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Propriedade e Direito Ambiental

Propriedade e Direito
Ambiental
Professor Célio Egídio

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Propriedade e Direito Ambiental

1 Apresentação 3

2 Propriedade dos bens ambientais 3


2.1 Escorço histórico 3
2.2 Propriedade e direito de propriedade 4

3 Propriedade e ética ambiental 6

4 A propriedade nos diversos ramos do Direito 7


4.1 Propriedade no direito administrativo 7
4.2 Propriedade no direito econômico 7
SUMÁRIO 4.3 Propriedade no direito civil 7
4.4 Propriedade no direito ambiental 8

5 A relação homem/natureza 8

6 Direito de propriedade no direito romano 10

7 Direito de propriedade na Idade Média 11


7.1 Direito de propriedade no feudalismo 11

8 Princípios de direito ambiental 13

9 Princípios de direito ambiental 16

10 Direito ambiental - princípios 16

11 A função social da propriedade 17

12 O princípio do poluidor-pagador – certificações 19


12.1 Fundamentos legais e constitucionais 19

13 Princípio da precaução 20

14 Os princípios da Política Nacional do Meio Ambiente e reflexos na


propriedade 21

15 Princípios de direito ambiental e expropriação 23

16 A propriedade no direito ambiental 26


16.1 Os bens ambientais de acordo com sua materialidade e situação 26

17 Propriedade – classificação 26
17.1 Propriedade de bens imóveis 27
17.2 Propriedade de bens móveis 27

18 Licenciamento ambiental 27

19 Direito ambiental e destinação econômica dos bens 28


19.1 Função social da propriedade dos bens de produção 29

20 Licenciamento das atividades econômicas 29

21 Licenciamento ambiental – parte 1 31

22 Licenciamento ambiental – parte 2 32

23 Licenciamento ambiental – parte 3 33

24 Definição de meio ambiente do trabalho 34

25 Função social da propriedade dos bens de consumo 35

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Propriedade e Direito Ambiental

26 Os bens ambientais e sua natureza 36


26.1 Propriedade de bens naturais 36
26.2 Elementos bióticos 37

27 Bens ambientais 38

28 Direito ambiental – antropocentrismo versus homocentrismo 39

29 Direito ambiental – elementos de proteção 41


29.1 Proteção da fauna 41

30 Direito ambiental – sistema de proteção: fauna 42


SUMÁRIO
31 Proteção da flora 43

32 A proteção de elementos não vivos 44


32.1 Bens artificiais 44

33 Titularidade dos bens 45

34 Reserva legal 47

35 Áreas de preservação permanentes e reserva legal 47

36 Uso nocivo da propriedade 48

37 Ação normativa do Conama 49

38 Poder de polícia 51

Referências bibliográficas 53

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Propriedade e Direito Ambiental

1 APRESENTAÇÃO Conforme a frase de um autor desconhecido,


fomos obrigados a mudar tudo para que tudo ficasse
A propriedade, quer seja móvel ou imóvel, sempre da mesma forma.
representou um ícone para o homem. Desde a
antiguidade a representação de objetos e construções É neste viés que apresentaremos neste módulo
resultavam em uma demonstração de força, poder algumas temáticas que envolvem o assunto – apenas
divino e outras formas semióticas e idiossincrasias do algumas, em virtude da vastidão do tema. Não
homo sapiens. nos afastaremos da proteção à fauna, tema que
entendemos pertinente, embora o curso discorra
Com o passar dos anos o uso desses bens sobre direito imobiliário, mas é de bom alvitre que
tornou-se forma de desenvolvimento, ou seja, outra o discente conheça a realidade atual. Trataremos
exteriorização de poder. Na década de vinte ou trinta sobre os diversos ramos que são sincréticos com o
do século passado a imagem de várias chaminés direito ambiental e propriedade, sobre os princípios
soltando fumaça representavam que o progresso que envolvem estes, assim como sobre as questões
havia chegado, e com eles empregos e melhora na econômicas que gravitam em torno do tema.
qualidade de vida.
Enfim, esta será uma disciplina que agregará bom
Qualidade de vida era recorrente na entrada da capital intelectual ao pesquisador e futuro especialista
pessoa no mercado de capitais, ou seja, ao ter um em direito imobiliário, mas sempre verifique as
salário, por menor que fosse, já poderia consumir peculiaridades do local que será seu objeto de
bens e produtos. Então, mais uma vez na história, análise, pois temos leis municipais, leis que atingem
a necessidade de consumo de algo fez com que a as regiões metropolitanas e outras, para além das
humanidade utilizasse todos os produtos ao seu leis estaduais e federais sobre o tema.
entorno para garantir uma satisfação incessante de
todos. Boas pesquisas e bons estudos!

Ao final do século XX, percebe-se que os bens


que tanto desejamos derivam de produtos finitos.
Caso continuássemos nesta busca desenfreada 2 PROPRIEDADE DOS BENS
de consumo de bens e produtos, ao final teríamos AMBIENTAIS
consumido o próprio planeta criador de todos
os insumos, o planeta Terra. Diante dessa nova 2.1 Escorço histórico
concepção, de que os bens são finitos, alterou-se a
relação da propriedade em si, pois seu uso contínuo Remonta à Antiguidade a ocorrência da poluição
e perpétuo tornou-se relativo. A sua individualidade decorrente da ação humana, em particular a
e contratualidade transformou-se em sua socialidade da atmosfera e dos recursos hídricos. Na antiga
e finalidade econômica. Grécia exigia-se uma autorização específica para o
estabelecimento dos curtumes, cujos gases expelidos
Nasce, portanto, uma nova concepção para o tinham um cheiro desagradável. Outra determinação
cientista do Direito em observar a propriedade. incidia sobre as fundições de prata, obrigadas a
Diante da finitude da produção, a proteção da flora instalar chaminés altas para a dissipação dos gases
e da fauna em um ecossistema equilibrado tornou- tóxicos na atmosfera.
se necessária. Até mesmo para que a produção dos
bens continuasse.

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Propriedade e Direito Ambiental

Em 1990 a.C. nascia, na Babilônia, o direito 2.2 Propriedade e direito de propriedade


florestal. O Código Hitita, escrito entre 1380 e
1346 a.C., previa uma multa de três siclos de prata O adjetivo latino proprius, origem etimológica do
para aquele que poluísse a água. Em 1370 a.C. vocábulo “propriedade”, indica uma relação entre
surgia a primeira reserva natural, por obra do faraó um indivíduo e um objeto (alguma coisa específica
Akhenaton. O direito chinês, já na dinastia de Chow que é de uma pessoa específica). Ao apontar para
(1122 a.C.-255 a.C.), registrava uma recomendação essa especificidade, o adjetivo também indica
imperial destinada à conservação das florestas. E, no uma oposição entre o sujeito dessa relação e a
século III a.C., o imperador indiano Asoka adotava universalidade de sujeitos que também poderiam,
aquela que é a primeira lei da história da humanidade em tese, pretender participar dessa mesma relação
a proteger diferentes espécies de animais selvagens com o objeto, mas que estão excluídos (privados)
que se tem notícia. dela em razão de fundamentos que só podem ser
localizados no Direito.
Um dos mais remotos vestígios, no Ocidente,
de regramento jurídico de proteção às florestas é Entende-se por propriedade
a previsão de crime de incêndio florestal, que era
punido com a pena de morte, no direito grego. A [...] a relação que se estabelece entre o
propriedade, por seu turno, é um instituto que sofreu sujeito A e o objeto Y, quando A dispõe livremente
e continuará a sofrer enquanto existirem profundas de Y e esta faculdade de A em relação a Y é
mudanças ao longo do tempo, todas elas destinadas socialmente reconhecida como uma prerrogativa
a adequá-lo às necessidades históricas da civilização, exclusiva, cujo limite teórico é ‘sem vínculos’ e
onde ‘dispor de Y’ significa ter o direito de decidir
ajustando-o às novas realidades econômicas em
com respeito a Y, quer se possua ou não em
constante mutação.
estrito sentido material (OLIVEIRA, 2009).

No que diz respeito ao processo de mediatização


O vínculo existente entre o conceito de propriedade
da relação homem-natureza, vale dizer, à evolução
e o de seu direito respectivo é tão intenso que alguns
tecnológica e suas implicações nas relações
juristas não hesitam em amalgamá-los. Caio Mário da
econômicas de produção e consumo, muitos
Silva Pereira (2009), por exemplo, adota a definição
aspectos do lineamento do instituto da propriedade
clássica, afirmando que “[...] a propriedade é o
podem perder sua base de legitimidade à luz de uma
direito de usar, gozar e dispor da coisa e reivindicá-la
nova realidade histórica, passando a manutenção da
de quem injustamente detenha”.
ordem jurídica anterior a constituir um verdadeiro
transtorno, incompatível com a harmonia social
Cristiane Derani (2009) apresenta o conceito da
desejada.
seguinte maneira:

Por isso, o direito de propriedade necessita


Propriedade traduz uma relação sobre a qual
de constante atualização, na medida em que as recai uma proteção jurídica. Não é a propriedade
circunstâncias sociais, tecnológicas e políticas na um direito. Direito é a sua proteção. Assim, direito
comunidade, bem como as próprias indagações éticas de propriedade é o direito à proteção da relação
que a relação homem-natureza inevitavelmente de um sujeito sobre um objeto. Somente aquela
suscita, encontram-se em incessante modificação. relação que preenche requisitos determinados
pelo Direito é possível de ser protegida.

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Propriedade e Direito Ambiental

Hegel demonstrou o vínculo inevitável entre a Pela fabricação de novos bens (isto é, pela sua
propriedade e o direito de propriedade. Para que transformação por meio do trabalho) temos a união
a liberdade possa existir como ideia, a pessoa do subjetivo ao objetivo, e estes bens adquirem
deve dar um domínio exterior a ela. O domínio de características diversas das originais. O mesmo se
liberdade de um indivíduo deve ser sempre algo dá com a agricultura e a pecuária, isto é, com as
extrínseco a ele, isto é, uma coisa que não integra a transformações da matéria-prima pela mecânica.
própria pessoa. Uma coisa determinada não precisa
ser necessariamente um imóvel ou mesmo ter Contudo, o ato físico de apropriar-se é um ato
consistência física ou materialidade – pode constituir subjetivo, temporário e limitado, tanto na sua
um modelo industrial, um processo de produção, uma extensão quantitativa como na natureza qualificativa
canção. Em todo caso, sendo extrínseca à pessoa, dos objetos. Visto que qualquer bem pode ser
a coisa pode ser objeto de um contrato e tornar-se apropriado, torna-se necessária a criação de “[...]
propriedade (inclusive intelectual). uma legislação positiva pronunciando-se sobre o
carácter mais ou menos essencial das relações”
Assim, para que ideias ou criações artísticas (NÓBREGA, 2005).
ingressem no mundo jurídico, devem antes passar
à categoria de coisas, isto é, ter existência exterior A necessidade de regramento do instituto da
ao espírito. Em sua Filosofia do direito, Hegel não propriedade pelo ordenamento jurídico, demonstrada
questiona o fundamento ético da propriedade. Para pela doutrina de Hegel, justifica a importância do
ele, todas as coisas são passíveis de apropriação estudo do direito de propriedade, sobretudo quando
pelo homem, já que a vontade pode situar-se sobre tratamos da proteção do meio ambiente. Direito de
o que o homem bem entender. É a vontade pessoal, propriedade é o direito de dispor de algo de modo
individual, que se torna objetiva para o homem na pleno, independentemente de ter a sua posse de
propriedade: fato.

Esta adquire por isso o carácter de propriedade A alocação dos recursos econômicos, na condição
privada, e a propriedade comum, que segundo de um dos mais importantes aspectos da função da
a natureza pode ser ocupada individualmente, propriedade, transforma-se automaticamente em
define-se como uma comunidade virtualmente uma estrutura que controla a distribuição do poder.
dissolúvel e na qual só por um acto do meu
livre-arbítrio eu cedo a minha parte. (NÓBREGA, Em razão da propriedade sobre os bens de produção
2005). e dos bens imóveis, principalmente, se torna possível
atribuir tarefas e papéis em um sistema social onde
Num primeiro momento, portanto, a vontade os objetivos se alcançam mediante a interação de
individual define os limites da instituição da papéis complementares. Em outras palavras, a
propriedade privada. propriedade privada confere poder direto sobre os
homens. Assim, deve o Estado fixar parâmetros para
A regra estabelecida por Locke e reafirmada
o exercício desse poder, de forma que ele não venha
por Rousseau, segundo a qual uma coisa pertence
a ser utilizado para fins antissociais.
àquele que foi cronologicamente o primeiro a tomar
posse dela, é desprezada por Hegel, já que “[...]
um segundo não poderia tomar posse do que já é
propriedade do outro” (NÓBREGA, 2005).

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Propriedade e Direito Ambiental

3 PROPRIEDADE E ÉTICA AMBIENTAL A efetividade do princípio da função social da


propriedade em sua dimensão ambiental significa
A propriedade é uma relação de pessoa e bem, simultaneamente a implementação dos valores da
como afirmamos na aula anterior uma relação de ética ambiental a respeito da propriedade imóvel
poder, que ultimamente vem sendo relativizada pelas e todas as suas outras formas, quer estejamos
teorias ambientais, razão pela qual é importante, analisando bens de consumo ou de produção.
nesses primeiros momentos, compreender as
primeiras noções de ética: os valores que estão no Paulo Vieira e Maurício Ribeiro, em Ecologia
entorno do problema. Vejamos o excelente trabalho Humana, Ética e Educação: a mensagem de Pierre
de Guilherme Figueiredo e Márcia Dieguez Leuzinger Dansereau apresentam o seguinte quadro das fontes
(2001), em sua lavra sobre propriedade e direito de uma ética ambiental projetadas sobre a escalada
ambiental. do impacto humano, inspirado na obra de Dansereau:

a) o respeito à natureza adquire-se através


Ao analisar a implementação de uma ética
da experiência e do tesouro de informações
ambiental em uma sociedade planetária caracterizada
que permitem a projeção do indivíduo no meio
pela velocidade nas mudanças e pela desconsideração
ambiente;
ao princípio da precaução, surgem determinadas
indagações: b) a solidariedade com as plantas e os animais
provém da satisfação de necessidades comuns e
a) as forças produtivas do capitalismo da efetivação de serviços e intercâmbios mútuos;
sujeitam-se espontaneamente a princípios jurídicos e
éticos? c) a gratidão pelos frutos da terra resulta
do prazer gerado pelo reconhecimento de
b) os sistemas de controle da produção outras identidades e da fruição dos produtos da
são eficientes para levarem em conta as suas natureza e das obras criadas pelo homem;
consequências ambientais e ecológicas?
d) a satisfação nas conquistas do homem
Dentre os diversos aspectos sob os quais pode ser alimenta-se da compreensão de nossas
contemplada a propriedade – a Política, a Economia, descobertas, invenções e criações, tornando-se
o Urbanismo, a Sociologia, o Direito e outras ciências plena através de sua apropriação pelo indivíduo;

– destaca José Renato Nalini (2007) seu aspecto


e) a harmonia nos hábitats humanos é
moral.
alcançada através de investimentos sábios e
imaginativos nas paisagens e através de uma
Por constituir causa e fonte principal de
repartição justa das gestões e alocações;
moralidade, a acumulação de riquezas não escapa à
ética ambiental, já que f) a integridade na transmissão da informação
e dos comandos exige uma compreensão lúcida
[...] o interesse na maximização de lucros
da disponibilidade dos bens, uma vontade de
tem submetido a terra – compartimentada pelo
compartilhar os direitos e os deveres. (VIEIRA;
direito de propriedade – a evidentes maus-
RIBEIRO, 1999, p. 704).
tratos. A correção moral desse mal uso da terra
geraria um subproduto desejável: a utilização
ambientalmente racional da propriedade
imobiliária. (NALINI, 2007).

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Propriedade e Direito Ambiental

4 A PROPRIEDADE NOS DIVERSOS 4.2 Propriedade no direito econômico


RAMOS DO DIREITO
O direito econômico objetiva: organizar
Não há como estudar todos os aspectos racionalmente a economia no interesse da
relacionados ao exercício regular do direito de coletividade e, nesse sentido, produz regras
propriedade – dentro dos cânones estabelecidos pelo jurídicas ao seu destinatário que impõem coercitiva
princípio da sua função social – exclusivamente a e categoricamente uma determinada conduta.
partir do direito ambiental, uma vez que as interfaces Tais regras constrangem as entidades econômicas,
do mais importante instituto jurídico do capitalismo públicas e privadas, ao cumprimento ou à omissão
estão, também, claramente ligadas a outros ramos do de determinados atos, submetendo-as, para tanto,
Direito, tais como o direito administrativo, econômico à observância das fórmulas de economicidade que
e civil. constituem o núcleo desses comandos jurídicos.

4.1 Propriedade no direito A intervenção do direito econômico sobre o direito


de propriedade, em especial dos bens de produção,
administrativo se evidencia na aplicação de normas interventivas
diretivas e indutivas. Consoante Eros Roberto Grau
O direito administrativo interfere intensamente no
(2000), as normas de intervenção por direção são
direito de propriedade. As manifestações associadas
ao poder de polícia – especialmente as licenças e as
[...] comandos imperativos, dotados de
autorizações administrativas – destinam-se, dentre
cogência, impositivos de certos comportamentos
outras finalidades, a regulamentar determinadas a serem necessariamente cumpridos pelos
atividades econômicas desenvolvidas no âmbito da agentes que atuam no campo da atividade
iniciativa privada. Tais manifestações administrativas econômica em sentido estrito – inclusive pelas
imprimem determinadas características ao direito próprias empresas estatais que a exploram.
de propriedade que se estendem desde os aspectos
clássicos da segurança de pessoas e bens, da saúde e 4.3 Propriedade no direito civil
tranquilidade públicas, até a preservação da qualidade
do meio ambiente natural e cultural, o combate O direito civil é a disciplina jurídica que
ao abuso do poder econômico e a preservação de historicamente sempre se ocupou do instituto da
gêneros alimentícios. propriedade, porém sob uma perspectiva do direito
privado. Não por outro motivo, afirma Caio Mário
O direito de propriedade, na verdade, é um dos da Silva Pereira (2009): “Direito real por excelência,
âmbitos em que mais se revela a face autoritária direito subjetivo padrão ou ‘direito fundamental’”. A
da Administração. As limitações ao direito de propriedade mais se sente do que se define, à luz dos
propriedade, portanto, constituem matéria própria critérios informativos da civilização romano-cristã.
da disciplina do direito administrativo. Particular
referência merece o instituto da desapropriação, Todavia, hoje, especialmente à luz do atual
manifestação administrativa mais incisiva que se Código Civil, não há mais como conceber o direito
conhece sobre o direito de propriedade. de propriedade como mero direito real, instituto de
direito privado. A rigor, a própria dicotomia público
versus privado vem sendo questionada pela doutrina.

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Propriedade e Direito Ambiental

4.4 Propriedade no direito ambiental ramos do Direito relacionados à disciplina do direito


de propriedade voltam-se a um universo mais amplo.
No campo do direito ambiental, finalmente, o bem
ambiental objeto do direito de propriedade pode ser 5 A RELAÇÃO HOMEM/NATUREZA
visualizado, de acordo com as lições de José Rubens
Morato Leite, como “macrobem” ou “microbem”. A vida, em todas as suas formas, em um meio
com variadas características geológicas, climáticas
Macrobem (LEITE, 2003)  é o “[...] conjunto de e hídricas, jamais poderia ter se manifestado em
relações e interações que condiciona a vida em todas equilíbrio estático. Alguns especialistas, por isso,
as suas formas” (art. 3°, parágrafo primeiro da Lei criticam a expressão “ambiente ecologicamente
6.938/1981); portanto, é o meio ambiente entendido equilibrado”, constante no caput do art. 225 da
como um bem incorpóreo e imaterial. Por outro Constituição de 1988, afirmando a inexistência de um
lado, entendido como “microbem”, isto é, como os “equilíbrio ecológico”.
elementos que compõem o meio ambiente, “[...] o
meio ambiente pode ter o regime de sua propriedade Evidentemente, o texto constitucional alude à
variado, ou seja, pública e privada, no qual concerne ausência de desequilíbrios provocados por fatores
à titularidade dominial”. antropogênicos desfavoráveis. Melhor seria dizer
“ambiente em equilíbrio ecológico dinâmico”. Todavia,
Estabelece o art. 225 da Constituição de 1988 que a imprecisão técnica não prejudica a exegese do
o equilíbrio ecológico do meio ambiente é essencial dispositivo constitucional.
à sadia qualidade de vida. Essa afirmação equivale
a dizer que a defesa e preservação de um meio Cada espécie, cada ser vivo na Terra modifica em
ambiente ecologicamente equilibrado é condição certo grau o seu entorno. A relação entre o homem
para a existência da humanidade. e a natureza sempre foi dinâmica e, é preciso
reconhecer, raramente orientou-se no sentido de
Portanto, não é somente a busca de um patamar favorecer esse “equilíbrio ecológico dinâmico”. Desde
digno de qualidade de vida que o direito ambiental o momento em que aprendeu a controlar o fogo, o
pretende. Procura este formas juridicamente viáveis que aconteceu antes do advento da agricultura e da
de refreamento de modelos de produção e consumo pecuária, o homem transforma a natureza de forma
incompatíveis com a manutenção das condições bastante intensa, se compararmos seu processo ao
ambientais necessárias para a vida no planeta, meta de outras espécies.
que supera os resultados que a aplicação plena do
princípio da função social da propriedade, em sua Além disso, o ser humano tem consciência de sua
dimensão ambiental, poderia alcançar. própria existência no mundo e não aceita os limites
que naturalmente lhe são impostos. Daí porque,
Dessa forma, pode-se dizer que existe uma em um determinado momento histórico, depois de
interface entre o direito ambiental e o direito de descobrir a utilização de instrumentos, aprendeu a
propriedade (regulado pelo direito civil, pelo direito construí-los de acordo com as suas necessidades,
administrativo e pelo direito econômico), que é o buscando tornar mais segura e confortável a sua
princípio da função social da propriedade em sua vida na Terra. Dentre as diversas civilizações que já
dimensão ambiental. Todavia, da mesma forma que passaram pelo nosso planeta, a ocidental foi a que
o campo de abrangência do direito ambiental não se mais se empenhou nessa transformação do meio
limita ao estudo desse princípio, também os demais ambiente.

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Propriedade e Direito Ambiental

Longe de indicar normas de conduta de Com a evolução da humanidade de uma fase


coordenação e harmonia com a natureza (se não inicial da selvageria ou comunismo primitivo (em
em respeito aos processos ecológicos, ao menos que as formações sociais predominantes eram tribos
em coerência com a acreditada origem divida da de caçadores e coletores de frutos) às sociedades
criação), a Bíblia Sagrada exalta um comportamento arcaicas, chegamos ao primeiro momento crítico
de dominação. O Gênesis descreve a criação divina de sujeição da natureza aos desígnios humanos.
do firmamento, da terra, dos mares, dos animais, Conquanto o homem já tenha dado início à fabricação
das plantas e, finalmente, do homem e da mulher, de instrumentos destinados a lavrar a terra, cortar
dizendo Deus às suas criaturas: as árvores ou matar os animais desde o momento
em que aprendeu a dominar o fogo, é certo que a
Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e revolução tecnológica deste novo momento histórico
sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e apresentou-se sob forma qualitativamente inédita: a
sobre as aves do céu, e sobre todos os animais agricultura e a pecuária, dois processos de efetiva
que se movem sobre a terra. (Gn. 1:28)
dominação da fauna e da flora.

O próximo versículo descreve:


A revolução agrícola significou, sobretudo, um
importante passo rumo à redução da sujeição do
Eis que vos dei todas as ervas, que dão
homem às inúmeras condicionantes ambientais
semente sobre a terra, e todas as árvores que
encerram em si mesmas a semente do seu
adversas como o ritmo das estações meteorológicas,
gênero, para que vos sirvam de alimento, e a a hostilidade da fauna ou as condições impróprias
todos os animais da terra, e a todas as aves do para a sobrevivência em regiões áridas.
céu, e a tudo o que se move sobre terra, e em
que há alma vivente, para que tenha que comer. O surgimento das formas rudimentares
(Gn. 1: 29). de agricultura possibilitou, na prática, certo
reordenamento da natureza de acordo com a vontade
A civilização ocidental (judaico-cristã), efetivamente, do homem. De igual forma, substituindo a prática da
foi refletida no preceito bíblico, sujeitando a terra, o caça, sempre incerta e muitas vezes arriscada, pela
ar, a água, a fauna e a flora de forma implacável, domesticação de determinadas espécies animais,
na busca da satisfação de seus desejos e caprichos deu o homem início à pecuária, técnica que oferecia
cada vez mais sofisticados, orientado-se a partir de enormes vantagens para a sua sobrevivência.
uma perspectiva antropocêntrica em oposição a uma
visão de passividade ante as forças da natureza. A fecundidade humana “natural”, antes comprimida
pelo condicionamento aos ciclos estacionais da
Todavia, na mesma passagem acima transcrita coleta, da caça e da pesca, experimenta uma primeira
do Gênesis percebe-se que Deus deu a natureza expansão que teria, doravante, não a carência de
ao primeiro homem e à primeira mulher – e, por alimentos como limite principal ao grupo humano,
consequência, a toda a humanidade, indistintamente. mas os efeitos letais das enfermidades e outras causas
de ordem social que abateriam, periodicamente, os
Não há nas Escrituras Sagradas qualquer aumentos mais desbordantes.
indicação de um fundamento divino que justifique a
propriedade privada da terra. E, realmente, na fase Esta expansão demográfica implicou, numa
mais recôndita da antiguidade ocidental não vemos primeira fase, no espraiamento horizontal dos
outro fato senão o uso ou enfrentamento coletivo da homens: o crescimento da população resultou na
terra e dos bens naturais – fauna e flora. conquista de novas terras, antes desabitadas. Em um

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Propriedade e Direito Ambiental

segundo momento, processou-se a estagmentação No direito romano primitivo não existia um


vertical, com a formação dos agrupamentos urbanos. conceito de propriedade como instituto unitário.
Hoje, vivemos uma fase crítica de saturação dos Discutia-se, sim, a extensão do pátrio poder sobre
conglomerados urbanos. pessoas e bens. A patria potestas justificava o poder
sobre as coisas, residindo aí a concepção primitiva do
O quadro evolutivo do processo de dominação da que mais tarde viria a ser o instituto da propriedade.
natureza aponta para a tensão dialética da ocupação
de espaços em face às limitações geográficas Um aspecto do direito romano que, todavia,
do planeta ou, dentro de uma perspectiva não merece ser ressaltado, sobretudo num apanhado
exclusivamente imobiliária, para o binômio da evolução história do instituto da propriedade que
apropriação (e transformação) do meio ambiente se destina à sedimentação de sua função social e,
versus condicionantes ecológicas. dentro desta, de seus aspectos ambientais, reside
na advertência de Hermogeniano de que a pessoa é
6 DIREITO DE PROPRIEDADE NO anterior à razão de qualquer direito.
DIREITO ROMANO
Em outras palavras, se o Direito foi constituído
Em aulas anteriores fizemos um breve resumo por causa dos homens, pouco significaria conhecê-
histórico sobre a propriedade. Nesta aula trataremos lo se forem desconsideradas as pessoas em razão
sobre o direito romano, maior influência do direito das quais ele se constituiu. Não há, portanto, como
pátrio, precipuamente no que concerne ao direito de sustentar que os direitos de propriedade possam
propriedade. ser exercícios de modo tal que possam, de alguma
forma, afrontar a dignidade humana.
A clássica definição do direito de propriedade – jus
utendi, fruendi et abutendi – não é encontrada nas De acordo com os romanistas, a propriedade
fontes do direito romano. Deriva ela, na verdade, dos privada imóvel, à época da fundação de Roma,
intérpretes da Idade Média. estava limitada a apenas duas guerras de terra, que
podiam servir para construir a casa e plantar a horta.
A livre disposição dos bens de que se é proprietário Evidentemente, porém, grandes terras aráveis foram
só viria a consagrar-se como uma das mais ostensivas distribuídas em propriedade particular, já antes das
características do direito de propriedade com o XII Tábuas, no V século a. C. Assim, a legislação
advento do art. 544 do Código de Napoleão. primitiva já conhecia o direito de propriedade sobre
móveis e imóveis.
A jurisprudência clássica do direito romano
conceitua o direito de propriedade como um poder Os bens no direito romano eram divididos em res
jurídico absoluto e exclusivo sobre uma coisa mancipi – imóveis situados em solo itálico, escravos,
corpórea. Este poder jurídico (dominium) pode animais de carga e servidões rústicas mais antigas,
coexistir ou não com o poder de fato (possessio). como os aquedutos – e res nec mancipi – todas as
Todavia, o conceito de posse é mais recente, elaborado demais res, inclusive as obrigações.
pela jurisprudência romana por meio de interditos
baseados na proteção pretoriana que visava coibir a Dentre as formas de aquisição originária no direito
turbação. Esta jurisprudência antecede a Lex Aebutia romano destacavam-se a ocupação e a invenção
(início do século II a.C.). (aquisição do tesouro), a união de coisas (acessão),
a especificação e a aquisição dos frutos.

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Propriedade e Direito Ambiental

A ocupação consistia na posse de um bem in direito quiritário eram repelidas pela exceptio rei
commercio que não estivesse sob domínio de venditae et traditae.
ninguém – bastava o estabelecimento do poder de
fato com animus domini para que fosse reconhecido Finalmente, a propriedade provincial consistia
o direito de propriedade. A caça e a pesca constituíam em terrenos localizados fora da península itálica,
os casos mais frequentes de aquisição por ocupação. de propriedade do Estado em razão da ocupação
de guerra. Neles, a propriedade particular era
Invenção era o nome dado à descoberta de um excluída, podendo, porém o Estado conceder o seu
tesouro desaparecido há muito tempo e cujo dono uso a particulares (possessio vel ususfructus). A ela
tornou-se desconhecido. Sua propriedade era dividida aplicavam-se as regras relativas ao domínio em geral.
em partes iguais entre o descobridor (inventor) e o
proprietário do terreno onde fora encontrado o bem, A preservação da natureza e o controle da poluição
salvo se o descobridor tivesse sido incumbido de não eram desconhecidos do direito romano. A
procurar a coisa pelo proprietário, hipótese em que o administração das florestas em Roma era legalmente
bem pertenceria integralmente a este. regulamentada, mas também havia a influência de
princípios de natureza religiosa.
A acessão de um imóvel a outro se dava por aluvião
(acréscimo causado por depósitos e aterros naturais A Lei das XII Tábuas, de 450a.C., já continha
ou, ainda, em razão do desvio das águas fluviais), disposições destinadas à prevenção da devastação
por avulsão (ajuntamento de uma porção de terra das florestas e, segundo Osny Duarte Pereira (1950)
que se desprendeu de outro prédio por uma força “Cícero considerou inimigos dos Estados os que
natural violenta) e por álveo abandonado (trecho do abateram as matas da Macedônia”.
antigo leito de um rio que desviou de curso, cuja
propriedade era dividida entre os proprietários das De acordo com Fellemberg, na antiga Roma
duas margens). Outra forma de aquisição originária
[...] existia um decreto segundo o qual as
era a especificação, que consistia na transformação
atividades dos matadouros, curtumes, fabricantes
de uma matéria em outra, com função diversa da
de azeite e lavanderias, que provocavam o
original.
desprendimento de cheiros desagradáveis, eram
permitidas somente além do Tibre, ou seja,
A aquisição dos frutos, finalmente, constituía uma
em locais desabitados. (FELLEMBERG apud
forma originária de aquisição pelo proprietário da PEREIRA, 1950).
coisa produtiva. Este princípio sofria restrições nas
hipóteses de usufruto, de enfiteuse, de locação e de 7 DIREITO DE PROPRIEDADE NA IDADE
posse de boa-fé.
MÉDIA
A propriedade pretoriana (ou bonitária) distinguia-
se da quiritária (esta poderia ser adquirida por
7.1 Direito de propriedade no feudalismo
usucapião) por ser o domínio concedido pelo
A força simbólica que teve a queda do Império
pretor. Seu desenvolvimento decorreu da jurisdição
do Ocidente em 476 d.C., momento culminante do
do pretor, protegendo o adquirente duma res
processo de decadência de Toma, não resultou no
mancipi em face daquele que a transferira sem as
imediato desaparecimento das práticas fundiárias
formalidades estabelecidas pelo jus civile. Assim,
do período áureo do direito romano. Por muito
possíveis reivindicações do domínio baseadas no
tempo, ao lado das cidades episcopais e arcebispais,

12
Propriedade e Direito Ambiental

sobreviveriam grandes regiões ocupadas por regulada por um conjunto de obrigações feudais,
latifundiários. consistentes em trabalhar nos domínios do senhor e
em sua própria gleba. A família estava inteiramente
A instituição de um sistema senhorial constitui ligada à terra, não podendo vendê-la ou transmiti-
a origem do feudalismo e decorreu basicamente la por herança. Dentre as obrigações do senhor
da necessidade de segurança e defesa militar por destacava-se a de abrir seus armazéns para que os
parte da população formada, em sua maioria, por vassalos não passassem fome em períodos de má
camponeses. Este novo sistema começa a surgir colheita.
não somente nos territórios antes submetidos ao
Império Romano, mas também na Escócia, na Ao lado dos feudos (concessões nobres) e
Alemanha, na Irlanda e na Escandinávia, esboçando- das terras feudais (concessões plebeias), que
se um feudalismo incipiente, voltado às necessidades relacionavam laços de dependência pessoal à partilha
de alimentação e defesa peculiares a cada região. dos rendimentos do solo, existia simultaneamente
Na Alemanha e no sul da França, em especial, outro sistema de direitos partilhados, fundados em
propriedades de glebas de tamanhos variados são solidariedade. Neste segundo sistema existente na
adaptadas para o sistema feudal, ou por necessidade Idade Média, as propriedades eram simultâneas e
de seus ocupantes, ou pela força. não existia dependência pessoal a um senhor – eram
inspiradas na necessidade de cooperação mútua e de
Nas regiões da Europa que haviam sido governadas valorização das terras incultas.
por Roma, o advento do feudalismo significou a
queda de uma classe governante que já não podia Segundo François Ost (1995):
mais contar com a proteção de seu decadente e
moribundo governo imperial. Em outras regiões, o O domínio predial da vila, por sua vez, traduz-
feudalismo se pela exploração em comum dos bosques,
matagais, baldios e pântanos que rodeavam as
[...] constituiu a mudança de uma existência explorações familiares revela-se num mecanismo
pastoril, nômade e voltada para a guerra, para bastante original, que se poderia qualificar de
uma vida agrícola mais estável (embora ainda ‘propriedade sazonal’: trata-se da pastagem
bastante guerreira). As terras de superfície coletiva (‘pasto baldio’) praticada nas terras
variável constituíam um dos testemunhos do pertencentes a esta ou àquela família, entre o
principal interesse econômico da casa senhorial, momento da última colheita e o da primeira lavra
pois o padrão, fosse o mansio da Gália ou o hide seguinte. Neste sistema, os vilões têm autorização
da Inglaterra, era aquele que podia sustentar para o seu gado pastar em manadas comuns
uma família,a variando seu tamanho segundo a nas terras apropriadas quando estas deixam
região e a fertilidade do solo (WOLKMER, 2006). de servir para colheita. Duas propriedades de
usufruto sucessivo instauram-se, assim, sobre
A relação feudal consistia em um nexo pessoal um mesmo fundo: a do explorador, que dura
vitalício (e, numa fase subsequente, extensivo aos enquanto se procede ao seu trabalho, e depois a
da comunidade, que ocupa os intervalos.
herdeiros varões) entre vassalo detentor da posse da
terra e seu senhor.
A propriedade privada medieval, conquanto
A relação do agricultor com o seu senhor era fosse tida como legítima, não possuía mais as
de dominação e subordinação, cabendo ao vassalo características romanísticas de um direito absoluto.
cultivar as terras e ao senhor oferecer-lhe proteção. Essa legitimidade repousava em bases individuais e
A vida do agricultor e de sua família era inteiramente argumentos de caráter social. Assim, pode-se dizer

13
Propriedade e Direito Ambiental

que o direito de propriedade também era encarado fase de vida dos povos, há de ser compreendida sob
sob o aspecto de sua função social: com efeito, deve a perspectiva de um sistema que afirma a estrita
a propriedade representar um elemento de ordem subordinação dos interesses do indivíduo aos da
e de paz social, prestando-se à organização e ao coletividade.
rendimento da produção. Este aspecto revela-se,
segundo o autor citado, em razão da vedação da Este estágio do capitalismo, no entanto, não
possibilidade de abuso do direito de propriedade em desprestigia o instituto da propriedade privada.
detrimento da coletividade. Pelo contrário, incentiva-o, por entender-se que há
necessidade de o explorador agrícola ser proprietário
Por outro lado, a propriedade móvel estava da terra, a fim de que sinta estímulo em aumentar a
relegada a um plano inteiramente secundário, produtividade.
reservando-se à terra – à propriedade imobiliária – a
natureza de propriedade por excelência, isto é, de 8 PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL
símbolo de riqueza e poder.
Princípios gerais de direito são, para Miguel
A propriedade comunal tem raízes em instituições Reale, enunciações normativas de valor genérico
germânicas e sobreviveu durante o próprio feudalismo. que condicionam e orientam a compreensão
Na Inglaterra, este sistema viria a ser abolido por do ordenamento jurídico para a sua aplicação e
força de lei. Expropriados da terra comunal, os integração ou para a elaboração de novas normas.
trabalhadores agrícolas vêem seu padrão de vida
reduzir-se significativamente. Ensina Paulo Affonso Leme Machado (2005)
que os princípios são os alicerces ou fundamentos
No que diz respeito ao controle legal da poluição do Direito, podendo ter apoio em declarações
na Idade Média, podem ser citados dois precedentes internacionais. Formam e orientam eles a geração e
significativos. O primeiro, datado de 1348, refere-se a implementação do direito ambiental. A fixação do
à proibição do carvão de pedra nas forjas localizadas rol de princípios norteadores do direito ambiental
na área urbana da cidade de Zwickau, na Saxônia. não é tarefa simples de ser cumprida. São poucas as
O segundo é o de uma proibição de calcinação coincidências de ponto de vista na doutrina, e isso
de minérios nas vizinhanças da cidade de Goslar, decorre em grande parte do próprio alcance que cada
conquistada pela mobilização dos moradores de doutrinador pretende atribuir a este ramo do Direito.
referida cidade, vítimas da poluição causada pelas
fundições. Entende-se que os princípios devem ser
extraídos do ordenamento jurídico em vigor, pois
A estrutura econômica do capitalismo provém da não cabe ao intérprete e ao aplicador do direito
decomposição do feudalismo. Uma vez cessado o ambiental estabelecer os seus próprios princípios,
vínculo pessoal do trabalhador ao senhor da gleba, com base naqueles preceitos que ele gostaria que
passa aquele a dispor unicamente de sua pessoa. prevalecessem mas que não são aceitos pela ordem
A expropriação da base fundiária do produtor rural jurídica. Trata-se dos chamados princípios jurídicos
(o camponês) formará a base do processo de positivados, isto é, princípios inscritos expressamente
acumulação primitiva. nos textos normativos ou decorrentes do sistema de
direito positivo em vigor.
O sistema mercantilista, que teve vigência no
período de 1450 a 1750, caracterizou-se por um A partir de uma análise da Constituição Federal,
forte intervencionismo estatal. A propriedade, nessa da Lei 6.938/1981, das Constituições Estaduais e das

14
Propriedade e Direito Ambiental

declarações internacionais de princípios, Álvaro Mirra representam os três pilares da prática do direito
arrola um total de onze princípios norteadores do ambiental, conferindo-lhe a solidez necessária à
direito ambiental: implementação dos fins almejados por este conjunto
normativo que constitui o ramo do direito ambiental.
a) princípio da supremacia do interesse público na
proteção do meio ambiente em relação aos interesses A autora não nega a possibilidade de serem
privados; deduzidos outros princípios internos à norma
ambiental e, por outro lado, considera o direito do
b) princípio da indisponibilidade do interesse desenvolvimento sustentável não um princípio, mas
público na proteção do meio ambiente; uma outra maneira de designar o direito ambiental,
posto que a razão deste está em práticas de produção
c) princípio da intervenção estatal obrigatória na que contemplem a conservação das bases naturais.
defesa do meio ambiente;
Os três princípios mencionados – da cooperação,
d) princípio da participação popular na proteção do poluidor-pagador e da precaução – não seriam,
do meio ambiente; contudo, exclusivamente do direito ambiental.
Podem ser encontrados em outros ramos do Direito,
e) princípio da garantia do desenvolvimento em especial no direito econômico.
econômico e social ecologicamente sustentado;
Nicola Dino de Castro e Costa Neto (2003), por seu
f) princípio da função social e ambiental da turno, após destacar que a violação dos princípios
propriedade; jurídicos assume contornos de uma gravidade maior
do que a contrariedade à própria regra jurídica (já que
g) princípio da avaliação prévia dos impactos
um abalo no balanceamento axiológico dos interesses
ambientais das atividades de qualquer natureza;
repercutiria em todo o sistema), arrola doze princípios
específicos “[...] que inspiram a aplicação do direito
h) princípio da prevenção de danos e degradações
ambiental na busca de uma correta e eficaz tutela
ambientais;
jurídica das florestas tropicais brasileiras”. São eles:
i) princípio da responsabilização das condutas e
a) princípio da intervenção estatal compulsória;
atividades lesivas ao meio ambiente;

b) princípio da participação comunitária;


j) princípio do respeito à identidade, cultura e
interesses das comunidades tradicionais e grupos
c) princípio do acesso equitativo aos recursos
formadores da sociedade; e, finalmente,
naturais;

k) princípio da cooperação internacional em


d) princípio da natureza pública da proteção
matéria ambiental (MIRRA, 1996, p. 50).
ambiental;

Se seguirmos basicamente a tendência germânica


e) princípio da função socioambiental da
e a teoria do agir comunicativo de Habermas,
propriedade;
concentraremo-nos na perspectiva do direito
ambiental econômico, indicando três princípios f) princípio do desenvolvimento sustentável;
basilares: o princípio da cooperação, o princípio do
poluidor-pagador e o princípio da precaução, os quais

15
Propriedade e Direito Ambiental

g) princípio da integração e da cooperação entre tal modo que não haja risco de serem exauridos e
os povos; que as vantagens extraídas de sua utilização sejam
partilhadas a toda a humanidade”.
h) princípio da precaução;
b) Princípio usuário-pagador e poluidor-pagador,
i) princípio da prevenção; que obriga o poluidor a pagar a poluição que pode
ser ou já foi causada.
j) princípio da correção na fonte;
c) Princípio da precaução, consubstanciado no
k) princípio da informação; princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro, de
1992: “Quando houver ameaça de danos sérios ou
l) princípio do poluidor-pagador. irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica
não deve ser utilizada como razão para postergar
Marcelo Abelha Rodrigues esclarece que o
medidas eficazes e economicamente viáveis para
direito ambiental, por ser uma ciência autônoma, é
prevenir a degradação ambiental”.
informado por princípios que regulam seus objetivos
e diretrizes que devem se projetar para todas as d) Princípio da prevenção, que busca evitar a
normas ambientais, norteando-os operadores desta consumação de danos ambientais, encontrando-se
ciência e salvando-os de dúvidas ou lacunas na presente no preâmbulo da Convenção da Diversidade
interpretação das normas ambientais. Tais princípios Biológica (“É vital prever, prevenir e combater na
encontram-se enraizados no Texto Maior e deles origem as causas da sensível redução ou perda da
decorrem outros, derivados ou subsidiários. Trata-se diversidade biológica”) e no princípio 8 da Declaração
de classificação acadêmica, já que o legislador não os do Rio de Janeiro:
definiu de lege lata.
A fim de conseguir-se um desenvolvimento
Entendemos como princípios diretores do sustentado e uma qualidade de vida mais elevada
direito ambiental os seguintes: ubiquidade, para todos os povos, os Estados devem reduzir
desenvolvimento sustentável, poluidor-pagador e e eliminar os modos de produção e de consumo
participação. Classificando esses quatro princípios não viáveis e promover políticas demográficas
como “princípios maiores”, este jurista relaciona o apropriadas.
que chama de subprincípios, a saber: precaução,
prevenção, correção da poluição na fonte, intervenção e) Princípio da reparação, segundo o previsto no
estatal, função social da propriedade, solidariedade, princípio 13 da Declaração do Rio de Janeiro:
globalidade, educação ambiental e informação
Os Estados deverão desenvolver legislação
ambiental, multidisciplinaridade etc.
nacional relativa à responsabilidade e à
indenização das vítimas da poluição e outros
Paulo Affonso Leme Machado (2005), finalmente,
danos ambientais.
propõe a sistematização princípiológica do direito
ambiental a partir de sete princípios gerais:
Os Estados deverão cooperar, da mesma
forma, de maneira rápida e mais decidida na
a) Princípio do acesso equitativo aos recursos
elaboração das novas normas internacionais
naturais, que estabelece o dever de utilização
sobre responsabilidade e indenização por
razoável e necessária dos bens, expresso no princípio efeitos adversos advindos dos danos ambientais
5 da Declaração de Estocolmo (1972): “Os recursos causados por atividades realizadas dentro de
não renováveis do globo devem ser explorados de

16
Propriedade e Direito Ambiental

sua jurisdição ou sob seu controle, em zonas O princípio da função social da propriedade não
situadas fora de sua jurisdição. é peculiar apenas ao direito ambiental: alcança
também o direito civil, o direito urbanístico, o direito
Este princípio também tem por base a Lei do trabalho, o direito do consumidor e o direito
6.938/1981, que adotou a regra da responsabilidade econômico.
civil objetiva por danos ambientais, bem como na
Constituição Federal. Evidentemente, o enfoque que aqui é dado à
sua dimensão ambiental tem relação direta com os
f) Princípio da informação, presente no princípio ramos específico do direito ambiental, mas não há
10 da Declaração do Rio de Janeiro, no art. 2°, item como negar, por exemplo, que a correta aplicação de
3 da convenção sobre o Acesso à Informação, à normas de direito civil sobre propriedade pressupõe
Participação do Público no Processo Decisório e o o respeito à legislação ambiental. Sobre isso já não
Acesso à Justiça em Matéria de Meio Ambiente, na 1a devem pairar mais dúvidas, que foram definitivamente
Conferência Europeia sobre Meio Ambiente e Saúde eliminadas a partir da edição do Código Civil de 2002,
(Frankfurt, 1989), na Declaração de Limoges. em especial em seu art. 1.228, § 1°.

A respeito deste princípio, ensina Paulo Affonso 10 DIREITO AMBIENTAL - PRINCÍPIOS


Leme Machado (2005, p. 73):
É evidente que os princípios jurídicos têm uma
A informação ambiental não tem o fim exclusivo
importância maior do que a mera inferência intelectiva
de formar a opinião pública. Valioso formar a
de vetores constantes num sistema normativo.
consciência ambiental, mas com canais próprios,
administrativos e judiciais, para manifestar-se. O
Álvaro Luiz Valery Mirra, no estudo já mencionado
grande destinatário da informação – o povo, em
acima, afirma que a análise dos princípios
todos os seus segmentos, incluindo o científico
fundamentais dos diversos ramos do Direito tem uma
não governamental – tem o que dizer e opinar.
indiscutível relevância prática, na medida em que
g) Princípio da participação, presente no princípio “[...] permite a visualização global dos sistemas para
10 da Declaração do Rio de Janeiro: “O melhor melhor aplicação concreta de suas normas”. (MIRRA,
modo de tratar as questões do meio ambiente é 1996).
assegurando a participação de todos os cidadãos
O auxílio que eles prestam na “[...] identificação
interessados, no nível pertinente”.
da coerência e unidade que fazem de um corpo
9 PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL normativo qualquer um verdadeiro sistema lógico e
racional” é ainda mais importante no caso do sistema
Podemos notar que a doutrina ainda está longe de jurídico ambiental, cujas normas são “[...] dispersas
alcançar um consenso acerca da nomenclatura e da em inúmeros textos de lei, que são elaborados ao
classificação dos princípios de direito ambiental. longo dos anos, sem critério preciso, sem método
definido”. (MIRRA, 1996).
A despeito disso, hoje já não pairam dúvidas
acerca da existência de princípios próprios do direito Ademais, os princípios são também importantes
ambiental e, portanto, acerca da sua autonomia pela contribuição que prestam à interpretação do
científica. Direito, já que, por serem considerados “[...] uma
norma de hierarquia superior às demais regras
jurídicas do sistema”, torna-se necessário que haja

17
Propriedade e Direito Ambiental

sempre “[...] uma estreita relação de compatibilidade direito ambiental poderão ser aplicados diretamente,
entre a aplicação das regras jurídicas e os comandos por força do disposto no art. 4° da Lei de Introdução
normativos decorrentes do princípio”. (MIRRA, 1996). ao Código Civil.

Isso aplica-se de tal forma e com tal intensidade 11 A FUNÇÃO SOCIAL DA


que, por exemplo, se da interpretação será incorreta PROPRIEDADE
e deverá ser afastada; se uma determinada regra
admitir, do ponto de vista lógico, mais de uma De acordo com Ronald Dworkin, os princípios
interpretação, deverá prevalecer, como válida, aquela são padrões a serem observados, não em razão
que melhor se compatibilizar com os princípios; e, de favorecerem ou assegurarem uma situação
ainda, se nós estivermos diante da hipótese de econômica, política ou social considerada desejável,
ausência de uma regra específica para regular uma mas por uma exigência da justiça, da equidade ou de
situação determinada (é o caso da lacuna), a regra alguma outra dimensão da moralidade. Um princípio
que faltar deverá ser completada e constituída de não pretende estabelecer condições que tornem sua
modo a realizar concretamente a solução indicada aplicação necessária – ele enuncia uma razão que
pelos princípios. conduz o argumento numa certa direção, mas mesmo
assim ele necessita de uma decisão particular.
Trata-se, pois, de instrumento necessário para
confirmar a integralidade do próprio direito. Por Entende Marcelo Abelha Rodrigues que o
todos, merece transcrição o ensinamento de Carlos princípio da função social da propriedade constitui
Maximiliano (2011): um subprincípio radicado no princípio maior de
ubiquidade, podendo este ser analisado sob a ótica da
Todo conjunto harmônico de regras positivas é onipresença – que fundamentaria o direito ambiental
apenas o resumo, a síntese, o substratum de um internacional – ou sob a ótica da horizontalidade
complexo de altos ditames, o índice materializado (inter-relação).
de um sistema orgânico, a concretização de
uma doutrina, série de postulados que enfeixam
Nesse contexto, o autor esclarece que o fato de
princípios superiores. Constituem estes as
que a tutela ambiental tem como objeto de proteção
diretivas, ideias do hermeneuta, os pressupostos
a qualidade de vida, então a sua onipresença e a
científicos da ordem jurídica. Se é deficiente o
sua horizontalidade fazem com que, regra geral, todo
repositório de normas, se não oferece, explicita
e qualquer direito subjetivo, principalmente os de
ou implicitamente, e nem sequer por analogia, o
meio de regular ou resolver um caso concreto, natureza privada, devam obediência aos postulados
o estudioso, o magistrado ou funcionário do direito ambiental.
administrativo como que renova, em sentido
inverso, o trabalho do legislador: este procede Assim, faz-se necessário que todo e qualquer
de cima para baixo, do geral ao particular; sobe empreendimento ou atividade, utilização da
aquele gradativamente, por indução, da ideia propriedade e o exercício das liberdades individuais,
em foco para outra mais elevada, prossegue devam, primeiro e antes de tudo, consultar as
em generalizações sucessivas e, cada vez mais limitações e regras inibitórias ditadas pelo direito
amplas, até encontrar a solução colimada. ambiental. Parece-nos, contudo, que a magnitude que
aqui se dá ao conceito de “princípio da ubiquidade”
Em conclusão, quando a lei for omissa, o princípio pode ofuscar as peculiaridades de diversos outros
da função social da propriedade (inclusive em sua princípios de direito ambiental. A dimensão ambiental
dimensão ambiental) e os diversos princípios de do princípio da função social da propriedade incide

18
Propriedade e Direito Ambiental

sobre direitos subjetivos de natureza privada e seu Estamos diante, portanto, de um conteúdo
objeto de proteção é a qualidade de vida. Todavia, funcional do direito de propriedade. Reputo corrobora
o princípio da função social da propriedade é a conclusão a que chega Nicola Dino de Castro e Costa
multidimensional e determinadas características Neto, quando afirma que o sistema produtivo no
não podem ser explicadas a partir dos cânones do meio rural “[...] não pode subsistir sem a obrigatória
princípio de ubiquidade. referência ao equilíbrio dos ecossistemas, atendidos
princípios outros, aplicáveis à temática jus-ambiental,
Não avançaríamos muito se, por exemplo, tais como o princípio da precaução e o princípio do
procurássemos esclarecer as razões que alicerçam desenvolvimento sustentável”.
a dimensão produtiva ou a dimensão laboral do
princípio da função social da propriedade a partir da No entanto, tal conclusão não se restringe aos
constatação de que o meio ambiente está presente meios de produção rural, alcançando também a
em toda parte. Por tais razões, deve o princípio da propriedade rural destinada ao lazer, a propriedade
função social da propriedade ser classificado como um urbana, bens de produção e de consumo e até
megaprincípio jurídico e não como um subprincípio mesmo a propriedade intelectual. O princípio da
derivado do princípio da ubiquidade. função social da propriedade, na verdade, aponta na
mesma direção do art. 5° da Lei de Introdução ao
A propriedade rural deve atingir um fim social e Código Civil, buscando atender aos fins sociais a que
econômico, sob pena de não ser cumprida sua função a lei se dirige e às exigências do bem comum.
social.
Não se confundindo com atos legislativos,
Nesse diapasão, após reportar-se ao art. 186 jurisdicionais ou políticos que cumpram essa
da Constituição Federal e às Leis 4.504/1964 e finalidade social, o princípio paira sobre tais decisões.
8.29/1993, afirma ser impossível “[...] cogitar do Em outras palavras, ele deve ser levado em conta
cumprimento da função social da propriedade sem a pelas autoridades públicas, como se fosse uma
observância da diretriz constitucional da promoção do razão que inclina em uma ou noutra direção e,
meio ambiente” e, por consequência, “[...] o direito nesse processo, acaba por integrar todos os demais
de propriedade deve ser exercido de modo a que não princípios de direito ambiental que possam, direta ou
sejam malferidos os interesses da coletividade no indiretamente, relacionar-se ao exercício do direito
que tange à promoção do meio ambiente saudável e de propriedade.
ecologicamente equilibrado”.
O princípio da função social da propriedade
A aplicação deste princípio não tem por objeto a paira no ordenamento jurídico, na verdade, como
mera limitação externa ao direito de propriedade. um megaprincípio que engloba os princípios da
De acordo com referido autor, que aqui reforça seus propriedade privada, da defesa do meio ambiente,
argumentos com a doutrina de André Osório Godinho dos valores sociais do trabalho e da defesa do
e Gustavo Tepedino, a função social consumidor, dentre outros. Ele, em si mesmo, não
é uma regra suscetível de aplicação, mas pode se
[...] integra o conteúdo da propriedade, consubstanciar em regras jurídicas.
amoldando-a à satisfação de outros valores
constitucionais que possuem o traço da Trata-se de um megaprincípio voltado à
‘fundamentalidade’ (promoção da dignidade
consecução da finalidade última de toda ordem
da pessoa; construção de uma sociedade
jurídica democrática: a valorização da dignidade
justa; erradicação da miséria; desenvolvimento
humana, que, no plano da normativa ambiental, é
nacional etc.).

19
Propriedade e Direito Ambiental

alcançada por regras que propiciem a vida com saúde independentemente da existência de culpa, em
e um meio ambiente natural e cultural que permita o indenizar ou reparar os danos causados ao meio
desenvolvimento das potencialidades criativas do ser ambiente e a terceiros afetados por sua atividade.
humano.
À luz do § 3° do art. 225 da Constituição Federal
12 O PRINCÍPIO DO POLUIDOR- de 1988,
PAGADOR – CERTIFICAÇÕES
[...] as condutas e atividades consideradas
A Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, arrolou o lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções
seguinte princípio (n.16) de direito ambiental:
penais e administrativas, independentemente da
Tendo em vista que o poluidor deve, em obrigação de reparar os danos causados.
princípio, arcar com o custo decorrente da
poluição, as autoridades nacionais devem Trata-se, portanto, de um sistema constitucional
procurar promover a internalização dos custos de responsabilidade do poluidor em três diferentes
ambientais e o uso de instrumentos econômicos, esferas: a administrativa, a penal e a civil.
levando na devida conta o interesse público,
sem distorcer o comércio e os investimentos No plano econômico, a internalização dos custos
internacionais. ambientais poderia ocorrer a partir da imposição de
tributos ou da criação de certificados e direitos de
A Rio+20, realizada em 2012, apresentou a figura propriedade. A tributação consistiria numa cobrança
do país poluidor-pagador, porém nada acrescentou direta pelo nível de poluição ou uso de um recurso
ao grandes avanços da declaração de 1992. natural. Esta cobrança, na sua forma mais simples,
pode ser através de um tipo de multa que se aplica
Voltando aos primados, dois aspectos importantes sobre o excesso de poluição ou uso acima do padrão
destacam-se neste princípio de direito ambiental: a ambiental estipulado por lei, cujo valor é determinado
responsabilidade do poluidor pelo dano ambiental proporcionalmente a este excesso através de uma
causado (recomposição do meio ambiente degradado) fórmula na qual cada unidade de poluição ou uso tem
e a necessidade de inserção, no custo final, dos um preço estipulado. Com este sistema, poder-se-ia
custos ambientais que são normalmente externados também aplicar uma cobrança sobre o nível permitido
do processo produtivo. por lei, com valores inferiores, com o objetivo de
incentivar menores níveis de poluição e uso.
12.1 Fundamentos legais e
constitucionais A outra via de internalização dos custos ambientais
proposta pela ecologia de mercado é a criação dos
A Lei 6.938/1981, que instituiu a Política property rights, isto é, “certificados” ou “direitos de
Nacional do Meio Ambiente, trouxe ao direito propriedade”. São estabelecidos níveis desejados de
ambiental brasileiro os fundamentos legais para a uso do bem ou serviço ambiental, como por exemplo,
implementação do princípio do poluidor-pagador, a quantidade total de poluição ou de uso permitido.
conceituando os termos meio ambiente, degradação Os índices são distribuídos entre os usuários ou
da qualidade ambiental, poluição, poluidor e recursos produtores em forma de certificados ou direitos,
ambientais (art. 3°, I a V). Ademais, consagrou em estabelecendo um equilíbrio entre a propriedade,
nosso ordenamento a regra da responsabilidade seu potencial econômico e o seu direito propriamente
objetiva do poluidor. Estabelece o § 1° do art. 14 de dito. Estes certificados podem ser transacionados
referida lei, que determina a obrigação do poluidor, em mercados específicos, com controle e taxação

20
Propriedade e Direito Ambiental

da autoridade ambiental, através de operações de Para proteger o meio ambiente, medidas de


emissão e resgate destes títulos. precaução devem ser largamente aplicadas pelos
Estados segundo suas capacidades. Em caso de
Um exemplo desse mecanismo é a redução risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência
certificada de emissões de gases de efeito estufa de certeza científica absoluta não deve servir de
conhecida como mercado de créditos de carbono, pretexto para procrastinar a adoção de medidas
onde uma tonelada de dióxido de carbono (CO2, gás efetivas visando a prevenir a degradação do
meio ambiente.
de efeito estufa) equivale a um crédito. A tonelada do
gás metano (CH4), que provoca um aquecimento da
No entendimento da corrente ambiental-
atmosfera 21 vezes superior ao CO2, equivale a vinte
mercantilista, somente se poderia cercear a
e um créditos de carbono. A tonelada de hexafluoreto
introdução de novas técnicas ou produtos na hipótese
de enxofre, equivale a 23.900 créditos de carbono.
de comprovada lesividade ao meio ambiente ou
à saúde pública. Com a incerteza científica quanto
Através do mercado de créditos de carbono, os
à possibilidade de ocorrência de danos, seria
países que contem com “sumidouros de carbono” (por
inconstitucional a oposição de obstáculos à liberdade
exemplo, florestas em fase de crescimento) poderão
de mercado, por ofensa aos valores da livre iniciativa
negociar tais créditos com as empresas poluidoras
(art. 1°, IV, 2a Parte da CF), da livre expressão
dos países desenvolvidos. Trata-se, de certa forma, de
da atividade científica (art. 5°, IX), do direito de
um pagamento para a obtenção do direito de poluir, o
propriedade (art. 5°, XXII) e à ordem econômica, que
que não contribui para o fortalecimento de princípios
assegura a todos o exercício de qualquer atividade
de uma ética empresarial socioambiental e tampouco
econômica, independentemente de autorização
auxilia a proteção da diversidade biológica. Os
dos órgãos públicos, salvo nos casos previstos em
reflorestamentos são, em geral, homogeneizadores.
lei (art. 170, parágrafo único, da CF). Com base
Na verdade, a implementação do princípio do nestes dispositivos constitucionais, a ecologia de
poluidor-pagador pressupõe a concretização de mercado sustenta que o princípio da precaução seria
outros princípios de direito ambiental, como o da obscurantista, por impedir o desenvolvimento.
precaução, o da prevenção e o da correção na fonte.
Evidentemente, essas críticas não se sustentam,
A necessidade de internalização das externalidades
pois a ciência não se confunde com exigências do
ambientais negativas exige o enfrentamento de
lucro imediato e socialmente irresponsável nem
questões econômicas de grande complexidade e
podem os cientistas aceitar o risco difuso como se
tem repercussão direta na compreensão do princípio
este fosse individualizável e perfeitamente delimitado
da função social da propriedade, como será visto
no espaço e no tempo, alcançando somente os
adiante.
beneficiários da empresa pretendida.
13 PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO Boaventura de Souza Santos (2000, p. 78) alude
Dentre os princípios de direito ambiental, aquele a uma “sensação de insegurança”, cujas raízes se
que provoca mais acirradas críticas por parte dos assentam na
representantes da ecologia de mercado é o da
[...] crescente assimetria entre a capacidade
precaução. Consagrado pela Declaração do Rio de
de agir e a capacidade de prever. A ciência e a
Janeiro de 1992 e não alterado em 2012, constitui o
tecnologia aumentaram a nossa capacidade de
seu enunciado n. 15 e tem a seguinte redação: acção de uma forma sem precedentes, e, com isso,
fizeram expandir a dimensão espácio-temporal

21
Propriedade e Direito Ambiental

dos nossos actos. Enquanto anteriormente os Por outro lado, a adoção de novos padrões de
actos sociais partilhavam a mesma dimensão consumo alimentar nem sempre traz consequências
espácio-temporal da suas consequências, hoje nefastas a curto ou médio prazo. O princípio da
em dia a intervenção tecnológica pode prolongar precaução, mais do que preocupar-se com a
as consequências, no tempo e no espaço, ocorrência do dano, pretende evitar o próprio risco
muito para além da dimensão do próprio acto
ao meio ambiente. Também, como ensina Boaventura
através de nexos de causalidade cada vez mais
de Souza Santos (2000), “[...] a prudência é de difícil
complexos e opacos.
execução porque verdadeiramente pois, sabemos o
que está em jogo quando já está de facto, em jogo”.
Bastam algumas referências aos riscos ambientais
contemporâneos para que se possa ter uma noção
Assim, a Constituição Federal previu um termo
clara acerca de referido prolongamento de efeitos
para que, juridicamente, fosse reconhecido o
danosos no espaço e no tempo. Atenta a esta nova
cumprimento do princípio da precaução: a realização
realidade, a Constituição de 1988 incumbiu ao Poder
do EIA-Rima. Dispõe o art. 225, § 1°, IV, que
Público o controle da produção, da comercialização e
incumbe ao Poder Público exigir, na formada da lei,
do emprego de técnicas, métodos e substâncias que
para instalação de obra ou atividade potencialmente
comportem riscos para a vida, a qualidade de vida e
causadora de significativa degradação do meio
o meio ambiente (art. 225, § 1°, V da CF).
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que
se dará publicidade.
Este controle realizado pelo Poder Público é
compatível com os valores da ordem econômica. Não
é inútil destacar que o princípio da livre iniciativa
14 OS PRINCÍPIOS DA POLÍTICA
referido no art. 1°, IV da Constituição Federal está
NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E
ladeado com os princípios do valor social do trabalho, REFLEXOS NA PROPRIEDADE
da soberania, da cidadania e da dignidade da pessoa
Na década de 1970 consolida-se a ruptura do
humana; que o direito de propriedade assegurado
sistema colonial da economia brasileira. Em alguns
no art. 5°, XXII, da Constituição de 1988 deverá
setores da vida agrária, a produção começa a voltar-
ser exercido em consonância com a sua função
se às necessidades de consumo próprio da população
social (inciso XXIII); e que os princípios da ordem
brasileira e temos, sobretudo, o advento de uma nova
econômica devem ser simultaneamente observados
realidade industrial no País.
(soberania nacional, propriedade privada, função
social da propriedade, livre concorrência, defesa do
O crescimento desenfreado da indústria, todavia,
consumidor, defesa do meio ambiente etc.).
gerou graves distorções de natureza ambiental,
sobretudo nos estados do sul e sudeste do Brasil.
É evidente que, no exame de situações concretas,
No final dessa década, Cubatão, em São Paulo,
o controle do Poder Público sobre a produção, a
era considerada uma das cidades mais poluídas do
comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
planeta. Uma série de importantes diplomas legais
substâncias potencialmente perigosos não terá como
de direito ambiental começa a ser editada a partir da
prever em toda a sua extensão a quase interminável
década de 1980, dentre eles a lei que criaria a Política
sucessão de nexos de causalidade a que Boaventura
Nacional do Meio Ambiente.
de Souza Santos alude. É virtualmente impossível
determinar em um ecossistema quais são as
A Lei 6.938/1981 constituiu um verdadeiro marco
consequências da extinção de determinada espécie
histórico para a nova disciplina jurídica. Ao instituir
de inseto, já que se estará alterando parte de uma
a Política Nacional do Meio Ambiente e o Sisnama –
rede de vida inteiramente interligada.

22
Propriedade e Direito Ambiental

Sistema Nacional do Meio Ambiente e ao consagrar o O planejamento e fiscalização do uso dos recursos
princípio da responsabilidade civil objetiva por danos ambientais, por sua vez, decorre do fato de que
ambientais, essa lei trouxe o lineamento básico do não poderia haver uma política nacional de meio
direito ambiental brasileiro. ambiente se não fosse conferida à administração
pública a possibilidade de elaborar planos prévios de
Em seu art. 2°, a Lei. 6938/1981 elencou dez desenvolvimento sustentável no âmbito da ordem
princípios que deveriam nortear a atuação da econômica e se o cumprimento de metas legalmente
administração pública e da coletividade, vinculando o estabelecidas por esse planejamento não pudesse
objetivo de preservação, melhoria e recuperação da ser fiscalizado. Assim, este princípio conjuga o dever
qualidade ambiental propícia à vida ao oferecimento de planejar, interferindo na ordem econômica (como,
de condições adequadas ao desenvolvimento aliás, autoriza o art. 170 da Constituição de 1988,
socioeconômico, aos interesses da segurança em seus incisos III e VI), com o exercício do poder
nacional e à proteção da dignidade humana. Quase de polícia ambiental, sem o qual o planejamento não
todos os princípios arrolados em referida lei têm passaria de mera declaração de intenções desprovida
íntima conexão com o princípio da função social da de qualquer coercitividade.
propriedade.
O princípio da proteção dos ecossistemas, com
É prevista uma ação governamental na a preservação de áreas representativas, prevista na
manutenção do equilíbrio ecológico, considerando Política Nacional do Meio Ambiente, foi recepcionado
o meio ambiente como um patrimônio público a pela Constituição Federal de 1988: a criação de
ser necessariamente assegurado e protegido, em unidades de conservação da natureza é incumbência
vista do uso coletivo. Não é dito aqui que o meio do poder público, fixada constitucionalmente (art. 225,
ambiente constitui uma propriedade estatal, mas § 1°, III). Não bastaria, porém, a simples definição
que as políticas públicas de defesa do meio ambiente de espaços territoriais. O princípio da proteção dos
devem considerar que os ecossistemas e os diversos ecossistemas aponta para a necessidade de efetiva
biomas são úteis à coletividade. Trata-se, portanto, administração dos componentes que tornam essas
de adoção de uma visão pública na aplicação do áreas representativas, pelo trabalho constante de
princípio da função social da propriedade. biólogos, ecologistas, ornitologistas, engenheiros
florestais etc.
Consagra-se o princípio da racionalização do uso
do solo, do subsolo, da água e do ar. Ou seja, os usos O controle e zoneamento das atividades potencial
de todos os componentes abióticos da natureza estão ou efetivamente poluidoras é um princípio que
sujeitos a regramentos que visam sua utilização de vincula a Lei 6.803/1980, que trata das diretrizes
forma racional, que minimize ou elimine os riscos de básicas para o zoneamento industrial nas áreas
degradação do meio ambiente. críticas de poluição, à Política Nacional do Meio
Ambiente. Por aquela lei, as zonas destinadas à
A aplicação deste princípio se dá, por exemplo, instalação de indústrias passaram a ser definidas
com o controle da emissão de poluentes em veículos em esquema de zoneamento urbano, aprovado por
automotores, com a fixação de limitações ao uso do lei, que compatibiliza as atividades industriais com
solo visando sua proteção contra erosões e outros a proteção ambiental. O zoneamento, urbano e
processos degradantes etc. A utilização racional e rural, industrial ou ecológico, constitui uma das mais
adequada da propriedade rural, aliás, é desde 1988 evidentes facetas da aplicação da função social da
um dos requisitos constitucionais para o cumprimento propriedade no campo do direito ambiental em seu
de sua função social (art. 186, I da Carta de 1988). aspecto imobiliário.

23
Propriedade e Direito Ambiental

A recuperação das áreas degradadas é um A Lei 6.938/1981, ademais, trouxe ao nosso


importantíssimo aspecto da Política Nacional do ordenamento jurídico conceitos basilares do direito
Meio Ambiente e constitui uma regra inteiramente ambiental, como o de poluidor e poluição, além da
envolta pelo manto do princípio da função social da regra da responsabilidade civil objetiva por dano
propriedade. O art. 18 do Código Florestal de 1965 ambiental. Todos os elementos constantes nesse
já estabelecia que “[...] nas terras de propriedade diploma fundamental do direito ambiental brasileiro
privada, onde seja necessário o florestamento ou o são úteis para a implementação do princípio da
reflorestamento de preservação permanente, o Poder função social da propriedade em conjunto com as
Público Federal poderá fazê-lo sem desapropriá-las, já mencionadas disposições do Código Civil de 2002.
se não o fizer o proprietário”.
15 PRINCÍPIOS DE DIREITO
Dentro da uma perspectiva mais ampla, o dever AMBIENTAL E EXPROPRIAÇÃO
de recuperação de áreas degradadas já poderia
fundamentar-se legalmente no art. 159, 1a Parte,
do Código Civil anterior (art. 186 do Código Civil
atual): “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, A base constitucional do princípio do poluidor-
negligência ou imprudência, violar direito, ou causar pagador encontra-se no art. 225, § 2° e 3°, da
prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Constituição Federal de 1988. O § 2°, refere-se
especificamente àquele que explorar recursos
Este princípio, porém, transcende a perspectiva minerais. O § 3°, de maior abrangência, determina
patrimonial civilista, pois estabelece o dever de que as condutas e atividades lesivas ao meio
recuperação até mesmo de área que pertence ao ambiente sujeitarão os infratores a sanções penais e
próprio poluidor. E isso porque, consoante o primeiro administrativas, independentemente da obrigação de
princípio da Política Nacional do Meio Ambiente, já reparar os danos causados.
mencionado, o meio ambiente é um bem de uso
coletivo (patrimônio público, não, porém, estatal). A Sabemos que a responsabilização patrimonial
recuperação das áreas degradadas pelo responsável do empresário que causa dano ambiental em seu
pela degradação é decorrência do princípio da função empreendimento imobiliário constitui corolário do
social da propriedade. princípio do poluidor-pagador. Nesta condição e se
a prevenção é um princípio do direito ambiental que
A proteção de áreas ameaçadas de degradação, deve sempre ser aplicado antes que seja necessário
finalmente, é uma das mais árduas tarefas da Política invocar o princípio do poluidor-pagador, pode-
Nacional do Meio Ambiente, em razão da violenta se concluir que todo empreendimento imobiliário
pressão de setores da economia visando a flexibilização deve trazer embutidas em seus custos as despesas
dos rigores da legislação ambiental. Muitas vezes, decorrentes dos investimentos necessários para se
infelizmente, a aplicação do princípio da função social evitar a ocorrência do dano.
da propriedade é relegada a segundo plano diante de
quaisquer atos administrativos tendentes a promover O empresário chegará à conclusão sobre a
a proteção de áreas ameaçadas de degradação – viabilidade econômica do projeto a partir de uma
por força, quase sempre, do riquíssimo mercado avaliação contábil do eventual retorno financeiro
imobiliário. Quando a aplicação da lei ambiental é dos investimentos havidos com a realização do
bem sucedida, costuma-se alegar que o conteúdo do empreendimento, acrescidos das despesas com
direito de propriedade previsto no art. 5°, XXII, da a prevenção de danos e, quando estes forem
Constituição de 1988, teria sido esvaziado. inevitáveis, com a sua recuperação.

24
Propriedade e Direito Ambiental

Com essas premissas, pode-se dizer que não existe maior valor em razão de sua infraestrutura, por meio
um direito genérico à indenização por desapropriação dos chamados “fatores de homogeneização”, para
indireta de imóvel em razão de ato administrativo a avaliação de áreas desprovidas de interesse no
ambiental (criação de unidade de conservação, mercado imobiliário. Tais “fatores de homogeneização”
tombamento), salvo quando a lei expressamente nada mais são do que índices redutores normalmente
determinar a transferência do domínio para o Poder insignificantes, que acabam por supervalorizar glebas
Público, como é o caso da criação de parques, de terra sem nenhuma infraestrutura.
estações ecológicas, reservas biológicas, florestas
nacionais, reservas extrativistas, reservas da fauna Por exemplo, se no mercado imobiliário um lote de
e reservas de desenvolvimento sustentável. Fora 2.000 metros quadrados numa região privilegiada do
dessas hipóteses, torna-se necessária a referência litoral pode chegar a custar, digamos, 400 mil reais,
e dedução dos custos decorrentes da aplicação dos toma-se o valor de 2.000 reais por metro quadrado,
princípios da precaução e do poluidor-pagador na que é multiplicado pelo fator 0,8 (equivalente a
avaliação de indenizações decorrentes de eventual 80%), chegando-se ao valor de R$1.600,00 por
prejuízo do proprietário frustrado em seus planos metro quadrado de uma gleba de 100.000 metros
de exploração imobiliária em razão de ato do Poder quadrados numa região praticamente inacessível
Público destinado à tutela do meio ambiente. e distante de qualquer benfeitoria. A partir desse
critério, alcançam-se valores astronômicos – neste
Regiões ricas em biodiversidade mas de difícil caso hipotético, R$160.000.000,00 (cento e sessenta
acesso normalmente não comportam previsão milhões de reais) –, valores em total desacordo com
de lucros vultosos, seja pela inviabilidade da a realidade do mercado imobiliário.
transformação das glebas em loteamentos luxuosos,
seja pela impossibilidade fática ou legal de O art. 42 da Lei 6.766/1979 afasta a adoção do
comercialização dos recursos ambientais (cobertura chamado método involutivo de avaliação imobiliária,
vegetal). ao determinar que “[...] nas desapropriações não
serão considerados como loteados ou loteáveis, para
O suposto dano decorrente da impossibilidade de fins de indenização, os terrenos ainda não vendidos
utilização de bem imóvel é apenas hipotético – assim ou compromissados, objeto de loteamento ou
como o lucro – se a exploração nunca existiu. Não desmembramento não registrado”.
obstante, se esse dano virtual for objeto de avaliação
judicial, há que se atentar para os diferentes critérios O método involutivo não se presta para a
de avaliação. apuração de glebas de grande extensão localizadas
em regiões de acentuada declividade, de acesso
Um dos critérios de avaliação é o comparativo, precário, em terrenos escarpados e distantes das
que parte da colheita dos valores de mercado de comodidades dos centros urbanos, pois, por maiores
imóveis em situação similar e obtém uma média que sejam as preocupações com a harmonização
ponderada, incluindo todo o potencial valorativo da das díspares situações advindas da comparação
área. Este, ainda hoje, é o critério mais consentâneo entre áreas inóspitas e pequenos lotes à beira-mar,
com o princípio da justa indenização, insculpido no o resultado será sempre distorcido. Ao pensarmos na
art. 5°, XXIV, da Constituição Federal. implantação de um loteamento, deveremos prever
as despesas de urbanização que traduzem os gastos
O outro critério é o involutivo, utilizado na necessários para a transformação da gleba bruta em
inexistência de paradigmas para comparação, área urbanizável (abertura de ruas, construção de
caracterizado pela transposição do valor de lotes de

25
Propriedade e Direito Ambiental

guias, instalação de iluminação pública, drenagem raízes para consumi-la, o solo deslizaria, provocando
de águas pluviais etc.). grandes catástrofes.

Mas isso não é tudo. Estabelece o § 3° do art. Ora, os danos emergentes de uma determinada
225 da Constituição Federal a responsabilidade civil, exploração econômica de um bem devem
penal e administrativa daquele que, por sua ação necessariamente ser recompostos pelo proprietário,
ou omissão, causar dano ambiental. Responderá o conforme determina o art. 14,§ 1º, da Lei 6.938/1981,
poluidor – e não a sociedade – pelos custos com responsabilidade esta que decorre do princípio da
a recuperação plena do ambiente degradado. Se função social da propriedade. Ao considerarmos os
a hipótese é a de avaliação de bem imóvel e de princípios referidos da função social da propriedade
hipotéticos danos decorrentes da frustrada realização e do poluidor-pagador, chegaremos à conclusão de
de projetos que implicariam a valorização dos bens, que a justa indenização prevista no art. 5°, XXIV,
sendo tais danos hipotéticos, também virtuais serão da Constituição Federal de 1988 deve contemplar o
os danos ambientais. Não temos alternativa senão abatimento dos custos decorrentes da preservação
utilizarmos suposições para apurar qual seria o lucro ou recuperação do meio ambiente degradado do valor
com a eventual exploração, bem como os gastos com a apurado do imóvel através de perícia que considere
reparação de danos ambientais que necessariamente os lucros cessantes ou a expectativa de lucros com
haveria de ser realizada em tal situação. hipotéticos empreendimentos que impliquem o
desmatamento em determinado imóvel.
Não é apenas a recomposição do dano à flora e à
fauna que estaria em jogo, mas também a qualidade A erosão decorrente do desmatamento haveria
do solo. O retorno à qualidade originária do meio forçosamente de ser recuperada pelo causador do
ambiente envolve a recuperação dos elementos dano ambiental. Ocorre que a reparação de danos
bióticos e abióticos da natureza. Dentre as espécies de ambientais, que inclui a recuperação da integridade
degradação do solo, uma das mais graves é a erosão, geomorfológica do solo, é reconhecidamente mais cara
uma das formas mais graves de depauperamento do do que a conservação adequada do bem ambiental.
solo. Trata-se de um processo de desprendimento e Este custo, ainda que na prática a recuperação
de arraste dos elementos constituintes do solo para ambiental não seja possível, deve ser calculado e
as planícies, para os vales, para os leitos dos rios e abatido do valor da indenização devida pelo Poder
até para o mar, em consequência da ação de agentes. Público ao particular. Caso contrário, toda a sociedade
pagará pela implantação de empreendimentos
O processo desenvolve-se em três etapas: imobiliários ou com a exploração madeireira. Enfim,
desprendimento das partículas do solo, seu a justa indenização de bens imóveis é uma equação
transporte e seu depósito, os quais causam a retirada que impõe a dedução das despesas com a proteção
de nutrientes necessários à produção agrícola, e a recomposição de danos ambientais.
reduzindo, assim, a qualidade da cultura na terra
erodida. Nas baixadas, há deposição do material
erodido sobre o solo fértil, destruição de plantas e
assoreamento das águas dos rios.

A proteção natural do solo são as raízes e folhas


das plantas. Destituído o solo de vegetação, a água
penetra na terra formando lençóis e, sem a defesa
natural das folhas das árvores para barrá-las e das

26
Propriedade e Direito Ambiental

16 A PROPRIEDADE NO DIREITO Efetivamente, este princípio – que a rigor estaria


implícito no da função social da propriedade –
AMBIENTAL reforça o ditame do art. 225. Ademais, se o art.
170 da Constituição da República estabelece o
16.1 Os bens ambientais de acordo com princípio constitucional da função social dos bens de
sua materialidade e situação produção, o art. 186 busca coibir a improdutividade
(e, também, a produção obtida por meios ilícitos)
Um exame acurado da Constituição de 1988
na propriedade rural e o art. 182 visa reprimir a
permite que se verifique a estreita conexão entre as
especulação imobiliária na propriedade urbana, sem
normas relativas ao direito de propriedade e aquelas
descuidar da proteção da qualidade ambiental.
atinentes à proteção do meio ambiente.
Eros Roberto Grau (2000) afirma que o termo
Assim, no capítulo relativo aos direitos e garantias
propriedade, presente no art. 5°, XXII, do texto
fundamentais, encontramos inicialmente a garantia,
constitucional, não tem o mesmo significado que
aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, tanto
aquele presente no art. 170, III. A propriedade, em
do direito à vida como do direito à propriedade (art.
seu entendimento, compreenderia um conjunto de
5°, caput). Dentre os incisos do art. 5°, encontramos
variados institutos, com diferentes perfis (subjetivo,
a garantia do direito de propriedade (inciso XXII),
objetivo, estático e dinâmico).
que está condicionado ao cumprimento de sua
função social (inciso XXIII), assegurando-se justa e
Desta forma, seria necessário distinguir diferentes
prévia indenização nos casos legalmente previstos de
tipos de propriedade, como, por exemplo, a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública,
propriedade de valores mobiliários, a propriedade
ou por interesse social (inciso XXIV). Mais à frente, no
literária e artística, a propriedade industrial, a
inciso LXXIII, o direito de propositura de ação popular
propriedade do solo (superficiário rural e urbano e do
visando a anular ato lesivo ao meio ambiente e ao
subsolo), além da propriedade dos bens de consumo
patrimônio histórico e cultural é guindado à categoria
e dos bens de produção. Compreende-se, portanto,
de garantia fundamental, dentro do mesmo patamar
por que referido autor sustenta que a função social
de dignidade conferido ao direito de propriedade. De
da propriedade realiza-se pronunciadamente sobre a
igual forma, no capítulo sobre os princípios gerais da
propriedade dos bens de produção, posto que não
atividade econômica, ao lado do inciso III do art. 170,
deixe de lado a propriedade detida para especulação
que fixa o princípio da função social da propriedade,
ou sem o uso a que se destinaria.
temos os princípios da propriedade privada (inciso II)
e da defesa do meio ambiente (IV). Podemos classificar os bens apropriáveis das mais
variadas formas: de acordo com a sua materialidade,
O princípio da defesa do meio ambiente, segundo
com a localização do bem, com a sua destinação
Eros Roberto Grau (2000),
econômica, com a sua natureza ou, ainda, com a sua
titularidade.
[...] conforma a ordem econômica (mundo do
ser), informando substancialmente os princípios
da garantia do desenvolvimento e do pleno
17 PROPRIEDADE – CLASSIFICAÇÃO
emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento
Adotando-se o critério da materialidade do bem,
necessário – e indispensável – é realização do fim
dessa ordem o de assegurar a todos existência
poderemos falar em propriedade imóvel, propriedade
digna. Nutre também, ademais, os ditames da móvel e propriedade imaterial (propriedade
justiça social. intelectual).

27
Propriedade e Direito Ambiental

17.1 Propriedade de bens imóveis degradação ambiental podem estar sujeitos ao


licenciamento ambiental;
É evidente que o princípio da função social da
propriedade aplica-se inteiramente à propriedade - atende ao princípio da razoabilidade
imobiliária. Se alguma dúvida pairasse a respeito, os oferecer à administração pública certo grau de
arts. 182 e 186 da Constituição Federal de 1988 a discricionariedade, para que ofereça o rol de atividades
teriam rechaçado. No caso da propriedade imóvel, e empreendimentos dependentes de licenciamento
é possível efetuar uma subclassificação de acordo ambiental, dispensando tal exigência nos casos de
com a localização do bem, hipótese em que teremos impacto ambiental completamente insignificante;
propriedade urbana e propriedade rural.
- uma das etapas do licenciamento ambiental é a
avaliação de impacto ambiental.
17.2 Propriedade de bens móveis
A Resolução Conama 237/1997 denomina “estudos
Os bens móveis podem, de acordo com a sua
ambientais” as diversas modalidades de avaliação de
destinação, constituir bens de fruição pessoal (bens
impacto ambiental:
de consumo) ou elementos constitutivos de um
fundo de comércio e máquinas industriais (bens
São todos e quaisquer estudos relativos aos
de produção). A jurisprudência vem se inclinando aspectos ambientais relacionados à localização,
no sentido de estender o princípio da função social instalação, operação e ampliação de uma
da propriedade também à propriedade de veículos atividade ou empreendimento, apresentado
automotores – tanto automóveis particulares (bens como subsídio para a análise da licença requerida,
de consumo por excelência), como transportes tais como: relatório ambiental, plano e projeto
coletivos. de controle ambiental, relatório ambiental
preliminar de risco.
18 LICENCIAMENTO AMBIENTAL
O art. 3° da mesma resolução, parágrafo
Há, porém, que se observar que o mencionado único, dispõe que, verificando que a atividade ou
dispositivo constitucional disciplina as hipóteses empreendimento não é potencialmente causador
de exigência de estudo de impacto ambiental, de significativa degradação ambiental, o órgão
modalidade de avaliação de impacto ambiental ambiental competente definirá os estudos ambientais
destinada para os casos de maior relevância para a pertinentes ao respectivo processo de licenciamento.
proteção ambiental.
Os empreendimentos e atividades causadores de
As atividades causadoras de significativa níveis de poluição que não possam ser considerados
degradação ambiental deverão ser precedidas de um insignificantes (mas não somente aqueles que já
licenciamento ambiental – e, no bojo deste, de um atinjam um grau de significativo impacto), isto é, dos
EIA-Rima. Todavia, o licenciamento é exigível para quais se exija a obtenção de licença ambiental, estão
muitas outras hipóteses em que o impacto ambiental todos eles sujeitos a alguma modalidade de avaliação
não seja significativo. Pode-se, por isso, afirmar que: de impacto ambiental.

- todos os empreendimentos e atividades As atividades causadoras de significativo impacto


considerados efetiva ou potencialmente poluidores ambiental estão sujeitas a uma modalidade de
ou, ainda, que, sob qualquer forma, possam causar licenciamento ambiental mais rigorosa, pois
neste caso a avaliação de impacto ambiental

28
Propriedade e Direito Ambiental

especificamente exigida pela Constituição Federal é destinada a fixar normas para a cooperação entre
o estudo prévio de impacto ambiental. A Resolução os entes federados, tendo em vista o equilíbrio do
Conama I, de 23.01.1986, em seu art. 2°, oferece um desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
importante rol exemplificativo de tais modalidades de
empreendimentos e atividades. Trata-se de um rol 19 DIREITO AMBIENTAL E
taxativo, não exaustivo. Não haveria lógica alguma DESTINAÇÃO ECONÔMICA DOS BENS
em se relacionar dezoito incisos a título de mera
associação de ideias. O art. 170 da Constituição brasileira, que trata
da “Ordem Econômica”, é claro na definição do
Não pode a autoridade administrativa, portanto, papel do Estado como corretor dos desequilíbrios.
deixar de exigir a realização de EIA-Rima, para a Deve o Estado, portanto, garantir que o jogo da
obtenção de licença ambiental, no caso, por exemplo, ocupação, uso dos recursos naturais e repartição de
de aterro sanitário ou de grande projeto urbanístico. seus benefícios entre os atores que se projetam e
se relacionam num dado território não seja de soma
O rol de atividades e empreendimentos constantes nula, onde poucos ganham muito em detrimento de
da Resolução 1/1986 do Conama é exemplificativo. uma maioria abaixo da linha da pobreza, ou à custa
É perfeitamente possível cogitar atividades e de direitos fundamentais de minorias étnicas.
empreendimentos causadores de significativo impacto
ambiental, mas que não estejam relacionados no art. Sob a perspectiva da destinação econômica dos
2º da Resolução Conama 1/1986. Uma atividade que bens, poderemos classificá-los em bens de produção
utilize 9.900 quilos de carvão vegetal, por exemplo, e e a de bens de consumo, havendo ainda quem aluda
um projeto urbanístico de 99 hectares não estariam a bens de uso ou de fruição.
automaticamente desonerados da realização de
estudo de impacto ambiental somente pelo fato As origens do direito ambiental coincidem com a
de não haverem alcançado o patamar estabelecido constatação das consequências advindas da adoção
por referida resolução. Nesta hipótese, porém, não de processos técnicos que exigem a aceleração
estariam enquadrados numa situação de presunção da extração de energia que se pode transformar
juris et de jure de causadores de significativa de em trabalho. Tais processos estão possivelmente
gradação ambiental. presentes em todos os processos civilizatórios da
humanidade e, nesse quadro, o direito ambiental
A Resolução Conama 237/1997 apresenta constitui uma forma de regulação da conduta humana
em seu Anexo 1 uma relação de atividades ou em busca da otimização dos resultados dessas
empreendimentos sujeitos ao licenciamento técnicas, isto é, de aproveitamento adequado da
ambiental. Dentre este rol, algumas licenças deverão energia gerada, seja sob a perspectiva da produção
obrigatoriamente ser precedidas de EIA-Rima, outras econômica, seja do consumo.
não necessariamente.
As resoluções do Conama acerca da destinação
A competência administrativa para a proteção do de óleos lubrificantes constituem exemplo bastante
meio ambiente e o combate à poluição em qualquer claro de busca de consecução de tal finalidade. A
de suas formas, bem como para a preservação das partir do momento em que a entropia decorrente do
florestas, da fauna e da flora, está estabelecida uso de um automóvel atinge um nível anormal de
no art. 23, VI e VII, da Constituição Federal e dos aceleração, o óleo lubrificante é substituído, mas seu
Municípios, cuja disciplina dependerá da edição descarte no meio ambiente é vedado. Inicia-se então
de lei complementar (art. 23, parágrafo único), uma série de novos ciclos de uso – para finalidades

29
Propriedade e Direito Ambiental

cada vez menos sofisticadas – até que, esgotadas suas dada a eles. Não apenas a terra, mas o dinheiro e
características lubrificantes, o óleo é utilizado como mesmo as mercadorias (desde que englobadas na
combustível. Em sua última fase de reciclagem, tem- universalidade do fundo de comércio), portanto,
se a produção de energia térmica para aquecimento podem constituir bens de produção.
de caldeiras e movimentação de máquinas. Encerra-
se, nesse processo, a possibilidade de geração de A observância dos princípios da função social da
energia, visto que o produto petroquímico, que propriedade e da defesa do meio ambiente pelos
levou milhões de anos para atingir tamanho teor agentes da ordem econômica é a principal finalidade
energético, alcançou o grau mais elevado de entropia, do processo de licenciamento ambiental, como será
dissipando-se no meio ambiente na forma de calor e visto a seguir.
resíduos inaproveitáveis.
20 LICENCIAMENTO DAS ATIVIDADES
O direito ambiental, portanto, intervém tanto ECONÔMICAS
na fase de produção como na de consumo de
bens ambientais. Não olvidemos, porém, que esta A atividade econômica no Brasil está
dicotomia é relativa, pois, em última análise, toda constitucionalmente fundamentada em nove
produção é apropriação da natureza pela indivíduo, princípios gerais, dentre os quais os princípios da
no interior e por meio de uma determinada forma de propriedade privada, da função social da propriedade,
sociedade. da livre concorrência e da defesa do meio ambiente.
Por outro lado, enfatizando o princípio capitalista da
O conceito de função social da propriedade está livre concorrência, o parágrafo único do art. 170 da
ligado à produção utilizada e os gastos envolvidos. Constituição Federal assegura o livre exercício de
Entenda-se aqui os gastos em um sentido amplo – qualquer atividade econômica, independentemente
desde os gastos econômicos até os ambientais. de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos
previstos em lei.
19.1 Função social da propriedade dos
Dentre os casos previstos em lei de exigência de
bens de produção
autorização administrativa merecem especial exame
São variadas as interfaces entre produção e meio as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
ambiente, todas elas implicando em forte interferência Buscando o controle e a redução dos riscos de
no campo do direito de propriedade. Fábio Comparato poluição ambiental, a Lei 6.938/1981, que trata
(2006), cuidando especificamente dos bens de da Política Nacional do Meio Ambiente, criou doze
produção, afirma que a função social da propriedade instrumentos em seu art. 9°, dispondo seu inciso IV
consiste no: “[...] poder-dever do proprietário de dar sobre a exigibilidade do licenciamento e da revisão
à coisa uma destinação compatível com o interesse da de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
coletividade”, o qual “[...] transmuda-se, quando tais
O licenciamento ambiental é, portanto, ao lado
bens são incorporados a uma exploração empresarial
do zoneamento ambiental, dos espaços territoriais
em poder-dever do titular do controle de dirigir a
especialmente protegidos e da avaliação de impactos
empresa para a realização dos interesses coletivos”.
ambientais, um dentre os diversos instrumentos
Ensina esse autor que os bens de produção podem da Política Nacional do Meio Ambiente. Está, por
tanto ser móveis como imóveis. A classificação dos outro lado, diretamente vinculado aos princípios
bens em produtivos ou de consumo não se funda constitucionais da função social da propriedade e da
em sua natureza ou consistência, mas na destinação defesa do meio ambiente (art.170, III e VI), razão pela

30
Propriedade e Direito Ambiental

qual seu estudo se reveste da maior importância para d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do
a correta consecução das metas constitucionalmente meio ambiente;
fixadas para a ordem econômica.
e) lancem matérias ou energia em desacordo com
Encontramos sua definição no art.1°, I, da os padrões ambientais estabelecidos.
Resolução Conama 237, de 19.12.1997:
Não é preciso que a atividade seja causadora
Procedimento administrativo pelo qual de significativo impacto ambiental. Basta que,
o órgão ambiental competente licencia a sob qualquer forma, altere adversamente o meio
localização, instalação, ampliação e a operação ambiente. Assim, não há atividade humana em que o
de empreendimentos e atividades utilizadoras meio ambiente não seja minimamente alterado. Em
de recursos ambientais, consideradas efetiva tese, haveria que se exigir a obtenção de licenciamento
ou potencialmente poluidoras ou daquelas que,
ambiental para toda e qualquer atividade humana que
sob qualquer forma, possam causar degradação
importasse intervenção ambiental, o que constitui
ambiental, considerando as disposições legais e
um evidente absurdo.
regulamentares e as normas técnicas aplicáveis
ao caso.
A respeito dessa situação, afirma Antonio Inagê
de Assis Oliveira (2005), p. 237):
O licenciamento ambiental é exigível para as
atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
Embora, a qualquer tempo, dada a amplitude
Dispõe o art. 10, caput, da Lei 6.938/1981 que a
das definições legais, o órgão de controle
construção, instalação, ampliação e funcionamento ambiental possa exigir que tal ou qual atividade
de estabelecimentos e atividades utilizadores ou obra se licencie, as entidades controladoras,
de recursos ambientais, considerados efetiva e através da sua fiscalização, especialmente
potencialmente poluidores, bem como os capazes de, no início da implantação dos sistemas de
sob qualquer forma, causar degradação ambiental, licenciamento, abriram campo para que aquelas
dependerão de prévio licenciamento. atividades menos significativas do ponto de
vista da proteção ambiental escapassem ao
Por degradação da qualidade ambiental deve-se licenciamento, não as intimando as licenciar-se.
entender a alteração adversa das características do Isto por motivos operacionais, uma vez que, para
meio ambiente (art. 3°, II, da Lei 6.938/1981). Trata- o exercício efetivo da atividade licenciadora, havia
se de gênero, do qual a poluição constitui espécie. e, em certa medida, até hoje, há necessidade do
Poluição é (art.3°, III) a degradação da qualidade estabelecimento de alguma prioridade.

ambiental, resultante de atividades que direta ou


indiretamente:

Daniel R. Fink e André Camargo Horta de Macedo,


a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-
por sua vez, buscam no art. 225, IV, da Constituição
estar da população;
Federal o fundamento para a exigência de realização
b) criem condições adversas às atividades sociais de licenciamento ambiental:
e econômicas;
Prever antecipadamente um rol exaustivo
de obras ou atividades que devam se sujeitar
c) afetem desfavoravelmente a biota;
ao licenciamento ambiental é tarefa impossível
e inútil. É preciso que o legislador estabeleça
genericamente qual situação pretende ver

31
Propriedade e Direito Ambiental

protegida pela norma. E, nesse caso, o legislador II – localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais
constitucional o fez: obras ou atividades Estados;
potencialmente causadoras de significativa
degradação do meio ambiente. (FINK; MACEDO, III – cujos impactos ambientais diretos
2002, p. 18). ultrapassem os limites territoriais do País ou de um
ou mais Estados;

IV – destinados a pesquisar, lavrar, produzir,


21 LICENCIAMENTO AMBIENTAL – beneficiar, transportar, armazenar e dispor material
PARTE 1 radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem
energia nuclear em qualquer de suas formas e
A Lei 6.938/1981 estabelece, como regra geral aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional
relativa à distribuição de competências administrativas de Energia Nuclear – CNEN;
para a realização do licenciamento ambiental, que
o órgão competente é o estadual, integrante do V – bases de empreendimentos militares, quando
Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e, couber, observada a legislação específica.
em caráter supletivo, o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O licenciamento ambiental federal é normalmente
Não faz a lei qualquer referência direta à competência fixado em razão do âmbito do impacto direto do
dos municípios para licenciarem. As atividades e empreendimento, não importando se conduzido
obras com significativo impacto ambiental, de âmbito por particular ou por órgão municipal, estadual ou
nacional ou regional, de acordo com o art. 10, § 4°, federal, desde que o impacto ultrapasse um Estado
de referida lei, devem requerer o licenciamento junto federado ou o próprio país.
ao Ibama. As demais dependerão de licenciamento
estadual. Abrem-se, porém as exceções do art. 4°, I da
Resolução Conama 237/1997: caso o impacto direto
Todavia, a Resolução Conama 237/1997 criou alcance o mar territorial (art. 20, VI, da CF), as
um sistema de distribuição de competências terras indígenas (art. 20, XI, da CF) ou unidades de
diverso daquele estabelecido na lei federal – um conservação de domínio da União – sejam elas de uso
sistema, é verdade, mais adequado ao ordenamento sustentável ou de proteção integral -, a competência
constitucional de 1988. Esta distribuição está definida administrativa para licenciar o empreendimento será
nos arts. 4°, 5° e 6° da resolução, de acordo com o do Ibama.
que passa a ser exposto.
Vale atentar, porém, para o fato de que esse
Ao Ibama compete o licenciamento ambiental deslocamento de competência administrativa só
de empreendimentos e atividades com significativo ocorre se o domínio da unidade de conservação for
impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, da União. Assim, um monumento natural, um refúgio
a saber: de vida silvestre, uma área de proteção ambiental
ou uma área de relevante interesse ecológico, ainda
I – localizadas ou desenvolvidas conjuntamente que instituídas por ato do Poder Público Federal, não
no Brasil e tem país limítrofe; no mar territorial; na atrairão para o Ibama a competência para licenciar
plataforma continental; na zona econômica exclusiva; empreendimentos cujo impacto direto os alcance,
em terras indígenas ou em unidades de conservação salvo na hipótese de se tratar de unidades de
de domínio da União; conservação de domínio federal.

32
Propriedade e Direito Ambiental

Por impacto ambiental regional há que se entender 22 LICENCIAMENTO AMBIENTAL –


todo e qualquer impacto ambiental que afete
diretamente (área de influência direta do projeto), no
PARTE 2
todo ou em parte, o território de dois ou mais estados Os órgãos ou entidades estaduais constituem
(art. 1°, IV, da Resolução Conama 237/1997). órgãos seccionais do Sisnama, responsáveis pela
execução de programas, projetos e pelo controle
Dispõe o art. 4°, § 2°, de referida Resolução
e fiscalização de atividades capazes de provocar
Conama que o Ibama, “[...] ressalvada sua
degradação ambiental, nos termos do art. 6º, V, da
competência supletiva, poderá delegar aos Estados o
Lei 6.938/1981.
licenciamento de atividade com significativo impacto
ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando A Resolução Conama 237/1997 dispõe, em seu
possível, as exigências”. art. 5°, que compete ao órgão ambiental estadual
ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos
De acordo com Daniel Fink e André Camargo
seguintes empreendimentos e atividades:
Horta de Macedo (2002), tal dispositivo é de
constitucionalidade duvidosa, na medida em que pode I – localizados ou desenvolvidos em mais de
levar à submissão de um Estado-membro a outro, um Município ou em unidades de conservação de
em casos em que o Ibama delegar o licenciamento domínio estadual ou do Distrito Federal;
a somente um deles. Isso não quer a Constituição. A
observação é pertinente e comporta desdobramentos II – localizados ou desenvolvidos nas florestas
críticos. A delegação de competência para licenciar e demais formas de vegetação natural de
empreendimentos que tenham significativo impacto preservação permanente relacionadas no art.2°
ambiental em mais de um Estado somente estaria da Lei. 47741, de 15.09.1965, e em todas as que
assim forem consideradas por normas federais,
isenta do vício de inconstitucionalidade caso fosse
estaduais ou municipais;
possível proceder-se a um licenciamento duplo, pelos
dois Estados atingidos.
III – cujos impactos ambientais diretos
ultrapassem os limites territoriais de um ou mais
No entanto, o art. 7° da Resolução Conama
Municípios;
237/1997 dispõe, de forma inteiramente correta, que
os empreendimentos e atividades serão licenciados IV – delegados pela União aos Estados ou
em um único nível de competência. Trata-se de ao Distrito Federal, por instrumento legal ou
garantia ao cidadão, ao empreendedor, que de outra convênio.
forma estaria obrigado a se sujeitar a dois órgãos
licenciadores do Sisnama e, eventualmente, a Não fosse o fato de a Resolução Conama 237/1997
realizar dois estudos de impacto ambiental diferentes haver verdadeiramente alterado as disposições
para um mesmo empreendimento. A irracionalidade constantes da Lei 6.938/1981, atribuindo aos
de tal procedimento duplo resultaria certamente em municípios competência para realizar licenciamentos
conflito federativo similar à chamada guerra fiscal ambientais, teria sido desnecessária a atribuição
entre Estados federados, alimentado pela União de competência dos Estados para licenciarem
Federal. empreendimentos e atividades localizados em
unidades de conservação de seu domínio. Esta regra
prevalece, ainda que a unidade de conservação
esteja inteiramente abrangida nos limites de um
único município.

33
Propriedade e Direito Ambiental

O inciso II do art. 5° da Resolução Conama Com inteiro amparo constitucional, o caso


237/1997 não trata de licenciamento cujo impacto específico do licenciamento ambiental, o autorizativo
ambiental direto atinja estes espaços territoriais, mas legal, se encontra no art. 10 da Lei. 69.938/1981,
daquele que esteja fisicamente localizado, ou seja, que condiciona a construção, ampliação, instalação
topologicamente desenvolvido neles. O dispositivo e funcionamento de qualquer estabelecimento ou
não distingue Áreas de Preservação Permanente – atividade utilizadora de recursos ambientais ao “[...]
APPs situadas em área urbana, de expansão urbana prévio licenciamento do órgão estadual competente,
ou rural, e por isso colide com o disposto no art. 22, integrante do Sisnama, e do Instituto Brasileiro do
parágrafo único, do Código Florestal, que confere aos Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis –
municípios a competência para fiscalizar APPs situadas Ibama, em caráter supletivo”.
em áreas urbanas, atuando a União supletivamente.
Como cogitar da concessão de licença ambiental Portanto, na forma da lei, foi outorgada
estadual para instalação de empreendimento expressamente ao Estado-membro e à União, em
econômico em APP localizada em área urbana se, por caráter supletivo, a competência para o exercício
expressa disposição legal, cabe ao município fiscalizar do licenciamento ambiental. Ao Município não foi
esse espaço territorial especialmente protegido? outorgada esta competência, que há de ser expressa.

Extremamente polêmico, o art. 6° da Resolução É de se consignar que o licenciamento ambiental


Conama 237/1997 atribuiu ao órgão ambiental é um instituto, criado pela lei federal, restritivo do
municipal competência para promover o licenciamento exercício de direitos em todo o território nacional.
ambiental de empreendimentos e atividades de Compete, portanto, à mesma lei determinar quais
impacto ambiental local e daqueles que lhe forem as autoridades públicas com capacidade para a sua
delegados pelo Estado por instrumento legal ou aplicação. Assim, é fácil concluir que os municípios
convênio. O dispositivo diz ainda que, quando couber, não têm competência para o licenciamento ambiental.
serão ouvidos os órgãos competentes da União, dos
Estados e do Distrito Federal. 23 LICENCIAMENTO AMBIENTAL –
PARTE 3
Antonio Inagê de Assis Oliveira opõe-se à hipótese
de licenciamento ambiental pelos municípios: O art. 1°, II, da Resolução Conama 237/1997
assim define a licença ambiental:
O licenciamento ambiental visa a ordenar, em
nível nacional, o aproveitamento racional dos
recursos ambientais em prol do desenvolvimento
socioeconômico sustentável. Representa, [...] ato administrativo pelo qual o órgão
portanto, uma intervenção do Estado (União) na ambiental competente estabelece as condições,
ordem econômica e social, visando adequar a restrições e medidas de controle ambiental que
propriedade à sua função social. Assim, constitui- deverão ser obedecidas pelo empreendedor,
se em uma restrição ao livre aproveitamento da pessoa física ou jurídica, para localizar, instalar,
propriedade ou ao livre exercício, das atividades ampliar e operar empreendimentos ou atividades
econômicas. Como as restrições aos direitos utilizadoras dos recursos ambientais consideradas
individuais só podem existir por força de lei efetiva ou potencialmente poluidoras ou aquelas
formal, há que haver uma lei especial que autorize que, sob qualquer forma, possam causar
sua aplicação. (OLIVEIRA, 2005, p. 237). degradação ambiental.

34
Propriedade e Direito Ambiental

São três as modalidades de licença ambiental, que ser respeitados, aplicando-se, inclusive, as
poderão ser expedidas isolada ou sucessivamente, sanções de cada legislação – federal, estadual
de acordo com a natureza, característica e fase do ou municipal – em caso de desobediência.
empreendimento ou atividade: licença prévia (LP),
licença de instalação (LI) e licença de operação (LO). A rigor, dada a natureza difusa do bem ambiental,
as atividades econômicas impactantes têm
De acordo com o art. 8°, 1 da Resolução Conama importância para os municípios, estados e União e,
237/1997, a licença prévia (LP) será concedida na muitas vezes, sua repercussão é continental, e até
fase preliminar do planejamento do empreendimento mesmo planetária. Assim, caso não se adotasse um
ou atividade aprovando sua localização e concepção, critério técnico como a abrangência do impacto direto
atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os da atividade ou empreendimento, praticamente todas
requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos as atividades econômicas passariam a ser licenciadas
nas próximas fases de sua implementação. não apenas de forma dúplice, mas tríplice, com
grande prejuízo para a Administração Pública e o
A licença de instalação (LI) destina-se a autorizar próprio regime federativo.
a instalação do empreendimento ou atividade de
acordo com as especificações constantes dos planos, O art. 23, parágrafo único, da Constituição Federal
programas e projetos aprovados, incluindo as medidas dispõe sobre a edição de lei complementar que
de controle ambiental e demais condicionantes, da fixará normas para a cooperação entre a União e os
qual constituem motivo determinante. Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em
vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar
Finalmente, a licença de operação (LO) autoriza em âmbito nacional. Enquanto tal diploma legal não
a operação da atividade ou empreendimento, após for editado, certamente remanescerão divergências
a verificação do efetivo cumprimento do que consta jurisprudenciais e doutrinárias acerca desta questão.
das licenças anteriores, com as medidas de controle
ambiental e condicionantes determinados para a 24 DEFINIÇÃO DE MEIO AMBIENTE DO
operação. TRABALHO
O parágrafo único do mencionado art. 8° destaca O meio ambiente do trabalho é um importante
que a expedição das licenças ambientais poderá ser aspecto do meio ambiente relacionado aos bens
isolada ou sucessiva, de acordo com a natureza, de produção. De acordo com José Afonso da Silva,
características e fase do empreendimento ou estaria inserido no meio ambiente artificial e é assim
atividade. definido:

Dispõe o art. 7° da Resolução Conama 237/1997 Complexo de bens imóveis e móveis de uma
que os empreendimentos e atividades “serão empresa e de uma sociedade, objeto de direitos
licenciados em um único nível de competência”. subjetivos privados, e de direitos invioláveis da
saúde e da integridade física dos trabalhadores,
Paulo Affonso Leme Machado (2005, p. 332): que o frequentam. Esse complexo pode ser
agredido e lesado tanto por fontes poluidoras
Existirão atividades e obras que terão internas como externas, provenientes de outras
importância ao mesmo tempo para a Nação e empresas ou de outros estabelecimentos civis de
para os Estados, e, nesse caso, poderá haver terceiros. (SILVA, 2002, p. 187).
duplicidade de licenciamento. O deferimento
ou o indeferimento do licenciamento deverão

35
Propriedade e Direito Ambiental

Por meio ambiente do trabalho devemos entender O tombamento administrativo de um prédio


não apenas um espaço físico determinando (por histórico onde funciona um estabelecimento
exemplo, o espaço geográfico ocupado por uma industrial não haverá, por certo, de obstar a aplicação
indústria), aquilo que costumeiramente denominamos de medidas de segurança e higiene do trabalho.
de estabelecimento, mas a conjugação do elemento Neste caso, a tutela do bem cultural trará por
espacial com a ação laboral. Hoje, a maioria dos consequência a impossibilidade de prosseguimento
trabalhadores insere-se em conglomerados urbanos, das atividades laborais naquele local, desde que não
labutando no interior de indústrias, escritórios, existam alternativas para viabilizar a segurança dos
hospitais, supermercados, escolas etc. trabalhadores no prédio, já que o bem tutelado é a
qualidade de vida do trabalhador.
Nessas situações, a fixação do trabalhador em
determinado local se dá de forma tão clara que não Sabemos que sobre os bens de produção incide o
haveria necessidade de distinguir a noção de meio princípio da função social da propriedade. No caso em
ambiente de trabalho (local onde o trabalhador tela, buscamos dar destaque à dimensão ambiental
está desenvolvendo a sua atividade profissional) da dessa função social dos bens de produção enquanto
noção de estabelecimento, por serem coincidentes, meio ambiente do trabalho, onde sobressaem valores
ao menos enquanto o estabelecimento for palco da ligados à proteção da vida e da saúde do trabalhador.
ação laboral. A rigor, essa coincidência somente se dá Trata-se de aspecto vinculado ao princípio maior da
no momento em que o trabalhador está exercendo dignidade humana.
as suas atividades profissionais. Um estabelecimento
industrial que venha a ser interditado por um motivo 25 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
qualquer continuará a ser um estabelecimento, mas DOS BENS DE CONSUMO
não pode mais ser chamado de meio ambiente de
trabalho. Retornando as questões da função social, o
eminente professor Orlando Gomes, como descrito
Dessa forma, se a atividade laboral, como visto, abaixo, entende que somente os bens de produção
não se limita a um único espaço geográfico (se ela estariam sujeitos ao cumprimento de uma função
admite a movimentação do trabalhador), poderemos social, pois os bens de uso ou de consumo não
dizer que meio ambiente do trabalho é o local onde o seriam idôneos à satisfação de interesses econômicos
trabalhador desenvolve a sua atividade profissional. e coletivos constitutivos do pressuposto fático da
Esse aspecto do meio ambiente – o meio ambiente função social: “Só apedeutas estendem aos bens de
do trabalho –, assim, desloca-se com o trabalhador uso o princípio da função social da propriedade edilícia
nos períodos em que este se encontra no exercício da ou, até mesmo, na de bens duráveis” (GOMES, 2010,
atividade laboral. p. 120).

No caso de preservação de um estabelecimento José Diniz de Moraes (1999, p. 146) contesta


industrial em razão de seu valor histórico ou com veemência a opinião de Orlando Gomes: “Toda
arquitetônico, o bem tutelado não será o meio propriedade apta a satisfazer determinada função
ambiente de trabalho. Por se tratar de um patrimônio social, num determinado momento e lugar, atrai para
cultural, protegido será o meio ambiente cultural. si essa obrigação social de satisfazê-la”.
No caso de existência de risco para a saúde e a
segurança do trabalhador, eventual dificuldade no Segundo Gomes, somente uma pessoa sem
aperfeiçoamento do local de trabalho redundaria na maiores esclarecimentos poderia podemos afirmar,
alteração do local de execução do trabalho. atribuiria a uma obra de arte, a um edifício antigo

36
Propriedade e Direito Ambiental

ou a um apartamento residencial a qualidade de 26 OS BENS AMBIENTAIS E SUA


bens produtivos. Todavia, não se duvida que em
determinadas oportunidades e em determinadas
NATUREZA
situações desempenha eles verdadeiras e próprias Adotando como critério para identificação dos
funções sociais: “O proprietário de uma obra de arte, vários aspectos do meio ambiente a necessária
pelo princípio da função social, tem a obrigação de interferência do ser humano em sua estrutura original,
preservá-la, pode ser obrigado a dar preferência teríamos a dicotomia: o meio ambiente natural-meio
ao Estado em caso de alienação, ela pode ser ambiente cultural (humano ainda, artificial).
desapropriada por interesse social etc” (MORAES,
1999, p. 146). Moraes, em socorro à sua tese, invoca Cumpre, porém, ressaltar que a distinção entre os
a lição de Perlingieri, no sentido de que também os diferentes aspectos do meio ambiente tem finalidade
bens de consumo têm uma função social. pura e exclusivamente didática e, rigorosamente
falando, a divisão carece de rigor lógico e científico.
Por outro lado, embora seja adotada uma visão mais Valemo-nos, nesse passo, da lição de Cristiane Derani
extensiva da aplicabilidade do princípio, defendendo a (1997, p. 149-150):
função social da propriedade econômica, da urbana,
da agrária, dos bens culturais e dos bens ambientais, Na medida em que o homem integra a natureza
sustenta-se que não estão sujeitos ao princípio da e, dentro do seu meio social, transforma-a, não
função social os objetos de fruição exclusivamente há como referir-se à atividade humana sem
privada, cujos efeitos do uso não ultrapassam a englobar natureza, cultura, consequentemente,
relação estabelecida entre sujeito e objeto. sociedade. Toda relação humana é uma relação
natural, toda relação com a natureza é uma
Os bens que estão aptos a servir aos interesses relação social.
individuais e públicos estariam elencados na
Constituição de 1988. Os bens de produção obedecem Aliás, quando a Constituição Federal prevê a
ao princípio da função social, que “[...] reformula possibilidade de proteção de sítios de valor ecológico
um a prática distorcida de ação social traduzida na como bens culturais, está precisamente apontando
privatização dos lucros e socialização das perdas” para o acerto dessa afirmação.
(DERANI, 2008, p. 239).
26.1 Propriedade de bens naturais
De imediato percebe-se que a implementação do
princípio da função social da propriedade dos bens de Natural seria o aspecto do meio ambiente que
consumo envolve a gestão dos resíduos sólidos, tema congrega o espaço não necessariamente alterado
que apresenta um enorme grau de complexidade. No pelo ser humano.
mais, a demonstração da existência de uma função
social a ser exigida da propriedade de automóvel e Nas ciências biológicas, este aspecto é objeto
suficiente para demonstrar que a tese de José Diniz de estudo da Ecologia. José Afonso da Silva (2002,
de Moraes é impecável. p. 127) considera que o meio ambiente natural é o
espaço

[...] constituído pelo solo, a água, o ar


atmosférico, a flora, enfim, pela interação dos
seres vivos e seu meio, onde se dá a correlação
recíproca entre as espécies e as relações destas
com o ambiente físico que ocupam.

37
Propriedade e Direito Ambiental

É este o aspecto do meio ambiente que a Biodiversidade – Diversidade biológica.


Lei 6.938, de 31.08.198, define, em seu art.
3°, quando diz que, para os fins nela previstos, Usualmente, a variedade de organismos
entende-se por meio ambiente o conjunto de considerada em todos os níveis taxonômicos,
condições, leis, influências e interações de ordem desde variações genéticas pertencentes à
física, química e biológica, que permite, abriga e mesma espécie, até as diversas séries de
rege a vida em todas as suas formas. espécies, gêneros, famílias e níveis taxonômicos
superiores..
A referência a bens naturais não esgota a dimensão
ambiental da função social da propriedade. Ao Genericamente, o conceito de biodiversidade não
tratarmos desta dimensão ambiental, não podemos está sendo considerado apenas no nível das espécies,
restringir o campo de estudo exclusivamente à mas também no dos ecossistemas, dos habitats e até
apropriação de recursos naturais, mas, também, da paisagem; pode incluir não só as comunidades
ao modo de uso de bens artificiais ou naturais, que de organismos em um ou mais hábitats como as
pode ocasionar a degradação do meio ambiente, condições físicas sob as quais eles vivem.
bem de uso comum do povo. Nesse sentido, bastante
pertinente a lição de Paulo Affonso Leme Machado Utilizamo-nos das definições trazidas pela
(2005, p. 237): Convenção da Diversidade Biológica (Rio de Janeiro,
05.06.1992), que em seu art. 2° estabelece que
A fruição de propriedade não pode legitimar diversidade biológica significa:
a emissão de poluentes que vão invadir
a propriedade de outros indivíduos. Usar [...] a variabilidade de organismos vivos,
legitimamente da propriedade não pode significar de todas as origens, compreendendo, dentre
o confisco do direito de captar a energia solar de outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e
seus vizinhos. outros ecossistemas aquáticos e os complexos
ecológicos de que fazem parte; compreendendo
26.2 Elementos bióticos ainda a diversidade dentro de espécies, entre
espécies e de ecossistemas.

O conceito de biodiversidade ou diversidade


Trata-se, de resto, de uma definição também
biológica é extremamente complexo, sobretudo
adotada pelo art. 2°, III, da Lei 9.985/2000,
quando sua compreensão se destina à correta
que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de
aplicação do Direito. De acordo com o Oxford dictionary
Conservação da Natureza (SNUC).
of ecology (ALLABY, 2010, p. 46), por biodiversidade
(biodiversity) deve-se entender: “A portmanteau
O preâmbulo da Convenção sobre Diversidade
term, wich gained popularity in the late 1980s, used to
Biológica alude a um valor intrínseco da diversidade
describe all aspects of biological diversity, especially
biológica. Todavia, algumas questões relacionadas à
including species richness, ecosystem complexity, and
ideia de “valor intrínseco” causam certa perplexidade
genetic variation”1.O Dicionário brasileiro de ciências
no momento de implementação jurídica dos
ambientais (MOUSINHO; LIMA-E-SILVA; GUERRA,
mecanismos destinados à sua tutela.
2002, p. 31) nos oferece a seguinte definição:

O núcleo constitucional da proteção da


biodiversidade encontra-se no art. 225 da Carta de
1  “Um termo híbrido que ganhou popularidade no final da década de 1988, especialmente nos incisos I, III e VII do seu §
1980, usado para descrever todos os aspectos da diversidade biológica,
incluindo particularmente a riqueza de espécies, complexidade dos
ecossistemas e variação genética.” (tradução nossa).

38
Propriedade e Direito Ambiental

1°, que estabelecem as seguintes incumbências ao 27 BENS AMBIENTAIS


Poder Público:
Racionalidade de uso e permanente disponibilidade
• com relação aos processos ecológicos essenciais, dos recursos naturais são princípios que devem
promover sua preservação e restauração; ser aplicados nas hipóteses de interferência
socioantrópica dos ecossistemas, em regra com
• com relação aos espaços territoriais destinados
finalidade econômica. O texto constitucional de 1988,
à proteção especial, defini-los em todas as unidades
ao menos nos incisos I, III e VII ora analisados, não
da Federação, definir em seus componentes e vedar
se referem ao uso sustentável dos recursos naturais.
a utilização que comprometa e integridade dos
Na realidade, a única passagem que se refere à
atributos justificadores de sua proteção;
interferência socioantrópica é a parte final do inciso
III, destinada justamente a vedar qualquer utilização
• com relação aos ecossistemas, promover o
que possa prejudicar os objetivos que justificaram a
manejo ecológico das espécies, proteger a fauna e
criação da unidade de conservação da natureza.
a flora e vedar, na forma da lei, as práticas (hábitos
culturais) que coloquem em risco a função ecológica
Assim, de forma diversa daquela exposta na
da fauna e da flora, provoquem sua extinção ou
Lei 6.938/1981, a Constituição de 1988 buscou a
submetam os animais à crueldade.
proteção dos processos ecológicos essenciais sem
qualquer compromisso de vinculá-los à sua utilização
A preservação e a restauração dos recursos
econômica.
ambientais (atmosfera, águas interiores, superficiais
e subterrâneas, estuários, mar territoriais, solo,
É possível a contradição no sentido de que o
subsolo, elementos da biosfera, fauna e flora) já era,
dispositivo constitucional aludido (art. 225, § 1°, I)
desde 1981, um dos objetivos da Política Nacional do
não pode ser analisado destacadamente, já que o
Meio Ambiente. Entretanto, a Lei 6.938/1981 afirma
próprio caput do art. 225 se refere expressamente
a busca da utilização racional e da disponibilidade
ao direito ambiental como um direito humano (todos
permanente dos recursos naturais, ou seja, busca a
têm direito ao meio ambiente ecologicamente
implementação das metas estabelecidas pelo princípio
equilibrado) e coloca a vida e a saúde humana
do desenvolvimento econômico sustentável. Mesmo
como os primeiros valores a serem defendidos (“o
onde dirige-se à criação de unidades de conservação da
essencial à sadia qualidade de vida”). A proteção da
natureza, como, por exemplo, no art. 4°, II (definição
biodiversidade pro seu valor intrínseco, porém, não
de áreas prioritárias de ação governamental relativa
fere a vida e a saúde humanas, pois não contrasta
à qualidade e ao equilíbrio ecológico), a expressa
com estes direitos. Tal contra-argumento, portanto,
referência na lei ao atendimento de interesses dos
é falho e só teria alguma validade para informar o
entes federados (União, Estados, Distrito Federal,
valor intrínseco da biodiversidade como interesse
Territórios, municípios) se encarrega de afastar a
jurídico legítimo num quadro limite de confronto
pretensão de utilização da Política Nacional do Meio
entre humanidade e natureza.
Ambiente como um instrumento adequado para a
proteção da biodiversidade apenas por seus valores Isso, porém não significa que se esteja
intrínsecos, mas também por constituir um elemento implicitamente aceitando a dicotomia antropocentismo
valioso para a economia do país. versus biocentrismo (ou ecocentrismo). Não há como
negar o contraste estabelecido culturalmente entre
dado e construído, natural e artificial, cru e cozido.
Esse contraste encontra-se presente no pensamento

39
Propriedade e Direito Ambiental

ocidental, sendo bastante conhecida a afirmação da tenha. Não nos esqueçamos de que a Constituição
superioridade da produção humana sobre a natural Federal é, ela própria, um produto cultural e retrata
feita por Hegel: um determinado estágio da evolução histórica em que
a humanidade passou a reconhecer a necessidade
Tudo quanto provém do espírito é superior da proteção jurídica de todas as demais espécies,
ao que existe na natureza. A pior das ideias que ou a reconhecer a vida (em todas as suas formas),
perpasse pelo espírito do homem é melhor e digamos, como um bem a ser tutelado.
mais elevada do que a mais grandiosa produção
da natureza – justamente porque essa ideia A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)
participa do espírito, porque o espiritual é
utiliza o termo “conservação in situ” com o significado
superior ao natural.
de

28 DIREITO AMBIENTAL – [...] conservação de ecossistemas e habitats


ANTROPOCENTRISMO VERSUS naturais e a manutenção e recuperação de
HOMOCENTRISMO populações viáveis de espécies em seus meios
naturais e, no caso de espécies domesticadas ou
Talvez tal dicotomia tenha sido uma das piores cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido
ideias que já perpassou pelo espírito do homem, vez suas propriedades características (art. 2°).
que foi responsável por um divórcio que contraria
a própria condição humana. A capacidade de criar As obrigações de conservação in situ da
o novo, de refletir sobre o passado e de transmitir biodiversidade pelas partes contratantes da CDB
o conhecimento acumulado para as gerações estão definidas no seu art. 8°. Devem os países
futuras não faz da humanidade um dado estranho signatários da convenção, na medida do possível e
à biodiversidade. Pelo contrário, o homem (a conforme o caso:
humanidade) é produto de uma evolução histórica
do próprio universo. a) estabelecer um sistema de áreas protegidas
ou áreas onde medidas especiais precisem ser
tomadas para conservar a diversidade biológica;
A evolução cultural da humanidade sofreu, sofre
e sofrerá sempre oscilações, não sendo possível
b) desenvolver, se necessário, diretrizes para
detectar tendências senão pela análise de grandes
a seleção, estabelecimento e administração
ciclos histórico-culturais. Porém, é certo que a
de áreas protegidas ou áreas onde medidas
referência no art. 225 (§ 1°, VII) da Constituição especiais precisem ser tomadas para conservar
de 1988 à vedação das práticas que submetam os a diversidade biológica;
animais à crueldade deve ser tomada no mínimo como
um possível novo paradigma, que relativiza (mas não c) regulamentar ou administrar recursos
anula) concepções rigidamente antropocêntricas da biológicos importantes para a conservação da
ciência do Direito, a partir de uma peculiaridade de diversidade biológica, dentro ou fora de áreas
um de seus mais recentes ramos, o direito ambiental. protegidas, a fim de assegurar sua conservação
Não se trata, repita-se, de pura e simplesmente e utilização sustentável;
justificar a prevalência de um novo paradigma
d) promover a proteção de ecossistemas,
biocêntrico ou de aderir incondicionalmente à teoria
hábitats naturais e a manutenção de populações
do conservacionismo, nem tampouco de buscar
viáveis de espécies em seu meio natural;
no Texto Constitucional de 1988 uma coerência ou
profundidade filosófica que talvez ele próprio não

40
Propriedade e Direito Ambiental

e) promover o desenvolvimento sustentável regulamentares para a proteção de espécies e


e ambientalmente sadio em áreas adjacentes às populações ameaçadas;
áreas protegidas, a fim de reforçar a proteção
dessas áreas; l) quando se verifique um sensível
efeito negativo à diversidade biológica, em
f) recuperar e restaurar ecossistemas conformidade com o art. 7°, regulamentar ou
degradados e promover a recuperação de administrar os processos e as categorias de
espécies ameaçadas, mediante, entre outros atividades em causa; e
meios, a elaboração e implementação de planos
e outras estratégias de gestão; m) cooperar com o aporte da poio financeiro
e de outra natureza para a conservação in situ
g) estabelecer ou manter meios para a que se referem as alíneas (a) a (l) acima,
regulamentar, administrar ou controlar os particularmente aos países em desenvolvimento.
riscos associados à utilização e liberação de
organismos vivos modificados resultantes da O direito ambiental, como os demais direitos
biotecnologia que provavelmente provoquem difusos (direitos do consumidor, direitos das
impacto ambiental negativo que possa afetar pessoas portadoras de deficiência, direitos das
a conservação e a utilização sustentável da mulheres), interfere de forma incisiva em estruturas
diversidade biológica, levando também em conta socioculturais e econômicas e tem a característica de
os riscos para a saúde humana;
ser um direito de militância política e engajamento
social. É, porém, como qualquer outro ramo do
h) impedir que se introduzam, controlar ou
Direito – um aspecto superestrutural da sociedade
erradicar espécies exóticas que ameacem os
vinculado a uma infraestrutura econômica que define,
ecossistemas, hábitats ou espécies;
em última instância, o relevo que se deve ou que se
i) procurar proporcionar as condições pode dar para esta ou aquela norma jurídica. Basta
necessárias para compatibilizar as utilizações tomarmos o exemplo da política sobre transgênicos
atuais com a conservação da diversidade desenvolvida em nosso país para termos uma exata
biológica e a utilização sustentável de seus noção desse processo.
componentes;
Ora, se os movimentos de defesa à biodiversidade
j) em conformidade com sua legislação não possuírem voz para se fazerem ouvir no embate
nacional, respeitar, preservar e manter o das forças sociais envolvidas no processo econômico,
conhecimento, inovações e práticas das bastante modesta deverá ser a expectativa de
comunidades locais e populações indígenas efetividade dos comandos que apontam com
com estilos de vida tradicionais relevantes
exclusividade para sua proteção enquanto valor
à conservação e à utilização sustentável da
intrínseco a ser protegido.
diversidade biológica e incentivar sua mais ampla
aplicação com a aprovação e a participação dos
A efetividade do art. 225, § 1°, I, III e VII, da
detentores desse conhecimento, inovações e
Constituição Federal não tem a seu favor a força de
práticas; e encorajar a repartição equitativa
movimentos de caráter corporativo, mas tão somente
dos benefícios oriundos da utilização desse
conhecimento, inovações e práticas; da parcela da humanidade que se reconhece parte
integrante e indissociável da biodiversidade planetária.
k) elaborar ou manter em vigor a Essa parcela da humanidade é exatamente aquela
legislação necessária e/ou outras disposições que se vê atingida em seus demais direitos difusos:
trabalhadores, mulheres, pessoas portadoras de

41
Propriedade e Direito Ambiental

deficiência e demais parcelas da população excluída No entanto, essa tese é contrariada por outras
do processo decisório. que sustentam que a megafauna sul-americana foi
extinta em razão de catástrofes climáticas.
29 DIREITO AMBIENTAL – ELEMENTOS
DE PROTEÇÃO Logo nos primeiros anos de colonização portuguesa,
tem-se o registro de captura de animais vivos e peles,
29.1 Proteção da fauna pelos tupis, para os insaciáveis invasores europeus:

Além dos exemplos de aplicação do princípio da Além da madeira corante, o manifesto de


carga do Bretoa em 1511 registra 23 periquitos,
função social da propriedade previstos no Código
16 felinos, 19 macacos e 15 papagaios; o de 1532,
Florestal, sobre os quais discorreremos no Capítulo
do navio Pelérine, 3 mil peles de ‘leopardos etc.,
7, poderíamos ainda mencionar a proteção à fauna
300 macacos e 600 papagaios’. É difícil imaginar
(elemento biótico) e aos elementos abióticos da
o custo dessas mercadorias para os tupis.
natureza (solo, água e ar).
O anapuru e a arara-una foram, possivelmente,
Normalmente, ao tratarmos da dimensão ambiental
as primeiras aves extintas no Brasil em decorrência
da função social da propriedade temos em mente a
da invasão portuguesa. Na Amazônia, a colonização
preservação da flora e deixamos em segundo plano
não teve por base a agricultura ou a mineração, e a
a proteção da fauna, incorrendo no grave erro de
matança de espécies animais foi emblemática.
desconsiderar a íntima conexão entre os dois reinos
– animal e vegetal – na preservação da integridade Depois da tentativa de instituição de um imenso
dos ecossistemas. A história da extinção de espécies império temporal pelos jesuítas, frustrada pela política
animais por intervenção humana é já bastante antiga do Marquês de Pombal, as missões foram destruídas
no Brasil e antecede a colonização europeia. e as aldeias indígenas foram secularizadas. A
exploração de vegetais e a pesca constituíam a base
De acordo com Warren Dean (1997, p. 89),
da produção comercial amazônica e, em razão das
características hidrológicas da região, a propriedade
[...] no sul do continente diversos gêneros de
mamíferos desapareceram repentinamente – o
fundiária deixava de ter qualquer significado por ali.
glossotério, uma enorme preguiça de hábitos
terrestres; o gliptodonte, um tatu do porte de
O povoamento se dava às margens dos rios, porém
um boi; o toxodonte, similar ao rinoceronte; por razões distintas da colonização no nordeste
o esmilodonte, o tigre de dente de sabre; o (desertificação), mas porque aquelas eram a única
elefantoide de mastodonte e cavalos. Sem via de transporte no interior da floresta.
dúvida, estes animais estavam entre aqueles
que atraíram os homens para o cerrado. Tem-se As condições climáticas aliaram-se à resistência
formulado a hipótese de que na América do Sul, indígena à colonização, que chegou até a ser armada,
como em qualquer outra geomassa por ocasião constituindo uma forma local de luta de classe.
da primeira invasão humana, o desaparecimento Estas foram as causas da não ocupação da Floresta
de uma série de espécies pode ser atribuída à Amazônica pelo europeu e, consequentemente, do
‘matança excessiva’ das caçadas. caráter incipiente da propriedade privada nesse
território. Ainda assim, foi incalculável o dano
ambiental causado à fauna e à flora nessa fase de
dominação da Amazônia.

42
Propriedade e Direito Ambiental

Caio Prado Jr. descreve, a título exemplificativo, A pesca da baleia, comum desde a segunda
como se dava a extração de óleo para a iluminação, metade do século XVIII nas costas da Bahia até Santa
a partir de ovos de tartaruga: Catarina, era privilégio da Coroa. Sua concessão se
dava por instrumento contratual. A importância dessa
A desova dos quelônios é nos meses de exploração decaiu consideravelmente coma operação
outubro e novembro, quando em bandos de baleeiros ingleses e norte-americanos nas Ilhas
incontáveis procuram certas praias de eleição Malvinas, que, com uma pesca intensiva, impediam
e lá enterram seus ovos na areia onde o calor
que as baleias chegassem, em suas migrações
do sol os deve chocar. A tarefa dos colhedores
hibernais, até o litoral brasileiro:
consiste simplesmente em espreitá-los, no
momento oportuno, nestas praias, que de
Reduziram eles, aliás, consideravelmente,
antemão já conhecem, e depois que os animais,
a espécie pela devastação praticada em larga
terminada a postura, se retiram, ir desenterrar e
escala e com processos aperfeiçoados de pesca.
recolher o produto. A preparação do óleo se faz
Em 1801, não encontrando mais pretendentes
imediatamente nas próprias canoas que serviram
ao contrato das baleias, a Coroa abandona o
para o transporte dos colhedores. (PRADO JR.,
monopólio, tornando-se a pesca livre. (PRADO
2002, p. 147).
JR., 2002, p. 198).

Dois anos de pesca predatória foram suficientes


Essa atividade ainda se manteve, conquanto em
para que o colonizador matasse 8.500 exemplares
acentuado processo de declínio, até desaparecer
de tartarugas e peixes-boi na região do Lago Grande
em meados de 1830. Em 18.12.1987 é publicada
de Vila Franca. Hoje, o peixe-boi praticamente
a Lei 7.643, proibindo a pesca ou qualquer forma
desapareceu.
de molestamento intencional de toda espécie de
cetáceo em águas jurisdicionais brasileiras e fixando
30 DIREITO AMBIENTAL – SISTEMA DE pena de prisão e multa ao infrator, além da perda
PROTEÇÃO: FAUNA da embarcação em favor da União, em caso de
reincidência.
Foi bem-vindo o advento, em 03.01.1967, da
Lei 5.197, dispondo sobre a proteção da fauna e
O art. 225, § 1°, VII, da Constituição Federal de 1988
revogando o Decreto-lei 5.894, de 20.10.1943. Seu
rompe com o paradigma antropocêntrico ao vedar,
art. 1° estabeleceu, de forma peremptória, que
na forma da lei, as práticas que coloquem em risco
é proibida a utilização, perseguição, destruição,
a função ecológica da fauna, provoquem a extinção
caça ou apanha de animais constituintes da fauna
de espécies ou submetam só animais a crueldade. A
silvestre, de qualquer espécie, em qualquer fase do
despeito do novo tratamento constitucional dado à
seu desenvolvimento e que vivessem naturalmente
fauna a partir de 1988, o novo Código Civil não evoluiu
fora do cativeiro. Tanto esses animais quanto
um só centímetro com relação ao de 1916 no que diz
seus ninhos, abrigos e criadouros naturais seriam
respeito à condição dos animais. No art. 936, o Código
propriedade do Estado. Uma questão ficou pendente
Civil de 2002 dispõe sobre a responsabilidade civil
por muitos anos: o termo Estado como proprietário
do dono, ou detentor, do animal, pelo dano por este
da fauna silvestre referia-se aos estados federados
causado, ressalvadas as hipóteses de culpa da vítima
ou ao Poder Público lato sensu? Prevaleceu a tese
ou força maior. As demais referências constantes do
de que a União Federal é que seria a sua legítima
Código Civil são absolutamente irrelevantes para o
proprietária.
estudo da dimensão ambiental da função social da
propriedade. Encontram-se elas no art. 1.397 (que
trata do direito de propriedade do usufrutuário às

43
Propriedade e Direito Ambiental

crias dos animais, deduzidas quantas bastem para ainda hoje persistem em todo o território nacional,
inteirar as cabeças de gado existentes ao começar o herança cultural de povos indígenas e dos primeiros
usufruto) e nos artigos 1.444 a 1.446, que tratam do colonizadores europeus, constituem modalidade
penhor pecuário. de aceleração da entropia no meio ambiente rural,
gerando alta quantidade de energia térmica, que é
Duas modalidades de unidade de conservação utilizada tão somente para a eliminação de espécies
da natureza, previstas na Lei 9.985/2000, tratam vegetais e animais não desejados para a lavoura.
diretamente da proteção da fauna: os refúgios de
vida silvestre e as reservas da fauna. O refúgio de vida Além do desperdício energético que tal técnica
silvestre acha-se descrito no art. 13, caput da referida implica, seu resultado a curto ou médio prazo é o
lei, e tem por objetivo proteger ambientes naturais esgotamento das características de fertilidade do
onde se asseguram condições para a existência ou solo e a destruição do húmus, com a consequente
reprodução de espécies ou comunidades da flora desertificação da terra. A tipificação da queimada
local e da fauna residente ou migratória. como crime foi vetada na Lei 9.605/1998. Leis
estaduais, todavia, consideram-na ilícito civil, sendo
Na possibilidade de compatibilidade dos objetivos farta a jurisprudência a respeito. A recomposição
da área e as atividades privadas, esta modalidade de reserva legal florestal, por sua vez, é uma
de unidade de conservação poderá ser instituída em importante decorrência do princípio da função social
propriedade particular. Já as reservas de fauna têm da propriedade.
o objetivo de realização de estudos sobre manejo
sustentável da fauna. A posse e domínio da área O Código Civil de 2002, reproduzindo integralmente
devem ser públicos. Portanto, as áreas particulares o texto de 1916, dedica três breves artigos à disciplina
devem ser desapropriadas. das árvores limítrofes. O tema constitui a Seção II do
capítulo sobre direitos de vizinhança, e os art. 1.282
A proteção da fauna é hoje, portanto, um importante e 1.284 não têm maior relevância para o direito
elemento a ser considerado na implementação da ambiental. Limitamo-nos, aqui, a transcrevê-los:
dimensão ambiental da função social da propriedade,
estando presente na Constituição Federal, em Art. 1.282. A árvore, cujo tronco estiver na
Constituições Estaduais como a de São Paulo, em linha divisória, presume-se pertencer em comum
normas de direito ambiental, direito penal etc. aos donos dos prédios confinantes.

31 PROTEÇÃO DA FLORA Art. 1.284. os frutos caídos de árvore do


terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde
caíram, se este for de propriedade particular.
Na legislação que veda a utilização de queimadas
encontra-se presente um aspecto relevante de
Já o art. 1.283 dispõe que as raízes e os ramos
aplicação do princípio da função social da propriedade
de árvore que ultrapassarem a estrema do prédio
em relação à proteção da flora.
poderão ser cortados até o plano vertical divisório
A anacrônica estrutura de uma lavoura que se pelo proprietário do terreno invadido.
servia de queimadas, provocando a dissipação
Este dispositivo não deve, porém, de ser aplicado
perdulária de energia térmica no ambiente, era motivo
se estivermos diante da hipótese do art. 7° do Código
de preocupação por parte de nossos pioneiros críticos
Florestal, que dispõe que qualquer árvore poderá ser
ambientais das últimas décadas do Brasil Colônia
declarada imune de corte, mediante ato do Poder
e do período do Brasil Império. As queimadas, que

44
Propriedade e Direito Ambiental

Público, por motivo de sua localização, raridade, Os motivos elencados na lei não permitem que
beleza ou condição de porta-sementes. se chegue a uma conclusão definitiva: localização,
raridade, beleza ou condição de porta-sementes
Nos termos do art. 92 do Código Civil, acessório não constituem necessariamente elementos
é o bem cuja existência supõe a do principal. As individualizadores de um único exemplar de árvore.
árvores, assim, constituem acessório em relação à
propriedade imobiliária. O art. 7° do Código Florestal, 32 A PROTEÇÃO DE ELEMENTOS NÃO
já transcrito, trata de hipótese de cumprimento VIVOS
da função social da propriedade de bem natural,
aplicável tanto em área rural como no perímetro A proteção do solo, do ar e da água constitui uma
urbano. A dúvida que poderia ser suscitada é se das maiores preocupações do direito ambiental, já
este dispositivo cuida de declaração de imunidade de que os elementos abióticos da natureza são a base
corte de apenas uma árvore ou de toda uma espécie da vida. A exigência de estudo de impacto ambiental,
em território nacional. o controle da produção, comercialização e emprego
de técnicas, métodos e substâncias que comportem
Juracy P. Magalhães observa, a respeito: “Hoje risco para o meio ambiente (como é o caso dos
há um grande número de árvores declaradas imunes agrotóxicos) e a exigência de recuperação de
de corte por atos estaduais e municipais”. No ambiente degradado pela exploração minerária são
Distrito Federal, por exemplo, de uma só vez foram exigências constitucionais diretamente relacionadas
declaradas imunes de corte (Decreto 14.783) onze ao tema em foco e, evidentemente, merecem ser
espécies de árvores. São elas: copaíba, sucupira- contempladas enquanto hipóteses de aplicação do
branca, pequi, cagaíta, gomeira, pau-doce, aroeira, princípio da função social da propriedade.
embiriçu, peroba, jacarandá e ipê. É uma política
louvável porque evita o desaparecimento de espécies 32.1 Bens artificiais
importantes e altamente valorizadas. Sem essa
proteção, certamente desapareceriam pelo grande Segundo José Afonso da Silva (2002, p. 122), o meio
interesse que despertam no mercado madeireiro. Por ambiente apresenta um aspecto chamado artificial,
outro lado, se partirmos do pressuposto de que o “[...] constituído pelo espaço urbano construído,
art. 7° alude a unidades de árvore especificamente consubstanciado no conjunto de edificações (espaço
determinadas, chegaríamos à conclusão de que a urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas,
hipótese é de mero tombamento administrativo de praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço
um bem determinado. Este é o entendimento de Luís urbano aberto)”. Este aspecto do meio ambiente
Carlos Silva de Moraes (2002, p. 177): congrega toda a produção humana. Por seu turno, o
aspecto cultural é
O caso em questão é de tombamento. Sua
declaração pode ser sobre determinado bem, [...] integrado pelo patrimônio histórico,
local histórico ou local paisagístico. Contudo, caso artístico, arqueológico, paisagístico, turístico,
imposto um ônus sobre o proprietário do imóvel que, embora artificial, em regra, como obra
onde se localiza a referida árvore, necessária do homem, difere do anterior (que também é
a indenização. Isso só acontece quando as cultural) pelo sentido de valor especial que
condições de conservação da coisa acarretem adquiriu ou de que se impregnou.
despesas extraordinárias para o proprietário,
caso em que deverão ser suportadas pela A edição do Decreto-lei 25/1937 significou,
Administração ou realizada a desapropriação do talvez, uma das mais importantes intervenções do
referido bem.

45
Propriedade e Direito Ambiental

Estado no domínio da propriedade privada. Este 33 TITULARIDADE DOS BENS


texto normativo criou o conceito legal de patrimônio
histórico e artístico nacional, formado pelo conjunto Com relação à titularidade, podemos classificar os
de bens (pertencentes a particulares ou a pessoas bens em privados e públicos.
jurídicas de direito público interno), móveis ou
imóveis, existentes no Brasil, e “[...] cuja conservação A propriedade pública tem como titular uma pessoa
seja de interesse público, quer por sua vinculação jurídica de direito público interno. A expressão “bens
a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por públicos” designa “[...] os bens pertencentes a entes
seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, estatais, para que sirvam de meio ao atendimento
bibliográfico ou artístico” (art. 1°). imediato e mediato do interesse público e sobre
os quais incidem normas especiais, diferentes das
O art. 17 do Decreto-lei 25/1937 afastou normas que regem os bens privados” (MEDAUAR,
completamente a faculdade de destruição dos bens 2005, p. 273).
tombados, isto é, sem nem de longe afetar o direito
de propriedade em sua essência (o uso e gozo Tal regime de dominialidade distingue-se do regime
continuam na titularidade do proprietário), aplicou da propriedade privada, uma vez que o exercício
a regra da função social da propriedade ao dispor dos direitos de tal modalidade de propriedade são
que os bens tombados não poderão ser destruídos, exercidos pela Administração em um plano que “[...]
demolidos ou mutilados sem prévia autorização permite e impõe ao poder público, titular do bem,
especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico assegurar a continuidade e regularidade da sua
Nacional, nem poderão ser reparados, pintados ou destinação, contra quaisquer ingerências”.
restaurados, sob pena de multa de 50% do dano
causado. O regime jurídico dos bens públicos e particulares
era disciplinado pelos arts. 65 a 68 do velho Código
Além de sua imodificabilidade, o bem tombado Civil. O art. 65 dispunha serem públicos “[...] os bens do
sofre ainda limites à alienabilidade. domínio nacional pertencentes à União, aos Estados,
ou aos Municípios. Todos os outros são particulares,
Ensina Odete Medauar (2008, p. 345): seja qual for a pessoa a que pertencerem”. O Código
Civil de 2002 sintetizou a primeira parte de referido
Se o bem tombado pertencer ao domínio
artigo, dispondo, em seu art. 98, serem públicos “[...]
público, torna-se inalienável para particulares,
os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas
podendo, no entanto, ser transferido de uma
jurídicas de direito público interno”, corrigindo, assim,
entidade pública para outra. Os bens privados
a omissão do Distrito Federal.
permanecem alienáveis, mas com limites:
tratando-se de alienação onerosa, a União, os
A segunda parte do art. 65 do texto de 1916
Estados ou Municípios têm direito de preferência;
o adquirente fica obrigado a inscrever a foi integralmente reproduzida no atual Código. Da
transferência no registro imobiliário, no prazo de mesma forma, o art. 66 do Código de 1916, subdivide
trinta dias. o art. 99 do atual Código Civil os bens públicos em:
I- de uso comum do povo (rios, mares, estradas,
ruas, praças etc.); II – de uso especial (edifícios ou
terrenos destinados a serviço ou estabelecimento
da administração federal, estadual, territorial
ou municipal, inclusive de suas autarquias; III –
dominicais (que constituem o patrimônio das pessoas

46
Propriedade e Direito Ambiental

jurídicas de direito público interno, como objeto Não se questiona a aplicação do princípio da
de direito público interno, como objeto de direito função social da propriedade privada. A formação do
pessoal ou real, de casa uma dessas entidades). próprio conceito de função social sempre teve em mira
O parágrafo único do art. 99, por sua vez, aponta: temperar os exageros da concepção individualista de
“[...] não dispondo a lei em contrário, consideram-se propriedade privada. Assim sendo, reportamo-nos
dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas aos exemplos de aplicação já desenvolvidos ao longo
de direito público a que se tenha dado estrutura de de toda a obra, quase todos eles envolvendo bens
direito privado”. particulares.

Os art. 100 e 101 do atual Código Civil estatuem No que diz respeito à propriedade pública, contudo,
que os bens públicos de uso comum do povo e os de a questão é mais polêmica. Em estudo elaborado à
uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem luz da Constituição de 1967 com a redação dada pela
a sua qualificação, na forma que a lei determinar, Emenda Constitucional n. 1, de 1969, Fábio Konder
já os bens públicos dominicais podem ser alienados, Comparato defende que o abuso da não utilização
observadas as exigências da lei. O antigo Código Civil de bens de produção ou sua má utilização deveria
dispunha no art. 67: “Os bens de que trata o artigo ser sancionada com mais rigor, quer se cuide de
antecedente só perderão a inalienabilidade, que lhes propriedade pública ou privada:
é peculiar, nos casos e forma que a lei prescrever”.
Em se tratando de propriedade privada, pela
O art. 102 do atual Código Civil estabelece que expropriação não condicionada ao pagamento
“[...] os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. de indenização integral, ou até sem indenização.
Finalmente, o art. 103 dispõe que “[...] o uso comum Cuidando-se de propriedade pública, por meio
de remédio judicial de efeito mandamental, que
dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído,
imponha ao Poder Público o cumprimento dos
conforme for estabelecido legalmente pela entidade
deveres sociais inerentes ao domínio.
a cuja administração pertencerem”, reproduzindo,
com uma redação mais concisa, a regra do art. 68 do
Na mesma linha, Cristiane Derani entende que
antigo Código Civil.
a função social da propriedade de bens coletivos
dirige-se indistintamente ao proprietário privado e
Há de se afastar o equívoco de pretender, a partir
ao Estado, “[...] normalmente o proprietário desses
da classificação dos bens ambientais em individuais,
bens coletivos, que, do ponto de vista subjetivo, são
coletivos ou difusos, a superação da dicotomia público
bens públicos”.
versus privado. Bens privados podem assumir as
características de bens difusos (exemplo: um imóvel
Evidentemente, sobre os bens públicos também
particular tombado pelo Poder Público em razão de
incide a legislação ambiental. Dúvida, porém,
sua importância histórica, artística ou arquitetônica)
remanesce no que diz respeito à sua adequação
sem que com isso deixem de guardar todas as suas
ao princípio da função social da propriedade. É
características de bens privados. Bens públicos há,
pertinente, neste passo, a referência à decisão que
por sua vez, que guardam as características de bens
determinou a adequação de edificação pública às
individuais (exemplo: os equipamentos de escritório
exigências impostas pelo princípio da função social
utilizados numa repartição pública), não sendo
da propriedade.
suscetíveis de tutela pela via processual ambiental
coletiva.

47
Propriedade e Direito Ambiental

34 RESERVA LEGAL Consoante o disposto no art. 16, § 8°, do Código


Florestal, a área de reserva legal deve ser averbada
A MP 2.166-67/2001 trouxe a definição de reserva à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no
legal, até então inexistente no Código Florestal: registro de imóveis competente. Sua localização deve

Área localizada no interior de uma propriedade [...] ser aprovada pelo órgão ambiental
ou posse rural, excetuada a de preservação estadual competente ou, mediante convênio,
permanente, necessária ao uso sustentável dos pelo órgão ambiental municipal ou outra
recursos naturais, à conservação e reabilitação instituição devidamente habilitada, devendo ser
dos processos ecológicos, à conservação de considerados, no processo de aprovação, a função
biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e social da propriedade, e os seguintes critérios e
flora nativas (art. 1°, § 2°, III). instrumentos, quando houver: I – o plano de
bacia hidrográfica; II – o plano diretor municipal:
Referida medida provisória deu nova redação ao III – o zoneamento ecológico-econômico; IV –
art. 16 do Código Florestal, estabelecendo que outras categorias de zoneamento ambiental;
e V – a proximidade com outra Reserva Legal,
[...] as florestas e outras formas de vegetação Área de Preservação Permanente, unidade de
nativa, ressalvadas as situadas em área de conservação ou outra área legalmente protegida”
preservação permanente, assim como aquelas (art. 16, § 4°).
não sujeitas ao regime de utilização limitada ou
objeto de legislação específica, são suscetíveis É vedada a alteração da destinação da reserva
de supressão, desde que sejam mantidas, a legal, “[...] nos casos de transmissão a qualquer título,
título de reserva legal [...] de desmembramento ou de retificação da área” (art.
16, § 8°., 2a. Parte).
A parcela da vegetação nativa a ser mantida varia
em um percentual mínimo que varia de 20% a 80% 35 ÁREAS DE PRESERVAÇÃO
de propriedade rural, de acordo com a região em que PERMANENTES E RESERVA LEGAL
se localizarem (incisos I a IV).
Estes dois condicionamentos legais ao direito de
A reserva legal constitui restrição parcial à propriedade imobiliária constituem obrigações propter
modificabilidade da propriedade e também restrição rem, consoante entendimento jurisprudencial:
à faculdade de sua fruição, na medida em que o
proprietário não pode dar ao imóvel o uso que bem Tanto a faixa ciliar quanto a reserva legal, em
entender. Se a vegetação da reserva legal não pode qualquer propriedade, incluída a da recorrente,
ser suprimida (art. 16, § 2°), certo é que pode não podem ser objeto de exploração econômica,
de maneira que, ainda que se não dê o
ser utilizada “[...] sob-regime de manejo florestal
reflorestamento imediato, referidas zonas não
sustentável, de acordo com princípios e critérios
podem servir como pastagens.
técnicos e científicos estabelecidos no regulamento”.
Ademais, a ampliação do perímetro urbano que passe
Não há cogitar, pois, de ausência de nexo causal,
a abranger estes espaços territoriais especialmente
visto que aquele que perpetua a lesão ao meio
protegidos não territoriais especialmente protegidos
ambiente cometida por outrem está, ele mesmo,
não tem o condão de desafetá-los. Mesmo que uma
praticando o ilícito. A obrigação de conservação
lei municipal específica cuidasse deste tema, seus
é automaticamente transferida do alienante ao
efeitos seriam írritos, já que a proteção decorre de
adquirente, independentemente deste último ter
lei federal.
responsabilidade pelo dano ambiental.

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Propriedade e Direito Ambiental

Há, porém, uma diferença muito importante Pouco se tem atentado para a importância deste
entre APPs e reserva legal: as APPs não podem ser § 1° do art. 1° do Código Florestal, que aponta em
exploradas economicamente. Já as áreas de reserva direção a uma característica evidente dos valores
legal devidamente averbadas poderão, desde que protegidos nessa lei: a degradação de uma área
tenham plano de manejo sustentável aprovado pelos de preservação permanente ou de uma reserva
órgãos ambientais. legal constituem danos ambientais que de imediato
repercutem nas propriedades lindeiras. É possível,
36 USO NOCIVO DA PROPRIEDADE portanto, fixar o cumprimento do Código Florestal
como verdadeiro direito de vizinhança – dimensão
O § 1° do art. 1° do Código Florestal dispõe que esta que não exclui a de interesse difuso.
as ações ou omissões contrárias às suas disposições
na utilização e exploração das florestas e demais O art. 8° do Código Florestal estabelece que,
formas de vegetação são consideradas uso nocivo na distribuição de lotes destinados à agricultura,
da propriedade, aplicando-se, para o caso, o em planos de colonização e de reforma agrária,
procedimento sumário previsto no art. 275, II do não devem ser incluídas as áreas florestadas de
CPC. preservação permanente de que se trata referida lei,
nem as florestas necessárias ao abastecimento local
O texto constituía inicialmente o parágrafo único ou nacional de madeiras e outros produtos florestais.
do art. 1°. Passou a ser o § 1° em razão do disposto
no art. 1° da MP 2.166-67/2001, atualizando-se, na De acordo com a doutrina de Juraci P. Magalhães,
oportunidade, a referência ao dispositivo do Código
de Processo Civil, originalmente o de 1939. O art. [...] essa forma de distribuição da terra se
275, II, h, do CPC determina a observância do constitui numa séria ameaça à cobertura florestal.
procedimento sumário nos casos previstos em lei. É preciso, portanto, resguardar as florestas de
preservação permanente, pois o fracionamento
Evidentemente, tal procedimento será pertinente nos
de uma área rural em milhares de lotes pode
casos de conflito de vizinhança, pois, na hipótese de
ser fatal para elas. Por essa razão, como medida
tutela judicial do meio ambiente, interesse difuso
de cautela, o Código Florestal determina que
por excelência, a ação civil pública é o instrumento
nos projetos de colonização as florestas de
processual mais adequado (cf. Lei 7347/1985, art.
preservação permanente e as destinadas ao
1°, I). abastecimento de madeiras fiquem excluídas.
Assim, áreas reflorestadas para fornecimento de
O Código Civil de 2002, em seus arts. 1.277 produtos florestais e áreas exploradas mediante
a 1.281, adota a expressão “uso anormal da projetos de manejo sustentado não podem ser
propriedade”, estabelecendo que o proprietário ou o divididas, devem permanecer intocadas.
possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar
as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego A lei não diz que as áreas de preservação
e à saúde dos que o habitam, provocadas pela permanente não podem ser desapropriadas para fins
utilização de propriedade vizinha. O parágrafo único de reforma agrária. Apenas ressalva a integridade
do art. 1.277 proíbe as interferências considerando- do Código Florestal, mesmo que a propriedade rural
se a natureza da utilização, a localização do prédio, tenha como causa próxima colonização ou reforma
atendidas as normas que distribuem as edificações agrária. Esta questão é relevante, na medida em que
em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos uma leitura apressada do dispositivo poderia levar
moradores da vizinhança. à conclusão de que as APPs de um latifúndio que
não cumprem sua função social não são suscetíveis

49
Propriedade e Direito Ambiental

de desapropriação para fins de reforma agrária. Na Poder Executivo competência assinalada pela
verdade elas podem perfeitamente integrar a nova Constituição ao Congresso Nacional [...].
propriedade rural, sendo vedada, tão somente, sua
destinação à agricultura. Toda propriedade rural deve Determinados autores, examinando o tema,
respeitar as restrições impostas pelo art. 2° do Código sustentam que, no âmbito da legislação concorrente,
Florestal e averbar a respectiva área de reserva legal. a competência da União limita-se ao estabelecimento
de normas gerais, que devem ter a natureza de lei
Essas áreas de preservação permanente, assim formal. Assim, diplomas federais de categoria inferior,
como as “[...] florestas necessárias ao abastecimento emitidos por órgãos subalternos à Presidência da
local ou nacional de madeira ou outros produtos República, não obrigariam os estados e municípios.
florestais”, podem, portanto, ser desapropriadas Por força do princípio da legalidade e da autonomia
para fins de reforma agrária. O sistema legal vigente federativa, as resoluções do Conama não teriam
jamais impossibilitou a desapropriação de áreas de validade.
floresta exploradas para o fornecimento de madeira
ou outro produto florestal. Luis Carlos Silva de Moraes, por sua vez, afirma
que as competências atribuídas pelos incisos VI e VII
37 AÇÃO NORMATIVA DO CONAMA do art. 8° da Lei 6.938/1981:

O art. 8° da Lei 6.938/1981 estabelece, em [...] devem se adaptar à nova ordem


seu inciso I, que compete ao Conama estabelecer, constitucional, ou seja, nunca, em hipótese
alguma, poderão inovar de forma originária,
mediante proposta do Ibama, normas e critérios
cabendo ao Conama a regulamentação de algo já
para o licenciamento de atividades efetiva ou
instituído pela legislação, onde não for aplicável,
potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos
necessariamente, o princípio da reserva legal.
estados e supervisionado pelo Ibama.
(MORAES, 2002, p. 33)

O inciso VI, por sua vez, dispõe sobre sua


Tratando especificamente das Resoluções 302
competência privativa para estabelecer normas
e 303 do Conama, juristas de nomeada sustentam
e padrões nacionais de controle da poluição por
que o órgão colegiado teria ultrapassado os limites
veículos automotores, mediante audiência dos
indicados em lei e invadido seara de competência
ministérios competentes. Finalmente, o inciso VII
privativa do Congresso Nacional. Em reforço a esta
confere competência ao Conama para estabelecer
tese, sustenta-se que tal procedimento macularia
normas, critérios e padrões relativos ao controle e
o próprio Estado de Direito, da mesma forma que
a manutenção da qualidade do meio ambiente com
ocorreria se o Conselho Monetário Nacional passasse
vistas ao uso racional dos recursos ambientais,
a criar impostos ou o Conselho Nacional de Política
principalmente os hídricos.
Criminal definisse crimes.

Questiona-se, em razão do disposto no art. 25 do


Ora, os dois exemplos – instituição de novos
ADCT, estaria vedada a ação normativa do Conama
tributos e penas por Conselhos Federais – constituem
(aqui incluídas suas resoluções e portarias). O referido
exatamente os mais importantes exemplos de
dispositivo constitucional estabelece:
aplicabilidade do princípio da legalidade estrita,
não podendo ser invocados analogicamente para o
Ficam revogados, a partir de 180 dias da
tratamento jurídico da proteção do meio ambiente e
promulgação da Constituição, sujeito este prazo
a prorrogação por lei, todos os dispositivos do regramento do exercício do direito de propriedade.
legais que atribuam ou deleguem a órgão do

50
Propriedade e Direito Ambiental

Na verdade, o princípio da legalidade estrita no serem especialmente protegidos), que se encontra


Direito Penal e no Direito Tributário encontra-se albergada em lei ordinária – arts. 2° e 3° da Lei
na perspectiva dos direitos humanos de primeira federal 4.771/1965 (Código Florestal).
geração (oponíveis contra o Estado), ao passo
que os direitos à saúde e a um meio ambiente O Código Florestal determina que as florestas e
ecologicamente equilibrado são direitos de segunda demais formas de vegetação nas áreas nele descritas
e terceira geração, que exigem uma atitude positiva são de preservação permanente. No entanto, o
do Poder Público, como se dá no caso da tutela da legislador ordinário deixou de minudenciar, na letra b
segurança e saúde do trabalho, da saúde pública ou do art. 2°, o significado do termo redor (das lagoas,
da biodiversidade. lagos ou reservatórios d’água naturais e artificiais).
Impõe-se, assim, que o Conama implemente os
Leve-se, também, em consideração que a comandos constitucional e legal, promovendo a
revogação a que alude o art. 25 do ADCT opera proteção ecológica desses espaços territoriais. Assim
apenas para o futuro, permanecendo válidas todas foi feito e, nos termos do art. 3°, III, a e b, da Resolução
as portarias e resoluções editadas até 5 de abril de 303/2002, essa área de preservação permanente
1989. será de 30 metros para os lagos e lagoas naturais
que estejam situados em áreas urbanas consolidadas
Este, porém, não é ainda o cerne da questão. O que e de 100 metros para aquelas que estejam em áreas
realmente importa considerar é que as resoluções do rurais, exceto os corpos d´água com até 20 hectares
Conama destinam-se a efetivar a legislação vigente, de superfície, cuja faixa marginal será de 50 metros.
não constituindo esta atividade uma forma de ação
normativa usurpadora de competência assinalada ao É importante consignar que a hermenêutica de
Congresso Nacional. As situações disciplinadas pelo nosso direito positivo orienta-se por determinados
direito ambiental são multifacetárias e extremamente princípios fundamentais elencados no art. 1° da
complexas, exigindo regulamentação técnica com Constituição da República, dentre os quais se destacam
um nível de minúcias tal que não se pode pretender a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A
exigir da legislação ordinária. regulamentação de leis voltadas à proteção de direitos
humanos de segunda e de terceira geração coloca
O art. 8° da Lei 6.938/1981 em nenhum momento em primeiro plano os fundamentos principiológicos
atribui ou delega competência ao Conama para de nosso ordenamento constitucional. Apenas à
qualquer tipo de ação normativa. Se assim o fizesse, guisa de exemplo, praticamente toda a disciplina
esta atribuição ou delegação estaria hoje revogada sobre saúde e segurança do trabalho é formada por
pelo art. 25, I, do ADCT. Não é, porém, o que normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho.
ocorre. As resoluções do Conama visam a concretizar Sustentar que a normatividade do Ministério do
a aplicação do direito ambiental, cujo ápice é a Trabalho não tem base constitucional significaria
Constituição Federal – art. 225 e seus incisos e extinguir de nosso ordenamento todas as normas
parágrafos. A especificação, nas Resoluções 302 e regulamentadoras sobre segurança e medicina do
303 do Conama, de determinadas modalidades de trabalho.
áreas de preservação permanente está muito longe
de consubstanciar indevida delegação ou atribuição Nem se diga que as Resoluções do Conama
de competência do Congresso Nacional. Trata- 302 e 303/2002 não seriam válidas por afetarem o
se, na verdade, de implementação da vontade do direito de propriedade e, assim, ferirem o princípio
legislador constituinte (art. 225, § 1°, III – definição da legalidade. Relembremos acórdão relatado
de espaços territoriais e seus componentes a pelo Exmo. Sr. Ministro Nilson Naves, do Superior

51
Propriedade e Direito Ambiental

Tribunal de Justiça, cuidando de saber se o art. 25 [...] a atividade da Administração Pública,


da Resolução 1.246/1988, do Conselho Federal de expressa em atos normativos ou concretos,
Medicina, feria ou não o art. 524 do antigo Código de condicionar, com fundamento em sua
Civil – correspondente ao art. 1.228 do atual – isto é, supremacia geral e na forma da lei, a liberdade
se, respeitadas as normas técnicas de uma instituição e a propriedade dos indivíduos, mediante ação
ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva,
hospitalar, tinha um médico o direito de internar e
impondo coercitivamente aos particulares
assistir seus pacientes em hospital privado, com ou
um dever de abstenção (‘non facere’) a fim
sem caráter filantrópico, ainda que não fizesse parte
de conformar-lhes os comportamentos aos
de seu corpo clínico: concluiu que referido dispositivo
interesses sociais consagrados no sistema
codificado deveria ser interpretado à luz do que normativo. (MELLO, 2010, p. 830).
dispõe o art. 5°, XXIII, da Constituição Federal.
Introduzindo o estudioso ao tema, Odete Medauar
Da mesma forma, ao implementar um importante (2000, p. 387) afirma que:
aspecto da função social da propriedade – proteção
ambiental das águas –, as Resoluções do Conama [...] poder de polícia é a atividade da
mencionadas não inovam o ordenamento legal, mas Administração que impõe limites ao exercício de
apenas conferem eficácia a um dispositivo do Código direitos e liberdades. É uma das atividades em
Florestal que, à míngua de regulamentação, não que mais se expressa sua face autoridade, sua
poderia ser aplicado. face imperativa. Onde existe um ordenamento,
este não pode deixar de adotar medidas para
Observe-se, finalmente, no que diz respeito disciplinar o exercício de direitos fundamentais
às áreas de preservação permanente ao redor de de indivíduos e grupos.
lagos, lagoas e reservatórios d´água naturais e
artificiais, a necessidade de aplicação, onde for o Com fundamento nas lições dos doutrinadores, é
caso, da legislação estadual atinente à proteção de possível concluir que poder de polícia é uma atividade
mananciais. normativa ou concreta da Administração (fiscalização
preventiva ou repressiva, imposição de dever de
38 PODER DE POLÍCIA abstenção), condicionando ou impondo limites aos
direitos e liberdades dos indivíduos com o objetivo
A pertinência na utilização da expressão “poder de satisfazer o interesse público (por exemplo,
de polícia”, própria do direito administrativo, é defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural,
controversa. do consumidor, da tranquilidade, da segurança, da
salubridade pública etc.).
Para alguns, o conceito de “poder de polícia” é
inútil na fase atual do direito administrativo, pois Indagar se existe um poder de polícia nas áreas de
“[...] todos os princípios sob os quais se desenvolve a preservação permanente e na reserva legal, assim, é
função administrativa são aplicáveis a essa atividade perquirir se a Administração pode licitamente exigir
da Administração Pública” (isto é, ao poder de a estrita observância de disposições constantes do
polícia) (MEDAUAR, 2008). Todavia, o conceito ainda Código Florestal, em especial os arts. 2°, 3° e 16. Este
é adotado por grande parcela dos administrativistas. poder de polícia está expressamente previsto no art.
Celso Antonio Bandeira de Mello, na 11a. edição de 22 do Código Florestal: “A União, diretamente, através
seu Curso de direito administrativo, define a polícia do órgão executivo específico, ou em convênio com
administrativa como: os Estados e Municípios, fiscalizará a aplicação das
normas deste Código, podendo, para tanto, criar os

52
Propriedade e Direito Ambiental

serviços indispensáveis”. Estamos, porém, tratando


de três diferentes modalidades de espaços territoriais
especialmente protegidos, sendo por isso necessário
examinar cada uma delas.

A primeira modalidade é a das áreas de


preservação permanentes descritas no art. 2° do
Código Florestal. Estes espaços protegidos podem
estar situados tanto em propriedade privada como
constituírem bens públicos, em zona urbana ou rural.
O que se tutela, aqui, é o próprio espaço descrito na
lei. São as margens dos rios, lagos, lagoas e represas,
inclusive as artificiais, o redor dos olhos d’água, os
topos de jorros, as encostas com declividade superior
a 45°, as restingas, as bordas de chapadas e os
espaços localizados em altitude superior a 1.800m.
Grande parte das áreas de proteção de mananciais,
necessárias para o abastecimento de água nas
regiões metropolitanas, tinha o caráter de área de
preservação permanente antes mesmo do advento
de legislação estadual a respeito.

espaços protegidos localizados em zona urbana,


o parágrafo único do art. 22 do Código Florestal
estabelece claramente: “Nas áreas urbanas, a que
se refere o parágrafo único do art. 2° desta Lei,
a fiscalização é da competência dos municípios,
atuando a União supletivamente”. Este dispositivo do
Código Florestal, de uma clareza meridiana, não só
prevê expressamente o poder de polícia municipal
em APPs urbanas, como estabelece a competência
supletiva da União para proceder a esta fiscalização.
Portanto, cabem aos respectivos entes a fiscalização
e o exercício do poder de polícia em suas áreas de
autuação.

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Propriedade e Direito Ambiental

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