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O Diabo na história

1 - Egito, Mesopotâmia e Pérsia. >>>

Egito, vizinho da Palestina, terra de deuses, não parece ter


exercido muita influência nas ideias sobre o Diabo na Palestina, já
que a religião egípcia não tem propriamente uma concepção clara
do demônio. Mesmo que no Egito exista uma Enéada (nove) de
deuses primordiais (Re/Atum –> Shu/Tefnet –> Geb/Nut –>
Osiris-Isis/Seth-Nephtys), devemos levar em conta que a Enéada
é mais como uma sequência lógica do que uma narração
mitológica. Por isso se pode dizer com propriedade, que na religião
antiga do Egito, todos os deuses são manifestações ou versões de
uma única divindade suprema: Re/Atum.

O universo é um ser vivente que vive ordenadamente conforme o


impulso desta divindade primordial. O Demônio ou o Mal não

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existe como algo personificado. É simplesmente a ruptura da
ordem, algo concebível tanto no âmbito dos deuses inferiores
como entre os humanos. Os deuses podem ser ambivalentes:
algumas vezes se apresentam aos homens como bons, outras
como perversos e maléficos. Talvez a personificação do mal, o
deus mais “diabólico” de todos, seja o antagonista de Osiris-Isis-
Hórus, Seth, divindade do deserto, da seca, do calor abrasador e
tórrido, da angústia e da febre.

Os próprios homens atuam como demônios ao romper por sua


perversa vontade a ordem do universo. Ao morrer, os seres
humanos malvados são lançados a um reino de sombras,
subterrâneo, onde são atormentados e consumidos pelas
mandíbulas de certos demônios, na realidade deuses de uma
escala ainda mais inferior, ou pelo fogo do deus Re, o Sol.

O mundo mesopotâmico sumério, acádio e assírio-babilônico


constitui um “continuum” religioso dentro do âmbito semita. Os
povos acádios e assírios se sobrepuseram sobre os sumérios na
Mesopotâmia já desde o terceiro milênio AEC e aceitaram muitas
de suas noções religiosas. O pensamento religioso mesopotâmico
é muito diferente do egípcio: a ordem não reina por si só no
universo, por disposição divina. Pelo contrário, o mundo se acha
de modo espontâneo em meio de uma constante desordem; o
cosmos está sempre agitado e desequilibrado por contínuas
desgraças, e são os deuses, com suas intervenções, que devem
restaurar perenemente uma ordem sempre violada. Embora na
Mesopotâmia não exista ainda uma figura do Diabo como tal,
encontramos a concepção de um mundo aéreo bem povoado de
demônios e seres malignos. A origem destes demônios está ligada
à origem dos deuses e do mundo, à cosmogonia, que foi assim:

O casal primordial de deuses, que existia desde sempre, Apsu e


Tiamat o abismo, a água (doce, Apsu; salgada, Tiamat) ou o caos
primitivo, viviam felizes durante infinitos séculos absortos na paz

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de um nada abismal. Passado o tempo sentiram a necessidade de
engendrar diversos deuses. Estes não foram tão pacíficos como
seus progenitores e começaram as disputas entre eles e seus pais.

Apsu decide acabar com sua progênie, posto que lhe fosse
extremamente aborrecido. Para isso conta com a ajuda de um de
seus próprios filhos, Mummu. Mas os deuses mais jovens ficam
sabendo do plano e se trava uma dura batalha, em que as novas
divindades vencem a Apsu e Tiamat e se separam deles
construindo para si uma “casa pacífica” (o universo), onde reinam
por sua conta. Nela a divindade Ea engendra a Marduk, o deus
supremo da Babilônia. Mas Tiamat planeja vingar-se de sua
progênie e engendra outros filhos diferentes dos deuses unindo-
se ao deus Anu: estes são um tipo de seres gigantescos parecidos
aos Titãs gregos, que haviam de opor-se a seus irmãos de criação,
os deuses da primeira geração.

Entre esses gigantes o principal é Kingu, e Tiamat, para ajudar-


lhe nessa tarefa de vingança, volta a engendrar uma série de
seres horrendos, demônios de horrível aparência, escorpiões,
centauros e outros seres espantosos. Mas o eleito novo chefe dos
deuses (filhos de Apsu e Tiamat), Marduk, deus da Babilônia, dá
conta sem problemas de Kingu e de sua mãe. Após derrotá-los de
novo, divide Tiamat em dois usando seu corpo (a água primordial)
para criar um cosmos diferenciado: o céu acima; a terra, abaixo.
Os deuses morarão na parte superior.

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O mais terrível de todos é Lilitu,
deusa sem progênie, noturna,
rodeada de chacais e corujas, que
vagueia a noite pelo mundo atacando
os homens, matando crianças e
bebendo seu sangue.

Os demônios, como deuses inferiores, não são destruídos;


continuam existindo e terão diversos papéis: os annunaki (filhos
de Anu) são os carcereiros no inferno, dos malvados já falecidos;
os utukku vivem nos desertos e causam danos aos que passam
por ali; outros demônios se especializaram em pragas,
enfermidades ou em provocar catástrofes, como terríveis
tormentas. Labartu, que carrega uma serpente em cada mão,
ataca crianças, suas mães e provoca abortos.

Alguns deuses, também de natureza negativa, se encarregam da


“vida” e dos poderes subterrâneos com seu cortejo de males.
Estes deuses infernais também podem ser considerados
“demônios” ou seres maléficos. O mais importante é Ereshkigal, a
rainha das trevas, a deusa da destruição, das pragas e da morte.
Como se fosse pouco, os espíritos dos mortos também podiam
exercer o papel de demônios. Os defuntos levam no interior da
terra uma vida de sombras, quase sem necessidades; mas se
aparecem algumas: podiam aparecer aos vivos e perturbá-los
com diversos danos, caso não lhes ofereçam sacrifícios dos
alimentos necessários para continuar sua débil existência.

Pelo menos desde a reforma de Zaratustra (talvez entre os séculos


VI ao IV AEC), a religiosidade indo-iraniana logo se tornou uma
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religião com características muito definidas, que exerceu também
um atrativo notável para além de suas fronteiras. Especificamente
as concepções iranianas sobre o Espírito do Mal e seus assistentes,
haveriam de influenciar notavelmente o judaísmo.

Segundo os iranianos, existe desde o princípio uma divindade


suprema chamada Ahura Mazda (também denominada Zurván
nas regiões ocidentais); mas não está sozinha; engendrou a dois
Espíritos, iguais e contraditórios: Spenta Mainyu (posteriormente
chamado Ohrmudz), o espírito do Bem, e Angra Mainyu (depois
denominado Ahrimán), o do mal, o espírito da mentira, pois esta
é a essência do mal para os iranianos. Cada um destes dois
espíritos concentra sua energia divina em criar diversos seres e
entidades.

Enquanto o “bom espírito” só engendra coisas boas, o mau,


Ahrimán, se dedica a criar unicamente coisas más, incluindo as
paixões e desejos, luxúria, a desordem, os animais nocivos como
escorpiões e répteis, as forças destrutivas como tormenta, seca,
doenças e morte. Tudo o que existe, o universo e a existência
humana, se acha influenciado e determinado de algum modo pela
luta constante destes dois poderes iguais e antagônicos: o bem e
o mal; a vida e a morte; a luz e as trevas. Mas esta batalha terá
um final feliz, pois o reino do bem acabará se impondo: o do mal
restará destruído; os justos serão separados dos maus e a ordem
do universo definitivamente restaurada.

A própria concepção do Universo material está dominada também


por este dualismo e pela astrologia: o cosmos é concebido como
dividido em mundo de cima e mundo de baixo, ambos em
oposição. Igualmente, o influxo dos astros concebidos talvez
também como espíritos sobre o homem, pode ser saudável ou
maléfico. No âmbito moral aparece do mesmo modo este
antagonismo refletido na oposição no homem do impulso para as
ações boas ou para as más.
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O “mau espírito”, Ahrimán, tem uma multidão de ajudantes que
cooperam com ele em suas perversas tarefas de luta contra o
Bem. Seus “satélites” foram criados justamente para ajudá-lo em
sua luta contra o bem. De fato, quando os homens maus morrem
se convertem também em demônios. Angra Mainyu, ou Ahrimán,
tem um conselho de sete diabos principais que são como o estado
maior que planeja o mal em geral, guiado por um oitavo, a Ira. O
outros sete são: Perversidade, Apostasia, Anarquia, Discórdia,
Presunção, Fome e Sede.

Existem também uns cinquenta demônios subalternos que


personificam as forças maléficas que reinam no universo, assim
como os impulsos aos vícios. Um muito importante era Zahhak
(Azhi Dahaka), um dragão com três cabeças e um corpo como de
serpente e escorpiões. O resto dos demônios, igualmente, a tropa
maléfica de a pé, se acha pronta a instigar sempre os humanos
para o mal. Os demônios podem mudar de figura, e Ahrimán, o
Príncipe das Trevas, adota a forma de leão, serpente ou qualquer
outra. Este poder de metamorfose forma parte de seu potencial
de engano, correspondente à sua natureza de Mentiroso.

Antonio Piñero

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