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com/lacanempdf
A DISPARIDADE NO AMOR
•
Éric Laurent
psicani lisc: saber se ela tem .1lgo a dizer sobre o escanito moderno do amor, 0 es
tatuto contemporâneo.
Esr.1.mos em um momento fecundo no que <.Üz respeito à revisão dos ditos so
bre o a.mor, com certo embar.1ço que se foz sentir na literatura em suas mais di
versas variantes� no cinenu e n;1s modernas formas de narrativa q ue dependem ou
participan1 mais ou menos do contexto literário. Temos a impressão de que esse
embaraço, essa dificuldade está marcada por diferentes sintomas, como a multipli
cação o u • refração de clichês sobre o amor já estabelecidos na literatura. Em al
guns casos, a lircrarura de nossa época recicla clichês de maneira mecânica e, ao
mesmo tempo, irônica. Essa é a perspectiva qu e se qualifica como pós-moderna:
não se crê mais na modernidade, nem na nova sol ução inventada, e tampouco nas
velhas soluções. O resultado é a ironia ou a citação. Ao mesmo tempo, a citação
obrigada decorrente da dificuldade de inventar novas figuras e a ironia de não se
acreditar ma.is nas históri as de amor. Daí a dificuldade para sair da posição de um
"não me venham vender histórias de amor, nem de nenhuma o utra coisa". Fim das
ideologias, mas também fim das histórias de amor. E, ao mesmo tempo, a consta
tação do caráter inelu tável disso.
Na Mostra de Veneza por exemplo, percebeu-se o impacto de um filme
como Uma rela ção po rno;ráji,ai, no q u al o autor contrasta� títul� com o fato
de que não se vê no filme, ou apenas muito rapidamente, brmcade1ras que p u -
cm 11 de sctcm·
' \.onfcréncia pron unciada c m TouD, no 5.mbim do Scmimtrio Clini1:o de Françoise e Charles Schn:ibcr
brodc 1999.
e por Nathalic Bayc e Scrgi
dirigido por Fn!déric Fontaync cstn:lado
i U1t1: 1;11110,, p,,.n,,,,,..phiiflli 0999), filme francl:s
l.11pcz.
dessem derivar do qualificativo evocado. Ao contrário, quer-se parti
" r de
hlstóna que estaria centrada unicamente no sexo e, é claro, chega-se ao a.m �
para surpresa sobretudo do rapaz, que, enquanto pensava entrar na história
::
mente pela satisfação, experimenta o paradoxo do amor. Esse é um dos fenl,.
menos clássicos da clínica do sujeito obsessivo, que pensa poder estar tod
o0
tempo muito atento à questão do amor e depois não pára de embaraçar-se en,
múltiplas dificuldades.
Desse ponto de vista, a clínica psicanalítica captou esses diferentes paradox°'
de maneira distinta das dificuldades dJ. narrativa amorosa moderna. Por isso, creio
que esta é uma cxccknu: questão a ser feita à psicanálise: o que você tem a dizer
sobre a dcsordcm .unoros., contcmpor.lnca� a psic.má.Jisc permite que nos oriente
mos ness.1s qucs(ôcs?
É um.1 ilki.l muito hoJ. fazt'=-lo l"lll Tuurs porquc a Touraine é uma terra privi
kgiada p.ir.1 t'SSl" tipo de qucs1jo, El.1 o l(Ji durJntc todo o século cm que a litc
r.1.mr.1 t'r..u,ü·�J. insc.1lou um no\'o 1ipo dc discurso sobre o amor, que se revezava
con1 o dJ. lcáli.1, ... kdin.mJo·o "k outr.1 111.mcira. No século XVI, Pierre de Ron
sJ.rd .; n.iu Ú\'ÍJ. muiw long.c ,-ls ,.,.,,,pi,·s i: um bom cxcmplo para ver como se de
din.1 n.1 licer.1turJ .1 dihn1ld.1d...· "k i:ontJr his1órias de amor. Ele escreveu poemas
� de" J.mor dur.uul" cod.1 .1 su., nd.i. Su., époc., começava bem, sabemos que, no sé-
22 cuJo �'Yl. J.cn.:dic.wJ-Sl" que lu"niJ bom tempo, que a época ia liberar-se das nu
,·C"ns d.1 opn:s.slo esi::oljscicJ, m.1.s logo depois surge Lutero e, em seguida, vê-se o
fim do século , d.in:rsos d.i.!Ji::crimentos. Nas hjstórias de amor de Ronsard, lê-se a
sorcc::. o homem de\'Otado à sorte, o gosto pela astrologia, o impossível cálculo d.a
bo.1. combinaç..io encre homens e mulheres, todos esses temas que o ocuparão até
o fim de sua ,ida .
•\ Touraine, porcanco, é um bom lugar para refletir sobre a maneira pela qual se
inscreveram as histórias de amor e o grande mal-estar atual.
Literatura
Apesar disso, não escolhi Ronsard como cxergo de nUnha conferência de hoje, e
sim um extrato de La Rochcfoucauld. Por que La Rochcfoucauld, que viveu 00
século seguinte? Porque ele é a excelência do moralista francês e o autor de wna
observação que agradou muito Stcndhal, na qual diz que há muita gente que nã�
saberia o que é o amor, se nào tivesse lido hisc6rias de amor. Há um agudo scnn-
' Pierre de Rnnurd f 1524 1585 J, eKrilor e pc)(fll franch Ju M!culo XVI que se TDrnuu conhecido ,.-orno o Mrrill(l(K' Jllll
pcicua"
N11M1,111.•,vo11111
Freud, a disparidade dos sexos
A fantasia e a mística
iram-se as questões. É uma brincadeira
Com O feminism o contemporâneo, reabr
ard dizer : "É formi dável! Com Freud , ao menos sabía-
feminista ameri cana stand
de que, de toda Ria.
mos O que não ánhamos, enl1uan to, com Lacan e sua idéia
ncira, 0 falo não é para nenhum dos dois, n ão podemos nem mais quei xar- nos do
que nio temos".
A maneira pela qual La,an cransformo u essa questão foi dizer que não se tra.
cava de um órgão nem para um, nem para o outro : não há órgão adequado Pira
J.mbos os sexos. O men ino cem o órgão, mas há a angústia de cascração. A menj.
na c:scá ali\'iada d.1 Jngúsci.1, m.1 s n,\ o tem o órgão llllC lhe conviria. Isso, porcan .
to, não funcionJ pJr,1 11ingul:' m . Na scx u.,lidadc, n;\O há o órgão que convém, mu
é cxacamc:mL'" isso l1uc (l1mJ o 1110\'inu:11 1 1 1 psilJIIJlícicn original: de não faz pro .
mc:ssJs, ..:omr.uiJnu.·nh.: ., ou1r.1.., p ... i(1H n.1pi.1s, quc prometem a felicidade sexual.
ParJ t'St.is , se: J.lgm·m du;gJ .t -"C li\'r,,r do sucss, d.1 .mgú.'lli., e1c., não há razão para
n.io p;oz.u \·,11110 (onn-m . :\ p!1oi1..:.111.i li!'lit· , cm w, disso, c,1111 inuJ a i,ustentar que aJ.
gu<.·m podt· rd.t .\ .U 1.mto l l ll.tnto 1..1m·1r.1, 111,l !<I , scj.1 como for, i,t·mprc encon tra.ri. o
ol:istJt.:ull1.
Pl1rt.1nh.1, é")i.'i.J. pcr�ull lJ, 1 1·.,mpor u...t.1 p.1r.1 . , psii::.tnáfüe e rcfi:iu Jc Jiversu ma
nc:ir.1.,;. , tl11 cr.1ll!iolWrt.1dJ J1l'I 1 .tl .111 p.1r.1 11 .11111 1r, .10 ohscr\'ar que, diante da falta
profundJ '-lllL'" .a pMl"Jn.l li,\· frn1il1.111.1 1m1 .1l.1, li., falta nu se xo, há duas posições: a
fmc.1siJ 1.· .1 nu!irÍl"J
P.ir.1 o h1..1m('m, lll) lu�.u d.1 1 .,h.1, i l.1l1111l1 1 1..1m· parece faltar, Lacan situa a fanta
siJ. E o nl,ml.'" CJ111L11.·111 do ,1lll· ...u htl·nlk o .1111or- próprio, segundo La Rochcfou
c.1uJJ. C.1JJ um, por meio ,k !i<.'u .,mor-prbpri o, de seu narcisismo, não pode, na
..:onJiç-lo Jc homem . JI.' m..:nino, nlo buscar as condições de sua felicidade segun
do su.1 fanusi.1. N"lo podc nlo, a pomo de, por in termédio do parceiro do amor,
ou p.ir.1 .1.lcm do p.m:Clro do amor, ha\'er sempre a fa n tasia. É um tipo de verdade
escabckcido pda psic..milise e que , no fundo, marcou o estilo de amor ou as difi
..:u.ld.J.dcs da época. Toda relação, num cerco sentido, é pornográfica . Podc·sc fa
zer codo o possi,·cl para corná·la etérea, ideal, amar o máximo possível, até o amor
louco, mas ,1tris dela se encontrará, para o meni no, a ancoragem famasmática, que
é seu verdadeiro parceiro.
Do ouuo lado, e de maneira exemplar, Lacan fez referência a algo que Freud
não havia destacado com essa énfase. Na obra de Freud, não encontramos refe
rência especial a mística, nem à judja, nem à criscã. Sua única referência ocorre cm
1 905 . Ao convcr!i.ar com Jung, o suíço fascinado pela hiscória das religiões, csce
lhe dizia que alg,J fazia obstáculo à sua teoria da libido: o faca de que havia ercm.i
taS e que, na prácica deles, ao longo dos séculos, no isolamento do monge cm seu
retiro, havia sujcito!I que "t liberavam do mundo, que não tinham mais nenhum
desejo e, portanto, não tinham mai" fan tasia. E l1rcud lhe rcs 1>ondcu que o retiro
do mundo não implicava nenhum retiro neccss�rio da lihidoi cm vez disso, devia
se opor o monge ao sujci10 psic6tico. Para Preud, o monge mio recira seus inves-
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' N. do T l"::nc J..aurcnr parece rdcm aq11i, rcopccúvamcn1c, �1 urm l4 tlr1, '�0'fflllN 11
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ll'lil.lo de 1 907 C(. McCiULR I:, WIiiiam {urg . ) A iornrp,mtllnt1a rort1p/d11 ·
l'tC
L.ic.ln retl1nwu L'SS1..' pl1nto ,k di ti..·r1.· 111n m.mciras no curso de sua obra. De ini
i.:10. como intcrrog.u,·.io sl1hrc 01o mi1otin)s e seu lugar estranho. Em seguida, disse:
" PodenJ.mos ,)por o L·stilo li:tichis1., Jo ,unor no homem e o estilo erotomaníaco
na mulher"'.
Com cti-=iw. SJhL·mos quJ.is for.1m, clinicamente, as ccntativa.s de encontrar na
mulher o cquiv.ilente dJ dinic.1 do fetiche no homem, por exemplo, no fetichis
mo Je tecidos. do cm·oltôrio; os clínicos sempre tiveram grande dificuldade cm
cn..:ontrar .1 s1mctrl.l. O homem fetichista escolhe a roupa de baixo ou o sapato de
mancin pre..::isJ. As mulheres que cêm fetichismo de tecidos usam-nos sobretu
do sobre �i mesm.lS. É ai que se situa a indúscria do fetiche, ramo importante da
indúsC'la de: nossa época, e a indústria têxtil, com resultados práticos. Por outro
lado, nas mulheres, quando a publicidade centa industrializar esse ponco de visca,
bá sempre algo como: "Eu gosto de usar aquilo que ele gosca de cocar", como c:m
recc:me publicidade. Há a referência ao outro e é, sobretudo, sobre o corpo que
ela incide, decorrendo daí a dificuJdadc para delimitar uma simetria entre os di
tos fetichistas.
Com efeito, na clínica da crotomania, há uma grande dcssimecria. A croconta·
nia é, na maior parte dos casos, feminina. Seria preciso, portanto, tornar o mode·
lo da scroronina mais complexo: a scrotonina ma.is algo, pois embora os rccepco·
rcs d.a scrotonina funcionem, podemos ativá-los o quanto q uisermos no menino e
na menina que não obteremos a mc,-ma repartição. Quando Lacan fa.la do "estilo
lln.1 d ll. F d1s!Joll l] lll' l i 'llJl'1t1 1 s11lrl· . 1s1 1 1 r , qur lsM 1 lhe fale o lt:mpo iodo , sendo a
p.irtir d 11 que 'l" l l l fl·rro�.l .1 d1smh111\·ju ou , di�.1mm, ,l di.,paridade. Do lado ho
: �u,.1 nn s1klll 10, .1 l ,Hl l .1,i.1 upn.1 t'lll !ioill'm:io. E, é preciso dizer há
mt·m. 1s..,l1
umJ p.Hl1ll1�1J l' \ ll ,ll1rd111.u i.1 lh 1 l.1do 111.1,(ulino: tio homem que não deve ser �cr
rurl".1dl1 pdl1 b.1r11\lw uu 1 ld,1 1),d,1, r.1 dn1 1n:n,.u1 a , cnliuamo está no i,cu negó
,:10. ou dl· suJ l' \l�l'lll'IJ lk l)lll' , w 11., p.11.H t .,.�. t c ,d.l\ tlevJm derivar do vocabuJ.á
�o cm lll�ll 11.1 s.1.· , u .1l1d.1lk . l. l' I\I lll'11l111111 1 1111 n 1. Enfim, há toda uma sensibilidade
t.,g.tl
Dl1 \Jdo mnlhcr. t· lll'O:c s..;.u,n, .lpl·,.ir Jl· 1 w.lu, que o ser amado fale: �FaJe co
nug.1..1" El.l so podt· .:onsl· n ur ,:om J so,ualldadc depois de uma longa preparação
qu1;7 ú1ns1stc. ,s.."C na.tln u:mc. cm ser envolvida com palavras, para depois consentir.
HJ JJ tod.i umJ dcss1mnriJ responsável pda comicidade das dificuJdades do amor1
o famoso -fak .:onugo" ou o "'vocC: não fala comigo o suficiente ' etc.
7
Um gozo silencioso
escrito, que de não scj.1 d.1 nar nrcu. Pois hem, de se engana. Se tivesse sido mu
lher, c ap.Uxonado pdo Jmor próprio, jamais teria escriro que o amor é um artefa
to. Ccn.1mcme, reria podido fa.Jar d.1 con\'ençào, como madame de Sévigné põdc
faze -lo, m.i.s n.io dm·idar de que há, n.1s rcl,1çõcs do amor e <la palavra, uma rela
ção consubstJ.llt.:i.il, o que , .tli,\.S, fe1. i.:om que as mulheres tenham compreen dido
muito bem, no i.:risú.mismo, i.:umo u verbo se foz i.:arnc. Isso nunca foi um proble
m.1 par,1 o auditório feminino .
Em rcl.tç.io .1 is.,;o, l) .uurupúluF,l' 1 ,11.'.k Goody refletiu sobre a literatura e está
persuadido d(' que o .uuor so pode Jp.uci.:cr nas sociedades com escrita, porque se
('scre,·em cartas d(' .imor . EsrJ bem um antropólogo cc:r esse tipo de idéia, isto é, de
que a cscrica scn·c t.m1bém p,1r.1 isso e: não apenas para fazer a conta exata das tro
p.is do f.irJó. l-.1.is is.\o, de fato, é um erro. De estrutura. Há um ponto cm que, do
LJ.do feminino, a p.iJa,TJ. se cala, e que é ao mesmo tempo o ponto onde isso goza
da pala,n. É o ponto do qual não se pode dizer nada e todas as palavras desfale
cem. Em que se articuJa justamente: um lugar paradoxal, que é o ,ulmen, a essên
cia mesma d.a paJa,n, e ao mesmo tempo o ponto no qual ela desfalece. É aí onde
as mulheres cnconuam o silêncio. Para a metade do universo diferente daquela do
menino, há um momento cm que se está, apesar de tudo, aliviado do parasita lin·
guagciro, do fato de ter ainda de falar nesse pomo - tanto do lado homem quan·
to do lado mulher.
A disparidade do amor está, assim, situada em torno dessa relação em que se
amarram o silêncio e o aparelho linguageiro parasita, cm que Lacan faz aparecer a
conjunção cnue pulsão e silêncio, tanto do lado do menino quanto do lado da me
nina. Desse modo, a questão de Freud "o que elas querem?" obtém uma resposta:
elas também querem gozar em silêncio.
SCHô UM , üi:nhom A11..\' ur�1uw uliJ1ttHm ,/11 J11d1mm, /o/ que, dr I• m_rni911r """' l11111iiru Paris: Cal·
inann· U\'\', I •,hl',I