárias, enfatizando que a democracia deveria começar pelo próprio
cotidiano partidário para chegar às instâncias mais elevadas. Na verdade,
O ideário petista era inovador ao defender a participação da sociedade
organizada em todas as decisões do poder público, e não só no mo-
mento do voto. A proposta de democratização radical e transformadora,
baseada na participação permanente da sociedade, encontrava eco
numa sociedade cansada do autoritarismo do Estado. Apesar disso, as
primeiras participações eleitorais do PT, em 1982, não se traduziriam
numa votação significativa. A maioria dos eleitores de oposição, teme
n-
do que as opções “radicais” levassem a um novo fechamento
do Estado,
votaria em massa no PMDB. Além disso, certos segmentos
médios viam
com muita desconfiança o crescimento do partido.

02
A direita resiste

as d o m i n a v a a ce na po lí ti ca
79 , u m c o m p l e x o jo go de forç
Em 19 nh a se r a m i f i c a d o e m vá ri as
brasileira: a oposição a essa al tu ra ti ;
) ado co. ;

a d a s às ma is ra di ca is ; O g o v e r n o
re nt es , in do das mais moder j |
co que lh e de ss em ai nd a o co nt ro -
fa ze r pe qu en as co nc es so es
procurava nd o ai nd a ag ru pa me nt os de
e s s o c o m o 1 im to do , ha ve
le d o p r o c m o c o m e s s a s
ã o c o n c o r d a v a m n e m m e s
extrema dir e i t a , q u e n
agrupamentos, formados por setores
pequenas concessões. Tais
õe s, co me ça ra m à ag ir cl an de st in a-
ligados à comunidade de informaç mo do de
it uc io na l de cr es ci a. Es se
mente à medida que seu poder inst pe dir
ra do pe lo Es ta do , co mo fo rm a de im
ação acabou sendo tole s à
ex tr em a di re it a pa ss ou a pr at ic ar at aq ue
agitações nos quartéis. A
s ci vi s, co mo à As so ci aç ão Br as il ei ra de
bomba contra entidade
BI e a Or de m do s Ad vo ga do s do Br as il (O AB ), al ém de
Imprensa (A
qu es tr ar at iv is ta s do s di re it os hu ma no s. No an o de 1980,
ameaçar e se
at en ta do s à bo mb a e se gu es tr os re al iz ad os po r gr up os
o número de
ta re s de di re it a cr es ce u co ns id er av el me nt e. Os ca so s ma is
paramili
bizarros foram os incêndios provocados nas bancas de jornais que
ve nd ia m pe ri ód ic os de es qu er da , co mo Mo vi me nt o, Fo ra do Po vo ,
Te mp o e ou tr os . Na s se de s da OA B e da AB I, Os at en ta do s
Em
mataram é feriram funcionários. Nesse mesmo ano, durante a visita
Pa ul o II ao Br as il , um gr up o de di re it a se qu es tr ou €
do papa João
espancou o jurista Dalmo Dallari, ligado à militância católica pelos
direitos humanos.
ic e da ou sa di a, e, pa ra do xa lm en te , o in íc io do de cl ín io do
O áp
terrorismo de direita contra a abertura, foi o atentado do pavilhão do
Riocen tr o. Pa ra co me mo ra r o Di a do Tr ab al ho de 19 81 , si nd ic al is ta s e
es qu er da or ga ni za ra m um sh ow de mú si ca po pu la r co m os
grupos de
ral ao
artistas que mais se destacavam na oposição político-cultu
regime. Os terroristas, desejando solapar o evento, elaboraram um
a
plano: trancariam as saídas de emergência, cortaram a energi
elétrica e explodiriam bombas no interior do pavilhão, onde cerca de
3 mil pessoas estariam concentradas. Uma bomba colocada no
gerador de energia chegou a explodir, sem causar maiores danos. A
outra bomba, porém, explodiu por acidente no colo de um dos
agentes, quando estava sendo preparada num carro estacionado,
matando um deles e ferindo o outro gravemente. O acidente atraiu a
imprensa, e o plano do atentado se tornou público, pois descobriu-se
83
que os ocupantes do carro eram militares ligados ao DOI-CODI do
Rio de Janeiro.
As investigações foram feitas por uma comissão interna do Exér-
cito, sob a vigilância do SNI, que, conforme muitos jornais da época,
toi o coordenador das ações terroristas. Obviamente, as investigações
toram manipuladas e a patética conclusão da comissão foi a de que os
militares tinham sido vítimas da esquerda, pois estavam tentando de-
sarmar a bomba quando ela explodiu. A manipulação das investiga-
ções fez com que Golbery do Couto e Silva, que perdia sua influência
junto ao govemo Figueiredo, pedisse demissão em agosto de 1981.
Na perspectiva de Golbery, uma investigação aberta e mais honesta,
ainda que não conduzisse à efetiva punição dos responsáveis, iria
significar o desmantelamento completo dos sabotadores da estratégia
de abertura e uma maior aproximação do governo com a sociedade,
fato fundamental para as estratégias eleitorais do PDS nas eleições de
1982. Apesar do abafamento do caso, o terrorismo de direita perdeu
sua força, após o episódio do Riocentro. A conjuntura se tornava
desfavorável para qualquer retrocesso autoritário.

A república de São Bernardo contra


a ditadura militar
Por volta de 1980, apesar da consolidação da política de abertura,
as tensões entre o Estado autoritário e a sociedade civil chegavam a
um nível crítico. Nesse sentido, a greve dos metalúrgicos, deflagrada
no final de março de 1980, representou um dos momentos de maior
conflito entre ambos, uma vez que a sociedade civil apoiava maciça-
mente as reivindicações dos operários. Durante os 41 dias de greve, o
governo usou inúmeros recursos repressivos, jurídicos e policiais:
a
greve toi declarada ilegal pelo TRT, e o Ministério do Trabalho
interveio no sindicato, cuja diretoria — detida e enquadrada na Lei
de
Segurança Nacional — foi mantida incomunicável por vários dias.
Cerca de 130 mil trabalhadores aderiram à greve, apoiados por
diversas entidades civis e religiosas, partidos políticos
e movimentos
populares em geral, As reivindicações específicas eram
7% de ganhos
por produtividade e estabilidade no emprego por doze
meses, ambas
recusadas pelos patrões, Mas o significado hist
órico desse movimento
ia muito além de meras reivindicações salariai
s.

84
cd
D E S O L I D A R I E D A D E
BONUS

ua co
de
A a qi

"
ÍÉ
Es

:
qa
Fac-símile do bônus de solidariedade à greve dos
metalúrgicos do ABC, em 1980.

O movimento sindical, articulado agora a um novo partido


a
político — o PT —, jogava toda sua força e mobilização contra
estrutura sindical centralizada no Estado, e testava sua organização
interna nas fábricas. Além disso, a greve dos metalúrgicos de 1980
significou O ensaio de uma greve geral pelo fim do regime militar
e pela redemocratização da sociedade brasileira, alvo estratégico da
oposição de esquerda. Por seu lado, o governo sabia que, uma vez
atendidas as reivindicações operárias mais específicas, todo O sis-
tema vigente estaria ameaçado. Por isso chegou a proibir os donos
das indústrias de abrir negociações diretas com os operários. Tra-
tava-se, assumidamente, de uma luta política entre o regime e seus
opositores.
No dia 19 de abril, vinte dias após o início do movimento, Lula e
mais dezenove pessoas (incluindo quinze dirigentes sindicais) foram
presos sem mandado judicial, numa atitude que fez lembrar os anos
de chumbo do regime. Em muitas cidades brasileiras realizaram-se
atos de protesto e repúdio à prisão dos dirigentes sindicais. A Igreja
Católica, os partidos de oposição e o movimento sindical organizaram
campanhas de solidariedade para com Os metalúrgicos, transforman-
do sua luta específica numa luta geral pela redemocratização do
Brasil em todos os níveis (político, econômico e social).
Enquanto a mobilização da sociedade e a adesão à greve se
mantinham altas, a cidade de São Bernardo era praticamente cercada
pelo Exército, pela Polícia Militar e por agentes do DEOPS e do DOF
CODI, encarregados de sequestrar e espancar os manifestantes. A
85
ordem de esvaziar praças e ruas fez surgirem sérios conflitos entre
operários e policiais. Num deles, em 24 de abril, os operários
resistiram à violência policial e obrigaram a PM a abandonar o Largo
da Matriz. onde realizavam sua assembléia. Nos dias seguintes, os
conflitos de rua se tornaram ainda mais graves. À imprensa previa que
o pior estaria por ocorrer no dia 1º de maio, quando estava preparada
uma grande passeata pelas ruas de São Bernardo em apoio à greve.
Uma ordem veio diretamente de Brasília: impedir a todo custo a
ocupação das ruas pelos manifestantes.
Finalmente, no 1º de Maio, tropas do II Exército e da PM
cercaram e ocuparam as principais ruas e praças, ostentando arma-
mento pesado. Helicópteros do Exército sobrevoavam a cidade.
Apesar dessa demonstração de força, cerca de 50 mil pessoas,
mulheres e crianças em sua maioria, já pela manhã ocupavam a
praça central de São Bernardo, em apoio aos metalúrgicos. A
multidão estava disposta a realizar a passeata a qualquer custo, e
a polícia, a impedi-la. Depois de tensas horas de negociação envol-
vendo representantes dos manifestantes, figuras públicas de oposi-
ção, como os senadores Teotônio Vilela e Franco Montoro, e go-
vemo federal, Brasília emitiu outra ordem: retirar as tropas da cida-
de e permitir a realização da passeata.
Com um sentimento de vitória política, cerca de 100 mil pes-
soas realizaram a manifestação, transformada em ato público. Sobre
esse histórico evento, a revista IstoÊ, de 7 de maio de 1980, pu-
blicou: “Não se sabe, com certeza, quais foram as razões que in-
duziram as autoridades a recuar da decisão de reprimir a passeata.
Não houve qualquer esclarecimento para explicar a rápida retirada
da polícia [...] Mas não é improvável que a única razão tenha sido
a simples presença de todos aqueles brasileiros conscientes dos
seus direitos”.
Contudo, no día 5 de maio a chamada “república de São Bernar-
do” rendia-se: o movimento grevista estava suspenso. Reprimida
pelos patrões e pelo governo, desgastada e sem ver atendida nenhu-
ma reivindicação importante, a greve não tinha mais como manter-se.
Além disso, os dirigentes sindicais ainda permaneciam presos, assim
ficando por muitas semanas.
Mas o regime militar não pôde capitalizar os resultados de sua
aparente vitória. Ao tomar o partido das grandes empresas, durante à
Breve, O governo aprofundou seu isolamento político perante os
setores mais importantes das classes trabalhadoras e as lideranças

86
Os tr ab al ha do re s, pa rt ic ul ar me nt e os op er ár ios
t i c a s d e o posição.
p o l í de valores
ú r g i c o s , se tornavam o centro de um novo conjunto
me t a l -
r á t i c o s , um 4 alternativa radical à Doutrina de Segurança Na
de m o c
cional. i c i a v a , O i s o l a m e n t o do
a d é c a d a d e 80 , q u e e n t ã o se i n
Durante
i a a v e z m a i s , e m g r a n d e p a r t e d e v i do à
governo se aprofundar cad
ã o c o n ô m i c a d o p a í s , q u e p i o r a v a a c a d a a n o . O r e g ime militar
situaç e
i s e d e c l í n i o p o l í t i c o . M a s a l g u m a s q u e s t õ e s come-
dava, enfim, sina d
i ç ã o : c o m o d e v e r i a s e r a t r a n s i ç ã o a o poder
cavam à dividir a opos d u r a? Quais
a n i z a r à s o c i e d a d e e o E s t a d o a p ó s a d i t a
civil? Como reorg
t i v a s p a r a O m o d e l o e c o n ô m i c o v i g e n t e ? Como
seriam as alterna -
incorporar as organizações dos trabalhadores à vida política demo
crática?
s d a g a ç õ e s m a r c a r i a m a ú l t i m a f a s e d o r e g i m e
Essas e outra in
r, m m o m e n t o e m q u e a o p o s i ç ã o l i b e r a l c o m e ç ava a tomar à
milita nu
c e s s o p o l í t i c o e a n e g o c i a r a s a í d a d o s m i l i t a r e s do
dian t e i r a d o p r o
poder.

ogia o at
q Mana
ag e
A crise do regime
militar e a transição
4 '
democrática

As eleições de 1982 e o aumento do


poder da oposição liberal

or volta de 1982, o regime militar dava sinais de uma crise


estrutural aguda, embora ainda possuísse um grande con-
trole sobre o sistema político. A política de crescimento
econômico do ministro Delfim Netto naufragava já no final
de 1981: inflação beirando os 100% anuais, dívida externa cresce
nte
(por causa do aumento dos juros internacionais) e diminuição do PIB.
Ainda assim, em 1982, o governo conseguiu conter o agravamen
to da
crise econômica, preocupado com o desempenho eleitora
l do seu
partido — o PDS — nas eleições marcadas para o final do
ano.
entre 1980 e 1981, dois acontecimentos abalaram o regime,
a int ern a pel o pod er: a mor te te m
ar an do um qu ad ro de disput
jnaug
par tid ári o do go ve rn o, O mín ist ro da
1980) do coordenador político-
mi ss ão ( em 1981) do chefe da Casa
Justiça pet rôn io Por tel a, e a de
est rat egi sta do reg ime . O gr up o
civil, general Golbery, principal a, Otá vio
de Abr eu, Már io An dr ea zz
medicista (Delfim Netto, Leitão u-s e iná bil na
des sa dis put a, ma s rev elo
Medeiros) foi O vencedor
íti ca nac ion al mai s amp la. Ap os ta va no “conti-
condução de uma pol
qu an to out ros gr up os já ac re di ta va m nu ma
nuísmo” do regime, en
saída negociada com a oposição liberal.
ele içõ es leg isl ati vas e par a go ve rn ad or de 198 2, a vitória
Nas
ga do ra dos par tid os de opo siç ão, so br et ud o o PM DB ,
eleitoral esma
Est ado s da Fe de ra çã o (Sã o Pau lo, Min as Ger ais , Par aná
nos principais
o), de ix ou mai s nít ido ess e no vo qu ad ro pol íti co.
e Rio de Janeir
(P DT ) foi ele ito go ve rn ad or do Est ado do Rio de
Leonel Brizola
o um a gr an de exp ect ati va nos mei os pol íti cos , poi s
Janeiro, gerand
era considerado um “esquerdista incendiário” pelos militares. Na
Câmara Federal, a oposição passou a contar com cinco deputados a
mais do que o governo, mas no Senado (graças ao poder do governo
em nomear os senadores “biônicos”, ou seja, escolhidos exclusiva-
mente por indicação) o PDS tinha o dobro de cadeiras, o que garantia
ao governo a maioria no Colégio Eleitoral para presidente. Em
números absolutos de votantes, a oposição levava uma grande
vantagem em relação ao governo.
A abertura política , portant o, havia chegad o ao seu limite. O
o poder de manipu lar como bem quisess e as
governo já não tinha
regras do jogo eleitora l, devido ao fortal ecimen to da oposiç ão nas
eleições de novembro de 1982 e à diminuição de seu poder de
controle sobre a sociedade, causada pela crise econômica. Além
disso, os diversos grupos que compunham as Forças Armadas já não
convergiam para uma estratégia comum, crescendo entre eles a idéia
que os mil ita res dev eri am neg oci ar um a saí da do exe rcí cio dir eto
de
pol íti co e vol tar aos qua rté is. A “sa ída neg oci ada ” era a
do poder
condiç ão imp ost a pel o con jun to dos mil ita res par a ace ita r o fim do
regime , poi s não est ava m dis pos tos a per mit ir a inv est iga ção dos
mer os cas os de cor rup ção en vo lv en do me mb ro s do go ve rn o e,
inú
ret udo , não adm iti am à pun içã o dos ma nd an te s e exe cut ore s de
sob
no s. À pun içã o de cor rup tos e tor tur ado -
violações dos direitos huma
PT, e
res era uma das exigências da oposição de esquerda, ligada ao
do conjunto dos movimentos sociais e entidades civis, como OAB,
S9
REA o AP TRATO
lo o = dm td ed e DT mi RT MST
ae e DO O PP ARE E RS TA e o A OE PRE 2 Sr PER TA OTETEL FEAATEJA TM TRE Ha”

CNBB, ABI e outras. Os novos governadores dos principais Estados,


Franco Montoro (SP), Tancredo Neves (MG) e Leonel Brizola (R)),
mesmo desativando a polícia política estadual, não se empenharam o
bastante no esclarecimento dos casos de corrupção e violação dos
direitos humanos, preferindo ceder às pressões dos militares, em
nome da “pacificação nacional”.

Recessão e crise social:


a “guerra da fome”
Passadas as eleições de 1982 e garantida a maioria no Colégio
Eleitoral para eleger o próximo presidente, o governo não teve como
contomar a realidade da situação econômica do Brasil. Já no início de
1983. os índices de inflação e de desemprego explodiram. No final do
ano, a situação era assustadora: 200% de inflação anual, queda de 5%
do PIB, dívida externa chegando a US$ 100 bilhões. Com o aumento
das taxas de juros internacionais, a situação da dívida brasileira ficava
mais complicada. O pagamento dos juros era a condição básica para
que investidores, empresários e banqueiros internacionais não sus-
pendessem os negócios com o Brasil, o que representaria o caos para
um país que dependia das exportações para gerar divisas. A morató-
ria (decisão de não pagar os débitos externos) mexicana em agosto
de 1982 agravou a situação da América Latina no mercado financeiro
internacional. Os banqueiros decidiram não emprestar dinheiro novo
sem o aval do Fundo Monetário Internacional (FEMD.
Em 1983, o Brasil recorreu ao FMI para sanear suas finanças e
conseguir empréstimos de emergência. O resultado de quase quinz
e
anos de endividamento externo e gastos públicos descontrolados
começou a aparecer, agravado por uma concentração de
renda que
crescia com a inflação. O FMI era um crítico contumaz
da política
econômica brasileira. Já em 1971, conforme Thomas Skidmore,
um
relatório da entidade advertia sobre os riscos
do endividamento do
Estado, sobre a indexação da economia e sobre
à política de
crescimento econômico a qualquer custo comandada
por Delfim
Netto, Mas como naquela época havia dinheiro
q baixíssimo custo
(emprestado pelo governo norte-americano)
e crédito acessível nos
bancos internacionais (a juros baixos), além
do fato de o Brasil ser um
mercado atraente, pagando excelente remuneração
para os compra-
90
es sa s ac lv er tê nc ia s pa ss ar am de sp er ce bi da s.
dores de tútu los públicos, da
ha um cr es ci me nt o mo de ra do
Em linhas gerais, O FMI propun ga st os pú bl ic os e da
,economia, dando m a i s ên fa se ao co nt ro le do s
a d ômico
e c r e s c i m e n t o e c o n
t o , e m 1 9 8 3 , a p o l íti c
e
inflação. Coãom so f e i ma is po ss ív el , e a ec on om ia
com inflaç b controle já nã o er a
r vi rt ua lm en te ge re nc ia da pe lo FM I.
brasileira passava a se za r o co ma nd o
ic a do FM I, al ém de de sn ac io na li
A receita econôm
pr ov oc ar ia ma is re ce ss ão a cu rt o pr az o (p oi s
da pc dítica econômica,
do governo e os gastos com prograrias
limitava os investimentos
er da , a su bm is sã o ao FM I de ix av a cl ar o o caráter
sociais). Para a esqu
rn o br as il ei ro , ag uç an do ai nd a ma is o aspecto
entreguista do gove
político da crise econômica.
19 83 , po uc as se ma na s ap ós a po ss e do go ve rn ad or
Em abril de
oc or re u um a dr am át ic a re vo lt a de de se mp re ga do s,
Rranco Montoro,
que durante três dias assustaria não só a cidade de São Paulo, mas
à so ci ed ad e br as il ei ra . A re be li ão ha vi a co me ça do na zo na sul da
toda
de , re gi ão in du st ri al fr eq ue nt ad a po r um a po pu la çã o ex tr em a-
cida
nt e po br e. Um a re vo lt a — ca us ad a po r um bo at o de qu e uma
me
dú st ri a da re gi ão iri a co nt ra ta r ce nt en as de tr ab al ha do re s — trans-
in
pú bl ic o de pr ot es to , or ga ni za do pe lo mo vi me nt o
formou-se num ato
dos desempregados (liderado pelo PCdoB). Durante o ato, OS organi-
er am o co nt ro le da mu lt id ão , qu e de pr ed ou os ar re do re s
zadores perd
da praça e saqueou as lojas.
Irmo Celso/Abril Imagens

Motim de
desempregados
em São Paulo,
em 5 de abril
de 1983.
Re FOSSAS REA = SD on SAP ERP A EEE PDS ERES e SR RSS TSE

No dia seguinte, 5 de abril, uma onda de saques e depredações se

OT
espalhava por toda a periferia de São Paulo, chegando ao centro da

ee
cidade. No mesmo dia, no palácio dos Bandeirantes (sede do gover-

e
rea
no estadual), enquanto o governador recebia uma comissão de
desempregados, a multidão que permanecia fora acabou forçando e

aa
derrubando as grades que cercavam os jardins do palácio, numa cena
que fazia lembrar os momentos que antecederam as grandes revolu-
cões sociais da história. Somente no terceiro dia de conflitos, a polícia
conseguiu controlar a situação na cidade. Enquanto isso, novos
saques e depredações ocorriam em outras cidades importantes, mas
sem o grau de violência visto em São Paulo, onde centenas de
pessoas foram presas ou saíram feridas dos distúrbios.
Com a situação controlada, as forças políticas começaram a fazer
um balanço dos acontecimentos, propondo alternativas e trocando
acusações. O governo federal, que colocara o Exército de prontidão,
apontou a hesitação do governador Franco Montoro ao lidar com os
manifestantes. O PMDB, partido de Montoro, culpou os grupos
radicais ligados ao PT. O PCB (aliado ao PMDB) acusou os “infiltra-
dos” de direita, que queriam desestabilizar o governo estadual recém-
eleito. O PT, por sua vez, culpou a política recessiva do governo
federal, Todos os partidos de oposição, porém, concluíram que era
necessário propor um novo modelo político para o país; caso con-
trário, tais acontecimentos iriam se repetir de forma mais grave e
incontrolável.
Entre tantas avaliações sobre o episódio, vale a pena citar uma
opinião simples e direta de um transeunte que presenciou o motim,
colhida pela Folha de S.Paulo, de 5 de abril de 1983: “Nunca vi nada
igual nesta vida. É a guerra da fome”.

A esquerda toma a Iniciativa: greve


geral e eleições diretas para
presidente
A gravidade da crise social e da desagregação política
e econômi-
ca do país, cujo exemplo mais dramático tinha sido à rev
olta de
desempregados em São Paulo, foi um estímulo
para que a esquerda
tentasse assumir a vanguarda do processo de tra
nsição democrática,
Os acontecimentos de abril não só desgastaram
o governo federal e o
92
atingiram a imagem dos governadores
regime militar como também
s s e s g o v e r n a d o r e s p e l o u s o da
do PMDB recém-eleitos. A opção de revelou a
aos distúrbios de rua
repressão policial no combate
l, de p r o p o s t a s m a i s es tr ut ur ai s,
po r pa rt e da o p o s i ç ã o li be ra
ausência, p r e g o . C o m is so , o PT e
m a d o d e s e m
capazes de administrar o proble r as
radicaliza
sociais como um todo resolveram
os movimentos
p o s t a s de t r a n s i ç ã o .
pro v o c a ç ã o de u m a g r eve
d a fo i a c o n
A primeira iniciativa mais ousa de ju lh o
ç ã o de 24 hor a s , m a r c a d a pa ra 21
gera l de pr ot es to , c o m d u r a
p r o v e i t a d a pa ra à c r i a ç ã o da C e ntral Única dos
de 1983. A data seria a s s i n d i c a i s l i g a d os
ã o d o s m o v i m e n t o
Trabalhadores (CUT), organizaç a l ú r g i c o s de S ã o
S i n d i c a t o d o s M e t
10 novo sindicalismo, inspirado no o P a u l o , en tr e
o o s B a n c á r i o s de S ã
Bernardo e Diadema e no Sindicat d e c o n ô m i c a do
o p r o t e s t o er a à po lí ti ca
outros. O alvo principal d r o f u n d o da
i s s ã o ao FM I. O s e n t i d o m a i s p
governo federal e sua subm r a O r e g i m e
p l i a r o ei xo de lu ta s c o n t
greve geral era evidente: am t i c a n o qu al
c e s s o de t r a n s i ç ã o d e m o c r á
militar e tentar impor um pro
g a n i z a d a ti ve ss e m a i o r in fl uê nc ia .
a sociedade civil or rc ia l d o s
h a c o n t a d o c o m a a d e s ã o pa
A greve geral, embora ten s i c a r a m
u s s ã o so ci al . As g r a n d e s c i d a d e f
trabalhadores, teve reperc r r ê n c i a de
p o p u l a ç ã o ti nh a m e d o da o c o
vazias, sobretudo porque a s ã o fo i de
ru a. E m S ã o B e r n a r d o , a a d e
novos saques e conflitos de e gn if ic at iv a, O
s ã o po li ci al fo i i g u a l m e n t si
quase 100%, mas a repres . O g o v e r n o
as ao g o v e r n a d o r M o n t o r o
que provocou muitas crític g r e v e ge ra l, di-
i z a r à i m p o r t â n c i a po lí ti ca da
federal procurou minim n s a, tentan-
u m fr ac as so . A g r a n d e i m p r e
vulgando que ela tinha sido e s s o d e tr an si -
libe ra is s o b r e o p r o c
do evitar a perda de controle dos nto. De e
é m t e n t o u m i n i m i z a r o m o v i m
ção que se anunciava, tamb c o n s e g u i d o c o n v o c a r
e i r a , o m o v i m e n t o sind ic al h a v i a
q u a l q u e r m a n
o qu e pa rc ia lm en te , um a gr ev e de amplo alcance, de
e realizar, me sm
im ei ra de sd e 19 64 . Ai nd a em 19 83,
caráter notadamente político, à pr ic as
ar ou tr as pa ra li sa çõ es na s fá br
os metalúrgicos voltariam à realiz am oc or rido
is úl ti mo s an os nã o ha vi
do ABC paulista, já que nos do av a rom-
, O mo vi me nt o si nd ic al te nt
greves da categoria. Desse modo in co rporar
caçõ es sa la ri ai s is ol ad as e
per os limites de suas reivindi ti ca na ci on al.
pl os , li ga do s à po lí
temas econômicos mais am de es quer-
im po rt an te s da op os iç ão
Dentre as diversas iniciativas para presidente teve
popular pelas eleições diretas
da, q campanha
o pa ra o fi m do re gi me . O pr im ei ro
um forte significado simbólic de 19 83 , em fr en te
para O dia 27 de no ve mb ro
comício foi convocado
95
ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, e teve a adesão de setenta
entidades civis, entre partidos, movimentos sociais e organizações
profissionais. O PMDB apoiara a iniciativa, mas nada fez para for-
talecer a convocação, com receio de perder o controle do processo
de transição. O partido, que tinha se tornado um agente político
importante depois das eleições de 1982, preferiu apostar na articula-
ção de bastidores e na pressão indireta da opinião pública, via
imprensa. Ocorre que a adesão popular à campanha cresceu rapida-
mente e, um dia antes de um grande comício em São Paulo, oito
govemadores de oposição, liderados por Montoro, Tancredo e Brizo-
la, assinaram um manifesto pela volta das eleições diretas para o
próximo presidente do Brasil. Contudo, Tancredo Neves (então
governador de Minas Gerais) tinha deixado claro, em declarações à
imprensa alguns dias antes, que o mais importante era garantir o
consenso nacional em torno do nome do próximo presidente, mesmo
que fosse preciso adiar as eleições diretas.
O comício paulistano reuniu cerca de 10 mil pessoas, a maioria
militantes ou simpatizantes do PT. Um de seus oradores, o líder
sindical e partidário Luís Inácio da Silva, o Lula, declarou: “Ou o povo
se une e vai à praça pública exigir democracia ou ele não conseguirá
conquistá-la”. Jair Meneghelli, presidente da recém-fundada CUT,
previu que a campanha popular pelas eleições diretas, coordenada
pela oposição de esquerda, menos disposta a negociar com o
governo, tenderia a crescer a cada comício. Preocupada com essa
possibilidade, a oposição liberal precisou rever sua estratégia de
negociação institucional sem mobilização popular nas ruas, sob pena
de perder o controle do processo de transição.
O PMDB tomou para si a tarefa de organizar os próximos
comícios e liderar uma grande frente política pelas eleições diretas.
Um de seus parlamentares, o deputado mato-grossense Dante
de
Oliveira, deu entrada no Congresso a um projeto de emenda
constitu-
cional que propunha a volta, já para o sucessor de Figueiredo,
das
eleições diretas para presidente da República. O regime militar
não
tinha como impedir a entrada da proposta, mas usaria todos
os meios
para que a oposição não conseguisse os dois terços de
votos
necessários no Congresso para sua aprovação, Enquanto isso, a
oposição esperava Usar a pressão das ruas para sensibilizar
os
deputados e senadores acerca da vontade geral na
nação. Em meio a
esse jogo de forças nascia uma das mais impres
sionantes campanhas
políticas da história brasileira: as Diretas-já.

94
Fac-sinih
do panfleto convocatorto do
primeiro grande comício pelas eleições
diretas, em janeiro de 1984.

“O coração do Brasil bate nas ruas”


No dia 12 de janeiro de 1984, na cidade de Curitiba (PR), já com
o apoio da máquina peemedebista, ocorreu o comício pelas eleições
diretas que deu início efetivo à campanha das Diretas-já propriamen-
te dita. Cerca de 50 mil pessoas compareceram ao calçadão do centro
da cidade. Os comícios pelas diretas eram organizados como se
fossem shows ao ar livre. Artistas, jogadores de futebol, personalida-
des públicas em geral e lideranças partidárias se sucediam no pa-
lanque. Normalmente, os comícios terminavam com Os discursos das
lideranças nacionais mais importantes, como Ulysses Guimarães,
Franco Montoro, Leonel Brizola e Luís Inácio Lula da Silva.
O comício de São Paulo, em 25 de janeiro, data de fundação da
cidade, teve a presença de mais de 200 mil pessoas e ganhou grande
espaço na imprensa.
Esse comício surpreendeu os próprios organizadores da campa-
nha. O comparecimento em massa do público, ainda que houvesse
uma grande propaganda do evento, revelou uma vontade de par-
ticipação do cidadão comum (ou seja, aquele não ligado organica-
mente à entidades civis ou a organizações políticas) e uma conso-
lidação dos valores democráticos como eixo da política nacional. A
ocupação das ruas pelo cidadão, como vimos, era uma afronta aos
princípios da Doutrina de Segurança Nacional. O regime militar
sempre se esforçara para despolitizar e controlar o espaço público;
assim havia sido nas passeatas de 1968, nas passeatas estudantis de

95
a
A
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1977, nas greves operárias e nos atos públicos organizados pelos
movimentos sociais. Para os personagens que não tinham espaço
institucional na política de abertura, ocupar as ruas era uma forma.
ainda que simbólica, de exercer a cidadania e protestar contra os
rumos históricos da nação.
O govemo federal, ao tentar diminuir a importância das manifes-
tações, chegava a ridicularizar os participantes dos comícios. afirman-
do que o seu comparecimento em massa era devido ao show de
cantores populares. Com isso, só aprofundava seu isolamento politi-
co. Apesar de tudo, Figueiredo se comprometia, formalmente. à
respeitar e a fazer cumprir a decisão do Congresso acerca da Emenda
Dante de Oliveira, o que não significava que o regime não usaria
todos os meios de coerção para tentar influenciar à votação.
Paralelamente à campanha das diretas, o PDS se agitava para
escolher o candidato à sucessão de Figueiredo. Dois nomes, basi
ca-
mente, disputavam a indicação do partido: o ex-governador
de São
Paulo, Paulo Maluf (apoiado por Golbery e pelos castelistas), e
o ex-
ministro Mário Andreazza (ligado ao grupo medicista e apoi
ado por
Figueiredo). Maluf acabou ganhando a prévia do partido,
tornando-se
candidato a presidente. A indicação do ex-governador, na
época um
dos políticos mais impopulares do Brasil, acabou complican
do ainda
mais à situação política do regime. De qualquer forma,
o próprio PDS
acabou por enterrar a possibilidade do continuísmo
militar, pois
Mário Andreazza, o derrotado, era um militar
da reserva ligado
diretamente aos interesses do chamado “grupo
palaciano” (aglutina-
do em torno do ex-presidente Médici).
Entre fevereiro e março de 1984, a campanha
das Diretas-já se
espalhara pelo país. Em todas as principais cida
des foram realizados
grandes comícios, reunindo enorme contingente
de manifestantes.
Alguns dados revelam a dimensão da campanha
: Belém, 60 mil: Belo
Horizonte, 300 mil: Rio de Janeiro, 200 mil: Recife,
80 mil. A imprensa
enumerou diversos eventos organizados
espontaneamente pela po-
pulação, em torno do tema das Diretas-já:
bailes de carnaval, carrea-
tas, churrascadas, cerimônias de
formatura, partidas de futebol,
exposições de arte, etc. Nos escritórios e
fábricas, os trabalhadores
compareciam ao trabalho trajando vest
imenta ou portando uma fita
amarela — cor simbólica da campan
ha — e broches e camisetas
com
"m meados de março, tendo percebido o impacto do movimento,
aos gove rnad ores Fran co Mont oto e
alguns setores do PMDB ligados
Tancredo Neves decidiram se afastar e não mais incentivar as manifes-
ações de rua. Políticos ligados ao governo federal e setores das Forças
acen aram com à poss ibil idad e de uma tran siçã o negociada
Armadas
der civil, apoi ando a cand idat ura de Tanc redo Neve s no
para O Pt
Eleit oral, em troca do fim da camp anha das diret as. Em
Colégio
am que
declarações à imprensa na época, Tancredo e Montoro anunciar
não iriam mais participar dos comícios pró-diretas. No caso de Monto-
ro, à despeito da discordância de sua assessoria mais próxima, as bases
do PMDB conseguiram que ele voltasse atrás em sua decisão. De
qualquer forma, ficava claro que as mesmas forças políticas que haviam
lançado a campanha estavam agora receosas de suas consequências.
Um dos temores da oposição liberal era de que a campanha de rua
dificultasse a saída negociada dos militares no poder.
Apesar das tentativas de dissolver o ímpeto da campanha, a
sociedade manteve a ocupação das ruas e o fôlego do movimento.
Com a definição da data da votação da Emenda Dante de Oliveira
para o dia 25 de abril, a campanha cresceu ainda mais, empolgando
aqueles que ainda não tinham ido às ruas. O comício do dia 10 de
abril, no Rio de Janeiro, foi um exemplo. Uma impressionante
multidão, calculada em 1 milhão de pessoas, promoveu um verdadei-
ro “carnaval da democracia”, como foi qualificado na época. Fanta-
sias, faixas e cartazes bem-humorados, bandas de música, discursos,
palavras de ordem — todos os recursos foram utilizados para reivin-
dicar diretas-já. Uma das faixas dizia: “Se alguns pediram 64, agora
todos pedem diretas”. A tese, tão cara à Doutrina de Segurança
Nacional, de que a politização das ruas gera necessariamente distúr-
bios da ordem pública, ficava definitivamente afastada. O SNI e a
Polícia Federal tentaram incutir medo entre aqueles setores que,
mesmo opositores ao regime, viam com reservas as ações da esquer-
da, “denunciando” a presença de “agitadores” nos comícios, simboli-
zados pelo uso das bandeiras vermelhas. Os anos de propaganda
ideológica tinham conseguido que a parcela mais despolitizada
acreditasse que esses grupos fossem uma ameaça para o país. Apesar
dessa tentativa de contrapropaganda, a festa cívica das Diretas-já
contagiava a maior parte da sociedade brasileira, que a essa altura
não depositava nenhuma confiança no regime.
O governo tentou retomar a coordenação do processo político,
lançando outra emenda constitucional, alternativa à emenda da
97
i
oposição e na qual se propunham algumas reformas liberalizantes na
TE

estrutura politica e jurídica, marcando as eleições diretas para


HR

presi-
dente somente para 1988.
Cao
do

No mesmo dia em que o governo


o

propunha essa alternativa


CE

constitucional, visando esvaziar a oposição, a cidade de São Paulo


colocava cerca de 1 milhão de manifestantes no centro de São Paulo,
aumentando ainda mais a euforia em torno das Diretas-já e deixan
do
claro que a maior parte da sociedade civil não concordava com
à
emenda proposta pelo regime. Percebendo que a man
obra jurídica
ão teve o efeito desejado, o governo decretou estado de
emergência
em Brasília, ocupando militarmente a cidade e reprimind
o qualquer
manifestação pública, além de censurar as emissoras de rádi
o e TV. O
presidente Figueiredo ameaçava com o retrocesso, dizendo-
se impo-
tente para garantir a abertura, caso a emenda fosse
aprovada: “A
aprovação da Emenda Dante de Oliveira poderá provoc
ar um novo
04 ao país” (Folha de S.Paulo. 19-4-84, p. 4). Em
contrapartida, seto-
res da oposição admitiam negociar com o governo.
Em Minas Gerais,
o governador Tancredo Neves, nome confiável
segundo o general-
presidente, mandou reprimir um comício que se
realizava na histórica
cidade de Ouro Preto, no dia de Tiradentes.
Ariovaldo dos Santos/Agência JB

Comício das Diretas- Já em São Paulo,


1984.

98
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Com a chegada do dia da votação da emenda das Diretas-já, 25 de
abril, as entidades de oposição realizaram uma vigília cívica em todo
o país, dO longo da madrugada, horário da votação em Brasília. Para
4 frustração geral da nação, uma parte dos deputados, liderada pelo
candidato do regime, Paulo Maluf, boicotou a votação, impedindo
que o Congresso atingisse o quórum mínimo para aprovar a emenda.
Mais do que a Emenda Dante de Oliveira, a maioria dos brasileiros foi
derrotada.
Nos meses que se seguiram à derrota das diretas, em meio à
frustração da sociedade mais organizada, realizaram-se inúmeras ne-
gociações de bastidores e articulações partidárias. Uma parte do PDS
retirou seu apoio ao governo, formando a Frente Liberal. Essa, junto
com o PMDB, apresentou uma chapa, considerada extremamente
conservadora, para disputar a votação no Colégio Eleitoral, marcada
para janeiro de 1985: Tancredo Neves para presidente e José Sarney
— um aliado histórico do regime que se tornara dissidente de última
hora — para vice. Uma tentativa de reeditar a grande campanha po-
pular foi feita pela imprensa e pelos partidos liberais, e boicotada pela
oposição de esquerda, cujo principal porta-voz, o PT, se recusou a
comparecer ao Colégio Eleitoral (embora aí só tivesse seis votos).
Em janeiro de 1985, a chapa Tancredo-Sarney conseguiu uma
vitória esmagadora contra Paulo Maluf. O presidente vitorioso, que
não chegaria a tomar posse devido a problemas de saúde, prometia o
advento da Nova República e o encerramento do ciclo dos militares
no poder. Era o começo de uma “transição democrática”, produto da
saída negociada dos militares. Mesmo acusada pela esquerda de ser
uma opção conservadora, a Nova República prometia a redemocrati-
zação não só do Estado, mas também da sociedade brasileira.
Se a transição democrática começou contrariando a vontade de
milhões de brasileiros que não puderam influenciar no destino
político imediato do país, os valores democráticos exercitados nos
últimos anos do regime pela oposição civil como um todo marcaram
época e foram o contraponto das dinâmicas políticas do regime.
Aquela derrota não poderia apagar a presença de amplos setores da
sociedade que desejavam participar, após 21 anos de coerção social e
política em nome da Segurança Nacional, Como escreveu na Folha de
S.Paulo (de 26 de abril de 1984) o jornalista Fernando Gabeira,
testemunha dos acontecimentos de Brasília: “O coração do Brasil não
está aqui [nos palácios de Brasílial, o coração do Brasil está nas ruas.
nas fábricas, nos escritórios, nas escolas...”.

99
Conclusão

o longo dos 21 anos de regime militar, “o coração” do


Brasil sempre bateu muito forte. Por expectativa, medo,
esperança, tristeza ou por alegria. Ao contrário do que
muitos pensam, esse coração nunca deixou de bater. A
imagem de passividade ante o autoritarismo do Estado, tantas vezes
repetida, não corresponde à realidade histórica efetiva, como tenta-
mos demonstrar neste livro. A parte da sociedade brasileira compro-
metida com a democracia, em seus diversos matizes, não só lutou
contra o Estado autoritário como foi obrigada a encarar os valores
autoritários presentes nas relações sociais como um todo. Nesse
sendo, tentou lutar pela superação do autoritarismo a partir das
relações cotidianas e contra estruturas sociais muito enraizadas.
Podemos dizer que, durante a luta contra um regime autoritário, a
sociedade civil percebeu que o autoritarismo não é só um fenômeno
do Estado, mas está presente nas relações de trabalho, nas relações
familiares, nas relações entre os diversos segmentos e grupos sociais.
Ao lutar pela democracia, a sociedade brasileira percebeu que
deveria democratizar suas estruturas mais profundas. A experiência
das lutas civis contra o regime militar parece ter acabado com a
crença de que uma mudança sob a hegemonia das elites tradicionais,
sem participação popular efetiva, no plano do Estado, iria refletir-se
automaticamente nas relações sociais como um todo. A difícil transi-
ção democrática, que não resolveu os problemas básicos da socieda-
de brasileira, só veio comprovar essa percepção.
Justamente para verificar que noções de democracia emergiram
dessa transição, faz-se cada vez mais necessário conhecer mais
e
melhor o regime militar brasileiro, discuti-lo, criticá-lo. Entendê-lo,
sobretudo, do ponto de vista histórico, para neutralizar
os saudosistas
autoritários, que tendem a lembrar-se com nostalgia
da época da
100
dê -l o pa ra al ém do s lu ga re s- co mu ns e das pa la vr as de
a d u r a . E n t en
d i t
em su a co mp le xi da de , em su as co nt ra di çõ es .
r d e m . E n t e n dê- lo
o ti vo s da qu el a
mo s re sg at ar as pe ct os po si
Com isso não pretende s. Lo n-
ta rd ia me nt e se us as pe ct os ne ga ti vo
expe «iência, ou denunciar br e co mo foi
é es ti mu la r um a re fl ex ão so
ge dissc » nosso objetivo sil ,
au to ri ta ri sm o pol íti co no Bra
possível um tempo tão longo de equên-
soc iai s ma is am pl as , qu ai s as co ns
quais as suas implicações de ve ser vir
tór ia bra sil eir a. Ess a pe rs pe ct iv a
cias d e fundo para a his e gr au de
pr ob le ma s co nc re to s e atu ais : qu
para analisar e superar ns en so € O
c e u a s i n s t i t u i ç õ e s? Co mo uni r o co
autoritarismo permane n
ce ss ár io s a qu al qu er de mo cr ac ia , se m am ea çá-
conflito, dois pólos ne do
sa fi os so ci oe co nô mi co s qu e vê m di fi cu lt an
la? Como superar os de mo-
da ni a? Co mo re al iz ar a dif íci l ta re fa de de
a consolidação da cida
es po lí ti ca s, ma s o ac es so à ri qu ez a na ci on al ?
cratizar não só as decisõ
mi li ta r é nã o só en te nd er um mo me nt o
Entender o regime
ia , ma s il um in ar qu es tõ es qu e no s pe rt ur -
específico de nossa histór
ia li za da s pe la pr ox im id ad e cr on ol óg ic a da -
bam ainda hoje, potenc
ên ci a. Po r iss o, ele nã o po de ser es qu ec id o.
quela experi
da s op in iõ es é de qu e o re gi me mil ita r, be m ou mal,
A maioria
ec on om ic am en te fa la nd o. Po de rí am os ac re s-
deixou o Brasil mais rico,
ra o be m ou pa ra O ma l, o re gi me mi li ta r de ix ou
centar outro legado: pa
o. Ta lv ez es sa pe rd a de ro ma nt is mo , ai nd a qu e
o Brasil menos romântic
re ve rt id a em no vo s ho ri zo nt es de co nh ec im en to
traumática, possa ser
a pl en a re al iz aç ão do ide al de mo cr át ic o no se io da
e ação, visando
a. E iss o vai de pe nd er ta mb ém de vo cê .
sociedade brasileir

101
Cronologia

Ds

1961
* Renúncia do presidente Jânio Quadros (PTN-UDN). Seu vice, João
Goulart (PTB), não é aceito pelos militares, por ser visto como um
esquerdista. A solução para a posse é a adoção do parlamentaris-
mo, no qual o presidente fica com os poderes diminuídos.

1964
* Após a tentativa de implementar medidas como a reforma agrária e
a nacionalização de algumas empresas, bem como incentivar a
democratização interna das Forças Armadas, João Goulart é depos-
to por um golpe militar apoiado por civis, em 31 de março. Sobe ao
poder o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.

1967
* Promulgação da nova Constituição. Posse do marechal Ar
tur da
Costa e Silva como presidente. Parte da esquerda brasilei co
ra meça
a organizar a luta armada contra o regime.

1968
* À crise estudantil chega ao ápice. Entre março e outu
bro explode
um grande movimento de massa, apoiado por muit
os setores da
sociedade civil. Organizam-se os primeiros grupos gu
errilheiros
contra o regime. Em 13 de dezembro, o govern pr
o omulga o Al-5,
que lhe dá plenos poderes para reprimir os opositores
.
1969
* Posse do general Emílio Garra
stazu Médici, após o afastament de
Ped
ro Aleixo, vice-presidente civil de Cost e o
a Silva, Reorganiza-se a
repressão policial e estabelece-se a cens
ura q todos os meios de
comunicação.

102
1975
+ Desmantelamento total dos últimos grupos guerrilheiros de esquer-
da. Auge do “milagre econômico”.

1974
e Posse do general Ernesto Geisel, prometendo “distensão” (liberali-
zação do regime e relaxamento da repressão). A economia começa
a dar sinais de crise. O governo (Arena) sofre uma derrota significa-
tiva nas eleições parlamentares.

19:77
e Primeiras manifestações públicas de massa contra o regime militar,
organizadas pelo movimento estudantil, depois do A-5S. O movi-
mento operário volta a se pronunciar publicamente contra a política
de arrocho salarial. Em outubro, o general Sílvio Frota, ministro do
Exército e contrário à política de abertura, tenta organizar um gol-
pe contra Geisel.

1978
e Em maio eclode uma greve-surpresa nas fábricas do ABC paulista.
O líder metalúrgico Luis Inácio da Silva, o Lula, torna-se O porta-voz
da oposição dos trabalhadores ao regime. O governo anuncia o fim
do AlI-5, prometendo continuar a abertura no próximo governo.

1979
e Crescimento da oposição contra o regime. A crise econômica é um
fato consumado. O movimento sindical e o movimento popular
organizam grandes manifestações. Em março/abril, quando da
posse do general João Baptista Figueiredo como presidente, uma
grande greve paralisa o ABC paulista. O governo anuncia à anistia
aos presos políticos, após um grande movimento popular. Inicia-se
a reforma partidária, que acaba com o bipartidarismo, vigente
desde 1966, estabelecendo o pluripartidarismo,

1980
* O movimento operário, o movimento popular e as esquerdas
(menos o PCBe o PCdoB) decidem criar o Partido dos Trabalhado-
res. Eclode a grande greve de 41 dias no ABC, transformando-se
num dos maiores conflitos políticos entre o regime militar e a
sociedade civil. Todas as lideranças são presas, mas quem sai

105
desgastado é o governo. Ocorre uma série de atentados de extrema
direita contra entidades civis e bancas de jornais que vendiam
jomais de esquerda.

1982
Primeiras eleições diretas para governador de Estado. A oposição
(PMDB) sai vitoriosa na maioria dos Estados. |

1983
Auge da crise econômica, da recessão e do desemprego. O Brasil
pede dinheiro ao Fundo Monetário Internacional. Fundação da
Central Única dos Trabalhadores. Desempregados realizam saques
e depredações em várias capitais do país. Em novembro é lançado
o movimento por eleições diretas para presidente.

1984
Entre janeiro e abril, milhões de pessoas saem às ruas para protestar
e exigir a volta das eleições diretas para presidente da República.
No dia 25 de abril, a emenda constitucional proposta pelo deputado
Dante de Oliveira é rejeitada pela maioria conservadora do Con-
gresso. comandada pelo candidato indireto Paulo Maluf. A oposi-
ção, liderada pelo PMDB, decide participar da eleição indireta no
Colégio Eleitoral, lançando Tancredo Neves para presidente e José
Sarney para vice. Os militares negociam sua saída do poder. Uma
das condições é a não-punição daqueles que praticaram torturas.

1985
A oposição vence no Colégio Eleitoral. Tancredo Neves adoece
antes da posse, vindo a falecer pouco depois. José Sarney, na
condição de vice, toma posse como o primeiro presidente civil do
Brasil desde 1964. Fim do regime militar, Nasce a Nova República.

104
Bibliog pafia comentada

DG

BRASIL NU NC A MAI S: UM RE LA TO PAR A A HIS TÓR IA. 12. ed. São Pau lo/
Petrópolis: Arquidiocese de São Paulo/Vozes, 1985.
Este livro é o resultado de um levantamento minucioso €
rig oro so rea liz ado com o apo io da Igre ja Cat óli ca, que tor nou
públicos os mecanismos de repressão e tortura à presos políticos. É
um imp ort ant e doc ume nto que rev ela com det alh es o “te rro r de
Estado” montado pela ditadura militar brasileira.

D'ARAUJO, Maria Celina et alii (orgs.). Visões do golpe. A memória militar


sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
Reunindo depoimentos de militares envolvidos no golpe de
1964. este livro mostra o outro lado daquele momento histórico: a
memória que foi construída pelos membros das Forças Armadas.

DREIEUSS, Rene. 1964: a conquista do Estado (ação política, podere golpe de


classe). Petrópolis: Vozes, 1981.
O livro do cientista político Rene Dreifuss já é um clássico sobre O
golpe militar de 1964. Mostra o papel do IPES na desestabilização do
governo Jango e na montagem do projeto de Estado e sociedade
implantado após 1964. Enfatiza o papel conspirativo das “classes empre-
sariais”, ligadas ao capitalismo internacional, na elaboração do golpe.

GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? Rio de Janeiro: Codeeri, 1979.


Outro clássico sobre o contexto dos primeiros anos da ditadura, só
que a partir de uma visão mais pessoal e memorialista. Gabeira foi
guerrilheiro, esteve envolvido no sequestro do embaixador norte-ameri-
cano, foi preso e esteve no exílio por dez anos. Sua rica experiência
pessoal é aqui transformada no motor de sua reflexão histórica e política,

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1990.


Jacob Gorender foi outro militante da esquerda perseguido
pelo regime militar. Neste livro, ele mescla sua experiência pessoal
com o olhar do historiador e realiza um interessante levantamento

105
E O ES ES TS
Er RR e PR E sm 2. o
eai neo PR um diicênio PER TR

das organizações de esquerda e das formas de repressão do govemo. Livro


importante para conhecer as organizações de esquerda entre 1964 e 1970.

IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1971.
Este livro, também fundamental, é uma análise sociológica e
econômica da crise da “democracia populista” no Brasil, em que
tenta explicar o sucesso do golpe militar a partir das contradições
sociais e hesitações políticas do populismo brasileiro, sobretudo nos
seus últimos anos.

RUCINSKI, Bernardo. Jornalistas'e revolucionários. Nos tempos da im-


prensa alternativa. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.
Livro fundamental para conhecer não só a imprensa dita
“altemativa” durante o regime militar, cujo papel foi muito importan-
te na resistência democrática, mas também as organizações de
esquerda dos anos 70, após a derrota da luta armada.

MARTINS Fino, João Roberto. O palácio e a caserna: dinâmica militar das


crises políticas na ditadura (1964-69). São Carlos: UFSCar, 1995.
O professor e cientista político J. Roberto Martins Filho, autor de
trabalhos importantes sobre o movimento estudantil, destaca aqui o
papel dos grupos militares na dinâmica política do regime militar,
procurando sair da visão bipolar, que divide os militares entre
“castelistas liberais” e “linha dura”. Usando muitos documentos inédi-
tos, ele demonstra o grau de complexidade do jogo político interno,
que muitas vezes interferia no destino do país como um todo.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Exp


eriên-
cias e lutas dos trabalhadores na Grande São Paulo, 1970-1
980, Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
Livro importantíssimo que relata as formas de resistência
popu-
lar a partir dos movimentos sociais urbanos durante à dit
adura. Eder
Sader demonstra o papel fundamental que esses movimento
s tiveram
na reorganização das formas de luta democrática
que marcou os
anos 70 e 80 no Brasil.
TELLES, Vera S, “Anos 70: experiências, prática e espa
ços coletivos”. In: Kowarick,
L (org). As lutas sociais e a cidade Rio de Janeiro:
Paz e Terra, s/d.
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não
terminou. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.

106
a

e
a
s
Discutindo o texto
a uso eo sor

1. O que caracteriza a democracia populista brasileira? Por que esse


regime era submetido a constantes crises políticas?

2. Por que o presidente João Goulart não era bem visto pelos
setores conservadores da sociedade brasileira?

3, Quais eram as propostas gerais das Reformas de Base do governo


de João Goulart? Por que estão relacionadas ao golpe de Estado
de 1964?

4. Quais foram os principais grupos conspiradores que prepararam


o golpe?

S. Na sua opinião, e com base na leitura do texto, é possível afirmar


que o golpe militar de 1964 está relacionado ao contexto da
Guerra Fria? Justifique.

6. O que era a Doutrina de Segurança Nacional?

7. O governo Castelo Branco (1964-1967) se caracterizou pela


tentativa de criar uma nova institucionalidade que legitimasse o
regime militar. Quais foram as principais medidas do governo
nesse sentido?

8. Como o regime militar pretendia lidar com os conflitos sociais?

uma fac ção da esq uer da bra sil eir a opt ou pel a gue rri lha
9. Por que
como forma de combater o regime?

10. Por que o governo promulgou o Ato Institucional nº 5? Por que


essa lei marcou uma nova fase do regime militar?
107
A partir de 1969, a censura e a repressão policial se tornaram
di;
ainda mais sistemáticas. Com base na leitura do texto, comente
essas medidas de controle das oposições e da sociedade como
um todo.

. Como o governo Médici administrou a economia brasileira e por


que o crescimento econômico naquele período foi importante
para que o regime militar conseguisse o apoio de parte da
população?

15. O que foi a política de abertura? Por que o regime militar propôs
essa política?

14. Em que medida o contexto autoritário dos anos 70 se relaciona


com o surgimento de movimentos sociais urbanos, que acabaram
se transformando em pólos de oposição ao regime?

- Por que 1979 foi um ano-chave dentro do período militar?

- O que foi a campanha pela anistia?

- Por que o modelo econômico patrocinado pelo regime militar


acabou provocando uma grande crise no começo dos anos 80?

18. E possível afirmar que, no final do período militar, as divergên-


cias entre a oposição liberal (liderada pelo PMDB ) e a oposição
de esquerda (liderada pelo PT e pelos movimentos sociais como
um todo) ficaram mais nítidas? Quais foram as consequências
dessa divisão no contexto da campanha das Diretas-já?
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
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