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CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
M
2020
1
Autora: Ana Beatriz Azevedo Farah
2
Resumo
Embora o tricô seja uma arte milenar, e apesar de haver um número expressivo
de pesquisas sobre o tricô no campo da produção têxtil, no qual o tricô é visto como
produto, há relativamente poucos estudos sobre o processo de tricotar manual,
principalmente no contexto português. Dessa maneira, o enfoque dessa investigação é
ouvir as mulheres que tricotam em grupo e poder compreender qual a importância que
tanto o tricô, quanto o grupo, apresentam nas suas vidas. Assim, foi formulada a
seguinte pergunta inicial: “Qual a importância do grupo, das partilhas e das atividades
expressivas na vida das mulheres, e como estes podem ser considerados como
educação comunitária, além de contribuir para o empoderamento pessoal de cada uma
delas?”
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Abstract
Even though knitting is an ancient art and much research has been done on
knitting in the field of textile production where the knit items are seen as products, there
are relatively few studies on the process of manual knitting, mainly in the Portuguese
context. Thus, the focus of this investigation is to interview women who knit in groups in
order to understand the importance that both knitting and the group presents in their
lives.
To reach this goal, the following initial question was asked: "What is the
importance of group sharing and expressive activities in the lives of women, and how
can they be considered a form of community education that also contributes to the
personal empowerment of each one of them?" In order to find the answer to this
question, a qualitative interpretative phenomenological study was carried out. The
collection instrument was the semi-structured online interview with nine participants,
between the ages of twenty-two years and sixty years, all of whom perform manual
activities and participate in knitting groups. The interviews were transcribed fully and, to
preserve the anonymity of the participants, all names were changed and any information
that could facilitate their identification was omitted. Thematic analysis was used for data
analysis.
The thematic analysis revealed that knitting was very important in the lives of the
participants, promoting well-being and relaxation. The knitting groups are a place where
people, mostly women, live together and share not only techniques and knowledge linked
to the knitting process, but personal experiences as well. Since no one person is
responsible for teaching, they all teach and learn from each other, referring to the
concept of community education. Although this group of women is capable of turning
yarn into fabric, most of the participants do not recognize themselves as empowered
women or the group as a possible form of resistance against the difficulties that
women encounter in their daily lives.
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Résumé
Bien que le tricot soit un art ancien, et bien qu'il existe un nombre expressif de
recherches sur le tricot dans le domaine de la production textile, dans lequel le tricot est
considéré comme un produit, il existe relativement peu d'études sur le processus de
tricot manuel, principalement dans le contexte portugais. Ainsi, l'objectif de cette enquête
est d'écouter les femmes qui tricotent en groupes et de pouvoir comprendre l'importance
que le tricot et le groupe présentent dans leur vie. Ainsi, la question initiale suivante a
été posée: “Quelle est l'importance du groupe, des partages et des activités expressives
dans la vie des femmes, et comment peuvent-elles être considérées comme une
éducation communautaire, en plus de contribuer à l'autonomisation personnelle de
chacune d'elles?”
Afin de trouver les réponses à cette question, une étude phénoménologique
interprétative qualitative a été menée. L'instrument de collecte était l'entretien en ligne
semi-structuré, avec neuf participants âgés de vingt-deux à soixante ans, qui effectuent
tous des activités manuelles et participent à des groupes de tricot. Les entretiens ont été
transcrits intégralement et, afin de préserver l'identité des participants, leurs noms ont
été modifiés et toutes les informations qui facilitaient leur identification ont été omises.
Une analyse thématique a été utilisée pour l'analyse des données.
L'analyse thématique révèle que le tricot est d'une grande importance dans la vie
des participants, favorisant le bien-être et la relaxation. Dans les groupes de tricot, il y a
partage de techniques, de connaissances, liées au processus de tricot, mais aussi
d'expériences personnelles, étant un lieu où les gens, principalement des femmes,
vivent ensemble. Comme il n'y a pas une seule personne responsable des
enseignements, tous enseignent et apprennent les uns des autres, en se référant au
concept d'éducation communautaire. Bien qu'il s'agisse d'un groupe de femmes
capables de transformer un fil en maille, la plupart des participantes ne se reconnaissent
pas comme une femme autonomisée, ni le groupe comme une forme possible de
résistance contre les difficultés que les femmes rencontrent dans leur vie quotidienne.
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Agradecimentos
Meu sincero muito obrigada aos professores por partilharem os seus saberes e,
principalmente, minha orientadora Professora Doutora Isabel Menezes, cujo apoio,
incentivo e compreensão foram fundamentais para a realização deste trabalho.
Agradeço também aos profissionais da FPCEUP que ajudaram-me nos momentos em
que precisei.
Meu muito obrigada à Renata, minha prima-irmã, comadre, por todo apoio e pelo
Pedro, meu afilhado, quem eu amo de paixão.
Obrigada aos meus irmãos, por todo suporte. À minha mãe, minha sincera
gratidão, por tudo que fez e faz por mim. Ao meu pai, que no início dessa minha jornada
voou para longe, agradeço por ser sua filha e pelos ensinamentos.
6
Índice de Apêndices
7
Índice
Resumo............................................................................................................................. 3
Abstract ............................................................................................................................. 4
Résumé............................................................................................................................. 5
Agradecimentos ................................................................................................................ 6
Índice de Apêndices ......................................................................................................... 7
Índice ................................................................................................................................ 8
Introdução ....................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – Mulheres e a luta pelo seu espaço, poder e liberdade ........................ 12
1.1 - O papel da mulher e a sua (des)valorização ................................................. 13
4- As entrevistas ....................................................................................................... 44
Capítulo 4 - A voz das mulheres sobre suas tramas e suas experiências. .................. 51
8
Tema 1 - A arte de fazer o tricô ............................................................................... 51
3.3 O que precisa mudar para a mulher ser mais empoderada? ........................ 84
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Introdução
Com um par de agulhas compridas, um fio que por elas é laçado e entrelaçado,
ponto a ponto, carreira por carreira, vai surgindo uma malha que, aos poucos, ganha
contorno, num incrível processo de transformação de um fio que cresce e conduz todo
o trabalho do início até o final. Pegando esse fio do tricô como condutor, ganhou corpo
esse estudo, palavra por palavra, linha por linha.
O tricô é uma arte manual tão antiga que pesquisadores não conseguem
precisar, com exatidão, quando e onde foi criada (Rutt, 1987). É possível encontrar
diversos estudos sobre essa temática na área da produção têxtil, valorizando o produto,
mas ainda há relativamente poucos estudos sobre o processo de tricotar, e os aspectos
que nele podem estar envolvidos. Só nos últimos quinze anos é que esse tema passou
a ganhar foco na academia, surgindo alguns estudos sobre grupos de mulheres que
tricotam (e.g., Minahan & Cox, 2007).
10
Em busca das respostas, através de nove entrevistas online, com participantes
de idades entre vinte dois aos sessenta anos, sendo que algumas frequentam os
mesmos grupos, mas outras não, promoveu-se um espaço para ouvir as suas vozes,
solicitando que partilhassem as suas vivências, experiências e conhecimentos (Yalom,
2006). O objetivo foi compreender qual a ligação que cada uma delas possui com o tricô,
(quando e com quem aprendeu, qual a frequência com que tricota, quais as sensações
que experimenta ao tricotar), qual a motivação que as leva a participar do grupo (tentar
perceber a dinâmica dos grupos que elas frequentam, e porque continuam
frequentando), além de compreender qual a visão que cada uma delas tem do grupo,
enquanto espaço de empoderamento e fortalecimento do feminino.
Capítulo 1 – Mulheres e a luta pelo seu espaço, poder e liberdade, no qual é feita
uma breve contextualização história sobre a mulher, a sociedade patriarcal, o feminismo
e o empoderamento feminino.
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CAPÍTULO 1 – Mulheres e a luta pelo seu espaço, poder e liberdade
A mulher foi, por muito tempo, considerada como o sexo frágil, como símbolo de
fraqueza e de menor resistência. Ela tem sido oprimida e submissa ao homem, em
diversas esferas da vida, durante a história da humanidade (Santos,2019). Este fato não
é novo, nem desconhecido pela maioria das pessoas, e continua sendo uma realidade,
até hoje, muitas vezes velada, apesar dos avanços tecnológicos e da variedade de
informações disponibilizadas. Contudo, essa história vem ganhando um contorno
diferente, graças àquelas que não aceitaram essa condição caladas e decidiram lutar
pelos seus direitos, pelo reconhecimento da igualdade entre os géneros (Magalhães,
2005). Apesar das conquistas já alcançadas, ainda há um longo caminho a ser trilhado
para que mulheres e homens tenham de fato as mesmas oportunidades, como será
abordado neste capítulo. Longe da pretensão de esgotar o assunto, a intenção é fazer
uma síntese, que permita conhecer um panorama geral da situação, privilegiando alguns
pontos de vistas que colaborem para este objetivo e para uma compreensão do ponto
em que as mulheres se encontram hoje.
Para iniciar o capítulo incluímos acima um trecho de uma versão de uma música
em resposta ao tema Mulheres de Martinho da Vila, um famoso compositor e cantor
brasileiro, lançada no álbum “Tá Delícia, Tá Gostoso”, em 1995. Na música original, o
compositor começa descrevendo os vários tipos de mulheres com as quais já se
relacionou, com características diferentes, mas com quem nunca encontrou a felicidade,
algo que só foi possível junto da pessoa para quem ele canta essa música, como no
trecho abaixo:
1
- Disponível em: https://www.letras.mus.br/silvia-duffrayer/mulheres-versao-part-doralyce/
12
“Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade
É tudo que um dia eu sonhei p’ra mim.”2
Nesse trecho é possível verificar como as mulheres acabam por ser alvo das
necessidades dos homens, realizando o que eles desejam e pretendem, em uma música
que, aparentemente, não tem a pretensão de falar de submissão feminina. Outro ponto
que chama atenção, é o fato da música ser de 1995, final do século XX, durante o qual
as mulheres já haviam conquistado muitos direitos em relação aos homens,
principalmente na esfera civil, mas que, na prática e no dia-a-dia, as desigualdades
ainda persistem.
Na versão da música em epígrafe, que é escrita por uma mulher, ela afirma que
não quer satisfazer as necessidades do homem, e que cada um que procure a sua
felicidade. Também fala do domínio do próprio corpo, das suas vontades, e de como as
mulheres vêm lutando para ter a sua liberdade e o poder sobre a sua própria vida e suas
escolhas. As mulheres vêm lutando para que as suas vozes sejam ouvidas e que os
seus direitos sejam garantidos e respeitados. Esse trecho também fala de
empoderamento feminino e na capacidade de tornar-se aquilo que ela mesma desejou,
uma temática que abordaremos mais adiante no presente estudo.
Para poder compreender melhor a colocação feita por essa mulher, é necessário
voltar um pouco no tempo para perceber a evolução de alguns fatores que colaboraram
para o cenário atual.
2
Disponível em https://www.letras.com/martinho-da-vila/47320/
13
que foram negados às mulheres, legitimando a exclusão das mesmas no espaço social,
como explica Helena Araújo (2007). A mesma segue dizendo que:
“como fazem notar várias filósofas e antropólogas em Portugal, esta exclusão tem
na sua base a produção de construções simbólicas em que se define a “natureza
feminina” no terreno do corpo e dos afectos, em oposição à racionalidade, à razão,
atribuídas ao mundo masculino” (Araújo, 2007:92).
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1.2 - Injustiças dentro e fora de casa
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violência em algum momento de suas vidas. Como é explicado na página da internet
da ONU, este aumento significativo levou-a, no ano de 2020, a assinalar o dia 25 de
novembro com o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher.
A força física e a chantagem psicológica fazem com que as mulheres tenham medo
de denunciar a situação, de buscar ajuda e de sair dessa situação. Magalhães
(2005:413) aponta que a sociedade é a responsável por mudar as práticas e políticas
que estimulam a violência, e não as mulheres vítimas da mesma: “políticas sociais fortes
contra a violência doméstica são condição imprescindível para garantir uma cidadania
plena das mulheres”. A autora continua lembrando que “na esfera pública, as pessoas
são concebidas como agentes individuais, com estatuto de cidadãos, e com voz
[enquanto que] (…) a esfera doméstica é caracterizada por relações de dependência –
mulher/homem, filhos/pais, idosos/adultos, doentes/saudáveis” (:413).
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Entretanto, é necessário compreender que uma das origens das desigualdades
laborais está nas oportunidades de educação e formação que, até algum tempo atrás,
eram exclusivas dos homens. Carvalho, Vieira, Santos e Melo (2003:34) lembram que,
no Iluminismo, houve uma grande defesa da educação que “aparece revestida de uma
importância cívica, como educação para a cidadania”, como descrito no Tratado sobre
a Educação de Emilio, de Rousseau. Contudo, a figura da mulher é deixada de fora e
associada à natureza. A força e o poder da mulher foram associados à natureza e a sua
capacidade de reprodução: “O “ideal” da mulher deve ser de “mãe” e “fada do lar”, mas
não de cidadã” (:34). Desta maneira, a família patriarcal fica sendo o modelo natural e
esperado, no qual a mulher fica limitada ao espaço da casa, subordinada ao homem
(Magalhães, 2003), e este é quem possui autorização para participar de uma vida
pública (Costa, 2003). Consequentemente, só os homens tinham formação e estavam
capacitados para o mercado de trabalho. Entretanto, segundo as autoras, em 1790, foi
publicado o livro “Acerca da Instrução Pública” por Condorcet, no qual é proposto a
inclusão das mulheres na educação, “afirmando que a natureza supostamente
diferenciada é apenas o produto de uma educação deficiente, pelo que se deve apostar
na educação como caminho para emancipação individual e colectiva” (Carvalho, Vieira,
Santos e Melo, 2003:35).
Esse cenário vem mudando e a realidade de hoje é que o número de mulheres nas
escolas, nas formações e nas universidades vem crescendo. Segundo os dados do
Eurostat, o guia das estatísticas europeias, em 2018, não há grandes diferenças da
quantidade de homens e mulheres que completam o ensino básico e secundário, mas
esses números aumentam quando se trata da educação superior, atingindo um valor de
34% das mulheres na União Europeia que completam o ensino superior, em
comparação com apenas 29% dos homens. A diferença entre os géneros tem vindo a
aumentar nos últimos anos. Magalhães (2005) também evidencia o destaque que as
mulheres têm na educação, mas só recentemente é que este dado se vem tornando
mais evidente. No entanto, este predomínio não é igual em todas as áreas científicas:
dados do Incode 2030 mostram que as mulheres continuam subrepresentadas nas
áreas de Engenharia, Manufatura e Construção e, especialmente, de Tecnologias de
Comunicação e Informação, sendo que elas ocupam apenas 17% das vagas de estudo
nessa área, na Europa, e em Portugal a média cai para 12%. Estes dados levaram a
União Europeia e o Governo Português a lançar iniciativas de atração das mulheres
para carreiras tecnológicas.
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de leis e tratados que visam uma igualdade de oportunidades entre os géneros que,
ainda hoje, não é a realidade de muitos países, persistindo as diferenças salariais e
discriminações contra as mulheres. Este fato pode ser constatado na edição do jornal
Público, jornal de grande circulação em Portugal, do dia 29 de junho de 2020, no qual
foi escrita uma matéria, por Sérgio Aníbal, com o título “Portugal falha metas europeias
na redução da disparidade salarial”, com a seguinte colocação:
“A legislação em vigor até pode ser a mais adequada mas, na prática, não foi
feito o suficiente pelas autoridades portuguesas para garantir uma verdadeira
igualdade de rendimentos entre homens e mulheres e, por isso, Portugal foi
considerado como estando em violação da Carta Social Europeia adoptada pelo
país há quase 20 anos.”
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“continua a deter direitos legais e sociais - e estes devem ser respeitados”. Desta
maneira, pode-se dizer que todos na comunidade têm os seus direitos e que os mesmos
precisam ser levados em consideração e validados. No relatório do World Economic
Forum (2019) pode-se verificar que “Political Empowerment gaps demonstrates how,
globally, women’s presence and participation in politics is still extremely limited”. Essa
diferença é presente no mundo inteiro, até em países que procuram criar medidas para
diminuir as diferenças entre os géneros. A realidade em Portugal não é diferente, como
é possível verificar em uma matéria publicada no Jornal Público, com o título,
“Participação política das mulheres ainda esbarra em obstáculos” no dia 30 de
novembro de 2020, na qual afirma que na política é onde encontra-se a menor
representatividade feminina, no país.
Já o conceito de política, de uma maneira ampla, tem a ver com o poder e não
se restringe a atuação das instituições da política, mas sim com a gestão da vida das
pessoas em que as diferentes esferas se articulam. De acordo com a teoria feminista, o
poder ganhou uma proporção muito maior pois:
Magalhães (2005) coloca a educação como uma forma de poder, o que faz
pensar na importância que esta exerce na vida das pessoas. A educação pode ser uma
abertura para novas oportunidades, e/ou pode colaborar para a manutenção de velhos
paradigmas e estereótipos arraigados na sociedade (Neves & Barbosa, 2003).
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explicam Huis, Otten e Lensink (2017:1), que definem empoderamento como um
processo “from being unpowered to being empowered”.
Já Cornwall e Rivas (2015) têm uma outra perspectiva sobre esse conceito, pois
explicam que o empoderamento feminino foi um movimento que teve a preocupação de
transformar as relações de poder entre homens e mulheres, promovendo os direitos das
mulheres, a justiça social e transformações económicas, políticas e sociais. As autoras
explicam ainda que o empoderamento não é algo que possa ser atribuído por uma
terceira pessoa, tem a ver com a pessoa apropriar-se, individualmente, dos seus direitos
e competências, e promover uma mudança estrutural em benefício de uma maior
igualdade. Elas ressaltam que não se trata de desenvolver as competências das
mulheres para encarar as situações difíceis e sim para que essas mulheres possam
questionar as situações de injustiça que vivenciam e de lutar pelas mudanças
necessárias. Empoderamento é, assim, um processo vivenciado pelas mulheres.
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Terceiros podem até colaborar para que as condições sejam mais favoráveis para que
esse processo aconteça, com a retirada de entraves e obstáculos nos setores sociais,
financeiros e educacionais, mas o processo em si de empoderamento feminino é
intrínseco e íntimo e só a própria mulher é capaz de o vivenciar.
21
doméstica, uma vez que o parceiro pode reagir de maneira negativa a esse poder
financeiro que a mulher passa a assumir. Os autores destacam que o empoderamento
é um processo que demanda tempo. As mudanças mais rápidas podem ser vistas no
nível individual. Contudo, nas relações, elas costumam demorar mais para se
estabelecerem, uma vez que demandam mudanças nas relações, na mentalidade e no
comportamento de outras pessoas. A mudança ao nível da comunidade é ainda mais
demorada, justamente por envolver um número ainda maior de indivíduos, contudo,
quando acontece, é uma mudança mais sólida e mais persistente.
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CAPÍTULO 2 – Tecendo a rede, ponto a ponto: a força do grupo.
Ao nascer, o bebé passa a fazer parte de uma família, que nada mais é do que um
grupo primário. Como esse é o grupo mais íntimo que se pode ter, pela proximidade das
suas relações, é também um dos grupos que mais irá exercer influências na vida e nas
escolhas do ser humano (Bezanilla & Miranda, 2013). Á medida que o indivíduo cresce,
vai participando de outros grupos maiores como a vizinhança, a escola, a igreja, o
trabalho, entre outros, que variam de acordo com os seus gostos, estilo de vida e até
com a sua idade. Poderíamos até dizer que todos esses grupos estão inseridos em um
grupo de dimensão ainda maior, que é a sociedade.
Antes de continuar discorrendo sobre como os grupos afetam as vidas das pessoas
é importante perguntar, afinal o que é um grupo? Grupo é um conceito que pode ser
definido de diversas formas e por várias teorias. Recorrendo ao dicionário encontra-se
como definição de grupo: “1. Conjunto de objetos que se vêem duma vez ou se
abrangem no mesmo lance de olhos. 2. Reunião de coisas que formam um todo. 3.
Reunião de pessoas. 4. Pequena associação ou reunião de pessoas ligadas para um
fim comum” (Ferreira, 1986:871). Quiçá esta seja uma das definições mais simples e
mais corriqueiras de grupo. Indo ao encontro do terceiro e quarto ponto apresentados
23
nessa definição, temos a explicação de que um grupo “consiste de duas ou mais
pessoas que interagem e partilham objetivos comuns, possuem uma relação estável,
são mais ou menos independentes e percebem que fazem de fato parte de um grupo”
(Rodrigues et al., 1999:371).
Ora, segundo Yalom (2006), os grupos estão presentes na vida das pessoas desde
sempre e fazer parte de um grupo é uma motivação poderosa. Na adolescência, por
exemplo, é muito comum que os jovens se dividam em grupos, reunindo-se pelos seus
interesses e gostos, na busca de afirmar a sua identidade, sendo comum encontrar
grupos de artes de música, de leitura, entre outros (McGee, Williams, Howden-
Chapman, Martin, & Kawachi, 2006). Esse fenómeno acontece pois todo ser humano
tem a necessidade de aproximar-se e conviver com pessoas com quem tenha
afinidades, para sentir-se pertencente a uma unidade, a um grupo. Esse sentimento de
pertença proporciona uma estabilidade emocional e a certeza de que há outros
semelhantes, que partilham suas ideias e ideais, que, apesar de ser um indivíduo único,
aproxima-se de outros em pontos que considera importantes e centrais na sua vida. Os
grupos, sejam mais íntimos ou mais externos, criam pilares de sustentação emocional
estruturando a confiança e a autoestima da pessoa. Montero (2004) salienta que toda
ação humana está orientada por uma concepção (de mundo, dos seres humanos e das
relações que estabelecem entre si) que orienta o comportamento das pessoas,
oferecendo-lhes um sentido de direção.
24
Outra teoria que explica a interdependência e influência que o meio exerce no
desenvolvimento do ser humano é a Teoria Ecológica do Desenvolvimento Humano, de
Urie Bronfrenbrenner (1979:3) que explica que:
“The ecology of human development involves the scientific study of the progressive,
mutual accommodation between an active, growing human being and the changing
properties of the immediate settings in which the developing person lives, as this
process is affected by relations between these settings, and by the larger contexts
in which the settings are embedded” (Bronfenbrenner, 1979: 21).
A experiência é de suma importância na vida dos seres humanos pois é através dela
que percebe e vivencia o mundo. No seu livro “Art as Experience”, John Dewey
(2005:36) coloca que a experiência “occurs continuously, because the interaction of live
creature and environing conditions is involved in the very process of living”. Apesar do
ser humano experimentar constantemente, uma verdadeira experiência só ocorre
quando há uma perceção total da mesma, na sua completude: “we have an experience
when the material experienced runs its course to fulfillment” (:36).
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O autor explica ainda, no livro “Experience and Education”, publicado em 1963, que
as experiências influenciam o ser, mas nem sempre de maneira positiva. A qualidade
da experiência é importante, pois será base para experiências futuras e caso não sejam
positivas, a probabilidade das futuras também não serem é muito grande. Ele destaca
a importância de se viver o presente, como uma experiência única, pois só assim é que
se pode estar preparado para o que vier.
Outro autor que valoriza muito a experiência é Paulo Freire (2002), que destaca a
importância de se aproveitar o que o/a aluno/a já viveu, na medida em que a experiência
transforma olhares e constrói saberes: “Uma das características da experiência
existencial no mundo em comparação com a vida no suporte, é a capacidade que
mulheres e homens criam os de inteligir o mundo sobre que e em que atuamos” (Freire,
2002:44).
Pode-se dizer que o ser humano é um ser cultural e ao agir, age dentro de uma
cultura (e apoiado por ela) e que o seu comportamento e suas criações são moldados
pelos padrões culturais, históricos, do grupo em que vive, como explica John Dewey
(2010). Dentro deste contexto, ele irá desenvolver o seu modo próprio de agir, os seus
sonhos, desejos e conquistas, a sua própria criação, mas levando como bagagem tudo
que apreendeu das suas vivências. A experiência é uma influência mútua do ser e do
meio, já que na experiência “things and events belonging to the world, physical and
social, are transformed through the human context they enter, while the live creature is
changed and developed through its intercourse with things previously external to it”
(Dewey, 2005: 257).
26
“Road map for arts Education - The World Conference on Arts Education: Building
Creative Capacities for the 21st Century”, publicado em 2006, fala da importância do
ensino das artes como um direito de todo ser humano, reconhecendo que, através dos
recursos artísticos, é possível estimular o desenvolvimento criativo. O documento
ressalta a importância de focar no processo e não no resultado propriamente dito. O
fazer, o processo de conceber e construir, precisa ser valorizado, pois é nele que está
contida a verdadeira experiência. Dewey (2005) reforça esta importância das artes e da
experiência:
“Since art is the most universal form of language, since it is constituted, even apart
from literature, by the common qualities of the public world, it is the most universal
and freest form of communication. Every intense experience of friendship and
affection completes itself artistically. The sense of communion generated by a work
of art may take on a definitely religious quality. […] The arts weds man (sic) and
nature is a familiar fact. Art also renders men (sic) aware of their union with one
another in origin and destiny” (Dewey, 2005:282)
Dewey (2005) defende que as artes são para todos e que estão presentes no dia-a-
dia das pessoas. Contudo, não raro é encontrar um adulto com dificuldade de criar e o
autor atribuiu este fato ao status elitista que vem sendo atribuída às artes, como algo
caro e distante do cotidiano da maioria da população, exposto num museu. O fato de
não ter frequentado uma Escola de Artes e ter aprendido técnicas sofisticadas para
produzir uma peça, faz com que muitas pessoas não reconheçam as características
artísticas do seu trabalho, e quiçá a criatividade nele presente. A criatividade é inerente
ao ser humano, como explica Ostrower (2001) em sua obra “Criatividade e Processos
de Criação”. A criatividade é um potencial que precisa ser realizado como uma das
necessidades do indivíduo. O fazer com as mãos, os trabalhos manuais, são
considerados um fazer criativo e uma produção manual que é uma produção única.
Comumente, este tipo de técnica é aprendido pela observação de outra pessoa fazer
e/ou na prática, o que vai ao encontro das abordagens da educação comunitária e não
formal, que defendem que a aprendizagem não acontece só na escola tradicional, com
metodologias previamente estabelecidas, como será abordado no próximo tópico.
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Os autores Dewey (2005,2010) e Freire (2002) são dois nomes importantes na
Educação formal. Contudo, ambos defendem que as metodologias de ensino tradicional
precisavam ser revistas, levando em consideração a participação ativa dos alunos. É
importante ter em mente que não é só na escola, sustentado por teorias educacionais,
como a pedagogia e a didática, que uma pessoa aprende. Na verdade, tudo que a
pessoa vive e assimila é também uma aprendizagem, não havendo diferença entre uma
aprendizagem mais formal (na escola) e outras do dia-a-dia – o que ressalta que a
educação não é exclusividade da escola, como explica Gadotti (2012). Aprende-se no
contato com outras pessoas, nas vivências, uma vez que na observação dos
comportamentos e das situações vividas a pessoa incorpora novos conhecimento. É
uma forma de educação informal (sem o formato da escola e as metodologias
específicas da mesma) no qual a/os participantes aprendem observando, perguntando
e alguém lhes explicando, de uma maneira informal, sem uma metodologia pedagógica
para isto.
“No fundo, passa desapercebido a nós que foi aprendendo socialmente que
mulheres e homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se
estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar,
teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas
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ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos
recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal
docente se cruzam cheios de significação” (Freire, 2002:19 e 20).
29
2.3– Tricô – o fio de ligação
Dessa maneira, o primeiro registro inglês sobre a história do tricó é de 1615, nas
histórias de Edmund Howe (Rutt,1987). Depois, só em 1680, é que há outro registo em
uma obra nomeada “An Institution of General History: or the History of the World” escrita
por William Howell e Magdalene College, na qual o tricô é descrito na história da
30
vestimenta e da seda. Entretanto, segundo o mesmo, há uma pintura do século XIV,
produzida por Ambrogio Lorenzetti, em Siena, Sacra Famiglia3 que retrata a família e a
Virgem Maria com agulhas compridas nas mãos e um novelo de lã, mostrando que
estava tricotando e permitindo vislumbrar o interior da vida doméstica. Desta maneira,
saber com exatidão a data e como esta arte surgiu torna-se quase impossível.
A origem da palavra knit em inglês, vem do verbo to knit, que tem alguns
significados como “make a fabric with knitting needles or knitting machine, it means to
fuse (as when a broken bones knits), or to draw together (as in knitting the brows)” (Rutt,
1987:5). O autor explica que é possível associar a palavra knit com a palavra anglo-
saxônica cnyttan que significa atar com um nó, ou fazer um nó, e que é associada a
palavra cnotta, que significa a knot, em inglês, e traduzindo para o português nó. Esta
tradução é curiosa uma vez que o tricô é uma sucessão de nós que vão sendo
produzidos e criando uma trama. Já a palavra tricô em português vem da palavra tricot,
em francês (Dicionário infopédia da Língua Portuguesa, 2020) que é de origem incerta,
sendo talvez uma variante do francês antigo “estriquer” (alisar) ou do alemão “striken”
(atualmente significa, exatamente, tricotar, mas tem origem na palavra corda) (Online
Etymology Dictionary, 2020).
Essas laçadas com o fio são realizadas em uma agulha e trabalhadas com a
outra. O par de agulhas pode variar de espessura conforme o fio que está sendo
utilizado, podem ser feitas de diversos materiais, como plástico, bambu, carbono, metal
e, geralmente, têm aproximadamente 35 cm de comprimento (McIntosh, 2011;
Rutt,1987). Contudo, hoje em dia, há agulhas menores ligadas por fios para auxiliarem
na produção de peças redondas e/ou para fazer peças menores. Entretanto, as mais
3
- Disponível em
http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/scheda/opera/7442/Lorenzetti%20Ambrogio%2C%20Sacra%20Famiglia
31
compridas (de 35 cm), de metal, continuam a ser as mais comuns, embora as agulhas
acima de 5 mm de espessura sejam de plástico (McIntosh, 2011; Rutt,1987). Conforme
a pessoa vai laçando o fio com o auxílio dessas agulhas, vai criando uma malha, e as
diferentes maneiras de laçar o fio, em ordens diferentes, criam padrões diversos e
desenhos no corpo do trabalho. A sequência de pontos a ser seguida é chamada de
receita, que contém instruções de como produzir uma peça.
Apesar do tricô estar associado ao sexo feminino, Rutt (1987) afirma que o tricô
é para ambos os sexos. A autora McIntosh (2011) concorda com o autor e relata que há
um aumento no número de homens que estão tricotando, nos dias de hoje. Entretanto,
já no século XX, na Grã-Bretanha havia alguns grupos de homens que tricotavam (Rutt,
1987). Os meninos da alta sociedade aprendiam a tricotar no jardim de infância, com as
suas amas, mães e tias. O tricô ajudava a acalmar a hiperatividade dos meninos,
embora na adolescência muitos já não quisessem mais realizar tal atividade. O autor
ainda relata que o Arcebispo de Canterbury (1945-1961) fez com que seus filhos
aprendessem a tricotar. Segundo o mesmo: “Knitting is a distinct virtue. It´s reflective
and repetitive. Whenever you are engaged in doing a purely repetitive thing, your mind
can reflect upon life” (Rutt,1987:157). O autor refere que muitos soldados também
tricotavam e que embora, hoje em dia, seja menor a quantidade de homens que
exerçam esta atividade, “some of the most successful knitwear designers are men” (Rutt,
32
1987:158). A autora Kelly (2013) relata que as mulheres que tricotam apoiam e
incentivam os homens que também praticam esta atividade.
É verdade que o ato de tricotar pode ser solitário, mas, indo contra os resultados
obtidos pelas investigadoras Harrison e Ogden (2019), tricotar pode ser também uma
forma de socializar, através da participação em grupos presenciais ou online (Corkhill &
Riley 2014). É possível afirmar isto com a constatação do aumento de grupos online que
encontram-se virtualmente para tricotar, uma adaptação dos grupos presenciais de tricô
que já existem há algum tempo, (McIntosh, 2011; Stannard & Sanders, 2014).
33
um integrante pode não conversar, e apenas ficar tricotando em silêncio. Desta maneira,
a pessoa controla a sua participação podendo estar presente mesmo nos dias em que
não está disponível para conversar. Um efeito dos grupos de tricô é o riso e a conversa
fácil, que provavelmente são desencadeadas pelos movimentos ritmados e calmos de
tricotar. Nesses grupos, há um convite para a aproximação, para o contato, sendo que
ambos estão muito escassos na vida das pessoas em geral, sendo a solidão um
fenómeno crescente. Desta maneira, reunir para tricotar pode ser considerada uma boa
forma de socialização, de estar na companhia de outras pessoas. As autoras apontam
que o estudo mostrou que o fato das participantes poderem levar o seu trabalho de tricô
para casa e continuar de maneira solitária contribui para estimular o próximo encontro,
além de promover um “time out” (:43) das pressões e das preocupações do dia-a-dia.
34
público, promovendo a criatividade, a integração social dentro da comunidade através
de uma arte manual, ao mesmo tempo que se promove a expressão individual.
35
explicam que a literatura abrange mais criatividade e bem-estar ligadas as artes visuais
e performativas, sendo mais raro encontrar textos que falem sobre o tricô, por exemplo.
Em um estudo realizado por elas, através de um questionário online, em julho de 2010,
perguntou-se as quatro razões principais para tricotar. “Among the most common
reasons were the perceived psychological benefits that came from the process of
knitting, such as relaxation, stress relief, and its therapeutic and meditative qualities”
(Corkhill & Riley 2014:37). Pode-se perceber que o resultado por elas encontrado vai ao
encontro do que a literatura apresenta, assim como outros estudos na área, associando
as práticas manuais a um bem-estar físico e mental muito frequente na prática
meditativa e de exercícios físicos (McIntosh, 2011; Stannard & Sanders, 2014). A partir
do tricô, muitas participantes sentiram-se confiantes para aprenderem novas atividades,
como jardinagem, cozinhar, entre outras. Os encontros online também contribuíram
para que as competências de informática fossem trabalhadas. Outro resultado
encontrado no estudo das autoras Corkhill & Riley (2014) foi que o tipo de projeto a ser
tricotado pode trazer maior ou menor satisfação, conforme o padrão e a receita em
questão. Quanto maior a complexidade do padrão, maior a tendência de alguma coisa
não correr bem, e com isso gerar insatisfação e frustração. Porém, se o resultado for de
acordo com o esperado, a reação costuma ser positiva. “Knitting creates strong, resilient,
flexible fabric. Therapeutic knitting seeks to create a strong, resilient, flexible minds in
the process” (:39).
36
tricotar pode ser útil em diversas situações e para diversos grupos diferentes de pessoas
(crianças, idosos), incluindo pessoas que apresentem dificuldades de aprendizagem. O
cérebro, ao estar realizando uma tarefa de maneira automatizada, diminui o “self-
monitoring” e permite que as conversas fiquem mais fluídas e profundas (Corkhill &
Riley, 2014:41).
De acordo com as autoras Corkhill e Riley (2014:41), o tricô pode ser aprendido
por qualquer pessoa e não depende de uma habilidade artística prévia, além de
promover “purpose, creativity, success, reward, and enjoyment that is particularly
important in groups who have no experience of these in other aspects of life” Dessa
maneira competências importantes vão sendo trabalhadas e podem ser aplicadas a
outras áreas da vida. A possibilidade de desfazer um erro e consertá-lo, mostra também
que, na vida, há coisas que podem ser reparadas com paciência e perseverança.
O recente aumento do interesse pelo tricô, é uma reação “to the anxiety and
boredom Csikszentmihalyi cites as a common reality of modern life. The antidote to this
dissatisfaction is a type of concentration and satisfaction that often appears in the
production of craft, in particular hand knitting” (Hemming, 2014:49-50). Tricotar é uma
maneira de não pensar nos problemas, ao mesmo tempo que promove bem-estar e
saúde, colaborando para evitar doença, como a demência, por exemplo (Corkhill & Riley
2014). O estudo aponta que o tricô é forma barata de complementar tratamentos
médicos cuidando do corpo, mente e espírito (McIntosh, 2011). Pode ser que essas
vantagens que o tricô proporciona seja o segredo para ser uma arte que perdura por
tanto tempo.
O tricô é uma arte que vem passando de geração para geração, como um legado
ancestral. Nessa transmissão de conhecimento, as avós assumem uma grande
importância ao ensinar as suas netas esta arte (Minahan & Cox, 2010). A relação com
as avós permite uma conexão com o passado, cheia de carinho e afeto, e também como
forma de aprendizado, mas em contrapartida pode ser vista como algo antigo e
ultrapassado. No estudo realizado por Minahan e Cox sobre como as praticantes
adquiriram as suas habilidades com as agulhas, a figura materna como fonte do
37
conhecimento, embora esteja presente em algumas das falas, aparece de forma menos
afetuosa do que quando falam das avós. Assim, as habilidades aprendidas foram
provenientes dos ensinamentos das mulheres mais velhas da família. Uma das
hipóteses levantadas por elas é que as mulheres mais velhas querem retribuir à
comunidade o conhecimento recebido, e uma forma de fazer isto é ensinando a arte
manual, no caso o tricô. Talvez essa seja uma das razões pelas quais as avós costumam
ser as responsáveis pela transmissão deste conhecimento. As autoras Harrison e
Ogden (2019), em seu estudo, também verificaram que a maioria das participantes
haviam aprendido o tricô com uma mulher mais velha da sua família, enquanto ainda
eram crianças.
38
Como foi visto neste capítulo, o ser humano é um ser social que está inserido
em um contexto, no qual influencia e é influenciado mutuamente. Essa influência é tão
constante, que muitas vezes, nem é percebida pelos seus agentes. Durante a sua vida,
a pessoa participa de diversos grupos, sendo o primeiro, a sua família, que é o grupo
mais íntimo do qual pode pertencer. Nestes grupos o indivíduo irá relacionar-se com
outras pessoas e com o meio em que vive, experimentando e aprendendo pelas suas
vivências e descobertas.
Para finalizar, como o tricô é a arte manual central deste estudo, tratou-se do
tricô e dos seguintes subtemas: da sua origem, do processo de tricotar, da questão do
gênero ligada a esta arte, do processo em grupo ou individual, das vantagens, da
ancestralidade do conhecimento, dos materiais e a preocupação ambiental. Após essa
revisão da literatura e dos conceitos principais deste estudo, será apresentada a parte
metodológica e os resultados encontrados.
39
CAPÍTULO 3 - Sobre a construção da “receita”: O Percurso Metodológico
1 - Objetivo da Investigação
2 - O Desafio de Investigar
Após uma estrada cheia de curvas e contornos, eis que chega o momento de
explicar o percurso até chegar ao conteúdo desta pesquisa. A metodologia que fez mais
sentido para esta investigação foi a pesquisa qualitativa, assente no paradigma
interpretativo fenomenológico. A realidade, do ponto de vista fenomenológico, para
Antônio Gil (2008:14 e 15) “é o compreendido, o interpretado, o comunicado. Não há,
pois, para a fenomenologia, uma única realidade, mas tantas quantas forem as suas
interpretações e comunicações”. As autoras Braun e Clarke (2019) defendem que, neste
tipo de metodologia, a/o investigador/a assume uma postura investigativa ativa, indo em
busca dos dados e dos participantes que possam colaborar com aquilo que é pretendido
estudar. As mesmas falam que a pesquisa qualitativa é sobre contar histórias, interpretar
dados, de reflexão, uma postura ativa e geradora. Já Edmonds e Kennedy (2017)
explicam que esta é uma abordagem pertinente para pesquisar-se a experiência pessoal
ou eventos que aconteceram com as pessoas.
40
Contudo, antes de continuar a falar sobre as técnicas utilizadas para a recolha
de dados, faz-se necessário uma visão mais ampla do caminho, por conta de alguns
desafios que surgiram e fizeram com que fosse necessário a escolha de novos trajetos.
O início foi marcado pela leitura de alguns textos e da definição de que o objeto
de estudo seriam mulheres que realizam trabalhos manuais. Depois, entrei em contacto
com uma Instituição, no conselho de Gondomar, que permitiu que eu participasse de
um grupo de mulheres que se reuniam uma vez por semana e realizam artes manuais
muito diversas. Essa observação participante aconteceu por quase oito meses (com
interrupção das férias de verão) e em janeiro, quando era suposto, começar algumas
atividades, assim como sessões de discussão focalizada em grupo, o grupo acabou por
encerrar, por questões institucionais. Desta maneira, surgiu a necessidade de encontrar
outro grupo; encontrei um grupo de mulheres, que se reúnem duas vezes por mês, para
fazer tricô e para conviver. Levei a proposta do estudo, envolvendo observação
participante e a realização de algumas sessões de discussão focalizadas em grupo, que
foi aceite pelo grupo. Cheguei a estar presente num encontro delas. No entanto, devido
a pandemia causada pelo COVID-19, e a necessidade de isolamento de toda população,
fui, novamente, “convidada” a rever meus planos.
41
3 – Metodologia e Técnicas de recolha de dados utilizadas
42
ponto é que as discussões em grupo exigiriam alguns encontros, sendo necessária a
disponibilidade para mais de um, e também poderia ter a dificuldade de encontrar um
horário em comum para todas, uma vez que as mesmas tinham diversas atividades,
mesmo em isolamento. Além de tudo, teria que contar com uma boa conexão de rede
por parte de todas para que pudessem de facto participar dos encontros, sem
interrupções e cortes.
Assim sendo, a opção que pareceu mais viável, pela circunstância do momento,
foi a entrevista semiestruturada online, utilizando plataformas de vídeo conferência
como o Zoom, o Skype e o Messenger. Apesar de não ter a interação das participantes,
como no grupo focal, a entrevista ofereceu a oportunidade de cada uma falar o que bem
entendesse, sem ficar envergonhada das demais participantes, ou ainda sem achar que,
como a outra já havia falado, ela não precisava falar mais. Aliás, a entrevista
semiestruturada caracteriza-se pela presença de um guião, previamente elaborado,
com a função de orientar quem está a entrevistar, mas com a possibilidade de surgirem
perguntas novas a partir da fala de quem está a ser entrevistado, tornando a entrevista
um contacto fluído e dinâmico. Essa flexibilidade é indicada por Svend Brinkmann
(2014) que explica que o guião é interessante pois oferece uma direção a ser seguida,
mas que é importante o/a entrevistador/a estar aberto/a ao que a entrevistada está
trazendo, pois podem surgir, na conversa, pontos que não haviam sido considerados.
Outro fator é que as entrevistas que oferecerem um pouco de abertura, fazem com que
o/a entrevistador/a fique mais atento às entrevistas, para poder lidar com o improviso do
que não era esperado, caso venha a ser necessário. O autor faz ponderações sobre o
uso da internet para as entrevistas e diz que é preciso avaliar a forma como a entrevista
é feita e quais as possíveis consequências para a entrevista. Diz ainda que a maioria de
entrevistadore/as, preferem a entrevista cara-a- cara, pois esta transmite mais
segurança para o/a entrevistado/a, o que pode ser importante, dependendo do assunto
que será abordado. Neste estudo, embora as entrevistas tenham sido realizadas pela
internet, todas foram por vídeo conferência, permitindo que tanto a entrevistada quanto
a entrevistadora se vissem mutuamente, aproximando-se ao máximo da entrevista
presencial.
43
iriam ser abordadas eram transversais a todas as mulheres que fizessem artes manuais
em grupo.
O guião foi divido em três partes. A primeira parte é sobre a relação com as
artes manuais, quando iniciou essas práticas, com quem aprendeu, o que sente quando
está realizando essas atividades, com quem faz e a frequência que faz. A segunda parte
é sobre a participação no grupo de artes manuais, há quanto tempo frequenta, quais os
pontos positivos e as desvantagens de se participar, o que acontece e como se sentem
nos encontros. A terceira parte são perguntas a respeito das injustiças sociais que as
mulheres encontram no mundo, assim como o empoderamento feminino, como o grupo
pode ou não auxiliar para que as mulheres se sintam mais empoderadas, e se a
entrevistada mandasse, o que ela mudaria para que as mulheres pudessem ser mais
fortalecidas. Para encerrar, foi elaborada uma pergunta mais geral, para que a
entrevistada acrescentar mais alguma coisa, se quisesse, sobre os temas tratados, ou
ainda retomar alguma pergunta e acrescentar mais alguma coisa.
4- As entrevistas
Após encontrar possíveis participantes nas redes sociais, entrei em contato, por
mensagem, na qual eu me apresentava como aluna do Mestrado em Ciências da
Educação e falava de maneira geral sobre o estudo e a proposta da entrevista. Algumas
pessoas com as quais entrei em contacto mostraram mais resistência em envolver-se e
outras não participavam de grupos, um critério importante para fazer parte do estudo.
Quando a participante atendia aos requisitos de fazer artes manuais em grupo e
aceitava participar da entrevista, agendávamos um horário, no qual estávamos ambas
na plataforma escolhida pela participante. Com as que eu já conhecia pessoalmente,
pois estiveram no encontro do grupo, expliquei as alterações que fiz para continuar o
trabalho. Com as demais, com quem estava tendo o primeiro contacto visual naquele
momento, apresentei-me e fiz uma pequena contextualização do trabalho para que elas
pudessem compreender a proposta. Procurei deixá-las à vontade, ressaltando que não
havia respostas certas ou erradas e que poderiam escolher não responder alguma
pergunta. Expliquei o Termo de Consentimento Informado, o que estava escrito nele e
que ela precisaria assinar e o porquê, além de falar que a entrevista seria gravada, em
vídeo ou em voz (conforme a plataforma que estava sendo utilizada). Disse que o mais
importante era poder ouvir as experiências delas e as perceções sobre as artes
manuais, a participação no grupo e aproveitei para agradecer a disponibilidade da
participação. Algumas perguntas sobre o estudo foram surgindo durante as entrevistas
44
e eu tentei responder o mínimo possível para evitar interferências nas respostas. Depois
de encerrada a entrevista, dei mais detalhes sobre o estudo junto das participantes que
haviam feito mais perguntas durante a entrevista, e fazia algum comentário sobre as
suas respostas, como haviam contribuído para o estudo e até para pensar outros pontos
que não haviam surgido antes.
45
5- O perfil das entrevistadas:
46
Passatempo,
Nono Ano /
1 Uma senhora descontrai-a e
Reformada, trabalhava Desde
Mariana 60 anos Casada (já tem conhecida, auxilia na 2 anos
como Comerciante e pequena
netos) madrinha e tia recuperação da sua
Costureira
memória
Licenciada em Design Passatempo,
2 anos Avó e tutoriais
Regina 23 anos solteira 0 de Modas / trabalho relaxamento e 1 ano e meio
(tricô) internet
autônomo concentração
Educadora de Infância Passatempo,
Desde Avós, mãe e
Diana 43 anos Solteira 1 de formação / Trabalha complementação 8 anos
pequena tias
na área comercial de renda
Passatempo,
Licenciada em História Desde
Sandra 54 anos Divorciada 1 Mãe complementação 1 ano
/ Não está trabalhando pequena
de renda
47
Para poder ter acesso ao conteúdo das respostas de forma mais estruturada,
realizei a transcrição total das entrevistas, que foram enviadas para as participantes,
para que elas pudessem verificar se houve alguma parte que não ficou coerente com o
que elas disseram e, ainda, se haveria alguma parte que elas não quisessem que fosse
utilizada, respeitando a decisão delas de só ser usado aquilo que de facto autorizassem.
6- Análise Temática
Com essa parte da transcrição concluída, fiz uma leitura flutuante, a partir da
qual os temas foram emergindo do conteúdo recolhido, para ser possível ser feita uma
análise temática conforme a proposta de Clarke e Braun (2006), compreendendo que
se trata de um estudo dinâmico. As mesmas explicam que a análise temática é um
método para identificar e analisar padrões ou temas nos dados. É uma maneira de
organizar e descrever os dados de maneira rica, captando dados significantes à
pergunta de investigação, e que apresentam um padrão. A ideia contida e subentendida
numa fala pode ser considerada como um tema, mesmo que só tenha aparecido uma
vez. Os temas são determinados pelos julgamentos do/a investigador/a que, ao ler e
processar os dados, vai avaliar o que considera relevante para a sua pesquisa. Um tema
precisa ser relevante para a pesquisa, ter uma forte ligação com a pergunta de
investigação, independentemente da quantidade de vezes que tenha aparecido.
Três temas emergiram análise dos dados recolhidos, além dos seus subtemas,
como exposto abaixo:
Esse tema refere-se a prática de tricotar, com quem aprendeu e a relação com o
material utilizado para o tricô.
Esse subtema é sobre a aprendizagem do tricô, que geralmente é uma arte passado
pelas mães e avós, como na fala a seguir:
“E quem é que me ensinou? Eu primeiro fui vendo com a minha avó, assim pessoas
mais velhas que eu conhecia conseguiam ensinar-me as técnicas” (Laura, 22 anos).
“O processo p’ra mim, não começa quando nossa mão toca nas coisas, começa
como a matéria prima chega até as mãos” (Regina, 23 anos).
2.1 – Socialização
Este subtema trata das diferenças entre tricotar em grupo e tricotar sozinha, como
é possível verificar no exemplo seguinte:
“Fazer em grupo é muito mais divertido. É mais divertido porque temos como quem
conversar, desanuviarmos, é mais divertido e acalma muito mais. Acabamos por
nos rirmos. Sozinhas não, né?” (Amélia, 60 anos).
49
Tema 3- Empoderamento Feminino
Este subtema tem como objetivo verificar como a participação do grupo pode
contribuir para o empoderamento feminino e se sim, de que forma, como no exemplo
abaixo:
“Acho que há muitos grupos que podem ajudar esse empoderamento feminino e
claro que sim. Que é sempre uma maneira de o fazer. Não penso que o nosso grupo
em específico seja por aí” (Laura, 22 anos).
50
Capítulo 4 - A voz das mulheres sobre suas tramas e suas experiências.
Nesta jornada a proposta foi ouvir as vozes das mulheres que realizam trabalhos
de tricô, em grupo e individualmente, para poder perceber a experiência e a relação que
as mesmas possuem com esse tipo de atividade. Com o intuito de auxiliar a análise, as
falas foram divididas em três temas principais: Tema 1- A arte de fazer o tricô; Tema 2-
Participação no grupo; Tema 3 – Empoderamento feminino. Cada tema possui seus
respetivos subtemas.
Como já foi dito anteriormente, os nomes das entrevistadas foram alterados para
preservar as suas identidades, assim como foram omitidos nomes de Instituições,
lugares, grupos e de outras pessoas que as mesmas possam ter citado, com o objetivo
de manter o anonimato também daqueles que por elas foram mencionados. Desta
forma, é possível apresentar aqui as experiências por elas relatadas, com autenticidade
e espontaneidade, sem o risco de expô-las.
No que diz respeito a este tema, trata-se de perceber a relação dessas mulheres
com o tricô e com a arte de tricotar, de uma forma geral. Para isto, foram abordados
subtemas como essas mulheres iniciaram as suas atividades com o tricô, com quem
aprenderam, o porque, como se sentem ao tricotar, suas perceções sobre o processo,
qual a relação delas e o material utilizado e como o tricô é visto pela sociedade.
51
mesmo se depois aprimoraram os seus conhecimentos através de outros recursos,
como nos exemplos abaixo:
“eu aprendi a fazer tricô com a minha avó que é extremamente impaciente. Portanto
a minha avó ensionou-me um pouco e depois foi muito autodidata. Aprendi com ela
o básico e depois fui vendo vídeos, tutoriais, fui experimentando, livros, comprei um
livro também” (Regina, 23 anos).
“Olha foi com uma senhora, o tricô à mão, foi com uma senhora, ela já faleceu e
fazia malhas na máquina, mas ensinou-me a fazer a mão. O croché acho que foi
com a minha tia também, e com a minha madrinha, já morreram também” (Mariana,
60 anos).
“A minha mãe. A minha mãe ensinou-me e é a minha mãe que tem paciência para
explicar (risos) ensinar porque é preciso paciência (risos) e eu tenho noção disso”
(Sílvia, 23 anos).
Este fato faz pensar no quanto a arte de tricotar pode ser considerada uma
herança geracional, em que as jovens aprendem com as suas ancestrais e perpetuam
um saber e um ofício que existe em sua cultura e sua família há anos. Neste processo
há uma valorização do saber das mais velhas, que apropriadas de um conhecimento,
ensinam e podem ver a sua arte propagar nas mãos das suas herdeiras (Minahan &
Cox, 2010). O aprendizado acontece, também, de forma espontânea, pela observação
da atitude dos adultos pelos mais novos, que são motivados a repetirem aquilo que
aprenderam pelo exemplo, como é possível observar nas falas a seguir. Essa
transmissão de conhecimento sem uma estrutura, remete a uma educação informal, na
qual aprendem-se conteúdos importantes, na prática e sem uma metodologia
estruturada (Gadotti, 2012),
“Eu via. Eu via as pessoas a fazer, prestava atenção, e depois fazia. Eu sempre
gostei. Desde miúda. Eu mesmo em miúda, os meus pais não tinham possibilidades
de me comprar agulhar para eu fazer o meu tricô, e eu fazia com piaçava de
vassouras. Com piaçava de vassoura eu fazia o tricô. Sempre gostei. Sou
autodidata, nunca aprendi nada, sou completamente autodidata, pesquiso e faço”
(Amélia, 60 anos).
“A minha avó paterna é que fazia croché. E as minhas tias e a minha mãe, faziam
todas tricô e algumas faziam croché. Pronto. Eu acho que foi um. Nós eu e as outras
raparigas por que na altura os rapazes não tricotavam, começamos a fazer por
imitação e porque havia muito menos ofertas de coisas para fazer do que há agora.
52
Era uma forma de ocupar o tempo e de imitar os adultos. Eu aprendi antes de
aprender a ler” (Ayra, 48 anos).
“E quem é que me ensinou? Eu primeiro fui vendo com a minha avó, assim pessoas
mais velhas que eu conhecia conseguiam ensinar-me as técnicas” (Laura, 22 anos).
Neste estudo percebe-se que o tricô é uma técnica que é ensinada às meninas,
ainda muito novas (Harrison & Ogden, 2019). Como as ofertas de atividades, há umas
décadas atrás, eram menores do que hoje em dia, o tricô era ensinado também como
uma forma de passatempo. Por um tempo, o tricô foi sendo deixado de lado de tal
maneira, que algumas pessoas preocuparam-se com a perpetuação da técnica.
Entretanto, o movimento relatado por Minahan e Cox (2010) fala de mulheres novas
reunindo-se tanto na internet como presencialmente para fazer tricô.
Esse pensamento vai ao encontro da fala de duas jovens (de vinte e dois e vinte
e três anos) entrevistadas no presente estudo, que também mostram-se preocupadas
com o facto do tricô ser uma arte em extinção. As duas ressaltam a importância de
manter viva a tradição dessa arte e assumem a responsabilidade de propagar a técnica,
ensinando-a para outras pessoas, independentemente da idade e do género, uma vez
que a consideram de extrema importância para a própria cultura.
“O que tem que passar da tradição é a arte do tricô e mostrar que é para todos os
gêneros e é para todas as pessoas, que é uma tradição muito importante na nossa
cultura, e que é importante perpetuá-la e não deixar que ela morra” (Ana Neves, 22
anos).
“É bom ver pessoas, as pessoas não quererem perder esta técnica e ainda querem
aprender e pessoas da nossa idade. Porque eu sei que o tricô e as artes manuais,
tipo o crochê, eu penso que a minha geração não tem tanta ligação ou quase
nenhuma que a geração anterior, obviamente. Estou a manter uma tradição, e estou
a fazer a passar a tradição. Então isso é, é quase um sentimento de
responsabilidade também muito bom. Porque estou a continuar a tradição, não
estou a largar. Estou a passar a palavra no que posso, e aprendendo o que posso
também” (Sílvia, 23 anos).
As mesmas entrevistadas ressaltam ainda que, para poder perpetuar esta técnica,
faz-se necessário valorizar o conhecimento das mulheres mais velhas, pois estas é que
realmente possuem o conhecimento intrínseco desta arte. Estas falas mostram uma
mudança no pensamento já que o tricô estava associado a mulheres mais velhas e a
um passatempo doméstico (Harrison & Ogden, 2019). Assim, um conhecimento que era
desprezado passa a ser valorizado, e faz com que essas mulheres possam ser vistas
53
como detentoras de um saber importante, pelo qual outras pessoas anseiam, como algo
a seguir:
“o que eu sinto é que as mulheres mais velhas que participam sente-se muito
importante, sentem-se com poder. Sentem-se que estão lá e que realmente, ao
longo da vida toda, praticaram uma arte e uma coisa que importa e que elas agora
podem ensinar. Isto todas as senhoras mais velhas que foram nos nossos eventos
estavam super motivadas em ajudar todos os jovens rapazes e raparigas a aprender
e sentiam-se com força e que ali tinham um valor que se calhar já não têm em muita
coisa. Por isso é que acho importante que haja esse contacto entre gerações” (Ana
Neves, 22 anos).
“Por partilha aprendemos imenso tanto com, eu se calhar não teria a perspectiva
que tenho de x coisa porque ali eu tive uma partilha de uma pessoa, por exemplo,
mais velha a ensinar-me algo. Lá está, ver esta geração mais antiga a fazê-lo, ou
pessoas da minha idade começar a fazê-lo, sei lá, muda um bocadinho a minha
mentalidade sobre as coisas” (Sílvia, 23 anos).”s
“Fiz desde sempre, e utilizo muito como, neste momento da minha vida, como anti
stress. É uma forma de descomprimir do tipo de trabalho que eu tenho que é um
54
trabalho muito teórico. Eu utilizo como terapia, mesmo. É como. Eu também corro,
eu gosto muito de correr e utilizo exatamente da mesma forma. Eu estou muito
cansada ao final do dia, o dia foi muito stressante, se eu puder calçar os ténis e ir
correr, vou. Ou eu estou muito cansada e o dia foi muito stressante se eu me sentar
a tricotar, tricoto. Aliás, há uma frase que eu gosto muito, que não é minha, não sei
aonde eu li que é “ I knit and run because murder is illegal (…) É como se eu tivesse
num processo de meditação. É questão carica, é por isso, se calhar que eu prefiro
o tricô, induz um relaxamento, um relaxamento muito parecido com o da meditação,
porque é muito mecânico. Se eu não estiver a fazer mais nada, ou seja, se eu estiver
só a tricotar e não fazer mais nada, ou seja, se eu estiver sentada a tricotar, tenho
essa sensação” (Ayra, 48 anos).
“Pois, se eu não o fizer, claro que fico um bocado mais ali na convulcia, mas depois
de se fazer já estou mais aliviada. (…) Na convulcia, mais mal humorada. Depois
de fazer pronto. Depois de fazer uma pessoa já está mais descontraída. Apetecia-
me era fazer mais” (Mariana, 60 anos).
“O Tricô é uma mera ferramenta, que me alivia de tudo que está a acontecer do dia
ou da semana, ou no mundo até” (Ana Neves, 22 anos).
“Inevitavelmente sempre que começo e passado dez, quinze minutos, fico logo mais
relaxada. Como libero energia e me obriga a estar concentrada, de facto fico num
estado muito mais reflexivo, muito mais calmo. Aliás estressado não dá para fazer
tricô, ou um estado mais exaltado” (Regina, 23 anos).
“Relaxa-me, relaxa-me. Entre estar com, estar a fazer isto e ouvir música e estar e
as vezes estava sem nada então, pois há coisas que nos relaxam mais do que
outras. Mas quando se estar principalmente a criar relaxam-me. Criar é aquilo que
mais me relaxa” (Sandra, 54 anos).
“Eu posso estar extremamente enervada e mal disposta, e se eu pegar no meu tricô,
estou aqui um bocadinho a rezar, como eu costumo dizer sozinha e se o trabalho
ainda por cima for um trabalho complicado que exige a seguir um esquema de
grupado, por exemplo, eu estou aqui sozinha a martelar sei lá a martelar, a rezar
sozinha é minha meditação. Quando eu acabo, já passou a telha já estou pronta
para outra. É um bocadinho assim. É claro que sinto muito diferença. Claro que
quem gosta mesmo de fazer isto e se sente relaxar, sente-se”(Diana, 43 anos).
“Para relaxamento, que eu sou muito agitada, sou muito agitada e isso descontrai-
me. (…).Eu quando, se sentir-me um bocadinho mais deprimida, quando estou mais
deprimida, se começar a fazer uma coisa dessas, eu sinto-me completamente
relaxada e nem me lembro de nada. (…) Para a saúde mental é muito bom” (Amélia,
60 anos).
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“Lá está tem um valor um bocadinho terapêutico e acho que depois de se fazer, ou
mesmo enquanto estou a fazer, como a minha concentração está tão ligada pra
aquilo, não sei, acho que acabo por me sentir bem, acho que mais leve” (Laura, 22
anos).
“O trabalho manual, lá está é quase um, é quase um ritual pacífico, sempre que eu
começo a fazer, sei que vou me focar e vai ser tipo paz (risos). Porque vou ter que
parar, estar calma e para me concentrar . (…) o tricô é uma terapia para mim, porque
me acalma, por isso é positivo” (Sílvia, 23 anos).
Entretanto, esse ritmo desacelerado que o tricô convida, pode gerar, em algumas
pessoas, exatamente o contrário do que foi visto até aqui, tal como destacam Corkhill e
Riley (2014). Ao invés do relaxamento pode provocar a ansiedade, como relatou uma
das entrevistadas. O seu ritmo moroso e demorado de ser realizado requer paciência,
e entender que uma peça levará um determinado tempo para terminar. As autoras ainda
ressaltam que, se o padrão que está sendo tricotado for mais complexo, maiores as
chances de cometer erros, e de gerar sentimentos de frustração, por exemplo. Se a
pessoa realmente quiser praticar esta arte, terá que insistir e aprender a lidar com esse
desacelerar que esta prática convida, a trabalhar a ansiedade tal como aconteceu com
a entrevistada, como vemos abaixo:
“Fiquei tão embaixo digamos que eu quando voltei e comecei a tricotar, era
demasiado calmo para mim, então criava uma ansiedade. (…) E agora que tão a
me dizer que eu tenho que me acalmar e estou a fazer o tricô que é um ritual tão
calmo, a ansiedade despertou me duas vezes. Tive um ataque de ansiedade. No
entanto, desde que estou conseguindo estabilizar mais a ansiedade e começar a
perceber essas as coisas e a organizar os pensamentos o tricô é mesmo um serão
de paz” (Sílvia, 23 anos).
“Uma pessoa entra e fica mesmo viciada naquilo “(Ana Neves, 22 anos).
“Faço sempre todos os dias um bocadinho. Depois de ter as coisas, as tarefas aqui
arranjadas. Faço sempre. Tenho que fazer todos os dias. Não posso estar um dia
sem fazer” (Mariana, 60 anos).
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“Eu faço em todo lado, faço em todo lado. Faço no café, faço no médico, eu faço no
trabalho, às vezes, eu tenho minha comida no carro e, às vezes, apanho seca a
porta dos clientes ou tenho uma reunião e a outra acabou mais cedo e eu tenho ali
um bocadinho, portanto, eu faço sempre que posso” (Diana, 43 anos).
Esta última entrevistada relatou uma situação curiosa: devido a quarentena por
conta do Covid-19, algumas amigas ficaram sem ter fios para fazer tricô, e quando ela
soube que uma pessoa específica iria conseguir arranjar fios para vender, tratou de
avisar as amigas da seguinte maneira:
“Atenção vamos ter drogas (risos). Atenção que vamos ter droga no dia tal, temos
todas, toda a gente foi pedir, portanto é um bocadinho assim, né, é cada coisa do:
olha, queres fios? Olha que na terça vamos conseguir ter fio. Estava tudo ansioso
por poder ter é bocadinho isso” (Diana, 43 anos).
“Estava a ficar com muita perda de memória e acho que depois que comecei
abrandou um bocadinho. Ainda tenho mas acho que melhorei bastante. Um bocado”
(Mariana, 60 anos).
“É uma coisa extremamente inclusiva que com pouco dinheiro, com pouco
investimento inicial, praticamente zero, se consegue, ou seja, celebrar uma boa
matéria prima, aprender uma nova técnica, estimular o cérebro” (Regina, 23 anos).
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“Eu não gosto muito de seguir taxativamente tudo a risca. Eu crio uma ideia, assim
eu crio uma ideia aqui e depois gosto de experimentar coisas diferentes” (Sandra,
54 anos).
“É uma coisa extremamente inclusiva que com pouco dinheiro, com pouco
investimento inicial, praticamente zero, se consegue, ou seja, celebrar uma boa
matéria prima, aprender uma nova técnica, estimular o cér-ebro, não estar sempre
em contacto com o telefone, por tanto, libertar-nos um bocadinho dos meios
tecnológicos. (…) Ou seja, o resultado final, para mim, é a coisa menos importante
de estar a fazer alguma coisa, se durante o processo não me sentir conectada, o
ser bonito ou feio num distingue pra mim dum bom ou mau trabalho” (Regina, 23
anos).
“Olha, sinto, sinto que o tempo voa. Que o tempo é pouco para o que eu quero fazer.
E neste momento, até tenho várias coisa que fui acumulando e precisava ser um
polvo (risos) para conseguir fazer tudo, e acabar tudo. O que eu acho é que o tempo
não chega. Uma hora parece que só tem cinco minutos (risos). Porque estou tão ali
absorvida a fazer aquilo que nem me apercebo do tempo a passar. E pronto, gosto
muito” (Mariana, 60 anos).
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Através desses relatos, verifica-se que a prática de tricotar leva a um relaxamento e
a um estado meditativo que, como muitos estudos (Hemming, 2014, Minahan e Cox,
2010, Corkhill e Riley 2014) apontam, são muito benéficos à saúde, com a diminuição
da tensão arterial, dos batimentos cardíacos, desacelerando o corpo como um todo, em
um movimento contrário ao que o ritmo do quotidiano impõe à maioria das pessoas.
Quem nunca ouviu que tricô é coisa de mulher? Pois essa temática refere-se,
justamente a estigma de género existente na prática do tricô. Ainda hoje, é muito
frequente ela estar associada às mulheres, apesar de, cada vez mais, ser possível ver
homens fazendo tricô (McIntosh, 2011). Como já foi dito, as meninas são ensinadas e
incentivadas pelas mulheres mais velhas a seguir essa prática e ao verem as outras
mulheres tricotarem, acabam por ter interesse nessa atividade, como afirmação da sua
identidade feminina (Minahan & Cox, 2010). Esse é um ponto que é verificado nas falas
das entrevistadas desse estudo:
“Muita gente (pausa) mais nova, ou seja, da minha idade, quer participar,
precisamente, porque se lembra ou em pequena fazer ou ver os avôs fazer, as avós
no caso porque foi sempre uma arte mais praticada por mulheres embora agora
esteja a mudar” (Ana Neves, 22 anos).
“Fui trocando assim umas ideias com as pessoas que eu conhecia mas
maioritariamente mais velhas, porque sabia que as pessoas, mulheres mais velhas,
porque os homens não sabiam nada, na altura não. (…) Até porque o tricô está
sempre mais associado as mulheres do que aos homens (Laura, 22 anos).
“Hum, faz todo sentido, claro, obviamente, que essa técnica nunca foi vista se quer
para masculino, não é? Sempre foi uma técnica feminina, infelizmente (…) Eu
enquanto mulher e eu nunca vi nenhum homem a tricotar na minha família” (Sílvia,
23 anos).
“Era precisamente mostrar que culturalmente, falo mais em Portugal, por que é o
sítio que eu conheço, é uma arte praticada por mulheres, mas que isto é uma
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tradição antiga. O que tem que passar da tradição é a arte do tricô e mostrar que é
para todos os gêneros e é para todas as pessoas, que é uma tradição muito
importante na nossa cultura, e que é importante perpetuá-la e não deixar que ela
morra, (…) Eu acho que sim, até porque somos o primeiro grupo de tricô que eu
encontrei que conseguiu levar homens a tricotar. Eu não sei se é por, acho que
muito também é pelo George ser um dos fundadores, porque mostra se logo como
um homem (risos) fundou um projeto de tricô, mas grupos mais antigos que eu
conheço que fazem, são tudo projetos dedicados só as mulheres. E eu acho que
incluir os homens é um passo muito importante e que pode fazer a diferença(Ana
Neves, 22 anos)”.
“O tricô não deveria ser só para as mulheres. Mas eu não queria ver isto desta
forma, pois acho que está a se mudar a mentalidade, felizmente. E neste grupo,
consigo perceber isto. É que eu já não sinto que é só mulheres. Já sinto que é muito
mais a dedicação do outro género, felizmente, o masculino a querer entrar nestas
áreas e que a mentalidade da sociedade pode a estar a mudar. (…) “Na verdade,
uns amigo, um amigo, na verdade, a ter estado comigo a tricotar e eu a ensinar,
obviamente que me faz tipo feliz” (Sílvia, 23 anos).
“No evento, não há esta masculinidade tóxica – nós queremos acabar com isto, não
é, esta ideia de que porque o rapaz vai tricotar e é mais feminino por isso, e nem se
quer nos passa pela cabeça e nem está no objetivo do projeto. Por isso acho que
toda sente-se mais incluída. (…) Ou seja, dos vinte aos trinta anos. Não
conseguimos ainda nenhum homem mais velho (risos) a ter interesse em vir
participar. O que prova o que é um bocado um mito cultural, não é, que está
enraizado, como era uma arte de mulheres, muitos mais velhos não tem curiosidade
em vir experimentar” (Ana Neves, 22 anos).
Com essa fala da entrevistada é possível questionar a razão dos homens não
tricotarem: será falta de interesse, ou falta de oportunidade de ser ensinado? Como foi
mencionado anteriormente, homens que foram ensinados a tricotar (McIntosh, 2011;
Rutt, 1987), exercem essa atividade com a mesma destreza que qualquer outro ser
humano, ficando evidente que não é uma falta de habilidade motora desse género.
Então, o que será que está por trás desse não fazer tricô por parte dos homens? Uma
entrevistada questiona-se sobre essa temática, como é possível ver na sua fala:
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“Foi a facilidade com que os miúdos aprendem, foi o facto de não saberem e pra
mim é estranhíssimo, porque se os pais sabem, as mães, neste caso, e não
ensinam, mas o que mais me marcou foi, nós já fomos várias vezes as escolas
ensinar várias vezes, e em todas as vezes que fomos as escolas são sempre mais
rapazes, rapazinhos pequenos a pedir para aprender do que raparigas. Aí na
primeira vez eu achei que foi uma coincidência, na segunda vez achei estranho, na
terceira vez, perguntei, aos miúdos, mas porque tu queres aprender a tricotar? E a
resposta é invariavelmente porque a minha mãe ensina a minha irmã e não me
ensina a mim. Ou seja, há um estigma do tricô, para rapazes e aquilo cortou-me o
coração. E eu achei que eu tinha que fazer alguma coisa por isso. Aquilo não podia
ser. Por que que há pessoas que ensinam uma rapariga a tricotar e não ensinam
um rapaz, que são filhos do mesmo pai e da mesma mãe. E aquilo, eu nem consigo
explicar a forma como como as respostas destes miúdos rapazes, me marcaram.
Por isso é que as escolas mais me marcam, porque os miúdos dizem as verdades
todas, não é? Não têm filtro. (…) Sim sim. E quererem aprender porque dizem que
a mãe não ensina, e a avó não ensina, porque eles são rapazes, e isso é que é
estranho. Pronto! Mas agora já me habituei, já sei que é assim” (Ayra, 48 anos).
“E eu já ensinei nesta cidade, não sei quantos rapazes a tricotar. Temos rapazes a
tricotar no grupo, temos homens no grupo de tricotadeiras que nós não
conseguimos mudar o nome (risos) porque não fica bem, mas temos homens no
grupo. Conheci o José, exatamente porque ele tricota, e outros homens e achei que
ia ser a minha batalha terminar com esta, eu nem sei como eu hei de chamar, com
esta forma tão básica de olhar ainda para as questões do artesanato e do género.
(…) Eu tenho três filhas raparigas e um filho rapaz. Ele é o mais novo e é o que
tricota mais. E uma das raparigas gosta bastante de fazer croché. As outras duas
não, nada. Zero. Portanto que temos aqui uma amostra representativa (risos). Eu
não sei se ele tricota mais porque aprendeu mais novo ou porque teve, foi na escola
dele onde nós fizemos mais intervenções, mas sim, mas todos eles foram ensinados
da mesma forma, e cada um deles utilizou a aprendizagem de uma maneira
diferente” (Ayra, 48 anos).
Esse relato dela de que o filho é quem mais tricota reforça o questionamento com
o qual iniciei essa subtemática: será que os meninos não tricotam porque não querem
ou porque não são ensinados? Aqui temos um exemplo isolado, e não seria suficiente
para responder a essa questão, mas mesmo sendo uma situação pontual, levanta a
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dúvida do que realmente está por trás desse não fazer tricô dos meninos e homens, se
é a falta de interesse, o não ensinamento, ou a não permissão social?
“É muito mais difícil ensinar o rapaz a tricotar, do que raparigas porque as raparigas
para já naquelas idades têm mais destreza manual, na motricidade fina, as
raparigas são ligeiramente mais evoluídas, isso é notório. Os rapazes têm mais
vontade de aprender. Mas também são mais impacientes. Acham que é o fim de
uma hora já tem uma camisola pronta. E isto é muito difícil de explicar a uma criança,
que não é assim que funciona (risos). Pronto. Mas também acaba por ser mais, dar
mais luta ajudar um rapaz do que uma rapariga. Mas o mais difícil de tudo é ensinar
um rapaz canhoto. É o mais difícil. (risos)” (Ayra, 48 anos).
A sustentabilidade é uma temática que vem ganhando força, nos últimos tempos, e
nas práticas manuais não seria diferente. Por ser uma produção manual, e individual,
que foge das produções em massa das fábricas, o tricô pode ser considerado como uma
produção sustentável (McIntosh, 2011; Stannard e Sanders, 2014), como retratado nas
seguintes falas:
“Estou a começar a ter uma mentalidade um bocadinho a fugir do fast fashion, estou
a tentar a ir mais, pronto lá está o fazer manualmente, ser mais amiga do ambiente,
agora é mais um bocadinho esse meu mindset. Há coisas que podemos fazer a
mão e não deixar uma pegada tão forte no ambiente. E é mais isso que ultimamente
me está motivar” (Sílvia, 23 anos).
“Porque vem sempre pessoas super interessantes a falar e sair de lá com alguma
coisa feita e depois, posteriormente, fazer coisas para nós próprias ao invés de
comprar feita” (Regina, 23 anos).
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melhor resultado final, com um aspeto mais bonito e uma durabilidade maior
(McIntosh, 2011; Stannard e Sanders, 2014).
“Quando eu sei que a matéria prima é realmente de qualidade eu acho, pelo menos
pra mim, os trabalhos manuais, ou começam na matéria prima. O processo pra mim,
não começa quando nossa mão toca nas coisas, começa como a matéria prima
chega até as mãos. E eu pelo menos sou muito seletiva e muito criteriosa, quando
escolho fazer alguma coisa, eu lembro-me da lã, que o processo foi muito giro”
(Regina, 23 anos).
“Fui fazer feiras de artesanatos, cheguei a tentar a vender as minhas peças e depois
deixei de fazer feiras de artesanatos, essencialmente porque as pessoas não
valorizam o trabalho manual, não querem pagar o trabalho e não valorizam
essencialmente materiais bons e valoriza o trabalho. (…) E aquilo que quero dizer
com isto é que as pessoas pensem mais um pouco e as vezes se calhar mais vale
comprar menos mas comprar coisas que realmente a gente gosta e que sejam
duradouras e deem mais valores aos produtos, em si que como que são feitas, da
forma como são feitas, quem as faz, nós todos podemos dizer, ah mas eu não tenho
dinheiro. Eu também estou desempregada neste momento, e não compro qualquer
coisa. Prefiro comprar menos e quando comprar, comprar alguma coisa dentro de
uma qualidade, preço que eu acho que seja equilibrada mas algo que eu acho que
seja (pausa) o mais sustentável ou, neste momento cada vez mais estou a evitar
shoppings, estou a aquela marcas que usam crianças, pronto, está a levar para
outro lado mas é um bocado aquilo que eu penso” (Sandra, 54 anos).
Muitas pessoas que tricotam estão, cada vez mais preocupadas com a qualidade
do material que, quanto mais natural, melhor, como explica McIntosh (2011). Contudo,
esses materiais podem ter um custo elevado. Além da não valorização do material
utilizado, ainda há o desperdício deste na sua origem, pelos criadores das ovelhas, que
poderiam colaborar para uma maior oferta de bons materiais.
“Tenho uma relação mais próxima, da lã. E por conhecer o seu processo, e por ser
uma matéria prima nobre e extremamente desvalorizada em Portugal, o que é uma
coisa que me deixa triste. Inclusive conheci muitos produtores de ovelha (…) Eles
criam as ovelhas, para carne, para leite, para queijo, e eles são obrigados, ou seja
as ovelhas tem que ser tosquiadas anualmente por questão de saúde e
institucionalmente é obrigatório. Mas o que é que eles fazem? Eles tosquiam as
ovelhas e queimam a lã. (…) Mas deixa-me extremamente triste porque é uma coisa
fantástica, é o pêlo de um animal que cresce sem ninguem fazer nada, pode ser
utilizado para vestuário da forma mais sustentável possível, portanto, uma fibra cem
por cento natural” (Regina, 23 anos).
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Como foi visto até o momento o tricô é uma arte que não precisa de um
equipamento sofisticado, sendo necessário apenas um par de agulhas e um fio. É
possível reaproveitar fios assim como fazer a opção por materiais de fibras mais
naturais, e com menos processos químicos (McIntosh, 2011; Stannard & Sanders,
2014). Entretanto, esse tipo de material costuma ter um preço mais elevado do que o
fio sintético, não sendo assim uma opção para todos (Stannard & Sanders, 2014). O
fato de, neste estudo, apenas uma entrevistada ter mostrado verdadeira preocupação
com a qualidade do material que utiliza, faz pensar que ainda há um longo caminho pela
frente para que esta arte se torne ainda mais amiga do ambiente.
Posto isto, seguiremos como o tricô pode ser uma forma de socialização, com
grupos que encontram-se para tricotar, ensinar e aprender.
Quando se pede a alguém para imaginar uma pessoa fazendo tricô, a primeira
imagem que normalmente vem à mente é a de uma senhora idosa, uma avó, sentada
em uma cadeira ou sofá, sozinha, com duas agulhas de tricô na mão, a produzir uma
trama com um fio, com o novelo acondicionado numa bolsa (Hemmings, 2014).
Contudo, apesar de tricotar sozinha ser a opção de muitas mulheres, outras tantas estão
optando em realizar esta arte em grupos, com diversas configurações (Ahlers, 2017;
Corkhill & Riley 2014; Hemmings, 2014; Kelly, 2013; McIntosh, 2011; Minahan & Cox,
2010; Stannard & Sanders, 2014; Steed, 2016).
2.1 Socialização
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Neste estudo, o mesmo foi verificado: todas as entrevistadas falaram da
socialização existente nos grupos como um ponto importante para frequentar os
mesmos. É o facto de poder estar com outras pessoas reunidas trabalhando e
conversando, ao mesmo tempo que cada uma tricota a sua peça individualmente. Sendo
o tricô ser um movimento automático, é possível realizá-lo concomitantemente a outra
atividade, como, por exemplo, a conversa (Corkhill & Riley, 2014). Este aspeto é saliente
nas falas das entrevistadas:
“Neste grupo. Sinto-me bem. Sinto família, porque são amigos de muitos anos,
portanto, sinto me muito confortável, não é? Não sinto que tenho que ter nenhum
esforço ou mudar o quer que seja, ou provar o quer que seja. Sou natural. Sou eu,
sinto-me motivada e feliz e com vontade de continuar” (Regina, 23 anos).
“No fundo há um convívio, no fundo também nos rimos. É sempre uma tarde bem
passada, é uma tarde em que não é só o tricô e nem o crochê em si, mas também
a companhia das pessoas, aquilo que falamos e muitas vezes as gargalhadas que
damos e isso é algo que faz muito bem na vida” (Sandra, 54 anos).
A arte de tricotar permite que os grupos sejam compostos por pessoas de idades
diferentes, favorecendo encontros intergeracionais, como destacado a seguir:
“Estavam lá pessoas de todas, tantos novos, mas fiquei surpreendida que estavam
pessoas tipo as nossas mães. Tanto de pessoas da minha idade, como pessoas da
mesma idade, como pessoas mais velhas e mais novas. Ou seja, acho que é um
ambiente muito motivador, e reconfortante de certa forma” (Sílvia, 23 anos).4
“Toda gente é bem-vinda, podem vir adultos, podem vir crianças, podem vir pessoas
mais velhas” (Laura, 22 anos).
Um dado curioso é que o tricô, por ser uma arte realizada de maneira similar no
mundo inteiro, permite o encontro de pessoas de origens diferentes, permitindo a
socialização de pessoas de idades e culturas diferentes, ligadas pela arte de tricotar:
“Estava um grupo de senhoras assim, entre os, a volta dos sessenta anos,
cinquenta, sessenta, e lembro me que entrou uma rapariga que, era minha amiga,
ela estava cá a viver em Portugal e era do Reino Unido, e ela entrou e sentou-se à
beira dessas senhoras, ou seja, ela nem sequer português sabia falar, sentou-se à
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beira delas e ficou a tarde toda a falar com elas e a trocar os pontos, porque ela não
sabia fazer o tricô também, e elas sabiam, e estavam ali a ensinar. E ter esse
contato, também intergeracional, que nós queríamos promover e acaba acontecer
e pensamos que esses são os momentos de partilha mais interessantes, que
acontecem” (Laura, 22 anos).
“No aspecto de conviver um bocadinho com pessoas que fazem este tipo de
trabalhos, porque também, [nos] meus amigos do dia a dia, ninguém faz isto” (Diana,
43 anos).
“Conhecer pessoas que tinham uma maneira de pensar parecida com minha, que
eu acho que e é por isso que as pessoas se juntam aos grupos, é uma questão de
identidade, não é? Há pessoas que gostam de fazer o que eu faço, então vou me
juntar a elas. (risos). E achei que se eram pessoas que se juntavam num sítio
público, para tricotar, deviam ser boa gente. (risos)” (Ayra, 48 anos).
Outro dado curioso que algumas das entrevistadas trouxeram foi o facto de que,
nesses convívios, não raro, há comida e bebida. Ahlers (2017) explica que a comida é
uma forma de reunir as pessoas, tanto que, em épocas festivas, as celebrações incluem
uma refeição em que as pessoas sentam-se em volta da mesa a conversar e a conviver:
tanto a conversa quanto a comida exercem uma função socializadora. No caso dos
grupos de tricô, além da conversa e da comida, há também o tricô, que acaba por ser o
tema de partida para outras conversas. Desta forma, ao comerem estão alimentando e
nutrindo o corpo, enquanto o tricô “alimenta a alma”:
Que eu conheço, pessoas mais velhas também era uma forma de convívio.
Sentavam-se no café ou em casa de outras pessoas e tricotavam juntas enquanto
conversavam, enquanto comiam, pronto. São essas as histórias que me chegaram
e é essa a ideia que eu tenho do tricô (…)Mas estavam mesmo, como se estivessem
no café com amigos pronto, não era só o tricô, e nós achamos é que o tricô também
trás esses momentos de partilha e de convívio, fora da conversa do tricô, não é, do
ponto. Também achamos que o vinho ajuda (risos)”” (Laura, 22 anos).
“Para além de termos digamos uma dinâmica boa de comer, beber e fazer tricô.
Conversar com o vizinho do lado e muitas vezes estamos a conversar coisas que
nem sei bem de onde vieram, é do genero eu estudei aqui, e estamos a tricotar e
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falar da vida (risos). E isso é bom. É tipo uma comunidadezinha que se está a criar,
eu acho” (Sílvia, 23 anos).
Como se pode perceber com essas falas, a socialização desses grupos é uma
mais valia para muitas participantes e algumas ainda relatam que participar desse tipo
de encontro é uma forma de estar com pessoas, uma vez que estão reformadas ou
desempregadas, e é uma maneira de se manterem ativas e com contactos interpessoais
(Hemming, 2014).
“Isso é uma questão de terapia porque como agora estou em casa e [me] sinto mais
solitária, então nesses encontros, como em casa estou sozinha, aproveito esses
encontros, é uma questão de terapia. A gente conversa, convive, e chega a casa
muito mais bem-disposta. Se faz amizades. Criam-se amizades, criam-se laços”
(Amélia, 60 anos).
“Mas acho que algumas pessoas estão lá também para fugirem um bocado da sua
rotina de estarem em casa com os seus maridos e tudo mais. Eu sou divorciada,
portanto, passo o meu dia a dia e vejo as coisas de uma outra forma. Não tenho a
ver propriamente com esta situação. Mas neste aspeto acho que algumas pessoas
estão ali, sim, para fugir um bocado à rotina, ao estarem em casa sistematicamente,
são pessoas que já estão na idade da reforma, portanto, no dia a dia,
sistematicamente, mulher e marido e tudo mais, e acho que acabam por ter
necessidade de criar um espaço em que elas possam ser um bocadinho elas”
(Sandra, 54 anos).
“As pessoas tinham muita vontade de fazer coisas, eu comecei a sentir que havia
pessoas que saíam de casa porque iam para os encontros, e quando nós temos
projetos de intervenções na cidade, são dias e dias de trabalhos e há pessoas que
não tem emprego, estão desempregadas, ou porque já estão reformadas, e têm
vidas muito solitárias e que utilizaram, passaram a usar a desculpa do tricô, para
sair e para fazer coisas” (Ayra, 48 anos).
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que aprendam e vejam que as diferentes etapas do trabalho podem ser feitas de
maneiras diversas, sem certo e sem errado (Minahan & Cox, 2007). Também surgem
sugestões mais práticas de onde se compra um fio ou lã, ou que cores ficam melhor em
determinada peça, que tem muito a ver com os gostos pessoais, como é possível ver
nas falas a seguir.
“Porque é engraçado, porque não há uma forma errada ou certa de fazer, nós
ensinamos o método português, mas já tivemos estrangeiros a irem, então, também
é engraçado perceber que eles sabiam aquilo de outra maneira, e estou a ensinar
e acabo por aprender alguma coisa também de volta (pausa). Então é sempre um
momento muito feliz de troca de conhecimento” (Ana Neves, 22 anos).
“Há pessoas que chegam e já sabem tricotar de uma forma e nos ensinam, e depois
nós mostramos coisas, cria-se ali, uma sinergia da aprendizagem” (Regina, 23
anos).
“Dão-se dicas as pessoas. Por exemplo, estava lá, há tempos, tivemos uma moça
que não sabia o que havia de fazer com aquela peça porque já não ia dar para o
que ela pretendia inicialmente. E dão sugestões. Deram-lhe sugestões para bolsa.
Para além de aprender e ver várias coisas que as pessoas vão fazer, depois cada
uma dentro daquilo que pretende para si, ou aprende pontos ou tira ideias, ou pede
ideias pra alguma coisa. Aprende-se sempre alguma coisa” (Sandra, 54 anos).
“De saberes. É muito mais fácil se eu quiser aprender a fazer um ponto novo ou
aprender a fazer aquela camisola, ou a utilizar aquela técnica, eu prefiro mil vezes
esperar por um encontro e perguntar a alguém que eu sei que sabe, do que perder
horas a ver um tutorial na internet. Porque eu vou olhar para uma pessoa a fazer ao
meu lado, e a pessoa me explicar, eu aprendo muito mais rapidamente, do que a
ver um vídeo no Youtube. (…) Opiniões, partilham-se imensas, imensas opiniões,
achas que faço com esta cor, achas que faço esta camisola, achas que faço isto,
achas que me vai ficar bem. Quanto tempo é que achas que vou demorar a fazer,
quanto fio é que achas que vou gastar aqui. Isso é, o grupo é maravilhoso para
estas coisas. Onde é que posso comprar esta lã …” (Ayra, 48 anos).
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Contudo, as participantes também relataram outros tipos de partilhas de foro
mais pessoal, ligadas às suas vidas privadas e de experiências pessoais. As mesmas
ainda dizem que por se tratar de um grupo que costuma se reunir com uma certa
frequência, não raro formam-se laços de amizades e que, para além do tricô, outros
interesses vão sendo identificados por elas (Stannard & Sanders, 2014).
“Mas depois acho que, quando fazemos entre amigos, não no grupo, porque é um
grupo muito grande de pessoas, torna-se um ambiente muito seguro em que
estamos a falar de coisas da vida, do que se passa, do que vamos fazer, e estamos
simplesmente a tricotar ao mesmo tempo. Isso acaba por ser paralelo a uma
conversa e um desabafo entre amigos, só que com o propósito do tricô também”
(Ana Neves, 22 anos).
“Eu acho que um pouco de tudo porque, quando as pessoas também, obviamente
entre nós os quatro há sempre muita conversa, mas mesmo com as outras pessoas,
quando se sentem mais à vontade, passado um tempo da gente começar e falam
um bocadinho mais da sua experiência, o que estudam, o que que fazem, e porque
vamos naturalmente falando sobre várias coisas, vários temas. E nada específico
porque … muitas vezes [são] muitas pessoas, mas há partilha de, pronto, pessoal
e é interessante” (Regina, 23 anos).
“Há quem queria falar um pouco da vida ou alguma coisa, como é óbvio não é, mas
isto é normal, em qualquer situação por onde a gente vá, há sempre alguma coisa
que se desabafa da vida” (Sandra, 54 anos).
“Eu estava, lá está, eu estava a falar com uma senhora muito mais velha do que eu,
estamos a falar para aí nos seus sessenta anos, e ela queria que eu ensinasse e
depois ela ensinou-me e de repente começamos a falar, ah porque a minha mãe é
que me ensinou e a minha avó fazia isto, e ela depois disse ah pois a minha avó
também, na altura também fazia. E começamos a partilhar aos bocadinhos assuntos
familiares, ou da vida, tipo profissionalmente” (Sílvia, 23 anos).
Algumas das participantes relataram que não partilham muito a sua vida pessoal
no grupo, pois não sentem abertura, e escolhem não o fazerem (Hemmings 2014).
Percebem as partilhas fora do contexto das técnicas como um momento de
descontração, de piadas e de comentários sem grande importância.
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“Eu própria tenho duas ou três grandes amigas no grupo, mas eu nos encontros de
tricô e no grupo, exponho a minha vida pessoal muito pouco. Mas, sei que há ali
relações muito próximas” (Ayra, 48 anos).
“A gente não leva muito para o pessoal. A vida, a nossa vida privada, não vai para
os grupos, é mesmo concentrada nos nossos trabalhos e prontos, e às vezes, é
aquelas conversas que a gente diz assim uma coisa mais engraçada, umas riem,
outras acham graça, outras não acham e depois... Há aquela brincadeira entre umas
e outras, mas […] de forma saudável. Mas a vida privada nunca foi levada para os
grupos, para o grupo que eu sou presente” (Mariana, 60 anos).
“A mim, ora bem, eu não sou muito esse tipo de pessoa. De partilhar ou de dizer
alguma coisa. Se eu digo acaba por não ser ou porque estou à procura de ajuda
naquele problema, ou porque vou ficar mais aliviada. Se digo muitas vezes é para
fazer piada, e volta, e “estou danada com o meu pai porque ele fez, ou disse, ou
estou farta da minha filha”, é um bocado assim, não é uma coisa séria, porque, em
princípio, não tenho muito por hábito, apesar de falar muito, de partilhar fora dos
meus, dos meus, meus próximos, problemas sérios. Não sou essa pessoa. Por
motivo nenhum especial, mas em princípio coisas que, às vezes, não partilho muito”
(Diana, 43 anos).
Um dos resultados das partilhas que surgiu neste estudo é a sensação de bem-
estar gerada por poder ser útil a alguém, de ensinar algo, ou ainda de auxiliar em um
momento de dificuldade. Também a possibilidade de celebrar junto uma conquista e
aprendizado realizado por outras pessoas.
“É bom, é bom, lá está. Sinto-me útil também, sei que as ajudo bastante porque
também gosto desses desafios, dos desafios delas, não só os meus. São coisas
como agora eu vou fazer isto, que é até uma coisa que eu nem gosto, que até nem
faria. Mas descobri que aquilo para elas é bom, eu não quero fazer aquilo, mas elas
querem, e eu tento descobrir que forma que elas hão-de fazer. Eu gosto bastante.
Sinto me bastante útil” (Diana, 43 anos).
“E eu fiquei extremamente feliz por poder ensinar um ponto a uma senhora da idade
da minha mãe. Porque é isso, acho que este evento é mesmo para nós ensinarmos
uns aos outros. Eu ,por um acaso, sabia um ponto que é o ponto inglês que a minha
mãe me ensinou que estou a fazer um cachecol, então levei o meu trabalho para lá,
por que lá, o evento, eles ensinam como começar, não é? Para as pessoas que
nunca tiveram, sequer, contacto com o tricô. E eu, como já tinha contacto com o
tricô, perguntei se poderia levar o meu trabalho e dar continuidade e as senhoras
ficaram extremamente felizes (sorriso) a ver o meu trabalho. E era um ponto novo
então ensinei. (…) Eu acho muito, mas sim, é um ambiente mesmo de coração
cheio, não sei explicar, é mesmo bom estar a partilhar tanto, e tanta gente e depois
70
pessoas conseguem dar aquelas primeiras laçadas ou fazer a primeira carreira e
tipo uhuu (comemorando) consegui. (…) E também me ensinaram coisas. Ah não
faço desta forma, engraçada a forma que tu fazes, ou ah eu não começo assim, que
engraçado, eu não dou esta laçada desta forma. E é tudo uma aprendizagem”
(Sílvia, 23 anos).
“Há sempre alguém que me ensina outra maneira de fazer a manga, de fazer isto
ou aquilo, então (pausa) para além de me dar mais vontade de fazer, também sinto
que aprendo mais” (Ana Neves, 22 anos).
“Ela as vezes ajuda-me a mim, outras vezes ajudo eu a ela. E assim, vamos
fazendo, desmanchando e arranjando a nossa maneira e ao nosso ritmo. (…) Olha,
é mais até uma partilha, um ensinamento de umas para as outras, e prontos”
(Mariana, 60 anos).
“De uma maneira geral, tentamos ensinar umas às outras, porque no grupo
aparecem sempre pessoas que não sabem e querem aprender” (Amélia, 60 anos).
“O objetivo é não ser um formato de workshop, ser um convívio informal onde nós
temos sempre alguma coisa para comer e o vinho, porque está dentro do projeto.
Ou seja, é criar um ambiente relaxado para que as pessoas possam aprender a
tradição do tricô num ambiente, pronto, menos rígido do formato do workshop em
que entramos e temos que receber toda aquela informação mais, não sei, achamos
que esse formato não se adequa muito à prática do tricô, porque não foi assim que
nasceu, não foi assim que se perpetuou, portanto, achamos que não fazia sentido
fazer neste formato e é isso que fazemos, basicamente, são convívios, tem
funcionado bem, eu acho que muita gente tem vindo a mostrar interesse em
aprender e ensinar aos amigos, pronto, acho que sim” (…) Não era num formato
rígido que as pessoas, até agora desenvolveram a técnica do tricô não é, não era
num formato mais … não era de fábrica e nem de (pensando), não vou dizer
workshop outra vez, mas não era uma coisa de ensinar em formato de escola”
(Laura, 22 anos).
71
A informalidade existente nos encontros parece adicionar um certo diferencial nos
grupos de tricô, além de remeter a forma que esta arte vem sendo passada ao longo do
tempo. A todas as entrevistadas foi perguntado se havia alguma desvantagem de
pertencer a esse tipo de grupo, e se sim qual seria. Com exceção de uma, todas as
demais responderam que não viam desvantagem. A que respondeu que sim, a única
desvantagem que via é
“há pessoas que eu não gosto no grupo. Mas (risos) em todos os grupos há pessoas
que nós não gostamos. Não é?” (Ayra, 48 anos).
Tricotar sozinha em um espaço da casa ou rodeada por pessoas que também estão a
tricotar e a falar, exprimem duas dinâmicas diferentes de se realizar a mesma arte, como
explica Hemmings (2014). Uma das maiores diferenças apontadas pelas entrevistadas
(quiçá a maior), foi a diferença na concentração. Quando estão tricotando sozinhas,
ficam mais introspetivas e quase num estado meditativo. Quando estão em grupo, por
estarem conversando, trocando ideias e partilhando saberes, o tricotar constitui-se
como uma atividade interativa, que é realizada enquanto se está a conviver.
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para mim mesma, mas é mais, lá está, estamos todos a conversar sobre um
assunto, é mais feliz neste sentido. Quando estou sozinha penso muito em mim, e
muito, estou com alguns problemas. Quanto estou em grupo, nada disso passa me
pela cabeça. Nada disso passa. Não é nunca mais uma coisa egocêntrica, sobre
mim” (Sílvia, 23 anos).
“Há muitos encontros onde não há mais nada acontecer, e só estamos ali
calmamente, a tricotar e a conversar. Mas não, para mim é como se estivesse em
casa a tricotar e a ver televisão, tenho que dar a devida atenção e não estou no meu
processo de relaxe” (Ayra, 48 anos).
“Estou em grupo eu tenho de, para além de aprender, e poder aprender ou poder
ensinar, não dá muito para eu criar, a parte de criatividade tem que ser sozinha. A
parte de todo o resto dá para ser, é até mais castiço ser em grupo, pois uma pessoa
está mais, ou seja, por exemplo, aqueles trabalhos que lhe falei há um bocado, mais
rotineiros, mais não sei quantos, em grupo é muito melhor estar a fazê-los, até
parece que andam mais de pressa, andam sozinho” (Sandra, 54 anos).
“Fazer isso com amigos, digo, é ainda muito mais divertido” (Regina, 23 anos).
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“Eu acho que em grupo é muito melhor. É muito melhor. Não sei, não sei explicar
mas acho que uma pessoa em casa, porque em casa, pronto, estamos a realizar
aquilo, será que, e tentando em grupo, e depois há mais ideias das outras que nos
ajudam às vezes, a melhorar o que estamos a fazer, a modificar, por exemplo, se
estamos a fazer e temos uma ideia de alguma coisa, mas pode vir alguém que saiba
ou que tenha outra técnica e nos ajuda a fazer aquilo de maneira mais fácil, e que
fique melhor, pronto. Gosto mais em grupo” (Mariana, 60 anos).
“Fazer em grupo é muito mais divertido. É mais divertido porque temos como quem
conversar, desanuviarmos, é mais divertido e acalma muito mais. Acabamos por
nos rirmos. Sozinhas não, né?” (Amélia, 60 anos).
74
3.1 Mulher empoderada
“(…) dar as mesmas oportunidade e mostrar às raparigas que elas têm exatamente
as mesmas oportunidades que os rapazes têm” (Ana Neves, 22 anos).
“É como se fosse, sei lá, eu não consigo dar uma explicação teórica, mas sinto como
se fosse uma mega vitamina, que as pessoas tomam e que ficam com uma energia
diferente para lidar com o problema, essa é a minha interpretação” (Ayra, 48 anos).
“Penso que o empoderamento das mulheres, cada vez é mais necessário, e que se
o mundo fosse governado pelas mulheres, estava bem melhor hoje em dia, é aquilo
que eu penso. Porque quanto mais a mulher for empoderada, mais culta ela é. O …
para o governo não interessa pessoas cultas. Para o governo quanto mais ignorante
a população for, melhor é” (Sandra, 54 anos).
Outras duas entrevistadas de mais idade, e uma de meia idade, não conheciam
esse termo e nunca tinham ouvido falar no mesmo. Como essa era uma possibilidade
prevista, foi apresentada uma definição. Depois de lida, foi perguntado se elas
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conheciam uma mulher empoderada e o porque a consideravam dessa forma. Uma
dessas três entrevistadas disse que “acredito que haja, mas eu assim, agora, estar a
ver quem, não estou a ver. Não estou a ver quem” (Mariana, 60 anos).
“Acho que sou essa. Sirvo-me um bocadinho de exemplo nesse aspecto. Mas o
termo é-me estranho mas o conceito sim, o conceito eu entendo” (Diana, 43 anos).
“Sim, eu, por exemplo, liderei muitos homens e acho que sou forte nesse aspecto.
E sempre fui respeitada, sempre me respeitaram, sempre respeitei” (Amélia, 60
anos).
Apenas mais uma entrevistada, de meia idade, disse que se considerava uma
mulher empoderada: “Sim (risos) eu! (risos) Egoisticamente” (Ayra, 48 anos). Um dado
que chamou atenção foi que todas as entrevistadas de menos idade, conheciam bem a
definição do termo, contudo nenhuma delas se citou a si mesma como uma mulher
empoderada. Citaram amigas e mulheres conhecidas, da mesma idade e até de menos
idade do que elas, mas elas mesmas não foram mencionadas.
“Uma mulher com força é uma mulher empoderada, é uma mulher que não faz
autosabotagem e que consegue elogiar-se e amar-se e acreditar nela própria, ela
própria se valida e ela própria já se empodera, ela mesma” (Regina, 23 anos).
“São pessoas exemplares, são pessoas que resilientes, que sabem lidar com as
adversidades, que conseguem ser positivas, que conseguem ser diplomatas, muitas
vezes, uma diplomacia que eu, por exemplo, muitas vezes, não tenho. Mas são
serenas, são diplomatas, conseguem manter a sensatez. Eu conheço muitas
pessoas assim, felizmente” (Diana, 43 anos).
“Eu acho que é uma figura muito forte, disponível e que eu reconheço muito, é super
femininista e que passa a palavra de uma maneira incrível. É muito boa, na verdade.
E discute temas que, que até … são aqueles temas que nos pode ( pausa) de certa
forma ser, como eu hei-de dizer, ser (pausa), exemplo, coisas relacionadas com a
parte da sexualidade, etc., muito bem resolvidas e também muito informal. E acho
76
que passa uma palavra com uma tranquilidade dela mesma, mas muito informal,
tipo amigos e é muito bom” (Sílvia, 23 anos).
“Por que escolhi essa mulher? Porque essa mulher (pausa) deu a volta por cima de
muita coisa que já lhe passou na vida e hoje é uma pessoa que ajuda as outras
mulheres, que tem uma visão da vida e uma serenidade, brutal, para com … para
conseguir ajudar os outros e para viver momentos complicados de forma serena e
pacífica. E consegue não só transformar a vida dela, mas consegue também
transformar a vida dos outros, quando os outros estão ao pé dela” (Sandra, 54
anos).
“A primeira pessoa que me lembrei foi de uma amiga minha que trabalha (risos), eu
acho que ela trabalha sobre imensas questões de desigualdade das mullheres. O
objetivo dela é recolher histórias de pessoas, anonimamente, e combater o assédio
as mulheres. Também como a violência e pronto. Eu acho que ela faz um trabalho
espetacular” (Laura, 22 anos).
“Há pessoas que têm um poder particular de agregar outras pessoas à volta delas,
e, ao fazerem isso, conseguem isso, conseguem criar ali uma energia de grupo que
funciona muito melhor do que uma energia individual. E, além disso, são pessoas
com uma capacidade de trabalho diferente, quando eu digo de trabalho, não digo
de produção. De trabalho, porque conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo,
gerir vários processos diferentes sem perder o foco e que acabam por conseguir
conciliar várias atividades em prol do bem-estar das outras pessoas, conheço, não
conheço muitas, mas conheço algumas” (Ayra, 48 anos).
Ler essas falas de mulheres que superaram as diversidades pode fazer acreditar
que o empoderamento é fácil de ser alcançado e que é uma questão de atitude como
temos nas falas abaixo:
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“São, são, são, mas eu acho que elas, sei lá, se deixam injustiçar. Eu não deixo. Eu
não deixo. Percebe, não sei. Isso é mentalidade. A minha mentalidade não me dá
para me deixar injustiçar por ninguém” (Amélia, 60 anos).
Essa entrevistada, ainda usou a situação que ela viveu para dar como exemplo
do que considera uma escolha e o que considera injustiça como no relato a seguir.
“Agora, uma pessoa que está ali porque não se sente capaz de escolher outros
caminhos, né? Inclusive, eu escolhi, eu escolhi ficar em casa com a minha filha,
aqueles anos todos, sabia perfeitamente das consequências disso. Sabia que o
mercado de trabalho depois ia me castigar. Sabia que ia ter que viver com muito
menos. Sabia que não ia poder dar a minha filha aquilo que as amigas, se calhar
tinham. Mas optei. É injusto? Não! Foi uma opção minha. Foi uma opção minha.
Outras amigas minhas queixavam-se que trabalhavam muito e, portanto, não tinham
o tempo para estar com os filhos, e não tinham tempo para fazer nada, e portanto,
os filhos muitas vezes mostravam má educação, falta de atenção, qualquer coisa.
É injusto? Também não. Elas acham, por exemplo, que é injusto eu ter que ir
trabalhar e tu estás em casa. Não, não. Eu optei por estar em casa. Eu optei por
estar em casa e por isso não vou jantar fora, nunca. E por isso, não vou de férias
também. Tu optaste por ir trabalhar e por não perder a tua oportunidade no mercado
de trabalho. E eu optei por perder. Com tudo que isto pode acarretar. É injusto
depois quando eu volto ao mercado de trabalho esteja em pé de igualdade
diferentes dessas pessoas? Não é injusto. Eu optei isso. Eu sabia quando estava a
optar. Que era uma consequência” (Diana, 43 anos).
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temos o exemplo de uma mulher que diz que teve a escolha de ficar em casa e cuidar
da filha, mesmo abrindo mão de alguns luxos. Entretanto, nem todas as mulheres têm
essa opção, pois nem todas teriam como trabalhar em casa, por não saber um ofício
que lhes permita essa possibilidade, e também não recebem ajuda suficiente para se
manter em casa e sustentar os filhos (Santos, 2019). Na fala acima, não há o
reconhecimento da falta de apoio que as mulheres encaram diariamente, principalmente
quando são mães. Além das mulheres já terem menos oportunidade de emprego que
os homens, estas ainda diminuem quando ela é mãe e/ou ainda pretende ser
(Magalhães, 2005), como podemos verificar no seguinte exemplo:
“Em termos de emprego e de arranjar emprego uma mãe tem sempre muito mais
dificuldades de arranjar emprego do que um pai ou um homem, ainda mais uma
mãe monoparental. (…) A injustiça social trabalho igual e salário inferior, sem sobra
de dúvidas. Eu já fui diretora comercial e nunca ganhei o que um homem ganha
como diretora comercial, portanto, já senti na pele e sinto. Há muita discriminação
em termos de mulher, sim. Eu trabalhei bastantes anos no mundo da construção
civil e foi aí que eu fui diretora comercial e primeiro que fosse bem vista neste
mundo, foi muito complicado. Há muita discriminação” (Sandra, 54 anos).
Eu por exemplo, gostava de ter estudado mais, mas tive que ir trabalhar ainda
bastante nova, porque era a mais velha, e a minha mãe, eu bem queria estudar,
andei até à sexta classe, que é o sexto ano. Mas só que depois, eu bem queria
estudar, mas a minha mãe disse, não, tu és a mais velha, era só o meu pai a
trabalhar, não pude estudar. E no entanto, lá está a injustiça, não só na sociedade,
como também dentro de casa, porque todos os meus irmãos estudaram até quando
quiseram e eu tive que ir trabalhar. Não pude estudar, e pronto. Eu não me
arrependo, porque até se calhar aprendi mais do que se andasse a estudar, aprendi
de uma maneira, mas também eu podia não ser o que sou hoje. Porque muitos iam
para a escola só para passear os livro, e só andavam, só andavam por passear,
eram só faltas, nem davam até, nem produziam nada, não havia aproveitamento
nenhum. Andavam ali por andar e pronto” (Mariana, 60 anos).
A entrevistada citada acima não pode seguir os seus estudos por conta da (má)
situação financeira da sua família. Ela precisou parar de estudar ainda adolescente para
trabalhar e ajudar a sustentar a família. O ideal seria que ela pudesse completara sua
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escolarização até, pelo menos, o ensono secundário e que sua família tivesse apoios
para que isso acontecesse. Esse é um exemplo onde a pessoa não teve escolha, não
dependeu dela. Foi uma imposição. Aqui fala-se em trabalhar para o sustento, para
prover pelos demais, atender as necessidades básicas da família (Maslow, 1943). São
as adversidades que as pessoas encontram e precisam lidar com elas da maneira que
é possível.
Dessa forma, podemos dizer que para uma mulher para ser empoderada precisa
transpor as barreiras que podem surgir como as diferenças salariais entre homens e
mulheres, a menor oferta de trabalho para mulheres em relação aos homens, a violência
doméstica, a falta de oportunidade de estudo, entre muitos outro exemplos.
Eu não consigo ainda entender porque a mulher não está no mesmo estatuto de um
homem, a nível de trabalho. Porque nós já não estamos há um século atrás, nem
cinquenta anos atrás e infelizmente isso é o que é na história, é o que foi, a mulher
sempre foi desvalorizada, infelizmente a nível de trabalho, mas acho que a nossa
sociedade já deveria estar mais um bocadinho avançada a nível na igualdade de
salário e na igualdade de estatutos dentro de uma mesma empresa, não é? Isso é
a primeira injustiça. Há muitas injustiças ainda. Mas acho que essa é uma injustiça
que era de fácil solução e não percebo ainda o porque ainda não aconteceu. Porque
tanto a mulher quanto o homem têm exatamente as mesmas capacidades” (Sílvia,
23 anos).
Com esssa fala e com o que foi apresentado, pode-se pensar que homens e
mulheres têm as mesmas capacidades, contudo, não têm as mesmas oportunidades.
Uma mulher para ser empoderada precisa enfrentar adversridades que um homem não
precisa e uma maneira de fortalecimento é estar no grupo, como veremos a seguir.
Anteriormente foi falado de como participar de um grupo (neste caso de tricô) pode
colaborar para o bem-estar, para as partilhas e para o senso de pertencimento das
integrantes (Maddock, 2014). Foi então perguntado se os grupos podem ser formas de
80
resistência aos problemas enfrentados pelas mulheres (Magalhães, Pinto e Tavares,
2003), no dia a dia e algumas entrevistadas disseram que o grupo de tricô não tem
propriamente esse intuito. Contudo, o fato das mulheres estarem socializando,
interagindo umas com as outras, faz com que se sintam mais fortalecidas e consigam
até, eventualmente, mudar a realidade difícil que eventualmente estejam vivendo.
“Quer dizer, a união faz sempre a força, mas eu nunca senti que neste grupo, em
específico, esta fosse uma verdade. Nunca senti que a partir dali tive acontecido
alguma coisa. Mas lá está, se calhar aconteceu, se calhar já houve vidas que
mudaram por causa do grupo. Esta pergunta eu dizer não é um não redondo. É
talvez, mas não é uma coisa que eu ache que seja profundamente importante ali no
grupo” (Ayra, 48 anos).
“Acho que há muitos grupos que podem ajudar esse empoderamento feminino e
claro que sim. Que é sempre uma maneira de o fazer. Não penso que o nosso grupo
em específico seja por aí” (Laura, 22 anos).
“Existem várias situações diferentes, não só os grupos de tricô, como outros tipos
de grupos, em que as mulheres estão nos grupos, em que há mulheres em vários
tipos de situações e cada vez mais as mulheres se sentem donas do seu (inaudível)
da sua responsabilidade, daquilo que querem e não querem, e também de se
afirmarem e dizerem não a determinado número de situações. E acho que também
há mais, há e haverá, ou eu penso que haverá mais interajuda e mais no sentido
solidário para puxar umas com as outras para mais juntas se empoderarem mais”
(Sandra, 54 anos).
Como nessa fala acima, o fato de estarem unidas em grupo é um dos fatores que
fortalece as mulheres, por pertencerem a um grupo (Yalom, 2006), embora nem todas
reconheçam esta propriedade. Um ponto que é importante no grupo é fato da pessoa
ter outros exemplos de mulheres, que passam ou passaram por situações semelhantes.
Perceber que não se está sozinha encoraja e faz com que ela tenha força para seguir,
e tomar as atitudes que precisa. Poder ver e escutar histórias semelhantes e como elas
81
foram resolvidas, é uma forma de também pensar nas alternativas que se tem. É como
se ampliasse o mundo de possibilidades.
“A força de resistência vai muito de nós percebermos que como não estamos
sozinhas há e obviamente estando com outras pessoas, cria novas amizades, redes
de apoio, não estamos a depender só de um terapeuta, só de uma pessoa, não,
sentir que estamos unidos numa luta, a lutar por uma causa, ajuda essa purificação
do nosso estado de espírito, e da nossa forma, se calhar, de encararar o problema,
ou seja, principalmente se atuarmos nas relações, acho que é importante isso”
(Regina, 23 anos).
“Eu acho que ajudam a mulher a não ter medo de dar um passo. Porque, às vezes,
se não houver essas partilhas, as mulheres têm …, ficam presas a situação e não
não avançam, não decidem a vida. A vida como devia de ser” (Mariana, 60 anos).
“Agora acredito que tem de haver mais encontros porque essas bases sólidas, de
nós ganharmos a confiança dos outros, é com a continuidade e acho que (pausa),
só com o tempo é que realmente as coisas podem. Mas também acho que,
entretanto, esses grupos podem gerar amizades. E essas amizades também podem
fortalecer algumas coisas faces a essas situações. (…) Sim, eu acho que isto são
sempre coisas que as pessoas ouvem e podem sempre ajudar mesmo a quem tem
receio de falar, até porque lhe possa custar aquilo que está a passar, etc., possa
ajudar em benefício de dizer não sou a única e isto tem solução e pode ajudar a
pensar de outra forma, sim” (Sandra, 54 anos).
“Ah isso sim, isso sim. Isso sim. A partilha do grupo dá para elas se sentirem muito
mais fortalecidas, sim. Porque cada uma delas, expõe as suas experiências,
havendo umas mais fracas que outras, às vezes as experiências de umas ajudam
a fortalecer as outras” (Amélia, 60 anos).
“A junção de todas as forças vai sempre mais longe do que a junção de uma só
pessoa, neste caso. Não quer dizer que eu não tenha força de vontade e não queira
mudar algo. Só acho que várias pessoas com a mesma força que eu vamos,
obviamente, mais longe. E lá está, sempre alinhadas. E com um mindset muito bem
definido e isso é que é importante sim, e a equipa digamos, não é equipa, mas
comunidade, sem dúvida” (Sílvia, 23 anos).
“Há um grupo assim de vinte que são aquelas pessoas que nós conhecemos muito
bem, e que vão sempre aos encontros. Que se não aparecerem a um ou dois
encontros nós ficamos preocupadas, vamos telefonar, ou seja, há ali um grupo
muito coeso já muito, de pessoas que se conhecem muito bem, e que acabam por
partilhar histórias de vidas. Ao partilhar histórias há sempre alguém que também
acaba por partilhar uma solução. (…) E isso acaba por acontecer, não por ser um
82
grupo de tricô. Acontece porque é um grupo, e também acontece nas nossas
relações de trabalho, acontece com os nossos amigos, com quem nós vamos de
férias, não é por ser um grupo de tricô é por ser um grupo de pessoas” (Ayra, 48
anos).
“É então, vejo como (pausa) como algum ceticismo, pois se os assuntos não forem
abordados no grupo, é preciso ter alguma alavanca que traga o assunto à
discussão. A não ser que haja um projeto paralelo que faça com que o grupo tenha
algum tipo de reflexão sobre o tema, nós não levamos para cima da mesa um tema
desses à discussão, está completamente fora de questão. Nós não vamos para um
grupo de tricô, hoje vamos falar sobre violência doméstica, não isso não acontece.
Se aliás eu tenho alguma dificuldade em acreditar que se fala em grupo, neste grupo
de tricô, que eu me lembre, nunca se começou no grupo, não quer dizer que depois
as pessoas, nas suas relações mais próximas. (…) Agora, se houvesse um evento,
uma estrutura governamental, lançasse uma campanha, o tricô vai salvar as
mulheres da violência doméstica, se calhar, e nos convidassem para participar do
projeto e nós fossemos fazer um evento relacionado com esse projeto, nós
trazíamos esse tema a discussão, mas isso nunca aconteceu. E lá está, se as
questões partirem de fora, de outras pessoas, isso acontece, porque nós já fizemos”
(Ayra, 48 anos).
Certamente, há assuntos que são mais fáceis de se conversar, pois não implicam
a exposição da vida íntima e nem da fragilidade que alguém possa estar passando.
Entretanto, a união do grupo pode vir a ser um fator de suporte (Stannard & Sanders,
2014) para que a pessoa possa contornar uma determinada situação e até a mudá-la
em definitivo. Mas a segurança nos membros precisa existir para que esta condição
aconteça. As partilhas são uma mais valia para ajudar a criar uma rede de proteção,
principalmente para as mulheres.
83
Para finalizar a entrevista foi perguntado a todas as entrevistadas se fossem elas
a mandar, o que elas mudariam para que a mulher fosse mais empoderada, como
veremos a seguir.
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jornada dupla de trabalho que a mulher assume, e que o cuidado com a família, deveria
ser reconhecido como um trabalho, e não uma simples tarefa que a mulher realiza, como
lazer, por exemplo (Santos, 2019). Também a necessidade de adequar trabalhos
realizados por mulheres que possam combinar a vida profissional com a vida doméstica,
trazendo menos prejuízo para ambas as áreas na vida da mulher, como é visto abaixo:
“Deviam ser tão bem remuneradas como os homens. Deviam, uma vez que a
partilha das tarefas domésticas não é uma questão que tenha solução porque é uma
questão que está tão enraizada socialmente, que a mulher toma conta dos filhos e
da casa, que não vai nunca, nunca, nas próximas cem gerações, não vai acontecer
que os homens tenham o mesmo papel que a mulher, portanto, seria importante
que as mulheres fossem libertadas de horas de trabalho fora de casa para poderem
se dedicar a casa, porque basicamente, muitas mulheres acumulam, e isto não vai
mudar. Não há utopia possível relativamente a isto. Portanto, mais tempo para a
família, sem perda de rendimento. O mesmo, a mesma remuneração pelo mesmo
trabalho, e isso não acontece, a mulher e o homem não recebem a mesma coisa
pelos mesmo trabalho. Sei lá, não há mais nada assim que, eu acho que nós
vivemos numa sociedade, nós em Portugal, sociedade ocidental, não é, não estou
a falar de outros países, suficientemente livre para as mulheres terem a liberdade
de pensamento e da ação, que lhes permita tomar as mesmas decisões que os
homens. Eu achei que há uma grande desigualdade salarial e social para a mulher.
Se eu mandasse, eu mudava isso. Lá está, se eu pudesse trabalhar mais, eu não
quero trabalhar menos horas, eu quero é estar mais tempo em casa, portanto, se
puder trabalhar mais horas, mas também estar em casa, as mesmas horas estar
em casa, para mim é perfeito” (Ayra, 48 anos).
“Eu posso estar enganada, mas esta história do teletrabalho, vai permitir no futuro,
muito mais gente poder trabalhar de casa e coisa que alguns tempos atrás ninguém
pensaria nisso. E (inaudível) se calhar são negadas a mulheres por dificuldade
porque elas têm de estar em casa a cuidar, a tomar conta do filho quando ele está
doente, ou por isso ou por aquilo, possam levá-las a ser” (Sandra, 54 anos).
As entrevistadas alegam que uma forma de mudar essas formas desiguais de agir
com homens e mulheres é através da educação, com uma educação mais igualitária e
homogénea, sem a distinção de género (Vianna &Finco, 2009):
“Uma mudança na educação. Acho que é muita coisa que se pode mudar desde
cedo (pausa) que logo a partida quebra tabus e situações que elas carregam para
o resto da vida. Como, desde pequeno, dividir as tarefas por todos, fazer uma aula
de culinária para toda gente, ou por toda gente a tricotar, não haver esta divisão já
na escola. Se o rapaz gosta de pintar é porque é assim ou aquilo, se a rapariga tem
85
que saber fazer isto e o rapaz não. Acho que é educar, acho que é mais fácil
começar desde novo, como é óbvio, do que mudar a mentalidade de adultos, de
que toda a gente deve saber um bocadinho de tudo e que isto e o que nós queremos
ser e o que nós queremos fazer é totalmente desapegado do género. (…) É muito
importante moldar as próximas gerações e ajudar a ensinar as mais velhas que toda
a gente tem um lugar e que as nossas escolhas devem impactar isso, devem
melhorar” (Ana Neves, 22 anos).
“Eu acho que, obviamente, isso parte desde o início, desde a educação, ou seja,
não haver separação nem diferenças nas vertente educativa, não haver diferenças
no vestuário desde que se nasce, não haver cores associadas ao sexo, quer para
homem , quer para raparigas. Não haver brinquedos de géneros. Não haver, ou seja
havia de ter uma reeducação e uma reimplementação de todo sistema educacional,
educativo. Desde que nasce o ser humano. Porque nós não educamos homens e
mulheres, nós educamos seres, pessoas, e há uma diferença, porque há, não sejas
menino, tens que ser boa rapariga, como se à partida ela já fosse má, portanto há
expressões que se enraizam nas pessoas, formas de falar, brinquedos, na escola,
livros, de ler, histórias de rapaz, histórias de raparigas, portanto, há uma segregação
de género que é feita. Até quando a rapariga está, porque a primeira coisa que se
pergunta a alguém quando engravida é rapaz ou rapariga porque, com essa
resposta de género a pessoa já consegue deduzir, ou seja, se é rapaz ah porque
vai ser tal assim, se é rapariga ah porque... Como se isso definisse o que quer que
seja. Ou seja, tinha que haver todo... Isto é assim, peço imensa desculpa, mas essa
é uma questão para mim, que me irrita profundamente. Ou seja, tinha que haver um
desenraizamento de pensamentos, ou seja, tinha que haver uma lavagem cerebral
no mundo sobre essa questão. Porque é muito mais do que dizer, ah dava salários
justos e iguais, ah dava oportunidades de trabalhos iguais e oportunidades iguais
na faculdade. Ok. Mas não ia resolver. Isso ia alterar uma consequência e não ia ao
cerne da raíz do problema, portanto. Tinha que haver uma reeducação, uma
reestruturação do sistema, para igualmente ser igualitário. E eu acho que se fosse
eu a mandar eu acho que era isso que eu fazia” (Regina, 23 anos).
“Assim, acho que depende do sítio onde eu mandasse, porque acho que (risos). Cá
em Portugal temos muito menos desigualdades do que em outros sítios, não é?
Continuamos a tê-lo, mas há muitos outros sítios que realmente me preocupam
mais a nível de mulheres não terem direito a educação, não terem direito a voto,
não terem direito a muitas outras coisas que são urgentes a corrigir, mas cá acho
que, se calhar pela desigualdade salarial, por exemplo, o assédio e a violência claro
que não é uma coisa que se resolva se alguém mandar. Acho que é uma coisa que
está, que se deve resolver com educação, e é uma coisa que está enraizada na
86
sociedade que vai demorar muito tempo para desaparecer, infelizmente. Mas acho
que não é assim com um clique que as coisas se resolvem, não é. (…) O que é que
eu mudaria na educação? Na educação, ou seja, na educação geral, não só na
educação das mulheres que eu acho que toda a gente, ou seja, desde pequenos
uma educação a nível de, por exemplo, eu vi uma questão há uns tempos, que eu
li num artigo, penso eu, que era a falta de educação sexual, por exemplo, depois
gerar confusões ao nível, ou seja, como é que os homens percecionam as mulheres
e dar origem a violência. (…) Mas se melhorássemos um bocadinho este tipo de
educação e enraizássemos valores que fosse um bocadinho mais corretos de
igualdade, de pronto, entre homem e mulher, entre sexos, acho que já
conseguíamos, pronto, mudar um bocadinho o pensamento das pessoas, desde
pequenos, não é? Acho que é mais fácil com educação chegar lá, acho que é isso”
(Laura, 22 anos).
“Um exemplo simples é tu podes estar na escola a dizer a uma, a dar ferramentas
a uma menina e a dizer-lhe como deve ser, o que é admissível e o que que não é
admissível, e ela pode estar em casa a ver o pai a bater na mãe. E aquilo que tu
dizes na escola, não prevalece. Não prevalece porque em casa está a verdade. A
minha mãe é que tem e o meu pai é que tem a verdade, nunca são os professores.
Portanto eu não acredito muito que esse tipo de ferramentas ajudasse. Se calhar
ajuda, (pausa) não eu acho que não. Eu acho que é muito difícil. As pessoas
formam-se um bocadinho assim com a educação, acima de tudo, com os valores
que lhes são transmitidos, mas acima de tudo formam-se com a vida. Eu acho”
(Diana, 43 anos).
Essa forma de pensar vai ao encontro de outras falas de outras entrevistadas que
acreditam que há a necessidade de mudar a mentalidade de toda uma sociedade, e não
só dos mais novos, mas também dos adultos (Santos, 2019). Esta entrevistada entende
que atuar com os mais novos talvez leve mais tempo, mas que talvez seja o mais
eficiente, como na fala a seguir:
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reeducação, uma reestruturação do sistema, para igualmente ser igualitário. E eu
acho que se fosse eu a mandar eu acho que era isso que eu fazia. É reeducar
pessoas e para deixar de enxergar simplesmente porque é homem ou porque é
mulher tudo, coisas todas, quer na forma de vestir, quer na forma de, ou seja, era
uma questão muito mais complexa e (refletindo). E não ia ser nada fácil. E
obviamente, se isso desde pequeno fosse uma coisa feita, não ia haver problemas
salariais porque não ia haver distinção nenhuma. E não ia haver problemas de que
há x mulheres na política ou porque. Ia haver, agora ia abrir vinte vagas para
mulheres, mas isso não é justo, porque, numa faculdade ou num cargo, não deve
ter vinte vagas para mulheres, tem que se abrir vinte vagas e pronto. E as pessoas
entrarem por mérito. Seja homem, seja mulher. Até poderia vinte homens se
tivessem mais mérito. Ou seja, depois existem coisas e conceitos deturpados,
depois levam ao feminismo e as estas causas a não serem aceitas, porque as coisas
são feitas mal. As pessoas vão muito para os problemas (refletindo) ou seja, para a
ponta do iceberg e há tanto para baixo para ser desbravado e tanta reestruturação
que é precisa ser feita, que eu acho que o que eu faria era justamente começar por
baixo. E obviamente, começar por baixo ia demorar mais tempo, mas se calhar os
resultados iam ser muito benéficos, e portanto isso era o que eu faria. Não sei de
que forma, mas se tivesse apoio para isso, faria isso já” (Regina, 23 anos).
Com essas duas últimas falas pode-se refletir nas dificuldades de se mudar o
cenário de injustiças que a mulher vive, já que envolve uma mudança de mentalidade
em várias esferas da sociedade. Segundo o ponto de vista das entrevistadas, é fulcral
que haja uma revisão da posição do Governo, das políticas educacionais e da educação
nas próprias famílias. Como as entrevistadas colocaram, mesmo que as mudanças
sejam pequenas, é importante começar. Não é possível esperar uma mudança de
mentalidade, comportamentos e crenças da noite para o dia, mas é preciso começar a
plantar, para que, no futuro, essas sementes possam dar frutos e termos uma colheita
mais próspera e igualitária, com menos injustiças e preconceitos.
Diante tantas informações, fez-se importante elucidar o que até aqui foi
encontrado, com o diagrama abaixo que sintetiza as temáticas emergentes, assim como
as respetivas subcategorias.
88
89
A partir desses dados, voltamos a pergunta inicial: qual o papel do grupo, das
partilhas e das atividades expressivas na vida das mulheres, e como estes podem ser
considerados como educação comunitária, além de contribuir para o empoderamento
de cada um delas?
Buscando entender qual o papel que o grupo tem na vida de cada uma delas,
destacamos três pontos cruciais: o bem-estar, a educação comunitária e o
empoderamento.
90
Considerações Finais
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sem estudar e sem trabalhar. Dessa maneira é de considerar que as participantes
estavam com mais tempo livre para fazerem o que quisessem do que antes da
pandemia, quando a vida corria o seu curso normal, com atividades profissionais e
pessoais e todos os seus afazeres cotidianos. Também vale a pena pensar que, por
estarem com contatos sociais muito restritos, na altura das entrevistas, os encontros de
grupo e as saídas de casa ganharam uma outra perspectiva, podendo vir a ser mais
valorizados do que em outros momentos.
Os dados deste estudo revelam que o tricô é uma técnica normalmente ensinada às
meninas por mulheres mais velhas, com quem têm uma relação próxima, geralmente
as avós e/ou mães, o que vai ao encontro do que apresentam Minahan e Cox (2010),
demonstrando que há uma transmissão intergeracional de conhecimentos, perpetuando
a tradição. É um momento em que as mulheres se reúnem para estarem juntas e
realizarem uma atividade ainda muito ligada ao sexo feminino, embora haja homens que
tricotem (McIntosh, 2011).
A maior inclusão do género masculino nos grupos de tricô foi, aliás, uma das
preocupações que emergiu nas falas de algumas entrevistadas, que questionam porque
os meninos e homens não tricotam. Uma das entrevistadas participa de um projeto no
qual mulheres tricotadeiras vão à escola ensinar às crianças tricô, e ela mesma já
ensinou vários meninos e homens a tricotarem, inclusive o seu filho. Embora a
entrevistada tenha três filhas, o seu filho é quem mais tricota. Apesar de ser apenas um
caso, e não podermos generalizar, é um dado que foge ao estigma de que o tricô é
“coisa de mulher”. Dessa forma há que perguntar qual o verdadeiro motivo pelo qual os
meninos/homens não praticam essa arte. Será falta de interesse, ou será mesmo falta
de incentivo, de ensinamento e/ou falta de permissão social de compreender que o tricô
pode ser “coisa de menino” também? (McIntosh, 2011; Rutt, 1987). Esse
questionamento vai ao encontro das falas das entrevistadas, nas quais defendem uma
educação mais igualitária entre meninos e meninas, sublinhando uma delas que é
preciso educar pessoas e não homens e mulheres, que é preciso mudar a mentalidade
e que isso começa pela base, pela educação das crianças.
Foi um consenso nesta pesquisa que o tricô promove bem-estar, sendo que todas as
entrevistadas relataram que usam o tricô como uma forma de relaxar, de terapia e de
distração dos afazeres do dia a dia, resultado também apresentado por Hemming
(2014). O fato das entrevistadas estarem dentro de casa, como foi mencionado,
contribuiu para que o tricotar tornar-se uma atividade importante para ajudar a passar o
tempo e controlar a ansiedade. Apenas uma entrevistada relatou que o ritmo vagaroso
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do tricô pode, em certos momentos, despertar a ansiedade dela, pois quer ver a peça
pronta rapidamente, mas tem feito o exercício de se focar no processo e não no
resultado final.
Um fator que chamou atenção foi que todas gostam de tricotar em grupo,
independentemente da idade, um dado que vai contra o estudo apresentado por
Hemming (2014). Destaque-se que ambos os estudos têm participantes de diferentes
faixas etárias, o que pode sugerir que o interesse pela participação nestes grupos possa
variar em função da cultura, sem embargo de um eventual impacto da pandemia que
acima antevíamos. Quando perguntadas sobre as vantagens de pertencer ao grupo de
tricô, as mulheres responderam que gostam de partilhar as técnicas e sugestões e que
é uma forma de convívio. Uma das participantes inclusive relata que participar do grupo
é interessante pois possibilita conhecer pessoas novas, de idades diversas e dá o
exemplo de uma amiga que, mesmo sem falar português, conseguiu participar do grupo
e trocar ideias, não só sobre o tricô, mas também sobre outros assuntos que surgiram.
Interessante como o tricô foi um fio condutor para unir essas pessoas, a princípio tão
diferentes, mas com um objetivo em conseguirem conviver, evidenciando que, para
haver unidade de grupo, basta ter um ponto em comum (Yalom, 2006). As mulheres que
já estão reformadas sublinharam que esperam ansiosamente os encontros, pois é uma
oportunidade de saírem de casa, de estarem com pessoas que partilham os mesmos
gostos, e de estarem fazendo uma atividade de que gostam.
Um outro aspeto que ficou evidente nas falas das participantes é que todas vêem os
grupos como sendo espaços cooperativos de aprendizagem. Quando têm alguma
dúvida sobre pontos, fios, receitas, sempre tem alguém no grupo que se disponibiliza
para ajudar. Essas falas evidenciam o grupo como um espaço de educação comunitária,
uma vez que elas o reconhecem como espaço de aprendizagem e ensino. Esse é um
grande motivador para várias delas continuarem a frequentar os grupos, além das
amizades que acabam por surgir e das confraternizações que fazem. Quatro das
entrevistadas participam de um evento em grupo no qual se reúnem para tricotar e
ensinar quem quiser participar. Neste evento, além do tricô e da boa conversa, segundo
o relato delas, há vinho e algum petisco para que o convívio seja pleno. Como três
entrevistadas são organizadoras do evento, elas explicaram que a ideia partiu do fato
delas mesmas, mais um amigo, reunirem-se em um café para tricotarem, beberem e
comerem; ademais haviam visto mulheres da própria família fazerem o mesmo. Essa
fala vai ao encontro do que Jocelyn Ahlers (2017) explica: normalmente, as celebrações
envolvem convívio em volta de uma mesa com comida, e porque não estar a realizar
uma prática, como o tricô, que envolve movimentos repetitivos e automáticos? É uma
93
forma de ocupar as mãos, que permite que a conversa flua e o tempo passe ainda mais
depressa. Ou seja, esta ideia parece uma “receita” de sucesso. Um detalhe bastante
significativo foi que nenhuma das entrevistadas relatou uma desvantagem em participar
do grupo de tricô, justificando que, se houvesse desvantagens, simplesmente deixariam
de ir.
Por estarmos falando de grupos com maior representatividade feminina, nos quais as
mulheres se apropriam de uma técnica milenar, sendo elas próprias as transmissoras
do conhecimento, de uma maneira totalmente empírica, falar sobre empoderamento
feminino fez todo sentido.
O segundo aspecto ligado ao empoderamento feminino foi o fato de que metade das
entrevistas enxergam os grupos de tricô como uma possibilidade de empoderar
mulheres. As entrevistadas que possuem essa visão colocam que mesmo que o objetivo
do grupo não seja trabalhar questões emocionais e/ou psicológicas, entendem que, por
ser um grupo, um espaço de partilhas, podem contribuir para que mulheres se apropriem
das suas potencialidades, ao poderem compartilhar os seus conhecimentos e suas
experiências, por exemplo. Uma fala das participantes é sobre a força que tem o grupo,
94
expressando o quanto a união faz a força, o que remete a dimensão social que o
empoderamento contém.
Ainda assim, mesmo que o foco do grupo seja “apenas” o tricô, e para as participantes
não passe disso, o fato de mulheres estarem reunidas é um ato político (Arendt, 2005),
por elas se validarem umas às outras enquanto pessoas, respeitando o seu espaço e a
sua voz. Pode ser um considerado um espaço de resistência à medida em que elas se
fortalecem e se sustentam em um mundo em que o patriarcado ainda tem uma influência
muito grande e as mulheres ainda encontram muitas barreiras para conquistar o seu
lugar – mesmo se, há que admitir, esse papel possa vir a ser reforçado com o tempo e
a inclusão intencional de temas de conversa e experiências que politicizem esse estar
junto.
Finalmente, importa reconhecer que este estudo está longe de esgotar as possibilidades
de investigação nesta temática e fica o convite para que outras pesquisas possam ser
desenvolvidas entre agulhas, fios, pontos e laçadas, aumentando a receita e a
compreensão dessa arte tradicional e milenar que é o tricô.
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100
Apêndices
101
Termo de Consentimento Informado
102
dos(as) participantes serão substituídos por nomes fictícios, assim como não
será mencionado o nome específico do sítio onde a investigação ocorreu.
O projeto será desenvolvido por Ana Beatriz Azevedo Farah, que poderá ser
contactada em caso de qualquer dúvida ou circunstância pelo seguinte e-mail
abeatrizfarah@gmail.com. O projeto conta também com a orientação da
Professora Doutora Isabel Menezes, da Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade Porto – FPCEUP, que pode ser contactada através
do e-mail: imenezes@fpce.up.pt.
Assinatura da Participante
103
Guião de Entrevista Semiestruturada às mulheres que realizam artes
manuais em grupo.
Perceber qual o papel do grupo de partilha e a realização de artes manuais na vida das
mulheres, assim como no seu empoderamento pessoal.
104
• Como você se sente quando está no
grupo?
105