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Projetos de pesquisa,

fundamentos lógicos:
a dialética entre perguntas e respostas
Silvio Sánchez Gamboa

Projetos de pesquisa,
fundamentos lógicos:
a dialética entre perguntas e respostas

/\^ G o jr
Editora da Un<Khape>c4

Chapecó, 2013
UNOCHAPECQ
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Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer
meio sem autorização escrita do Editor.

001.42 Sándicz Gamboa, Silvio


S211p Projetos dc pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética
entre perguntas e respostas / Silvio Sánchcz Gamboa
- Chapccó : Argos, 2013.
159 p. ; 23 cm - (Didáticos; 6 )

Inclui bibliografia
ISBN 978-S5-7S97-116-8

1. Projetos de pesquisa. 2. Pesquisa - Metodologia.


I. Título. II. Serie

CDD 001.42

C atalogação elaborada por Carolinc M iotto C R B 14/1178


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Sumário

Prefácio 13
Maurício Roberto da Silva

Introdução 29

Capítulo 1. A necessidade histórica do 41


conhecimento científico: a importância da
lógica e do método geométrico

Capítulo 2. A construção das perguntas 87

Capítulo 3. A elaboração das respostas 113

Capítulo 4. A apresentação dos projetos de 129


pesquisa: a forma de exposição

Conclusões 151

Referências 155
Prefácio

Antes mesmo de apresentar este novo livro de Silvio


Sánchez Gamboa, intitulado Projetos de pesquisa, fun­
damentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas,
gostaria de fazer algumas considerações sobre como o co­
nhecí, sua trajetória, sua obra e os impactos dela na minha
vida acadêmica.
Minha aproximação com as reflexões filosóficas de Sil­
vio Sánchez Gamboa começou em 1994, a partir do con­
vite formulado a ele para escrever o texto para a revista
Motrivivência sob a temática “ Educação Física: Teoria e
Prática” 1, cujo texto se denominou “Teoria e prática: uma
relação dinâmica e contraditória” (1995). Mais tarde, em
1997, tive a oportunidade de conhecê-lo, pessoalmente,
durante o “ Encontro de História do Esporte, Lazer e Edu­
cação Física” , em Maceió. Naquela altura, já havia apro-
ximado-me dos seus escritos sobre epistemologia, pesquisa
e educação. Foi então que o convidei para escrever mais1

1 Motrivivência, ano 7, n. 8, dez. 1995.


um texto para a revista Motrivivência (1994)2, sobre a te­
mática “Pesquisa em Educação Física” , e título: “ Pesquisa
em Educação Física: as inter-relações necessárias” .
Deste então, tive a oportunidade de acompanhar um
pouco da trajetória da produção do Gamboa, principal­
mente a leitura de sua primeira publicação em espanhol:
Fundamentos para La investigación educativa: presupues-
tos epistemológicos que orientan al investigador. Também
tive a oportunidade de apreciar a segunda publicação,
também em espanhol, cujo teor foi Investigación e inno-
vación educativa. Posteriormente, estes dois livros se fun­
dem e se transformam em uma importantíssima referência
sobre as relações imbricadas entre pesquisa e epistemo-
logia, a saber: o livro editado pela Argos, que teve como
título Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias,
primeira edição datada de 2007. Em razão da grande ci­
tação do livro em trabalhos científicos, foi reeditado em
2012 (2. ed.). Esta obra tem como escopo problematizar
os métodos na pesquisa em educação, articulados com a
análise epistemológica. Nesse livro, o autor já havia tra­
zido reflexões sobre a relação dialética entre a pergunta
e a resposta nos processos de investigação educacionais.
Aliado a essa produção, ele vem escrevendo e orientando
iniciantes na pesquisa, mestres e doutores, sobre a necessi­
dade de se buscar as tendências da pesquisa em educação
à luz de um enfoque epistemológico.
Quando observo toda essa produção de Silvio Sánchez
Gamboa, lembro-me de que seus livros me fizeram repen­
sar a chamada “metodologia da pesquisa” , até então com­
preendida por mim como métodos e técnicas reproduzidas
dos manuais de pesquisa. No contato com sua obra, fui,

2 Motrivivência, ano 5, n. 5, 6 e 7, dez. 1994.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


paulatinamente, saindo da “zona de conforto” do conser­
vadorismo positivista da metodologia da pesquisa e ten­
tando não dissociar do labor investigativo as relações entre
ciência e filosofia, teoria e prática, teoria e empiria, método
e teoria, sujeito e objeto e outros pares dialéticos.
Portanto, apresentar uma nova obra de Silvio Sánchez
Gamboa é um desafio e um aprendizado, devido à densi­
dade de suas reflexões e abordagens filosóficas forjadas
em referências analíticas relacionadas às teorias do conhe­
cimento na confluência das ciências humanas e sociais.
Seus livros e textos, em geral, ancorados no materialismo
histórico-dialético, versam sobre as relações entre episte-
mologia e pesquisa, principalmente, no que se refere à sua
proposição de uma “matriz paradigmática” , com vistas
à realização de análises epistemológicas das pesquisas ou
“pesquisa das pesquisas” . Em seus aportes teórico-meto-
dológicos, é notória a ideia de que todo método impli­
ca uma teoria da ciência, que, consequentemente, requer
uma teoria do conhecimento, envolvendo necessariamente
uma concepção do real, um fundamento ontológico.3
Após fazer essas considerações iniciais sobre a perti­
nência do livro, passo a falar sobre o escopo do livro, a
partir das palavras do próprio autor. Segundo ele,

[...] tem uma pretensão didática e um conteúdo básico


sobre os fundamentos lógicos da pesquisa científica e
elaboração de projetos, e está dirigido a alunos de ini­
ciação científica e pesquisadores interessados em uma
perspectiva epistemológica dos elementos básicos do co­
nhecimento e na apropriação das eficientes ferramentas
oferecidas pela lógica e pela filosofia, (p. 29, grifo nosso).

3 Severino, Antonio Joaquim. Prefácio. In: Sánchez Gamboa, Silvio. Pesquisa em


Educação-, métodos e epistemologias. 2. ed. Chapecó: Argos, 2012.
Os projetos de pesquisa se caracterizam por organiza­
rem os procedimentos necessários para a elaboração
do conhecimento científico sobre os objetos, fenôme­
nos e problemas concretos, localizados no mundo da
necessidade humana, (p. 29, grifo nosso).

Em termos de contribuição para repensar os proje­


tos de pesquisa e a construção de perguntas e respostas,
Gamboa espera “ [...] que esta breve apresentação desses
fundamentos lógicos contribua para a compreensão da
especificidade do conhecimento científico e para o apri­
moramento das fases iniciais do planejamento da investi­
gação científica.” (p. 40, grifo nosso).
Na conclusão do livro, o autor, preocupado com a pes­
quisa como processo formativo e cognitivo, tem as seguintes
expectativas: “ [...] espera-se que esta publicação incentive
novas práticas pedagógicas, visando a formação de futuros
pesquisadores, valorizando as pedagogias da pergunta, o
incentivo à curiosidade e o desenvolvimento da capacidade
de duvidar e perguntar sem precisar desprezar os saberes
acumulados e os conteúdos clássicos.” (p. 152-153, grifos
nossos). Mais adiante Gamboa acentua: “A formação bá­
sica para a pesquisa aqui pretendida não se limita apenas à
compreensão das estratégias de elaboração de projetos, des­
tacando os fundamentos lógicos e metodológicos, mas deve
compreender também a própria preparação do pesquisa­
dor, começando pela mudança dos sistemas pedagógicos,
no sentido de privilegiar o desenvolvimento da capacidade
de problematizar e de perguntar.” (p. 153, grifos nossos).
Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética
entre perguntas e respostas, segue a trilha dos livros an­
teriores e tem como objetivo refletir e desvendar os prin­
cípios, hipóteses e resultados das ciências com vistas a
compreender e problematizar a lógica, o alcance, o objeti­

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


vo e a relevância dos projetos de pesquisa, que estão sub­
jacentes no processo de investigação. Primordialmente, o
foco está direcionado para recuperar a lógica essencial da
pesquisa científica, que tem como centralidade a relação
básica entre uma pergunta (P) e uma resposta (R), cujos
procedimentos podem ser realizados a partir de dois pas­
sos: 1) a construção da pergunta (mundo da necessidade,
problema, indagações múltiplas, quadro de questões) e 2)
a construção da resposta (níveis: técnico, metodológico,
teórico, epistemológico, gnosiológico, ontológico). Esse
processo investigativo e formativo deve ter como premis­
sa as mudanças nos sistemas pedagógicos e o privilégio
do desenvolvimento da capacidade de problematizar e de
perguntar.
Como se pode perceber, com esta obra Gamboa alar­
ga o conceito de projeto de pesquisa, tirando-o das amar­
ras da lógica formal, sem, contudo, desdenhar dela, mas
a retomando à luz da lógica dialética4. Isto é importan­
te reconhecer, pois, todos nós que orientamos pesquisas
com iniciantes ou iniciados, temos com frequência a sen­
sação de que a ideia de “projeto” de pesquisa ainda está
impregnada dos pressupostos positivistas e cartesianos,
culminando em visão utilitária de ciência. Ao que parece,
o termo “projeto de pesquisa” justifica-se por si só, sem
levar em conta suas possibilidades de intervenção no re­
al, desdobramentos, impactos e relevância social. Tanto é
verdade que, quando se fala em relevância social e acadê­
mica do projeto de pesquisa, no sentido das lacunas que
porventura os projetos possam cobrir, lacunas na produ­
ção do conhecimento existente, em termos das perguntas e
respostas que dele se originam, há quase sempre um mal-

4 Lefebvre, H. Lógica formal/lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei­


ra, 1975.

Prefácio 1
-estar acadêmico. O questionamento sobre a atualidade
e pertinência das perguntas formuladas, na maioria das
vezes, é subestimado, pois o que importa é ir direto pa­
ra as partes que compõem os conteúdos que compõem
as diversas etapas do projeto (referencial teórico, meto­
dologia etc.). Assim, deixa-se pouco tempo para reflexão,
aprofundamento e delimitação da pergunta-síntese e das
questões de pesquisa.
Considerando a relevância do livro, uma pergunta que
urge é: o que suscita o livro? O debate sobre “ projetos
de pesquisa, fundamentos lógicos e a dialética entre per­
guntas e respostas” traz subjacente a ideia de “ método
científico” , normalmente concebido como sinônimo de
“metodologia da pesquisa” . Todavia, quando se fala de
método científico, poder-se-ia agregar outras dimensões
do exercício da pesquisa, compreendendo a pesquisa “co­
mo um fazer além das técnicas” .5 Trata-se de buscar as
articulações entre os elementos propriamente epistêmicos,
técnicos, metodológicos, ontológicos e gnosiológicos. Tu­
do conspira para a necessidade da articulação dessas di­
versas dimensões do método científico e suas articulações
eficazes na produção do conhecimento dentro de um de­
terminado campo real6.
A ideia de método e metodologia sob o ponto de vis­
ta das ciências humanas e sociais pode ser compreendida
como o caminho do pensamento, uma prática teórica que
se faz com segurança, intencionalidade, teorias, críticas e
técnicas no âmbito da abordagem da realidade. O obje­
to da metodologia é estudar as possibilidades explicativas

5 Oliveira, Paulo Sales de (Org.). Metodologia das Ciências Humanas. São Paulo:
Unesp; Hucitec, 1996.
6 Severino, Antonio Joaquim. Prefácio. In: Sánchez Gamboa, Silvio. Pesquisa em
Educação : métodos e epistemologias. 2. ed. Chapecó: Argos, 2012.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


dos diferentes fenômenos sociais e os diferentes modos de
abordar a realidade, e a “ pesquisa” como a atividade bási­
ca da ciência na sua indagação e construção da realidade.7
Isto implica na realização de uma prática teórico-meto-
dológica capaz de elaborar conhecimentos que não sejam
apenas capazes de dar explicações consistentes sobre de­
terminadas questões sociais, mas que possam, sobretudo,
sef aplicados para interferir nos processos de mudanças
sociais. Tais processos devem ser mediados pela “ pesqui­
sa como estratégia de inovação educativa” , pela pesquisa
como estratégia de reflexão-ação, a partir da relação dia­
lética entre pergunta e resposta.
Nas páginas do livro, outra questão ganha desta­
que: a noção de “problema” e “pergunta problemática”
na elaboração do projeto de pesquisa. Neste sentido, a
construção da pergunta deve originar-se de um “ proble­
ma concreto” , situado e ativo. O problema é traduzido,
reduzido ou racionalmente “ aprendido” em forma de
indagações e de questões (pergunta-síntese e questões de
pesquisa), que ganham clareza e possibilidade de serem
respondidas quando elaboradas em forma de perguntas
claras e específicas. Isto significa que, uma vez formuladas
as indagações que orientam o processo de pesquisa (mo­
mento do projeto), são produzidas as respostas (momento
da realização da pesquisa). Após o processo de conclusão
do relatório de pesquisa (monografia de iniciação científi­
ca, dissertação de mestrado ou tese de doutorado), pode-se
realizar então uma análise epistemológica para além de um
mero “ estado da arte” ou “ estado do conhecimento” . As­
sim, para se realizar uma análise epistemológica, torna-se

7 Minayo, Maria Cecília Souza. O desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa


em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.

Prefácio
fundamental recuperar a estrutura lógica da investigação
realizada e, a partir daí, desenvolver a lógica entre a per­
gunta que sintetiza as indagações e questões sobre o pro­
blema abordado e as respostas.
Essas reflexões apontam para a necessidade da imer­
são no processo de construção do projeto de pesquisa, com
ênfase na relação dialética entre pergunta e resposta. Co­
mo se sabe, o ponto de partida de uma pesquisa ou inves­
tigação é uma “ questão” , que se coloca como “problema”
a resolver. Elaborar uma pergunta norteadora (pergunta-
-síntese, pergunta-problema) significa o mesmo que cons­
truir o problema da pesquisa em toda a sua complexidade,
delimitação e abrangência do recorte do objeto. A pergun­
ta deve conter uma tensão interna, ser “problemática” e
estar calcada no mundo das necessidades humanas, con­
tradições, concreticidade e possibilidades de mudanças,
tanto na academia quanto na vida cotidiana.
A dialética entre pergunta e resposta tem como premis­
sa a ideia de que sem uma pergunta qualificada (pergun-
ta-síntese), uma pergunta-problemática, historicamente
situada na concreticidade dos problemas educacionais,
não há problema “ problemático” . Sendo assim, pergun­
tas “ requentadas” tendem a resultar em respostas repetiti­
vas que pouco acrescentam para o avanço científico para
a área da educação. Esses comentários foram suscitados
a partir da própria epígrafe de Bachelard que inaugura o
livro: “ Para o espírito científico qualquer conhecimento é
uma resposta. Se não tem pergunta não pode ter conheci­
mento científico. Nada se dá, tudo se constrói.” Contudo,
não se trata de qualquer pergunta, pois perguntas abstra­
tas poderão engendrar respostas metafísicas, mantenedo­
ras do status quo e reprodutoras da lógica do capital.

20 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Quando se está em pauta o debate sobre fundamentos
lógicos da relação entre pergunta e resposta no processo
de construção do conhecimento, a noção de problema está
sempre norteando os caminhos científicos. Nesse limiar,
existem diferentes concepções da palavra “ problema” ,
que podem ser compreendidas a partir da lógica formal e
da lógica dialética. Na lógica formal, o problema tem um
caráter subjetivo e pseudoconcreto. No mundo da pseu-
doconcreticidade,

[...] o complexo dos fenômenos que povoam o am­


biente cotidiano e a atmosfera comum da vida huma­
na, que, com a regularidade, imediatismo e evidência,
adentram na consciência dos indivíduos agentes, assu­
mindo um aspecto independente e natural.8

Na lógica formal,

[...] os termos contraditórios mutuamente se excluem


(princípio da não contradição), inevitavelmente entram
em crise, postulando a sua substituição pela lógica dialé­
tica. Nesta, os termos contraditórios mutuamente se in­
cluem (princípio da contradição, ou lei dos contrários).9

O debate sobre a dialética na construção da pergunta


e da resposta no processo investigativo sugere a necessi­
dade de se recuperar a “ problematicidade do problema” ,
buscando captar a verdadeira essência do fenômeno, para
além dos “ pseudoproblemas” da lógica formal. Na lógi­
ca dialética, a essência e a nota definitória e fundamental

8 Kosik, Karol. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.


9 Saviani, Dermeval. Educação: do Senso Comum à Consciência Filosófica.
Campinas: Autores Associados, 2002. p. 16.

Prefácio 21
do problema são a “ necessidade” . Nesta linha de raciocí­
nio, o problema é, nesse caso, o problema de investigação,
pensado na perspectiva da relevância social e acadêmica,
“ [...] possui um sentido profundamente vital e altamente
dramático para a existência humana, pois indica uma ‘si­
tuação de impasse’.” 101
Na esteira da questão da noção de problema de pesqui­
sa, inclui-se a necessidade de se pensar a relação imbrica-
da entre problemas filosóficos e problemas científicos. Essa
relação exige uma noção de problema filosófico-científico
que tenha como leitmotiv a concepção de problema de in­
vestigação, podendo constituir-se em uma reflexão “rigo­
rosa, radical e de conjunto sobre os problemas sociais que
a realidade apresenta” . Nesses termos, a Filosofia da Edu­
cação não seria outra coisa senão uma reflexão (radical,
rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade
educacional apresenta.11
Pensar a construção do problema de investigação à
luz da dialética entre pergunta e resposta carece que evo­
quemos o papel da criatividade, da inovação e do rigor da
ciência, que se soma ao compromisso político do pesqui­
sador com o “ mundo da necessidade” e com as “ situações
de impasse” que surgem no real-social. Contudo, não se
trata de uma criatividade abstrata, mas sim da “ imagina­
ção sociológica” , que segundo Wright Mills é

[...] a qualidade intelectual de natureza crítica que prevê


a sintonia do cientista social com os problemas indivi­
duais ligados às realidades mais amplas e aos problemas
de relevância pública.

10 Saviani, Dermeval. Educação: do Senso Comum à Consciência Filosófica.


Campinas: Autores Associados, 2002. p. 16.
11 Idem.

22 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Ela prevê, ainda,

[...] a sensibilidade para captar a necessidade da fusão


da nossa vida individual com os problemas do tempo
conturbado em que vivemos [...] e, eu diria, sob a vigên­
cia do processo de destruição da coletividade, trabalho,
meio ambiente, enfim, das relações sociais engendradas
pelo capital.12

De acordo com Mills, a tarefa intelectual e política do


cientista social é deixar claros os elementos de inquietação
e indiferença, frente aos problemas sociais que assolam a
humanidade no mundo contemporâneo13. Além do mais,

[...] a tarefa dos intelectuais (educadores-investiga-


dores) deveria ser promover a liberdade humana e o
conhecimento, além de ‘questionar’ o nacionalismo
patriótico, o pensamento corporativo e um sentido de
privilégio de classe, raça ou sexo.14

No ponto de vista de uma “ educação crítica” , deve-


riam aprender as lições gramscianas do “intelectual orgâ­
nico” , apoiando e participando dos movimentos sociais,
reconhecendo o conhecimento destes e ao mesmo tempo
socializando o conhecimento especializado das universi­
dades “ [...] com esses movimentos que se voltam às lutas
por uma política de redistribuição e por uma política de
reconhecimento. ” 15
A ideia de “ problema concreto” pode ser compreendi­
da à luz da reflexão sobre a natureza do labor investigati-

12 Mills, Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.


13 Said, Edward W. Representações do Intelectual: as conferências Reith de
1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
14 Idem.
15 Apple, Michael W.; Wayne, A. U.; Gandin, Luis Armando (Orgs.). Educação
Crítica: Análise Internacional. Porto Alegre: Artmed, 2011.

Prefácio 2;
vo na universidade. A pesquisa na universidade tem como
centralidade o trabalho teórico e o uso dos conceitos16; a
universidade é o lócus privilegiado para, criticamente, a
partir de uma linguagem filosófica desdobrada em “con­
ceitos” , realizar as mediações relevantes e necessárias com
a realidade objetiva e seus problemas macro e microsso-
ciais. Essa tarefa implica em um comprometimento po-
lítico-pedagógico do pesquisador com os “ problemas de’
relevância pública” , isto é, dos “ problemas da realidade”
ou, de acordo com Marx (1987, p. 49), do “real pensado”
ou “concreto pensado” . De acordo com o autor,

[...] o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas


determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o con­
creto aparece no pensamento como o processo de sínte­
se, como resultado, não como ponto de partida, ainda
que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto
de partida também da intuição e da representação.17

Um ponto digno de destaque na escrita deste livro é a


preocupação do autor para a formação de professores-in-
vestigadores, cujos processos formativos carecem de mais
reflexão e maior aprofundamento sobre as relações entre
práticas de formação e questões teórico-metodológicas no
campo da investigação. Nessa dimensão, a obra se destina
tanto aos “ iniciantes” quanto aos “ iniciados” na pesquisa.
Para os iniciantes de cursos de formação inicial, destina-se
aos que estão começando na pesquisa, principalmente, aos
estudantes de graduação envolvidos nos projetos de pes­

16 Jantsch, Ari Paulo. Os conceitos no ato teórico-metodológico do labor cien­


tífico. In: Bianchetti, Lucídio; Meksenas, Paulo. A trama do conhecimento:
teoria, método e escrita em ciência e pesquisa. Campinas: Papirus, 2008.
17 Marx, K. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural,
1991. p. 49. (Os pensadores, v. I).

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


quisa de conclusão de curso (TCC), projetos de iniciação
científica, estudantes que estão desenvolvendo projetos de
pós-graduação latu sensu (especialização) e professores que
estão em processo de formação continuada. Neste sentido,
o livro veicula conteúdos que podem ser de grande valia
para os iniciados na pesquisa: mestres e doutores, pois são
frutos da trajetória acadêmica do autor no âmbito da gra­
duação e pós-graduação em ciências humanas e sociais na
perspectiva da produção de pesquisas, bancas, livros, arti­
gos em periódicos, orientações, participação em intercâm­
bios acadêmicos nacionais e internacionais, participação
em entidades científicas e comitês científicos.
O livro traz experiências concretas desenvolvidas na
formação de professores-pesquisadores em convênios do
Grupo de Pesquisa Paideia (Faculdade de Educação/Uni-
camp) com universidades de São Paulo, do Brasil e outras
instituições internacionais. O debate instaurado poderá
constituir-se em um convite para se repensar a relevância
das pesquisas.
Outra contribuição do livro é a de atentar para uma
mudança na concepção “ metodologia” compreendida co­
mo labor meramente instrumental nos manuais de meto­
dologia da pesquisa, que desprivilegiam um processo mais
lento e indagativo sobre a pertinência das perguntas e, con­
sequentemente, das respostas. Os manuais terminam por
não permitir que “ o pesquisador possa ser o seu próprio
teórico e o seu próprio metodólogo” 18. Os manuais ainda
são a bíblia de muitos pesquisadores, talvez porque eles sig­
nifiquem, no dizer irônico e crítico de Corazza, um “ M a­
nual infame... mas útil, para escrever uma boa proposta de

18 Mills, Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

Prefácio 25
tese ou dissertação.” 19 Esses manuais prescritivos e técni-
co-instrumentais, sob a designação de “metodologia” ou
“manuais de métodos e técnicas” , terminam por inculcar
uma cultura da pesquisa descontextualizada de um fazer
teórico-metodológico em sua integralidade e complexida­
de, articulada com os problemas objetivos da realidade in­
vestigada. E na contramão dos manuais e dessa tendência à
instrumentalização da metodologia da pesquisa que se in­
surge este livro. Ele se apresenta como alternativa ao con­
servadorismo metodológico, como uma profunda reflexão
filosófica à luz das análises epistemológicas.
A obra é relevante porque sinaliza para a prática da
pesquisa, compreendida como princípio educativo, for-
mativo e cognitivo na docência.20 Além de problemati-
zar o conhecimento no processo, com vistas a proceder a
mediação entre o significado do saber no mundo atual e
aqueles dos contextos em que foram produzidos.
Diante de tudo que aprendemos com Gamboa, fica su­
bentendido o desafio, no sentido da necessidade de que
os pesquisadores formulem perguntas à realidade, toman­
do como eixo ontológico, epistemológico e gnosiológico
a imaginação sociológica. Essa postura coloca mais um
desafio: “ transformar problemas sociais em problemas
sociológicos” .21 Isso implica, por sua vez, transformar
problemas sociais em problemas de investigação, com ba­
se no concreto pensado, cujas pesquisas possam abarcar
problemas concretos da educação formal (escolas), não

19 Corazza, Sandra. Manual infame... mas útil para escrever uma boa proposta
de tese ou dissertação. In: Bianchetti, Lucídio; Machado, Ana Maria Netto. A
Bússola do Escrever. Florianópolis: UFSC; São Paulo: Cortez, 2006.
20 Severino, Antonio Joaquim. Prefácio. In: Sánchez Gamboa, Silvio. Pesquisa
em Educação: métodos e epistemologias. 2. ed. Chapecó: Argos, 2012.
21 Pais, José Machado. Vida Cotidiana: Enigma e Revelações. São Paulo: Cortez,
2003.

26 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


formal (movimentos sociais) e informal (grupos não orga­
nizados e espontâneos); que possam abarcar os problemas
sociais universais e específicos, macro e microssociais da
vida cotidiana das instituições escolares e não escolares.
Em síntese, o livro que temos nas mãos nos faz perspec­
tivar uma outra lógica na reflexão de problemas de pesquisa
e a relação dialética entre pergunta e resposta nos projetos
de pesquisa. Faz-nos refletir criticamente sobre o proces­
so investigativo em termos dos pseudoproblemas. Faz-nos
pensar na enorme quantidade de pesquisas, produzidas com
perguntas óbvias e respostas repetitivas e sem impacto na
vida acadêmica e social. Pesquisas, muitas vezes, cujas per­
guntas já trazem em seu bojo respostas a priori, indicando,
assim, os chamados “ resultados esperados” .
Desejo uma boa leitura de mais um livro do mestre
Silvio Sánchez Gamboa e a reflexão da música “A seta e o
alvo” , de Paulinho Moska:

Então me diz qual é a graça


De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?

Sempre a meta de uma seta no alvo,


Mas o alvo, na certa, não te espera.

Então me diz qual é a graça


De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada ?

Florianópolis, outono/abril de 2013

Maurício Roberto da Silva


Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação (Mestrado) da Unochapecó.

Prefácio 27
Introdução

Este texto tem uma pretensão didática e um conteúdo


básico sobre os fundamentos lógicos da pesquisa científi­
ca e a elaboração de projetos, e está dirigido a alunos de
iniciação científica e pesquisadores interessados em uma
perspectiva epistemológica dos elementos básicos do co­
nhecimento e na apropriação das eficientes ferramentas
oferecidas pela lógica e pela filosofia.
Os projetos de pesquisa se caracterizam por organi­
zarem os procedimentos necessários para a elaboração
do conhecimento científico sobre os objetos, fenômenos e
problemas concretos, localizados no mundo da necessida­
de humana. O mundo da necessidade, por ser complexo,
aberto e desafiante, exige procedimentos que, além de se­
rem sistematizados e rigorosos, também precisam ser espa­
ços dinâmicos e abertos à criatividade e à inovação. Nesse
sentido, durante muitos séculos, a humanidade, em diver­
sos estágios de seu desenvolvimento, vem realizando um
esforço histórico para a compreensão dos elementos fun­
damentais dos conhecimentos e da heurística que os diver­
sos caminhos da ciência apresentam para permitir esse jogo
entre a sistematização e a inovação, o rigor e a criatividade.
Tais procedimentos, que compreendem desde a deli­
mitação dos objetos ou fenômenos, a localização dos pro­
blemas, sua transformação em questões e perguntas, até
os procedimentos relativos à elaboração das respostas,
têm sido também objeto do conhecimento. Esse conheci­
mento sobre as formas como se elaboram os procedimen­
tos do próprio conhecimento permitiu o desenvolvimento
de conteúdos organizados em áreas, tais como: as Teorias
do Conhecimento, a Epistemologia e a Lógica.
Nesse sentido, o título de Projetos de pesquisa, fun­
damentos lógicos indica conteúdos que sinalizam uma
previsão de uma ação que se coloca no futuro. Prever os
procedimentos a serem realizados no futuro implica um
movimento, uma ação, uma realização de acordo com
condições postas no presente, condições essas que acon­
tecem porque são resultados de um acúmulo produzido
no passado. A compreensão dessas condições presentes,
mas produzidas no passado, dá maior sentido às previsões
postas no futuro.
No caso da produção do conhecimento, os conteúdos
sobre procedimentos acumulados poderão ser organiza­
dos em forma simplificada na lógica. A apropriação de
alguns fundamentos da lógica poderão esclarecer com re­
lativa simplicidade os procedimentos básicos para a pro­
dução do conhecimento esperado1. Optamos pelo termo
fundamentos porque se refere a elementos básicos e nu­
cleares, aos primeiros passos de um percurso, ao “ núcleo
duro ” ou aos alicerces da pesquisa.
Assim, utilizamos a expressão fundamentos lógicos
porque se refere a regras básicas, que, segundo Aristóteles,1

1 A Lógica se refere às regras do pensar, às leis do raciocínio, à forma coerente de


encadeamento do raciocínio.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


refere-se às regras do bem-pensar que garantem a eficiên­
cia, a relação direta e coerente entre pontos nodais. A lógi­
ca, segundo a origem grega, significa tratado sobre o logos
(palavra). A palavra ou o logos expressa uma ideia, um
pensamento. Expressamos o que pensamos. Mas o pen­
samento não se origina em si mesmo, segundo Aristóte­
les, mas se origina na empeiria (experiência sensível); nada
existe no intellectus sem antes passar pela experiência sen­
sível. A relação entre a experiência e as palavras passando
pela mente é o objeto principal da lógica formal desenvol­
vida por Aristóteles2. Temos aí um importante exemplo
do papel da lógica como organizadora de procedimentos
e de sequências e passos entre pontos nodais, por exem­
plo, entre um determinado ponto de partida e um ponto
de chegada. O caminho a ser percorrido e as sequências
de passos poderão ser mais precisos; o percurso ser mais
rápido e os procedimentos mais eficientes obedecem a cri­
térios, tais como evitar desvios desnecessários, aprimorar
os meios e otimização do tempo. A lógica busca equacio­
nar esses elementos que permitem otimizar as condições
necessárias para realizar a caminhada. A lógica se pergun­
ta sobre o tempo, os meios, os passos essenciais que são
necessários para alcançar o ponto de chegada, ou, no caso
da produção do conhecimento, se pergunta sobre o trajeto
mais direto entre a pergunta e a resposta.
Quanto mais dificuldades se encontram no percurso,
mais complexa a lógica necessária para chegar à meta pro­
jetada, daí porque a lógica simples se torna mais eficiente.
Como descobrir essa lógica simples, fundamental ou bá­
sica que facilite o caminho, que permita utilizar o menor

2 Cf. Chauí (2002, p. 257), Aristóteles na lógica ou Órganon.

Introdução
tempo possível, evitando os desvios desnecessários ou os
passos em falso?
Essa situação é comumente vivenciada pelos pesquisa­
dores que devem cumprir prazos de agências de fomentos,
de programas de pós-graduação ou de orientadores exi­
gentes, utilizando recursos exíguos e condições limitadas.
Daí porque vale a pena pensar sobre as contribuições que
a lógica poderá trazer perante esses desafios da produção
do conhecimento.
Nos casos de dificuldades com o tempo e os recur­
sos limitados, vale a pena perguntar: faltou lógica, faltou
clareza no caminho, sequência nos procedimentos essen­
ciais? Parece que se trata não apenas da administração
otimizada das condições e dos recursos disponíveis, mas
da definição de prioridades e da escolha das sequências e
procedimentos essenciais e mais eficazes. Neste sentido, a
lógica torna-se ainda mais necessária.
Essa lógica à qual nos estamos referindo concerne à
capacidade de organizar, de prever situações, recursos e
que denominamos elaboração de projetos, maneiras de
como raciocinamos e prevemos situações. Essa lógica per­
mite prever sequências e articulações dos procedimentos
necessários para a elaboração do conhecimento.
Na perspectiva de uma lógica simples, o conhecimen­
to, segundo Bachelard, pode ser entendido como a respos­
ta a uma pergunta.

Para o espírito científico qualquer conhecimento é uma


resposta a uma pergunta. Se não tem pergunta não
pode ter conhecimento científico. Nada se dá, tudo se
constrói. (Bachelard, 1989, p. 189).

32 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Considerando essa relação simples, entre dois elementos
básicos, os procedimentos da elaboração do conhecimen­
to, como do planejamento dos projetos, poderão ser orga­
nizados em dois grandes momentos ou fases. O primeiro
relativo à delimitação dos objetos ou fenômenos, à local­
ização dos problemas e à sua transformação em questões
e perguntas, e o segundo momento relativo à elaboração
das respostas. A relação entre esses dois momentos precisa
ser planejada, organizada e amparada em uma perspectiva
lógica, que oferecerá clareza e justificativa às sequências e
articulações a serem realizadas e garantias de confiabilidade
aos procedimentos desenhados e previstos.
Entre essas duas fases estabelecem-se relações de mú­
tua implicância e elucidação, pautadas pela unidade entre
dois momentos ou polos contrários e pelo movimento dia­
lético: a) da afirmação; b) da negação; e c) da negação da
negação. Assim, quando o processo do conhecimento se
encontra na aceitação de uma resposta ou de uma certeza
científica ou de um saber validado temos certa hegemonia
da afirmação de um conhecimento, mas se o conhecimen­
to passa para a fase da dúvida, da suspeita, da indagação e
da pergunta as afirmações e as respostas sobre esse deter­
minado objeto ou fenômeno são negadas. De igual manei­
ra, à medida que o processo se encaminha para uma nova
fase de construção de hipóteses, certezas e novas respostas,
as dúvidas e as perguntas são superadas, ou negadas- (ne­
gação da negação). O processo traça um caminho de ida e
de volta das respostas ou saberes já dados ou encontrados
sobre esse fenômeno ou objeto (ponto de partida) à per­
gunta (ponto de chegada) e desta a uma nova resposta ou
fase mais desenvolvida, formando um espiral progressivo
da construção histórica do conhecimento sobre esse deter­
minado fenômeno, objeto, realidade ou problema. A nova

Introdução 33
resposta será constituída como um novo ponto de partida
para novos processos de negação e de afirmação.
Essa dinâmica do movimento do conhecimento deno­
minamos de dialética entre perguntas e respostas e jus­
tifica o subtítulo desta publicação. E a articulação desse
movimento, em uma unidade de contrários, garante o ri­
gor epistemológico que diferencia o conhecimento cientí­
fico de qualquer outro tipo de saber, e garante também a
dinâmica da criatividade e inovação dada pelas condições
e jogo das contradições entre os saberes já constituídos e
os novos conhecimentos. Daí a importância da compre­
ensão dessa lógica para garantir tanto o rigor quanto a
criatividade exigidos nas fases mais elaboradas do conhe­
cimento científico, começando pela fase de elaboração do
projeto de pesquisa.
A perspectiva, que orienta a relação entre as pergun­
tas e respostas e que denominamos de dialética, funda­
menta-se na reflexão acumulada na filosofia, atribuída
inicialmente a Zenon de Eleia (fundador da dialética) e
a Heráclito de Efeso, que dá o sentido formal de práxis
como interpretação de contrários e compreensão da reali­
dade como sendo essencialmente contraditória e em per­
manente contradição (Konder, 1986).
Na filosofia moderna, Hegel retoma a dialética dos
pré-socráticos e, com base na afirmação de que todo real é
racional, entende a dialética como a relação entre a racio­
nalidade e a realidade, entre a essência do ser e o conceito.
Com base em Hegel, a dialética moderna e contemporâ­
nea se refere a uma visão ou ontologia dinâmica da rea­
lidade (Heráclito), a uma Lógica dinâmica entre pensar e
ser (Hegel), a uma Teoria do conhecimento (Marx e En-
gels) e a um método científico-filosófico (Kopnin, Lõwy e
Schaff, dentre outros).

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


A dialética materialista como método (Marx, 1983;
Lõwy, 1975) ou como uma das abordagens teórico-me-
todológicas das ciências contemporâneas (Schaff, 1995) é
amplamente utilizada tanto nas ciências naturais quanto
nas humanas e se define a partir da concepção dinâmica
da realidade e da compreensão histórica das contradições
dos fenômenos e das suas fases de desenvolvimento. As
categorias do materialismo dialético são ao mesmo tempo
ontológicas (relativas aos conteúdos da realidade objetiva
e ao ser), gnosiológicas (relativas à relação do pensamen­
to com o ser e do movimento do conhecimento) e lógicas
(ciências das formas e leis do pensamento).
Considerando esses pressupostos, os projetos de pes­
quisa devem considerar os dois grandes momentos da pro­
dução do conhecimento.
O primeiro momento, da construção das questões e
perguntas, se pauta pelos seguintes procedimentos:

a) a localização e delimitação do mundo da necessidade


que dá origem ao processo e sua transformação em
um problema de pesquisa (situação-problema);
b) uma vez transformada a necessidade em um proble­
ma de pesquisa (problematização), a seguir dever-se-ão
procurar as manifestações ou indicadores desse proble­
ma que implica a recuperação de dados preliminares
ou antecedentes de pesquisas sobre o objeto ou pro­
blema a ser investigado;
c) elaboração de um quadro de questões que oriente a
busca de respostas para esse problema;
d) elaboração de uma pergunta-síntese que articule as
questões e delimite o foco central das indagações.

Introdução 35
No segundo momento, da elaboração das respostas,
o projeto deverá prever a forma de obtenção, tratamento
e sistematização de dados e informações necessários para
sua elaboração. Essa forma de prever ou projetar a manei­
ra da construção das respostas se conhece como “meto­
dologia do projeto” e poderá conter os seguintes tópicos:

a) definição de fontes em que se podem obter informa­


ções para a elaboração das respostas, pertinentes ao
quadro de questões e à pergunta-síntese;
b) seleção de instrumentos, materiais, técnicas para cole­
tar, organizar, e sistematização das informações neces­
sárias à construção das respostas;
c) explicitação de hipóteses (respostas esperadas) ou dos
possíveis resultados da pesquisa que poderão orientar
as diversas estratégias da organização das respostas;
d) definição de um quadro de referências teóricas que
forneçam as categorias para analisar as respostas e
interpretar os resultados. Esse quadro ajuda a locali­
zar o projeto, em um campo epistemológico específico
ou no contexto de uma área do conhecimento já de­
senvolvida, ou a necessidade da construção de novas
perspectivas de interpretação.
e) previsão de condição para a realização do projeto (in­
dicadores da viabilidade técnica do projeto).

A compreensão dessas fases e procedimentos que ex­


plicitam o tratamento científico dos fenômenos e dos pro­
blemas exige o entendimento de alguns conceitos básicos,
que tentaremos expor nesta publicação, organizada nas se­
guintes partes: 1) um capítulo introdutório que apresenta

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


de forma sucinta o contexto do surgimento da episteme
(ciência), entendida como uma forma diferenciada, crite­
riosa e criativa de elaborar novas respostas aos diversos
problemas que desafiam o conhecimento humano, ofere­
cendo destaques para as bases lógicas e metodológicas. Os
dois capítulos subsequentes tratam do núcleo essencial, ou
da base lógica dos projetos de pesquisa, expondo os con­
teúdos relativos aos procedimentos fundamentais para a
construção das perguntas (capítulo 2) e para a elaboração
das respostas (capítulo 3). Complementam essa base lógica
que define os conteúdos da investigação algumas sugestões
relativas à forma de exposição do projeto (capítulo 4).
Esta última parte justifica-se na mesma concepção dia­
lética de lógica e de método. Segundo essa perspectiva, o
método tem dois momentos diferentes, mas complementa­
res: o método de pesquisa e o método de exposição.
Essas duas dimensões do método, de pesquisa e de ex­
posição também têm como pressuposto a unidade entre
conteúdo e forma, entre o pensar e o comunicar, ou en­
tre o pensamento e a linguagem. Essa unidade entre esses
dois momentos do método justifica a dinâmica de mútua
explicitação entre os processos de pensar e produzir os
conteúdos da pesquisa, relativos à elaboração das pergun­
tas e das respostas, e os procedimentos da elaboração da
exposição organizada desses conteúdos.
Em síntese, apresentaremos uma justificativa da im­
portância da lógica e da metodologia na produção de
novas respostas, considerando as bases filosóficas e os cri­
térios da episteme (conhecimento científico). De acordo
com a lógica, o conhecimento se elabora na relação en­
tre perguntas e respostas. Essa relação essencial constitui
a matéria ou conteúdo e delimita um primeiro momento
do método, relativo aos procedimentos de como o pensa­

Introdução 37
mento transita ou realiza seus percursos entre as respostas
encontradas ou já postas e as dúvidas, indagações e per­
guntas que o mundo da necessidade apresenta, assim como
aos procedimentos a serem realizados para a produção de
novas respostas. E, em um segundo momento do método
e que complementa esta publicação, será dedicada à forma
da exposição.
Finalmente, cabe informar ao leitor sobre as motiva­
ções que incentivam a socialização desta experiência de
busca e reflexão sobre a problemática da elaboração dos
projetos de pesquisa científica.
E a partir do lugar da experiência que surgiram os
motivos para esta publicação e é desse lugar que as pon­
derações aqui expostas têm sentido. Na minha formação
profissional como filósofo me deparei com a necessidade de
atrelar os conteúdos filosóficos e a prática como educador.
Na busca do aprimoramento profissional, as opções pelos
estudos pós-graduados exigia a realização de pesquisas e
a procura de uma problemática que focasse a investigação
científica. A opção centralizou-se na análise da produção
científica em educação, uma pesquisa sobre a pesquisa edu­
cacional, uma excelente oportunidade para trazer as con­
tribuições da filosofia para a compreensão da prática, neste
caso, a produção do conhecimento na educação. Assim, na
minha dissertação de mestrado analisei a produção de 72
dissertações do mestrado em educação da Eíniversidade de
Brasília (UnB)3. No doutorado, ampliei a análise para mais

3 Pesquisa intitulada Análise epistemológica dos métodos na pesquisa educa­


cional: um estudo sobre as dissertações do mestrado em Educação da UnB,
1976-1981, defendida em 1982. Um resumo dos resultados dessa investigação
encontra-se em Sánchez Gamboa (1984).

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


502 dissertações e teses produzidas nos programas de pós-
-graduação em educação no estado de São Paulo4.
A experiência, com base na análise da produção, ga­
nhou dimensões institucionais com a constituição da linha
de pesquisa Epistemologia e Teoria da Educação, vincula­
da ao Grupo Paideia, da Faculdade de Educação da Uni­
versidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os projetos
inscritos nessa linha vêm dedicando-se a avaliar, analisar
a produção científica e divulgar balanços da produção
nos campos da Educação e outras áreas, tais como Edu­
cação Física, Filosofia, Fíistória, Ciências e Matemática.
Os resultados desses balanços vêm apontando sérias fa­
lhas na organização das pesquisas, começando pela elabo­
ração dos projetos, assim como a constatação que tanto
os manuais quanto os cursos e disciplinas que pretendem
oferecer subsídios para a formação de pesquisadores de­
dicam-se a divulgar as formas da exposição do trabalho
científico, relativas à composição de sumários, formas de
citações, normas técnicas de elaboração de referências,
cuidados na estruturação de monografias, dissertações e
teses. Já os conteúdos relativos à lógica e à metodologia
e aos fundamentos epistemológicos da pesquisa são igno­
rados ou secundarizados. Isto é, privilegiam as formas da
exposição e ignoram-se os elementos essenciais do método
de pesquisa.
Barbosa (2007) confirma essa ponderação depois de
um levantamento de mais de duzentos livros de Metodo­
logia do Trabalho Científico, cadastrados na Biblioteca
Nacional, e de analisar os mais divulgados no país.

4 Tese intitulada: “ Epistemologia da Pesquisa em Educação, estruturas lógicas


e tendências metodológicas: análise da produção científica dos programas de
pós-graduação em educação do Estado de São Paulo, 1970-1985” . Um re­
sumo dos resultados dessa pesquisa encontra-se em Sánchez Gamboa (1989).
Introdução
Constatou-se que, em muitas obras, são privilegiados
os aspectos relativos à metodologia de exposição dos
trabalhos científicos em detrimento dos demais aspec­
tos metodológicos. (Barbosa, 2007, p. 12).

Na tentativa de recuperar a importância do método


de pesquisa, esta publicação se propõe, com base na ló­
gica dialética, a oferecer uma síntese dos elementos bási­
cos a serem considerados na elaboração dos projetos de
pesquisa. Para tanto, recorremos a algumas reflexões ela­
boradas nos primórdios da filosofia e da ciência que ofe­
recem, além de pressupostos históricos, conceptualizações
essenciais que serviram de base para o desenvolvimento
da ciência contemporânea, favorecendo, assim, a preten­
são didática que esta publicação propõe.
Espera-se que esta breve apresentação dos fundamen­
tos lógicos contribua para a compreensão da especificidade
do conhecimento científico e para o aprimoramento das
fases iniciais do planejamento da investigação científica5.

5 Um resumo dos conteúdos aqui desenvolvidos foi publicado na forma de capí­


tulo no livro organizado por Bryan e Miranda (2011, p. 121-150). Cf. Sánchez
Gamboa (2011). De igual forma, conteúdos relativos à dialética entre perguntas
e respostas e entre os saberes e os conhecimentos foram publicados anterior­
mente na forma de artigo. Cf. Sánchez Gamboa (2009).

40 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Capítulo 1
A necessidade histórica do
conhecimento científico:
a importância da lógica
e do método geométrico

Para entender a necessidade do conhecimento científi­


co nas diversas atividades humanas, remetemo-nos às suas
origens e a seus pressupostos histórico-filosóficos.
No contexto da sociedade da Grécia antiga, localiza-
-se a necessidade de desenvolver formas mais precisas e ri­
gorosas de obter respostas para as indagações, as dúvidas,
os problemas, as questões e perguntas surgidas no “ mun­
do da necessidade” próprio dessa sociedade.
A episteme (ou ciência) surge em um contexto de
grandes mudanças econômicas, sociais e políticas. De­
pois de cinco séculos de hegemonia da realeza, consti­
tuída desde a civilização micênica (século XII a.C.) e
fundamentada no poder religioso da monarquia na figu­
ra do “ Rei-divino” , inicia-se a era da aristocracia (século
VII a.C.), gerando como consequência uma série de de­
sordens e conflitos (Cf. Vernat, 2002).
As questões básicas que se discutiam eram, dentre as
mais importantes: como estabelecer uma nova organiza­
ção social diferente à ordem e suposta harmonia perdidas
com a queda do poder do Rei-divino? Como preservar a
unidade e a coesão social na nova situação sem a existên­
cia do Rei-divino ou da monarquia? Como formar os ci­
dadãos para a construção da nova sociedade?
A resposta surge com a organização da polis, embrião
das atuais cidades, em substituição ao antigo demos que
se formava ao redor da realeza.
O advento da polis (entre os séculos VIII e VII a.C.)
constitui um acontecimento decisivo. “ O que implica o sis­
tema da polis é primeiramente uma extraordinária preemi-
nência da palavra sobre todos os outros instrumentos de
poder.” (Vernat, 2002, p. 53). A palavra supõe um público
ao qual ela se dirige como a um juiz supremo. O público
(reunido na Agora ou espaço político) é obrigado a decidir
com base na força da palavra. Essa característica da polis,
que consiste na plena publicidade dada às manifestações
mais importantes da vida social, significa o domínio do pú­
blico nos dois sentidos mais solidários do termo: “ [...] um
setor de interesse comum, opondo-se aos assuntos privados
e práticas abertas, estabelecidas em pleno dia, opondo-se a
processos secretos.” (Cf. Vernat, 2002, p. 55). E na Agora
em que as transações comerciais e as discussões sobre a vida
da cidade acontecem e dirigem seus destinos; em que tam­
bém se submetem à discussão as grandes questões da nova
sociedade, tendo como critério a participação de todos os
participantes do Estado que vão definir-se como Hómoloi,
ou semelhantes autônomos, sem a dependência de saberes e
de poderes, originários das antigas tradições do Rei-divino.
Na polis ganha supremacia o logos (“palavra” , “ dis­
curso” e “razão” ) e aquele que o domina tem o reconhe­
cimento de estar com a verdade. O logos é o critério para
tudo, e com ele surge a criteriologia ou crítica às diversas
formas de conhecimento como uma das regras primordiais
de sistematizar, normatizar e assegurar o conhecimento que
propiciasse a transformação daquela realidade.
Para tanto, era necessário criticar as formas de conhe­
cimento predominantes na sociedade fundada na realeza.

42 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Essas formas de conhecimento são conhecidas como racio­
nalidade mítica (mythos) e senso comum (doxa ), ou saber
opinativo, que ofereciam respostas às múltiplas indaga­
ções colocadas pela sociedade. Nesse contexto surgem os
primeiros filósofos, indagando sobre a possibilidade de
obter respostas diferentes às oferecidas pelo mythos e a
doxa. Eles procuravam novas formas para elaborar res­
postas que oferecessem um conhecimento mais confiável e
válido para a nova sociedade que se constituía, sociedade
essa que exigia a participação dos cidadãos e a constru­
ção de respostas validadas pela racionalidade submetida
ao debate público, e não de respostas advindas de forças
superiores, reveladas pelo mito e impostas pelo poder da
realeza e abaixadas como verdades incontestadas, ou um
conhecimento alternativo oferecido pela opinião do ho­
mem comum (doxa ) sem nenhuma sistematização ou pre­
tensão de verificação.
Buscava-se um novo conhecimento para uma nova so­
ciedade. A polis exigia algumas regras de jogo, ou critérios
que assegurassem a validade consensual para os cidadãos.
A forma mítica do conhecimento tinha respostas para
todas as questões formuladas; havia quase sempre uma len­
da povoada de deuses e forças do além, que respondia às
mais intrincadas questões elaboradas, a partir da necessida­
de de desvelar os mistérios do mundo e do próprio homem.
Com o surgimento dos primeiros filósofos, para os
quais a resposta para todas as questões relativas a um fa­
to ou fenômeno não estava nos mitos, nem nas forças su­
periores, situadas para além dos fenômenos, cabe, então,
outras alternativas como as oferecidas pela observação di­
reta e cotidiana dos fenômenos e pela confiança nos senti­
dos (empeiria). Coloca-se como alternativa o conhecimento
comum, ou o saber opinativo (doxa). Mas essas respostas

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


a imnortância da lósica e do método geométrico
também são insuficientes, entretanto, indicam novos cami­
nhos para a busca de respostas mais confiáveis e válidas.
Surge, assim, a necessidade de disciplinar essa busca, elabo­
rando algumas regras básicas ou princípios lógicos para as
novas formas de conhecimento denominadas de sofia (filo­
sofia) e de episteme (conhecimento científico).
Os seguintes esquemas ilustram essas opções:

NÍVEIS DE QUALIFICAÇÃO
DAS PERGUNTAS E AS RESPOSTAS

f, Das perguntas VÀs respostas

Mistérios Intuições
Curiosidades ^ Suposições
Suspeitas 1 Conjeturas
Dúvidas Ww Hipóteses
Indagações £ Saberes
Questões Certezas
PERGUNTA RESPOSTA

Pressupostos:
a) toda pergunta é plausível de ser formulada quando as
condições para a sua resposta estão dadas;
b) as respostas se encontram no mesmo lugar e contexto
nos quais se originam as perguntas;
c) existem respostas para todas as perguntas.

Fonte: elaboração do autor.

44 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Em primeiro lugar, o advento da filosofia traz a supre­
macia do logos e da criteriologia que tem a pretensão de
sistematizar, normatizar e assegurar um caminho que si­
nalize um percurso qualitativo tanto das perguntas quan­
to das respostas.
Assim, os mistérios que invadem a imaginação dos
homens podem ser racionalizados em curiosidades e sus­
peitas, e, em um grau de qualificação maior, em dúvidas,
indagações e questões mais específicas, e, finalmente, em
perguntas concretas, claras e distintas. De igual maneira,
o caminho das respostas poderá começar com intuições e
suposições e ganhar maior qualificação na forma de con-
jeturas e hipóteses, até se assegurar como um saber, ou
uma certeza, e, por fim, como uma resposta validada com
provas e justificativas.
A passagem de um nível para outro é motivada pelo
exercício da crítica e da dúvida (com destaque na forma
do signo de interrogação). Daí a importância desse poder
da razão humana. A dúvida é atitude privilegiada na filo­
sofia pela função demolidora dos saberes e das respostas
já dadas. A dúvida propicia novas suspeitas, indagações,
questões e qualifica novas perguntas. De igual forma, a
dúvida mobiliza as capacidades do pensamento para não
se conformar ou estabilizar nos primeiros estágios das in­
tuições, suposições e conjeturas, e para qualificar o pro­
cesso da construção das respostas, buscando novos níveis
na forma de saberes, hipóteses ou certezas.
Dessa forma, a dúvida dinamiza o conhecimento e
propicia a busca de novas respostas quanto à incapacida­
de dos mitos, das religiões, do saberes opinativos, e mesmo
os filosóficos e científicos de oferecerem respostas para as
necessidades humanas. A dúvida propicia também que a hu­
manidade busque outras formas de produção das respostas.

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


45
Além da necessidade dos processos de qualificação en­
tre os vários níveis de manifestação das perguntas e das
respostas, a criteriologia ajudou a definir alguns pressu­
postos que racionalizam essa relação dialética entre elas.
O primeiro pressuposto se refere à possibilidade da
resposta, garantida na mesma formulação da pergunta.
“Toda pergunta é plausível de ser formulada quando as
condições para a sua resposta estão dadas.” 1
Uma pergunta obscura, confusa, incompleta não tem
possibilidade de ser respondida. Essa pergunta, para efei­
tos da filosofia e a episteme, poderá estar ainda nas fases
iniciais da curiosidade, da suspeita e da dúvida; precisa
ganhar a qualificação passando pelas fases das indagações
e dos questionamentos para estar no patamar da explici­
tação concreta do que se quer conhecer. Como veremos
no próximo capítulo dedicado ao processo da construção
das perguntas, as perguntas confusas ou incompletas rece­
berão como resposta outra pergunta, por exemplo, “ no fi­
nal, o que quer saber?” ; “ poder-se-ia explicitar melhor?” .
Dessa forma, somente as perguntas claras, concretas e dis­
tintas terão as condições de ser respondidas, em razão de
terem condições de compreensão e de possibilidades para
elaborar suas respostas. Mais uma vez, constatamos a im­
portância da relação dialética entre essas duas dimensões
do conhecimento; a qualidade da pergunta não depende
dela, e sim da plausibilidade e das condições das respos­
tas, sua fase contrária.

1 Com relação a essa dialética entre a pergunta e a resposta, Marx também atri­
bui a evolução das formações sociais quando as condições para a superação das
contradições entre as forças produtivas e as relações de produção estão dadas.
“ E por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver
e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só
surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam,
pelo menos, em vias de parecer.” (Marx, 1983, p. 25).

46 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


O segundo pressuposto se refere ao lugar em que se
poderão encontrar as respostas: “ as respostas se encon­
tram no mesmo lugar e contexto nos quais se originam as
perguntas” .
Certamente que uma pergunta sobre as condições de
saúde de um determinado doente não estão no corpo de
outro paciente, estão no sujeito que motivou a suspeita, a
indagação e a pergunta, isto é, as respostas se encontram
no mesmo lugar em que se originaram as perguntas, nos
contextos e nas situações nos quais se localiza o problema,
neste caso o doente.
Desde os primórdios da constituição da episteme, co­
mo veremos no capítulo 3 destinado à elaboração das
respostas, diferentemente da razão mítica, que procura res­
postas no além, ou em outros lugares, tempos ou situações,
episteme se caracteriza pela busca concreta de respostas
nos próprios objetos e não fora deles ou das suas condições
concretas. Tais condições concretas, que se expressam pe­
las categorias de espaço, tempo e movimento, caracterizam
as dimensões ontológicas do processo do conhecimento e
reafirmam esse pressuposto de procurar as respostas na re­
alidade concreta em que se originaram as perguntas.
O terceiro pressuposto se refere à plausibilidade e pos­
sibilidade de toda pergunta que ganha esse patamar de
qualidade. Isto é, a pergunta clara, concreta e distinta me­
rece sua resposta. Daí é possível afirmar que “ existem res­
postas para todas as perguntas” .
Entretanto, essas respostas ganham determinado va­
lor, dependendo de alguns critérios constituídos histo­
ricamente. Assim, podemos ter para a mesma pergunta
qualificada diferentes respostas cuja validade depende de
algumas regras de jogo, que foram sendo constituídas no

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico: 47


percurso da experiência com outros tipos do conhecimen­
to, começando pela filosofia.
Assim, desde os primórdios da filosofia, foram dife­
renciados diversos tipos de respostas, à luz de critérios já
apontados acima, tais como a exposição pública ou explici­
tação dos procedimentos, revelando os passos, os caminhos
percorridos para a elaboração das respostas, opondo-se a
qualquer forma oculta ou obscura desses procedimentos.

TIPOS DE RESPOSTAS

Sem explicação do caminho Disciplinadas


(sem método) (explicitando o método)

Razão mítica Sabedoria


(mythos) (sofia)

Saber opinativo Ciência


(doxa) (episteme)

Fonte: elaboração do autor.

Assim, uma vez conseguida a fase qualificada da per­


gunta, a humanidade vem procurando e consolidando re­
postas, seja mediante a utilização da razão mítica ou nas
tradições religiosas (mythos), seja em outras formas de
elaboração. O sistema de respostas adquiriu uma lógica
própria nas mitologias ou nas religiões, que remontam aos
tempos passados longínquos (in illo tempore), às origens

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


dos seres humanos e à explicação e à justificativa que eles
elaboraram sobre a natureza e sobre o seu mundo das suas
necessidades concretas, relacionadas com a sua sobrevi­
vência e evolução histórica.
À medida que os mitos e as religiões foram esgotando-
-se na sua capacidade heurística de oferecer respostas para
as necessidades humanas, surgem outras formas, resulta­
do da ação demolidora e inevitável da dúvida que, co­
mo elemento dinamizador do conhecimento, vem gerando
novas suspeitas, indagações, questões e qualificando no­
vas perguntas. Dessa forma, a humanidade também bus­
ca outras formas de produção das respostas. As respostas
passam a ser construídas a partir do mundo prático, do
mundo da experiência e da vida cotidiana. Essa forma de
elaborar respostas, com base na opinião e no senso co­
mum, os primeiros filósofos gregos denominaram de doxa
ou saber opinativo.
Entretanto, tal forma se esgota e torna-se insuficiente
para oferecer respostas às necessidades e aos novos pro­
blemas da humanidade. Perante a crise de credibilidade e
dinamizada pela dúvida, surgem, também, com os primei­
ros filósofos, como Tales de Mileto (640-548 a.C.), novas
formas de produzir respostas; formas que se diferenciam
das formas oferecidas pelas tradições, a razão mítica e as
religiões (mythos), e pelo senso comum, ou saber opinativo
{doxa). A essas novas formas deu-se o nome genérico de
episteme (o saber metodicamente organizado e teoricamen­
te fundamentado). A episteme afeta radicalmente a forma
de elaborar as perguntas e as respostas. Essas formas de
diferenciar os tipos de respostas têm um critério básico: ex­
plicitar a forma como as respostas são produzidas; exige-
-se, pelo princípio do poder da argumentação (logos) e da
socialização entre os semelhantes (Hómoloi), a revelação

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


a importância da lógica e do método geométrico
do caminho (methodos) percorrido na construção da res­
posta. O fato de mostrar o caminho e submetê-lo à apre­
ciação pública oferece maiores garantias de confiabilidade.
Já as respostas oferecidas pela razão mítica e pelos sabe-
res opinativos não têm essa preocupação ou não atendem
a exigência de mostrar “o caminho da resposta” ; também
não exigem a crítica pública2. Pelo contrário, as respostas
oferecidas pela filosofia e pela ciência têm o imperativo do
método e precisam demonstrar a maneira como se chega a
elas, daí porque denominamos de respostas disciplinadas,
ou submetidas aos critérios de demonstração pública.
Os tipos de respostas organizadas em dois grandes
grupos, as que não exigem a explicitação do caminho e
as disciplinadas que têm o imperativo do método, dife­
renciam diversos critérios de confiabilidade. Se conside­
rarmos o pressuposto geral de que todas as perguntas têm
respostas, cabe indagar se todas as respostas têm um mes­
mo grau de veracidade ou validade.
No caso da razão mítica (religiões), esta tem o mérito
de maior expansão, já que pretende dar respostas para
todas as indagações e os mistérios. O sucesso de algumas
religiões estaria no “ estoque de respostas prontas” para
atender o maior número de seguidores, oferecendo expli­
cações para todos os fenômenos e atribuindo a forças ou
entidades que se colocam além deles a capacidade expli­
cativa ou a revelação de mistérios e verdades. Neste caso,
exige-se do indagador apenas a crença nessas verdades re­
veladas, ou nas versões oferecidas pela autoridade ou pela
tradição religiosa ou mítica. Toda atitude de dúvida é ve-

2 Neste caso, aos interlocutores é demandada a “crença” . A eles não é dada a


oportunidade da dúvida, da suspeita ou da indagação. E no caso de algumas
religiões é vedada a dúvida, sob pena da expulsão do grupo, da excomunhão, de
carregar complexos de culpa e justificar castigos ou benefícios não alcançados
pela “ falta da fé” .

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


dada, e, desse modo, a demonstração, a comprovação e a
polêmica pública não têm espaço. As respostas devem ser
aceitas com base na confiança, na crença ou na fé.
Já o senso comum oferece sua “ opinião” ou seu “ pal­
pite” sobre qualquer indagação ou mistério, sem propiciar
nenhuma prova ou verificação, permitindo do indagador
sua credibilidade ou não, ou sua adesão movida pela lógi­
ca do “ bom senso” . Consideramos que essas respostas são
oferecidas ou elaboradas sem a preocupação com critérios
ou regras de verificação ou controle do erro. Nesse senti­
do, são respostas “ não disciplinadas” .
A proposta dos primeiros filósofos gregos é pautada
pela “ disciplinaridade” na elaboração das respostas. A
sofia (sabedoria) e a episteme (ciência) buscam oferecer
respostas disciplinadas e rigorosamente controladas de
acordo com a lógica e o método geométrico3, respostas
que são submetidas à demonstração pública. Essa propos­
ta foi sendo desenvolvida até nossos dias e hoje ajuda a
compreender as bases lógicas do conhecimento científico
moderno e contemporâneo.

3 Tanto o método geométrico quanto a lógica são tratados por Platão e Aristóteles
como as condições necessárias na busca do pensamento verdadeiro. Platão adota
o método geométrico dos pitagóricos como o paradigma do rigor. O método geo­
métrico implica um percurso duplo: sair de um ponto, chegar a outro diferente e
voltar ao ponto de partida. O duplo traçado, de ida e de volta, expressa a relação
entre os processos da análise e da síntese. Assim, a análise é sempre seguida de
uma síntese, que, de um lado, constitui uma verificação da análise, com o objetivo
de assegurar que não se cometeu erro algum, e, por outro lado, uma vez constata­
da a inexistência de erro, constitui a demonstração ou solução efetiva, cuja busca
motivará a realização da análise. Aristóteles, na lógica ou Órganon (conjunto dos
escritos lógicos), que trata do instrumento do pensamento para pensarmos corre­
tamente, apresenta um dos caminhos mais importantes da ciência, os analíticos,
analytikós, do verbo analyo, que significa: desfazer uma trama, desembaraçar
fios, desembaraçar-se de laços, dissolver para encontrar os elementos, examinar
em detalhe e no pormenor, remontar às causas ou às condições. “ Os analíticos
buscam os elementos que constituem a estrutura do pensamento e da linguagem,
seus modos de operação e de relacionamentos.” (Chauí, 2002, p. 257).

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


51
a importância da lógica e do método geométrico
As exigências da “ disciplinaridade” , do raciocínio ló­
gico e da demonstração pública foram gerando novas ex­
periências e traduzidas em princípios relacionados com os
elementos básicos do processo do conhecimento. Antes de
definir tais princípios, é preciso determinar os elementos
que integram o processo, visualizados no esquema a seguir:

ELEMENTOS DA RELAÇÃO

Sujeito
indagador
Homem
Res cogitans
4
i
Condições:
Método:
espaço, tempo
caminho da relação
e movimento

\ Objeto
\ problematizado
»ai------- -
j
Mundo
Res cogitans

Fonte: elaboração do autor.

Os elementos da relação são:

a) o contexto concreto em que se realiza, determinado pe­


las categorias ontológicas do lugar onde acontece (es­
paço), quando acontece, momento, duração (tempo) e
as situações e especificidades da relação (movimento);

52 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


b) o sujeito concreto (motivado pelo mundo da necessi­
dade) que indaga;
c) o objeto concreto e delimitado que é indagado;
d) as especificidades da relação determinada pelo cami­
nho entre o sujeito e o objeto (método).

Na forma de uma lógica simples, refere-se à relação


entre dois elementos fundamentais, o sujeito e o objeto.
Quem indaga sobre o quê. Mas, situados no mundo real,
isto é, nas circunstâncias e nas condições que delimitam
o contexto ou o cenário onde o indagador e o objeto in­
dagado estabelecem sua relação. E, finalmente, o outro
elemento da lógica se refere à especificidade da mesma re­
lação, isto é, ao método.
A exigência da materialidade concreta da relação, ex­
plicitada pelos atributos ontológicos do espaço, do tempo
e do movimento, situa a relação entre um sujeito concreto
{res cogitans) e um objeto concreto (res extensa)4, e não
entre um sujeito imaginário ou indefinido que pergunta
sobre fenômenos situados em lugares e tempos distantes.
Uma vez definido esse contexto concreto em que sur­
gem as indagações feitas por sujeitos específicos e sobre
fenômenos e objetos determinados, é possível formular
perguntas claras, concretas e distintas. E, de igual forma,
obter respostas concretas, confiáveis e válidas. Não pode­
mos obter respostas claras a partir de perguntas confusas,
dispersas ou imprecisas.
Definidos os elementos básicos constitutivos da rela­
ção cognitiva, é importante retomar alguns princípios ló­
gicos que regulam essa relação.

4 Expressões utilizadas por Descartes nas regras do método para indicar a concre-
ticidade (res) dos dois elementos fundantes da relação cognitiva.

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


De uma maneira simples e didática, os princípios po­
dem ser referidos a cada um dos elementos constitutivos
da relação: ao sujeito que elabora as perguntas, ao objeto
que motiva a indagação e à mediação entre eles, o méto­
do. Complementam esses três princípios outros critérios
relacionados com a resposta, entendida como o resultado
do processo, e sobre a necessidade da articulação dos ele­
mentos anteriores em uma perspectiva de totalidade.
O diagrama a seguir visualiza a sequência e articula­
ção desses princípios:

PRINCÍPIOS s o b r e o s e l e m e n t o s
DO CONHECIMENTO

3. Método

1. Sujeito 2. Objeto

4. Resposta

5. Visão de totalidade

Fonte: elaboração do autor.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


1.1 O PRIMEIRO PRINCÍPIO FAZ REFERÊNCIA
AO PAPEL DO SUJEITO E ÀS CAPACIDADES
E HABILIDADES QUE ELE UTILIZA
PARA BUSCAR AS RESPOSTAS

Na perspectiva dos critérios da concretude do sujei­


to, pondera-se em primeiro lugar a sua presença ativa. As
atividades do sujeito localizam-se na sua corporeidade e
suas capacidades de percepção e de estabelecer contatos
com os objetos que são indagados. Os destaques a seguir
sinalizam as atividades privilegiadas na relação cognitiva.

1. Princípio com relação ao SUJEITO

Explicitação do sujeito empírico


e a construção do sujeito epistêmico

Funções privilegiadas:

Exemplos:
“ Observar atenta e meticulosamente” , “ organizar e
sistematizar as observações” (Tales de Mileto).
“Não deixe nada à sorte, controle tudo, articule as ob­
servações contraditórias, conceda o tempo suficiente.”
(Hipócrates).

Controlar a imaginação e a fantasia. Dar prioridade


à sensibilidade (sensação) que junto com outras expe­
riências acumuladas ganham sentido e representação
{percepções). A memória organizada dessas percepções
constitui a experiência acumulada {empeiria).

Fonte: elaboração do autor.

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


55
a importância da lógica e do método geométrico
Na relação com os objetos, o sujeito empírico sofre
adequações, de tal forma que é apropriado esclarecer que
os conceitos de sujeito e de objeto ganham outro significado
quando se fala da relação cognitiva. Os dois termos criam
uma inter-relação de dependência entre si. Segundo Hessen
(1987, p. 26):

O sujeito só é sujeito para um objeto e o objeto só é


objeto para um sujeito. Ambos eles são o que são en­
quanto o são para o outro. Mas esta correlação não é
reversível. Ser sujeito é algo completamente distinto de
ser objeto. A função do sujeito consiste em apreender
o objeto, e do objeto, em ser apreendido pelo sujeito.

No caso específico do sujeito, este se constitui no pro­


cesso da relação e é preciso diferenciá-lo do sujeito empíri­
co ou psicológico que se refere a uma pessoa que faz uma
observação e é influenciada pelo que ela tem de particular
e individual (interesses ou paixões)5. O sujeito do conheci­
mento científico ou epistemológico se refere ao

[...] conjunto de atividades estruturantes ligadas a uma


abordagem científica determinada, paradigma ou matriz
disciplinar. Refere-se a uma maneira socialmente esta­
belecida de estruturar o mundo. (Fourez, 1995, p. 50).

Esse sujeito epistemológico é constituído a partir do su­


jeito empírico, ou psicológico, destacando ou tomando de­
le algumas atividades que são privilegiadas para atender os
pressupostos epistemológicos de garantir a explicitação pú­
blica das formas como são construídas as perguntas e as
respostas. Dependendo da matriz disciplinar ou paradigma
científico, algumas atividades são destacadas, como vere­
mos na exposição do princípio sobre o método; entretanto,
tem algumas ações que, desde os primeiros filósofos gregos,

5 A ciência veicula uma ética do ocultamento ou apagamento do sujeito indi­


vidual empírico em função da construção do sujeito epistemológico, sempre
relacionado a um determinado objeto.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


já são privilegiadas, tais como a observação meticulosa e
sistemática dos fenômenos, a primazia da sensação empíri­
ca, perante a imaginação, a origem empírica das percepções,
a qualificação dos instrumentos da percepção, a delimita­
ção dos fatores subjetivos e objetivos. Atribui-se a Sócrates
(469-399 a.C.), um dos pais da filosofia, o fato dele sempre
devolver a pergunta, para que o sujeito que a formula expli­
cite com clareza suas condições, motivações e expectativas.
Questionamentos, tais como quem pergunta, por que per­
gunta, a partir de que experiência ou situação se formula a
pergunta. Essas revelações ajudam a dimensionar o tipo de
resposta esperada por esse sujeito, de tal maneira que, escla­
recendo essas condições, somente o mesmo sujeito que as
formulou tem as melhores condições de respondê-las. Daí o
significado da descoberta da verdade no mesmo sujeito que
a procura e do sentido da conhecida revelação do oráculo
de Delfos, o deus da sabedoria, sentenciando que “ o maior
dos saberes é o conhecimento de si mesmo” .
Na constituição do sujeito epistemológico, a fantasia
e as crenças impostas pelas autoridades e pelas tradições
devem ser colocadas na berlinda da dúvida e se confiar
na capacidade dos sentidos (empeiria), de tal maneira que
a relação com os fenômenos ou objeto deve ser feita por
meio da sensibilidade, dos elementos concretos da cor-
poreidade. Devem-se utilizar todos os sentidos para ob­
ter respostas. Olhar, ouvir, tatear, cheirar, degustar com
cuidado, atenção, demoradamente, de forma sistemática
para obter informações válidas a fim de possibilitar re­
gistros, verificações e constatações para garantir respostas
mais confiáveis sobre os fenômenos indagados. Tal sensi­
bilidade ao longo da história da ciência foi ganhando uma
aliada poderosa no seu aprimoramento: a tecnologia.
A tecnologia vem desenvolvendo-se, impulsionada pela
necessidade de ampliar e aguçar a sensibilidade humana. Isto
é, a tecnologia alarga as capacidades da percepção humana:
Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:
57
a importância da lógica e do método geométrico
por exemplo, ver mais longe, de forma mais fina, mais con­
centrada, ultrapassando limites, obstáculos e barreiras como
falta de iluminação (telescópios, microscópios, raios-X, apa­
relhos de luz infravermelha, microcâmaras). Escutar melhor
com ajuda das tecnologias, tais como radares, sonares, ul-
trassom. Sentir melhor através de sensores, da ressonância
magnética etc. Outras tecnologias ajudam na memória e na
organização de dados e de informações, como o moderno
computador. Mas todas essas tecnologias não têm sentido se
por trás delas não está uma sensibilidade atenta do pesqui­
sador que interpreta os sinais, os registros e as informações.

1.2 O SEGUNDO PRINCÍPIO DO CONHECIMENTO


CIENTÍFICO CONSISTE EM BUSCAR AS RESPOSTAS
DOS FENÔMENOS NOS PRÓPRIOS FENÔMENOS

2. Princípio com relação ao OBJETO


(fenômeno, entidade, fato, ato, acontecimento,
experiência, prática, evento)

Procurar as respostas no próprio objeto (no seu cená­


rio, contexto, entorno que determinam suas relações).

“ Não sair fora, procurar a verdade dentro de si.”


(Agostinho de Hipona).
“A maior das sabedorias: conhecer-se a si próprio.”
(Oráculo de Delfos).

Os fenômenos preservam em si mesmo sua trajetória


de sua gênese e a memória do desenvolvimento. Os fe­
nômenos contêm os códigos da sua própria explicação.

Fonte: elaboração do autor.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Segundo Abbagnano (1970, p. 160), no campo do
conhecimento, entende-se por objeto qualquer entidade,
fato, coisa, realidade ou propriedade que possa ser subme­
tido a procedimentos para a verificação, a descrição, o cál­
culo ou a previsão controlável. Essa categoria universal e
abrangente somente tem sentido em função de um sujeito
que a indaga e a determina, como já explicitamos acima,
na apresentação do princípio relativo ao sujeito.
As respostas sobre a natureza, os fenômenos huma­
nos, sociais, políticos e éticos estão na própria natureza
física ou humana. Para obter essas respostas é preciso ob­
servar cuidadosa e sistematicamente os objetos que inda­
gamos.
Por exemplo, se pretendemos conhecer a fonte comum
da qual surgiram os diversos objetos da natureza, deve­
mos procurar resposta na própria natureza. Assim, diver­
sas pesquisas oferecem hipóteses ou respostas provisórias
sobre a “ matéria-prima” que é comum a todas as coisas,
ou sobre as diversas formas que adquire uma mesma na­
tureza. Esses primeiros pesquisadores filósofos preocupa­
ram-se em desvendar: o que é a “ physis” ou natureza? E
qual o seu princípio único ou “ arkhe ” ?
Para os representantes da Escola de Mileto, que atuou
até 459 a.C. e que teve como principais representantes
Tales de Mileto, Anaximandro, Anaximenes e Heráclito,
esse princípio único era respectivamente a água, o “ ili­
mitado” , o ar e o fogo. Para Pitágoras de Crotona, esse
princípio não estava em uma matéria específica como a
água, a terra, o ar ou o fogo, mas na forma que as diversas
matérias adquirem, isto é, nas figuras, nas dimensões e nas
quantidades, representadas pelo número.

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


59
a importância da lógica e do método geométrico
Entretanto, na experiência histórica da ciência es­
sa pretensão de procura de unidade na diversidade fi­
cou restrita à filosofia, e a ciência foi especializando-se
nas especificidades dos fenômenos. Assim, cada objeto
foi acumulando conhecimentos e as respostas elaboradas
sobre as indagações foram sendo sistematizadas e trans­
formadas em disciplinas e grandes áreas do conhecimen­
to. Nesse percurso histórico, o princípio de procurar as
respostas sobre os objetos nos próprios objetos e não
fora deles foi afunilando essas especificidades. Mesmo
assim, o debate público e as exposições e controvérsias
também foram definindo diversas concepções de objetos,
diversos recortes e limites que hoje também são motivo
de estudos no campo da Epistemologia e das Teorias do
Conhecimento. Apresentam-se, nesse leque de concep­
ções, vertentes que defendem a delimitação e o recorte
dos objetos e ainda sua segmentação em parte (analíti­
ca); outras perspectivas abordam os objetos necessaria­
mente no seu contexto ou entorno (fenomenologia); e
outras perspectivas acrescentam, além das determina­
ções dos entornos, a inter-relação com outros fenômenos
e sua dinâmica interna (dialética). Outras informações
sobre essas diversas perspectivas serão apresentadas na
exposição dos próximos princípios, sobre o método e a
visão de totalidade.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


1.3 O TERCEIRO PRINCÍPIO DA EPISTEME
SE REFERE À RELAÇÃO CONCRETA DE UM
SUJEITO E UM OBJETO DO CONHECIM ENTO.
ESSA RELAÇÃO É ESTABELECIDA PELO
“ M ÉTO D O ” , QUE SIGNIFICA CAMINHO

O conceito de caminho (methodos) supõe a relação en­


tre um ponto de partida e um ponto de chegada, um trajeto,
um percurso e uma distância entre esses dois pontos. Um
gráfico que representa o método pode desenhar um traço
entre um ponto “A” e um ponto “ B” . Entretanto, esse ca­
minho pode ser mais complexo e não terminar no ponto
de chegada. Pode voltar ao ponto de partida. Esse cami­
nho complexo foi denominado pelos matemáticos gregos
de “método geométrico” e hoje é considerado o precursor
do método científico moderno e contemporâneo.
Os antigos geômetras gregos partilhavam de um mé­
todo secreto de resolução de problemas que o guardavam
a sete chaves. A eficiência de tal método já havia sido com­
provada em demasia no âmbito da Geometria. Isto, aliás,
fazia da Geometria um modelo de ciência pela capacidade
de constatar o erro6.
O duplo sentido do caminho de ida e de volta permi­
te verificar os processos mutuamente e constatar erros no
percurso. O exemplo da síntese e análise é fartamente uti­
lizado para explicar o método de ida e de volta. Vejamos,
em destaque, a seguinte citação:

6 Para maior compreensão do método geométrico e da apropriação deste no


método dialético e posteriormente no método científico, remetemos o leitor
para o capítulo 1, “ Considerações sobre o método em Platão” , em Soares
(1999, p. 25-70).

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


6
a importância da lógica e do método geométrico
DEFINIÇÃO DE MÉTODO GEOMÉTRICO

“A análise, então, toma aquilo que é procurado como se


fosse admitido e disso, através de sucessivas consequências
(diá ton éxes akaloitobon), passa para algo que é admitido
como resultado de síntese: pois, na análise, assumimos aqui­
lo que se procura como se (já) tivesse sido feito (gegonós), e
investigamos de que é que isto resulta, e novamente qual é a
causa antecedente deste último, e assim por diante até que,
seguindo nossos passos na ordem inversa, alcancemos algo já
conhecido ou pertencente à classe dos primeiros princípios; e
a tal método chamamos de análise, como solução de trás pa­
ra diante (anapalin liain). Mas na síntese, revertendo o pro­
cesso, tomamos como já feito o que se alcançou por último
na análise, e, colocando na sua ordem natural de consequên­
cias o que eram antecedentes e conectando-os sucessivamente
uns aos outros, chegamos finalmente à construção do que era
procurado; e a isso chamamos síntese.”7

Fonte: elaboração do autor.7

O movimento entre a análise e a síntese acontece na


unidade do percurso que toma uma dessas fases como pon­
to de partida e a outra como ponto de chegada e vice-ver­
sa. “ Por outras palavras, o ponto de partida da análise é o
ponto de chegada da síntese, e ponto de partida da síntese
é o ponto de chegada da análise.” (Soares, 1999, p. 39).
A heurística do método consiste em provar a existên­
cia ou não do erro. Assim, a análise é sempre seguida de
uma síntese, que, de um lado, constitui uma verificação
da análise, com o objetivo de assegurar que não se come­

7 Trecho tomado de Poppus de Alexandria, Tesouro de análise (apud Soares,


1999, p. 37).

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


teu erro algum, e, por outro lado, uma vez constatada a
inexistência de erro, constitui a demonstração ou solução
efetiva, cuja busca motivara a realização da análise.
Exemplos corriqueiros podem ilustrar a força da pro­
va entre esses dois percursos: se tomamos um artefato, por
exemplo, um pequeno rádio de pilhas na sua fase acabada
(síntese) e funcionando corretamente e desmontamo-lo,
separando suas partes (análise), neste caso, faremos o ca­
minho do todo para as partes ou da síntese para a análise.
Uma vez separadas todas as partes, faremos o caminho
contrário, articulando as peças, juntando as partes, até re­
construir a fase acabado e constatar seu correto funciona­
mento. Nesse caso, estamos fazendo o caminho das partes
para o todo, ou da análise para a síntese. Se, por acaso,
sobram peças, ou elas não se articulam, ou não funciona,
teremos a presença do erro. Isso poderá ser constatado
retomando o processo da análise (desmontando as partes)
e verificando as possíveis falhas e refazendo a síntese até
superar os erros.
Os erros poderão ser evitados se, de forma cuidadosa,
vamos elaborando um mapa ou gabarito do artefato, nu­
merando as peças e sinalizando os encaixes, em sequência
que facilite a sua reconstrução. Dessa forma, o roteiro ou
caminho da divisão em partes (análise) poderá facilitar o
caminho de volta (síntese).
Mas a heurística do método não está na sua mecânica
garantida pelo cuidado registrado da separação das par­
tes e a posterior reconstrução. Está na possibilidade de
conhecer o artefato no seu interior e revelar seu funciona­
mento para, com base nesse conhecimento, elaborar me­
lhores artefatos, modificando suas partes, compactando
algumas delas e aprimorando seu funcionamento.

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


63
a importância da lógica e do método geométrico
A lógica e a heurística do método geométrico torna­
ram-se a base para o raciocínio filosófico e para o mo­
derno método científico, como podemos constatar com os
exemplos em destaque:

3. Princípios com relação ao M ÉTODO

Método: caminho do conhecimento


Método: relação entre sujeito e o objeto

O método geométrico fundamento do método epistê-


mico.
O caminho de ida e de volta. Partir de um ponto, che­
gar ao outro diferente e voltar ao ponto de partida.

“ Caminho para cima, caminho para baixo. Um e o


mesmo caminho.” (Heráclito).
“ O caminho de ida traça o caminho de volta.” (Pro-
tágoras).
“Aqui, somente entra o geômetra.” (aviso na entrada
da academia de Platão).

Ascender e descender. Análise e síntese. Dedução e in­


dução.
Explicar (do todo para as partes) e compreender (das
partes para o todo).
O contexto da descoberta e o contexto da justificativa
(Popper).
O movimento do empírico ao abstrato e do abstrato
ao concreto (Marx).

Fonte: elaboração do autor.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


No caso do conhecimento, tanto a lógica quanto a
heurística servem de critérios para definir um dos princí­
pios relativos aos processos da produção das respostas. A
articulação dialética entre a pergunta e a resposta, entre o
sujeito e o objeto, supõe um movimento ou procedimen­
tos que traçam um percurso desde um ponto de partida
em direção a outro ponto e a necessária volta a esse ponto
inicial. O método deve garantir a ida e a volta. Isto é, não
se perder e conseguir voltar. Nesse processo, é necessário
articular os passos de tal maneira que seja possível voltar
pelo mesmo caminho. À medida que o caminho ascende
do particular para o geral, por exemplo, dessa forma deve
traçar o caminho da decida, do geral para o particular. O
método científico deve cuidar que os passos sejam articu­
lados de tal maneira que exista uma coerência lógica nos
processos e permita verificar o caminho quantas vezes seja
preciso. O método deve garantir a possibilidade de confe­
rir, reconstituir, repassar, refazer, voltar sobre a experiên­
cia, validar e revalidar.
Para efeitos desta publicação, dedicada aos projetos de
pesquisa, que toma como critério a relação entre sujeitos
que indagam sobre objetos que são problematizados, o
caminho a ser elaborado deve partir da pergunta que se
origina na realidade concreta do mundo da necessidade
e deve chegar à resposta, e para constar a pertinência e
qualidade da reposta esta deve voltar sobre seu ponto de
partida, isto é, sobre esse mundo da necessidade e essa
realidade. Esse duplo percurso será facilitado se é reve­
lado o caminho da elaboração das perguntas e, de igual
forma, o caminho da construção das respostas, permitin­
do constatações, verificações, reconstruções, validações e
com base nos erros e nos acertos aprimorar os caminhos
do conhecimento.

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


65
a importância da lógica e do método geométrico
Com base no método geométrico, o método científico
foi sendo desenvolvido, assim como a reflexão filosófica
sobre suas características e limites. Dada sua condição de
fator mediador, situando-se na relação entre o sujeito in-
dagador e o objeto problematizado, sua definição e seus
limites dependem das concepções desses dois elementos es­
senciais.
Os exemplos referidos a seguir buscam explicitar a im­
portância do método como mediação cuja caracterização
depende das concepções dos dois elementos essenciais: o
sujeito e o objeto. Não é intenção desta publicação abor­
dar diretamente o problema do conhecimento, próprio da
gnosiologia, ou as Teorias do Conhecimento8, apenas in­
dicar a complexidade dessa problemática e a necessária
abordagem do método, sempre em função de outras con-
ceptualizações. Se o conhecimento é o resultante da rela­
ção de um sujeito que quer conhecer e um objeto passível
de ser conhecido, dependendo do fator que determine o
processo, a relação e o resultado também mudam. À ma­
neira de exemplo, apresentamos a seguir um esquema da
classificação de Schaff (1986) sobre esses predomínios na
relação.

8 O leitor interessado com a temática das Teorias do Conhecimento poderá aces­


sar o curso em nível de pós-graduação disponível em: <http://www.fe.unicamp.
br/videoconferencia/fe/201 l_2Sem_FE103_A>. Acesso em: 30 abr. 2013.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


RELAÇÃO DO CONHECIMENTO
Objeto Sujeito In
Mecanicismo; Idealista é ativista; Objetivo-ativista;
Teoria do reflexo;Sujeito ativo criador Predomínio da relação;
Predominância do da realidade; Princípio da interação;
objeto; O objeto desaparece Realismo materialista;
Sujeito passivo e em favor da atuação Relação objetivo-
contemplativo. do sujeito;
-subjetiva;
Filosofias subjetivistas
Objeto “cognoscível”
e idealistas.
“ser-em-si”
(independente da
consciência) torna-se
“ser para si” (coisa
para nós).

Fonte: elaboração do autor.

Quando na relação tem a primazia do objeto (objeti-


vismo) é denominada de mecanicismo, já que supõe uma
transferência do objeto na imagem que se forma no sujeito.
E,quando a primazia é do sujeito (subjetivismo), o objeto
empírico desaparece ou é alterado segundo a perspectiva
imposta pelo sujeito. O terceiro tipo acontece quando o
predomínio é da própria relação. Nesse caso, tanto o su­
jeito quanto o objeto se alteram, ou melhor, se constroem
à medida que avança e se aprimora a relação. O objeto é
transformado no concreto no pensamento.
Outros exemplos falam de abordagens teórico-meto-
dológicas e dependem de outros elementos, tais como as
visões do mundo dos pesquisadores. Tais visões de mun­
do, segundo Goldmann (1984), se referem a processos de
estruturação coletiva da vida psíquica dos indivíduos, e no
interior dela, de seu pensamento e da sua escala de valo­

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


a importância da lógica e do método geométrico
res, constituindo totalidades relativas que integram fato­
res subjetivos e objetivos.

Com efeito, qualquer realidade social é constituída


simultaneamente por fatores materiais e fatores inte­
lectuais e afetivos que estruturam por sua vez a cons­
ciência do investigador, e que implica naturalmente
valorizações. (Goldmann, 1984, p. 23).

O autor recomenda que essas valorizações sejam expli­


citadas para obter uma maior compreensão da realidade.

É por isso que uma das tarefas mais importantes para


qualquer investigador sério nos parece residir no esfor­
ço para conhecer e dar a conhecer aos outros as suas
valorizações indicando-as explicitamente, esforço es­
se que o ajudará a atingir o máximo de objetividade
possível no momento em que escreve, e que, sobretu­
do, facilitará a outros investigadores a trabalhar numa
perspectiva mais avançada e que permitirá uma melhor
compreensão da realidade, a utilização e superação de
seus próprios trabalhos. (Goldmann, 1984, p. 25).

E adverte que a estruturação das visões de mundo que


se expressam no pensamento teórico e na escala de valores
que permitem a elaboração de tal conjunto de categorias
não são fatores puramente individuais.

Essa elaboração constitui um processo lento e comple­


xo que se escalona normalmente ao longo de várias
gerações e supõe a práxis conjunta de um número con­
siderável de indivíduos constituintes de um grupo so­
cial, e praticamente, quando se trata da elaboração de
uma visão de mundo de um grupo social privilegiado.
(Goldmann, 1984, p. 26).

A visão de mundo elaborada pelo grupo somente existe


nas consciências individuais de seus membros, com maior ou
menor variação de uma mesma estruturação do conjunto.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Quando se trata de articular o objeto e o sujeito por
meio do método, essas visões se expressam em abordagens
teórico-metodológicas que se estruturam na prática da in­
vestigação.
Diferentes visões de mundo determinam diferentes
métodos. Os diversos métodos podem ser agrupados pela
estruturação das maneiras de abordar os problemas, ou de
iniciar os processos de formular as perguntas que motiva­
ram a construção do conhecimento. A ciência moderna,
que trabalha com uma diversidade muito grande de mé­
todos, pode ser organizada em várias abordagens teórico-
-metodológicas.
Por exemplo, Habermas, no livro Conhecimento e inte­
resse (1982), considera três grandes abordagens da ciência
moderna9. Segundo ele, de acordo com a aproximação do
sujeito em relação ao objeto, ela pode ser classificada em
três tipos:

Abordagem empírico-analítica

É característica dos que apresentam uma visão idea­


lista do mundo em que o conhecimento acontece, tendo
como pressuposto um objeto dado {a priori) que “ está aí”
para ser percebido e conhecido, inserido em uma realidade
estática que tem suas próprias leis, cabendo ao homem ape­
nas descobri-las (adequatio intellectus ad. rei) e explicá-las.
O processo de construção do conhecimento na aborda­
gem empírico-analítica implica a visão de uma realidade que
pode ser recortada em partes cada vez menores, e isoladas,

9 Este exemplo tomado de Habermas não esgota a diversidade de classificações


que tomam como referência as visões de mundo. Outras referências podem ser
encontradas em Demo (1985) e Sánchez Gamboa (2012).

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


69
a importância da lógica e do método geométrico
e para representar esse processo utiliza um discurso hipoté-
tico-dedutivo. O caminho do raciocínio se orienta do todo
para as partes, do geral para o particular. Esse modelo exige,
para ser objetivo, o afastamento ou desidentificação do su­
jeito em relação ao objeto ou fenômeno estudado.

Abordagem histórico-hermêutica ou fenomenológica

Considera-se esta abordagem, à semelhança da ante­


rior, também priorizada pelos que apresentam uma visão
idealista de mundo. Para este tipo de abordagem, o conhe­
cimento não está centralizado no objeto e sim no sujeito (a
priori), a verdade é relativa a cada sujeito que, em relação
com o objeto (adequatio res ad intecllectu), interpreta-o e
explica-o ao seu modo10. O processo de construção do co­
nhecimento na abordagem fenomenológica é um processo
indutivo, pois vai das partes para o todo, do particular
para o geral. Diferentemente da abordagem empírico-ana-
lítica, a abordagem fenomenológica exige a aproximação e
a identificação do sujeito que se revela nos significados que
interpreta com relação ao objeto, ao fenômeno estudado.

Abordagem dialética ou teoria crítica

A abordagem dialética é característica dos que apre­


sentam uma visão materialista de mundo; nela, o conheci­
mento é construído por uma relação dialética entre sujeito
e objeto, os quais estão dentro de um contexto de realida­
de histórica e social. Não é uma simples adequação e uma

10 Cf. Hessen (1987).

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


descoberta, mas uma construção de algo novo que modi­
fica ambos durante o processo.
O processo de construção do conhecimento nesta
abordagem, conforme o nome indica, é um processo dialé­
tico que vai primeiramente do todo para as partes e depois
das partes para o todo, realizando a síntese e relacionando
sempre ao contexto ou condições materiais históricas em
que acontece a relação cognitiva entre o sujeito e o objeto.
Na abordagem dialética, essa relação é ora de aproxima­
ção, ora de afastamento, ora com predomínio do subjeti­
vo, ora do objetivo.
Habermas (1983) desenvolve, ainda, estudos que rela­
cionam a pesquisa científica com essas visões de mundo.
Em todo trabalho científico, o pesquisador está orienta­
do por interesses relacionados com as visões de mundo e
com as pretensões que os pesquisadores têm com relação
ao objeto ou fenômeno estudado. Assim, ele aponta três
grandes interesses que orientam o trabalho de conheci­
mento da realidade. Interesses que explicitaremos a seguir.

Interesses que orientam os processos


de elaboração do conhecimento

O que motiva o sujeito a procurar conhecer um objeto,


um fenômeno ou um fato? Quais os interesses que existem
por trás deste processo de busca pelo conhecimento? Con­
forme vimos anteriormente, Habermas, em seu trabalho
relativo aos interesses que motivavam a pesquisa ou a pro­
dução do conhecimento nos Estados Unidos da América,
classificou esses interesses para instrumentalizar seu traba­
lho em três tipos, de acordo com a forma de abordagem do
sujeito em relação ao objeto, que são o interesse técnico de

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


a importância da lógica e do método geométrico
controle, o interesse dialógico de consenso e o interesse crí­
tico emancipador, os quais, respectivamente, são utilizados
para garantir o controle; para aprimorar a comunicação e
interagir; ou para transformar e emancipar.
A tabela abaixo apresenta os enfoques básicos da
pesquisa de acordo com Habermas: empírico analítico,
histórico-hermenêutico e crítico dialético. Para ele, esses
enfoques correspondem aos três tipos de interesses huma­
nos que orientam a produção do conhecimento científico:
o técnico de controle, o dialógico de consenso e o crítico
emancipador.

' Relação entre tipos de abordagens meto dológicás;'.


1 interesses que motivam a pesquisa; e dimensões
. fundamentais da vida humana
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Enfoque Interesse Conjunto lógico
Empírico Técnico Trabalho/técnica/informação
analítico de controle
Histórico- Dialógico, Linguagem/consenso/interpretação
-hermenêutico consensual
Crítico Crítico, Poder/emancipação/crítica
dialético emancipador
Fonte: elaboração do autor.

A estes três enfoques relatados na tabela acima corres­


pondem ainda três conjuntos lógicos:
O conjunto trabalho/técnica/informação está subjacente
ao enfoque empírico-analítico; o conjunto linguagem/con-
senso/interpretação está subjacente ao enfoque histórico-
-hermenêutico; e o conjunto poder/emancipação/crítica
está subjacente ao dialético ou crítico emancipador.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Esta classificação apresentada por Habermas se fun­
damenta na proposição que apresenta o pensamento hu­
mano como inseparável das três dimensões fundamentais
da vida humana: o trabalho, a linguagem e o poder; as
quais se relacionam com os três tipos de interesses huma­
nos: o técnico de controle, o prático de consenso e o críti­
co emancipador.
Quando é o interesse técnico e de controle que motiva
a pesquisa, esta se planeja para propiciar informações que
permitam manipular e controlar os objetos investigados,
por meio de processos também controlados e objetivados.
Quando o interesse prático de consenso motiva a in­
vestigação, projeta-se para o auxílio da interpretação e a
interação dos sujeitos, quer dizer, para revelar as formas
de comunicação e interação, para compreender a intersub-
jetividade em relação a possíveis significados das ações, os
discursos, os gestos, os ritos, os textos etc., para propiciar
normas e atuação entre os homens e os grupos humanos.
Quando o interesse crítico emancipador orienta a pes­
quisa, a atividade intelectual reflexiva se organiza para de­
senvolver a crítica e alimentar a práxis (reflexão-ação) que
transforma o real e libera o sujeito dos diferentes condi-
cionantes.
Esses interesses básicos da pesquisa se apresentam
igualmente nos diferentes enfoques científicos ou tendên­
cias epistemológicas da pesquisa social e educativa.
O enfoque empírico analítico tem sua origem e seu
desenvolvimento mais significativo nas ciências naturais
e exatas, e utiliza técnicas predominantemente quantitati­
vas. Tais técnicas garantem a objetividade dos dados, de
origem empírica. Os procedimentos utilizados delimitam
o objeto como totalidade factual. O objeto é isolado, dis­

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


73
a importância da lógica e do método geométrico
secado e congelado através de técnicas de laboratório, de
desenhos experimentais e de instrumentos de observação
e de registro.
Uma vez delimitado o objeto como um todo empíri­
co, isolado e dissecado, este sofre uma divisão em suas
partes ou variáveis (processo analítico). Busca-se o maior
número de informações possíveis, o controle rigoroso das
variáveis por intermédio de formalizações matemáticas,
identificam-se as causas e os efeitos, medem-se as inter-
-relações entre suas partes constitutivas, organizam-se e
cruzam-se informações de tal forma que permitam mani­
pular melhor o objeto; quer dizer, buscam-se as melhores
condições possíveis para conseguir um máximo de mani­
pulação e controle sobre o objeto ou fenômeno, dividin­
do-o progressivamente em partes menores (maior número
de variáveis). O controle será mais efetivo dependendo do
grau de sofisticação que ofereçam as técnicas ou os instru­
mentos. Certamente, o interesse que orienta esses proces­
sos é o técnico de controle.
O enfoque histórico-hermenêutico, mais utilizado nas
ciências humanas e sociais, concebe o real como fenôme­
nos “ contextualizados” ; preocupa-se com a capacidade
humana de produzir símbolos para comunicar significa­
dos; por isto, o processo cognitivo se realiza por meio de
métodos interpretativos. Os fenômenos não são isolados
ou analisados, são compreendidos por meio de um proces­
so de recuperação de contextos e significados.
Outra suposição básica deste tipo de interpretação
consiste no predomínio de elementos subjetivos próprios
da interpretação. O eixo central do conhecimento não
está no objeto, e sim no sujeito que interpreta, conhece
e dá sentido ao mundo e aos fenômenos. O critério de

74 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


verdade não reside na pretendida objetividade (ser fiel ao
objeto), a verdade é resultado do consenso intersubjetivo
da comunidade científica. Seu caráter relativo (é verdade
para este grupo) se faz ainda mais relativo quando o con­
senso ocorre em um determinado momento, em um con­
texto ou em um cenário histórico específico (é verdade
em um determinado grupo em determinado momento;
em outro momento ou contexto é outra verdade, outro
significado), razão pela qual esse enfoque se denomina
também historicismo, ou histórico-hermenêutico. O in­
teresse que comanda esse processo cognitivo é o prático
de consenso.
O enfoque crítico dialético trata de apreender o fenô­
meno em seu trajeto histórico e em suas inter-relações com
outros fenômenos. Busca compreender os processos de
transformação, suas contradições e suas potencialidades.
Para este enfoque, o homem conhece para transformar e
o conhecimento tem sentido quando revela as alienações,
as opressões e as misérias da atual fase de desenvolvimen­
to da humanidade; questiona criticamente os determinan­
tes econômicos, sociais e históricos e a potencialidade da
ação transformadora. O conhecimento crítico do mundo
e da sociedade e a compreensão de sua dinâmica transfor­
madora propiciam ações (práxis) emancipadoras.
A práxis, elevada à categoria epistemológica funda­
mental, transforma-se em critério de verdade e de validade
científica. A práxis significa reflexão e ação sobre uma rea­
lidade buscando sua transformação; transformação orien­
tada para a consecução de maiores níveis de liberdade do
indivíduo e da humanidade em seu trajeto histórico (inte­
resse crítico).

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


a importância da lógica e do método geométrico
1.4 O QUARTO PRINCÍPIO DA EPISTEME É A
CRÍTICA PERMANENTE DOS RESULTADOS.
A CRÍTICA DO CONHECIM ENTO

O processo lógico que compreende os movimentos


contrários entre a gestação das perguntas e a elaboração
das respostas sobre um determinado objeto ou fenômeno
produz o conhecimento sobre esse objeto. O conhecimen­
to é o resultado da unidade dialética entre as perguntas e
as respostas sobre esse mesmo objeto sob condições mate­
riais, sociais e históricas específicas. Daí o caráter tempo­
rário e determinado desse resultado.
Algumas expressões são indicadores dessa preocupa­
ção com a crítica permanente:

“Duvido logo existo ‘duvido ergo sum’.”


(Santo Agostinho).
A dúvida metódica que precede o pensamento
“ cogito ergo sum ”
(Descartes).
Verificação, comprovação, “ falsação”
(Popper).
“Vigilância epistemológica”
(Bachelard).
“ Conhecimento do conhecimento”
(Morin).

Fonte: elaboração do autor.

A ciência moderna exerce uma crítica interna: con­


frontando os procedimentos, os resultados e os critérios
de aceitação.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Entretanto, parece que a crítica externa, oriunda de
outras esferas do conhecimento, influencia, em forma de­
cisiva, nos grandes avanços do conhecimento científico.
O mesmo senso comum indaga sobre os benefícios da ci­
ência, sobre sua utilização contra a vida no mundo e a
sobrevivência do gênero humano. A ciência também é in­
dagada sobre seus pressupostos, seus fundamentos e suas
implicações sociais e éticas (a Filosofia, a Epistemologia e
as Teorias do Conhecimento).
Por exemplo, a Epistemologia se constitui como um
campo de estudos críticos sobre a produção científica11.
O conceito de Epistemologia significa literalmente teoria
da ciência. A teoria da ciência, ou metaciência, se refere
a estudos que vêm a posteriori da prática científica e que
têm por objeto a mesma ciência, interrogando-a a partir
de seus princípios, seus fundamentos, seus métodos, seus
resultados e seus critérios de validade. A análise da ciência
se faz não a partir dos limites da própria ciência ou de seus
critérios de validade, mas considerando outros campos de
conhecimento, como as Teorias do Conhecimento, a fi­
losofia, a sociologia, a história (ex.: Filosofia da ciência,
Filosofia da história, História da história etc.).
Os estudos epistemológicos assumem singular impor­
tância por estarem voltados para a reflexão crítica dos pro­
cessos de gênese, de desenvolvimento, de estruturação e
de articulação da ciência e possibilitam discernir a histó­
ria dos conhecimentos científicos que já foram superados,
bem como a dos que permanecem atuais, colocando em
marcha o processo científico (Cf. Sánchez Gamboa, 1998).1

11 Também são denominados de “ investigações epistemológicas” , “ investigações


sobre investigações” ou “ pesquisa da pesquisa” .

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


a importância da lógica e do método geométrico
As pesquisas qualificadas, também como “ investiga­
ções epistemológicas” , tomam da Epistemologia elemen­
tos que possibilitam conhecer: a) os diversos pressupostos
implícitos nas pesquisas; b) os tipos de pesquisas que vêm
sendo desenvolvidas em uma determinada área do saber;
c) suas tendências metodológicas; d) pressupostos filosó­
ficos (gnosiológicos e ontológicos); e) concepções de ciên­
cia; assim como os condicionantes socioeconômicos que
determinam a produção científica, a aplicação dos seus
resultados e os processos de divulgação (Cf. Silva; Sánchez
Gamboa, 2011). Essas análises e balanços são essenciais
para o desenvolvimento das ciências, pois, além de exerce­
rem a crítica como uma de suas atividades fundamentais,
sinalizam e justificam novos procedimentos e metodolo­
gias, novas conceituações teóricas e revisões epistemológi­
cas (Cf. Sánchez Gamboa, 1998).
Os balanços, conseguidos através de uma análise episte-
mológica, permitem aprofundar nos problemas e questões
que geraram o conhecimento, assim como elucidar os mé­
todos, as estratégias, os conflitos teóricos e paradigmáticos
e o confronto dos resultados. As análises revelam, ainda, os
vazios conceituais, a limitação ou extensão das categorias e
as perspectivas históricas de uma ciência em particular.
Igualmente, uma análise epistemológica sobre um uni­
verso de pesquisas poderá revelar as implicações filosóficas
e ideológicas que, em alguns casos, limitam a criatividade
e a capacidade heurística das teorias e dos métodos.
Uma das contribuições dos balanços sobre a produção
do conhecimento científico é a identificação das diversas
abordagens teórico-metodológicas. A caracterização des­
sas abordagens ajuda a diferenciar diversos métodos e di­
versas formas ou modelos de produção do conhecimento

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


científico e critérios de validar esse conhecimento, conheci­
dos, também, como paradigmas ou tipos de conhecimento.
A análise dos modelos teórico-metodológicos ou para­
digmas científicos supõe a articulação entre os níveis téc-
nico-instrumental, metodológico e teórico, além de abrir
a possibilidade de identificar pressupostos filosóficos que
permitem a identificação de perspectivas e ideologias que,
na forma de pressupostos, relacionam a prática da pesqui­
sa com as visões de mundo e os interesses humanos que
orientam essa prática. O esquema a seguir apresenta a ma­
triz lógica dessas articulações:

MATRIZ PARADIGMÁTICA
A LÓGICA RECONSTITUÍDA
Relação dialética entre Pergunta (P) e Resposta (R)1

1. A CONSTRUÇÃO DA PERGUNTA
Mundo da Necessidade - Problema - Indagações
múltiplas - Quadro de questões - Pergunta

2. A CONSTRUÇÃO DA RESPOSTA
Nível técnico;
Nível metodológico;
Nível teórico;
Pressupostos epistemológicos;
Pressupostos gnosiológicos;
Pressupostos ontológicos (visões de realidade).

Fonte: elaboração do autor.

Como vemos no esquema anterior, a análise da pro­


dução do conhecimento busca a reconstituição lógica de:

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


79
a importância da lógica e do método geométrico
a) construção da pergunta; b) construção da resposta.
Nesse sentido, este instrumento que denominamos de ma­
triz epistemológica poderá ajudar no balanço da produção
de pesquisa, considerando os mesmos critérios utilizados
na elaboração dos projetos de pesquisa, objeto desta pu­
blicação12.

1.5 O QUINTO PRINCÍPIO REFERE-SE À NECESSI­


DADE DE ARTICULAR O PROCESSO DO CONHE­
CIMENTO EM UMA VISÃO DE TOTALIDADE

Esse princípio articulador dos elementos constitutivos


do processo do conhecimento tem como base a categoria
de totalidade. A categoria da totalidade significa a per­
cepção de um determinado fenômeno, ou realidade, neste
caso o conhecimento, como “ [...] um todo orgânico, es­
truturado, no qual não se pode entender um elemento, um
aspecto, uma dimensão, sem perder a sua relação com o
conjunto.” (Lõwy, 1986, p. 16).
Pesquisas feitas pelos primeiros filósofos gregos inda­
garam sobre a existência de uma ordem comum e úni­
ca que organiza todos os elementos da realidade (teoria).
Pretendia-se saber se todas as formas, dimensões e movi­
mentos obedecem a uma lei que equilibra todos os objetos
localizados no universo. Depois de muitas observações e
registros, Parmênides (540-450 a.C.) obtém algumas res­
postas. Segundo ele, só o ser existe; o ser imóvel e imu­
tável é o princípio único da natureza, em que todos os
objetos se localizam harmonicamente. Parmênides dá iní­

12 Maiores informações sobre este instrumento de análise poderão ser consul­


tadas nas seguintes publicações: Sánchez Gamboa (2012, p. 69-88), capítulo
“ Matriz paradigmática: um instrumento para a análise da produção científi­
ca” , e Silva e Sánchez Gamboa (2011).

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


cio a uma perspectiva metafísica que concebe o mundo co­
mo um todo articulado por essências imateriais e imóveis.
A aparente mobilidade dos elementos é regulada pelas leis
da estática. Parmênides afirma

[...] que o Ser é, e o Não-Ser, não é. O Ser não está em


devir, o ser não se move. O Ser é imóvel. Consequente­
mente se o Ser é imóvel, é imutável, sempre idêntico a
si mesmo e, por conseguinte, a multiplicidade de seres
é irreal e ilusória. O ser Imutável é idêntico a si mesmo,
o Ser é uno. (Chauí, 1994, p. 75).

Para ilustrar a teoria de Parmênides, seu discípulo Zenão


apresenta seus “paradoxos” nos quais procura demonstrar
a relatividade do movimento por meio de exemplos como o
do movimento de uma flecha em direção a seu alvo, em que
tenta demonstrar que o movimento não existe, e sim uma
sucessão de momentos em sua trajetória até atingir o alvo.
Entretanto, outro filósofo encontra respostas dife­
rentes. É o caso de Heráclito. De acordo com Heráclito
(540-480 a.C.), tudo tem uma unidade, mas polarizada por
contrários. O princípio da natureza é o movimento. Na sua
visão, o mundo é um eterno fluir, como um rio e a vida um
eterno vir a ser. Em um de seus mais famosos fragmentos,
afirma: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, so­
mos e não somos.” Ou seja: “Não podemos entrar duas
vezes no mesmo rio porque suas águas não são as mesmas
e nós não somos os mesmos.”

A vida se transforma em morte, a morte em vida; o


úmido, se seca; o seco umedece; a noite se torna dia, o
dia se torna noite; a vigília cede ao sono, o sono cede à
vigília; o jovem se torna velho, o velho se faz criança.
O mundo é um perpétuo renascer e morrer, rejuvenes­
cer e envelhecer. Nada permanece idêntico a si mesmo.
(Chauí, 1994, p. 67).

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


81
a importância da lógica e do método geométrico
Surgem, assim, duas perspectivas ou visões de mundo
opostas. A visão estática de um mundo regulado por leis
fixas contidas nos fenômenos. E uma visão que concebe o
mundo em processo de transformação permanente.
Vemos, deste modo, que se confrontam duas grandes
visões de mundo:
A visão idealista de Parmênides que considera o mun­
do estático; com uma lei a que estamos presos, na qual o
ser humano é igual em todo o processo histórico e em que
tudo está dentro de uma caixa preta pronta para ser co­
nhecido. A visão idealista originou as concepções fixistas
nas quais predominam as leis da estática em que qualquer
elemento tende ao repouso.
A visão materialista de Heráclito, para o qual o mun­
do é dinâmico e caótico, não existindo uma lei prévia a
que o ser humano estaria preso, tem condições de modifi­
car-se com a história.
A visão materialista originou concepções dinâmicas,
com predomínio da dialética na qual qualquer elemento
tende ao movimento.
Desde esses primórdios da ciência, aparece a neces­
sidade de amparar e articular os resultados do conheci­
mento em uma teoria que organiza as respostas obtidas a
partir das indagações sobre a realidade. Essas teorias não
são neutras. Todas elas implicam em uma visão de mun­
do, que devem ser explicitadas para melhor compreensão
da realidade ou da problemática que está sendo estudada.
Outra dimensão da visão de totalidade refere-se à ar­
ticulação entre os métodos e a teoria, função que as abor­
dagens têm quando buscam, com base em uma mesma
concepção de conhecimento (Teorias do Conhecimento) de

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


critérios de validação e concepções de ciências (Epistemo-
logia), assegurar e justificar resultados qualitativamente vá­
lidos para o desenvolvimento do conhecimento científico.
Apesar da diversidade de métodos e teorias, segundo
Granger, esse conhecimento construído ao longo da histó­
ria da ciência também tem uma unidade que é caracteriza­
da por alguns traços gerais. De acordo com esse autor, a
pluralidade dos métodos permite a mobilidade do conhe­
cimento científico e a abertura às novidades; embora haja
essa multiplicidade, “ existem alguns métodos científicos,
um só espírito e um só tipo de visão propriamente cientí­
fica” , caraterizada por três traços comuns que revelam a
unidade da ciência: traços de caráter ontológico, gnosio-
lógico e epistemológico.

UNIDADE DO ESPÍRITO CIENTÍFICO

Diversidade de objetos de ciências e de métodos, entre­


tanto unicidade no espírito científico: três traços comuns:

1. A ciência é uma visão de uma realidade (ontologia):


representação da experiência da permanente inda­
gação dessa realidade dinâmica.
2. Visa conhecer (descrever, explicar, compreender) os
objetos como são ou existem (gnosiologia) e não vi­
sa agir diretamente sobre eles (intervenção técnica).
3. Exige definição de critérios de validação: exposição,
verificação, explicitação dos métodos (epistemolo-
gia). O conhecimento é necessariamente público.

Fonte: Granger (1994, p. 45).

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico: 83


a importância da lógica e do método geométrico
A ciência como visão de uma realidade é uma repre­
sentação abstrata do real (Granger, 1994, p. 45), realidade
diferente da imaginação. Realidade localizada no espaço e
no tempo e que está em movimento, independente da per­
cepção dos sujeitos e das suas representações; atributos de
espaço, tempo e movimento: eis o caráter ontológico da
ciência.
A ciência, diferentemente da tecnologia, busca conhe­
cer os objetos, descrevê-los, explicá-los e compreendê-los,
e não diretamente agir sobre eles (Granger, 1994, p. 46). A
ciência não tem como objetivo agir diretamente. Não po­
de ser confundida com ação técnica ou a intervenção so­
bre os objetos. “ De qualquer forma o primeiro resultado
da visão é a satisfação de compreender e de modo algum
agir.” (Granger, 1994, p. 47). Aliás, o sucesso da interven­
ção sobre os fenômenos e sua transformação por meio do
agir técnico depende do conhecimento e dos diagnósticos
sobre eles oferecidos pela pesquisa científica.
A preocupação constante com critérios de validação é
outro dos traços comuns da ciência. “Um saber acerca da
experiência somente é científico se contiver indicações so­
bre a maneira como foi obtido. Suficientes para que as su­
as condições possam ser reproduzidas.” (Granger, 1994,
p. 47). Granger ainda reafirma: “Assim, o conhecimento
científico é necessariamente público, ou seja, exposto ao
controle - competente - de quem quer que seja.” (Gran­
ger, 1994, p. 47).
Mas para que o conhecimento seja compreendido pe­
los interlocutores competentes e sua exposição pública
seja garantida, também deve revelar a combinação e arti­
culação de conceitos que orientam a interpretação, já que
o controle de um fato científico depende não apenas da
mera observação, mas sim da interpretação, “ [...] de uma

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


interpretação ordenada no interior de uma teoria explíci­
ta.” (Granger, 1994, p. 48). Teoria esta entendida como
conjunto de enunciados, atualmente formulados e poten­
cialmente formuláveis, que é fechado para certos procedi­
mentos de dedução que lhes são próprios.
A unidade do espírito científico caraterizada pelos três
traços comuns e a necessidade da explicitação de uma te­
oria que oriente a interpretação complementam a exposi­
ção dos pressupostos históricos, lógicos e metodológicos
que servem de base para a elaboração de projetos de pes­
quisa científica, propósito central desta publicação.
Os projetos de pesquisa, como anunciamos na in­
trodução, buscam organizar de forma lógica os proce­
dimentos da investigação desde os pontos de partida ou
abordagem dos problemas até a elaboração das respostas
e interpretação dos resultados.
Se considerarmos que a pesquisa científica tem como
objetivo produzir conhecimentos sobre um determinado
fenômeno, experiência, fato, acontecimento ou problema,
e se ainda tomamos como referência a conceptualização
de que o conhecimento “ nada mais é que uma resposta a
uma pergunta” , segundo a definição de Bachelard (1989,
p. 189), os projetos de pesquisa deverão atender a lógica
que sustenta a produção do conhecimento que resulta da
construção da relação entre perguntas e respostas.
A lógica básica deve identificar as partes constituti­
vas desse processo. Considerando a definição anterior, es­
sa lógica deve constituir-se de dois momentos ou fases: o
primeiro se refere à construção da pergunta e o segundo
se refere à maneira como obtemos respostas para essa per­
gunta. Entre essas duas fases se estabelece uma relação
dialética de mútua implicância e elucidação que obedece a

Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico:


85
a importância da lógica e do método geométrico
uma unidade entre momentos ou polos contrários e a um
movimento de afirmação, negação e negação da negação,
traçando um caminho de ida e de volta, da pergunta (pon­
to de partida) à resposta (ponto de chegada), e desta, de
novo, à pergunta.
Assim, os próximos dois capítulos serão dedicados
ao aprofundamento dos conteúdos relativos a esses dois
grandes momentos dos projetos.

Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


Capítulo 2
A construção das perguntas

As perguntas são as locomotivas do conhecimento,


daí a sua importância nos projetos de pesquisa. É possí­
vel afirmar que o essencial de um projeto de pesquisa é a
problematização da necessidade e a sua transformação em
questões e perguntas.
Gostaríamos de trazer uma passagem da literatura in­
fantil para ilustrar a importância que o ato de perguntar tem
para a filosofia e para a pesquisa científica. Trata-se de uma
passagem do livro Ei, Tem alguém aí?, de Gaarder (1997).
“Mas por que você está se inclinando desse jeito?”
“Lá de onde eu venho”, explicou ele, “nós sem­
pre fazemos uma reverência quando alguém faz
uma pergunta fascinante. E quanto mais profun­
da for a pergunta, mais profundamente a gente se
inclina.”
“Uma resposta nunca merece uma reverência.
Mesmo que for inteligente e correta, nem assim
você deve se curvar para ela.”
“Quando você se inclina, você dá passagem”,
continuou Mika. “E a gente nunca deve dar pas­
sagem para uma resposta.”
“Por que não?”
“A resposta é sempre um trecho do caminho
que está atrás de você. Só uma pergunta pode
apontar o caminho para a frente.”
Fonte: Gaarder (1997, p. 27-28).
Trata-se de um personagem vindo de outro mundo
que pousa no jardim de uma casa e estabelece um diálogo
com uma criança que, curiosa com o estranho visitante,
percebe que, além das perguntas e das respostas, utiliza a
expressão corporal.
O referido personagem, denominado Mika, se incli­
na cada vez que escuta uma pergunta. Dependendo da
qualidade da pergunta o personagem faz uma inclinação
mais ou menos profunda. Indagado sobre os gestos, ele
responde: “ Lá de onde eu venho, nós sempre fazemos uma
reverência a alguém que faz uma pergunta interessante e
quanto mais profunda for a pergunta, mais profundamen­
te a gente se inclina.” Certamente, o autor quer destacar o
significado das perguntas qualificadas; das perguntas para
as quais não se tem uma resposta imediata e simples, cujo
valor está em exigirem o ato de pensar e de construir uma
nova resposta.
O autor, na mesma passagem, confronta os méritos
das perguntas e das respostas. Segundo ele: “Uma resposta
nunca merece uma reverência mesmo que fosse inteligen­
te e correta, nem assim, deve se curvar para ela.” E ainda
justifica a diferença: “ Quando você se inclina dá passagem
e nós nunca devemos dar passagem a uma resposta.” A
exigência radical e crítica com relação às respostas leva o
diálogo ao campo da filosofia e da pesquisa científica, que
exige, para propiciar o avanço da busca do conhecimento,
o exercício da dúvida com relação às respostas já conheci­
das ou encontradas. Em outras palavras, o autor convida
para o ceticismo salutar e necessário que acompanha a
evolução da filosofia e da ciência. Não acreditar, não incli­
nar a cabeça, “ não dar passagem a uma reposta” significa
enfrentar com a dúvida as indagações e afirmações já pos­
tas ou encontradas no universo dos saberes conhecidos.

P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló g ic o s
O autor ainda dá um valor histórico às respostas en­
contradas como trechos do caminho já percorridos e que
servem de referências para novos passos e percursos que
se colocam na linha do tempo futuro. “A resposta é sem­
pre um trecho do caminho que está atrás de você.” Na
perspectiva de avançar, de ir além das respostas encontra­
das, de novo a pergunta tem a força de levar o caminho
adiante. “ Só uma pergunta pode apontar o caminho para
frente.” A capacidade heurística da pergunta destaca-se
como a parte dinâmica que potencializa a construção his­
tórica dos conhecimentos.
Essa estorinha tem duas palavras-chave: “pergunta” e
“ resposta” , situadas uma junto com a outra, uma contra
outra, em uma relação dialética de mútua implicância, de
afirmação e de negação e de projeção no tempo; o passado
representado nas respostas, o presente na dúvida e a pos­
tura crítica perante o passado e o futuro na abertura que
a força das perguntas projeta.
O destaque da dúvida e da pergunta se relaciona com a
reflexão sobre os fundamentos lógico-filosóficos já enuncia­
dos no capítulo anterior. A história da filosofia traz exem­
plos de autores que destacam a importância da pergunta.
Por exemplo, para Sócrates, as perguntas são a chave do
conhecimento. Os historiadores relatam que ele costuma­
va não responder as indagações de seus discípulos, optava
por comentar e qualificar as perguntas a ele dirigidas, e as
devolvia aos interlocutores na forma de novas perguntas.
Conforme Chauí, é com Sócrates que a filosofia desen­
volve um método de investigação:

O método socrático, exercitado sob a forma do diálo­


go, consta de duas partes. Na primeira, chamada de
protréptico, isto é, exortação, Sócrates convida o in­

C ap ítu lo 2. A co n stru ç ão d a s p ergu n tas


terlocutor a filosofar, a buscar a verdade; na segunda,
chamada elénkbos, isto é, indagação, Sócrates, fazendo
perguntas comentando as respostas e voltando a per­
guntar, caminha com o interlocutor para encontrar a
definição da coisa procurada. (Chauí, 2002, p. 190)1.

De acordo com o método socrático, o processo que


leva ao conhecimento só pode ser realizado pelo diálogo:

E por meio do diálogo que o aprendiz chegaria a des­


cobrir na sua alma o conhecimento. Nesse diálogo,
Sócrates fazia o papel de animador e do filósofo que
coloca as perguntas e provoca o aprendiz, levando-o a
penetrar em si mesmo e descobrir as verdades (as res­
postas). (Andery, 2007, p. 64).

O método socrático também é conhecido como mé­


todo maiêutico (ajudar a dar a luz). A maiêutica, que sig­
nifica encontrar as respostas no mesmo contexto e pelo
mesmo sujeito que formula as indagações, era precedida
da ironia ou da refutação em que o aprendiz descobria os
erros do que pretendia aprender, descobria sua ignorância
e se preparava para buscar o verdadeiro conhecimento.
Todo esse processo de diálogos, instigantes, de ironias e
refutações é uma forma de superar as respostas imediatas,
apressadas e de fácil acesso, oferecidas pelos saberes já
elaborados ou encontrados no universo da vida cotidiana
(míticos e opinativos). Perante esses saberes desenvolve-se
a suspeita e a dúvida para posteriormente procurar a res­
posta nas condições concretas em que se geraram as per­

1 “Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Per­


gunta, não responde. Indaga, não ensina. Não faz preleções, mas introduz o
diálogo como forma da busca da verdade. Essa foi a razão de não haver escrito
coisa alguma. Dizia que a escrita é muda e que sua surdez cristaliza idéias como
verdades acabadas e indiscutíveis.” (Chauí, 2002, p. 188).

P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló g ic o s
guntas2. O exercício dialético da volta à pergunta (o ponto
de partida), indagando à mesma pergunta, permite cla­
rificar, aprimorar, qualificar e amadurecer as indagações
e as questões, até ganharem o patamar de uma pergunta
concreta, clara e distinta.
O diálogo socrático, dessa forma, oferece bases histó­
ricas para a moderna compreensão do conhecimento sin­
tetizada por Bachelard, na sua afirmação já comentada na
introdução: “Para o espírito científico qualquer conheci­
mento é uma resposta a uma pergunta. Se não tem pergunta
não pode ter conhecimento científico. Nada se dá, tudo se
constrói.” (Bachelard, 1989, p. 189). Tal entendimento nos
remete à relação pedagógica socrática do diálogo, que con­
siste na relação básica entre perguntar e responder e ao mé­
todo maiêutico de revelar o sujeito que indaga, assim como
a situação, o conflito ou a dúvida que gerou a pergunta, ten­
tando, dessa maneira, explicitar as motivações e as expecta­
tivas que o interlocutor tem com relação ao problema posto
em questão. Dessa forma, o interlocutor poderá descobrir a
sua própria resposta, a mais pertinente para seu problema.
Neste caso, o mais importante é saber perguntar revelando
o processo de construção e qualificação das questões.
Podemos adiantar algumas conclusões com relação aos
projetos de pesquisa, apontando dentre as maiores dificul­
dades a elaboração das perguntas que motivam o processo
da investigação. É difícil porque o primeiro passo consiste
em se apropriar do “ potencial demolidor da dúvida” e as­
sumir uma postura crítica perante as respostas encontra­

2 Nesses primórdios anunciam-se alguns princípios da episteme posteriormente


desenvolvidos; tais como a explicitação das condições e motivações do sujeito
e a busca das explicações e das respostas nos próprios objetos e não fora deles
e de seus contextos, assim como a necessidade da relação direta entre sujeito
e objeto, em um mesmo cenário espaço-temporal (dimensões ontológicas do
conhecimento).

C ap ítu lo 2. A co n stru ção d as p ergu n tas 91


das, mas, infelizmente, a formação recebida nos sistemas
escolares não favorece o desenvolvimento desse potencial;
pelo contrário, os processos pedagógicos implantados por
esses sistemas tornam o ato de perguntar um exercício coi­
bido ou proibido. Nos sistemas escolares e em outras si­
tuações da vida cotidiana em que nos defrontamos com o
conhecimento, em sua maioria, recebemos respostas pron­
tas e acabadas. Poucas vezes o aluno tem a oportunidade
de perguntar, e nessas poucas vezes é recriminado por ser
inoportuno ou reprimido por se opor à lógica do modelo
de aprendizagem, à lógica do domínio da resposta. Esses
modelos não permitem desenvolver o potencial da dúvida
e as capacidades da curiosidade e da suspeita, ainda menos
possibilitam o aprendizado da elaboração das perguntas.
Esse mesmo aluno, quando está na fase da educação supe­
rior ou da pós-graduação e tem a oportunidade, ou é obri­
gado, por ocasião dos projetos de pesquisa, é surpreendido
pela dificuldade em formular perguntas. Como elaborar
uma questão pertinente? Como construir um raciocínio
que leve a uma pergunta científica?
Com relação a essa dificuldade de aprender a pergun­
tar, Freire e Faundez (1985) denunciam uma prática peda­
gógica que desprecia e inibe o ato de perguntar.

O educador de modo geral já traz a resposta sem se lhe


terem perguntado nada. [...] O autoritarismo que cor­
ta as nossas experiências educativas inibe, quando não
reprime, a capacidade de perguntar. A natureza desafia­
dora da pergunta tende a ser considerada, na atmosfera
autoritária, como provocação à autoridade. E, mesmo
quando isso não ocorra explicitamente, a experiência
termina por sugerir que perguntar nem sempre é cômo­
do. (Freire; Faundez, 1985, p. 46).

O silêncio à pergunta significa afogar no aluno a ca­


pacidade de indagar, com consequências desastrosas para
P ro je to s d e p e s q u is a , fu n d a m e n to s ló g ic o s
a formação integral do aluno. Os autores contrapõem a
essa perspectiva castradora uma “ pedagogia da pergunta” ,
com base na realidade que envolve a relação educativa.

Há perguntas que são mediadoras, perguntas sobre


perguntas, às quais se devem responder. O importante
que esta pergunta sobre a pergunta, ou estas perguntas
sobre as perguntas, e sobre as respostas, esta cadeia de
perguntas e respostas, enfim, esteja vinculada à realida­
de, ou seja, que não se rompa a cadeia. Porque estamos
acostumados ao fato de que essa cadeia de perguntas e
respostas, que no fundo é senão o conhecimento rom-
pe-se, interrompe-se, não alcança a realidade. (Freire;
Faundez, 1985, p. 49).

Enquanto a educação de respostas tende a ser gene-


ralizadora, repetidora, inibidora e “ domesticadora” , a
educação de perguntas se apresenta como uma proposta
nova, criativa “ [...] e apta a estimular a capacidade huma­
na de assombrar-se, de responder ao seu assombro e resol­
ver seus verdadeiros problemas essenciais, existenciais.”
(Freire; Faundez, 1985, p. 52). Em outro trecho, os auto­
res complementam:

[...] um dos pontos de partida para a formação de um


educador ou de uma educadora, numa perspectiva li­
bertadora, democrática, seria essa coisa aparentemen­
te tão simples: o quê é perguntar? (Freire; Faundez,
1985, p. 46).

Nesse sentido, o problema que se coloca ao professor


é de caráter prático, de criar com os alunos o hábito e a
virtude “ de perguntar e de espantar-se” . A primeira coisa
que aquele que ensina deveria aprender é “ saber pergun­
tar e saber perguntar-se” . Na sua prática pedagógica, o
professor deveria valorizar em toda sua dimensão o que
constitui as linguagens de perguntas antes de serem lin­

C ap ítu lo 2. A co n stru ç ão d as p ergu n tas 93


guagens de respostas. Freire e Faundez explicitam a defesa
das pedagogias da pergunta e seu confronto com as peda-
gogias da resposta (cf. Sánchez Gamboa, 2009).

2.1 A CONSTRUÇÃO DAS PERGUNTAS:


PRESSUPOSTOS

Depois de destacar o ato de perguntar como sendo


fundamental para o exercício da filosofia e para o desen­
volvimento histórico da ciência, apesar do predomínio das
pedagogias das respostas que inibem o desenvolvimento
do potencial da dúvida, da crítica e da capacidade de per­
guntar, apresentamos a seguir alguns pressupostos a se­
rem considerados na elaboração dos projetos na fase da
construção das perguntas. O esquema próximo visualiza
a retomada desses fundamentos.

O mundo concreto da necessidade


(objeto)
A capacidade transformadora do homem
(sujeito)
O processo: conhecer para transformar
(práxis: relação ação-reflexão-ação;
relação prática-teoria-prática)
A forma sistematizada do conhecimento (com método)
sobre o mundo concreto:
Pesquisa científica

Fonte: elaboração do autor.

Retomemos algumas reflexões já expostas na introdu­


ção e no capítulo anterior. A pergunta não tem sentido em

P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló gico s
si mesma, nem se origina espontaneamente, ela se situa em
um contexto de possibilidades e em uma relação entre a ne­
cessidade problematizada e um sujeito sensível e crítico que
se depara com essa necessidade e tem a capacidade de pro-
blematizá-la. Retomemos os princípios já expostos acima.
As perguntas ganham qualidade quando confrontadas
com a possibilidade da sua resposta. Nesse sentido, a com­
preensão da relação dialética entre perguntas e respostas é
fundamental para entender seu lugar e sua importância na
pesquisa científica. Pergunta e resposta são dois elemen­
tos opostos que se negam mutuamente. Quando temos a
pergunta é porque não existe resposta e quando temos a
resposta é porque a pergunta foi superada e já não faz sen­
tido. A pergunta nega as respostas já dadas. Se o pesquisa­
dor obtém a resposta e a aceita como sendo a mais válida
e pertinente para o problema estudado, e, ainda, desiste de
novas buscas, então, está negando a possibilidade de novas
perguntas. Mas se a resposta não é satisfatória, então, pre­
cisa ser negada, permitindo a geração de novas perguntas.
A dialética entre elementos que se contrapõem e se
negam entre si geram uma tensão. O conceito-chave na
dialética é essa tensão entre os contrários.
O jogo entre as perguntas e as respostas, no campo
da filosofia e da pesquisa científica, expressa uma tensão
permanente que não se esgota com a obtenção de uma res­
posta, nem se estanca na presença de uma pergunta perti­
nente e necessária.
Essa tensão é motivada pelo poder da dúvida. As per­
guntas surgem perante a dúvida. A dúvida é a grande ges­
tora do conhecimento. Duvidamos perante os problemas,
as crises, as dificuldades, os mistérios. A dúvida ganha for­
ça quando se origina no mundo da necessidade. É a neces­
sidade concreta específica de uma dada condição humana
C ap ítu lo 2. A co n stru ç ão d a s p ergu n tas 95
historicamente situada que desencadeia as dúvidas e as
indagações, que justificam e qualificam as perguntas con­
cretas, merecedoras do investimento histórico dos homens
para obter respostas e soluções para essas necessidades.
É a necessidade que cria as condições para a constru­
ção dialética entre a pergunta e a resposta. Essa necessidade
tem a possibilidade de ser compreendida quando proble-
matizada. A pergunta se origina na necessidade problema-
tizada e a resposta só acontece pela exigência da pergunta.
A resposta só existe se há pergunta e a pergunta existe se
há a problematização da necessidade. A necessidade pro-
blematizada é a condição que possibilita tanto a pergunta
quanto a resposta. De acordo com a expressão de Marx
(1983, p. 25), citada anteriormente,

[...] a humanidade só levanta os problemas que é capaz


de resolver [...], o próprio problema só surgiu quando
as condições materiais para o resolver já existiam ou
estavam, pelo menos, em vias de parecer.

No mesmo sentido, podemos afirmar que nenhum


pesquisador coloca problemas que não tenham condições
de serem respondidos e que as condições que motivaram
as perguntas são as mesmas que possibilitarão as respos­
tas. De igual forma é possível reafirmar que as repostas
estarão no mesmo cenário em que surgiram as perguntas
e que todas as perguntas ganham qualidade quando ofere­
cem condições de serem respondidas.
A plausibilidade para chegar ao patamar de qualidade
da formulação de uma pergunta concreta, clara e distinta,
segundo o ideário cartesiano, se consegue por meio de um
processo de esclarecimento que pode percorrer o mistério,
a dúvida, a suspeita, as indagações e as questões em ní­
veis progressivos de qualificação. Para chegar lá, também
se transita por intuições, suposições, hipóteses, saberes e
P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló gico s
certezas. Nesse jogo de ir e vir, as perguntas são qualifica­
das com novas indagações e progressivos esclarecimentos
até conseguir o patamar de qualidade plausível. Uma per­
gunta confusa ou mal-elaborada só gera novas dúvidas. O
patamar da qualidade resulta quando a pergunta ganha
claridade, especificidade e concreticidade.
Somente a pergunta clara, distinta e concreta tem pos­
sibilidade de resposta.
No caso dos projetos de pesquisa, estes ganham sua
qualificação quando conseguem apresentar perguntas cla­
ras, distintas e concretas, do contrário não têm chances de
serem realizados. Na maioria das vezes, essa fase de elabo­
ração de projeto exige um tempo longo de discussões e de­
bates no seio dos grupos de pesquisa, horas de orientação
individual, prazos que, por exemplo, no mestrado podem
durar até um ano e no doutorado dois anos, cujo objetivo
principal consiste em elaborar as questões e as perguntas
que serão abordadas nas pesquisas. Em síntese, o projeto
deve conter uma pergunta clara, distinta e concreta. É exi­
gência lógica de todo processo de produção do conhecimen­
to começar com uma pergunta qualificada. Em razão disso,
o projeto deverá explicitar a construção dessa pergunta.
As perguntas poder-se-ão originar perante o mistério,
a curiosidade, a indagação, a suspeita e a dúvida com rela­
ção a um fenômeno ou a um objeto. As perguntas poderão
surgir, também, perante saberes, informações, dados ou
respostas que já são conhecidos, mas que podem ser falsos
ou admitem a suspeita da sua veracidade, ou apresentam
indicadores de serem limitados ou terem falhas na sua ela­
boração, ou não serem pertinentes para determinadas si­
tuações ou condições.
Em todos esses casos, está presente a dúvida como ele­
mento básico da racionalidade humana. A dúvida qualifica
C ap ítu lo 2. A co n stru ç ão d a s p ergu n tas 97
o mistério, o espanto, a curiosidade, a suspeita e qualquer
outra forma de atitude do homem perante o mundo desco­
nhecido. Entretanto, a dúvida como expressão qualificada
da relação com o desconhecido para ter possibilidade de
se transformar em um processo de conhecimento deve ser
concreta, determinada e específica. Alguém duvida sobre
alguma coisa e em situações específicas e determinadas.
Não é possível existir uma dúvida sem um sujeito concre­
to que duvida e algum objeto específico sobre o qual essa
dúvida recai.
A concreticidade da dúvida acontece em uma situação
determinada e em um momento específico. Essa dimensão
de materialidade da dúvida deve afirmar-se em uma neces­
sidade específica que motiva todo o processo da relação
do homem com o desconhecido. Nesse sentido, podemos
afirmar que a origem do conhecimento está na necessida­
de concreta do homem perante o desconhecido.

2.2 DA NECESSIDADE AO PROBLEMA

A materialidade da necessidade vivenciada por homens


concretos ganha dimensões racionais, quando esta se trans­
forma em problema concreto, localizado e datado (no tem­
po e no espaço específicos). São elementos necessários da
concreticidade do problema: sua localização em um lugar
e em um tempo específicos (situação-problema), a identi­
ficação de indicadores, manifestações e sintomas que ex­
pressam sua dinâmica, suas ações, suas repercussões e seus
resultados, assim como a recuperação de dados prelimina­
res ou antecedentes sobre o referido problema (levantamen­
tos e revisão de literatura).
O esquema a seguir ilustra essa passagem da necessi­
dade ao problema.
P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló gico s
A C O N ST R U Ç Ã O DA PERG U N TA
Problem atizar

O B JET O
PRO BLEM A
CO NCRETO
Situado (espaço)
D atado (tempo)
Ativo (movimento)

Contexto empírico do problema


(situação-problem a)
Contexto teórico do problem a
(saberes acum ulados, antecedentes registrados)
Indicadores do problem a
(sintom as, manifestações)
M últiplas e diversas indagações
(M últiplos olhares)
Q uestões norteadoras
Pergunta-síntese

Fonte: elaboração do autor.

Problematizar o mundo da necessidade exige uma ação


direta do sujeito indagador. O mundo da necessidade que
dá origem ao processo do conhecimento se apresenta co­
mo realidade concreta objetiva, independentemente de ser
pensado, representado ou ponderado. Somente quando os
sujeitos indagam , pensam e sentem essas necessidades é
que elas se transform am em problem as, a partir do lugar

C ap ítu lo 2. A c o n stru ç ão d a s p ergu n tas 99


desses sujeitos, de seus interesses, suas ponderações e pers­
pectivas. O mundo da necessidade, em si m esmo, como
realidade, existente, não é problem a. Torna-se problem a
para alguns sujeitos, para outros poderá não ser problema.
Nesse sentido, problem atizar se refere ao ato de o sujeito
se indagar sobre as necessidades desde lugares, referências
e interesses e pontos de vista. Essa dimensão subjetiva do
problem a é fundamental para entender sua própria essên­
cia. Saviani (1986, p. 22) reafirma essa compreensão:

A verdadeira compreensão do conceito problema su­


põe, como já foi dito, a necessidade [...]. Diriamos,
pois, que o conceito de problema implica tanto a cons­
cientização de uma situação de necessidade (aspecto
subjetivo) como uma situação conscientizadora de ne­
cessidade [...]. Trata-se de uma necessidade que se im­
põe objetivamente e é assumida subjetivamente.

O quadro a seguir destaca essa compreensão de problema:

PROBLEMA
Sua origem está no mundo da necessidade.
A essência do problema é a necessidade.

DIM ENSÕES DO PROBLEMA


Objetiva: situação concreta da necessidade
(espaço, tempo e movimento).
Subjetiva: consciência critica sobre a necessidade.
Problema: quando a necessidade se impõe objetivamente
e é assumida subjetivamente.
Exige: atitude crítica geradora de questões e perguntas.

Fonte: elaboração do autor.

100 P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló g ic o s
Embora o conceito de problema se afirme em torno da
necessidade tomada nas suas dimensões objetivas e sub­
jetivas, os usos correntes do termo desvirtuam seu verda­
deiro sentido (falsos problemas). Segundo o mesmo autor,
o termo problema é tido como sinônimo de questão, mis­
tério, dificuldade, obstáculo e dúvida. Essas conotações
estão associadas ao problema como formas de sua mani­
festação, ou aparência, ocultando a sua essência, a neces­
sidade.
Explica-se essa relação entre aparência e essência
quando o problema é concebido como fenômeno que “ ao
mesmo tempo em que revela (manifesta) a essência, a es­
conde” . De acordo com Kosik (1995, p. 9-20), os concei­
tos de pseudoconcreticidade (aparência) e concreticidade
(essência) ajudam a entender as relações entre elementos
externos, aparentes, percebidos pelos sentidos, tais como
os sintomas de uma doença, por exemplo, a febre, a dor de
cabeça, a pressão arterial etc., que são manifestações, mas
não é a doença, embora estejam diretamente relacionadas
a ela. Tratar apenas os sintomas ou as manifestações é
tratar falsamente a doença; significa abordar falsamente
o concreto (pseudoconcriticidade). De igual forma, tra­
tar as manifestações do problema significa abordá-lo apa­
rente e superficialmente (pseudoproblema). O problema
oculta sua essência atrás das suas manifestações. A es­
sência do problema, como já foi afirmado anteriormente,
é a necessidade. O que impregna a problematicidade é a
necessidade.

Assim, uma questão, em si, não caracteriza o proble­


ma, nem mesmo aquela cuja resposta é conhecida, mas
uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita
conhecer, eis aí um problema. Algo que eu não sei não
é um problema; mas quando eu ignoro alguma coisa

C a p ítu lo 2. A c o n s tr u ç ã o d a s p e rg u n ta s 10
que eu preciso saber eis-me, então, diante um proble­
ma. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário
transpor, uma dificuldade que precisa ser superado,
uma dúvida que não pode ser dissipada são situações
que se nos configuram como verdadeiramente proble­
máticas. (Kosik, 1995, p. 21).

O quadro a seguir explicita essa relação entre essência


e aparência, problem a e pseudoproblem a.

Problema:
fenômeno com plexo

Revela, aparece (aparência) Oculta, pressupõe (essência


A pseudoconcreticidade A concreticidade
Apresenta um falso problema Revela um problema
(pseudoproblema) complexo

Fonte: elaboração do autor.

Com o desdobram ento dessa com preensão, o pesqui­


sador que sustenta seu projeto de pesquisa em uma ne­
cessidade que é racionalizada com o problem a; entretanto,
dever-se-á indagar se esse problem a é falso (pseudopro­
blema).
Vejamos a seguir alguns dos critérios para identificar os
falsos problem as e as possíveis maneiras para superá-los.

P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló gico s
O P SEU D O PR O B LEM A

Refere-se ao olhar ingênuo sobre as aparências


(pseudoconcreticidade), aos sintomas, à visão superficial
da realidade, a questões já resolvidas (falsos problemas).

O pseudoproblema identifica-se com o “não saber” ou


com o desconhecimento da resposta já elaborada.

O pseudoproblema gera perguntas simples a serem


respondidas com os “saberes” ou respostas já conhecidas.

Fonte: elaboração do autor.

O esquema anterior apresenta algumas das caraterísti-


cas dos falsos problemas, quando o pesquisador se limita
a tratar os sintomas e as aparências, por exemplo, tratar
apenas a febre ou a dor de cabeça sem um diagnóstico
mais aprofundado. O falso problema se identifica também
quando transformado em uma pergunta clara, distinta e
concreta; no processo de procurar a resposta, o pesquisa­
dor descobre que já existe a resposta para esse problema,
só que ele a desconhecia. Então, seu problema estava no
desconhecimento da resposta. Uma vez que o pesquisador
tem acesso, ou sabe a resposta, seu problema deixa de ser
problema. O problema era um falso problema, pois ape­
nas se desconhecia a reposta já elaborada, à qual o pesqui­
sador não tinha acesso. Segundo a expressão de Saviani
(1986, p. 19): “Trata-se do problema como não saber.”
Pode-se concluir que, neste caso, os saberes já elaborados
falseiam os problemas de pesquisa.
O falso problema se identifica, também, com pergun­
tas simples e superficiais, que exigem como resposta uma
informação, um dado, um protocolo, um “ saber” fazer.

C ap ítu lo 2. A c o n stru ç ão d as p ergu n tas


Por exemplo, perguntar um endereço, uma localização,
uma definição, a origem de um termo, o sentido de uma
expressão3.
Na forma mais complexa, as informações, os dados,
as descobertas científicas e os saberes elaborados também
podem ser tomados como respostas já existentes que fal­
seiam os problemas de pesquisa. Esse é o sentido que tem
a revisão bibliográfica, a busca de antecedentes de pes­
quisa, os estados da arte, os balanços dos conhecimentos
já produzidos sobre os problemas abordados pelas pes­
quisas. Essas revisões são fundamentais para conferir se o
corpo de questões e as perguntas que orientam a investi­
gação já foram respondidos. No caso das descobertas des­
sas respostas, o projeto perde relevância científica, já que
falseiam os problemas abordados e o pesquisador terá o
risco de repetir pesquisas já concluídas. Entretanto, essas
descobertas poderão ser problematizadas quando se inda­
gam especificidades, tais como contextos, lugares, tempos,
conjunturas diferentes em que os problemas se originam.
Neste caso, trata-se de problemas semelhantes, mas loca­
lizados em épocas, situações e sociedades diferentes. E as
descobertas, além de falsearem os problemas, servirão de
comparação e possibilitarão uma discussão de resultados
mais completa, além de produzir a inferência desses re­
sultados para a reafirmação de teorias e consolidação de
determinadas interpretações. Os saberes também poderão
ser problematizados, e a partir das respostas já conhecidas
gerarem novas perguntas e novas pesquisas.

3 Em alguns projetos de pesquisa, os problemas expostos na forma de perguntas


chegam a ser tão simples que a solução está na consulta de um dicionário téc­
nico, um verbete em uma enciclopédia, uma obra especializada ou uma página
na internet. Trata-se de falsos problemas, aliás, porque as repostas já existem,
já foram elaboradas. O acesso a elas dirime o problema.

104 P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló gico s


O próximo esquema explicita a importância dos “ sa-
beres” no papel de falsear os problemas e na elaboração
das perguntas e das respostas simples.

OS SABERES COMO RESPOSTAS SIMPLES

Os saberes apresentam respostas “ já dadas” ,


“ prontas” , elaboradas em outros contextos
(geográficos e históricos, em espaços e tempos
diferentes), fixadas e/ou sistematizadas em sistemas
de informação (bibliotecas, redes, catálogos,
protocolos, manuais).

Os saberes míticos (m itus ), comuns (doxa ), científicos


(epistem e ) e filosóficos (sofia) oferecem respostas
prontas, dadas e sistematizadas, embora “ duvidosas”
para os problemas concretos.

Os saberes acumulados poderão falsear os


problemas de pesquisa, mas também poderão ser
problematizados para gerar a partir deles novas
perguntas e novas pesquisas.

Fonte: elaboração do autor.

Finalmente, a passagem da necessidade para o pro­


blema de pesquisa supõe retomar sua essencialidade (con-
cretividade) e suas diferenças com relação às aparências
(psudoconcreticidade). O quadro a seguir destaca essa sín­
tese.
O próximo movimento consiste na transformação da
problematização em questões e perguntas complexas. A ex­
plicitação dessas perguntas é a função mais importante de
um projeto de pesquisa. Vejamos a seguir essas sequências:

C ap ítu lo 2. A co n stru ç ão d a s p ergu n tas 105


P R O B L E M A T IZ A R

Diferenciar o problema complexo do falso problema


(pseudoproblema).

Problematizar o problema superando as aparências


(pseudoconcreticidade) e captando as necessidades
que se impõem objetiva e subjetivamente.

O olhar crítico sobre a realidade, em que a suspeita,


a dúvida, a curiosidade, a indagação, a questão e a
pergunta se tornam pontos de partida do
conhecimento da realidade.

A partir da problematização, gerar perguntas


complexas.

Fonte: elaboração do autor.

As perguntas complexas resultam da problematização


das necessidades e se afirmam depois de serem falseadas
pelos saberes encontrados nas revisões bibliográficas e na
procura dos antecedentes de pesquisa. As perguntas com­
plexas se originam nos problemas concretos para os quais
não existem respostas no universo dos saberes constituí­
dos. Daí sua importância para o avanço do conhecimento
e o desenvolvimento da ciência nas suas diferentes espe­
cialidades.

106 P ro je to s de p e sq u isa , fu n d a m e n to s ló gico s


PERGUNTAS CO M PLEXA S

O verdad eiro pro blem a n ão se identifica com o


“ n ão sa b e r” , ele se apresen ta com o o b stácu lo ,
dificuldade, conflito, d ú vida, crise p ara o qual
n ão se tem resp o sta pronta.

A s re sp o sta s p a ra o s p ro b lem as concretos


(verdad eiros problem as) n ão estão n os saberes.

A s p ossíveis resp o sta s co n tid as n os saberes


sistem atizad o s (bibliotecas, trad içõ es, arq u ivo s
in fo rm atizad o s, internet etc.) devem ser
p ro b lem atizad as, su bm etid as à su speita e à d ú vida.

A s pergu n tas co m p lexas se origin am n os p ro blem as


con cretos, n as dificuldades, nos conflitos e n as crises
e exigem resp o stas n ov as a serem e lab o rad a s p o r
interm édio da p esq u isa científica e filosófica.

Fonte: elaboração do autor.

A s con sid erações an teriores sobre o pro blem a e a pro-


blem atização que conduzem às pergun tas essenciais da
in vestigação sinalizam ao s procedim en tos a serem co n si­
d erad o s n esta prim eira fase da elab o raçã o d o s p ro jeto s de
p esq u isa.

2 .3 D A P R O B L E M A T IZ A Ç Ã O À C O N S T R U Ç Ã O D A
PERGU NTA CO M PLEXA

C o m o já exp licitam os acim a, to d a p esq u isa tem senti­


d o qu an d o surge p ara respon der às n ecessidades h istóricas
con cretas de evolução e desenvolvim ento da hum anidade.

C a p ítu lo 2 . A c o n s tr u ç ã o d a s p e r g u n ta s 107
A s n ecessidades gan h am p o ssib ilid ad e de su p eração q u a n ­
d o racio n alizad as na fo rm a de p ro b lem as e de pergu n tas.
A p esq u isa se justifica q u an d o surge, q u an d o h á su speita,
dú v id a, conflito, crise, in d a g ação com o n ecessidade p a ra
a sobrevivência e a m elhoria d a s con dições d a vid a. P ara
que a p esq u isa se torne um p ro cesso con creto, é preciso
localizar o cam p o p ro blem ático, con sid eran d o as dim en­
sões de esp aço , tem po e m ovim ento. E ssa prim eira fase
é d en om in ada “ situ a ção -p ro b lem a” , ou sim plesm ente e x ­
p licitação d o pro blem a.
C o m base nesse p atam ar, operacion alizam -se p ro ce­
dim en tos, v isan d o tran sfo rm ar o pro blem a em pergu n tas.
E sses p rocedim en tos são de d o is tipos: relativos à recu­
p eraç ão de in form ações de con texto e relativos à q u ali­
ficação d a pergun ta. O s dois procedim en tos se articulam
entre si, com o v isu alizad o s no q u a d ro a seguir.

Contexto empírico do problema Situação-problema


(situação-problema) Espaço: descrição do lugar,
Indicadores do problema, instituição, contexto social no qual
sintomas, manifestações. se situa a necessidade e o problema a
Primeiros levantamentos, ser estudado.
registros, índices, casos Tempo: período ou duração do
significativos, exemplos. problema, atual ou enraizado no
passado.
Movimento: formas de manifestação,
expressão e ocultamento do
problema, aparências e revelações.
Contexto teórico do problema Antecedentes: revisão de literatura.
Saberes acumulados, Estudos anteriores sobre a mesma
antecedentes registrados. problemática.
Fonte: elaboração do autor.

P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
Com relação à recuperação de informações de con­
texto, uma vez definida a problemática a ser investigada,
é preciso elaborar levantamentos para identificar os indi­
cadores ou “ sintomas” do problema. Informações sobre
índices, estatísticas, ações, repercussões, resultados, regis­
tros dessa problemática nos contextos concretos nos quais
se situa (contexto empírico).
Essa recuperação de informações sobre o contexto
empírico deve ser acompanhada de uma revisão biblio­
gráfica sobre o problema em questão, ou sobre pesquisas
que tenham abordado a mesma problemática, visando à
recuperação de registros e antecedentes necessários para a
definição de conceitos-chave, universos temáticos, teorias
e categorias utilizadas no tratamento dos problemas abor­
dados nessa pesquisa específica, assim como para selecio­
nar procedimentos e estratégias, e posteriormente para a
discussão e interpretação dos novos resultados (contexto
teórico)4.
Uma vez explicitados os procedimentos de composi­
ção do contexto empírico e teórico, cabe agora operacio-
nalizar os procedimentos da construção e qualificação da
pergunta.
Recomenda-se iniciar o procedimento elaborando um
levantamento de indagações possíveis, na forma de frases
interrogativas, desde diferentes pontos de vista até lugares
diferentes dos sujeitos que se deparam com a necessidade
objeto de estudo e com a problematização dessa necessi­
dade. Por exemplo, a problemática da violência na escola
poderá ser indagada sobre o ponto de vista das políticas
do Estado, da administração, dos professores, dos alunos,

4 A revisão bibliográfica e o mapeamento de termos que ajudarão na escolha e fun­


damentação das palavras que irão compor os títulos, os resumos e as palavras-
-chave.

C a p ítu lo 2 . A c o n s tr u ç ã o d a s p e rg u n ta s
dos pais ou da vizinhança. Essas indagações diversas tam­
bém podem expressar, além de diferentes pontos de vista
dos sujeitos, diversas dimensões do problema (econômica,
social, política, cultural, educacional, psicológica, peda­
gógica, administrativa etc.).
Listar essas diversas indagações é uma estratégia que
ajuda a criar uma visão ampla da problemática e facilita
a elaboração e reelaboração de um quadro de questões
mais completo. Com base nesse listado de múltiplas inda­
gações, poderão ser selecionadas as mais pertinentes, as
mais bem-elaboradas, com maior clareza e concretude e
formar um quadro de questões qualificadas que traduza
a problemática abordada pela pesquisa e que oriente as
buscas e o processo de elaboração das respostas.
A seleção das questões qualificadas dever-se-á pautar
pela busca da unidade que irá focar e centralizar esforços,
daí a pertinência de uma pergunta-síntese que articule o
quadro de questões. Esse nível de articulação e de quali­
ficação permitirá um maior domínio racional do proble­
ma quando este é traduzido na forma de uma pergunta
concreta, construída na forma de síntese pela articulação
lógica de diversas questões e indagações, e elaborada no
processo de problematização da necessidade.
Um erro muito comum nos projetos de pesquisa con­
siste em juntar muitas questões desconexas ou referidas de
forma desarticulada às várias dimensões do problema. Pa­
ra solucionar essa dificuldade, recomenda-se que as ques­
tões sejam articuladas em torno de uma pergunta-síntese
ou de uma questão básica. O quadro a seguir ilustra essa
sequência.

10 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
Problema Indagações Quadro de Pergunta
questões:
Situaçào-problema Múltiplas questão 1
indagações questão 2 pergunta-síntese
questão 3 —► ou questão
questão 4 prática
questão
5....6...1...

Fonte: elaboração do autor.

O delineamento desse trajeto, entre a necessidade e a


pergunta-síntese, deverá ser considerado na primeira fase
do projeto.
Uma vez elaborada a pergunta-síntese ou questão bá­
sica que deverá conduzir a pesquisa, o projeto deve prever
os processos da elaboração da resposta, objeto do próxi­
mo capítulo.

C a p ítu lo 2 . A c o n s tr u ç ã o d a s p e rg u n ta s
Capítulo 3
A elaboração das respostas

Nos capítulos anteriores, já foram anunciadas algu­


mas possibilidades das respostas. No capítulo 1, na expo­
sição dos pressupostos da relação dialética entre perguntas
e respostas, se anuncia que a possibilidade da resposta de­
pende de uma pergunta clara, distinta e concreta sobre
um fenômeno ou objeto que está na presença do sujeito
indagador no mesmo espaço, tempo e em um movimen­
to de relação (aproximação) entre esses dois elementos.
De igual forma, anuncia-se que a qualidade da pergunta
não depende dela, e sim da plausibilidade e das condições
das respostas, sua fase contrária. Essa dialética também se
mantém na fase da previsão da resposta. É preciso, como
foi exposto no capítulo anterior, que a pergunta chegue a
sua fase mais desenvolvida, ao patamar de qualidade que
expresse de forma clara, distinta e concreta o processo de
transformar a necessidade em problema e traduza o pro­
cesso de problematização e de síntese que envolve a elabo­
ração de múltiplas indagações e a seleção das questões que
orientam a pesquisa. Somente nesse patamar de qualifica­
ção que o processo de construção das respostas é plausí­
vel. En tretanto, n ão se trata de procedim en tos m ecân icos,
um depois d o outro. Por força da m esm a d ialética, p a ra
constituir esse p a tam ar de q u alid ad e, foi p reciso retom ar
elem entos da fase co n trária, neste ca so , as resp o stas já ela­
b o rad as sobre essas questões, en con trad as na revisão de
literatura e nos antecedentes da p esq u isa, p a ra constatar,
nos saberes acu m u lad os, a p o ssib ilid ad e de falsear ou de
confirm ar o problem a.
N o capítulo 1 apresen ta-se, tam bém , o p ressu p o sto
que se refere ao lugar no qual se p o d erão encon trar as res­
p o stas: “ as resp o sta s se encon tram no m esm o lu gar e co n ­
texto onde se origin am as p e rg u n tas” . A episteme an tiga,
co m o a ciência m odern a, se caracteriza pela bu sca co n ­
creta de resp o stas nos p ró p rio s o b jetos e n ão fo ra deles
ou d as su as con dições concretas. E ssa s co n dições, exp res­
sas n as catego rias de esp aço , tem po e m ovim ento, supõem
um cen ário no qu al se estabelece a relação concreta entre
o sujeito in d agad o r e o objeto in d a g ad o , e as m ediações
possíveis entre eles, exp licitad as n os procedim en tos a se­
rem realizad os p a ra que a p ro d u ção d a s resp o sta s seja g a ­
ran tida.
T am bém no capítu lo 1 e n a parte final do capítu lo 2 se
afirm a a plau sibilid ad e e a p o ssib ilid ad e de que to d a per­
gun ta que consegue o p a tam ar de qu alid ad e de ser clara,
concreta e distin ta m erece su a resp o sta. Isto é, “ existem
resp o stas p ara to d a s as p erg u n tas” . O s lugares m ais co ­
m uns em que se encontram to d a s as resp o sta s p ossíveis
estão no m undo d o s saberes, sejam eles oriu n d o s do sen­
so com um ou op in ativo , sejam eles d a ra zã o m ítica ou
d o s saberes sistem atizad o s pela ciência e pela filosofia. En-
trem entes, os p ro jeto s de p esq u isa visam p rod u zir novos
conhecim entos ou n ovas rep o stas. O q u a d ro a seguir v isu ­
aliza essas p o ssib ilid ad es.

114 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


AS RESPO STA S

Saberes ’ \f?

.^Conhecimentos
. • - m -
4
(respostas já elaboradas) . ' (novas respostas)
- .. .

• Respostas prontas “já • Respostas novas a serem


dadas”. produzidas.
• Para pseudoproblemas. • Para problemas concretos.
• Para perguntas simples. • Para perguntas complexas.
• Saberes sem explicitação do • Elaboração sistemática
método: de respostas concretas,
- Razão mítica (mitus). atendendo pressupostos
- Senso comum (doxa). e princípios do método
• Saberes sistematizados com geométrico.
explicitação do método: • Conhecimento como
• Ciência (episteme). resultado da relação
concreta (no espaço, tempo e
• Filosofia (sofia).
movimento) de:
Os saberes a serem “problema-
Sujeitos (res cogitans) concretos.
tizados” e processados através
da “dúvida metódica” sobre Objetos (res extensa) concretos.
sua pertinência para responder Respostas novas a serem
aos problemas concretos. validadas publicamente.

Fonte: elaboração do autor.

O mesmo entendimento da relação dialética entre per­


guntas e respostas, tidas como polos opostos da mesma
dinâmica do conhecimento, também serve para diferen­
ciar os dois momentos das respostas, como já elaboradas
(saberes) ou a serem produzidas pela pesquisa, como res­
postas novas (conhecimento).

Os saberes e os conhecimentos se situam de forma


oposta e contraditória, no mesmo processo. Enquanto
o conhecimento se refere à parte dinâmica e ao pro-

C a p ítu lo 3. A e la b o r a ç ã o d a s r e sp o sta s
cesso de qualificar perguntas e produzir as respostas
novas, os saberes se referem ao produto, à resposta
elaborada, fechada, empacotada, sistematizada para
ser distribuída, divulgada e consumida. Nesse sentido,
conhecimento e saberes, embora contrários na funcio­
nalidade, estão juntos na dinâmica dialética entre per­
guntas e respostas sobre um determinado fenômeno,
ou objeto. (Sánchez Gamboa, 2009, p. 13).

A produção de conhecimento implica um processo di­


nâmico de geração de conteúdos que, uma vez elaborados,
são acumulados pela humanidade e amplamente transmi­
tidos e disseminados na forma de saberes. Os saberes se
apresentam como respostas, separadas das suas perguntas
originárias, ou como produtos separados dos processos de
produção. Nesse sentido, os saberes são respostas ou pro­
dutos que não revelam sua relação imediata com as pergun­
tas e os processos originários da sua elaboração. Os saberes
são divulgados como informações por meio dos sistemas
informatizados, livros, materiais didáticos e conteúdos cur­
riculares. Na conjuntura atual da chamada sociedade da
informação, apresenta-se uma multiplicidade de dados, de
registros e de informações que invadem o cotidiano, dan­
do a sensação de que “já existem respostas para todas as
perguntas” , cabendo a nós apenas acessar as redes de in­
formação para consumir as respostas. Essa facilidade pro­
duz a sensação de hegemonia do mundo das respostas e de
inutilidade da procura de improváveis novas respostas, ou
a perda de tempo na recuperação dos problemas e das per­
guntas que deram origem a tanta informação disponível1.
No processo da elaboração dos projetos de pesquisa,
a relação entre os saberes e a necessidade de um conheci­

1 A figura exposta no final deste capítulo ilustra melhor essa hegemonia das res­
postas, quando a interlocução entre os pesquisadores (orientador e orientando)
anuncia: “ temos todas as respostas, mas qual é mesmo a pergunta?”

116 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
mento novo ganha outra dinâmica. A revisão de literatura
e a recuperação dos antecedentes da investigação visua­
lizam resultados que, dada a proximidade com a proble­
mática central do projeto, se tornam necessárias para o
desenvolvimento do projeto. Todas as respostas ofereci­
das pelos saberes devem ser ponderadas, à medida que
elas podem revelar a problemática que gerou as pergun­
tas que pretendem responder. Nessa recuperação, poderão
ser desvendados, além dos resultados, também os procedi­
mentos e estratégias de pesquisa, ou simplesmente, a par­
tir dos resultados obtidos, gerar novos projetos quando
são problematizadas as respostas encontradas e são trans­
formadas em hipóteses para serem comprovadas com as
novas pesquisas. Nesse sentido, o conhecimento novo se
constitui a partir do conhecimento elaborado. A suspeita,
a dúvida e a problematização são as estratégias que levam
a relativizar os resultados, considerando os limites dos
contextos de origem, e a mostrar as possibilidades da ge­
ração de novos processos de produção de conhecimentos.
Considerando os pressupostos anteriores e a neces­
sidade da operacionalização dos procedimentos a serem
considerados na elaboração dos projetos, cabe, a seguir,
apresentar os elementos básicos dessa empreitada.
Em primeiro lugar, é fundamental assegurar a mate­
rialidade das condições da relação básica entre o sujeito
concreto que pergunta e um objeto que responde. Essa
relação se situa em um cenário também concreto, deter­
minado pelas categorias de espaço, tempo e movimento,
como já foi explicitado acima. As definições técnicas e as
diferenças entre os termos “ conhecer” e “ saber” confir­
mam essa necessidade, no caso do conhecimento, da pre­
sença direta e imediata do sujeito e o objeto em um mesmo
cenário. O quadro a seguir ilustra essas diferenças.

C a p ítu lo 3. A e la b o r a ç ã o d a s r e sp o sta s
Distinção entre “ conhecer” um objeto
e “ saber” algo em tomo do objeto

Segun do R ussell (1955, p. 41 ap u d A b b a g n an o , 1970,


p. 8 3 2 ): “ A d istin ção entre experiên cia direta (acquain-
tance) e conhecim ento acerca de (knowledge about) é a
d istin ção entre as c o isa s que n os estão im ediatam ente
presentes e as que n ós alcan çam o s som ente p o r m eio
de frases d en o tativ a s.”
O conhecimento, segu n do A b b a gn an o (1970, p. 160),
refere-se a procedim en tos p a ra a verificação de um o b ­
jeto qualquer, verificação que torn a possível a descri­
ç ão , o cálculo o u a prev isão con trolável de um o bjeto.
A qui, entende-se p o r o b jeto q u alqu er entidade, fato ,
co isa, realidade o u p ro p ried ad e que p o ssa ser subm eti­
d o a tal procedim en to.
Isso supõe um a relação im ediata ou p ró xim a entre o su ­
jeito conhecedor e o objeto a ser conhecido. O conheci­
m ento exige a relação im ediata do objeto e o sujeito na
m esm a dim ensão espaço-tem poral, p ara perm itir a ve­
rificação; já os saberes com unicam através de frases de­
notativas inform ações sobre o objeto sem precisar dessa
presença verificadora.

Fonte: elaboração do autor.

A m aterialid ad e d essa presença direta e im ediata em


um cen ário concreto é a g aran tia da plau sibilid ad e do
conhecim ento e da p o ssibilidade de prever, na fase d o )
projeto^ os procedim en tos a serem desen volvidos. Êsses
procedim en tos devem articular o instrum ental técnico-
-m etodológico a ser utilizado e os referenciais teóricos que
d arão suporte à com preen são do objeto. O q u ad ro a se­
guir visu aliza esse cenário de p o ssib ilid ad es.
118 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
E L A B O R A Ç Ã O D A R ESPO STA
P R O C E D IM E N T O S E P R E S S U P O S T O S

B a se s m eto d o ló g icas e teóricas

• B ases m e to d o ló g icas: m ed iaçõ es d a rela ção entre o


su jeito e o o b jeto entre a p erg u n ta e a resp o sta .

P revisão de:
a) fon tes;
b) in stru m en tos de co leta de in fo rm açõ es e d a d o s;
c) técn icas de tratam en to s de d a d o s e in fo rm açõ es;
d) o rg an iz a ç ã o e siste m atiza ção de re su ltad o s;
e) hipóteses (resp o stas p arciais p ro visó rias que orien­
tam a coleta e a o rg an ização de resultados).

• B ases teóricas: delineam ento d o horizonte d a an áli­


se e d a in terpretação.

E n un ciado de:
a) m arco s d a lo calização d o p ro cesso d a p esq u isa
em u m a área de conhecim ento o u cam p o científico;
b) critérios e ca teg o rias de an álise;
c) referências p a ra discutir resu ltad o s;
d) horizonte d a in terpretação d a resp o sta.

Fonte: elaboração do autor.

O projeto deverá prever a forma de obtenção das


respostas para o problema concreto a ser pesquisado ou
diagnosticado. Essa forma de prever ou projetar a manei­
ra da construção das respostas se conhece como “ bases
teórico-metodológicas do projeto” e contém tópicos rela­
tivos à instrumentalização do processo e à organização e
interpretação de resultados.

Capítulo 3. A elaboração das respostas


Tais tópicos, na sua sequência lógica, consistem em:

a) a definição de fontes em que poderemos obter infor­


mações para a elaboração das respostas pertinentes
ao quadro de questões e à pergunta-síntese;
b) a seleção de instrumentos, materiais, técnicas para
coletar, organizar e sistematizar as informações ne­
cessárias à construção das respostas;
c) a explicitação de hipóteses (respostas esperadas) ou
dos possíveis resultados da pesquisa que poderão
orientar as diversas estratégias da organização das
respostas;
d) a definição de um quadro de referências teóricas que
fornecem as categorias para analisar as respostas e in­
terpretar os resultados. Esse quadro ajuda a localizar
o projeto em um campo epistemológico específico ou
no contexto de uma área do conhecimento;
e) a previsão de condição para a realização do projeto
(indicadores da viabilidade técnica).

Vejamos a seguir algumas especificações dessa fase e


um quadro ilustrativo que resume esses tópicos relativos à
previsão da construção das respostas.
Previsão da resposta ou metodologia do projeto

Previsão de:
a) fontes: bibliográficas, documentares, testemunhais
(vivas), observação direta, observação participante,
experimentais, modelos (iconográficos, ciberespa-
ciais, metafóricos).
b) instrumentos de coleta de informações e dados:
fichas, questionários, entrevistas, diários de cam­
po, gravador, vídeo, tabelas de registro, materiais
e instrumentos, equipamentos, protocolos, quadro
de medidas e parâmetros, modelos informatizados,
modelos metafóricos, paradigmas.
c) técnicas de tratamentos de dados e informações:
quantitativas (estatísticas, computacionais) e quali­
tativas (análise de conteúdo, interpretação e cons­
trução do discurso).
d) organização e sistematização de resultados. Esque­
mas, tabelas, índices, fórmulas, teoremas, proposi­
ções, silogismos, argumentações.
e) hipóteses (respostas parciais provisórias que orien­
tam a coleta e a organização de resultados).

Fonte: elaboração do autor.

A metodologia do projeto se refere basicamente à


previsão das fontes em que o pesquisador poderá obter
informações para elaborar a resposta2. A definição, em

2 As fontes poderão ser definidas pelo esgotamento de alternativas, se pergun­


tando sobre a insuficiência das respostas que o próprio pesquisador possui (to­
mando a própria experiência como fonte), ou das respostas encontradas nos

Capítulo 3. A elaboração das respostas


primeiro lugar, desse procedimento deve obedecer a cri­
térios de proximidade e viabilidade técnica com relação
ao objeto de estudo. Dentre as alternativas, a observação
direta poderá ser a prioritária, entretanto, não ser tecni­
camente viável quando o objeto está distante no tempo e
no espaço, como é o caso de um acontecimento histórico.
Neste caso, outras fontes, como as documentais, seriam
as mais apropriadas. A alternativa poderá ser a fonte tes­
temunhai, ou a fonte viva de sujeitos que presenciaram o
acontecimento, ou, em forma distante, fontes bibliográ­
ficas, relatos jornalísticos etc. De igual forma, para abor­
dar um problema de contaminação ambiental e identificar
vírus ou micro-organismos vinculados à degradação do
meio ambiente, a observação direta, a fonte testemunhai
e o documento histórico também se tornam fontes menos
apropriadas com relação a uma fonte experimental que
registra a evolução desses micro-organismos. Os enge­
nheiros e os arquitetos que buscam solucionar problemas
de resistência de materiais ou de distribuição de espaços,
certamente, irão privilegiar fontes modelares (projeções)
ou iconográficas (maquetes), que poderão responder suas
indagações e desconsiderar os depoimentos de pessoas, os
registros bibliográficos e a observação direta.
Outras fontes que anunciamos, embora não desen­
volvamos nesta publicação já que seu objetivo é abor­
dar apenas os fundamentos lógicos, são: bibliográficas,
documentares, vivas ou testemunhais, observação direta,

sistemas de informação (insuficiência dos resultados encontrados nas buscas


informatizadas ou bibliográficas). Aliás, se as respostas que o pesquisador pos­
sui e que a literatura oferece são satisfatórias, não tem sentido procurar novas
fontes. Quando isso não acontece, deve-se perguntar: “ quais as formas como o
objeto revela seus segredos?” “ Como obter informações e dados confiáveis so­
bre esse objeto para elaborar as respostas às questões que orientam as buscas?”
“ Que fontes oferecem dados e informações sobre os objetos a serem privilegia­
das na pesquisa?”

122 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


observação participante, experimentais, modelares (ico­
nográficos, ciberespaciais, metafóricos).
Uma vez definida a fonte mais próxima do objeto e
mais viável tecnicamente, então, cabe prever os instrumen­
tos e as técnicas para coletar e organizar as informações.
É bastante comum encontrar nos projetos de pesqui­
sa encaminhados às agências de fomento, nos itens rela­
tivos à metodologia, apenas o anúncio dos instrumentos
de coleta de dados a serem utilizados, tais como: ques­
tionários, entrevistas, roteiros de observação; sem definir
previamente o tipo de fonte. Entende-se que a escolha da
fonte é anterior à indicação das técnicas ou instrumen­
tos de coleta e sistematização de dados. Em outros casos,
anuncia-se e caracteriza-se a pesquisa pelo tipo de técnica
de tratamentos dos dados, utilizando expressões como “ a
metodologia a ser utilizada é a quantitativa” ou “ esta pes­
quisa é de caráter quantitativo” . Nesses casos genéricos,
são ignorados os elementos básicos da metodologia, como
é a prévia definição de fontes e de instrumentos de coleta
de informações, que justificam a escolha e a pertinência
de técnicas estatísticas ou de análise de conteúdo para a
posterior organização e análise dos dados e informações.
Dependendo das fontes, algumas técnicas e instru­
mentos são mais apropriados, tais como fichamentos,
questionários, entrevistas, diários de campo, gravador,
vídeo, tabelas de registro, materiais e instrumentos equi­
pamentos, protocolos, quadro de medidas e parâmetros,
modelos informatizados. Na sequência lógica, serão pre­
vistas as técnicas de tratamentos de dados e informações:
quantitativas (estatísticas, computacionais), qualitativas
(análise de conteúdo, interpretação e análise do discurso),
assim como as técnicas de organização e sistematização de

Capítulo 3. A elaboração das respostas


resultados, tais como esquemas, tabelas, índices, fórmu­
las, teoremas, proposições, silogismos, argumentações.
Dentre as bases metodológicas, também são consideradas
as hipóteses (respostas parciais provisórias) que servem de
estratégia que, no caso de grande volume de dados ou de
respostas polêmicas, poderão orientar a coleta e a organi­
zação de resultados.
Junto com a metodologia, o projeto deve indicar as
bases teóricas que se referem às categorias de análise e aos
referenciais a serem utilizados para a interpretação e dis­
cussão dos resultados. Esse corpo de conceitos-chave ou
de categorias que referenciam a compreensão da lingua­
gem utilizada para denominar e delimitar fatores empíri­
cos diz respeito:

a) à definição do campo disciplinar ou interdisciplinar


que dá suporte e lastro para a compreensão do proble­
ma3;
b) à definição de palavras-chave (definição de termos bási­
cos, inclusive os utilizados no título do projeto);
c) às categorias de análise (conceitos que identificam o fe­
nômeno, o objeto, o evento, o fato e as partes que o
constituem, constructos e/ou definição de variáveis);
d) à articulação de categorias (quadro de categorias, sis­
temas de referências, campo conceptual);
e) à apropriação e/ou à elaboração de teorias e referên­
cias para discutir resultados;

.3 No caso brasileiro, alguns editais e orientações das agências de fontento sugerem


a utilização da classificação das áreas de conhecimento, organizados pela Fun­
dação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
Disponível em: <http://www.capcs.gov.br/avaliacao/tabela-de-areas-de-conheci-
mento>. Acesso em: 7 mar. 2013.

124 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
f) ao paradigma epistemológico, e às visões de ciência e
de mundo que constituem o horizonte interpretativo
dos resultados, quando o nível de aprofundamento e
qualificação da pesquisa assim exigir.

A base teórica da pesquisa que resulta na escolha dos


elementos acima elencados, nos limites de um projeto de
pesquisa (em média vinte páginas), não permite uma ex­
posição ampla de categorias, concepções e autores. Neste
caso, é sugerido anunciar de forma sucinta os conceitos-
-chave que envolvem a problematização, a escolha dos tí­
tulos, os campos disciplinares e indicar as obras e autores
que irão dar suporte nas várias facetas da compreensão do
objeto ou fenômeno que está sendo estudado, utilizando,
além das referências diretas, um anexo com a bibliografia
e as referências das publicações e autores que serão con­
sultados e apropriados no percurso da pesquisa.
Finalmente, neste capítulo sobre as respostas, vale a
pena destacar a relativa hegemonia do mundo das respos­
tas. A próxima figura ilustra bem essa situação4.

4 Charge sobre a relação entre as perguntas e as respostas, de autoria de Claudius,


publicada na revista Pesquisa, do Fundo de Apoio à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp).

C a p ítu lo 3 . A e la b o r a ç ã o d a s r e s p o s ta s 12í
C l AI IIR S

126 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
Certamente, uma das maiores dificuldades que os pes­
quisadores encontram na hora de elaborar seus projetos
está na elaboração das indagações, as questões e as per­
guntas. Os sistemas de comunicação invadem de tal forma
o cotidiano, oferecendo e impondo informações, dados,
notícias, respostas para perguntas, que não conseguimos
fazê-las.
Os sistemas escolares privilegiam as pedagogias da
resposta, oferecendo conteúdos a serem assimilados sem
dar espaço para a dúvida e a indagação.
Mesmo nos laboratórios e grupos de pesquisa, os in­
vestigadores se deparam com um universo de informações
que a ilustração acima registra: o paradoxo da abundân­
cia das respostas e a escassez de perguntas, em que deveria
acontecer o contrário. Pesquisar é sinônimo de perguntar.
O mundo das respostas, representado em apostilas, livros,
periódicos, revistas, terminais de computadores, redes de
informação, afoga literalmente os pesquisadores que ten­
tam sobreviver procurando uma pergunta. Pergunta que é
a essência de seus projetos de investigação.
Essa é uma possível situação do pesquisador que dia­
loga com seus pares em um tom de desconforto: “Temos
todas as respostas... Qual é a pergunta?”

Capítulo 3. A elaboração das respostas


Capítulo 4
A apresentação dos projetos
de pesquisa: a forma
da exposição

Depois de organizar os conteúdos relativos à necessi­


dade histórica do conhecimento científico (capítulo 1 ) e
de apontar o mundo da necessidade como a base concreta
que deveria dar origem aos projetos, sua racionalização
na forma de problema e sua correspondente tradução na
forma de indagações, questões e perguntas (capítulo 2 ),
e, ainda, depois de ter previsto as condições e maneiras
de elaborar as respostas e organizar a interpretação, os
resultados (capítulo 3), veremos, a seguir, as formas da
apresentação desses conteúdos. Essa fase final também
obedece a critérios de fundamentação lógica.
Retomamos as conceptualizações acerca do método
entendido como uma concatenação de atos. Como já vi­
mos nos capítulos anteriores, o método em si mesmo não
tem independência, já que condiz a uma relação entre um
lugar ou ponto de partida e um segundo lugar, ou ponto
de chegada. E no caso do conhecimento, diz respeito à
relação entre o sujeito que pergunta e o objeto que res­
ponde1. Dependendo do lugar, do sujeito e do objeto, o
percurso entre eles é mais longo ou curto, mais direto ou
com mais atalhos e “ d e t o u r s De qualquer maneira, o
método é uma sequência de ações práticas.

Igual as outras atividades práticas, o método aparece


e se desenvolve primeiro como prática e depois (so­
mente a posteriori) é que resulta numa possível teoria
sobre o método, primeiro a metódica e depois a meto­
dologia. (Nunez Tenorio, 1989, 47, tradução nossa).

De acordo com essa perspectiva, o método se rela­


ciona com a ciência como prática e com a filosofia co­
mo teoria. A história das práticas científicas foi dando a
determinadas sequências de atos seu caráter científico e
contribuindo para consolidar a reflexão sobre os métodos
(metodologia). Em razão dessa reflexão, foram constituin-
do-se vários campos de estudos relacionados com o desen­
volvimento dos métodos nas ciências e na Filosofia.

Justamente por isso, a consolidação e progresso da me­


todologia científica esteve e continuará estando ligada
ao crescimento das ciências particulares (em quaisquer
dos seus domínios) e ao desenvolvimento dos temas
lógicos, gnosiológicos e epistemológicos da filosofia.
(Nunez Tenorio, 1989, p. 38, tradução nossa).

Com base na perspectiva filosófica e, particularmente,


da lógica, o método pode desdobrar-se em duas fases ou
formas: a da pesquisa e a da exposição, as duas se relacio­
nando em uma unidade de contrários.
A necessidade dessa unidade já era anunciada por
Aristóteles: “ Toda ciência se produz num sistema simbó­

1 O método em si mesmo se refere à ação ou prática ou, apesar do método ser uma
prática, uma análise posterior sobre essa prática e esses procedimentos, sendo
possível que a maioria deles obedeça a uma lógica e a pressupostos teóricos que
constituem sua estrutura. Essa teoria a respeito do método é a metodologia.

130 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
lico formal e a ciência deve ser exprimível e transmissível
pelo ensino.” (Granger, 1994, p. 51). Na filosofia aristo-
télica, a unidade se manifesta na relação da matéria e da
forma (hilemorfismo), visto que a matéria ou conteúdo
pertencia à ontologia e a forma à lógica, que cuida das
regras de concatenação dos símbolos.
Essa lógica, como vimos na introdução, tem duas di­
mensões complementares: a dialética, que cuida das regras
do pensamento e do conteúdo; e a forma, que aborda a
relação entre pensamento e linguagem ou a forma da ex­
posição dos conteúdos.
Essas duas dimensões da lógica se articulam à medida
que uma se refere à maneira como organizamos nossos
pensamentos para, em um segundo momento, expô-los
por meio das palavras. Não podemos expor resultados de
uma pesquisa antes de organizar a pesquisa, de igual ma­
neira que aprender a pesquisar não consiste, como expõe
a maioria dos manuais de metodologias do trabalho cien­
tífico, em saber elaborar uma boa exposição, consideran­
do regras, técnicas de organizar um texto em sumários e
tabelas, apresentação de bibliografias, elaboração de no­
tas de rodapés. Antes disso, é preciso aprender a pesqui­
sar. Isto é, a utilizar a lógica que dinamiza a relação entre
perguntas e respostas.
Infelizmente, quando se pensa em formar o pesquisa­
dor com base na sequência em que tem prioridade o mé­
todo de pesquisa, encontramos a deficiência, já apontada
por Barbosa (2007), nos manuais de trabalho científico
em que predomina o método de exposição. Isto é, pre­
dominam informações sobre as formas de organizar um
texto, monografias, dissertações, teses e relatórios de pes­
quisa e contêm raríssimas indicações sobre como se rea­
liza a pesquisa. Nesta publicação, tentamos reverter essa

C a p ít u lo 4 . A a p r e s e n ta ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o
prioridade, dando ênfase à lógica que fundamenta o mé­
todo de pesquisa, sem deixar de anunciar alguns detalhes
sobre o método de exposição, considerando as exigências
das agências de fomento (CNPq, Fapesp etc.).
Justifica-se a articulação desses dois momentos e, por
consequência, deste último capítulo, na compreensão so­
bre o método científico, elaborada pelo materialismo dialé­
tico2. Segundo a dialética materialista, o método científico
é integrado por dois processos: o investigativo e o exposi-
tivo. São duas faces que estão relacionadas dialeticamente.
Toda investigação implica uma exposição e, inversamente,
todo discurso científico é de uma pesquisa. Toda descober­
ta precisa ser exposta, racionalizada, comunicada. E uma
exposição supostamente científica que não se fundamenta
em uma pesquisa também não tem valor. Assim,

[...] o método científico como a prática da pesquisa cien­


tífica, ou a prática do cientista no processo de produção
de novos conhecimentos, inclui dois momentos comple-
mentários: um investigativo e outro expositivo. (Nunez
Tenorio, 1989, p. 43, tradução nossa).

Esses dois momentos precisam ser diferenciados e se­


guem uma sequência, segundo anuncia Marx.

É sem dúvida necessário distinguir o método de expo­


sição, formalmente, do método de pesquisa. A pesqui­
sa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar
as suas várias formas de evolução e rastrear sua co­
nexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho
é que se pode expor adequadamente o movimento
do real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmen­

2 Essa separação entre ontologia e lógica é unificada por Hegel para quem a lógica
integra a ontologia e a gnosiologia, e para Marx essa unidade está na dialética
materialista que integra lógica, gnosiologia e metodologia (Cf. Kopnin: A dialé­
tica como lógica e teoria do conhecimento-, Kosik: A dialética do Concreto).

132 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
te agora a vida da matéria, talvez possa aparecer que
se esteja tratando de uma construção, a priori. (Marx,
1968, p. 20).

Frigotto (2002) comenta essa compreensão de Marx,


afirmando que não é fortuita a distinção, ainda que formal,
que Marx faz entre método de investigação e de exposi­
ção. É na pesquisa que o pesquisador tem de recuperar a
“matéria” em suas múltiplas inter-relações; apreender o es­
pecífico, o singular, a parte e seus tecidos com a totalidade
mais ampla; as contradições e os elementos estruturantes
do fenômeno pesquisado. A exposição busca ordenar de
forma lógica e coerente a apreensão que se fez dessa reali­
dade estudada. É, sem dúvida, necessário distinguir o mé­
todo de exposição, formalmente, do método de pesquisa. A
pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar
as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão
íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode
expor adequadamente o movimento do real.
Na fase da pesquisa, o fundamental é produzir o novo
conhecimento e gerar conteúdos que são textualizados no
discurso. Dessa maneira, a descoberta e a pesquisa funcio­
nam como conteúdo, enquanto a forma aparece no discurso
e na exposição. Entre uma e outra se articula uma relação
dialética. São duas fases ou duas etapas inseparáveis de um
mesmo processo: o da prática científica como método.
Nos capítulos anteriores, anunciamos o processo de
pensar a pesquisa de prever a constituição dos conteúdos
quando tomamos como base a relação entre a pergunta e a
resposta e dedicamos um capítulo às sequências das ações
para a elaboração das perguntas e a previsão da constru­
ção das respostas. Assim, este capítulo que complementa
os anteriores será dedicado à fase da exposição, já que,
uma vez pensados, os elementos constitutivos do projeto
C a p ít u lo 4 . A a p r e s e n t a ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o
precisam ser comunicados ou textualizados utilizando a
forma da exposição.
Para tanto, tomaremos como referências tanto a expe­
riência acumulada pela prática científica quanto as orienta­
ções de algumas das mais importantes agências de fomento
à pesquisa, que solicitam o preenchimento de formalidades
na hora de submeter os projetos para a sua avaliação.
Em primeiro lugar, na hora de organizar a exposição,
tida como a fase final do projeto, é importante ter em mãos
os materiais conseguidos na fase de pensar o projeto. O
que expor depende desse acúmulo de materiais relaciona­
dos com a construção da pergunta e a previsão da resposta.
Nesse sentido, só é possível expor o que antes foi pensado3.
Daí a importância de recuperar, em primeiro lugar, os ele­
mentos necessários para a elaboração do projeto e, uma vez
“postos sobre a mesa” , organizar a sua apresentação.
Na fase da exposição, é fundamental atender às for­
malidades, às exigências técnicas, aos critérios de rigor
do trabalho científico (normas técnicas, ABNT) e às re­
comendações das agências de fomento, dos editais ou dos
programas e/ou orientadores que aceitam ou financiam o
projeto. Neste caso, o método de exposição deve consi­
derar as condições dos interlocutores, os níveis acadêmi­
cos exigidos e as formas de linguagem recomendadas. De
acordo com essas situações, um mesmo conteúdo pode
adquirir diversas formas de exposição. Em razão disso,
não se tem critério ou modelo de exposição dos projetos.
No entanto, se considerarmos a importância da lógica que

3 Pretender cuidar das formalidades ou dos esquemas de apresentação, sem antes


conferir o que será exposto, é um erro muito comum apresentado nos manuais
de trabalho científico, que indicam as maneiras de elaboração de sumários, es­
quemas, quadros, referências, citações, notas e, no entanto, não indicam como
se constrói uma problemática da pesquisa, nem discutem as características do
conhecimento científico e a lógica que o sustenta.

134 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
fundamenta a produção do conhecimento, esta também
deverá pautar a exposição, espelhando os conteúdos re­
lativos aos dois momentos da construção dos projetos: a
problematização da necessidade, expressa em questões e
perguntas; e a previsão das respostas.
Com base nesse pressuposto, a apresentação dos proje­
tos de pesquisa deve conter as seguintes partes básicas:

a) a exposição da necessidade, do problema, das ques­


tões e das perguntas;
b) a metodologia a ser utilizadas para a elaboração das
respostas.

Além dessas partes básicas, outros elementos relativos à


formalidade e aos protocolos de comunicação poderão ser
considerados. Tais elementos adicionais são: justificativa do
projeto; relevância social, científica ou acadêmica da pes­
quisa; objetivos gerais e específicos; quadro de referências
teóricas que fornecem as categorias para analisar as respos­
tas e interpretar os resultados (indicando em anexo as re­
ferências e bibliografias a serem consultadas). Esse quadro
ajudará a localizar o projeto no contexto de uma área do
conhecimento e no lastro da formação de um campo cien­
tífico. Além desses elementos, podem complementar a ex­
posição indicadores da viabilidade técnica do projeto. Esse
último item deve ser atendido quando as agências financia­
doras exigem a correspondência com um projeto financeiro
(orçamento) que seja justificado na descrição das condições
institucionais da pesquisa e a viabilidade técnica do desen­
volvimento da pesquisa de acordo com o cronograma e os
recursos solicitados4.

4 Algumas agências de fomento discriminam dois tipos de projetos articulados


entre si: projeto técnico, relativo à organização da pesquisa; e projeto financei­
ro, relativo aos recursos e cronogramas necessários para seu desenvolvimento.

C a p ít u lo 4 . A a p r e s e n ta ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o
O projeto poderá considerar, também, além da viabi­
lidade técnica, os impactos e resultados esperados ou as
hipóteses de trabalho que orientam a busca de informações
para elaborar as respostas. As hipóteses são consideradas
como respostas parciais ou provisórias que orientam a pes­
quisa e que, uma vez confirmadas, se transformam nas res­
postas buscadas ou nas teses a serem confirmadas.
Além dos conteúdos acima indicados, a exposição do
projeto poderá conter alguns anexos, tais como crono-
grama de realização, que define quando desenvolver cada
etapa da pesquisa, orçamentos e listado de recursos ne­
cessários ao desenvolvimento do projeto, os modelos de
instrumentos e os levantamentos prévios, que mostram os
graus de aproximação que o pesquisador tem com o pro­
blema que está sendo pesquisado.
Na tentativa de articulação desses elementos sugeri­
dos, podemos indicar alguns exemplos de apresentação de
projetos.
Em primeiro lugar, referimo-nos às orientações da Fun­
dação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo (Fa-
pesp), no caso do Programa Auxílio à Pesquisa - Regular.

1) Folhas de rosto (duas, sendo uma em português e outra


em inglês) contendo título do projeto de pesquisa pro­
posto, nome do Pesquisador Responsável, Instituição
Sede e resumo de 20 linhas.
2) Enunciado do problema: qual será o problema tratado
pelo projeto e qual sua importância? Qual será a con­
tribuição para a área se bem sucedido? Cite trabalhos
relevantes na área, conforme necessário.
3) Resultados esperados: o que será criado ou produzido
como resultado do projeto proposto?

136 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
4) Desafios científicos e tecnológicos e os meios e mé­
todos para superá-los: explicite os desafios científi­
cos e tecnológicos que o projeto se propõe a superar
para atingir os objetivos. Descreva com que meios e
métodos estes desafios poderão ser vencidos. Cite re­
ferências que ajudem os assessores que analisarão a
proposta a entenderem que os desafios mencionados
não foram ainda vencidos (ou ainda não foram ven­
cidos de forma adequada) e que poderão ser vencidos
com os métodos e meios da proposta em análise.
5) Cronograma: quando o projeto será completado?
Quais os eventos marcantes que poderão ser usados
para medir o progresso do projeto e quando estará
completo? Caso o projeto proposto seja parte de ou­
tro projeto maior já em andamento, estime os prazos
somente para o projeto proposto.
6 ) Disseminação e avaliação: como os resultados do pro­
jeto deverão ser avaliados e como serão disseminados?
7) Outros apoios: demonstre outros apoios ao projeto, se
houver, em forma de fundos, bens ou serviços, mas sem
incluir itens como uso de instalações da instituição que
já estão disponíveis. Note que os autores das propostas
selecionadas deverão apresentar carta oficial assinada
pelo dirigente da instituição, comprometendo os recur­
sos e bens adicionais descritos na proposta.
8) Bibliografia: liste as referências bibliográficas citadas
nas seções anteriores.
9) Plano de Trabalho para as Bolsas de Treinamento Téc­
nico solicitadas (este item e os seguintes não devem ser
incluídos na contagem de 2 0 páginas mencionada aci­
ma): para cada bolsa solicitada deverá ser apresentado,
com a proposta inicial, um Plano de Trabalho com até

C a p ít u lo 4 . A a p r e s e n t a ç ã o d o s p r o je to s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o ]
duas páginas, incluindo Título do Projeto de Bolsa, Re­
sumo e Descrição do Plano. Não é necessário indicar o
nome do bolsista na proposta. Caso o projeto seja apro­
vado, o Pesquisador Principal deverá providenciar pro­
cesso seletivo anunciado publicamente para selecionar
os bolsistas por mérito acadêmico.
10) Planilhas de orçamento e cronogramas físico-finan-
ceiros.5

No exemplo anterior, no qual se sugere uma forma


da exposição, exigem-se elementos formais, tais como as
folhas de rosto (1 ), dados complementares tais, cronogra­
mas (5), formas de avaliação e divulgação dos resultados
(6 ), apoios (7), bibliografia ( 8 ), planos de trabalhos de au­
xiliares de pesquisa (9) e planilhas de orçamentos (10).
Os elementos substanciais do projeto estão indicados
nos itens 2, 3 e 4: Enunciado do problema (2), destacan­
do, além da sua formulação, a relevância social e científi­
ca, a revisão de literatura e antecedentes que justifiquem
a problemática abordada e a possível contribuição para o
avanço do conhecimento; Resultados esperados (3), ou res­
postas ao problema; Desafios científicos e tecnológicos e os
meios e métodos para superá-los (4), explicitando objetivos
a serem atingidos, meios e métodos para obter as respostas.
Ainda nesse item devem explicitar os referenciais teórico-
-metodológicos que sustentem esses desafios e procedimen­
tos. Como podemos ver, nesses três itens são apresentadas
as partes essenciais do projeto: a problemática, da qual se
originam as perguntas que orientam a pesquisa; a sinaliza-

5 Planilhas disponíveis em: <www.fapesp.br/formularios/planilhas>. Uma vez


preenchidas, farão parte do Projeto de Pesquisa, como item 8, mesmo que a
submissão seja pelo sistema SAGe. Em qualquer caso, as planilhas deverão com­
por, com o “ Projeto de Pesquisa” , um único documento.

138 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
ção das respostas; e a explicitação e fundamentação da me­
diação teórico-metodológica (revelar o caminho).
Entendemos que, dessa forma, é possível atender as
exigências lógicas de acordo com os critérios da episteme
e do método geométrico: as de revelar os caminhos (impe­
rativo do método), e explicitar os nexos entre o ponto de
partida (as maneiras e condições da pergunta) e o ponto
de chegada (as formas e limites da resposta).
Outros modelos podem ser encontrados nos diver­
sos editais das agências de fomento e dos programas de
pós-graduação, muitos deles se resumem à apresentação
de um roteiro mínimo de carta de intenções de pesquisa,
outros exigem formulação do problema, a metodologia,
objetivos e resultados esperados. A Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT) oferece uma Norma sobre a
apresentação de Projetos de pesquisa (ABNT NBR 15287,
2005). Essa Norma estabelece os princípios gerais para a
apresentação de;

1) Elementos pré-textuais (capa, folha de rosto, lista de


tabelas, siglas e sumário);
2) Elementos textuais;

Os elementos textuais devem ser constituídos de


uma parte introdutória, na qual devem ser expos­
tos o tema do projeto, o problema a ser abordado,
a(s) hipótese(s), quando couber(em), bem como o(s)
objetivo(s) a ser(em) atingido(s) e a(s) justificativa(s).
E necessário que sejam indicados o referencial teórico
que o embasa, a metodologia a ser utilizada, assim
como os recursos e o cronograma necessários à sua
consecução. (ABNT, 2005, p. 3).

3) Elementos pós-textuais (referências, apêndices, anexos).

C a p ít u lo 4 . A a p r e s e n ta ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o 13
C o n sid eran d o esses exem p los e alg u m as sugestões
co n tid as n os m an u ais de p esq u isa, oferecem os, a m aneira
de síntese, o seguinte esquem a.

CAPA
(autor, título, local e data).

FO LH A DE R O STO
(autor, título, instituição, área, orientação, local e data).

SUM ÁRIO E ÍNDICES


(siglas, tabelas, figuras, quadros, anexos).

RESU M O S (vinte linhas)


Apresentando a problematização (situação-problema), as
questões principais, a previsão da metodologia (fontes, ins­
trumentos e técnicas de coleta e tratamento de informa­
ções), resultados esperados.

IN TR O D U Ç Ã O
Justificativa do estudo, relevância social, científica e acadê­
mica da pesquisa, objetivo geral, apresentação das partes
do projeto.

PRO BLEM A
Situação-problema (espaço, tempo, movimento), antece­
dentes (revisão bibliográfica), indicadores (estudos pre­
liminares), questões norteadoras, questão principal ou
pergunta-síntese.

(Continua)

140 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos


OBJETIVOS
Geral (relativos ao diagnóstico de um problema, fenômeno,
ou objeto, aos resultados da pesquisa) e específicos (rela­
tivos aos procedimentos, às metas e às fases da pesquisa).
Utilizar verbos ativos: caracterizar, descrever, analisar, com­
preender, diagnosticar, medir, dimensionar, tipificar, classi­
ficar, comparar, explicitar, revelar, sistematizar, interpretar,
relacionar. Evitar objetivos de intervenção pedagógica, ad­
ministrativa, extensiva (contribuir, propicia^ facilitar, pos­
sibilitar, favorecer etc.).

METODOLOGIA
Fontes, instrumentos, materiais, técnicas de sistematização
e organização de dados, informações e resultados, estraté­
gias, procedimentos e hipóteses de trabalho.

REFERENCIAL TEÓRICO
Recorte disciplinar, termos, conceitos e categorias, teorias,
perspectiva epistemológica.

RESULTADOS ESPERADOS
Hipóteses, teses a serem defendidas, contribuições possíveis.

VIABILIDADE TÉCNICA DO PROJETO


Acesso às fontes, recursos humanos, financiamentos, justifi­
cativa do apoio financeiro.

REFERÊNCIAS, BIBLIOGRAFIAS E LISTA DE FONTES

ANEXOS
Cronograma, modelos de instrumentos, roteiros, lista de
materiais, delineamentos experimentais, levantamentos pré­
vios, orçamentos.
(Conclusão)
Fonte: elaboração do autor.

Capítulo 4. A apresentação dos projetos de pesquisa: a forma da exposição


Esse esquema considera elementos formais e destaca
os conteúdos mais importantes, considerando a relação
essencial entre as fases da produção do conhecimento, a
origem e construção das perguntas e a sinalização ou pre­
visão das respostas.
Como não é objeto desta publicação nos deter no
método de exposição, remetemos ao leitor as numerosas
publicações sobre trabalho científico que oferecem abun­
dantes informações sobre os elementos formais.
No entanto, é importante destacar um dos tópicos
mais problemáticos da apresentação dos projetos: a for­
mulação dos objetivos. Larroca, Rosso e Souza (2005),
apontando uma das dificuldades que comprometem a qua­
lidade da pesquisa, atribuem à formulação dos objetivos
os indicadores mais significativos. Os autores examina­
ram 28 obras de metodologia da pesquisa. E constataram
que apenas 15 delas abordam a temática dos objetivos, e
a maioria de forma vaga e rápida. Os indicadores sina­
lizam que os objetivos de pesquisa são confundidos ou
associados com a formulação do problema. O fato dos
objetivos substituírem a formulação do problema ou se
confundirem com ela são indicadores negativos que com­
prometem a qualidade e a clareza da pesquisa.
Embora os objetivos não façam parte da lógica básica
da produção do conhecimento, eles delimitam o alcance da
investigação, ou definem uma meta, um nível do conheci­
mento sobre os fenômenos que se pretendem estudar, ou a
abrangência das análises. Nesse sentido, os objetivos po­
dem servir de complemento para a delimitação do proble­
ma, mas não o substituem. Ao estabelecer objetivos gerais,
o pesquisador estará evidenciando o problema de pesqui­
sa, e ao definir os objetivos específicos ele poderá oferecer

P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
indicações do percurso metodológico e das decisões técni­
cas e estratégias a serem utilizadas no processo da pesqui­
sa. Tanto os objetivos gerais quanto os específicos devem
estar relacionados com a questão principal, ou pergunta-
-síntese, e definir os aspectos operacionais da elaboração
das respostas a essa questão ou pergunta central.
Recomenda-se que para redigir um objetivo deve-se
começar por um verbo no infinitivo, tais como, definir,
descrever, selecionar, diferenciar, registrar, documentar,
classificar etc. Os objetivos sinalizam uma meta ou um
ponto de chegada ou de abrangência pretendida com es­
sa pesquisa. Nesse sentido, mais que um elemento essen­
cial da pesquisa, situam-se no campo das estratégias e
devem expressar as condições técnicas da pesquisa. Por
exemplo, dependendo do tempo, dos recursos humanos,
dos apoios financeiros, um projeto poderá ter como meta
final elaborar um levantamento de necessidades, mape­
ar ou localizar elementos em uma determinada área ou
campo, ou realizar descrições densas e análises e ainda
realizar estudos comparativos com outros estudos. Cer­
tamente, um projeto de iniciação científica com tempo de
dedicação à pesquisa de um semestre acadêmico e ape­
nas com a participação de um pesquisador de iniciação
científica, com objetivo de elaborar um levantamento, um
mapeamento ou uma caracterização simples é suficiente.
Já em um projeto temático que envolve equipe de pes­
quisadores de diversas instituições, com tempo médio de
três anos e apoio institucional de várias entidades, além
da experiência dos pesquisadores principais e associados,
os objetivos devem ser mais pretenciosos, tais como siste­
matizar banco de dados, analisar, compreender, discutir,
comparar resultados etc.

C a p ítu lo 4 . A a p r e s e n ta ç ã o d o s p r o je to s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o 143
Diversos livros oferecem classificações sobre os objeti­
vos. O mais conhecido no campo da educação é Taxonomy
o f educational objectives (A Taxonomia dos objetivos edu­
cacionais), de Bloom (1956). Dentre o amplo leque de ob­
jetivos listados por Bloom e por outros especialistas, nem
todos se relacionam com a investigação6. Objetivos de in­
tervenção, aplicação, avaliação e propositivos não são
apropriados para definir processos de pesquisa, já obje­
tivos descritivos, de análise, de síntese e compreensivos
são pertinentes às características e aos procedimentos da
ciência. Nesse sentido, vale lembrar que, segundo Granger
(1994), citado no capítulo 1, um dos traços da ciência\ue
a diferencia da técnica é que a ciência “ [...] visa conhecer
(descrever, explicar, compreender) os objetos como são ou
existem (gnosiologia) e não visa agir diretamente sobre
eles (intervenção técnica).” (Granger, 1994, p. 45)7.
Os objetivos de domínio cognitivo, em geral, são os
mais apropriados para serem utilizados nos projetos de
pesquisa. A próxima tabela apresenta alguns deles. Os
objetivos descritivos são aqueles que sinalizam o encerra­
mento da exposição de registros, relatos de experiência,
de observações, de levantamentos e inventários. A descri­
ção caracteriza-se pela exposição minuciosa de elementos,
de traços, de achados, de passos e de tópicos de destaques
que compõem uma primeira visão ou percepção de um
objeto ou experiência, acontecimento ou fato. Expressões
como traçar, identificar, delimitar ou elaborar um perfil ou
um listado de elementos auxiliaram na captação de ele­

6 A atualização dos objetivos arrolados por Bloom em 1956 pode ser encontrada
em: Bloom (1986) e em Ferraz e Belhot (2010).
7 Larroca, Rosso e Souza (2005) constataram que, nos 111 objetivos identifica­
dos em 45 dissertações, prevaleciam os objetivos compreensivos, avaliativos e
propositivos, e que mais de 30% dos objetivos analisados não se constituem no
estrito senso em objetivos de pesquisa.

144 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
mentos, características ou fatores com uma intencionali-
dade descritiva.
Os objetivos analíticos denotam a pretensão de subdi­
vidir o conteúdo em partes menores com a finalidade de
entender a estrutura final. Essa pretensão pode incluir a
identificação das partes, análise de relacionamento entre
as partes e reconhecimento dos princípios organizacionais
envolvidos. Significa identificar partes e suas inter-rela-
ções. Nesse nível de pretensão, é necessário não apenas ter
delimitado e caracterizado o objeto em estudo, mas com­
preendido o conteúdo e sua estrutura. São objetivos mais
complexos e abstratos que os objetivos descritivos.
Os objetivos sintéticos sinalizam a pretensão de agregar
e juntar partes com a finalidade de criar um novo todo. Es­
sa capacidade cognitiva envolve a produção de uma articu­
lação entre as partes, um plano de operações direcionadas
para a unidade de partes ou elementos, ou um conjunto de
relações abstratas, que exigem processos de descrição, clas­
sificação e esquematização. Os objetivos de síntese exigem
combinar partes não organizadas para formar um “todo” .
Os objetivos compreensivos destacam ações destina­
das a interpretar uma dada realidade ou problema mais
amplo. A compreensão exige a capacidade de perceber
totalidades. Pela compreensão, o pesquisador tem a pos­
sibilidade de perceber a totalidade de elementos nela en­
volvidos ou nela contidos. Compreender é dar significado
a um determinado conteúdo; significa também recuperar
o sentido desse conteúdo em contextos ou situações es­
pecíficas. Por exemplo, os sentidos das palavras ou tex­
tos em um determinado lugar ou contexto. Compreender
também se refere à capacidade de entender a informação
ou ao fato de captar seu significado e de utilizá-la em con­
textos diferentes. O uso de verbos como desvelar, revelar,

C a p ítu lo 4 . A a p r e s e n t a ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o 14
recuperar sentidos e explicitar sinaliza um propósito com­
preensivo nos projetos de pesquisa.
A tabela, a seguir, poderá ajudar a identificar esses ob­
jetivos de domínio cognitivo.

OBJETIVOS DE DOMÍNIO COGNITIVO

Descritivos ' Analíticos Sintéticos Compreensivos


enumerar, caracterizar, categorizar, decodificar,
definir, classificar, combinar, revelar,
descrever, comparar, compilar, desvendar,
identificar, contrastar, compor, distinguir,
denominar, determinar, conceber, discriminar,
listar, deduzir, construir, estimar,
nomear, diagramar, desenhar, explicitar,
combinar, distinguir, elaborar, exemplificar,
realçar, diferenciar, estabelecer, ilustrar,
apontar, identificar, explicar, inferir,
relembrar, ilustrar, formular, reformular,
recordar, apontar, generalizar, prever,
relacionar, inferir, organizar, reescrever,
reproduzir, relacionar, reorganizar, resolver,
distinguir, selecionar, relacionar, discutir,
rotular, separar, revisar, interpretar,
ordenar e subdividir, reescrever, reconhecer,
reconhecer. calcular, resumir, redefinir,
discriminar, sistematizar, selecionar,
examinar, reconstituir, situar e
experimentar, estruturar, traduzir.
testar, montar e
esquematizar e projetar.
analisar.

Fonte: elaboração do autor.

Ainda com relação aos objetivos nos projetos de pes­


quisa, é importante alertar que, além da utilização de
146 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos
objetivos com finalidade valorativas, avaliativas e propo-
sitivasjjue sugerem intervenção técnicas, também o uso
de objetivos gerais, tais como conhecer, estudar, pesqui­
sar, investigar e refletir não são apropriados pelo seu ca-
ráter tautológico de pretender expressar uma finalidade
já contida no mesmo termo. Exemplo: “ o objetivo des­
ta pesquisa é pesquisar, ou investigar” . De igual forma, a
utilização de termos que não expressam uma finalidade a
serjflcanç^da no tempo e,nas condições do projeto, como
c o n ^ m # j ud a ^ propiciajpfacilit^^pc) s s ib i1itaj^fa vo rt)
c e rá c ., em razão de terminaFa pesquisai; não conseguir
constatar se ações se concretizam, devem ser evitados, ou
devem transformar a pesquisa em prestação de serviços ou
atividade de extensão.
Recomenda-se que a apresentação dos objetivos siga
uma sequência lógica orientada pelo princípio da pro­
gressão e da complexidade: do mais simples para o mais
complexo; do mais concreto para o abstrato. Delimitar,
descrever e caracterizar devem estar antes do objetivo
analisar. E, antes de compreender, estão os objetivos de
localizar, situar, mapear. Assim como caracterizar, situar
e contextualizar devem ser anunciados antes do objetivo
comparar.
Finalmente, vale a pena visualizar nesta publicação
sobre os fundamentos lógicos dos projetos a relação que
eles têm com as demais fases da investigação. Visualizar o
projeto no contexto amplo da pesquisa talvez ilustre me­
lhor sua lógica constitutiva quando integrado na visão ge­
ral da investigação. O esquema a seguir pretende mostrar
essas articulações.

C a p ítu lo 4 . A a p r e s e n ta ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o
FASES E M O M EN TO S DA INVESTIGAÇÃO

Momentos/fases 1. Pergunta 2. Resposta

1. Projeto de pesquisa Problema: Metodologia:


(ênfase na pergunta) a) situação-problema previsão de
(espaço, tempo e a) fontes;
movimento); b) instrumentos;
b) indicadores; c) técnicas;
c) antecedentes, d) organização e
estudos preliminares; sistematização de
d) questões resultados;
norteadoras; e) hipóteses;
e) pergunta-síntese. f) resultados esperados.

Objetivo geral: Referencial teórico:


resultados, diagnóstico, definição de termos-
sobre o problema. -chave, categorias de
análise, referências
Específicos: para discussão e
procedimentos, metas, interpretação de
fases. resultados.

Justificativa: relevância
social, científica e/ou
acadêmica.

2. Relatório, Introdução (atualização Capítulos (elaboração


dissertação ou tese do projeto) da resposta)
(ênfase na resposta) justificativa, problema, apresentação e
pergunta, objetivo e organização das
metodologia (relatando respostas;
a forma como foi discussão de resultados;
realizada a pesquisa).
interpretação das
respostas;
conclusões e
recomendações.

Fonte: elaboração do autor.

148 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
Nesse esquema são considerados os dois momentos-
-chave da produção do conhecimento: na linha vertical
o momento da construção do projeto e o momento da
elaboração do relatório de pesquisa (texto final da mo­
nografia, dissertação ou tese); já na linha horizontal, a fa­
se da pergunta e posteriormente a fase da resposta. No
momento do projeto, a fase da construção da pergunta é
enfatizada, já a elaboração da resposta é apenas anuncia­
da ou prevista. No momento subsequente da realização
da pesquisa e da apresentação dos resultados na forma
de relatório, dissertação ou tese, a ênfase é dada às res­
postas. Nesse caso, o processo de elaboração da pergunta
fica reduzido a uma introdução ou a um capítulo inicial.
A organização dos capítulos será feita em torno da cole­
ta, tratamento e organização de dados e informações, da
apresentação de revisões de literatura, explicitação de ca­
tegorias e apropriação de referências, assim como da dis­
cussão e interpretação de resultados. As conclusões, além
de destacarem e cotejarem os principais resultados com as
questões e perguntas formuladas na introdução ou capítu­
los iniciais, deverão expor as respostas obtidas (definitivas
ou parciais) e, caso seja necessário, apresentar as hipóte­
ses levantadas (questões parcialmente ou provisoriamente
respondidas) que poderão justificar novas pesquisas.
Finalmente, destacamos nesse esquema como as fases
da pergunta e da resposta estão presentes nos dois mo­
mentos do projeto e do relatório, mesmo que de forma
diferenciada. Em resumo, o essencial do projeto é estar
focado nas indagações, as questões e as perguntas. E o
fundamental do relatório é a explicitação da construção
das respostas. Considerando as diferentes centralidades,
não é pertinente apresentar nos projetos nenhum tipo de

C a p ítu lo 4 . A a p r e s e n t a ç ã o d o s p r o je t o s d e p e s q u is a : a fo r m a d a e x p o s iç ã o
respostas ou afirmações categóricas. Caso isso aconteça,
deverão ser atribuídas a um determinado autor ou fonte,
e a seguir estarem acompanhados de suspeitas, dúvidas
e indagações. Também essas afirmações poderão ser di­
mensionadas como hipóteses a serem interrogadas, confir­
madas ou negadas. De igual maneira, os relatórios devem
centralizar-se nos processos de produção dos resultados
e da consolidação das respostas. É possível concluir com
aberturas para novas indagações, mas, antes disso, de­
vem-se confirmar as respostas, se possível afirmar as teses,
discuti-las, compará-las, projetá-las, e apontar desdobra­
mentos e aplicações.

150 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
Conclusões

A pesquisa científica, entendida como um processo


metódico que equivale a buscar algo a partir de vestígios
ou de pistas, é uma forma de elaborar respostas rigorosas
e sistemáticas para as indagações sobre os problemas que
a realidade histórica de cada sociedade apresenta.
Assim como na polis grega, na mudança de sociedade
tribal para a sociedade democrática, houve necessidade de
se desenvolver novas formas de obter respostas para os
problemas de seu tempo. Hoje, na sociedade contempo­
rânea, que se apresenta com características, dentre outras,
de profundas contradições e da acumulação de desigual­
dades, assim como de um grande volume de informações,
saberes e conhecimentos, torna-se necessário rever critica­
mente os métodos de produção do conhecimento, buscan­
do maiores graus de rigor científico, a fim de garantir seu
caráter transformador e de minimizar o risco de reduzir o
conhecimento a um saber técnico passível de ser controla­
do por interesses que buscam a manutenção dos poderes
dominantes e as atuais formas de reprodução social.
A necessidade de superação das atuais condições da re­
produção da vida e da superação das formas de exploração
e exclusão social exige uma constante análise epistemoló-
gica dos instrumentos, das técnicas, dos métodos, das te­
orias e das visões de mundo que estão sendo utilizados ou
praticados nos diversos processos da produção do conhe­
cimento. Essa análise se valida quando se pretende avaliar
o grau de coerência entre estes diversos aspectos da pesqui­
sa e os interesses e visões de mundo que predominam na
produção, apropriação e utilização do conhecimento. Uma
forma de ponderar criticamente essas relações é revelando
a lógica que sustenta o planejamento e a elaboração dos
projetos de pesquisa, considerando desde os procedimen­
tos técnicos até os desdobramentos ideológicos decorren­
tes das concepções de ciências e visões de mundo implícitas
nas formas de elaborar esses novos conhecimentos.
A elaboração das respostas, de acordo com os crité­
rios da episteme, corresponde ao processo de produção de
novos conhecimentos. A identificação das relações lógicas
que fundamentam esse processo é pertinente e necessária
na hora de planejar os procedimentos. O atendimento das
exigências dessa lógica esclarece melhor os percursos, fa­
cilita e agiliza os passos e garante um controle sobre os er­
ros e sobre as exigências de qualidade. O atendimento aos
fundamentos lógicos permite, ainda, ponderar resultados
e revelar os interesses humanos e as visões de mundo que
determinam as respostas aos problemas que a realidade
apresenta. Nesse sentido, a lógica torna-se um instrumen­
tal necessário e crítico no esforço da produção de pesqui­
sas com maior grau de qualidade, maior capacidade de
resposta e maior potencial de transformação.
Finalmente, espera-se que esta publicação incentive
novas práticas pedagógicas, visando a formação de fu-

152 P r o je t o s d e p e s q u i s a , f u n d a m e n t o s l ó g i c o s
turos pesquisadores, valorizando as pedagogias da per­
gunta, o incentivo à curiosidade e o desenvolvimento da
capacidade de duvidar e perguntar sem precisar desprezar
os saberes acumulados e os conteúdos clássicos. A for­
mação de novos pesquisadores torna-se necessariamente
mais complexa, já que precisa de novas práticas perante
os compromissos históricos de potencializar a sociedade
do futuro. Novas capacidades precisam ser desenvolvidas
para conseguir articular o domínio dos saberes sistema­
tizados e o potencial criativo da pesquisa científica, no­
vas habilidades para otimizar os instrumentais técnicos e
teóricos necessários, a produção de novas respostas pa­
ra as necessidades históricas da sociedade na fase atual
de profundos processos de transformação. Essa formação
exige também o domínio de teorias sólidas, com base no
conhecimento acumulado, e as experiências históricas da
evolução da ciência e da reflexão filosófica sobre seus pro­
cedimentos e resultados. A formação básica para a pes­
quisa aqui pretendida não se limita apenas à compreensão
das estratégias de elaboração de projetos, destacando os
fundamentos lógicos e metodológicos, mas deve com­
preender também a própria preparação do pesquisador,
começando pela mudança dos sistemas pedagógicos, no
sentido de privilegiar o desenvolvimento da capacidade de
problematizar e de perguntar.

Conclusões 15
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Referências
Este livro tem uma pretensão didática e um conteúdo básico sobre os fundamen­
tos lógicos da pesquisa científica e da elaboração de projetos. Está dirigido a
alunos de iniciação científica, a orientadores e a pesquisadores em nível de pós-
-graduação, interessados na compreensão dos elementos básicos do conhecimento
e na apropriação das eficientes ferramentas oferecidas pela lógica e pela filosofia.

Os conteúdos sobre os fundamentos lógicos da pesquisa científica e, em particu­


lar, das fases iniciais do planejamento da investigação científica buscam desmitifi-
car, sem reduzir e sem empobrecer a diversidade e complexidade dos procedi­
mentos necessários para a elaboração do conhecimento científico. Repensar os
projetos de pesquisa, sob a ótica da lógica dialética que revela a dinâmica entre
perguntas e respostas, poderá trazer novas perspectivas de compreensão da
pesquisa e tornar simples, eficientes e criativos os complexos processos de
produzir respostas para as necessidades e os problemas históricos da sociedade.

Espera-se que esta publicação incentive novas práticas pedagógicas, visando à


formação de futuros pesquisadores, valorizando a pedagogia da pergunta, o
incentivo à curiosidade e o desenvolvimento da capacidade de duvidar e pergun­
tar, que precedem às tentativas da produção do conhecimento, entendido este
como a resposta a uma pergunta. Nesse sentido, o resgate da relação dialética
entre as duas dimensões da produção do conhecimento - a construção de
perguntas e a produção de respostas - poderá sinalizar significativas mudanças
na preparação do pesquisador, começando pela mudança dos sistemas pedagógi­
cos, visando ao desenvolvimento da capacidade de problematizar e de perguntar.

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