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ARTE-EDUCAÇÃO, UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA DO TEATRO

ESCOLAR PARA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Aldo Nonato Borges Júnior1


Rodrigo Oliveira Bertoldo de Brito2
Velda Gama Alves Torres3
Resumo
O artigo aborda o potencial do binômio arte-educação como recurso didático, sendo o
objeto desta abordagem as ações do projeto Teatro Escola voltadas para educar e formar
jovens negros e periféricos, tendo a arte como interface mediadora do processo de ensino
e aprendizagem. A discussão proposta transversaliza abordagens sobre arte, educação,
ética e transformação social, apoiando-se nas perspectivas teóricas de Paulo Freire (1996,
2002), Émilie Durkheim(2013), Erving Goffman(2014), Stuart Hall(2011), Clóvis de
Barros Filho(1995), Aristóteles(1996), Laura Nash(1993), Edgar Morin(1997, 2000,
2008) e Vygotsky (2016). A abordagem proposta salienta a importância da arte para
estimular a participação ativa dos educandos no processo de ensino e aprendizagem,
oportunizando que atuem efetivamente no mundo, opinando, criticando, sugerindo e
desenvolvendo habilidades e competências pessoais e profissionais.

Palavras-Chave: Arte. Educação. Ética. Transformação Social.

1 INTRODUÇÃO
A educação é um relevante meio de transformação social, seja em contextos de
aprendizagem formais ou informais, constituindo-se como uma forma emancipatória de
legitimar saberes que possibilitam uma maior participação na sociedade. É, portanto,
essencial para o modo como o sujeito constitui a si na relação com outros sujeitos,
possibilitando-o assumir um compromisso ético capaz de renovar a esperança de um
mundo melhor para todos, imbuindo-se em um processo social e político contínuo que é
sua constituição como cidadão. Assim, a educação participa dessa transformação social
atualizando “todas as possibilidades de realização humana abertas pela vida social em
cada contexto historicamente determinado” (COUTINHO, 1994, p. 2).
Afinal, como ressaltado por Martín-Barbero (2014, p.121), “vivemos numa época
da passagem de uma sociedade com sistema educativo para uma sociedade do
conhecimento e aprendizagens contínuas”. Nesse contexto a educação é capaz de efetivar

1
Graduando do curso de Relações Públicas da Universidade Católica do Salvador. Email:
aldo.junior@ucsal.edu.br
2
Graduando do curso de Relações Públicas da Universidade Católica do Salvador. Email:
rodrigoo.brito@ucsal.edu.br
3
Doutora e Mestra em Cultura e Sociedade (IHAC-UFBA). Professora da Universidade Católica do
Salvador. E-mail: veldatorres@uol.com.br
transformações sociais nos mais distintos setores da vida humana, tendo como desafio
permanente formar indivíduos reflexivos e autônomos, mas que mantêm os laços de
solidariedade social (DURKHEIM, 2013). Essa é também a perspectiva de Brandão
(2004), ao salientar que a educação “é um dos principais meios de realização de mudança
social ou, pelo menos, um dos recursos de adaptações das pessoas, em um mundo em
mudança”. As ações implementadas pelo Teatro Escola (TE) no contexto do processo de
ensino e aprendizagem são orientadas nessa direção e apoiadas na tríade ética,
comunicação e diversidade.
O TE é um projeto idealizado e gerido por Nelrismar Araújo, gestor do Teatro
Jorge Amado (TJA), uma instituição que atua há 21 anos no cenário cultural
soteropolitano, oferecendo condições para abrigar as mais distintas linguagens artísticas,
eventos educacionais e festivos (TJA, 2016). Reconhecendo a arte como interface de
transformação social, o TJA também tem sua atuação voltada para inclusão social, através
do projeto A escola vai ao Teatro, fomentando a formação de novos apreciadores e
frequentadores dos espaços culturais da cidade. Dentro desta filosofia, o TJA apoia o TE
disponibilizando suas instalações para as atividades que são desenvolvidas pelo projeto
dentro do conceito arte-educação, buscando contribuir para a redução de desigualdades
sociais, econômicas e políticas, através de ações socioeducativas voltadas à promoção da
transformação social, a partir do reconhecimento e visibilidade dos sujeitos participantes
(TJA, 2016).
A contextualização apresentada neste artigo sobre a atuação do TE foi apoiada nos
dados coletados no site4 da instituição, nas entrevistas com o gestor do projeto - Nell
Araújo, com os professores e participantes. A análise desses dados teve como suporte
teórico as contribuições de Aristóteles (1996), Laura Nash (1993) e Valls (1994) com
relação aos princípios e dilemas éticos; o pensamento de Paulo Freire ( 1996, 2002) sobre
a prática inclusiva e a sua proposta do círculo de cultura como espaço de interação que
possibilita um processo de ensino e aprendizagem mais participativo; a Teoria de
Aprendizagem de Vygotsky (2016); a perspectiva teatral de Goffman (2014) sobre o
modo como o sujeito representa a si nas interações cotidianas; as abordagens de Hall
(2011) sobre as questões culturais que perpassam os processos de constituição das
identidades e a perspectiva Edgar Morin(2000, 2002, 2008) sobre o modo como o

4
Disponivel em: <www.teatrojorgeamado.com.br> Acesso em: 15.mar. 2019
princípio da unidade-diversidade é retratado pela educação nas distintas esferas sociais.
Esses aportes teóricos são de fundamental importância para compreensão das formas de
interação produzidas no ambiente do projeto TE, das representações sociais que orientam
essas interações e das representações de si que delas resultam.
A abordagem proposta neste artigo está estruturada em quatro seções, sendo a
primeira delas esta introdução, a segunda uma abordagem sobre a concepção do indivíduo
como ser social e as relações de trocas estabelecidas nos espaços educacionais, a terceira
apresenta uma breve contextualização sobre as ações do Projeto Teatro Escola (TE) e a
quarta as considerações finais.

2. CONCEPÇÃO DO INDIVÍDUO SOCIAL E AS RELAÇÕES DE TROCA NOS


ESPAÇOS EDUCACIONAIS

Desde a Grécia antiga Aristóteles já tratava do princípio ético como uma conduta
virtuosa e moral; e, como tal, uma ação humana formada pela consciência de que
buscamos um convívio feliz tanto individualmente como socialmente. Para o filósofo,
“Toda ação e todo propósito visam um bem, entendendo-se por bem aquilo a que todas
as coisas visam” (ARISTÓTELES, 1996, p.118). Sob essa perspectiva, a concepção de
ética está atrelada a ideia daquilo que acreditamos que seja correto, com base nos valores
morais orientadores da nossa conduta na sociedade. Essa é também a concepção de Valls
(1994, p.7) ao salientar que “também chamamos de ética a própria vida, quando conforme
aos costumes considerados corretos”, corroborando para reiterar a conduta ética como
definida de acordo com os grupos sociais que o sujeito está inserido e, consequentemente,
a partir das relações estabelecidas nesses diversos grupos.
Nash (1993) reforça que a ética, como expressão única do pensamento correto,
conduz à idéia da universalidade moral, ou ainda, à forma ideal universal do
comportamento humano, expressa em princípios válidos para todo pensamento normal e
sadio. A inserção no meio social é uma necessidade latente de todo sujeito e para ser
atendida se faz necessário estabelecer uma comunicação que contribua para revelar a si,
a partir dos modos como pensa, age e sente no mundo. Para além da oralidade e da escrita,
o olhar, os gestos, expressões corporais e faciais são formas de comunicação com
significativas dimensões expressivas de si e para o outro.
Contudo, como agente ativo no processo comunicacional o sujeito se depara com
dilemas éticos que fazem parte da vida contemporânea, a qual é repleta de exigências
voltadas à ampliação do universo de conhecimentos que cada um possui e aplica em suas
relações nos distintos campos do relacionamento humano. Trata-se, aqui, da unidade do
humano que se manifesta na diversidade, visto que essa unidade é expressa pela diferença,
sendo tanto essa unidade quando essa diversidade relacionadas com aspectos biológicos,
psicológicos, culturais, sociais (MORIN, 2000).
Visando promover a interação entre os alunos, ações e temáticas de valorização e
respeito à diversidade são trabalhadas evitando a imersão dos alunos no que Barros Filho
(1995) define como espiral do silêncio - o indivíduo por medo do julgamento social se
cala diante de outro(s) sujeito(s), não se posicionando nas discussões. O autor descreve a
espiral do silêncio como uma “dimensão cíclica e progressiva dessa tendência ao
silêncio”. Assim, quanto maior o domínio da opinião social maior a tendência desse
indivíduo se calar. Buscando evitar esse tipo de posicionamento, o TE estimula os jovens
a se expressarem de forma artística e própria, colocando em pauta suas opiniões e
interagindo nos ambientes da instituição, expondo seus pensamentos e ações sem medo
do olhar do outro sobre si.
Em outras palavras, a “Diversidade pode significar variedade, diferença e
multiplicidade. [Sendo que] A diferença é qualidade do que é diferente; o que distingue
uma coisa de outra, a falta de igualdade ou de semelhança” (ABRAMOWICZ, 2006,
p.12), uma característica que expressa a unidade/singularidade do humano. Essa distinção
característica entre os sujeitos deve ser respeitada e considerada como algo que agrega as
relações sociais em virtude das trocas culturais que possibilita. Compreende um processo
cultural que envolve uma estrutura complexa com símbolos, mitos, normas e imagens que
penetram no íntimo das pessoas, uma penetração que
[...] se efetua segundo trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas
nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou
reais que encarnam os valores (os ancestrais, os heróis, os deuses). Uma cultura
fornece pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio práticos à
vida imaginária; ela alimenta o ser semi-real, semi-imaginário, que cada um
secreta no interior de si (sua alma), o ser semi-real, semi-imaginário que cada
um secreta no exterior de si e no qual se envolve (sua personalidade) (MORIN
1997, p.15).

Assim, a diversidade, mais do que uma característica social, envolve pluralidade


e harmonia de diferentes pensamentos e ideias, características ou elementos distintos
entre si, em relação a determinado assunto, situação ou ambiente (BAUER, 2016). O que
faz do homem um ser simultaneamente singular e plural no que se refere às esferas
psicológica, afetiva, subjetiva e individual; e, como tal, “um ser a um só tempo
plenamente biológico e plenamente cultural” (MORIN, 2000, p.52).
Para Morin (2008), esse princípio da unidade-diversidade deve ser retratado pela
educação em todas as esferas sociais, preparando os indivíduos para a vida. Conforme o
autor, é esse o objeto da educação: aprender a viver, uma aprendizagem implicada na
transformação da informação em conhecimento, do conhecimento em sabedoria, na fusão
da sabedoria com ciência e na aplicação desse aprendizado na vida cotidiana.
Na concepção de Durkheim (2013), a educação é uma atividade exercida pelas
gerações adultas sobre as mais novas ou ditas como não maduras para o convívio em
sociedade. Para o autor, a educação “tem como objetivo suscitar e desenvolver na criança
um certo número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos tanto pelo conjunto da
sociedade política quanto pelo meio específico ao qual ela está destinada em particular”
(2013, p. 53-54). É, portanto, através da educação que o ser individual desenvolve-se em
um ser social, sendo a escola um importante agente nesse processo.
Com uma compreensão similar sobre o papel da escola na formação do sujeito,
mas sob uma perspectiva menos hierárquica e mais dialógica entre educador e educando,
Paulo Freire (1996) evidencia que o papel da escola é formar cidadãos críticos que
possam participar do momento histórico em que vivem como sujeitos ativos. Contudo,
nos lembra que a educação bancária - modelo de educação tradicional, ainda é
predominante em nosso sistema de ensino com utilização de recursos arcaicos (FREIRE,
2002,p. 58). Conforme sua análise,
A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização
mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em
“vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá
“enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será.
Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos
são os depositários e o educador o depositante.

Mas, como salientado por Martín-Barbero (2014, p.121), ao refletir sobre o


binômio comunicação-educação na sociedade contemporânea,
[...] a educação já não é concebível a partir de um modelo de comunicação
escolar que se encontra ultrapassado tanto espacial como temporalmente por
processos de formação correspondentes a uma era informacional, na qual a idade
para aprender são todas, e o lugar para estudar pode ser qualquer um: uma
fábrica, uma casa para idosos, uma empresa, um hospital, os grandes e pequenos
meios e especialmente a internet.

Conceber um novo modelo educacional formador de cidadãos, como coloca Freire


(1996; 2002), é compreender a educação como transformação social, o que pressupõe ver
o cidadão como além de um pote, que apenas deve ser preenchido de conteúdos e
informações. Implica em reconhecer o indivíduo como um ser participativo que
estabeleça uma relação bilateral (simultaneamente produtor e receptor de conteúdos e
informações), se tornando neste processo criador da própria história e em conseqüência,
capaz de problematizar suas relações com a sua comunidade.
Conforme salienta Freire (2002) a relação educador – educando deve estar
alinhada com os aspectos sociais, culturais e econômicos dos alunos, suas famílias e o seu
entorno, estimulando no educando a curiosidade de aprender, o hábito de questionar e
assumir o seu papel de estudante. Esse modelo de relação entre educador e educando
exige o rompimento com o modelo tradicional de educação bancária, demandando que
educador e educando estabeleçam uma relação de troca contínua (FREIRE, 2002). Tal
entendimento é apoiado na premissa de que a conduta de cada pessoa está diretamente
relacionada ao contexto das interações e às relações estabelecidas nesses espaços.
Esta é uma perspectiva alinhada a de Goffman (2014) ao argumentar que a conduta
humana está diretamente associada às relações interpessoais e aos cenários/contextos
dessas interações, sendo a conduta do sujeito constantemente orientada pelas expectativas
do outro, seja identificando-as ou antecipando-as. E no âmbito dessas interações o sujeito
se encontra imerso em uma gestão constante da sua imagem diante de outros sujeitos,
buscando expor nas representações de si aspectos das suas identidades que deseja
comunicar ao outro.
Para Goffman (2014, p.85), “o relacionamento social comum é montado tal como
uma cena teatral, resultado de troca de ações, oposições e respostas conclusivas
dramaticamente distintas”. Assim, a expectativa sobre o outro e a influência exercida
sobre o comportamento uns dos outros são fatores essenciais para as estratégias e as ações
individuais, sendo, portanto, a reciprocidade o princípio orientador das interações.
Considerando a escola como um dos muitos cenários que o sujeito representa a si
cotidianamente, o olhar sobre essas estratégias subjetivas envolvidas nas interações é
fundamental para a compreender os valores e representações que orientam as relações
constituídas nos espaços escolares - os quais reúnem pessoas que pertencem a distintos
mundos sociais e que trazem para dentro do processo de ensino e aprendizagem, as suas
experiências. Assim, nesses espaços é possível encontrar variados tipos sociais, valores e
representações presentes na sociedade de um modo geral e amplo.
O modo como o sujeito constitui a si nas interações sociais é também abordado
por Hall (2011) ao salientar que o sujeito constitui a si nas relações com outros sujeitos e
com a cultura, tornando-se fragmentado - isto é, constituindo-se não só de uma única
identidade, mas de várias, não tendo, portanto, uma identidade fixa, essencial ou
permanente. Em outras palavras, o sujeito é formado e transformado continuamente em
relação ao outro e aos sistemas culturais em que está inserido, pelas formas como é
representado ou questionado nos sistemas culturais que o influencia. Essa é também a
concepção de Vygotsky (2016) ao afirmar que é no processo de interação com o outro
que os indivíduos modificam e se modificam. Trata-se de uma premissa que orienta as
ações envolvidas no Teatro Escola, as quais serão abordadas a seguir.

3. PROJETO TEATRO ESCOLA

O projeto foi idealizado e criado, em 2017, por Nelrismar Araújo - Nell, gestor
do Teatro Jorge Amado, espaço onde ocorrem as atividades do TE. Assim como Nell
Araújo, a maioria dos alunos acolhidos pelo TE são de origem humilde, cresceram em
meio à pobreza, à falta de possibilidades e oportunidades. Como ele, esses alunos
desejam um traçado diferente em suas histórias e viram na iniciativa do projeto e exemplo
de vida do seu idealizador, a oportunidade para uma transformação social. Longe de ser
uma utopia ou uma fuga da realidade, impulsionados por seus sonhos e projetos, esses
jovens revitalizam seus anseios e continuam digladiando com os paradigmas do
“impossível”. O objetivo do TE é educar e formar jovens negros e periféricos, utilizando
a arte como interface mediadora do processo de ensino e aprendizagem. Conforme
declarado pelo gestor e idealizador do projeto na entrevista,
Essa iniciativa veio a partir da necessidade que eu percebi na cidade, da falta
de escolas artísticas, escolas que viessem falar sobre a cultura, em que um
único espaço fosse abordado diversas modalidades artísticas, e acima de tudo,
uma escola que fosse destinada para jovens afrodescendentes e estudantes de
escolas públicas. (ARAÚJO, 2018)

Com esse propósito o projeto reserva 95% das vagas para jovens afrodescentes,
de 14 a 24 anos, estudantes de escola pública e em situação de vulnerabilidade social,
buscando transformar suas vidas através de um modelo de educação que utiliza a arte, a
política e a cultura como instrumentos norteadores deste processo, sendo a seleção dos
participantes através de uma comissão constituída por alguns dos professores.
O projeto conta com o apoio de voluntários que participam como professores e
divulgadores. A divulgação do projeto também é realizada pelos alunos participantes,
através do Núcleo de Comunicação constituído por seis alunos e coordenado pelo gestor
do projeto. Vale ressaltar que todos os professores atuantes no projeto são experientes em
suas áreas de atuação e, na maioria das disciplinas, essa participação voluntária parte do
próprio professor que procura o projeto. Mas, há disciplinas específicas, voltadas à
diversificação do conteúdo disseminado na grade curricular e extracurricular do TE, que
exigem professores especialistas que são convidados a participarem como voluntários do
projeto. Os professores voluntários estão engajados na transformação profissional e
intelectual dos jovens participantes, utilizando metodologias com interfaces na arte e na
cultura para compartilhar conteúdos de uma forma humanizada.
Trata-se de um projeto pioneiro no formato de estudos práticos e teóricos ligados
a área artística, voltando-se para formação da cidadania e do pertencimento cultural dos
adolescentes afrodescendentes participantes, proporcionando a aproximação desses
jovens com a sua matriz cultural. Assim, através da arte e da educação, transversalizando
a cultura afro-brasileira, o projeto contrapõe-se ao modelo tradicional do processo de
ensino e aprendizagem, considerado arcaico pelo gestor e educadores envolvidos, e aplica
um modelo diferenciado, utilizando a arte e a cultura para viabilizar um aprendizado com
a participação ativa dos sujeitos educandos envolvidos.
Pensar a arte como elemento de formação educacional requer considerá-la como
um importante meio para transformação social, visto que através da arte o sujeito
educando pode desenvolver um olhar crítico frente às questões sociais que o cerca,
tornando-se capaz de conquistar autonomia no processo de constituição das suas
identidades. Este método de arte-educação é por vezes, confundido com o ensino da arte,
entretanto a arte-educação não se trata do ensino ou estudo da arte, mas do uso da arte
como estratégia didática para abordagem de distintos conteúdos nos processos de ensino
e aprendizagem. Conforme ressaltado por Villaça (2014, p. 83), a arte-educação
Possui capacidade de seduzir e mobilizar. Facilita a abordagem de temas que
são, em geral, tabus. Permite ver ilustradas situações cotidianas. Permite
também o questionamento de padrões e valores estabelecidos. Atinge o
indivíduo (tanto quem apresenta quanto quem aprecia) em todos os níveis:
racional, físico, emocional, espiritual e social. Além do contato consigo
mesmo, experiência-se o contato com o outro também em sua plenitude.
Exercita o trabalho coletivo. Permite o contato com manifestações culturais de
seu povo e de outras localidades. É prazerosa, lúdica. Torna-se também sedutor
para instituições financiadoras (por seu potencial no que se refere a
visibilidade).

Em virtude desse conjunto de características a arte-educação constitui-se como


uma proposta didática que se revela como um importante mecanismo de transformação
social. É fato que toda transformação social está atrelada à mobilidade econômica do
indivíduo e esta pode ser alcançada através do desenvolvimento intelectual e cultural;
proporcionando uma melhor posição na sociedade e maiores oportunidades
socioeconômicas. Essa é uma perspectiva que dialoga com o pensamento de Rousseau
(1995) ao associar a educação a ideia de perfectibilidade do ser humano e do processo
histórico como transição do passado para um futuro. Em sua proposta de educação propõe
que as crianças sejam educadas para se tornarem autônomas, capazes de decidirem sobre
o próprio destino. Sob essa perspectiva, insere a educação como meio de ensinar a viver,
aprender e exercitar a liberdade. Essa sua compreensão está implícita na concepção de
educação como instrumento chave para o avanço da ciência, para a transformação social
e para o funcionamento das instituições democráticas.
Apoiando-se nessa perspectiva, o TE busca estabelecer através da arte um novo
modelo de pedagogia, estimulando e desenvolvendo o senso crítico, valorizando as
características culturais dos alunos, fomentando as formas de pensar e aprender, trazendo
a tona e aprimorando o Eu que existe dentro de cada indivíduo. Nesse sentido, os
professores promovem debates com os alunos, criando espaços para expressarem seus
conhecimentos com relação a distintas temáticas. As trocas de conhecimento entre
educando e educador também são realizadas em um encontro de integração, que ocorre
uma vez ao mês, entre alunos e professores de todos os cursos e módulos
interdisciplinares que complementam a base curricular do projeto.
O TE oferece gratuitamente os cursos de Teatro, Dança, Fotografia, Maquiagem,
Iluminação Cênica e Produção Cultural. Entre os módulos interdisciplinares estão as
disciplinas Ciências Políticas, Produção de Arte, Práticas Argumentativas, Cultura
Nordestina, Espaços Culturais, História Afro-brasileira, Assessoria de Comunicação,
História da Arte, Comunicação e Cultura, Libras, Ética e Estética. O projeto também se
destaca por incluir a Linguística Africana como componente curricular, sendo a primeira
escola a ter em seu currículo essa disciplina. Cada aluno pode optar por até três desses
módulos, integrando-os à estrutura curricular do curso artístico da sua escolha e, acima
de tudo, reforçando o conhecimento e o espírito de cidadania. Essa estrutura do projeto
busca desenvolver o senso crítico dos jovens participantes através de práticas
argumentativas envolvendo a arte e a cultura.
Há também as atividades extraclasse que complementam todo o conhecimento
abordado pelos professores nas aulas, para que os alunos participantes possam desfrutar
o máximo possível do mundo das artes. As atividades extraclasse e extracurriculares
proporcionam o aperfeiçoamento na formação escolhida. Dentre essas atividades estão as
visitas técnicas a teatros e outros espaços artísticos da cidade, rodas de conversas com
profissionais da área artística, palestras, seminários, oficinas e workshops.
A perspectiva educacional implementada pelo idealizador do projeto TE tem sido
vista de uma forma extremamente positiva, segundo os alunos e professores. Os
professores participantes do projeto consideram a proposta do TE estimulante e acessível
para diversificados contextos escolares e distintas áreas do conhecimento dentro do
processo de ensino-aprendizagem. Os jovens participantes têm contribuído esse processo
sugerindo intervenções, criando um ciclo de coletividade para a manutenção da
metodologia. Assim, os aspectos envolvidos na criação e implantação do projeto são hoje
reconhecidos por todos os participantes, voluntários e parceiros.
No TE a relação entre educador e educando transcende o espaço físico através de
tecnologias que colocam professores, alunos e pais em interação. Uma dessas tecnologias
é o aplicativo Escola que permite aos professores compartilharem atividades em tempo
real, enviar notificações, registro de presença e notas, gerenciamento de conteúdo,
incluindo vídeo aulas. Através desse aplicativo os pais acompanham a frequência dos
seus filhos, suas notas e conversam com professor sobre dúvidas ou sugestões, conferindo
mais agilidade e transparência ao processo educacional. Apesar da potencialidade desse
aplicativo, grande parte da interação entre os professores, pais e alunos participantes do
projeto é realizada através do WhatsApp.
Assim, pais, alunos e professor se relacionam continuamente, reiterando a máxima
de que a comunicação no TE é muito mais do que a troca de informações: envolve trocas
simbólicas como interfaces sociais na constituição do sujeito. Trata-se de uma perspectiva
do interacionismo simbólico que evidencia o modo como construímos a sociedade através
das trocas envolvidas na comunicação. É também a partir dessa concepção interacionista
que Vygotsky (2016) enfatiza o processo histórico-social e o papel da linguagem no
desenvolvimento do indivíduo, salientando que a aquisição de conhecimentos se dá na
interação do sujeito com outros sujeitos e com o meio no qual está inserido. Para o autor,
“o comportamento do homem é formado por peculiaridades e condições biológicas e
sociais do seu crescimento”, sendo seus conhecimentos adquiridos a partir de relações
intra e interpessoais e de troca com o meio (2001, p.63).
Sob essa perspectiva, a educação envolve a articulação de uma nova organização
social que inclua cada vez mais pessoas nos espaços públicos, culturais e artísticos, além
da efetiva participação na tomada de decisões: o sujeito fala por si como protagonista da
própria luta e movimento. O que implica na necessidade de uma política mais justa e mais
humana em todas as frentes, sendo o ambiente cultural um espaço privilegiado de disputa
política por uma transformação profunda da sociedade.
O projeto foi implantado, em 2017, com aproximadamente 300 alunos. No
primeiro semestre de 2018 cerca de 2 mil jovens se inscreveram para concorrer as 130
vagas oferecidas, sendo esse número de inscritos alcançado nos dois primeiros dias do
período de inscrição, indicando o reconhecimento e interesse pela proposta didática e
humanizada do projeto. Para Nell Araújo,
Essa grande procura se deve ao amor com que as atividades são feitas aqui,
pois o TE nasceu com este desejo de trazer mais cultura para a vida de jovens
negros, fazendo deste espaço um espaço inovador, totalmente dedicado aos
estudos da cultura afro-brasileira, um verdadeiro templo do aprendizado
artístico, com uma diversidade de opções para nossos alunos.

Esse resultado também é conferido ao engajamento dos alunos que participam do


Núcleo de Comunicação na definição de estratégias e ações de comunicação para
divulgação do projeto. Visto que, por ideologia do projeto, a divulgação é feita pelos
próprios alunos, com campanhas nas redes sociais, em sua comunidade e entre os colegas
nas escolas de ensino público. O engajamento de todos os envolvidos no projeto está, em
grande parte, associado ao reconhecimento da sua efetividade junto à sociedade e do
caráter humanístico que norteia as ações desenvolvidas. Posicionando-se sobre as
relações estabelecidas no TE, Deo Carvalho, professor de maquiagem, considera que “as
pessoas precisam aprender com a leveza, com amor, com gratidão e com colo, com
educação, com o primor da educação. Essa metodologia é a minha, é humanizar, de forma
que isso vai transmutando de uma maneira muito linda”.
Sempre pautado na busca de melhorias para a expansão de suas atividades e das
redes de acesso aos direitos sociais pelos alunos atendidos, em 2018 o Teatro Escola
firmou parcerias técnicas com grandes instituições da cidade de Salvador, fortalecendo a
estrutura educacional e pedagógica, trazendo mais qualidade e abrangência profissional
para os alunos. Dentre essas parcerias, destaca-se o IPAC - Instituto do Patrimônio
Artístico e Cultural do Estado da Bahia, que tem como finalidade desenvolver um módulo
de estudos sobre patrimônio material e imaterial da nossa história e memória cultural.
Nessa parceria as aulas incluirão visitas guiadas por um profissional da Instituição nos
principais museus da capital baiana.
Outra parceria importante foi com a Universidade Católica de Salvador - UCSal,
possibilitando aos participantes do projeto tornarem-se alunos ouvintes de algumas das
disciplinas ministradas nos cursos de Comunicação da universidade, proporcionando,
assim, a vivência no universo acadêmico, através de estudos específicos na área de arte e
cultura. Tratam-se de disciplinas ministradas nos laboratórios de fotografia, rádio e Tv
oferecidas gratuitamente a todos alunos do TE que tiverem interesse. A partir dessa
parceria os participantes do projeto concorrem a bolsas de estudo integrais e parciais nos
cursos da UCSAL nas mais diversas áreas: Ciências Naturais e Saúde, Ciências Sociais
Aplicadas, Educação – Cultura e Humanidades, Engenharias e Tecnologia.
Outra parceria relevante é a estabelecida com profissionais na área de Psicologia
Social, os quais contribuem para reforçar a autoestima dos participantes na âmbito das
relações sociais e no processo de desenvolvimento pessoal, tornando-os multiplicadores
das transformações sociais que a arte é capaz. O Teatro Jorge Amado, juntamente com o
projeto, implementou Núcleo de Pesquisa de Desenvolvimento Cultural, voltado para
área de pesquisas culturais realizadas pelos alunos do Teatro Escola. Essa área irá
proporcionar aos participantes do TE o desenvolvimento de pesquisas voltadas à área
cultural, o que contribuirá para desenvolvimento da cena artística da cidade.
Nesses três anos atuando na área de Gestão Cultural, Nell Araújo tem dado ênfase
ao trabalho colaborativo na vertente social, propagando a importância dos espaços
artísticos do TE, ao desenvolver um novo viés na multiplicação de novas formas de
políticas culturais que disseminam as linguagens artísticas. Mesmo com todo esse
manancial cultural e com grande capacidade mobilizadora de vidas e de provável
transformação social, através da educação e da arte, infelizmente o projeto ainda se
encontra sem patrocínio permanente e regular, lutando diariamente para manter viva a
chama da arte na vida desses jovens afrodescentes em condições sociais precárias e com
poucas oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho e pela sociedade em geral.
Contudo, o TE espera conquistar novas parcerias para patrocínio das suas atividades. Os
resultados alcançados com o TE têm comprovado a importância de integrar a arte e
estudos da cultura afro-brasileira como forma de atrair e manter os jovens nos espaços
culturais, proporcionando-lhes uma nova experiência de estudos diferenciados e uma
pedagogia mais atrativa, voltada para expandir e fortalecer os valores da identidade
étnico-cultural dos nosso país.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação é uma das áreas que definem a nossa humanidade, sendo através dela
que o ser humano transcende o seu status animal ao recriar seus extintos, compreender,
elaborar, refletir, criticar, aprender e ensinar. A arte é uma importante interface para a
prática pedagógica por contribuir para formação do indivíduo de forma lúdica. Muito
além do entretenimento, a arte, mais especificamente o teatro, pode ser um eficiente
recurso pedagógico quando usado de forma transversal no ensino de diversas áreas do
conhecimento. As informações são processadas de modo diferente do convencional e
entendidas de formas mais críticas, ao trazer os conceitos abordados para uma realidade
mais próxima do aluno, dinamizando seu conhecimento e tornando-o parte do
conhecimento abordado de forma dinâmica e lúdica
O TE consegue desenvolver distintas habilidades e competências através da sua
matriz curricular de forma mais lúdica e com maior engajamento do aluno em comparação
a escola convencional. Nesse sentido, suas ações são voltadas para o ser, concebendo o
sujeito integralmente, considerando a mente, o corpo e a expressão. O modelo pedagógico
do TE é efetivo por promover o estímulo e o desenvolvimento do senso crítico dos alunos
participantes apoiando-se em perspectivas teóricas que dialogam com as áreas artísticas,
políticas e sociais. Adota, assim, um viés comunicacional que proporciona um vínculo
maior dos jovens participantes com a sua matriz cultural, transversalizando a cultura afro-
brasileira. Tal metodologia valoriza as características culturais do aluno, fazendo-o
refletir sobre o seu eu, sua identidade e suas raízes. As ações implementadas pelo TE
envolvem um novo conceito de espaço escolar, com uma pedagogia singular que
transforma e ressignifica a vida dos alunos.
O TE é um esforço coletivo impulsionado pela proposta colaborativa de
transformação social, orientada pelas ideias de Paulo Freire(1996), colocando docentes e
discentes em uma contínua relação de troca para uma aprendizagem mútua, utilizando os
espaços físicos do Teatro, não se limitando às salas de aula, transcendendo a ideia de sala
de aula tradicional e ocupando distintos espaços sociais. As intervenções são pensadas e
analisadas pelo idealizador, professores e apoiadores do projeto.

REFERÊNCIAS

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