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Mário Cesariny Poesia
Mário Cesariny Poesia
Mário Cesariny
ISBN 978-972-37-1992-5
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS, MÁRIO
(apresentação cordial)
O navio de espelhos
não navega, cavalga
[…]
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo.
Viver é ser lembrado, diziam os que sonhavam a memória dos vindouros como arma para
vencer a morte. Depois da morte de Mário, lembrei muitas vezes o autor da Pena Capital para o
sentir perto de mim, de todos nós. Hoje relembro e lembro, escrevo e transcrevo e reescrevo,
volto a viver com Mário nas palavras que necessariamente falam também de mim. Não me é
nada fácil — disse eu algures, repito agora — falar de Mário Cesariny. Não se fala da luz: a luz
sente-se, sente-se sobretudo a sua ausência nas trevas. Encontrei Mário Cesariny numa das
estações da minha viagem pessoal e daí fiz já sempre com ele o meu caminho, embora numa
classe diferente (pode aplicar-se a Mário o que ele disse uma vez de Pessoa: que viajou sempre
em primeira classe; claro que a seguir acrescentava, em jeito de consolação, que isso das classes
só tinha interesse para os que não viajavam nunca). Falar de Mário é falar do Surrealismo, e falar
do Surrealismo é falar duma moral, duma ética e duma subsequente política, é falar, em termos
bretonianos, dum projecto de coincidente transformação do indivíduo interior e do indivíduo
exterior ou social, um projecto que ainda não foi, um projecto que continua a ser, que será
sempre. Em palavras do próprio Mário: «O Surrealismo continua a ser o último enunciado
verdadeiro dos problemas centrais do nosso tempo, para quem quer viver como um homem, e
não como um porco farto e satisfeito. Como filosofia, como poética, como busca da direcção
desconhecida, da divindade civil: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, deram lugar aos
mandamentos sagrados do Surrealismo: Liberdade, Amor, Conhecimento.»
Nos primeiros anos da década de 80 (do século passado) eu começava a perfilhar horizontes e
procurar afinidades electivas para fazer o meu particular caminho de perfeição. De olhos muito
abertos, febril na minha procura, e num estado de «disponibilidade absoluta» como tinha
aprendido do mestre André Breton, essa minha procura havia de propiciar «necessariamente»
(segundo as teorias sem sistema do acaso objectivo) a minha descoberta dos surrealistas
portugueses — não propriamente descoberta, mas sim festa sucessiva de encontros e
reconhecimentos. Daqueles meus companheiros surrealistas portugueses de navegação à procura
da nossa ilha de São Brandão, alguns já desapareceram (ou embarcaram num outro Argos para
sempre) como António Domingues, Carlos Eurico da Costa, Risques Pereira, Vespeira, Ernesto
Sampaio ou Carlos Calvet (junto com outros pilotos de altura como Al Berto, Hermínio
Monteiro ou Ana Hatherly), enquanto alguns continuam felizmente vivos, no sentido pleno e
activo do verbo «viver», e não no mais frequente de deixar-se viver ou ser vivido. Num mês de
Novembro — o de 2006 — embarcou também para a sua viagem definitiva um dos meus
(nossos) argonautas maiores, de seu nome Mário Cesariny (pelo menos até encontrar, ele e todos
nós, o nome puro, verdadeiro e terrível naquela «idade em que serão esquecidos por completo /
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas»). No meu caso, foi primeiro o «autor», o
«artista», o «poeta» Mário Cesariny de Vasconcelos encontrado nos livros e nas falas de amigos
já transformados pela sua magia. Depois, o Mário Cesariny procurado em Lisboa-Os-Sustos e
encontrado no seu santuário de Delfos particular da rua Basílio Teles (da editora Delfos era,
aliás, o primeiro livro que comprei de Mário Cesariny, a antologia Poesia 1944-1955, de 1961).
Aí apareceu-me já, numa só pessoa, o mago e o amigo, a palavra oracular e o abraço fraterno. E
assim Mário Cesariny (ou Cesariny-Rossi, como ele gostava de aparecer nalgumas das nossas
últimas tardes cesarioverdianas, na hora do lusco-fusco), passou a ser simplesmente,
definitivamente Mário, o gato marujo em permanente metamorfose e cio, o menina-poesia de
cabelos-de-medusa (assim chamava ele a Olga Gonçalves) e olhar e sorriso breve azul-
relâmpago e duro e cheio de ternura, o jovem mágico e o velho da montanha, o grande sábio que
conhecia o segredo rimbaldiano de dizer num verso ou num leve aforismo iluminado os mil
rostos e atitudes e gestos de cada instante de realidade, duma realidade que ele constantemente
«reabilitava» só com a sua presença (embora ele sempre negasse a possibilidade dessa
reabilitação), o capitão do navio de espelhos com um porto e um cais e um abraço em cada
coração. Dele, de Mário, e desde ele e com ele doutros muitos amigos (às vezes instalados na
distância e na ordem da memória afectiva, como Cruzeiro Seixas), aprendi o que ele aprendeu (o
que eles aprenderam) dos mestres da «única real tradição viva»: que a beleza é sempre convulsão
que nos desloca para cima, no sentido dos deuses; que a poesia, para ser, deve ser sempre uma
verdade prática; que devemos aprender a tirar as mãos dos olhos se queremos ver a bela
adormecida na floresta; que para isso temos de (re)conquistar o «olhar selvagem» da criança, do
forasteiro, do bêbedo, do louco, do namorado, do poeta; que a poesia é a nossa mais verdadeira e
profunda via de conhecimento e que desse conhecimento advém o único saber positivo e possível
sobre as coisas que verdadeiramente (nos) importam; que o verbo na sua força dinâmica cria o
que nomeia, convoca o que evoca e dá realidade ao real; que só a imaginação transforma e
transtorna; e que só ela é capaz de nos descobrir a realidade poética por trás da realidade real;
que o humor é também uma força (auxiliar) revolucionária, em aliança de iguais com o amor e as
suas muitas variantes, do amour fou à amizade ou ao simples olhar de cumplicidade e de desejo
trocado num bar ou num comboio ou numa rua qualquer; que a tudo isso podemos chamar-lhe
«Surrealismo» ou dar-lhe um outro nome, mas que, chamado assim, devemos acrescentar que
esse Surrealismo nada tem a ver com maluquices ou brincadeiras ou bizarros desvarios, mas sim
com uma poética e uma estética e umas práticas literárias e artísticas (de que foi mestre inventor
e guia Mário Cesariny), e sobretudo com um projecto de transformação individual (moral) e
social (ética e política) que hoje parece necessário e urgente lembrar e assumir e por ele voltar à
rua para gritar que o rei vai nu e que precisamos de novos alfaiates (no que Mário Cesariny tem
sido exemplo e às vezes vítima — propiciatória ou não).
Falo do «meu» Cesariny. Se quiser falar nele visto de muito longe, desde a maneira
enciclopédica e pedagógica de arrumar o mundo a que nos têm acostumado, poderia dizer, por
exemplo, do Mário Cesariny (ou Cesariny, vírgula, Mário, para ser mais exacto):
Figura fundamental na história da intervenção surrealista em Portugal na altura em que essa
aventura nos aparece sob a forma dum «movimento (mais ou menos) organizado» — 1947/1953
e 1958/1963. Cesariny prosseguiria individualmente, como haviam de fazer alguns outros dos
seus companheiros sobreviventes, a aventura surrealista através duma actividade inesgotável e
multiplamente orientada. Dedicou-se à pintura, primeiro em paralelo com a escrita e, a partir
duma certa altura, de forma quase exclusiva — exactamente desde o momento em que decidiu
abandonar a poesia «cansado de invocar o santo, sem que o santo aparecesse». «Escrevo desde
1942. A febre durou doze anos. […] No fundo escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever
poesia é uma espécie de invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo,
sobretudo se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais. […] A pintura parece não bulir tanto
connosco. É imagem à mesma mas parece exterior. É um trabalho de mediação em que parece
não se estar implicado. Na poesia, na escrita, estão todas as nossas vísceras.»
Colaborador habitual de diários e revistas, publicou várias séries de panfletos em fotocópias
numeradas e assinadas, fez exposições da sua obra plástica em numerosas ocasiões, de maneira
individual, e participou também em muitas exposições colectivas, desenvolvendo até à sua morte
uma frenética actividade de transformação e reabilitação ou redenção do real quotidiano de que
foram nascendo dia a dia colagens, objectos e outras fantasias materiais.
Da sua extensa obra literária, destaca o seu trabalho de antólogo, recopilador e, apesar dos
seus (fundamentados) paradoxos anti-historicistas, historiador (polémico e quase exclusivo, o
primeiro talvez por causa do segundo) das actividades surrealistas em Portugal, sendo por outra
parte a sua obra poética uma das mais ricas e complexas aportações para a história da poesia
portuguesa contemporânea. Poesia primeiro de intervenção contra as poéticas dominantes no
Portugal dos 40 (presencismo residual, neo-realismo, panlirismo ecléctico) desde a trincheira da
paródia e do pastiche sarcástico, poesia do falhado intento de reabilitação do real quotidiano
(exemplar, nesse aspecto, a sua utilização de Álvaro de Campos como interlocutor privilegiado e
cúmplice ao mesmo tempo homenageado e «simplificado» para a ocasião), poesia depois e
sobretudo do amour fou desejado, vivido ou malvivido, abandonado ou traído, olimpicamente
cantado ou lembrado e recriado elegiacamente. Reabilitação do homem exterior, libertação do
homem interior: eis o papel, o sentido exacto e fundamental da Poesia. Numa entrevista
lembravam-lhe que alguém tinha escrito que «a sua poesia é um grito que conhece a sua própria
inutilidade», e ele respondia assim: «Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito,
não grita. A poesia que escrevi é uma coisa que me foi e ainda é útil. Se o é para os outros não
sei. A questão da inutilidade não se põe. Já Valéry dizia que o poema é o acto de criar, é a
criação de um espaço. É um exercício de libertação em que muito daquilo que nos ensinaram não
serve para nada, antes pelo contrário… Poesia que, aliás, é sinónimo de Surrealismo: Não vamos
dizer surrealismo. Vamos dizer poesia. Porque surrealismo é o que existe de mais parecido com
a poesia. Tudo o que nasce como revolta é um tormento. O surrealismo foi um convite à poesia,
ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o
futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai
desaparecer, ficou explícito. Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre...»
Podemos jogar a situar a personagem na paisagem da Lisboa e do Portugal onde «em tempos
que já lá vão» (felizmente) começava a aventura do tormento e da revolta, e para isso pode
ajudar-nos também a própria formulação lírica do Poeta:
Ainda não se tinha inventado o «abjeccionismo» como específica tendência literária, mas o
ambiente e alguns dos seus efeitos começavam já a apontar nessa direcção. «Que pode fazer um
homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?», perguntava Pedro Oom.
Nessa atmosfera, o objectivo para Cesariny, para muitos, era claro: reabilitar profunda e
urgentemente a realidade quotidiana. Objectivo possível ou impossível? Para demonstrar a
impossibilidade (trágica) dessa reabilitação, Cesariny dialoga com Pessoa desde Louvor e
Simplificação de Álvaro de Campos, ponto de intersecção e de ruptura e de fugida para outros
horizontes literários e (também, necessariamente) morais e políticos. Não se tratava de uma
deserção, mas sim duma necessidade interior de «abrir portas ao campo», como pedia Octavio
Paz. A chave — a clé des champs — encontrou-a (encontraram-na alguns) no Surrealismo
através dos textos então reeditados e divulgados de Breton e dos seus fiéis ou infiéis
companheiros e amigos. Claro que melhor que «neles encontraram» deveria ter dito que neles
«se encontraram» ou, se calhar, que neles viram adequadamente formuladas algumas das suas
maiores interrogações e respondidas algumas das suas perguntas e perplexidades. Estamos a falar
de finais dos quarenta, momento em que acontece em Portugal o milagre daquilo a que com
justiça e com rotundidade chamou Cesariny «a intervenção surrealista», intervenção fugaz mas
explosiva, iluminadora. E nessa luz e desde essa luz e dando força a essa luz iremos encontrando
já a poesia «maior» de Mário Cesariny, bebendo nas crescentes da tradição popular ou
aproveitando a lição dos poetas «experimentais» do barroco português e espanhol, utilizando
com mestria as diversas «técnicas» (?) — o humor (negro ou objectivo), os jogos (entre eles, o
cadáver-esquisito), os inventários, o automatismo, a colagem e o picto-poema — aproveitadas
pelos surrealistas para desarticular (e rearticular depois satisfatoriamente) o mundo (a sua
aparência diurna a sua oculta nocturnidade, o fenomenológico e a sua apropriação pela
consciência), para impor desde o poema e pelo poder da palavra poética o «princípio do prazer»
sobre o «princípio de realidade» (aqui a sombra de Freud), para «dizer» o mundo na sua mais
difícil e terrível e divina leitura, aquela em que, e pela qual, pode dialecticamente chegar-se à
síntese definitiva de (todos) os contrários. E «dizer» acabaria por se transformar em «dever», em
tarefa difícil (prometeica) porque «entre nós e as palavras há metal fundente» e porque, todavia,
entre nós e as palavras interpõe-se «o nosso dever falar», como explica o poema talvez mais
conhecido de Mário Cesariny, «You Are Welcome to Elsinore», que nos serviu para iniciar esta
evocação:
O título do poema remete para o Hamlet de Shakespeare, quando no Acto II, cena II, Hamlet
dá as boas-vindas ao castelo de Elsinore aos velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern,
convocados pelo Rei sob o pretexto da «loucura» do Príncipe e destinados a ser os seus carrascos
(sem eles o saberem) para serem afinal (sem eles suspeitarem) as suas vítimas. Convém que nos
detenhamos justamente no título e no que evoca e convoca e significa. Quando se fala no
Surrealismo português, na sua breve e polémica e decisiva intervenção (alguns, com
indissimulada satisfação, já falaram em «fracasso»), e quando se pretende caracterizar essa
aventura e a sua produção em relação sobretudo às suas relações com o Surrealismo francês (e
aqui, outra vez, a satisfação dos que apontam o Surrealismo português como tardio, querendo
dizer imitativo ou repetitivo, pobre e não original), sempre se tem referido a circunstância
política em que essa aventura surrealista teve de se desenvolver e como essa circunstância teria
sido a responsável tanto do tal «fracasso» como duma orientação mais ou menos original: o
«abjeccionismo», para alguns (que não eu, como já disse algures) um surrealismo
«especificamente português» ou, pelo menos, o mais específico do Surrealismo português. A
referida obra do dramaturgo inglês foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente
a miséria da «prisão» do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente
nomeado por O’Neill — No Reino da Dinamarca (no diálogo entre Hamlet e os seus
amigos/convidados, o príncipe dirá a uma dada altura da conversa que «Dinamarca é uma
prisão»). Dinamarca é assim o Portugal onde o Surrealismo português quis materializar o seu
sonho de Liberdade, Desejo, Amor e Poesia, e Elsinore a Lisboa que foi o seu território
acoutado, a cidade amada/abominada por O’Neill e contraposta a um Paris «onde o amor
encontra os seus caminhos» (o Paris de Nadja, por exemplo), a cidade de Palagüin de Carlos
Eurico da Costa ou, enfim, a cidade do poema «Crónica» de Fernando Lemos.
***
«O que Cesariny procura nas suas reflexões escritas na sua prática poética e na sua prática
plástica é um conjunto de valores capazes de integrarem um sistema explicativo da vertente da
sensibilidade nacional que lhe interessa. Tais valores, protagonizados por autores e obras
díspares, possibilitam-lhe o entendimento do nosso modernismo literário e artístico
(notoriamente Mário de Sá-Carneiro e Amadeo de Souza-Cardoso) em ligação ao simbolismo
que o precedeu (notoriamente Camilo Pessanha) ou que para além dele se prolongou
(evidentemente em Teixeira de Pascoaes) e ao lirismo (exacerbando a dimensão onírica de
Vieira) e estabelecem uma continuidade onde Cesariny procurou, à semelhança dos modelos
internacionais que também evoca (ingleses e franceses) enraizar e expandir o surrealismo
português. Esta é, finalmente, a ruptura que afirmamos poder associar à acção de Cesariny: o
modo como precede, aceita e promove a fusão das componentes atrás enunciadas num alargado
campo de influência e intervenção do surrealismo.»
Há uma década já que o navio-mário largou o cais para se aventurar no nevoeiro à procura do
mistério da pirâmide, depois de ter bebido das águas daquele lugar tenebroso e cantante onde se
juntam todas as nascentes. Mário foi, antes de mais, um homem livre e luminoso que cada dia
inaugurava o dia na noite da caverna e que soube encontrar mil tempos novos para o verbo amar.
Quero acabar este itinerário afectivo com outro poema de Mário, o «Exercício Espiritual», mas
desta vez «intervencionado» desde o amor, a saudade e o agradecimento pela sua luz que, como
dizia Pascoaes, é «hoje cada vez mais luz», talvez porque «as trevas são cada vez mais negras».
Tenho dito.
Perfecto E. Cuadrado
ESTA EDIÇÃO
(ou seja, mais um aviso a tempo por causa do tempo)
A edição que aqui se apresenta da POESIA de Mário Cesariny não leva acrescentados
adjectivos frequentes em edições parecidas, como COMPLETA ou CRÍTICA. Não é uma edição
crítica — mas sim simplesmente anotada — porque o editor não tem a suficiente ciência nas
artes académicas da ecdótica e porque lidar com a obra de Mário Cesariny equivale a penetrar e a
se perder num labirinto de danças e mudanças de palavras, versos, fragmentos, poemas e até
livros inteiros (leia-se atentamente o magnífico trabalho da Professora Maria de Fátima Marinho,
O Surrealismo em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987) que, mesmo
encontrando afinal uma porta de saída, acabariam por fazer da edição um livro quase ilegível. E
não é uma edição da poesia completa porque ficaram deliberadamente fora deste livro muitos
poemas filhos da fusão da palavra e da imagem como alguns picto-poemas, poemas-colagem e
livros que ficaram muito próximos do que Alexandre O’Neill chamou «novela em imagens», e
porque outros poemas irão aparecendo aqui e acolá na rota do navio de espelhos.
A lista das sucessivas edições da poesia cesarinyana poderia parecer-se muito a esta:
Corpo Visível, poema. Ed. do autor, 1950. Nova ed.: Corpo Visível. 15 ilustrações, capa e retrato do autor por Pedro Oom.
Lisboa: Edições Prates, 1996. Ed. fac-similada, com um hors-texte que reproduz a intervenção de Cruzeiro Seixas no seu
exemplar dedicado da 1.ª ed. do livro. Vila Nova de Famalicão/Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Assírio & Alvim,
2010.
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, poemas. Lisboa: Contraponto, s.d. [1952].
Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos. 1.ª ed., 1953; 2.ª ed., s.d. [1953]. Ed. fac-similada incluindo as duas edições: Vila
Nova de Famalicão/Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Assírio & Alvim, 2008.
Manual de Prestidigitação. Lisboa: Contraponto, 1956. Nova ed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 1981. 2.ª ed. revista: Lisboa: Assírio
& Alvim, 2005. Reed.: Lisboa: Assírio & Alvim [col. Biblioteca Editores Independentes], 2008. Reed.: Lisboa: Assírio &
Alvim, 2017.
Pena Capital. Lisboa: Contraponto, s.d. [1957]. Nova ed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. Reeds.: 2.ª ed., Lisboa: Assírio &
Alvim, 1999. 3.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor, poemas. ed. do autor, 1958. Nova ed., com
frontispício de Cruzeiro Seixas. Lisboa: A Antologia em 1958, s.d.
Nobilíssima Visão, poemas. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. 2.ª ed.: Lisboa: Guimarães Editores, 1976. Nova ed.: Nobilíssima
Visão (1945-1946). Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
Planisfério e Outros Poemas. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
Poesia 1944-1955. Lisboa: Delfos, 1961. Com um desenho à pena de João Rodrigues. Inclui: A Poesia Civil. Discurso sobre a
Reabilitação do Real Quotidiano. Pena Capital. Manual de Prestidigitação. Estado Segundo. Alguns Mitos Maiores Alguns
Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor.
Burlescas, Teóricas e Sentimentais (antologia de poemas). Lisboa, Editorial Presença, 1972.
19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres. Lisboa, Livraria Quadrante, s.d. (1972).
Primavera Autónoma das Estradas. Lisboa, Assírio & Alvim, 1980. Reed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 2017.
Sombra de Almagre. [Lisboa: Edição de Isaac Holly], 1983 [Com serigrafia assinada e numerada pelo Autor].
A Cidade Queimada, poema. Com ilustrações de Cruzeiro Seixas. Lisboa: Ed. Ulisseia, 1966. Nova ed.: Titânia e a Cidade
Queimada. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. Nova ed.: A Cidade Queimada, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988. Reed.:
Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V. Who Knows Enough About It
seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo mesmo no mesmo lugar. Com 2 Cartas de Raul Leal (Henoch)
ao Heterónimo; e a Gravura da Universidade. Escrito & Compilado de Jun. 1987 a Set. 1988. Lisboa: Assírio & Alvim,
1989. Reed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.
Uma Grande Razão. Os Poemas Maiores. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007 [antologia].
a) O metro
b) O mesmo
avé mari’
um dois dois três
cheia de grá’
um dois três quá
o senhor é convosc
dominus vobisc
bendita sois vós
espírito tu
entre as mulheres
nove dez on’
bendito é o fruto
zasseis zassete
do vosso ventre jesus
um dois três um dois três um quatro quá’
c) A rima
mar
ar
(engordar)
ver
chamar
(emagrecer)
cio
clio
macio mio
o
tutu
nu
JORNAL
na mudez do pinhal
a fonte
sempre tem
um murmúrio casual
de vigiar quem passa
que vem
de ver o mar, tão servo
do sol, ave de fogo no horizonte
NO CAIS
no cais
vaga uma luz
sombria
desde que o dia
se perdeu
uns dizem que é a noite
a noite e nada
outros não sabem que dizer
e dormem e sonham e desmentem
o sonho que dormiram
a minha alma, calada,
também não diz quem é
a alma dessa sombra
que talvez seja só
luz do anoitecer
e deixa-se prender
em movimento de água
fluir e refluir
que a maré tem
com velha indiferença
e no entanto
ela é como que a mãe
de coisas e seres
porque a todos molha
e vem
indistinta corrente
a quem
pouco importa ter alma ou ser gente
a luz do dia
não sai já, também,
emersa na água escura
múrmura, oleosa, ela
que o céu tem?
não é já sem vida
toda a abstracção
ou pensamento
que a quisesse guardar?
só o fluxo contínuo
do rio que sustém
as inflexões do vento
busca o mar
e encontra-o
num mudo entendimento
alheio
à graça desavinda de falar
não seja embora
essa casta harmonia
uma harmonia humana
nem o resto de água
saiba
que a morta luz do cais
é indicação vaga
de outra luz que raiou
e de outra hora.
ALCATRÃO
um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor
eu
vou pensando em coisas velhas
— sem sombra de desdém! —
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem
e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado
e declina, o dia
ao cinema da terra
vai jean-claude e eu
a ver:
rotos de tule
as senhoritas guerra
o anjo azul
e
foi uma mulher que o perdeu
O JOGO
Voz — Envio
Piano — Contínuo para a mão direita das notas de dó a sol, ascendente e descendente, sem
pedal, nos médios do piano. Andante, forte, mecânico, quatro vezes.
Voz Àquela
que em vida
foi desapossada
foi morta
descida
crucificada
e ao terceiro dia
não foi nada
Piano — Duplo acorde de dó maior com as mãos em grave e agudo, forte, seco, sem pedal.
Voz — Composição
Piano — Quinta lição da primeira parte do Novo Método de Piano, de Schmoll. À disparada. A
Voz entra logo a seguir ao ataque do Piano.
a terra era
pensava eu
sala de espera
carinho meu
nossa senhora
do mau ladrão
chegada a hora
da coroação
agrilhoado
— antes, depois —
chorei dobrado
por nós os dois
Piano — Três oitavas sucessivas de dó maior nos agudos com oitavas simultâneas de dó
sustenido nos graves. Forte, seco, sem pedal.
Voz — Apresentação
Orquestra e Canto — Ária de Leporello contando a dona Elvira as façanhas amorosas do Dom
João, de Mozart. Até onde convier. Quando entra a Voz, o comentário musical passa a segundo
plano. Finda a recitação, a ária volta em grande força e desmancha-se com a pressão progressiva
de um dedo de mulher sobre o disco emissor.
Voz — Reflexão
Piano — Décima segunda lição do Novo Método de Piano. Andante rápido, sem pedal, até ao
oitavo compasso. Entra a Voz, sem fundo musical até ao décimo verso. Neste, a Voz suspende-se
e o piano volta ao início do trecho, desta vez tocado ansiosa e aceleradamente até ao fim. Findo o
trecho, a Voz retoma desde o princípio da terceira quadra («entrou o anjo»…)
nunca saíra
de Nazaré
fiava lã
tinha José
entrou o anjo
pela janela
que modo estranjo
de falar dela
«Maria tu
vais conceber
o senhor nu
que vem morrer
de entre as mulheres
foste escolhida
tu és a serva
tu és a vida
de Gabriel
aceita, crê
vai para Belém
conta a José»
Maria Klophas
não percebeu
mas perguntar
não se atreveu
Piano — Acorde duplo de dó maior em trémulo, forte, sem pedal, com as mãos em grave e
agudo.
Voz — Visão
e na geométrica pureza
que emergindo vinha da treva
era uma rósea luz acesa
o corpo de nossa mãe Eva
Piano — Escala de dó a sol, ascendente e descendente, fraco, lento, sem pedal, uma só mão nos
médios do piano, três vezes.
Voz — Continuação
Piano — Oitavas simultâneas de dó e dó sustenido maiores com as mãos sobrepostas nos agudos
do piano, com pedal, e antecedendo, uma por uma, o primeiro, o terceiro, o quinto e o sétimo
versos do poema que segue. Intensidade sonora irá do fraco ao fortíssimo.
e o milagre veio
sem perdão nenhum sem forma sem meio
menino perfeito
com fomes e prantos com raivas e peito
Piano — Acorde simultâneo de dó e dó sustenido maiores nos graves e agudos do piano, seco e
pouco forte até cinco, e de seis a dez diminuindo som.
Voz — Comunicação
Piano — Muito lenta e lamentosa, a Décima quarta lição («Alegria de Brincar») do Novo
Método de Piano, até à coda. Com a entrada da Voz, continua em fraquíssimo segundo plano.
Desejável que os dois últimos compassos sejam dados imediatamente a seguir ao último verso do
poema que segue. Dados em fortíssimo e aceleradíssimo.
Piano — Primeiro Prelúdio do Cravo Bem Temperado, de J.S. Bach. Serve de fundo.
céu da Galileia
que a viste furtar
vento que ao passar
na túnica feia
não tiveste enleio
nem religião
que a coroação
depois é que veio
foi nossa senhora
que está no altar
sem poder andar
livre como outrora
quem ali sagrou
para os filhos teus
os pecados nossos
a terra e os ossos
do corpo de Deus
Fim do Prelúdio.
Voz — Consumação
Piano — «Gimnopédia», de Erik Satie. Mais lento do que é usual ser tocada. A Voz não entrará
antes de ser ouvida metade deste trecho musical, e este será executado até ao seu fim, mesmo que
já dito todo o poema seguinte.
cânticos de guerreiros
pedro paulo simão
Fim da «Gimnopédia».
Disco — Canto, dos mais graves e vibrados, dos monges tibetanos. Prolonga-se até à
conveniência da inconveniência. Interrompe-se.
Voz — Congelação
Disco — De novo o canto tibetano, em fortíssimo logo levado à surdina servindo de fundo.
Voz — (diz os versos com intervalos de silêncio de extensão pelo menos igual ao do tempo de
dicção, lenta)
Desde o sol-posto
que num torpor
maria klophas
morre de dor
desde o sol-posto
tempo foi tanto
oculto o rosto
rasgado o manto
a job igual
por gabriel
de deus hiemal
e hiemal dele
desde o sol-posto
que à beira-rio
maria klophas
morre de frio
Brusca variação da intensidade sonora do canto. Logo volta à surdina. Logo se interrompe.
Voz — Canção
Apito de comboio ainda longe e que a seguir passa com o devido estrondo. Breve música de
flauta pastoril. Canta o galo, duas vezes, uma perto, outra longe. Voz afastada que profere alguns
monossílabos indistintos e a seguir trauteia a jota de El Sombrero de Três Bicos, de M. de Falla.
Este trautear, por vezes mais claro, por vezes atabalhoado, sempre ténue, serve de fundo.
Fim da voz que trauteia. A toda a força sonora, os compassos mais melodramáticos da «Valsa
das Flores» do Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Interrompem-se.
Voz — Conclusão
(*) — Ou disco.
CANTIGA DE S. JOÃO
Esta cantiga é de retorno perpétuo e noite inteira para solista e coro num mínimo inicial de vinte
e uma vozes. Marcação, caracterização e variação do solista e dos coros a cargo de quem o fizer,
cabendo aos possíveis realizadores, por progressivo recurso a novos recursos incidindo em
diferentes dicções e distribuições delas, mímicas, representações estudadas ou espontâneas,
danças isoladas ou de colaboração com o público, introdução atroadora de elementos de música e
percussão, aparecimento de elefantes na sala, etc., e a renovação da repetição.
A partir da possível quarta repetição o estado de histeria colectiva para que o texto apela desde o
primeiro verso não pode nem deve deixar de manifestar-se, e se o público que agradece continua
a não querer abandonar, deve descer um cartaz com, bem visíveis, os seguintes dizeres:
ATENÇÃO! PERIGO DE VIDA. É MELHOR RETIRAR.
É noite de S. João
repete três vezes quero
os dedos da tua mão
Já certamente passaram
por aqui a procurar-nos
passaram e não nos viram
onde estão que se enganaram
nos caminhos que seguiram?
E os outros, que se casaram?
ela
que pelo azul
que corta
considera e chama
outras velas irmãs para o claro rio
e enquanto
o cais
é um enorme navio
que se nega
e no entanto cumpre
a mais estranha viagem
ela
que parte
vira
para o que abandona
um olhar de brancura
que é toda a matemática
singela
da manhã que a inspira
cores ramos árvores sobre a água fazem
um desenho primaveril
o sol as nuvens meigamente trazem
secreto e juvenil
e ela
a água que tem
o seu correr
abre-lhe o seio suave
de mãe fria, de mãe
que o não pode saber
O adolescente morto
que está nos meus braços
de que velho horto
tem os membros lassos?
Campeava amor
— quem o ama agora?
E este meu estupor
que nem sequer chora?
Decerto o vencido
foi, de uma batalha,
teve uns sustos de ferido
ou coisa que o valha
Como se mimasse
adagas aos molhos
sobre a própria face
sobre os próprios olhos
E falava de querer
— se ele agora soubesse…
eu senti-o morrer
como quem se esvanece
Está morto. Paciência
se nada o desperta.
Fugiu-lhe a ciência
pela boca aberta
debruça-se interior e calmamente
para o corpo do rio e também pensa
tão-só a ideia de ser flor e não
estrela ou emoção
sob o pequeno esquema natural
que a envolve e a consente
RETRATO
geometria
rumo incerto
alegre e triste alegria
sempre mais perto
força fria
mãe do dia
regaço puro e coberto
dom breve
silhueta esguia
catapulta no deserto
ANTILÍRICA
igual a noite é
como o jardim deserto
um espelho no café
que permanece aberto
e à rua percebida
passam ciganos com as suas mães
em portalegre o cemitério
deita por cima dos ciprestes
no leve solto azul funéreo
o exterior véu de mistério
que tem qualquer cemitério
MOVIMENTO
movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu leia?
para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença
coitado do hamlet
assassinado
empurrado
para o sepulcro que é
coitado do hamlet
TOCATA
por mim
sinto um duende benigno que sorri
não bem de ti!
nada de Debussy!
mas do igual da hora
de sempre chover
de estar sempre frio lá fora
quando tu tocas Debussy
TOCATA II
esse girassol
amarelo e só
tem do que é o sol
a luz que o rodou
ou chamamos o fantasma
da queda livre no espaço,
verga do pássaro de aço
onde a poesia se espasma?
A UM SOLDADO QUE CHORAVA DE TANTA COISA
TINHA PARA LEVAR AOS OMBROS E ARRASTAR
COM AS MÃOS
anda soldado
não te demores
vais atrasado
anda não chores
anda soldado
afia os gumes
vais atrasado
anda não fumes
anda soldado
acenam chamam
ainda te esperam
ainda te amam
MANHÃ FRESCA
E na folhagem também
certo desencontro corre:
a primavera que vem
na trovoada que morre
EM FORMA DE POEMA
vê tu se nesta alegoria
descobres porque estou inteiro
e nunca terei agonia
sem fartar meus sonhos primeiro
DISCURSO SOBRE
A REABILITAÇÃO
DO REAL QUOTIDIANO
I
inteligentemente estúpido
estúpido nunca grosseiro
um pateta que tivesse lido Joyce
lanceiros 2
o protótipo de metralhadora
vai cheio de cinema até aos olhos
tapa
IV
faltas tu faltas tu
falta que te completem
ou destruam
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada
— não, de nenhuma maneira resultante!
nem mesmo o amor
não é o amor que falta
falta uma grande realmente razão
apenas entrevista durante as negociações
oclusa na operação do fuzilamento cantante
rodoviária na chama dos esforços hercúleos
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo
isso eu o espero
e o faço
junto à imagem da
criança morta
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo
sobre o cadáver dela
e longas filas de bandeiras esperam
devorar Picasso
que é perto da criança, ao lado da boca minha
XI
A mosca
passa
ou não passa
é um pouco como todas as coisas
estão mas não aparecem
e podem levar anos nisso
Ao fundo
o galo enerva-se e quebra a mobília
numa grande convivência francesa
co’a mosca que foge espavorida no vento
esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava ver num livro de versos. Pois é verdade.
Denota a minha essencial falta de higiene (não de tabaco) e uma ausência de escrúpulo (não de
dinheiro) notável
que contou de repente que com ela era assim: uma escada para o alto, que nunca mais acabava.
Também havia quem viajasse muito
todas as noites e no mesmo sentido
e em toda a parte
o sexo feminino estadista e general
extra-strong e super-cream
procura uma saída em caso de acidente
mortal em toda a parte
duplicações de indivíduos estranhos
esperam indicações úteis com o auscultador no ouvido
enquanto cinquenta anos de vida missionária
fazem descer o preço do café que tomamos
com o vestuário em chamas em toda a parte
aparece a palavra Napoleão
no cotovelo de indivíduos portadores
das mais recentes leis da maternidade
tanto para senhoras como para rapazes em toda a parte
um mendigo dactilógrafo corta fiambre
para a edificação da grande árvore
enquanto o marinheiro limpa a sua unha
em toda a parte
e um crocodilo que nasceu de costas
aguarda assim a decisão injusta dos tribunais competentes de toda a parte
POEMA PODENDO SERVIR DE POSFÁCIO
isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e
tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?
e em todo o caso
Primo em linha recta do Gato Legível, uma nem sempre fundada tradição de abandalho
pesa sobre a origem egípcia, eminentemente cruel e aristocrática, dos da sua espécie. O
GATO urina com êxito nos objectos de lar, e quando a angina estala enfim os peitos da
patroa que julgou poder fretá-lo para pequenas voltas, O GATO esfrega os olhos, abre
uma janela, e voa toda a noite, de barriga para cima. Nestas surtidas voantes encontra-se
por vezes com os seus camaradas libertários, e então acendem fogos que, uma vez por
ano, formam cortejo em direcção à Lua, onde um gato já cego os devolve aos espaços,
transformados em cinza e em máquinas de luar.
O FUTURO REI RAPAZ DE ESPADAS
Morfologia psicológica:
a coroa — o sexo
o ceptro — a vírgula
as asas — as garras
as pernas — o fogo
a cabeça — o túnel
a mão esquerda — a gruta
a pata direita — a lua
os pés — o desejo
as membranas — o olhar
Lit.ª —
«Entre a noitenenterraço
e a mortenentelescópio
o Sol Dado assoma ao ralo
e faz o sinal anti-grito»
Lit. — «não havia braço são que pudesse romper o tesão da água.», Dic. de Marinha, 505.
«Correm as águas como sangue», id.
A CABEÇA DE ARCAIFAZ
(SISMO)
Localização fonética:
a) A cabeça: onde cabe a eça. Pop.º: cabe a eça agora!
b) de Arcaifaz (sismo): o ar (que) cai, faz (produz) sismo. Faz sismo: o ar cai. Caído o ar,
fica o caifascismo, o que dá cai, dá sismo, e retira o ar que caiu. Por isso se diz que não há
ar onde há alguém que faz sismo, podendo no entanto sufixismar-se o prefixo, o que dará
a CAIFAZCISMAÇÃO, sublimação da cisma que Caifaz.
A NOIVADIAGEM SERPENTE
Mistura clássica de noiva e de vadio. Vista com bons olhos na antiguidade (Zaratustra,
Ulisses, Aquiles e Pátrocles); ligeiramente encarada por Sócrates; reformada de alto a
baixo por Platão; cruzando já a estrada do sacrifício com o florescimento dos impérios
cristãos — Tristão e Isolda, a Cavalaria Andante —, o advento da burguesia lançou a
noivadiagem na morte civil, criando perspectivas absolutamente alternas à sua força
inicial de amor físico, heróico, transfísico e alquímico.
A Grafiaranha vive nos poços de água limpa rodeada de espelhos diamantíferos que se
transformam em pássaros quando são descobertos. O seu sinal é uma forma roxa,
extraordinariamente vagarosa, que avança a custo por uma planície cujo chão é o espaço e
cuja noite é o mar.
Objecto que se usava para provocar solidão. Os últimos a conhecerem o seu emprego
foram os druidas, que lhe chamavam «o prego da melancolia» e o cravavam na testa das
mulheres para que fossem puras e isentas de precipitação.
Há fósseis que permitem localizar o aparecimento deste utensílio durante todo o segundo
glaciar.
A HOMOSEXOALMA
A
ALMA
SEXO
DO
HOMEM
O ESTUPROPULSOR DIATÉRMICO DA HONRA
Investigar nos lares e outras associações secretas. Tem revestido o aspecto duma forma
benigna do cancro: A DAMA ANTINOMA.
Mata à terceira vez que lhe aparecem.
A ROSA ÍRIS, RAPARIGATAÚDE
Voltar ao fim.
Pintar três vezes o sete:
ficar doido.
O ASSASSINOS
Pai — ai
Mãi — em
Um ai.
Em.
Homem.
Ó Mãi.
M HOMEM
EI OMÃI
MÃI MÃI
OMÃ I I E
HOMEM
MANUAL DE PRESTIDIGITAÇÃO
ARTE DE INVENTAR OS PERSONAGENS
Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes e os personagens aparecem
ARTE DE SER NATURAL COM ELES
Em luzes e achados
chãos e valados
barcos chegados
comboios idos
Procuro os meus antepassados
altos hirsutos penteados
mudos miúdos desprevenidos
Devo ter corredores por onde ninguém passe devo ter um mar próprio e olhos cintilantes
devo saber de cor o ceptro e a espada
devo estar sempre pronto para ser rei e lutar
devo ter descobertas privativas implicando viagens ao grande imprevisto
de um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do teu peito o animal que inanimado canta
devo ser Júlio César e Cleópatra a força do Dniepper e o carmim dos olhos de El-Rei D. Dinis
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não
dia sim dia não
devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos técnicas mais sérias prestígios maiores
devo saber que és forte amplo transparente e colher-te murmúrio flébil aureolado
que eu arranco da luz que encharca o mundo
dia sim dia não dia sim dia não
devo portar-me bem à saída do teatro
devo dar e tirar as chaves do universo
num passo ágil belo natural
e indiferente ao triunfo aos castigos aos medos
fitar unicamente, sob as luzes da cúpula, o voo tutelar da invisível armada
MÁGICA
Era uma vez uma grande boa vontade que se pôs a correr mundo e que no gastar dos sapatos
daqueles dias se fez tão pequenina que cabia em qualquer bolso. O crescimento definitivo foi
numa quarta-feira de Primavera, dia em que a meteram na parte de dentro de umas calças e a
embarcaram para o México. No México só há polícias sinaleiros baixinhos e adolescentes de
olhos encarnados, sempre a bocejar, e a dizer de hora a hora a palavra: cabana, de forma que a
boa vontade não sabia o que havia de fazer.
Para ir ganhando tempo, resolveu montar uma indústria chapeleira, com a qual inundou o
mercado. Como é natural, as cabeças andavam todas contentes, de trás para diante e de diante
para trás, o que as fazia produzir um som comprido, em forma de enseada, que os músicos iam
recolhendo para as suas óperas. Dado o bom êxito inicial, a boa vontade não só se deixou
cumprimentar, num estrado vindo da América, como estabeleceu ligações com Pápárikáss,
homem muito odiado e sempre pelos casinos —: aderiu à guerra que estalou naquele tempo,
lançando de repente os célebres chapéus marca PERA, para abrigar generais. Estes, porém,
dissolveram a empresa, sob a alegação seguinte: não está a acompanhar.
Solteiros de profissão e naturais de Sevilha, os criados revoltaram-se, mexendo muito uns nos
outros e recusando-se a andar. O distúrbio custou duzentas mortes, um casino, a esposa de
Pápárikáss (pendurada de uma janela a arder), onze bois do abastecimento, e a Sagrada Relíquia,
que o inimigo apanhou comendo-a logo ali com um apetite enorme.
Então, como hoje, as ruas estavam cheias de desonestos, e uma canção acanalhada, francesa,
La Petite Enorme, correu todos os bares, pondo em perigo fastios e governação. O sinal de
acabar aqueles insucessos foi um ovo estrelado milagreiro, que não só deitava petróleo e carvão,
quando ofendido, como sabia processos divinatórios de encontrar os ladrões naqueles sítios
certos em que eles é raro estarem. Isso acabou de vez com a ameaça de distúrbio civil, coisa
sempre de temer quando as guerras grandes acabam e os generais voltam para casa.
Comemorando a vitória, mandou o governo um grande Parque onde as crianças se arejavam
imenso e cuspiam à vontade à vista de todos os peixes. Ao sábado, tocava a música, e apareciam
mãos por todos os lados, o que originou um desporto bastante original: o sape-gato-codorniz-
galinha. Era assim: uma enorme correnteza de mãos, formando meta. Com o sinal da partida iam
todas por ali fora às trabuzanadas umas nas outras e a que chegava primeiro era separada do
respectivo pulso, e enviada para França. Nunca mais se sabia dela e os prémios eram distribuídos
por todos os assistentes que, em sinal de regozijo, comiam bacalhaus e prometiam novos
formatos de mãos, para as competições seguintes.
Assim começa a história da boa vontade que embarcou para os brasis e lá montou indústria.
COLAPSO
Tudo está
eternamente
escrito
(Spinoza)
Tudo está
eternamente
em Quito
(Uma Rosa)
A IMACULADA CONCEPÇÃO
Um pássaro
a pino sobre as rochas
um pássaro jamais visto
um pássaro só pássaro
um pequeno pássaro enorme
fascinante
gelado
Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos fechados a passagem do vento
dizia eu dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os palácios rasos de água
no escuro no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos, deitados, sem dizer palavra,
morreremos de ter-nos conhecido tanto
e depois? e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a pedra de um sonho
mas os salões? e a casa?
e o cão que nos seguia?
Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem
MANUAL
Ai
Manuel de trabalho manual
Ai manual de prestidigitação
CORO DOS MAUS OFICIAIS DE SERVIÇO
NA CORTE DE EPAMINONDAS, IMPERADOR
Vá
uma morte loura
simpática
acolhedora
que não dê muito que falar
mas que também não gere
um silêncio excessivo
vá
uma morte boa
a uma boa hora
uma morte ginasta tradutora
relativamente compensadora
uma morte pedal espinha de bicicleta quase carapau
com quatro a cinco soltas a dizer
que se ele não tivesse ido embora
tão jovem tão salino
boas probabilidades haveria de ter
de vir a ser
dos melhores poetas pós-fernandino
vá lá vá lá Mário
uma morte
naniôra
que não deixe o esqueleto de fora como nos casos do mau gosto
os esqueletos têm sempre um quê de arrependidos
se bem que por aí já convinha lá isso já também era verdade
vá
o demais demora
e
francamente
nunca será teu
vá vá vamos embora
Sim realmente
onde está a camisola? Ola
palavra espanhola que quer dizer-nos: Onda
coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras há tantos anos
não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras?
(O mundo é redondo
talvez a reencontremos…
Em cima do barco
que esperta a corrente
é hoje que parto
para sempre
Enfuna-te, escuna
Aproa ao vulcão
ENQUANTO…
Enquanto três camelos invadiam o aeroporto do Cairo e o pessoal de terra loucamente tentava
apanhar os animais
eu limpava as minhas unhas
quando acabava de ser identificada a casa onde viveu Miguel Cervantes, em Alcalá de Henares,
eu saía para o campo com Rufino Tamayo
enquanto um português vivia trinta anos com uma bala alojada num pulmão
chegava eu ao conhecimento das coisas
Agora já não há braseiros — os destroços foram removidos —
os animais espantaram-se
e como se não fosse desde já um admirável e surpreendente esforço a nossa acção de escritores
afogado num poço canta um homem
ORADOUR-SUR-GLANE
construção % construção
progresso no transporte
ORADOUR-SUR-GLANE
Souviens-toi
REMEMBER
HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE
Eu estou presente
todo eu sou sim
e é de repente
não dou por mim!
Um bom vazio
me vem encher
(nem sinto o frio
de me não ver)
Heróis antigos
olhos cientes
passam amigos
dizem parentes
Passam os manes
do eternal
e os ademanes
do amoral
Passam aqueles
com os aquelas
tanto sou deles
quanto sou delas
Sou de ninguém
estou em olvido
e mais despido
que Pedro Sem
Colorações
Trigos e joios
Caem aviões?
Chegam comboios.
Os tristes olham
o escasso cais
que as ondas molham
(Água demais…)
Os ébrios, esses
passam de largo
Ai Sá-Carneiro
Carneiro amargo
Praças pequenas
como alçapões
São os cinemas?
Serão ladrões?
Esfriei a rua
das Grandes Dores
fritei-lhe a lua
raspei-lhe as flores
Fui-me à de lata
sangrenta escura
patrícia pata
da dita dura
Esfriei-lhe o jeito
de assassinar
comi-lhe o peito
mais pulmonar
Esfriei as frentes
esfriei as trazes
fiquei sem dentes
merda, rapazes!
Altas, morenas,
com janelões
boas pequenas
estas prisões!
Ó burguesinhos
que quereis fazer
que heis-de fazer
queridos vizinhos?
Sabeis lutar?
Sabeis perder?
Viver? Morrer?
Que heis-de fazer?
Apenas vejo
como se ouvisse
um negro harpejo
que nem florisse
Pois no que vi
não ver é que há
e eu estou ali
não estando lá.
PARADA
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Sem abuso
que final há-de dar-se a este poema?
Romântico? Clássico? Regionalista?
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando
para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já
belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-
nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para
um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que
corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama
feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a
barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é
um duende gritando no telhado às ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus
braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer
chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choraremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio.
Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó
arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e
arame, homens e arame, rosas e arame.
POEMA
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore
miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente — tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris — já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião — não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais — também já por cá passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas
vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
A aurora
está fatigada
a aurora
como um rio nosso
em torno dos elevadores
Tinha eu a idade
de um marselhês
silencioso
e tímido
Tu davas-me a lousa dos magos
o teu riso as letras
mais obscuras do alfabeto
Belo tu és belo
como um grande espaço cirúrgico
A minha boca
sabe à tua boca
A minha boca
perdeu a memória
não pode falar as palavras
entram no seu túnel
e não é preciso segui-las
LIGEIA
«acima ou fora da matéria só comparável à estrela de sexta grandeza, dupla e variável, que se
encontra próximo da estrela grande da Lira»
MORELLA
de mãos frias e agudas, falando, falando sempre, «porque as horas de felicidade passam e a
alegria não se colhe duas vezes na vida, como as rosas de Paestum duas vezes no ano»
RODERICO
os cabelos sedosos em torno da face, os olhos grandes, húmidos, luminosos, os lábios numa
curva extremamente bela
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso e cantante» suficientemente
glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem —
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
II
Haverá
um acordar
DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO
Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu leito, um corpo estranho e surdo
um corpo incompreensível
aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do outro reino tristeza de
menino a quem tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer de gritar
esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos
como os que ainda podem interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras com cuidado o oxigénio
que o espaço te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição de
animal fulminado
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de
um soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo deserto
mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e iluminada como a
noite como um rasto de fumo sobre os hospitais
tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e gratas, a fazer a manhã de
outras paragens; outra sombra, outros olhos semelhantes
noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a minha miséria, os teus braços e os
meus, altos como cidades, altos como flores
parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as escadas, fechar ainda a porta
do teu quarto, atravessar de um pulo a minha própria vida
Meu maresperantotòtémico
minha màlanimatógrafurriel
minha noivadiagem serpente
meu èliòtrópolipo polar
no erro dos aviadores quando tentam explicar determinadas sensações que o andar pelo espaço
causa ao homem
nos dois tentáculos de árvore que apesar de tudo jorram da minha vida às dez e trinta da noite
esperança macho
nos dias em que marcho sem esperança até que um grão de areia fura toda a barragem subindo
rapidamente ao coração
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
INTENSAMENTE LIVRE
Intensamente livre o homem dirige-se para a praia mais pequena que ele
leva na mão um mapa-múndi azul é a custo que desce as dunas mais pequenas que ele
e sem ninguém que ateste a visibilidade radiogoniométrica destes seres
o homem perfura o poço mais pequeno que ele
abrindo o leão de costas que há no fundo do poço
o doce leão alado muito limpo que há no fundo do poço
A esta hora entre os blocos de prédios enevoados a bela mancha diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentado seguido pelas aves que acordam a duzentos e mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
não são
quem sabe
Livres
digo Livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais espectaculares — aí a memória é fácil
—
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela tu que disseste:
«vai haver uma grande guerra»
«nenhum de nós eu sei escapará vivo»
vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze enterrada na areia
o écran que floresce
como tu como eu nos tubos que dissemos
fizemos
faremos acordar
até quando?
Amor
amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cintilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu preto as suas hastes mudas
Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se pareça
Solta a nuvem como se soltava repentinamente no silêncio das coisas esse infinito turbilhão
de halos que eram a festa e a força do teu rosto, o céu abriu um buraco vazio que se pôs a
espreitar o soluço daquele que, nu sobre a rocha, estende para o mar as paralelas ferozes dos seus
braços. Quando a noite vier, e o recorte já frágil da nuvem desconjunta tocar o horizonte e entrar
nas águas, livrai-vos, vós, amantes atraídos pela aparente solidão dos rochedos, de procurar nas
concavidades próximas o leito ocasional da vossa estrela! Tu, meu amor — se devo voltar a ver-
te! — se ainda podes julgar ser possível abreviar assim as distâncias e o tempo… — que te não
lembre nunca cortar pelo atalho que inexoravelmente te deixaria à mercê, não dos elementos,
contra os quais, corpo a corpo, o homem pode lutar, mas de uma ambiência mais anti-natural e
envenenante do que os nervos do homem podem suportar. E vós todos, meus monstros
familiares, formas que andais de rastos toda a noite e que subis dois olhos rasos de água quando
um sol exuberante queima os vossos signos, afastai para bem longe, agora, essa procura, se
quereis que ela vos dure toda a vida! E o meu mais veemente aviso é para ti, cabeça entre todas
querida do assassino, ponte brilhando oclusa no universo, adolescência, tu, que deverias ser a
própria claridade e já afagas, sob as arquitecturas dos teus dedos, o sinal rutilante de mil votos
secretos.
É bem verdade que só o seu grito — que a distância transforma em música celeste… —
horroriza e afasta as criaturas das imediações. (Toda uma aldeia se mudou para longe quando
subiu pela primeira vez essa voz que ameaça sublevar contra ela homens e animais.) É bem
verdade que, se ele calasse, criaturas sem conto disputariam como um privilégio poder estar
junto a ele e, mesmo, tocar-lhe a fronte. Porque a sua figura, os braços sobre a areia, lança de
leste a oeste da sua base um resplendor tão intenso que uma ave, ferida em pleno voo pelo que
aos seus olhos aparece diferente da luz da criação, suspende um risco branco e desce até à rocha.
Ali estaca e rouqueja e passa horas, até que num pavor cuja raiz provavelmente ignora se lança
como uma pedra ao voo interrompido. Uma aranha do mar, seduzida pelo intenso dia desses
olhos que abarcam no seu raio a imensa e dolorosa distensão do globo, passou a um e um os
sulcos dos cabelos, chegou (como a um País!) ao começo da testa, e cravou nela o lar de seis
patas escuras, filhas da solidão, filhas do céu. Mas que se não conclua desse Fogo uma benesse
dada pelos deuses, nem se veja na insólita harmonia que por todos os lados esplende e
transfigura o seu enorme corpo acachapado, uma compensação requerida e outorgada. Se as duas
aguçadas fileiras de dentes se casam harmoniosamente com a celeste candura da face e dos
cabelos; se a juvenilidade do seu peito, experimentado e liso, recebe sem afronta a sombra de
umas mãos cujo desenho deixaria eufórica não importa que voz de câmara de horrores, é porque
um totem perverso e perseguidor lhe atirou como um dardo a sua maldição.
Um aranhiço, consciente da sua responsabilidade, desliza pela falésia e entra na areia. Ergue-
se o vento, e as formas alinhadas uma a uma nos grandes seios que apertam a duna, modificam a
sua anatomia, esfarelam-se sem ruído, e embora o aranhiço marche sempre, sem dúvida a
caminho do seu lar ignoto, o homem, menos apetrechado do que ele, deixou de circular pelas
cercanias. A areia lisa responde por isso… Então um sol prodigioso e negro explode no
horizonte! Atravessa os espaços majestosamente, e depois de riscar no céu iluminado uma
enorme figura chamejante, desce para o solo, desde grande altura. Esta é decerto a origem das
cidades porque já de todos os lados soam gritos e chegam casas aladas. Um barco maior que os
outros, ostentando nas velas cortinas de pássaros, levanta à proa um homem, as quatro
extremidades representando os pontos cardeais, as quatro direcções, as quatro únicas fontes! E
rutilando um fulgor muito frio, compacta sob a sua infindável dureza, surgiu, lua da noite de um
festim de cadelas, a tua boca. Ela tem mais veneno e mais horror do que toda a farmacopeia das
idades sombrias pôde descobrir. Vem ainda trémula do contacto das virgens que tu estendes nas
linhas dos comboios para tocares o fundo, não da epiderme fácil e oferecida, mas da alma que
grita dentro dela. Porque o amor, (agora és tu que falas), é um caso ante o qual só o vampiro
pode e sabe agir.
De homem ou de animal — visto que o homem já difere da besta, e não só pelo seu porte:
pela inteligente e estreme humanidade dos seus filhos; de homem ou de animal (embora fosse
melhor atribuir a qualquer espécie ainda não catalogada esse sangue, ou torrente de olhos
violentos que giram pela areia sem poder parar); de homem ou de animal — e eu penso nesses
seres ainda sem nome e ágeis, essas asas guardadas para voar; de homem ou de animal — uma
garganta clarifica a noite. Não é melhor do que a tua. (Nem mesmo pior que isso…). Mas é mais
resistente: lança a milhões de vóltios o seu pequeno incêndio.
(Com uma violenta contracção epidérmica fincou os largos cotovelos que sangram e
soergueu o busto: espreita a eternidade… Mas no mesmo momento fende a superfície, antes lisa,
da areia. A Terra abre e mostra as suas feridas.)
À transparência, entre alas de cristal, este quarto que parte para o desconhecido leva consigo
o chão de uma aventura que deve transcender os sentidos humanos. De um lado, o leão, do outro
lado, a águia. O amor na cama torna ao amor no espaço. Dizem-no assim, pelo menos, os
objectos raros que ainda voltejam em torno deste leito sem dimensão possível,
concentracionário. As velas apagadas e a brancura hermética de seis superfícies formando
pirâmide para um salto (aonde?), têm a caligrafia desse nome que se deixa, apenas, perseguir.
Quando a aurora forçar estas paredes e fizer emergir, sob as asas da sombra, as marcas desiguais
do mistério amoroso revelado — corta a mão que ficou no meu cabelo.
Leitor agradado deste poema mais eficazmente nefasto do que ao primeiro relancear de olhos
a curiosidade acusa: se ainda queres voltar à presença daquele que envia à natureza, através dos
seus braços estendidos, um desafio insolente; se algum instinto novo, ou até então obscuro,
desperta em ti o desejo de saber o que pode este texto fazer (ainda!) com ele — ou que revelação,
tu, que tanto me ignoras, receberás de mim se ao seu grito voltarmos — vira estas poucas
páginas e começa de novo. Como hoje me encontraste, encontrar-me-ás sempre… Quanto a ele,
acredita que, para o teu futuro (como para o futuro de uma humanidade que à falta de tarefas
mais elevadas pretende ser feliz, e que foi descobrir — sabem os anjos como! — que o saber é
uma estrela negra e inamovível em direcção à qual poucos singram intactos) é bem melhor que
fiques por aqui, que não o encontres nunca. Para viver, é preciso fazer mal. Antes, sempre, a um
outro, do que a ti. Por isso, se algum dia alguém te vier dar sinal da sua presença, ou se entre a
sua voz lancinante e contínua e a tua pessoa a distância parecer subitamente pouca, lança as mãos
aos ouvidos e procura correr, ainda que para isso tenhas de deixar saco de provisões e restante
bagagem.
UM CANTO TELEGRÁFICO
ah um automóvel!
Apetece contar uma história tão estranha, que as pessoas saiam aos tropeções de casa
apetece anunciar com voz fanhosa
cronologicamente cruelmente
todas as horas do pasmo
todos os dias do calendário do medo
todas as terças-feiras da angústia de haver rosas
todo o fumo e toda a raiva de um relógio de sol
Tomaram-nos o pulso e ficámos febris
com o amor que não há a inundar-nos a cara
este amor não esquece este amor
não se esquece há um rato
na tua camisa o céu brilha o céu está
os amantes retomam os seus quartos
num plácido e extenuante recolhimento gráfico
mas não basta encostarmo-nos à parede
para que tudo ressurja e vestir de novo as fardas
a imaginação ainda não é
para servir de pedreiro A Imaginação
as radiosas salas superiores
através da cidade nos jardins nas gárgulas
abre-se o leque das mil cenas celestes
com o homem na ponte cor-de-rosa velho
as mãos na água a cabeça no mar
Dir-te-ei que os meus dias foram os teus dias o teu leito o meu leito o teu corpo este mar
dir-te-ei que há uma rosa oculta num jardim e que ela é uma e outra como nós fomos
estas pétalas são os teus olhos fechados
são as ondas por onde sopra o vento e nasce a cor da aurora e o grito gelado das coisas
Na sombra repousante
os teus olhos os teus
vãos pensamentos
como um leito avançando sem suporte
ou um navio perdido do dono
O Azul, entrando:
Azul criado incriado
azul de todas as cores
dos caminhos anteriores
ao mistério revelado
O Azul:
Teus olhos lugar geométrico teus olhos estrada marinha
teus olhos vivos por dentro teus olhos treva exemplar
António:
Fora! Fora!
O Poeta:
Então que é isso rapazes estamos atrasados
toca a andar para o comboio meu amigo
e tu António cautela
já estás mais que parecido vai ser mau continuar
António chora, contrariado. E assim vão para o comboio, que os leva para o mar.
O Mar:
Eu faço a tempestade…
O Poeta:
Oh!
O Mar:
Eu, só, criei a terra por retirada minha…
O Azul:
Oh!
O Mar:
Eu dei o nome às pessoas…
O Azul e o Poeta:
Oh!
Flor:
Bom dia, boa noite.
O Poeta:
Pão a cozer…
António:
… Menino a ler.
O Poeta:
Fogo na palha…
António:
… Canta o canalha.
O Poeta:
Pouca atenção…
António:
… Cornos no chão.
O Poeta:
Enterocolites…
António:
… Frederico Nites.
O Poeta:
Delirium trémos…
António:
… Dá cá os remos.
O Poeta:
Esterno-cleido-mastoideu…
António:
… Foi uma mulher que o perdeu.
O Poeta:
A noite…
António:
… Não me lembro…
O Poeta:
A noite…
António:
… É o corvo em liberdade
O Poeta:
A Águia…
António:
… É o amor na cama
O Poeta:
Os Poetas…
António:
… São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética
O Azul:
Novalis.
António:
Salvemos Ofélia!
Salvemos a pureza que vai pela mão
Salvemos o doce cabelo
Salvemos, pelo menos, o braço.
Corre atrás do Frade que puxa dum pau e dá para baixo bem em cima da cabeça de
António que se agarra ao Frade e luta com ele, esquecendo-se ambos de Ofélia, que se
atira ao mar.
António, chorando:
Poeta!…
O Poeta:
Não.
António, chorando:
Poeta!…
O Poeta:
Não.
António lança-se ao Mar, onde flutua ainda o branco corpo de Ofélia. O Poeta e O Azul
impedem-no de se afogar dançando com ele animada sarabanda que em estreitos
movimentos circulares os começa a subir pelo espaço fora.
António:
Olha olha os países.
O Poeta:
Não são mais do que três.
O Azul:
Eu vou acelerar vertiginosamente.
O Azul:
Marialfabeta
Iowanalfabeta
Ariana alfa beta
Os Astros:
Um, três, cinco, sete, dez!
Dois, quatro, cinco, oito, um!
António:
Eu amava, tu amavas, ele amava…
Passam então por um pequeno Olimpo que anda a voar perdido de referências. Os
Deuses abandonam os jogos do costume e montam observatórios-periscópios por onde
estudam o grupo voante. Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros. A Máquina de
Consultar Os Astros diz o seguinte: Um, dois, dois, três, um. Das janelas dos terraços
alguns Deuses mais importantes escrevem em alvos cadernos individuais observações
pertinentes sobre o número e o propósito dos intrusos.
Caderno de Ares:
Tudo o que usa chapéu lhes diz respeito
Tudo o que à noite brilha conta com eles
Todo o anjo vestido de diamante
Toda a hora de luto e crueldade
O Azul:
Ó rosas catedráticas! Esplendorosíssimas rosas!
António:
Morte, morte, morte.
Dito o que, desfalece. É óbvio que vai morrer. O Poeta e o Azul carregam-no para cima
de uma cama de folhelho, acendem duas candeias e velam a seu pés. Um vulto muito alto
que parece pairar na vastidão dos ares, mas que em verdade se dirige para eles a uma
velocidade vertiginosa, é A Morte.
António, delirante:
Poeta! Meu Poeta!
António:
Ofélia…
O Poeta:
Muito parecida, António, muito parecida.
António morre.
O Azul, o Poeta, o Desmaiado e a Morte, descem em lentidão pelo ar abaixo.
Não passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais. O Poeta regressa ao seu
atelier nos astros, que a sua governanta encheu de flores. Faz café, que ingere em
goladas pequenas, sentado abstracto em cima do telhado. Chora um pouco e murmura,
olhando o céu escuro:
Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor.
AUTORACTOR
A cena representa
um rio à beira do rio
do festim que houve restam muitos sinais
no tronco de carvalho que vai à deriva
os lagartos pintados filhos da aranha de gala
tiram as sobrancelhas uns aos outros
ainda não é noite mas também
logo se vê que ainda não é dia
o mágico conduz o músico ao bufete
no sítio da cascata de obrigação estás tu a cena representa
os portadores de imagens
o primeiro edifício é um cinema pobre
que dá para a grande praça do obelisco
aqui é tudo mistério
contam a tropa do califa hassein
à ordem de rodolfo valentino
os fumadores estrangulam docemente a rainha
em costume escarlate cigarros sobre cigarros
no sítio da cisterna de obrigação estás tu a cena representa
a viagem por mar
tu levantas o vento dos corredores e fechas-te no quarto toda a manhã contigo
tu procuras a língua original e tombas num abismo de translação de corpos
chegou ao fundo a falua dos beijos
quem sair dela será rei do mar a cena representa
o desastre no moinho
minúsculas entidades postas de perfil para resistir mais tempo ao vento da eternidade
escalam os tempos de vida do poeta
lá em baixo parece que passa a tropa
trata-se na verdade de assassinato
saem a passo filósofos ratazanas terrinas de acesso duplo viagens ao conhecido
e extraordinariamente nos grandes dias felizes
sai a intentona subliminal da arte
na cela do vadio
implorando o milagre da ascensão do sol
doutor entregue às penas para sempre livre estás tu a cena representa
a oração da noite
que todos os dias começa no lado setentrional do quadrado da praça dita D. Pedro IV
e todos os dias acaba no lado norte do Jardim de Santos
à tua sombra avançam todos os meus gritos
de único muezin mil léguas em derredor
e ao pé de ti não há memória válida
ao pé de ti é a hora de partir sempre
não sem motivo choram na cadeia os velhos cristos de olhos purulentos
e a palavra de eterno deita sangue pela boca
e a noite faz à lua uma estrada limpa
és o tronco lançado pelos da mala-posta às rodas da carruagem
ergues-te e andas sobre toda a cidade
e a operação do fumo
o não-mais-drama o corpo
que se espacializa
esta aurora total a que chamam lepra
mil vezes a despimos e vestimos de novo
nós a fazer e a desfazer o leito
onde abraçados emergimos dos mortos
em direcção ao dos pés para a cabeça
norte sul orion a ursa Revolução a cena representa
(a cena final representa)
o cão em cima da árvore
Bravo
sobem enfim o pano do 4.º acto
não foi de todo inútil a objurgatória anterior
começa a fuzilaria
tá-tá-tá
buum
trá-trá
BUUM
1 E.E. Cummings
ESTADO SEGUNDO
I
Matilha promessa
Nossos Filhos
A Carpa
Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido
III
Katyn?
Grande Descoberta!
O homem encontra
com tão pouco esforço
o pus o sangue
a peste a guerra
VI
Na idade em que a maioria dos homens vai para cima das árvores
levando somente a carga instantânea
há aqui palavras que se engolem como espadas
motores planejados para sofrer os maiores abusos sem queixas
Uma fonte
Alta, esbelta, resistente
arte de ser natural
Para os lábios
que o homem faz
que atraem beijos
ao redor do mundo
ficou na nossa memória
em qualquer parte a qualquer hora
um pedaço
de pão
Promessa
que se cumpre
que alimenta
o mundo
Olhos
a exigir
uma floresta
XII
Cego
para que os cegos vejam
quatro toneladas
A CIDADE DA VENTANIA
Erosão da alma
debaixo da roupa
XIII
As Luzes
Voltam A Acender-se
Dulcineia
e o cisne
são a sua voltagem verdadeira
Nenhuma enfermidade
nenhum corpo
nenhum que tenha de viajar
enquanto cresce
A vida
às portas da vida
Amor Ardente
de forma distinta
XVII
O fogo, rapidamente ateado pelos barqueiros, atingiu enfim a outra margem: os peixes
fogem em sobressalto apinhando-se em cima duma rocha onde, julgando-se seguros,
contemplam o espectáculo. A casa, realmente, está a chegar ao fim. Só as paredes mestras
resistem ainda e com elas um pequeno guarda-chuva preto abandonado na confusão do
incêndio. Os bombeiros envidam esforços sobre-humanos para salvar de entre as ruínas o
pequeno objecto, juntando-se-lhes uma multidão ululante e caótica. Furtando-me às Ma-
girus furo as chamas e levo-o. É sensível e triste como uma criança. Desenvencilha-se da
mão que lhe estendo para diligenciar andar sozinho, embora não tente fugir e caminhe
sempre a meu lado. As últimas derrocadas e as sirenes dos carros, no lado de lá da cidade,
parece que saúdam a urgência da nossa fuga e da nossa boda.
XVIII
Na ponte
uma fogueira
calma
(O final
entre sombras)
XIX
Não houve
nunca
acima do mundo
a alegre aventura
de um sol militar
XXI
a esses e ainda
aos realmente explorados
aos realmente montes de trabalho
ou nem isso só rios
só folhas na árvore cheia do método árvore
PRANTO SOBRE DOIS TEMAS
GRATOS AOS PORTUGUESES
A António Quintela
À casa do coração
aos seus quartinhos de altar
Tenho um amor tão bonito
não me deixam namorar
Eu vestido de almirante
sobre esta roupa que tenho
tão farta do meu tamanho
de escuna sem mar diante
II
III
Depois de ver com os seus próprios olhos como é que o ratazana toma o seu chazinho
Émile Henry
escritor da literatura da dinamite
lança a segunda bomba à porta do Café Terminus
dado que: da má distribuição da riqueza e das coisas boas da Terra
TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA
PASSAGEM DOS AMANTES JUSTIÇADOS
O navio morto
que sobe a corrente
de que velho porto
era o adolescente?
Cingiam-lhe a boca
água e nevoeiro?
Tinha muita, pouca
falta de dinheiro?
E puxado a cabos
— este rei de oceanos! —
por ginasticados
loiros namorados
a diesel e canos
Um marujo rebelde
em busca de
pólen
uma camisola
A CIDADE
Ea
como
quem
se
abandona
o homem
descobre
o metal do futuro
uma
nova cintura
verdadeiro
amor
fenómeno
micro eléctrico
raramente visto
o barco salva-vidas
isolado
perfeito
VOZ NUMA PEDRA
Mazan Charleville Bruxelas Charleville Paris Charleville Paris Charleville Bruxelas Londres
Charleville Londres Roche Bouillon Londres Bruxelas,
Roche Charleville Paris Londres Alemanha Suíça Itália Marselha Charleville Holanda Batávia
Bordéus Charleville Viena Charleville,
Holanda Hamburgo Suécia Dinamarca Marselha Alexandria Roma Charleville Hamburgo
Charleville Suíça S. Gotardo Lugano Génova Alexandria Chipre Charleville Egito Aden,
Djeddah Suakin Hodeidah Massava Aden Zeylah Harar Bubassa Harar Aden Zeylah Harar
Hubbe Harar Aden Tadjurah Ankober Antoto Harar Aden Cairo Aden Harar Aden Harar
Zeylah Aden Marselha Roche Paris Lião Marselha.
PASSAGEM DOS ELEFANTES
Quando assentaram em que era urgente o poeta apesar dos olhares que ele lançava a tudo e
daqueles casacos de trazer pelos mapas
todos se viram a braços com mil dificuldades
em primeiro lugar a da morada
Um prédio da cor dos pássaros disse o ao fundo da sala
fora deixa lá ver dois anos antes
ou já tivera aquilo e era depois? não interessa
de qualquer forma jardim do tabaco
carnide portas de loures
alto magro peludo pouco de aconselhar
escrevia não escrevia
cumprimentava não cumprimentava
ia não ia demais
provavelmente até onde os outros estavam quietos
era ele!
Bem
havia outros poetas mas esses já estavam de acordo
até pela apresentação a tempo e horas
de valorosos trabalhos eleitorais
simples fortes de resultado à vista — nada de metafísicas —
como se tinha visto nas também grandiosas
eleições anteriores
esses porém estavam certos mais que certos
o que convinha agora era que o outro aparecesse
não fossem lá os bandalhos julgar
que o poeta estava co’s outros ou que se calava
num grande insulto a todos
(é dizer: de propósito)
Um Plano!
exclamaram os poetas politas de Lisboa
sabe deus se conforme
com a excelsa dignidade que nos leva
neste momento de consciência humana
às eleições igualmente grandiosas
Entretanto
algures
rua amália kandinsky
o poeta premia os intestinos
tinha acabado de traduzir Rimbaud
e preparava atmosfera para mais
alguns trabalhos decentes em prosa rítmica
a literatura propriamente saía-lhe
a barriga é que estava cada vez pior
a um febrão sucedia-se outro
com mais sal e pimenta à volta do prato limpo
os graves problemas da pátria enferma
como que coincidiam (na região do corpo)
co’ aquela aguda sensação de desgraça
que ia do esterno ao sexo e à região das mãos
de modo que pela pátria ele ia com certeza
assim lhe dissessem onde
nunca tal lhe seria mais difícil
do que evacuar depois de dez dias de molho
ou saber vomitar apenas as coisas más
Diga-se agora em abono da verdade
que um poeta nem sempre é tal qual uma pátria
não tem hotéis nem caminhos-de-ferro
nem imprensa por ele nem ordenado
onde se engana vão vê quem o corrija
até ficam contentes
e qualquer juiz do supremo é mais a sério que ele
(também que por isso mesmo se tem visto
muitíssimo bom poeta na enxovia)
Quanto ao da liberdade
o poeta atingira os tamanhos adultos
num grande cemitério sempre cheio à força
de jazigos que não assentavam na terra
nem ficavam no ar eram como flores brancas
onde as pessoas se deitavam a respirar
pequenos dísticos saíam da terra húmida
o mais impressivo de todos rezava assim
— o homem que queria fazer uma revolução veio para aqui pensar nisso
não maces a sua forma de revolução —
Apesar disso
ou já com isso às costas
o poeta forjara realmente um plano:
louvar o ser amado
ter amigos leais
escrever todos os dias ou dia sim dia não
publicar (o possível)
e protestar com lhanesa com simplicidade quer pessoalmente quer por telegramas contra toda e
qualquer prepotência mandona
Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém
ALEGORIA DO MUNDO NA PASSAGEM DE
ARNALDO DE VILLANOVA
em baixo
grandes extensões desérticas de pernas
ressoam como forças paralelas
nos tubos do grande órgão
o homem
é o mar
e o mar «é em cima, como nas gravuras»
no dilúvio da luz
um braço pica-se numa seringa
que hoje faz vinte anos de amor bárbaro
todos os lábios falam português por baixo das palavras selvagens que dizem
e mesmo os pensamentos de olhos muito azuis
ideando quem sou no subterrâneo alado
este onde o homem redescobriu o sol e o cobre de cabelos de liberdade
e o submerge no ouro das palavras
e o devasta de corpos e de auroras
Piccadilly Circus
lugar geométrico da terra
disco rodando o espantosíssimo número
do casamento
do metal
com a carne
O meu amigo inglês que entrou no quarto da cama e correu de um só gesto todas as cortinas
sabia o que corria
digo disse direis era vergonha
era sermos estranhos mais do que isso: estrangeiros
e tão perto um do outro naquela casa
mas eu vejo maior mais escuro dentro do corpo
e descobri que a luz é coisa de ricos
gente que passa a vida a olhar para o sol
cultiva abelhas no sexo liras na cabeça
e mal a noite tinge a faixa branca da praia
vai a correr telefonar para a polícia
«Para os Esquimós, por exemplo, o Pilar do Céu é em tudo idêntico ao poste que colocam
no centro das suas habitações.» Mircea Eliade
Por isso a tua Cidade Suspensa é toda a nossa história por contar
o nó que nos cerca a garganta sabiamente o abriste sobre a tela
a negro e a vermelho a cinza e a branco silvestre
para sempre livres do dédalo nosso
mas como ele mudo silêncio do nosso silêncio
E todas as bibliotecas inundadas perdidas incendiadas
todas as quimeras onde houve gente e de que não resta pedra sobre pedra
rosto ao lado de um rosto num portal antigo
por isso a tua Gare Ilimitada a que arrancaste portas e telhado para homens e mulheres poderem
sempre partir
e os infindáveis baralhos de cartas onde a cada momento interrogaste o destino
ó vieira das silvas dos teus cabelos
presos à dança da pedra e do ar
«A este propósito, lembraremos o mito de uma idade paradisíaca onde os seres humanos
podiam facilmente subir ao céu e estabelecer relações familiares com os deuses. O
simbolismo cosmológico da casa e a experiência xamânica da ascensão confirmam, sob
outro aspecto, este mito arcaico. Eis como: depois da interrupção das comunicações fáceis
que, no início dos tempos, havia entre o céu e a terra, certos seres privilegiados (e em
primeiro lugar Vieira da Silva) continuam a poder efectuar a ligação dos planos superior e
inferior. Da mesma maneira, os xamãs têm o poder de voar e de aceder ao céu através da
‘‘abertura central’’, enquanto para os outros mortais essa abertura serve unicamente para
a transmissão de oferendas.» Mircea Eliade / Mário Cesariny
Por isso a tua Cidade para Gatos onde Rimbaud terá sempre o seu quarto
e onde Cecília a Doce vai começar a abrir
os seus braços de vento misturado ao vento
por isso as tuas mãos traçando linhas à passagem contínua do navio
que fantasticamente flutua a teu lado
e o vale o vale imenso aberto a branco
onde para sempre a tua mãe repousa
e onde um dia quem sabe tu também
minha rainha negra para um cavaleiro húngaro
minha «águia imperial rindo às dentadas»
para o mais obscuro coração da matéria
minha nossa senhora da vitória
que corre o espaço sem morada certa
Ofélia roubada a Hamlet Inês de Castro Szenes
pelo poder da sucessão infinita
e pela força do sacrifício total
quando se abre uma porta como o inferno
e o invisível te procura na sala
para que ilumines todos os seus portos
e todo o seu afã de eternidade
Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam do esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz rasante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos
O INQUÉRITO
1.ª Voz
Armazenadas todas as essências
2.ª Voz
Dividido o calor
3.ª Voz
Dispostas as correias de transmissão dos cabelos
1.ª Voz
E a mão a alada mão que resume a experiência
2.ª Voz
Despidos mas não mais que as petrificadas roupas
3.ª Voz
A pouco e pouco passamos
1.ª Voz
A mosca do infinito serve à mesa
2.ª Voz
Faz a barba aos homens
3.ª Voz
Dá bilhetes para
1.ª Voz
É como se vestisse fato novo
quem nem sapatos tem para ir à polícia
2.ª Voz
Quem será o juiz desta manhã sem cadáveres
docemente despida para fora do movimento
3.ª Voz
De um lado escadas do outro lado escadas
1.ª Voz
Dir-se-ia que vai haver parada
2.ª Voz
Se houvesse uma chave para abrir esta história
de espelhos deitados ao longo da praia
3.ª Voz
Porque é que não se largavam? Porque é que não tinham casa?
Porque é que a cara deles estava sempre maior?
Mais imóvel? Mais lenta? Mais cega de claridade?
1.ª Voz
Este tempo está feito um domingo monstruoso
2.ª Voz
É dos que lavaram do cavalo as mãos
3.ª Voz
Levaram os sonhos para casa
1.ª Voz
Fazem de mortos para escapar aos vivos
2.ª Voz
Fazem de vivos e fazem mal
3.ª Voz
Entretanto no fundo de olhos inteligentes
agitam-se oceanos de saliva
1.ª Voz
Um pequeno espaço no tempo
de que os pilotos gostam
2.ª Voz
O interior do meu navio a branco
3.ª Voz
O interior
1.ª Voz
O interior do meu navio a branco
são estas avenidas sem retrocesso
onde o sangue pagou o seu tributo ao esqualo
e onde tu não estás meu triunfo e meu espasmo
de corpo livre a ver o vento aterrar
2.ª Voz
Agora já passou agora basta
3.ª Voz
Agora regressar ao interior do navio
1.ª Voz
Agora vêm aí pedir-nos a verdade
como quem pede o troco do planeta para as dez
dez e meia onze horas da manhã
2.ª Voz
A verdade eu explico
3.ª Voz
Arcturus e Astralis egípcios-alemães
passam neste momento na direcção norte-norte
a terra vai tremer e precipitar-se
1.ª Voz
No donde nunca saiu embora se mova
2.ª Voz
E com ela a verdade
3.ª Voz
Verdade azul verdade branca dos rios
1.ª Voz
Verdade em linha recta dos olhos dos namorados
2.ª Voz
Verdade cor de muro
3.ª Voz
Cor de cinema pobre
1.ª Voz
E depois cor de fogo verdade escura cor de homem
2.ª Voz
E sabem para que são estas verdades todas
e todos estes livros de moradas?
3.ª Voz
São para glorificar o corpo a corpo
o boca a boca o calça a calça e as mãos nas mãos perceberam?
1.ª Voz
Não não perceberam
2.ª Voz
São milhares de cabeças separadas do tronco
mantidas por filamento fixo à nuca
(breve pausa)
3.ª Voz
Até aqui nada de extraordinário
1.ª Voz
Nada a ver com o grito do sol no horizonte quando uma ave subitamente sangra
e os sonhos voltam à sua casa no espaço
2.ª Voz
De um colchão carbonizado pouco fica
3.ª Voz
Erguia-se limpava o braço azul deixava ficar tudo como estava
1.ª Voz
Mas dele até ao pó e às sombras dos sapatos
quantas revoluções perpetuadas
2.ª Voz
Ali onde a parede não faz chão
3.ª Voz
E diz então que a catedral era em baixo
1.ª Voz
Não adivinho como nos encontrámos
2.ª Voz
Perguntava isto e aquilo respondia rindo
1.ª Voz
Ou era eu que ria não sei bem
2.ª Voz
Entrámos numa escada
3.ª Voz
Mas a alvura dos muros era contra vós
1.ª Voz
Com as costas da mão toquei-lhe no sexo fortemente arqueado dentro da roupa
2.ª Voz
Comecei a tremer como uma vara verde
3.ª Voz
Puxou-me o outro braço e apoiou-se pesou sobre mim como se eu fosse a base do universo
1.ª Voz
Ouvi o trabalhar de um relógio de pulso na minha nuca
2.ª Voz
Que som para a eternidade
3.ª Voz
Quase fazíamos a mesma altura a mesma sombra sobre o chão de pedra
2.ª Voz
Mas a farda marcava-lhe a figura enquanto o teu casaco adejava no ar
3.ª Voz
Falei-lhes nisso e ele riu divertido
1.ª Voz
«Então tu gostas mesmo»
2.ª Voz
«Gosto de quê»
1.ª Voz
«De um homem»
2.ª Voz
Não lhe deste resposta
2.ª Voz
Que resposta haveria para dar
1.ª Voz
Era um jogo de aves do paraíso num céu iluminado a caixas de fósforos
2.ª Voz
E o halo dos seus braços contra a porta chapeada
1.ª Voz
E o rosto soerguido num mimo trágico
2.ª Voz
Como de rei ou mago santo ou santa
3.ª Voz
Como acha então o mundo?
1.ª Voz
Algumas vezes foi preciso matar
(breve pausa)
1.ª Voz
Impossível saber para onde foi a nuvem
nem porque faleceram os principais
2.ª Voz
A cadeira a vapor da cerimónia
1.ª Voz
A augusta farrapa reluzente
2.ª Voz
Enquanto a bicicleta duma alegria enorme entra pelo mar dentro tenazmente saudada pela solidão
das barragens submersas que expelem barbas verdes para fazer a noite
2.ª Voz
Muito alta muito branca muito educada
a estátua tóxica avança
3.ª Voz
Todos atravessaram para ir ver o desastre e não houve desastre
houve um garoto com uma gaiola e uma rapariga que vendia laranjas há muitos anos
1.ª Voz
Quatro pequenos ratos formam hemiciclo
2.ª Voz
Mas nunca a rua pareceu tão deserta
3.ª Voz
Às quartas-feiras o amor é um plágio
1.ª Voz
Um vento de cadáver refrescado
produzido em quantidades industriais
2.ª Voz
Grandes barcos sem hélices são levados a correr para a cama e aí expostos ao sol dias inteiros
3.ª Voz
Verdade e água para todos diz o vento
1.ª Voz
E conquanto eu não creia muito em mim
2.ª Voz
Nem seja dos que andam à procura para a construção da personalidade
(risos)
3.ª Voz
Aqui está uma montra para ajeitar a gravata
1.ª Voz
E aqui está uma esquina para tratar do assunto
2.ª Voz
Dedo mindinho pressão na barriga maquinismo de levitação para a letra A
Dedo médio arco-íris o maquinismo liga à tinta verde transe para a emersão da letra M
1.ª Voz
É a letra do meu nome
2.ª Voz
Dedo anelar rosácea e estrela cadente letras U letras R e conjuntivas parágrafas
que me abstenho bem de nomear
3.ª Voz
Para a letra K é preciso que corra sangue
1.ª Voz
Empregar só nas grandes ocasiões
(breve pausa)
3.ª Voz
Até aqui nada de extraordinário
1.ª Voz
Já não custa nada o amor
2.ª Voz
Já não custa nada a experiência
3.ª Voz
Nada o beijo na boca
2.ª Voz
A cintilante piscina dos braços
1.ª Voz
Já ninguém tem a mais pequena imagem do leão que rasteja entre as arcadas
2.ª Voz
O caso é todo o da ampola marinha que emergiu com o seu espelho à hora do começo do
movimento parado
1.ª Voz
Na coluna marítima espelhada
a fria a lacónica data inexpressiva
2.ª Voz
Gatilho de todas as horas esperança tu sufocas
3.ª Voz
Ainda podes subir à altura dos telhados
e ver como rebentam as ondas na praia
2.ª Voz
É muito
é já demais
um dia e uma noite ao largo dos oceanos
3.ª Voz
Momento de beleza!
3.ª Voz
E pelos mortos nos mastros
2.ª Voz
Chora enfim o mar insulso
desse honesto capitão
que prometia ser forte
e não tem direito ao lote
que lhe acaricia o pulso
que lhe floresce na mão
que lhe resvala na sorte
das ondas minha alegria
do vento carinho meu
ai chora por esse barco
espatifado contra o céu
(breve pausa)
1.ª Voz
Acenderam-se fogos sobre o rio
3.ª Voz
São vivas setas multicores
que o mais pequeno nada intersecciona
num movimento de pequenas ondas
2.ª Voz
Como se a noite negra
manasse
e das ondas em roda
o manto de Oberon cobrisse a água toda
(breve pausa)
1.ª Voz
Limpem bem os fatos
2.ª Voz
Lavem muito os dentes
1.ª Voz
Batam na engomadeira
2.ª Voz
Façam filhos
1.ª Voz
Sejam sensuais
2.ª Voz
Senso ais
1.ª Voz
Sexo ais
2.ª Voz
Procurem o buraco próprio
1.ª Voz
Da vossa saliência
2.ª Voz
E a saliência
1.ª Voz
Da vossa reentrância
2.ª Voz
Não tenham medo
1.ª Voz
Comam
3.ª Voz
O leque é extraordinário
1.ª Voz
Galinha
2.ª Voz
Pato
1.ª Voz
Tudo
3.ª Voz
Sejam alegres
1.ª Voz
Necessários
2.ª Voz
Sadios
3.ª Voz
O cofre dos países
2.ª Voz
Zanoni
1.ª Voz
Sutmil
3.ª Voz
Catorze
(breve pausa)
(breve pausa)
(breve pausa)
2.ª Voz
Os barcos russos chegaram a Havana
1.ª Voz
Vou comprar uma camisola
3.ª Voz
Os barcos russos não chegaram a Havana
1.ª Voz
Vou comprar uma camisola
2.ª Voz
O pássaro cujas asas são dois olhos escuros vivos como chamas
3.ª Voz
Foi comido pela máquina fotográfica
(breve pausa)
1.ª Voz
Dois de sete pediu o meu amor
2.ª Voz
Mas caiu-lhe o boné
1.ª Voz
Tudo quanto ali estava foi ajudar a achar a trazer a limpar
3.ª Voz
Viste-o assim pela última vez
2.ª Voz
No meio de uma roda de transeuntes baixando-se a aceitar o boné que dançava
1.ª Voz
Erguendo-se e fitando-me nos olhos, fixo.
ATELIER
COMECEI A FORMÁ-LO PELAS PERNAS MAS ISSO AGITAVA-O DEMAIS OBRIGAVA-O A SER MAIS FORTE
DO QUE ERA.
COMECEI OUTRA VEZ PARTINDO DA CABEÇA, UMA BELA CABEÇA ERIÇADA DE PÊLO, QUANDO
CHEGUEI AO PEITO DEU UM GRITO DE IRREPRIMÍVEL ALEGRIA E VOLTOU A AGITAR-SE, AGORA
PERIGOSAMENTE. AS PAREDES DA CASA, TENTANDO DEVOLVER A FORÇA DE ÁGUA AZUL, CONVERGIAM
SOBRE ELE.
É UM CORPO MUITO BELO, COM A LIGAÇÃO ÀS MÃOS PERFEITAMENTE ASSEGURADA. OS OLHOS TÊM
ALGO DE MEDITERRÂNICO MAS O CABELO É COMPACTO, COMO NAS RAÇAS FORTES.
PREPARO O OUTRO CORPO, MAIS EXTENSO E MAIS ÁGIL. A ÁGUA VERDE ILUMINA TODA A SALA.
APAGO A LUZ E ESTENDO-ME. OS DOIS CORPOS GERADOS DANÇAM DE RODA, SAEM PARA O DIA DA
TERRA, INTERNAM-SE NO BOSQUE. OS SEUS TRAÇOS, AZUL E VERDE PROFUNDOS, SÃO VISÍVEIS DURANTE
MUITO TEMPO, NA ALVURA DOS TERRAÇOS, NA MONTANHA, NAS EXTENSÕES ILIMITADAS DO CAMPO, E
SEMPRE QUE ME VOLTO PARA O LADO DA LUZ.
CORTINA
CARTA DO XAMÃ
Sagani bô
tangara pura
kormos ama orgiski oibonkungata
amagat
pûra toli
nigarasun kulin panaptu pana
karain bô
oigos timir vershok toli
amagat pûra tabitala ak kam
aiami kara kam oigos timir
NOMENCLATURA PARA DEPOIS
DO ÚLTIMO KATUN
A Julio-Saúl Dias
E se lá secam as delgadas
e as aljavas deslustradas
que gostosa eu lavava aqui,
não mais serei destas estradas
e destas terras desterradas
irei pôr o Dolviran i.
ALGUNS VOCÁBULOS PARA A COMPREENSÃO
* O compilador não dá o nome natural do índio navajo autor do poema; é sabido que as crianças das reservas ao entrarem para a
escola da administração norte-americana sofrem um segundo nome. No livro Sun Chief, Don C. Talayesva relata: «… Quando a
minha irmã foi pela primeira vez à escola, a professora cortou-lhe os cabelos, queimou toda a roupa que levava vestida, deu-lhe
roupa nova e um novo nome, Nellie.// A minha irmã não gostou da escola e ao fim de alguns dias deixou de lá ir. Escondia-se dos
brancos que podiam forçá-la a lá voltar. Aproximadamente um ano depois, a minha irmã foi buscar água à nascente de Oirabi-o--
Novo, com uma calabaça do ritual Ooquol, e aí foi capturada pelo director da escola, que a deixou entregar a água na aldeia mas
exigiu que se apresentasse na escola depois da cerimónia. Então, os professores, tendo esquecido o nome que primeiro lhe
haviam dado, passaram a chamar-lhe Gladys.»
«Sou o filho da Mulher-Concha-Branca». A versão anglo-americana diz «I am the child», o que poderia dar «criança» (ou «cria»,
num mais nativo que não vem no texto).
Refere-se não apenas à própria mãe mas à-mãe-e-ao-clã a que a mãe pertence, o clã Concha-Branca. Citando ainda Don C.
Talayesva: «Havia (na cerimónia do meu “baptismo”) muitas irmãs de minha mãe e todas eram minha mãe, enquanto as irmãs e
irmãs do clã de meu pai todas eram minha tia. Os homens do clã do Sol que vieram para o repasto, todos eram meu tio, enquanto
os irmãos do meu pai e os seus irmãos de clã eram todos meu pai.»
A primeira estrofe refere três estirpes distintas: a de Concha-Branca, a linhagem materna; a do Sol, certamente a paterna; a de
Turquesa, designação que, longe de ser um adjectivo substantivado, deve referir um grupo importante e activo na comunidade.
Falta um verso, a que não consegui dar forma.
O poema é traduzido da versão de D.P. McAllester incluída no livro de Jerome Rothenberg, Technicians of the Sacred, Anchor
Books Edition, New York, 1969.
O REGRESSO DE ULISSES
O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA PREJUDICA
O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIQUE DELICIOSO À DIVERSIDADE DA ESPÉCIE.
MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS DIFERENCIAR-SE,
FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES COMO ESTA FAMOSA
«CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL» SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI DESAPARECER EM
BREVE.
PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR AS DISTÂNCIAS E NUNCA
PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA, AVIAÇÃO,
CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC… ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR LIBERTADORES
DIZEM-NA «ESCRAVA DO HOMEM» E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É UM HOMEM.
DESDE O INÍCIO DOS TEMPOS, ANTES DA ROBOTSTÓNICA GREGA, OS ÚNICOS HOMENS-HOMENS QUE
APARECERAM FORAM OS HOMENS-MEDICINA, OS HOMENS-XAMÃS (HOMOSSEXUAIS ARQUIMULHERES).
ESSES E AS AMAZONAS (SUPER-MULHERES-HOMENS). MAS UNS E OUTRAS ERAM DEMAIS DEMAIS. E DESDE
O INÍCIO DOS TEMPOS QUE PENÉLOPE ESPERA O REGRESSO DE ULISSES. MAS O REGRESSO DE ULISSES É O
HOMEM QUE É UMA MULHER E A MULHER QUE É UMA MULHER QUE É UM HOMEM.
POEMA EM DUAS LÍNGUAS GÉMEAS
PARA JOAN MIRÓ
a phormiga
dadivosa negro-rosa
almirantenientemerosa
y almirambolante pira
fulgurante
de los niños
a mirar
Miró a mirar
LOS SIETE NIÑOS DE ÉCIJA
En 1964 en París compré dos libros tuyos en una librería del Boulevard de Saint-Germain
— fue acaso, sortilegio, ¿o es que «los encuentros son proporcionales a los destinos»?
me lo pergunto porque en aquel entonces nadie me hablaba de ti ni de tu obra
el Portugal de ese tiempo era una tumba cerrada por tierra mar y aire
por la ipsísima dictatura del Dr. Salazar
pero tambiém por la pro-pre-pri dictadura de los que a Salazar se oponían
en nombre de otro señor que, quitado el bigote al gato
no pasaba del mismo (señor) acelerado a millones de voltios igualmente asesinos
Stalin Gulag y Realismo Socialista
Pués en París yo y la Tour Saint-Jacques inclinada hacia mí todo un verano
y tus dos libros eran:
Libertad bajo palabra
figura hermosísima del dios en el hombre
y El arco y la lira saeta en el momento del disparo
como aún hoy te veo: aún en el aire
No faltará decir que otros libros cambiaran o ayudaran a mi juego de dados mínimo
que para medirse en toda la extensión habría de llegar hasta Enki-Du el soldado de Anu
y acabar no sé donde, ciego de luz
alguna vez hay que apagar la lámpara
para poder —¿no te parece?— d-o-r-m-i-r
Octavio:
una y otra vez me incitaron a que escribiera «algo» sobre tu obra
la primera (creo que) para los cuadernos de L’Herne
a las otras no alcanzo a distinguir el intríngulis
Siempre-siempre con largo entusiasmo acepté el honor que me hacían,
y siempre mi mano se negó al bote.
¿El porqué? Zona negra, soplo del daimon que antes de llamarse demonio (forma actual de…)
llamaban ¿ángel, potestad, espíritu en el espíritu?
«Si no perguntas, lo sé, si perguntas, no sé» dice el santo-santo
pero lo más llano —más verdadero— será
que a la mano ésta le dio muchísimo miedo rayar tu verbo azul cianino puro
con unas guarras líneas de hierro cantil rocoso (éstas)
o con la hoguera del prof a mediodía
así fue y así está la mano mía
la mía, no la tuya, donde todo es poema
desde el primer compás de águila y de sol, flauta de Pan
hasta la ya sinfónica wagneriana poswagneriana antiwagneriana
Sor Juana Inés de la Cruz
tu Décima Sincronía
y no te digo taaanto de tu Duchamp
porque Duchamp me estira verde frío toda aquella álgebra donde ya no es posible encontrar el 2
en el armario
Y ahora me da gracia que en castellano
el nombre del viejo dios que Swinburne exaltó «sembrado de oro en su Palacio más majestuoso
que los Templos edificados por el hombre»
se pronuncie igual que el pan de comer.
El pez ilustrado
el pez enrique(cido) por ele pe(s)cado
asediado por el principado
el pez vitral de la catedral
de la sal
el pez del con
del leon
el pez que aún huele a frontera portuguesa y galesa
y danesa
el pez de Heloisa y de la Religiosa esa
pero sin Abelardo ni Chamilly
dos maeses de mierda en la mili y en el púlpito
el pez que dice:
a mi señor, es decir, a mi padre
a mi esposo, es decir, a mi hermano
su sierva, es decir, su hija,
su esposa, es decir, su hermana
el pez que sube de la profundeza y te ata la cabeza como un rodo
el pez que es todo y de todo y desde luego inimigo del fuego
que será todo lo que usted quisiere pero que sea un elemento
natural va contarselo al gato
el pez fatal el pez (quitado) del natural el pez (nacido) sin pecado original el pez desaire
para la gloria eterna (y moderna) del aire.
MÁRIO SÉRIO
Los reyes
vienen a verte
LOS REYES
Tu
estás enfermo
de horas
de siglos,
de memorias
LOS REYES
LOS REYES
Buraco-negro-com-barba-postiça-de-Newton
ou pirâmide de De?
A pirâmide de De
com saltos altos e rara elegância de meios
caminha um mililímetro por segundo
em direcção a Maar
Não haverá
qualquer porção
de almagre
de De
ou de Maar
EXQUISITE POEM
I am eu sou the first a primeira and the last conception e a última concepção.
The Lady of Lourdes. A Senhora de Lourdes.
O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela (talvez a salvação?)
O poeta era sinceríssimo honesto total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
As linhas os carros
aerodinâmicos
a nuvem cinzenta
por cima de mim
a sapateirinha
noiva de três
o jovem operário
presa de mil
o salto que dei
galgando o passeio
o lápis miúdo
no bolso de trás
os versos que faço
sem grande alegria
a voz dos amigos
amigos amigos
negócios à parte
sempre (qualquer dia)
me darão alento
Amigos, dizei
deu-vos resultado?
Resultado o quê?
Abrir a barragem
vazar a dispensa
brincar ao herói
— ou ser herói mesmo
— Ó enforcados
o tempo passa
o tempo passa
que desgraça!
Paragem. Apêrto.
Apêrto. Partida.
Fico no meu sítio.
Lá vem o eléctrico
amarelíssimo.
As ruas as casas
de zincogravura
os barcos que saem
a barra que eu vejo
o freio nos dentes
do burro inocente
o forte em Monsanto
o santo em Monforte
o homem que é fraco
o homem que é forte
sempre (qualquer dia)
me darão alento
O HOMEM EM ECLIPSE
Segurem-me, camaradas,
sinto pernas a boiar,
cheiro fantasmas, enxofre,
estou aqui mas posso voar,
o parafuso da língua
vai partido, vai saltar.
Agarrem-me! Agarra! Pronto.
Pari o mais leve que o ar.
TODOS POR UM
Santos
Mártires
e Heróis
Perdida, entre tanta outra coisa que em Portugal se perdeu, à roda de 1944, a «Biografia de
Nicolau Cansado» moldada em verso jâmbico por Papuça de Arrebol; desaparecida com esta, nas
ruas de Constantina, toda a possível documentação para a descascagem ôntica de um ser a todos
os títulos raro, na literatura e na vida; ingloriamente perdida também a obra em prosa do autor do
«A Ti» — a qual não vi mas disseram, em 1944, ser ainda melhor do que os poemas: restam os
versos que ora se publicam antecedidos de nótula crítica da incansável polígrafa e grande amiga
do poeta Professora Doutora Marília Palhinha.
Nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex.mo Sr. Luís de Oliveira Guimarães,
lembra-me ter visto um fólio rabiscado pelo poeta aquando da sua viagem a Espanha, país onde,
premido pela sua bem conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher em 1943 e o mais
possível in loco alguns quadros multímodos da guerra civil espanhola. Tanto quanto me lembro,
tratava-se de um feixe de ditirambos «ao pobre Federico» claramente datados Agosto-Setembro
de 1943. Esta peregrinagem terá dado a Cansado a possibilidade de uma destilação clarificadora
de quanto ali se passou nos anos 1936-39, ao mesmo tempo que havia de preservá-lo de
contactos directos com tiros, granadas e outras relações de incerteza como as então ali vividas
por Hemingway, Malraux, Péret, Paz, Vallejo, Gascoyne, Penrose, Orwell e outros excessivos
sequiosos de tiros nos cornos.
Araruta Província
EM TORNO DA POESIA DE CANSADO
NÓTULA CRÍTICA DE MARÍLIA PALHINHA
Lisboa, 1945 — Os fortes laços de amizade que desde cedo me ligaram a Nicolau Cansado
fazem com que seja a expensas de uma profunda mágoa que eu deva pôr aqui uma por assim
dizer restrição aos inéditos vindos agora a lume: eles não serão compreendidos por toda a gente.
Com efeito, só uma escassa roda de iniciados na última fenomenologia poética portuguesa
(futurismo, sobrerrealismo, nervosismo, etc.) poderá acolher sem surpresa toda a sua mensagem.
Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a contradição fez a obra. E nisto como em tudo, apesar
dumas coisas esquisitas, dumas audácias mais brilhantes que fecundas, o poeta seguiu a tradição.
Tive oportunidade de verificá-lo ante o desprendimento que muitos homens da rua (eu buscava
Cansado nas suas incursões aos habitáculos do povo) manifestaram pela «Fantasia Gramática e
Fuga», por exemplo1. Alguns chegaram mesmo a interromper nestes termos (tentava eu explicar
a grandeza humanista que ia de par com a função social do poema): «Ó doutor dê cinco tostões
para uma sopa, que ainda lá não fui hoje!» Em contrapartida, os literatos terão com que
regozijar-se. Esses e mais quem anda a par sagrarão o poeta Cansado como um grande
incompreendido, uma genial vítima de um meio estupefacto.
Falar do substrato da sua obra — para quê? De certo modo, a poesia é o real absoluto, já o
disse um editor que também escreve. Atravancador se torna pois qualquer didactismo, e ainda
mais no caso de Cansado. Este homem, que abandonou as concepções burguesas sem por isso ter
mudado de vida, é um artista muito complexo. Formalmente, não é raro vê-lo brincar com as
subtis experiências de um Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Maiakovsky, e, então, que
esplendor épico! Noutros ainda, deita um olhar amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E ao
Camões — um Camões que tivesse lido Afonso Duarte! Conhece a fase íntima. Atravessa a
fronteira do religioso, E quando já desistíamos de ver nele mais do que um jogral de prodigiosos
recursos, eis que nos atira com as iluminações do «Herói», do «Raio de Luz», do «A Ti»!
Obra pequena, sim, mas de tentado alcance e forte significado, eu quero repeti-lo: ainda é
cedo para falar de Nicolau. Não faltará porém gente disposta a acusá-lo de ter chateado meio
mundo e vivido, como dizer?, assim. ASSIM! Eternos incompreensivos! Das vossas impotentes
instâncias hão-de altear-se sempre a dedicação funda e o labor sem mácula de Prof. Araruta
Província, que, no seu regresso de Las Palmas, logo meteu ombros ao conhecimento do valor dos
textos e à sua pronta edição.
Outra coisa: Cansado nunca versou o tema do amor. Inapetência? Excesso de hombridade?
Penso que não. O amor é, para muitos poetas de hoje, um tema de segunda ou terceira categoria.
Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Cansado, certa vez, me disse. E todos
compreendemos.
1 «Fantasia Gramática e Fuga, Com Eco». Nota do Dr. Araruta Província: O poema deste título foi perdido pela própria Marília
Palhinha durante a última das manifestações de rua que entre nós assinalaram o fim da segunda guerra mundial. Tendo sido,
como se sabe, particularmente dura essa manifestação, quase se aceita tão infeliz descuido — levar um poema daqueles para o
meio da rua!
NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO
(Jan. 1976)
Tão cedo pude desocupar-me das investigações e desaterros da obra de Fernando Pessoa
(baús do Castelo de S. Jorge, muros de Penalva e Aljustrel, selhas da Ordem Terceira de S.
Francisco e Mineiros Associados (Mafamede)) logo acorri de novo ao meu querido Nicolau. E
hoje, finalmente, comovidamente, até às lágrimas, posso anunciar: a «Fantasia Gramática e
Fuga», obra-prima da gesta de Cansado, indevidamente considerada perdida à data da primeira
edição dos poemas, estava depositada num gaveto da Sociedade Portuguesa de Escritores pouco
antes desta ter sido fechada pelo Governo. Alguém, que não sabemos quem, a enviou para ali.
Chamada eu própria, logo reconheci o fólio, que não conduz, como abusiva e fantasiosamente
Araruta Província algures aventou, a série alguma de versos escritos em Espanha, mas, além da
finalmente recuperada «Fantasia Gramática» apresenta ainda uma contribuição de primeira
plana: os poemas surgem dedicados pelo punho do poeta a todos quantos, mestres ou amigos, o
inspiraram. Achamos esta acha muito importante pois aquando da primeira publicação, 1961,
estabeleceu-se dúvida quanto a certas atribuições.
Agora, de acordo com o canhenho original, indica-se como segue — e não repetimos na
portada dos poemas, para não desfear—:
«RAIO DE LUZ» —
Note-se como, apesar do crescente à-vontade com que Cansado dedica, o tom é sempre forte,
claro, VESPERAL!
Quanto ao belíssimo «Poema Bão», também aqui produzido pela primeira vez, recebi-o em
correio registado, sem qualquer palavra de companhia, cinco dias antes do falecimento do Poeta
Dr. Francisco José Tenreiro.
Palhinha, 1970
ADENDA CORRIGENDA
Nem a infausta morte de Marília Palhinha nem a admiração respeitosa em que tenho a sua
memória podem inibir-me de taxar de aleivosas algumas declarações que faz da minha pessoa.
Eu vi, de facto, nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex.mo Sr. Luís de Oliveira
Guimarães, um caderno de versos de Cansado, firmados e datados: Talavera de La Reina e
Buçaco, 1944, que todavia não li. O facto de tais poemas não estarem na Sociedade Portuguesa
de Escritores quando esta foi fechada pelo Governo nada demonstra contra a existência do
caderno. E sendo D. Marília useira e vezeira em deixar cair mais me inclino, a contragosto o
digo, para um novo descuido da morta. O que apenas sugiro e faço publicar para que de todo em
todo não se perca de virmos a encontrar («não procuro, encontro» dizia Kandinski) os
«Ditirambos Hispânicos» de Nicolau Rosendo Gastendo Cansado.
Araruta Província
OS POEMAS
MIGRAÇÃO
Ah
não me venham dizer
oh
não quero saber
ah
quem me dera esquecer
1 «Chimpòzé» não existe em língua oficial portuguesa, sequer nos pàlóps. Parece ser corruptela de «chimpanzé». «Garoto» é o
nome dado na capital do Império (Lisboa) ao café com leite servido em chávena.
HERÓI
Dizei: é o Herói.
O herói, simplesmente.
BRASILEIRA
Já está.
RURAL
— Ausente.
POEMA BÃO
Iáú!
Ilha de Nome Santo!
Poema bão!
FANTASIA GRAMÁTICA E FUGA
(COM ECO)
Visto de cetim
Vou depressa e bem
Eu sei que serei
Do mundo que vem
Bate coração
Palhaço em Palheiro
Meu golpe de vista
Tapa a boca Oh
Tapa a boca Oh
tApa a bOca Oh
taPa A boCa Oh
tapa a boca sim
Fim
RAIO DE LUZ
Matá-lo
Devagarinho.
Lá vai ele a reboque.
Parece que houve Natal e Ano Novo e eu resolvo retribuir assim algumas das boas festas em
que amigos e parentes tiveram a bondade de envolver-me: a impressão do presente fragmento
do meu poema «Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos», para vender aos amigos, e aos
parentes, por vinte e cinco tostões.
O poema já é antigo, mas também é barato e sempre anima o ambiente. Dá, suponho eu,
certa compensação, mormente nesta quadra em que alguns dos mais festivos entram na tarefa de
iniciar o que há-se ser, o que já é o martirológio de Fernando Pessoa. Os mais cumprimentados
não deixarão decerto de perpetuar os festejos com uma bela ligação de girândolas, das quais
virão a sair grandes fichas obnóxias com os seguintes dizeres: Poetas Pataratas: Fernando
Pessoa, Rainer Maria Rilke, etc., etc., e etc. — Poetas Muito Bons e de Muito Juizinho: este,
aquele, aqueloutro.
«Simplificar» Fernando Pessoa tomando de empréstimo alguma da sua linguagem, e reduzi-
lo ao voto de um barco para o Barreiro, é coisa em que cada um só deve cair uma vez. Fique,
pela parte que me toca, o molde da queda e o valor da experiência: as pessoas sabidas
descobrirão depressa onde é que está o logro e onde pôde anichar-se autenticidade. As outras,
não sabidas (entusiastas, estas!) servem-me o apetite de dizer para já alguma coisa do que o
poema não diz:
Que Fernando Pessoa é um grande poeta. Viajou sempre em primeira classe, mesmo quando
estava parado.
Só as pessoas que não viajam ganham ódio às classes que o comboio tem.
Quem alcança viajar, mesmo só em terceira, vai sempre radiante. Não anda lá a prender-se com
essas coisas.
As pessoas que não viajam também têm as suas qualidades, são como os chefes de estação:
bondosos, diligentes, aplicados. Mas não viajam, pronto. Para que nos querem convencer
que viajam?
Assim como a Poesia não é para um par de sapatos, assim Fernando Pessoa não é para todos os
dias. Não consta, porém, que Pessoa haja querido monopolizar os dias. Se déssemos a
Pessoa os dias que ele tem, faríamos como ele — e até podíamos, como ele, ser grandes, com
muitos dias para ele, e para muitos de nós, seus iguais num desastre
Recomecemos: Um:
Estes versos não querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em Portugal quer de algum modo fazer versos versos
está em muito maus lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)
Segundo:
Apesar de tudo, saí para a rua com bastante naturalidade
e que vi eu? Que é isto? (e que esperava eu ver?)
Terceiro:
(e aqui começa, talvez, o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com ele
mas não sou um proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado — quem é que disse que pode?
Tantos escritores
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos
(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)
Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta
E no mastro espelhado
uma espécie de porta
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
Quando um se revolta
há dez mil insurrectos
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo
DIÁRIO DA COMPOSIÇÃO
PARIS, 1964
Maio, 27
Há dois meses que fujo a S. Germain e passeio com frequência nos boulevards da margem
direita, sobretudo por Réaumur-Sébastopol, que me leva à Praça da República e aos cinemas de
S. Martin. Neste dia, 27 de Maio, encontro finalmente uma esplanada que parece à medida da
minha necessidade: está sem ninguém, fronteira a um jardim gradeado onde passeiam crianças e
árvores altas escondem até mais de meio uma torre magnífica. Nos meus passeios, de dia, de
noite, esta memória faustosamente medieval já me tinha chamado a atenção: é como se o chão da
praça quadrangular sobre que assenta fosse o telhado que não tem sob ela. Assim cravada na
terra, leva a pensar no topo de uma construção soterrada, ou subterrânea, que continuasse no
subsolo as galerias de uma arquitectura herética como ela.
Vagamente interessado na tradução de alguns poetas de língua espanhola trago comigo um
livro de Borges, Inquisiciones, onde um pequeno ensaio sobre Beckford, lido na noite anterior,
me faz desejar a leitura total da obra. Como é meu hábito, intercalo no livro um caderno de
apontamentos.
A tarde está muito quente. Sento-me e começo o balbuceio de um poema primeiramente
imbuído da proximidade do rio que corre perto, a uma esquina de vista. Há muito tempo que não
escrevo versos e há alguns anos que os não escrevo assim, isto é: não facilmente — como pode
fazer-se seguindo uma mnemónica literária, infelizmente vinda da experiência literária — mas
enredado num estado de labirinto, numa solicitação violenta que não sabe o que quer e exige
tudo: um rio e uma torre, eu fascinado nela.
Escrevo os primeiros versos do poema. A forma definitiva da 1.ª estrofe, mesmo simples, ou
truculenta, que é, levou-me três dias a fixar. Os 1.º e 2.º versos da versão que se publica foram
apostos, existiam antes, vindos não sei de onde, talvez dos montes de Almada.
Na noite deste dia, depois de um cinema abandonado a tempo, volto à esplanada e ao poema.
É pouco menos de meia-noite. Na «passagem a limpo», tantas vezes equivalente a novas
facturas, substituo, no oitavo verso, a citação de Pascal pela de Stendhal (faz mais jeito à
sonância, vício velho, e retira a um rio civil o odioso de se ver esquadrado entre a «razão» e a
«fé», dois estados de espírito bastante de temer. Também pensei ser bonito insinuar a Itália).
Escrevo depois o começo do «Nunca estive tão só…». Em seguida, abandono a esplanada e dou
uma volta pelo gradeamento do jardim, agora fechado. Sob a baixíssima cúpula interior da torre
há uma estátua impressionante que resolvo decifrar no dia seguinte. Pergunto a um transeunte o
nome daquela torre. Responde: La Tour de Saint Jacques. Por um lapso de relação, ou distracção
aparente, não estabeleço a devida relação com a Torre de Saint Jacques, de que se contam vários
sortilégios («aparecem lá velhos» diz-me há pouco uma judia francesa muito de longe atingida
por um relato de Breton, em Arcane 17, ou em La Lampe dans L’Horloge, não estou certo mas
vai dar ao mesmo). Para mim, neste momento, a Torre de Saint Jacques existe, mas jacente na
campa prestigiosa das leituras feitas há muitos anos. Há também uma publicação com este nome.
E é tudo. Em todo o caso, no poema, a torre singulariza-se: passa a ser a Torre de Saint Jacques.
Em casa, peço à Isabel (Meyrelles) segunda informação. «É onde queimavam as bruxas»,
responde-me. Começa o meu exercício de relação. Consulto o Larousse Ilustrado. De Saint
Jacques, sou remetido para Santiago de Compostela. Passo a uma História da Magia. Aí,
encontro: é realmente a torre erguida por Flamel no século XIV e ornada de símbolos da «ciência
oculta».
Já deitado, trabalho. Quando surge o poema «Nunca estive tão só…» a luz do dia entra pela
janela. Mas em Paris amanhece muito cedo, às quatro horas, em Maio, já não há noite nas ruas.
Maio, 31
No dia 28, voltei à esplanada mas tinha gente a mais. Procuro outro café, outra esplanada
próxima: não consigo escrever. No interior do jardim, dou uma lenta meia-volta à Torre. Nem
meia-volta é porque a grade que delimita o parque passa rente a uma das faces da construção —
exactamente aquela desde a qual poderia ver, de frente, o homem de bronze no seu pedestal. Até
onde a descubro, a Torre está vedada, interdita, não é possível entrar.
No dia 31, esplanada sem ninguém. Escrevo a 2.ª e a 3.ª estrofes do poema do «lado de lá do
espelho», desta vez em plena comunicação. O livro de Borges continua por ler, à minha frente.
Junho, 1
Quando abandono a torre surge o guarda, que me passa uma descompostura em regra. Sem
literatura: é uma perfeita encarnação do diabo, um autêntico pimento vermelho, com, vestido, um
casaco de couro preto. Explico que o procurei demoradamente, o que é verdade, e que sentia
absoluta necessidade de saber por quem era aquela estátua ali. Peço desculpa. Responde-me que
a não tenho. Aponta rubicundo os seis avisos. Ouve-me imperturbável. Toma o ar de quem passa
a procedimento. E quando já espero ser conduzido a qualquer posto incómodo, percebo que vai
abrandar. Teria estado a espiar-me, a antegozar a sua entrada em cena? Ter-me-ia tomado por um
bombista retardado e visava-me, carabina, revólver, através da folhagem? Ataco e pergunto-lhe
em tom amigável qual o motivo, afinal, de tanta proibição. «É um posto metereológico, explica,
não se pode ali entrar. Se tem tanta vontade de o fazer, seja gentil (traduzo do francês) e peça
autorização». Dito o que, retira-se às arrecuas, com toda a sua corte de diabos invisíveis, tendo
causado em mim, depois da emocionada agitação que me fez atravessar um interdito, a solução
de um complexo de culpa grandemente desenvolvido durante a estadia na torre.
À noite, esqueço os poemas e começo a ler Borges. Abro o livro ao acaso, no metropolitano.
Detenho-me no ensaio «O Espelho dos Enigmas». Um itálico chama-me a atenção: Videmus
nunc per speculum in aenigmate: Tunc autem facie ad faciem. Nun cognosco ex parte: Tunc
autem cognoscom sicut et cognitus sum. E a tradução abaixo (a que prefiro, de Cipriano de
Valera): «Agora, vemos num espelho, obscuramente; mas então veremos face a face. Agora
conheço parcialmente; então, conhecerei tal como sou conhecido»1. Apesar do meu latim
nenhum, posso fazer melhor:
e não só; na igual propriedade das palavras e na direcção que tomam, na última parte do
versículo como no final do meu poema que, depois de denunciar o encontro meramente casual,
carnal, do corpo com os corpos2, escolhe o conhecimento que é amor por ligação aos mais
remotos rostos do universo. Para além da passagem ininteligente das coisas (agora, conheço
parcialmente), os esponsais da lucidez e do desejo (então, conhecerei tal como sou conhecido):
………………………………………………
………………………………………………
isso o meu corpo quer — o corpo — dia e noite
ele julga que eu tenho a idade dele
……………………………………………….
……………………………………………….
mas o meu centro de aeração mudou-se
o meu relógio de mar parou em cima da mesa
o espelho meu foi puxado para trás
e foca — admirado — a magnificência liberta
Parece-me inútil frisar, mas à cautela friso, que estes versos e a narrativa do seu
acontecimento não intercedem por qualquer «humanização do divino» ou crédito de vida como a
sonham os católicos. Eles apenas continuam numa forma inesperada porque conclusiva de uma
nova, nova para mim, situação do poeta em relação ao mundo — ao seu mundo amoroso — que
lhe surge pela primeira vez não através, ou não só através, do corpo amado, como instrumento de
gozo, de imaginação e de posse, mas tocando em seu todo o mundo das formas, a própria
imaginação do universo.
Este, é um universo mágico, e a acção do poeta nele, labiríntica. Dois mitos diversos —
hebraico o primeiro, grego o segundo — que já na análise tentada à pintura de Vieira da Silva se
me juntam diante dos olhos.
Perturbador, porque se o mundo hebraico forjou as leis morais do Ocidente e, com elas, a
parte mais inabitável do planeta, forjou também a Kabala, articulada sobre a inteligência das
coisas. Perturbador, porque se Teseu no labirinto é a própria Poesia passando através da Lei é
também o que mais pode deter-se na efusão estática à aproximação do ser amado — modelo um,
e facilmente horrível, da extrapolação católica.
Que têm de ligado a epístola aos coríntios, a chamada a Platão, Borges, estes versos, e a
Torre? Pois nada, senão que constituímos durante cinco dias matéria comum aos primeiros
cabalistas3 e a todo o subsequente arsenal mágico, mais tarde herético, de que a própria Torre é o
símbolo cravado por Flamel no coração da cidade. Olhando em mim, olhando em volta (um
pouco) não tenho a pretensão de ter recebido uma mensagem, mas a certeza de ter encontrado
uma.
Junho, 15
Junho, 26
Quatro dias depois do regresso a Paris faço uma visita de cortesia à Torre. Reencontro um
argelino que me asseverara, três semanas antes — no alvorecer da noite em que me perdi — que
preferia mil vezes dançar sozinho, ou com um camarada, do que voltar a procurar mulher.
Mulheres, bah… Iria para Marselha, onde tinha um colega. Entretanto, mostrava a carteira
carregada de retratos de fêmeas, uma delas repetida em diferentes clichés que reapareciam como
uma obsessão. Fini, fini les femmes. Estávamos num café perto da Torre e eu fitara-o talvez
demasiado. Achei-o — e era — parecido com o Alexandre O’Neill, mas mais jovem (sem ser
questão de idade) e belo, mais livre — também mais preto — com a realeza da fronte e dos
gestos que as raças árabes passeiam pela Europa. Pergunta-me se tenho carta de condução, se
não quero ir com ele para Marselha. Não quero eu outra coisa mas não vou. Aliás, não tenho
carta de condução. Ele ouve as minhas razões e encerra o assunto dizendo que a melhor hora de
ir ao banho (turco, suponho) é essa agora ali. Não o acompanhei.
Vejo-o agora sentado, muito direito, num banco do parque. Fala-lhe um rapaz branco, feio
como as cobras. Acena-me. Reconheço-o, saúdo-o, mas de longe, passo-lhe de lado, eu, a grande
Europa! E subitamente a meu lado, do lado do coração, o que eu ainda não vira, ou olhara sem
ver dias a fio: uma discreta, quase oculta homenagem a Gérard de Nerval. O amante traído por
todos os rostos de Aurélia, o visionário das Viagens no Oriente! Ele, ou o seu perfil de Gérard
Labrunie, talhado no medalhão que tem acompanhado tantos dos seus livros.
E o meu príncipe árabe? Desapareceu. Deste duplo encontro, ou reencontro, fantasma, restam
sobre uma pedra, cercados de musgo, os versos admiráveis:
Julho, 11
«Cada homem gerado é todo o céu, ou todo o inferno, em todas as suas partes infinitas». Isto,
que leio agora em Swedenborg, pode ter várias réplicas. A primeira (a Ocidente) de Blake.
Última, a que apontei, vejo que sabiamente, no poema do «reino de Pràtazul, a linha de água»:
Ainda neste poema, dois versos cortados, por, entre outras coisas, fazerem supor uma crítica,
que não são, ou uma identificação, que não têm, com a filosofia de Platão:
Ora: é por holocausto à sua estrela, filha dos mistérios de Ísis e Elêusis, que Nerval se
enforca na R. da Velha Lanterna, em 25 de Janeiro de 1855. «Bastava-lhe estender os pés para
tocar no solo».
1 A tradução de Torres Amat, também referida por Borges, intercala a palavra Deus para dar o seguinte: «Presentemente apenas
vemos Deus como num espelho e em obscuros reflexos; mas então vê-lo-emos face a face.»
2 Ler no Phedro de Platão.
3 Intérpretes orais da Tradição.
PARIS, 14-2-1970
Desapareceu a velha grade alta que defendia em quadrado coberto de arbustos todo o jardim
Saint Jacques e a própria visão da Torre. Canteiros de altura não superior a trinta centímetros
passaram a formar, a toda a volta do quadrado, um anteparo irrisório, e, se possível, ainda mais
feio do que os bancos agora postos em modernizado. (Devido, dizem-me, a Maio de 68, depois
do que grande parte dos jardins de Paris foram rapados das suas cercaduras de ferro em lança,
possível ferramenta de motins).
A Árvore Que Dá Gatos, como eu chamava ao passo ajardinado que ladeava a também ex-
estação fluvial do Cais do Sodré em Lisboa, não sofreu maior devastação! A perspectiva, como a
luz, passou a rasante, e a Torre, despojada de toda a vetustez, raspada pelos serviços camarários,
é um bolo amarelo de alvuras indecisas. (Antes, semelhava ferro em combustão interior). Vem
do chão como se ergue a dos muslins que rapam à navalha o cabelo do sexo. Amarela, também, a
estátua de Pascal ganhou o aspecto mindinho de quem pode ser conduzido a passeio por qualquer
vento fraco variável, e a colunata dedicada a Nerval, antes assoberbada de verdura, vê-se de todo
o lado, termina em bico, como a tampa do telefone para a polícia. A casa do guarda também
desapareceu: deixou de haver seja o que for para guardar.
PRIMAVERA AUTÓNOMA
DAS ESTRADAS
Os jornais são já livros feitos em comum. O «escrever em
comum» é um sintoma curioso que faz prever um grande
aperfeiçoamento na arte da escrita. Talvez cheguemos a poder
escrever, pensar, agir em comum. Comunidades inteiras, e
mesmo nações poderão empreender uma obra.
Novalis
ENCONTRADO PERDIDO
LES HOMMAGES EXCESSIVES
À ANDRÉ BRETON
comment
devenir
cor(p)beau?
À JOÃO MONIZ PEREIRA
tu sais?
à Paris
tu ne dirais tu ne dirais pas ça
A Paris
il y a
la grandeur
et puis
le métro
et puis
c’est pas mal d’être mort à Paris
À ANTÓNIO PEDRO
thèse
hypothèse
thérèse
je suis prêt tu peuves sortir
À ANTÓNIO DOMINGUES
Eu tlim ciências
tu tlim matemáticas
ele tlim trabalhos manuais
nós tlim recreio
vós tlim senhora
eles tlim castigo
À ALFRED JARRY
à l’Ozenfant de la Poupiii-e
le jus de gloire est tari V.
montre-nous de la Tyranie
l’étang d’art sans glande élevé!
ADOZITES
REBELIÃO
a — uma delegação de cidadãos composta de cinco membros descerá de dois táxis palhinha e
atravessará o rossio em estado de nudez. após a prisão grandes manifestações de regozijo
podendo haver lapidações em série.
d — duas delegações de cidadãos no total de dez membros descerão de dois táxis palhinha para
atravessar o rossio em estado de nudez. após a prisão abertura de um parque de rebolagem. mais
lapidações.
bem dizes ai
com pulmõezites
ó chirivai
tocando apites
ai caravelas pelo mar fundo
tragam uivos de areia aos pirilampos
cabazes de olhos de moribundo
e sumos de uva nos relampos
de mim para ti
de ti para mim
ófeguiderzin
OS ANOS FELIZES
eu tlim ciências
tu tlim matemáticas
ele tlim trabalhos manuais
nós tlim recreio
vós tlim senhora
eles tlim castigo
ESPELHOS
o que é o crocodilo?
o grande responsável
o que é o elefante?
o grande irresponsável
que pode nascer deles dois?
a flor
e diversos de: primas lagarto lao-tsé goethe hedy lamarr nicolau II etc etc etc
CONTO DE UM SÁBADO DE ALELUIA
Uma sala onde funciona uma sessão de espiritismo em que tomam parte cinco personagens. Há
muito que se descobrira, ao fundo da porta, ajudada por dois cães ovais de grandes proporções, a
tarefa extraordinária de uma multiplicação sem fim através dos quartos da casa, de resto
iluminadíssima. Ao fundo, uma cortina de pássaros azuis no sentido vertical reverberava luzes
mecânicas, entre o rolar de dois seixos enormes. E, efectivamente, quando a porta se abriu,
apareceu uma ravina profundíssima.
As encostas do abismo estavam cobertas de plantas gordas que deitavam uma aguadilha pegajosa
onde se iam prender as moscas que saíam daquela casa. As flores de cada um tombaram no
silêncio da noite catastrófica, esquecida para lá da cortina. Nada parecia extravasar daquela
ausência de burburinho e os pingos de água, soltos como rimas do poema premeditado e sem
origem, retiniam na planície, em baixo, vazia de outras imagens.
O primeiro espírita era um grande coxo de olhos fitos e sem pálpebras comendo
permanentemente azeitonas e cuspindo os caroços para distâncias incalculáveis. Era de resto
sujeito a vertigens e costumava aconchegar-se cuidadosamente para o seu acto habitual. O
segundo era uma pulga-do-mar omnipotente e carnívora, que apreciava esconder-se numa nesga
do retrato do dono da casa. Este, o mais velho, tinha cosido o braço direito na balbúrdia das
dobras da túnica verde que usava para simplificar uma nudez exaustiva e porca. Havia também
uma rapariga e um homem magro vestido de preto que passava as mãos sobre um osso muito
branco e limpo colocado num estojo de veludo à sua frente.
As cinco personagens não estiveram muito tempo naquela conjuntura sem que cada uma por si se
recordasse da infância. A rapariga encaminhou-se para a porta, afastando os pássaros azuis da
cortina com um passo cadenciado e sonolento. Na ravina, em baixo, dormiam duas mulheres
atravessadas uma por cima da outra. Ao vê-las, escorregou nos caroços do coxo e foi estatelar os
olhos no osso do coleccionador. Longa, laboriosa e secreta conversação se entabulou entre os
dois.
Não era a primeira vez que, depois de inúmeros e esfalfantes apelos, os espíritos se recusavam a
converter-se em imagem, seguindo-se então colóquios intermináveis, frases minúsculas e breves,
entre os assistentes. Por exemplo, a pulga-do-mar omnipotente e carnívora já se havia instalado
no capilo-mensor do dono da casa, esperando prudentemente que o fumo saísse do estranho
maquinismo. Quem te avisa meu amigo é. O dono da casa, realmente, não podia permitir, por
causa da moralidade, aquela visão cuidadosa. Assim, o primeiro personagem, ante a
possibilidade de avaliar a sangue-frio a trajectória do primeiro caroço, expelido pela manhã,
volteou sobre si mesmo duas vezes e especou-se de olhos fechados.
A paisagem estendia-se sem interrupção até às ruínas do castelo do marquês de Sade. De casa a
casa, do pátio misterioso e sem janelas fechadas ao histórico castelo, tudo era como se a distância
não fosse. Estranhos cavalos-marinhos, com seios de mulher, impediam o acesso às ruínas, e,
então, Catarina, pegando no osso do coleccionador, arremessou-o naquela direcção.
Entre o dono da casa e a rapariga nada havia que os aproximasse, salvo um gesto dele que a
amedrontava sempre, gesto recôndito, premeditado desde a infância e sempre suspenso, em que
desdobrava os dedos como numa panóplia.
Mas ninguém estava ali por acaso. Falhada a invocação de alguns espíritos de reconhecido
interesse, quatro das personagens, seguindo o olhar espantado do coxo, tiveram que sair. E
imediatamente, avançando com a irregularidade de um insecto, surgiu na paisagem, através de
uma grande porta em arco, um automóvel negro muito lento com o aspecto das bestas do dilúvio.
Dele saíram, sucessivamente, uma tesoura branca, dois pares de formigas excessivamente
ingénuas (a ponto de trazerem os laços debaixo do sovaco) e um cão que tinha de extraordinário
a cabeça de um homem morto durante o Directório.
Eis que chegam os espíritos! exclamou o dono da casa.
Na verdade, tratava-se apenas de polícia que a municipalidade enviara para arruinar o intento,
aos naturais suspeitos, daquelas reuniões sucessivas e prolongadas. Catarina lançou-se num vai-
e-vem de corpo livre. O homem magro mostrou-lhe a meia balaustrada que trazia escondida e
dobradinha em quatro voltas sobrepostas, depondo-lha aos pés. Com um acesso de despedida, ela
içou-se sem esforço e, transformando-se em águia, voou para as ruínas ante o pasmo dos
companheiros e da polícia. Quando regressou, trazia os seios apartados por um pedaço de lua e
resplandecia da cintura para cima.
Não havia nada a fazer. Com terrível angústia, o cão de cara humana expressou-se nestes termos:
senhores, eu nunca me teria aproximado desta casa pestífera, se não estivesse há muito
mergulhado na mais total vertigem. Não teria dito às minhas patas que avançassem, obedientes
às provas de tortura em que a região é fértil, se esta vossa casa fantasmática não abrigasse nela a
memória das noivas que eu possuí em jovem.
O choque foi tremendo. Nada do que podia suportar-se eterno e respeitável correu jamais o risco
de uma desintoxicação tão completa. Ao contrário do cão, os agentes da autoridade usavam
gestos expressivos de combate, e os espíritas, sedentos de outro mundo, nem cuidavam de
arregaçar a sombra, na confusão do atropelo. Andava assim trocada a mancha de cada um. Só o
coxo, impretérito, cuspinhava caroços na confusão das imagens.
Quem vem lá?
No vale amedrontado as irmãs sobrepostas aceleraram o ritmo da respiração. E, como eco do seu
alvoroço inconsciente, retiniam quase em surdina todos os instrumentos de tortura espalhados
pelo campo.
Ouviu-se então, e sabe-se lá de onde vinha, uma canção de embalar:
De uma grande trompeta saiu a mosca — a mosca do pântano onde as cabras lavam as roupas de
baixo e os grilos tratam dos ouvidos uns dos outros. A mosca saiu velozmente e pousou na mão
que a esperava à saída. Deslizou pela mão, subiu pelo braço e foi dar ao interior de uma víscera
extraordinariamente roxa e laboriosa. Aí, tirou as lunetas de vidros fumados, limpou a testa com
um lenço quase tão grande como um lençol e começou então, só então, a cantar a ária Os Filhos
Perdidos, grande ópera italiana de Mosquito Mosqueteiro, agora entrevado entre quatro rimas de
«libretos»
Por essa altura usavam-se muito umas sapatilhas cor-de-rosa apertadas em volta do tornozelo e o
meu maior prazer era sentar-me à janela esperando de olhos fechados a aproximação do seu
ruído característico. Esperava, bebendo um vinho de Espanha que sempre excitou a minha
imaginação, e não poucas vezes consegui aquele estado de espírito em que a recordação dos
ódios familiares, a desagradável presença de uma tesoura sobre a fragilidade da minha paciência,
se desvaneciam sem deixar qualquer baba. Comecei assim a percorrer os livreiros à procura de
todos os livros que traziam, bem desenhados, os órgãos genitais femininos. Consegui juntar 400
gravuras representando esses órgãos e dispô-las de tal maneira que acabaram por criar um ser
estranho e quadri-dimensional. Esse ser começou a beber água a 27 de Abril de 1937 e, desde aí,
só por momentos deixa de o fazer. Arrasta-se, às vezes, até à janela, para vomitar sobre os
transeuntes uma nuvem de cabelos brancos velozes como borboletas. Depois retira-se e vai ver,
no espelho, uma dentadura poderosa, quase brutal.
Observar os seus enervamentos, ser o cúmplice activo das suas antenas, quase sempre
crepusculares — eis todo o meu trabalho desse tempo, mas, também, a sua contínua e
perigosíssima suspeição. Dir-se-ia que eu, não ele, era o campo de cultura de um observador
pertinaz e sempre insatisfeito. Sempre insatisfeito, até com… «a viração que lhe trazia o cheiro
dos chapéus de senhora escondidos no armário preto da grande sala-de-estar da Duquesa Elisa,
grande coleccionadora de faianças que as crianças iam, por seu turno, partindo, com um grande
regozijo nocturno. O guizo não se aguentava no coturno que o Duque teimosamente deixava ao
relento, todas as noites, enquanto ia dar açoites ao pachorrento guarda-nocturno que
pacientemente esperava as prometidas bodas».
«Os chapéus cheiravam enquanto chegavam os réus ladeados por todas as prometidas, chorando
lentamente. O armário preto era afinal o esqueleto do pardal monstruoso e hebdomadário com o
abdómen comido pela mãe que se ria num gozo que bradava aos céus!»
Comuniquei estas e outras experiências a um homem magro que aparece por aí e disse-lhe que se
eu desaparecesse, desejava que fossem aos Açores (dei as indicações necessárias) e numa ilha,
que nomeei, escavassem a rocha, depondo nela a última prova de laboratório: um negativo em
que, por detrás das asas, figura um objecto de solidão.
LÓGICA DO CAFÉ ROYAL
LÓGICA DO CAFÉ ROYAL
O inferno é o real absoluto. Quanto mais infernal mais verdadeiro. Por enquanto.
Uma nuvem escarlate sai da tua boca em direcção ao rio. Talvez te hajas devorado a ti mesmo,
primeiro só um braço, depois só o outro. Talvez a imagem de uma cidade em chamas onde o
excesso de circulação de revoltos, na zona dos quartéis, atira para o céu todos os pesos médios.
O lirismo é um epigonismo da prisão de ventre. Se alguma vez fui lírico — mas dizem-me que
sim — é porque estava com essa prisão.
Colo louco.
Apesar do outro que diz, duvida que o anão aos ombros do gigante veja mais que o gigante. Na
verdade não vê: não é da sua contextura. A visão do gigante é peculiar, formam-na os seus
tamanhos, o seu passo, o seu conhecimento da floresta. Aos ombros do gigante, se chegou aí, o
anão vê anão o seu universo anão.
Encontrar a verdade em corpo e em alma é o único fim da boca humana, o único trabalho que
deve prosseguir.
O TEATRO DA CRUELDADE: ANTONIN ARTAUD
E Deus quis que o homem acreditasse nessa realidade do mundo dos demónios
mas o mundo dos demónios está ausente.
Nunca alcançará a evidência.
O Teatro da Crueldade
não é o símbolo de uma vida ausente,
de uma espantosa capacidade de realizar a sua vida de homem
É a afirmação
duma terrível
e de resto inelutável necessidade.
(a Antonin Artaud)
«Noite suja, noite de flores, noite de estertores, noite capitosa, noite surda cuja mão é um
papagaio de papel abjecto por todos os lados retido, preso a fios negros, fios vergonhosos!
Planície de ossos brancos e vermelhos, que fizeste da tua fidelidade que era uma bolsa de pérolas
unidas com flores, inscrições disto e daquilo, significados para tudo? E tu meu bandido, bandido,
liquidas-me, bandido da água que desfolhas punhais nos meus olhos, de nada te amerceias, água
cintilante, querida água lustral! As minhas imprecações hão-de seguir-vos durante muito tempo,
como uma criança assustadoramente bela agitando na vossa direcção a sua vassoura de giestas.
Em cada haste uma estrela e não é muito, não, chicória da Virgem! Já não quero ver-vos, quero
crivar de chumbos as vossas aves que já nem folhas são, correr-vos da minha porta, corações de
pepino, cerebelo de amores. Basta de crocodilos no telhado, basta de dentes de crocodilo em
couraças de samurais, basta de jactos de tinta e renegados por todos os lados, colarinho
vermelho, olho de groselha, pêlo de galinha! Acabou-se, não mais esconderei a minha vergonha,
ninguém mais me acalmará, por nada, por menos do que nada. Se as máquinas voantes estão
grandes como casas, como havemos de festejar-nos, alimentar o que nos vai roendo, erguer as
mãos sobre os lábios das cascas que falam sem fim (estas cascas, quem as calará de vez?) Basta
de segredos, basta de sangue, basta de alma — mãos para amassar o ar, doirar uma só vez o pão
do ar, fazer estalar a goma das bandeiras que dormem, mãos solares enfim, mãos geladas!»
A IMACULADA CONCEIÇÃO
Devo dizer que anoitecia. Os eléctricos começavam a subir pelo espaço com uma obrigatória
sensação de enjoo. Quando as casas se desmoronam é observável um brevíssimo movimento-luz
na pálpebra do último a desfalecer (desde que desfaleça esmagado). As várias interpretações que
o fenómeno tem sofrido parecem-me bastante longe da verosimilhança. Pelo menos, da
verosimilhança obrigatória. Além de ser pouco acessível a crença nos fenómenos desta natureza,
há sempre um pequeno desvio oscilatório entre o fenómeno em si e uma pequena pedra que se
situa muito ignoradamente no pé levante esquerdo do túmulo de Napoleão Bonaparte. A coisa é
difícil de estabelecer porque no seu movimento de suspeitíssima ascensão os elevadores actuam
colectivamente.
Na minha meninice tive muita facilidade em verificá-lo mas como a transmissão directa de certas
revelações é praticamente nula, além de ser vergonhosa, aconselho a leitura ao ar livre dos livros
pornográficos que pelo menos uma vez na vida nos aparecem de chofre. Não é no desejo de
impulsionar — impulsionar é uma palavra estranha — que a este propósito vos falo da aranha
pessoal, incrivelmente ténue, que a certas horas do dia pode ver-se na mão das pessoas que
caminham como sonâmbulos entre um automóvel que soe escangalhar-se e a parede da rua
perfeitamente ocasional. Foi uma dessas mãos aranhadas (falo sem preconceito) que em tempos
remotos, através um amigo de infância, me deu a ler A Torre de Nesle. Será talvez inútil atender
ao facto de não ser este livro diferente dos demais — diferente num sentido pornográfico —
senão pelas ligeiras inclinações que preexistem no canto superior direito de cada uma das suas
folhas. Bardamerda se afinal as gravuras traem sempre o verdadeiro espírito das obras em
questão e é de lamentar que o homem não possa realmente incandescer-se e crescer segundo os
seus desejos. Outros livros há no entanto que parecem provocar o justo contrário e todo o carro
de pastores tem direito a parar de quando em quando no sentido poético, isto é, demoradamente.
Se um passeio tem sempre os seus perigos, como desistir então de achar formosa a paranóia
auricular de certos vegetais afrodisíacos? O justo dispensável parece ser não o cerimonial interno
(do ponto de vista da traição biológica), mas um conjunto, quase sempre apressado, de fórmulas
hieráticas que — justamente! — pendem de uma das patas da aranha manual. É claro que será
sempre difícil averiguar da autenticidade de certas manipulações ora vergonhosas — sentido
solar — ora apocalípticas — sentido lunar ou antimuro. A necessidade de tempo age, eu diria
que sempre, de maneira volátil, e entre o fonógrafo e a capicua o socrático escolhe sempre outra.
Penso fazer passar por ela um cortejo tal que os próprios cinemas estalarão de cio. Nada de
determinado sobre a natureza do cortejo, mas prevejo cabras, heliotrópios, esponjas, um braço
feminino no sentido amoroso. Duas largas pernas em ângulo recto, uma lareira de cobre, o meu
cabelo.
Não me parece que venha a engordar.
A PAISAGEM DO RELÓGIO BRANCO
a paisagem do relógio branco talvez dentro do palco talvez fora dele — penso numa janela que
dá para certo jardim de três dedos janela que só abre quando faço um sinal de assentimento aos
outros pés do imóvel — passo bastante veloz entre almofadas custosas de digerir, água de seltz.
Fui dar à grande gruta onde todo o maquinismo respira brutalmente de encontro a um animal que
de curioso só tem os olhos — uns olhos de curiosidade. Outra estranha figura gira continuamente
em torno de uma grande mão percorrida por inúmeros insectos de madeira. O maquinismo
começou a dar horas — pancadas unilaterais muito sensíveis na minha perna direita que retraiu
por momentos. Um grito lindíssimo nasceu na parte superior da concavidade calcária e uma
rapariga graciosa apesar do cancro que lhe roera o nariz e parte do ventre atou-se vagarosamente
ao poste e começou a girar também. A explosão não tardou a dar-se nas minhas próprias
cadeiras. Uma grande angústia tomou conta de mim e subindo em balão encontrei uma casa de
caridade pública cheia de brilhos com olhos numa série de damas sentadas numa caixa de vidro
cortical.
És tu? disse a segunda.
Terrivelmente rápido transformei-me em mosca dos pântanos instalando-me no pescoço da
prostituta. Não será preciso acrescentar que a breve trecho ela estava morta. Um senhor que
aparecia a ler um romance antigo desfez-se no mesmo momento em que uma das minhas patas se
levantava daquela carne dorida.
Tudo leva a crer que se tratava de incesto e voei para cima da cómoda habitando hoje o dentinho
— o primeiro que lhe caiu — da menina que dorme irregularmente na praça luís de camões
quando o polícia do lugar fita distraidamente o último automóvel da madrugada e os insectos
começam a murar as suas habitações invisíveis aos olhos dos trabalhadores que se levantam com
o tesão do mijo.
as aias agem por elogio sob a viuvez do talco, centro de uma vela branca como um dorso, larga
como um farol de vastos estremecimentos. Acusados de aspirar o ar puro dos montes, expiram os
maquinistas. Há-os a pé e a cavalo, há-os com passo de subúrbio, há-os já sem vida, sobre as
fogueiras. Um homem ergue lentamente um braço, deixa-o cair em cima da cabeça. O cataclismo
sai-lhe pelas esporas.
Embrulhadas demais, duas palavras irreversíveis quebram-me o aparo, pouco habituado a estes
seres. O ar gira uma chave ao desdobrar a mão que lhe aponta o país que aparta os movimentos.
«Ungarito, digo eu, vê com que arte o amor retoma o brilho das cidades cantábricas!»
Instalado à lareira do refeitório um pichel de ale quente sorvia lentamente um homem. As razões
porque o chamavam ignoradas eram absolutamente capitão. Por fim juntou-se roseamente ao
poste e soluçou a pensar na mãe. Surgido do ar, leve como um a-fresco, um leão boiava na
porta…
Pendurada de uma janela de feltro com um ponto moral de quatro vóltios, a garganta-milhafre
presa pela espinha invoca o vidro ardente das cremalheiras. À cega imunda consegui gritar que
me transfusionassem um pouco o osso do meu pé caído na luta. Do chão brotou, a arrastar-se, a
minha roupa primeira — meu amor, que no nome te pareces comigo… Do eu me ver que se
tratava do cesto e, puxando uma rima, caí em estado de coma. Mas a ave que debica o vento,
primo dos mensageiros do céu, veio dar-me a sumptuosidade volumétrica de um olhar que certa
fístula, traída pelo ultimato autómato das madres ungarettianas, intercessiona ao largo das ilhas
sandwich na tentativa de murar gazuas e titilações aos olhos das torneiras tradicionais que
levitam o barrete frígio na mão.
ESTADOS
O antigo dono de uma hospedaria chamou três companheiros de um filho e fizeram um pacto:
que tudo o que se visse nas florestas do Ocidente fosse fabricado pela mão do homem!
Meu dito meu feito. Compraram uma casa, disseram adeus às mulheres e ninguém mais os viu
durante um ano. A voz corrente era que se embebedavam. Como, porém, nunca saíam, nada se
podia assegurar. Começava a temer-se pelas suas vidas quando o estrangeiro apareceu, pediu
silêncio, meteu os quatro homens numa caixa e os levou para a nau.
Os tipos de crânio e de esqueleto correspondiam, anotou o estrangeiro no livro de bordo. Os
outros, seguiriam para entulho.
Sussurrando alto, o que é uma excelente maneira de proporcionar uma respiração satisfatória, o
antigo dono disse para os companheiros:
— A nossa voz é monótona em vez de vibrante. Vamos morrer todos nesta caixa.
Este estado durou vinte e seis horas.
No estado seguinte, a mola mestra dessa preparação espantosamente rápida que é um rapaz de
vinte e dois anos, entrou na ponta dos pés, sentou-se ofegante e disse:
— Vocês chamam a isto nadar?
Era uma voz de alarme. Efectivamente, fora da cidade, quantos saberiam da situação dos quatro
amigos? Começaram a colher informações nas páginas dos jornais. Em movimento, não
pareciam estar feridos. Sentados, o sangue escorria, tentando a eliminação de substâncias
prejudiciais. A posição dos joelhos, sobretudo, era incómoda.
Este estado durou dezassete horas.
Findas as quais o estrangeiro desceu, abriu com afabilidade e convidou os quatro amigos para o
deck dizendo-lhes que comessem e bebessem porque os tempos não iam para outra coisa.
No estado seguinte as nações livres do mundo estavam progredindo e as obras dos serviços de
utilidade pública multiplicavam os progressos das nações livres — o corpo humano deixara de
aspirar ao sono — as mulheres arrumavam os quartos dos maridos com adoráveis mãos que
sabiam escolher.
Emagrecer repousando foi, neste estado, a única preocupação dos quatro amigos. Aliás, a
situação a bordo era excelente, com bastantes vistas para o mar. Paco Bill, o urbanista armador, e
os homens da equipagem, os admira dores, os solicita dores, os canalisa dores, os trabalha dores,
os avia dores, os computa dores, os opera dores, os prega dores, os pesca dores, os alumia dores,
os anuncia dores, os salva dores, além dos oficiais de serviço, o monta dores, o chupa dores, o
canta dores, o limpa dores, o beija a dor, e o de serviço em baixo, o restaura dores, haviam
tratado de tudo, não permitindo que se lhes adiantassem em imaginação, tacto e disciplina. Já em
laboratórios produziam homens em miniatura, agora em exercício na cabra da nau. A única
deficiência consistia numa dificuldade em classificar tais objectos.
Os quatro amigos prestaram-se de bom grado à obtenção do material necessário: uma madeira
leve, resistente, insusceptível de fadiga ou ardor.
O estado seguinte é apoteótico. Os 150 motetes e as 93 missas de Palestrina tinham feito ressoar
o grande órgão de Leipzig. Pois bem: o antigo dono dos companheiros de um filho não
desmereceria de tal responsabilidade. Já a região da Champagne se tornara famosa por obra de
Don Pedro Perignon. Ele, poria o telegrama seguinte:
Neste estado chegaram a procópio’s town, entrando como uma flecha em mosca’s basílica, por
còcácos tower.
O AUTOMÓVEL VERDE
……
o automóvel verde
vestido de lilás
……
vejamos : a lua no quarto crescente cinge o macaco. Separará sem dúvida o quente do frio, como
uma aterrissagem do génio expelindo o melhor, le plus beaux que auferimos de tanta felicidade
partiremos de noite como dois operários. Assim eu venho para a grande fractura frente ao
palácio. A princesa repousa da sua casa, trago-lhe o direito ao abandono nela. É encarregado da
obra e da palavra, amigo da bondade e da beleza, o meu cão.
olhar é desaparecer
além de tudo o novo cisne de Rhodes teu pai, pai de si-mesmo e de quantos o habitam, ele que
tanto lembra o seu esplêndido vácuo e fala claramente, separado do mundo.
quanto a Fausto, é de ver que se trata de gente doida com aparência de sábios, gente que sabe,
que sabe muito, gente para fuzilar.
le vieux couple.
cadame.
le soleil.
O LORINHÃO ESCORREITO
SONETO
Falam de revolução
Com o novel editor.
Mexem muito a mão
No horror.
E tanta cortiça
Para se aparar.
Toma esta nabiça.
Vai buscar.
A guarda republicana
Passa ao longe a cavalgar.
O sacana.
Estar.
Vai devagarinho
Vai e não vai só
Leva a borracha do vinho.
Oh.
No meio do olival
Já perto da oliveira
Não parece mal.
Estrangeira.
O que é o suicídio?
É descer lentamente com o vagar de quem sobe.
O que é o amor?
É uma rua muito sossegada onde só se passou uma vez.
O que é a nobreza?
É o vento vindo dos bosques.
O que é o sonho?
É o simulacro da melancolia.
O que é a coragem?
É uma igreja dentro duma noz.
O que é um Galo?
É uma dilatação na parte posterior da cabeça.
O que é a razão?
É uma carta vinda de longe.
O que é a noite?
É um texto muito antigo entoado por uma multidão de sapos.
O que é o destino?
É o amor a todo o comprimento.
O que é a infância?
É uma ilha que emerge rapidamente.
O que é a Pintura?
É um banho turco prolongado.
O que é a monarquia?
É um saco cheio de pedras a pedir que o carreguem.
Que esperamos?
A tua esperança.
Que fazemos?
O dia.
O que é o nervoso?
É a lamparina de aço.
O que é a paciência?
É um alicate em dia de trovoada.
Que és tu?
Um fio que ato à volta da cabeça.
O enriquecimento do vocabulário.
Não creio que haja muitos espectáculos, todas as manhãs, diz a história dos zepelins.
Que se passa?
No ângulo da Rua Augusta com a Rua Nova da Trindade estava um indivíduo coberto de trapos
ensanguentados sentado no passeio. Os transeuntes afastavam-se dele com repugnância, alguns,
dando pequenas corridas nervosas, ferravam-lhe caneladas e cachações. No passeio oposto, um
homem baixo e atarracado, de sobretudo, dizia repetidamente, fixando a vitrine da Sociedade
Pancada & Morais: Olá!
Não, não e não! — disse o gafanhoto preso pela cinta muito velha mas útil que o ligava sempre
ao seu partido. Insinuara-se no degrau da escada e começou a desenrolar o papiro onde trazia
escritos o nome do pai, da mãe, do amigo e do inimigo mais próximos. É assim, comutou ele:
«Casa cantante, caracol na cabeça, bom telefonema para as Índias Orientais, assim heis-de
prestar contas do sucedido.»
A mulher gostava? A mulher não gostava. Abrira o ventre a trancadas de cavalo, eram quase seis
horas. Isso não impedia que o lituano fosse uma língua arcaica. Era essa pelo menos a opinião do
ilustre arqueólogo. Para se lançar nesse sublime caminho repleto de afirmações baseava-se ele
em três elementos, a saber: o facto de a libélula ter asas em rede de aço; a convicção universal
segundo a qual fogo em japonês antigo corresponde à palavra grega que actualmente significa
raiva ou pequena má disposição; terceiro: o facto, gravíssimo aliás, de ter sido encontrada no
ventre de uma libélula uma colecção completa de lápis de cor. Depois de tudo isto, como o
congresso não fora ainda dissolvido pelos grandes activistas, procedeu-se entusiasticamente à
mineralização do osso do guerreiro.
No entanto, a escuridão era total. Agarrada ao manuscrito, a personagem murmurava
incongruências sobre actores e carne picada. Fazia-se tarde. Na sua cabeça, pequenas picadas
nervosas constituíam um aviso premente, sinal da saída da tiragem da tarde dos jornais da cidade
que, de há uns tempos a essa parte, se tinha enchido de acções malévolas praticadas pelos
componentes da organização «Frete Ilustrado».
Como sempre, a identificação organizada do osso do guerreiro complicava-se. Dois gramas de
álcool sobre as minhas feridas e a tese horrível de Dostoievski conseguiram alfim o primeiro
raport: tratava-se do jornalista medieval Osnam obrigado a ir para a guerra sempre que era
preciso, isto é, sempre que tocava a corneta (e tocava sempre!) no acampamento de Osram. Por
outro lado ligado à princesa, o homem era velho apreciador de imagens, tinha uma.
Isto aborreceu toda a gente. Quarenta, oitenta, cem. Digamos mesmo duzentas plumas; com elas
o mexicano arcaico, nariz em pedra cinzenta, grandes orelhas em lava solidificada, sexo roxo,
coroou a cabeça oblíqua. Cantaram os pássaros, enegreceram as piteiras pontiagudas. Como o
céu era amarelo as catedrais volveram-se areia. Uma paz inquieta ondulou, um sangue
solidificado cristalizou. Tudo era o ventre da serpente.
Confuso, o editor só fazia asneiras. Forçado a alimentar-se demasiado pelos intriguistas do jornal
Agora a fim de poder comparecer às reuniões da Casa do Pombo, ia dando sinais mais que
evidentes de obscurantismo primário. Sua mulher perseguia-o e dizia a quem a queria ouvir:
«Noutros tempos, era tudo uma língua, um ouvido, uma convulsão. Dançávamos sobre o sangue
da coruja, possuíamos as pedras negras caídas da lua, oscilávamos ao ritmo das explosões
solares. Os nossos corpos eram coral e vento, belos como a raiva, resplandecentes como os
cornos vermelhos do macho de uma fêmea que se desagregou em espuma e nada. Grandes
templos em aço e duralumínio coroavam a planta dos nossos pés. Marchávamos sobre a própria
estrutura do planeta. Nossos olhos crateras de lama negra. Éramos fortes. Morríamos cedo».
CARTA DE FIM DE ANO
Fazemos amanhã
o que podemos fazer hoje
O pecado de Onan
cor de burro quando foge
Engole Angola
até ao osso
Mede a bitola
no fundo do poço
Dá-me energia
Deus dos Otários
e a maresia
dos òrinários
Esta cidade
Não tem capacho
Ai que saudade
Do Cartaxo!
Aqui metido
Não sei que faça
estou invertido
No meio da praça
Um afrodisíaco
partiu o artelho
e o osso ilíaco
e o aparelho
os brancos Carrondos
os negros Mesquitas
os verdes redondos
Hititas
E os Pratas da Cunha
vendiam cartões
na ponta da unha
das monstruações
O meu monstruário
vem dos Orientes
em papéis de cenário
bem quentes
Ao fundo da rua
do Corregedor
a fase da lua
fazia horror
O homem é livre
Estamos tramados
le bateau ivre
forrados!
Da janela à rua
ingeriu por engano
uma velha nua
a tocar piano
A PRINCESA — Evaporo-me.
O BOUDOIR AMBULANTE — Logo que saia o Físico levam o saco para baixo.
A CIDADE DOS DEDOS — Apesar de tudo está-se bem. O quantum de dedos é enorme e aumenta
na proporção do exílio das mãos. Para o ano atingiremos o bilhão, sempre sem perturbarmos o
espaço aéreo envolvido pelos dedos petrificado, espiralado e perdido.
O FILÓSOFO — Estes montes que cercam a cidade que vigia os montes deixarão algum dia de
chupar-me a cabeça?
O FORNO ALQUÍMICO — Não sei. Das mãos que me fizeram à gente em que caí vai um ganir que
excede a ordem do fogo. Esta luz em que ardo é-me exterior, vem dos confins de um universo
frio, e a minha calote, outrora trabalhada para conter a Grande Obra, é quartel-mestre e adega de
ratos, serpes e escaravelhos.
A TORRE DE MONTAIGNE — Sonho que alguém me sonha, que me deslocam e retiram altura, que
me devolvem aos atributos humanos que eu transformei em lambris de lavabos e em espelhos de
bibliotecas. Mas ainda sou o homem que ilustra viagens fúteis e joga, às tardes, com a própria
sombra.
champs et merveilles
démons et marées
au loin l’auteur s’est déjà retiré
(fim do canto). É muito bom ser-se apanhado por uma força que vem igualmente de cima, de
baixo, e dos lados. Fica-se quadro para sempre, nesse lugar.
A RUA COM ROSTO NO HORIZONTE — Se o lugar tem cara não pesa mais por isso. Pesa tanto como
um balão.
A RUA COM CONFESSIONÁRIO — Se fosse tudo mais depressa, um pouco? Pode ser que ainda haja
primeiro balcão.
FIO DE ESCÓCIA — Telegrama! Mercado Lunar Chimpózés declara guerra a Planeta Vermelho.
Empresas Filipêndulas Oi pulverizam galinhas do campo. Cobalto Titàúcha lançado no jogo do
bilhar. Morrer tudo quem não foge. Obrigada nós.
FORTALEZA COM POLVO A JOGAR AO BILHAR — A mim não me fazem eles isto! Alô alô planeta
partido ao meio preparar cama com buracos. Chega amanhã.
(Pandemónio geral, seguido de geral acalmia. Com excepção de Filósofo, que foi pôr a
cabeça a prémio e regressou num ápice, ninguém se moveu do seu lugar. Pequeno coral
de ratos, serpes e escaravelhos.)
A PRINCESA — Evaporo-me…
FORTALEZA COM POLVO A JOGAR AO BILHAR — Já estava com saudades da minha casinha.
POEMA PINTURA COLAGEM COLAGEM
a Anne Ethuin
e ao poeta
Stéphane Mallarmé
A PINTURA DESVIADA
Coleccionadores, Museus:
Sejam modernos!
Se têm pinturas antigas,
não desesperem.
Conservem essas recordações
mas desviem-nas
para que elas possam corresponder
à vossa época.
Para quê rejeitar o antigo
se podemos modernizá-lo
com algumas pinceladas?
Lancem à actualidade
a nossa velha cultura.
Ponham-se em dia e
ao mesmo tempo
em rara distinção.
A pintura
acabou-se.
Melhor é dar-lhe o golpe de misericórdia.
Desviem.
Viva a pintura.
O NORTE DA EUROPA
II
Estava tudo tão tremido ao longo do mar e a gente sentia que o sol nos tocava com força. Levei
nos braços alguma terra verde. Lá havia muito sal. No seio daquela estátua mutilada no ventre
pela cruz vermelha do asco mais inocente.
Teve de vestir a bata branca, mesmo sabendo que o anestésico não chegava para o bolo que te
pediram e que eu comi durante três dias a mergulhar num monte de areia triste, lá onde a vaga
me comia. «Não implores», disse, e curvei a cabeça até lhe beijar os pés que outros haviam já
beijado outrora, à saída dos teatros que dão para a Grande Perspectiva Nevsky. Distribuídos os
gorros aos transeuntes, regressavam a casa, quando não voavam atrás da troika da Condessa
Nemus, num grande ladrar de cães com manguitos atrás das orelhas e muitas bocas abertas a ver.
Mas que grande porra, disse o velho, e ele sabia que era isso assim tal e qual e que não havia
mais nada para dizer nunca mais. E porque tudo me era indiferente desatei os sapatos e corri de
pés nus pela areia dentro a bater palmas e a uivar como um lobo.
III
Era principalmente música o que nos chamava pois ninguém tinha posto de radiofonia naquela
zona que era a mesma mas repetida de tal forma que a noite nos surpreendeu com uma cor
ligeiramente azulada nos tornozelos. Chamado o médico e retiradas as grades começámos a
subir. A primeira nuvem, ligeiramente descaída na ponta, não nos deu o necessário informe, mas
já a segunda, muito bem pintada, indicava o norte, o sul, o número do telefone, a certidão de
idade e o Grande Beijo, praticado de pernas para o ar e em estado de nobreza absoluta.
Um círculo vicioso. Estavam lá as cores todas. E gritámos. E ainda corria alguém — vago — à
frente dos nossos gritos-gemidos. Rosa — eu sei que havia uma cor-de-rosa. Como no tecto da
casa passavam aves e arneses, no fim do verão, quando as chuvas começam. O mesmo
fenómeno, afinal.
CARTA DA GUERRA DE ÁFRICA
Quando apareceu a vara de metal de Óbidos ficámos mais animados. A quantidade de archo que
ela traz é tanta que quase não podíamos carregá-la, não se avançando do sopé para a base dez
metros por talude.
À chegada, foi preciso tirar o alfinete, que rolou pela encosta com um ruído medonho.
Estávamos exaustos, sem papilas, e à contagem faltaram três: o Mudo, o Quasetudo e o Avilez.
Escrevemos às famílias, a comunicar.
Há um esquilo por dia e uma árvore frenética, excessivamente inclinada nas pontas. Mandei o
Otílio guardar.
O que casou em Anha e veio logo para baixo, sem sequer se despedir dos cães, está a ficar anarca
da cabeça. Já depois do pedido de dois dias para ir a Norfolk, disse ao Tudo, ao Quasemudo e ao
Chimpòzé que é um arrablo e ninguém lhe faz o ninho. Os outros bem.
Breyten Breytenbach
meu doce e generoso poeta posto a ferros
neste momento em que por toda Angola apeiam das suas bases de obscurantismo e de
intolerância pretensiosa
estátuas talhadas como a mais espúria «arte artística»
a começar pela estátua do Cão
«que foi o primeiro a chegar ao rio Zaire»
como se o rio Zaire não estivesse ali há montes de anos para o ver chegar a ele
e à sua estatura de português funesto
(audaz — pois com certeza!
valoroso — oh quanto!)
com nas pernas de herói navegador a tenaz indecente que havia de apertar todo o povo negro
Breyten Breytenbach
não sei se na enxovia podes falar com alguém
se no teu cárcere há uma janela
de onde ao menos se veja o azul do céu ou um ramo de árvore alta
as notícias que temos contradizem tal hipótese
deves ter sido lançado no escuro irrespirável que é o que mais vai às cabeças dos teus juízes
mas pela fresta donde sopra o vento
nos olhos do insecto vindo da imensidão livre até às mãos do recluso
tenho um recado para ti
uma história para rires e depois cuspires de nojo
no primeiro que te aparecer a falar de justiça
«… nem todos podem dar-se ao luxo de ter piscinas de mosaico com torneiras de ouro.
Mas todos podem absorver ideias…»
LUIS DE GÓNGORA
The breathing geese of the eyes
MÁRIO CESARINY
Cise z blednouciho ráje
ARNOŠT BUDIK
The whore of gizeh
JOHN LYLE
Scherpe verblindende stralen
LAURENS VANCREVEL
Góngora re-traducido 6 veces
JOSÉ-FRANCISCO ARANDA
Dos à l’est, la boule…
JEAN-CLARENCE LAMBERT
Braises de Jésus
(traduction tout à fait paranoiaque et vaguement rousselienne
du sonnet de góngora, via cesariny
de vasconcelos, dans le style ancien)
PIERRE DHAINAUT
Saddling the dragon
And if the tail wags the dog, it’s the same thing.
Hardluck Street is no place to come to —
the door’s open, you go in, you’re expected.
KEN SMITH
A IRMÃZINHA DO PAPA
as borbulhas na testa azul da irmãzinha do Papa — que era o Chefe da Polícia para a árvore do
rato cego — expeliram subitamente guarda-chuvas muito semelhantes na aparência à Reforma
Protestante, exceptuando o perfil que, carregado de pregos e com a voz de Niccolò Machiavelli,
se assemelhava mais no conteúdo e na forma aos calendários impressos com o sangue dos
mártires cristãos da Nova Zelândia, do Norte.
Desejo de olhos de lince, êxtase da querena, não comeces a morrer, é tarde, olé, olé, olé, olé!
As estrelas entregam as mãos à rega do pomar do casamento do piano sintético. Visto que o leito
da revelação se transformou em cama de deboche e finalmente em ocasião onírica, quantas
risadas de cidra pesada e quantos capacetes macios serão necessários à tua defesa aqui?
Tremores de terra, natas para o pequeno-almoço, e eis-nos a caminho: trata-se do regresso do
caracol, e os corvos estão seguros de ganhar, se a lua resiste à tentação de ser torcida durante a
batalha. Através dos olhos da mesa onde deitas o teu coração, a asa da lua leva-te ao cantar do
galo para o tempo sem fim dos teus sentidos, para o pirata que abre com chave gigante, presa ao
cinto, os portais escondidos do negro cativeiro. Entramos pelo bico do pássaro mas dificilmente
se atinge a sala principal. Já pouca luz se vê na cabeça do monstro, já não é a hora de receber, o
palácio desaparece, lentamente, por absorção centrípeta. O bolo de queijo continua à espera.
Do armário oxigenado sai o prazer que penetra o hermetismo da remissão culinária do cadáver-
esquisito. Que está realmente esquisito e essa a razão porque Santa Teresa costumava dizer que
gostava de camionetes e não de elefantes, pois tão imensamente educada que era não queria ir
sozinha ao cinema, sem levar as tias e tios e os pais e o bispo e os outros, tão educada que era e
sem saber música, e só um pouco mais tarde tomou a decisão de ir correr mundo e todos os
continentes — os continentes do mundo — e todos os parentes — os parentes dela — e eis
porque em 15 de Junho de 1966 Santa Teresa em pessoa continuava a sonhar um sonho singular
em que catadupas de moscas desabavam sobre os Filósofos Alemães com cornetas de música nas
mãos a cantar azul bordado no lado de dentro das camisas podres.
SÁBADO MEIA-LUA
O vento varre o tédio através das árvores do ódio, deixa para trás todos os pássaros. O hálito
morno dos lobos lambe a entrada do barco do sol e além disso que posso transportar na serrilha
dourada duma esponja, buraco espremido de crostas de luz roubada a espelhos possessos de luz
ardente? O rumor da lua, ouvem-no os cavalos-marinhos que serão lançados em tendas polares à
luz de rubis de ovas de peixe fundidas uma a uma enquanto o turbilhão da mala-posta passa
como fósforo aceso ante os olhos de um cego, como onda que se abre para libertar a libélula
tirânica crepitante no vácuo causado pela rapidez de uma seta lançada através de uma selva de
ideias eventualmente surpreendendo o olhar da justiça.
ANTÓNIO AREAL
da inteira rotação
tal sei o que não tive
sei o que te faltou
quando o pólo mudou
agulha e turbilhão
ascensão e declive
e tu vara da mão
da manhã que colhemos!
A morte é o começo. Somos perante ela como a porta fechada do palácio aberto do rei.
Estas sábias palavras de Segismundo fecharam o seminário. Os estudantes andaram em direcção
ao mar onde um grupo, numeroso, foi visto desaparecer. À noite a morte entrou no quarto de
Segismundo e bateu-lhe. Não morreste bastante, nem bastante bem!, gritava.
Dos olhos de Segismundo incrivelmente abertos saíam dois redondos inomináveis com ventres
aspiósperos que ora se repeliam ora se entrelaçavam. Quando o monte de ventres atingiu o tecto,
Segismundo, de olhos esburacados, abriu a porta do palácio fechado do rei.
Ai que prazer! gritava Segismundo correndo na praia depois da exposição de pintura. Que prazer
ter um livro para ler!…
… E não o fazer!, atalhou Cobalto II, cortando ali mesmo a carótida ao velho.
Nesse dia, a andorinha azul do palácio do rei não escreveu no céu a sombra de Segismundo. E
abriu-se um livro, como um alcarnoz, no horizonte cerrado.
XÁCARA DAS 10 MENINAS
ia e voltou
à boca do ar
com a boca a brilhar
de alegria
CHARLIE CHAPLIN — A janela do Convento de Tomar com a colagem que lhe fez António
Dacosta em 1942. Sob a janela, uma cama em osso de cavalo provida de telescópio e copo de
sangue.
BUGS BUNNY — Uma prova de corta-mato no primeiro andar do Art Institute of Chicago.
BESSIE SMITH — O quadro Mona Lisa de Leonardo da Vinci com sistema eléctrico dois-pés-
duas-pernas que o façam andar por toda a casa e mesmo subir escadas.
KRAZY KAT — Uma árvore japonesa que, dando-se-lhe um charuto, apresenta um telefone
anos 30. Na linha, um padre jugoslavo informa continuamente sobre as experiências do
Frankenstein de Utrecht.
MAE WEST — Uma almofada com a forma da cara da senhora Golda Meir.
JERRY LEWIS — A Torre da Água, de Chicago, mas um pouco mais alta e cortada em fatias
longitudinais de onze centímetros cada.
BUSTER KEATON — Um avião pilotado por uma girafa. Fins de semana: só a girafa.
O VIRGEM NEGRA
Bom.
O que eu queria era ser um benito
Desses entregues ao fogo
Atados até à nuca
Para nas chamas torrado
Gozar como uma maluca.
On ai me on por delante
On ai me on por detrás.
La noche se puzo fria
On ai me on. Que será?
— «Vicente! Vicente!»
É o mais que diz o corvo lusitano
Quando o provoca gente que passa,
Passa, não maça
Nem pretende ir morrer a Baltimore
Cum «um grave e nobre corvo dos bons tempos ancestrais»
(Dos bons tempos ancestrais!)
«Num alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais»
E a borracha do álcool e dos sais
«No veludo onde a luz tem vagas sombras desiguais»
Já sem pinga de soro para o jorro sonoro
Do «amanhã também te vais»,
Quando verdade é que em esse bar sujo daquele bairro sabujo mais próprio de marujo que de
escritor
— Salvo o patrão que mancava e ao balcão se agarrava, dali lançando, sempre manquejando, o
apelo famoso, de macho defeituoso
Que urdia pastoso quando o relógio adrede, um pêndulo de parede que mais parecia ferro de
mafamede,
Batia com afoite as 11 da noite:
«On time! That’s enough my lords, score no more! I’m
Accursed enough and from afar with such a crew into my only mine Eleonora’s Bar em
Baltimore!
E vou lançar o cão sem o açaime
If you don’t take your mate and go ashore
And ashes and coffins no more!» —
Difícil era ver qual o mais bêbedo
E com mais medo de cair ao chão
Ainda que natural que fosse o, de falsete, corvo, velho grumete,
Dada a posição que ocupava
E não ser a primeira vez que rasgava
O «ar denso como cheio de incenso» até ao tapete
Sem que ninguém ajudasse, sequer por topete,
Ao repor na cantilena
Do peta do ave preta sobre a cabeça da Atena
Também ela mais bêbeda, muito mais, do que já estava
Antes de ir para os Estados Unidos,
Nação cuja fundação ergue a Memória
Da maior bebedeira da História. —
De Lógicos e Sofistas
Fiquei todo a abanar
As vezes falta-me o ar.
E sinto coisas sinistras.
Eu anónimo e avulso
Aldeão do mundo a haver
Eu o mim de mim expulso
O mim que se vá lamber.
E do anel cabalista
E outras dobras de medo
Que a marujada ensaísta
Me anda a tirar do dedo,
E no Epithalamium fiz
Que pudessem saber
Que feliz ou infeliz
O sou como mulher
Na literatura, ou isso,
Que tudo o mais é conforme
O lado para que dorme
O rapaz de serviço.
E para homossexual
Não sou o António Botto
Nem o Raul Leal.
O Botto para mim é pouco
E o Raul é de mais.
— A-ã-ã-ã…
— O vento, lá fora…
E estes ora teatros e toda a gente ausente ainda atrás dos trapos de Gil Vicente,
O dos sainetes e pivetes de urso!!
Nosso Pai Rosenkrütz conhece e cala. Ou consente.
Mas não tira os sapatos
De um mais nobre discurso mais para fora
Do um mais um mais um igual a um
Que de olho esmo averso ao precipício
Repete o mesmo verso do do início:
Ou então:
Sedia-m’eu n’Ermida de S. Semeão,
Veio o velido ao meu balcão.
Veio, velido, ao meu sentido.
Mãe! Dou-lho ou não?
Menina e moça me levaram de casa de meus pais para longes terras… Que causa fosse então
daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.
Esqueceu a de Braga.
Mas em Dakar não haverá muita abra
Nem bastante oração
Para tanto pormenor e tanto cabrão.
U seria D. Fernando
Saxe Coburgo Caraças
De La Serna y Punta y Bando
De Ratones De Las Casas
Ou seria o anti-génio
Rebuçado de anti-cristo,
Proémio doutro proémio
Que tem nada a ver com isto
Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.
A brisa é o lago a ir
A uma ideia de mar.
Não sei se me ate a rir
Ou desate a chorar.
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.
A Nini Bebezinho
Do Ibi
Dá Ofeli
Bjinho?
Querida Bebezinho:
Ainda fazes muita troça do Nininho? (A. de C.)
Cumprimenta V. Ex.a
Álvaro de Campos
eng. naval
O Campos
Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia.
Ficavam-lhe os olhos brancos
E não falava, mordia. O Alberto
É mais por causa da fotografia
Das árvores altas nos montes perto
Quando passam rapazes
O que nem sempre sucedia.
Apanhado o sapo, logo o guardareis numa arca ou numa caixa; como está escrito: «Não tereis em
horror a matriz da Virgem». E logo o sapo começará aos saltos no interior da caixa, e isso é
excelente presságio. Vinda a manhã, levar-lhe-eis uma oferenda de ouro e, se possível, de
incenso macho e de mirra. Soltai então o sapo com muitas mostras de respeito e homenagem,
deixando-o em liberdade aparente. Pode, por exemplo, ser colocado sobre um edredon, ou numa
colcha de muitas cores, guardado por uma rede.
Disporeis um recipiente cheio de água, ireis ao sapo e direis: «Em nome do Pai † e do Filho † e
do Espírito Santo (aqui, aspergir a cabeça do sapo), eu te baptizo, criatura dos sapos, com o
nome de Jesus de Nazaré».
Neste dia, assisti-lo-eis sempre que vos seja possível e cómodo, adorando-o e prestando-lhe
verdadeiro culto — como se ele realmente fosse Jesus de Nazaré. Pedir-lhe-eis ainda vários e
distintos milagres, cuja natureza escolhereis de acordo com a vossa Verdadeira Vontade. Na
mesma forma prometereis ao sapo elevá-lo vantajosamente para ele no reino da criação; mas
entretanto esculpireis secretamente a cruz do seu suplício.
Nascida a noite, prendereis o sapo, acusando-o de blasfémia, sedição, etc., com estas palavras:
Faz o Que Queiras é Toda a Lei. Eis-te caído na minha cilada, Jesus de Nazaré. Durante toda a
minha vida me ofendeste e torturaste. Em teu nome — e em nome de todas as almas livres da
cristandade — foi torturada a minha infância; toda a delícia me foi proibida; o que tinha de meu
foi-me tirado e o que me era devido não foi pago — em teu nome. Mas eis-te nas minhas mãos; o
Deus dos escravos caído nas mãos do Senhor da Liberdade. A tua hora chegou; vou apagar-te da
superfície da Terra tão seguramente como passa o eclipse; e a Luz, a Vida, o Amor e a Liberdade
serão uma vez mais a Lei da Terra. Dá-me lugar, o teu éon passou; a Idade de Hórus sobreviveu
através da Magia do Mestre da Besta que é um Homem; e o seu número é 666. O amor é a lei, o
amor submetido à vontade.
(Pausa)
Eu, Tot Megatérion, condeno-te, Jesus de Nazaré, a ser escarnecido, coberto de escarros,
flagelado e por fim crucificado.
A sentença é executada. Depois de mofas e insultos lançados à cruz, direis: Faz o Que Queiras é
Toda a Lei. Eu, a Grande Besta, assassino-te, Jesus de Nazaré, deus de escravos, na forma desta
criatura dos sapos, que abençoo em nome do † Pai e do † Filho e do † Espírito Santo. E assumo
em mim e tomo ao meu serviço o espírito elementar deste sapo. Que esteja sempre a meu lado
como espírito de mentira. Que percorra a Terra, guarda meu da minha Obra para o homem; para
que os homens possam falar da minha piedade e da minha doçura, e de outras virtudes ainda, e
me amem, me sirvam e me valham em qualquer questão material, seja qual for. E tal será a sua
recompensa, ficar sempre a meu lado, escutar a verdade que eu digo, a mentira que abaterá os
homens. O Amor é a Lei, o Amor submetido à Vontade. Então apunhalareis o sapo no coração,
com o Estilete Mágico, e dizendo: nas minhas mãos recebo o teu espírito.
Descereis então o sapo da cruz e dividi-lo-eis em duas partes; cozinhareis e consumireis as coxas
como sacramento confirmando o pacto feito com o sapo; o resto do seu corpo será
completamente consumido pelo fogo, para que com ele se consuma o éon do deus maldito.
Assim seja.
É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.
Hacen?
Fatal.
No hacen?
Igual.
Para que
’Sforzar?
Todo es
Hurgar.
Vem, Vulva antiquíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Olho franjado de infinito.
Vem mortamente
Vem pesadamente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas,
Ao teu lado, vem
E traz as camas longínquas para o pé das ureteras próximas
Faz da montanha um bloco só do teu corpo
Funde na regra tua todas as águas que vejo
Todos os nervos com que és escura por dentro
Todas as luzes brancas como noivo e noiva
E deixa só um mu, e outro mu, e outro
Na distância imprecisa e subitamente perturbadora
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão
E que doem por sabermos que só assim as teremos,
No espelho baço do aposento não nosso,
Madre do Deus das terras infelizes
Mater Dolorosa das angústias dos tímidos
Sancta Virgo Virginum das pernas dos prisioneiros
Turris Eburnea dos olhos dos paneleiros
Sancta Dei Generectrix dos filhos das meretrizes
Vem e arranca-me
Recebi a sua interessantíssima carta postal que muito agradeço e um pouco extensamente
quero responder espalhando também a minha alma pela sua.
E bem triste tem sido nos últimos tempos a minha alma, bem triste, bem lúgubre… Chegaria
a invejar a sua febre exaltadamente extática se através dela não descobrisse uma dissolução
inquietadora que em mim explode em torrentes de pus! Na sua há o pressentimento lívido do que
me despedaça…
Mas, ao menos, em seu espírito ainda existem «galinhas de cristal azul» enquanto que o meu
enche-se d’outras, esquálidas, ressequidas a alimentarem-se de esterco! Só me preocupam
obsessões ridículas de endemoninhado. Disse-me uma vez uma espírita que, por comunicação
recebida, sabia que os piores elementais me devastavam a carne e o espírito. Não é bem assim;
quando me educava para médium numa casa fatal, que antes, sem que eu o soubesse, tinha sido
habitação de prostitutas onde portanto abundavam espíritos inferiores, estes atacaram-me
realmente mas a partir de então não foram eles os mais dominadores não tendo conseguido
desalojar por completo os fantasmas de eleição que em mim têm sempre até hoje terrivelmente
lutado com os novos invasores. Sou pois, o campo desolador duma batalha astral… Foi isso o
que me comunicaram. Uma vez, depois de cair em transe, tal como os endemoninhados
medievais, desatei a dar saltos simiescos acompanhados de uivos terríveis e cómicos. Mas bem
depressa as conjurações dos assistentes e sobretudo os meus incansáveis Protectores de Além
conseguiram acalmar-me os nervos expelindo o diabólico fantasma que tão grande dano me
estava causando. Entretanto até hoje a Grande Luta tem prosseguido sempre… E Ela extenua-
me, vai-me esgotando lentamente. Preferia mil vezes que a imaginação se me enchesse de
abismos sangrentos de trevas… Mas só ridículas emanações de elementais a percorrem
constantemente. Nos pequenos exercícios de Alta Magia que executo todas as noites e às vezes
durante o dia, sinto entrelaçarem-se nas minhas Concepções Gloriosas desoladoras obsessões de
piolhos, escarros, esterco do nariz, tudo que há de mais ignóbil na Matéria. Quando vim para
Hespanha, quer você saber a ânsia aflitiva que eu tive? De me apear numa aldeia estupidíssima
do Alentejo e ali passar o tempo que queria passar em Sevilha… Felizmente, numa reacção
violenta, contive-me, no caso contrário acabaria de me despedaçar num deserto, sem poder dali
sair por falta de recursos. E essa aldeia atraía-me exactamente porque era horrivelmente feia e
porque eu sabia que a sua fealdade e insipidez me faria sofrer muito. Eu que procurei sempre
evitar a Decadência procurando sempre o Génio da Força, do Espírito, desci ao estado d’alma
inquietador das citações de Poe…
E a guerra abominável que devasta a Europa acompanhando lugubremente a que se trava em
mim ainda mais mal me faz. O Ideal Prussiano é o mais terrível inimigo da Vertigem. A
Anarquia de Espíritos que toda a minha alma Transforma em Ânsia nada tem que ver decerto
com a rigidez metálica do Génio de Wagner. Quero a Força mas a Força Livre duma Vertigem
Astral, que nos arrebate em Vácuo! Detesto o Defenido Esquemático duma Matemática Pura!
Nesta há só Opressão, as malhas da Alma contorcem-se em agonia escrava. Também há Agonia
no Espírito mas a Agonia Livre da Ânsia, do Infinito… A Morte é Supremo Infinito de Vácuo
Espiritual é Vertigem, é Liberdade Pura!… Num Vácuo de Espírito se suspende realmente o
próprio Vácuo que a forma: Vertigem… Vertigem…!
E não é assim o esquematismo germânico. Este é um abismo mas como o das estreitas
crévasses abertas no Gelo! Tudo limites, só estreiteza, só Opressão… Por isso detesto a Força
Imperialista que desconhece o Infinito!
O Kaiser é o meu pior inimigo! Se Ele triunfa o Vertiginismo sofrerá um golpe horrível de
que muito dificilmente se erguerá. Não quero dizer com isso que a vitória dos aliados seja
imediatamente a Vitória do Meu Espírito, a bem pouco se reduziria Ele se só carecesse disso,
não, a vitória dos aliados, da democracia, do plebeísmo, não terá realmente expressão alguma
mas por isso mesmo não oporá resistência ao Triunfo do Vertiginismo. Mas o Espírito
Imperialista que inundará profundamente as Almas com a Vitória da Prússia, Esse sim, Esse tem
uma expressão horrível sendo um Castelo Infernal que o Génio Vertígico muito dificilmente
desmoronará. Que me importa que a vitória dos aliados não contenha em si beleza alguma? a
Beleza virá depois com o meu Espírito e mais ampla, mais formidável do que a Beleza
Prussiana!…
Em todas as particularidades da minha vida actual surge a oposição horrível existente entre
mim e o Kaiser. Quando os Exércitos Prussianos triunfam sou Eu que me debato então numa
agonia lúgubre, quando alguns reveses Eles sofrem a Minha Alma, Toda a Minha Vida se anima.
E, é claro, isto dá-se antes de eu conhecer pelos jornais o resultado das operações, precisamente
quando elas se desenrolam. Há uns dias ando um pouco mais calmo, mais calmo não, vivo como
que numa expectativa esperançosa e isto coincide com o que se está passando: por um lado os
russos vitoriosos mas sem triunfos decisivos, triunfos apenas, prometedores, por outro lado a
derrota dos povos balcânicos também pouco significativa ainda para o resultado final da Grande
Guerra. A Alemanha deve sentir-se esgotada, isto é intuitivo, não é preciso que os aliados o di-
gam, e esse esgotamento coloca-nos também numa expectativa feliz. E assim o estado actual da
Guerra é o estado da minha alma senão ainda da minha vida.
E digo que não é o da minha vida pois cheguei até, do mesmo modo que os povos balcânicos,
ao auge da detrésse material; mais uns dias assim e abrem-se-me as portas de ferro da Fome,
contudo, nem sei porquê, isto nada me inquieta. E fui sempre assim; quando em Biarritz e em
Paris tinha dinheiro o futuro apavorava-me terrivelmente, quando me encontrava perdido o
espírito enchia-se-me de confiança. E com razão. Assim, tinha decidido sair de Biarritz a pé para
Paris (devia quase um mês no Hotel) quando, na própria véspera em que devia assim proceder,
recebo um telegrama de Lisboa anunciando-me a realização dum negócio com que eu já não
contava nada e donde me viriam uns contos de réis. No dia seguinte parti opulentamente para
Paris…
Mas pondo de parte a minha situação d’alma de momento e atendendo apenas à sua situação
geral devo reconhecer que é detestável e porque profundamente dissolvente. Para outro que não
eu isto não teria talvez uma grande importância mas para mim que procurei sempre ser um
voluntarista, que fui sempre um Espírito Forte, esse estado d’alma apavora. Uma vez, em
Coimbra, não calcula a revolta angustiosa de que me enchi contra mim mesmo só por uma
insignificante quebra de vontade, nem isso mesmo, uma pequena imprevidência. Havia um ano
que eu era sifilítico; todas as recomendações do médico eu executava com o maior rigor e
impondo-me eles o tratamento estúpido das fricções de pomada mercurial, durante três anos
consecutivos eu, em espaços de dez dias intervalados por outros dez de descanso, fazia
heroicamente as abomináveis fricções que duravam sempre vinte minutos! Um verdadeiro
horror! Mas era necessário e submetia-me portanto. Seria longo e aborrecidíssimo eu dar provas
totais da minha vontade e da minha coragem — a que eu tive por exemplo, em duas operações
horríveis, feitas a sangue-frio, sem ser anestesiado — e por isso escolhi uma apenas, ao acaso.
Ora, uma das recomendações dos médicos era sem dúvida a de não apanhar humidade que muito
me poderia prejudicar e procurei sempre cumprir essa exigência clínica. Mas um dia de inverno,
um ano depois de adquirir a sífilis decidi-me fazer com outros rapazes uma excursão à Serra da
Lousã. Escusado é dizer que me molhei bastante e não calcula depois, em que estado a minha
alma se pôs. De noite, tive um pesadelo horrível, montanhas de gelo desabavam oceanicamente
sobre mim, eu queria fugir, evitar a ferocidade infernal da torrente mas perdido de forças, Eu, o
Dominador, era enfim esmagado pela Natureza Bruta! No meu livro, Prince de La Mort,
Confessions d’Ahlali eu descreverei a Revolta e a Aflição de que me enchi nesse momento
perante o que eu julgava ser em mim o desmoronamento da Força, da Vontade… Nunca me pude
perdoar uma insignificante prova de fraqueza. Para os outros fui sempre indulgente, para Mim
jamais!
Pode pois imaginar facilmente como devo sofrer com o meu actual estado de dissolução
mental em que me esfarrapo ao capricho do Acaso. Às vezes, quando atinjo o auge da depressão
ainda consigo reagir violentamente, e a isso devo o trabalho mais ou menos constante que tenho
conseguido sempre executar a despeito de tudo, mas na maior parte dos casos embriago-me
ignobilmente de Dissolução, de Acaso… Não bebendo quase vinho pareço realmente um
alcoólico: quando me irrito, a minha irritabilidade é sempre dissolvente, já não é um furacão, é
um despedaçamento atordoador através de que todos os meus nervos estonteados parecem estalar
pela acção esfrangalhadora duma vivíssima corrente eléctrica; e quando me espalho pelas ruas
ando como os cães ziguezagueando para afocinhar em todas as insignificâncias que se me
deparam nas montras e no caminho. Eu mal as vejo e contudo sinto por elas uma atracção
irresistível. Sim, é que, à mercê do Exterior, por ele sou decomposto, esfrangalhado, em lugar de
o arrebatar todo na Minha Alma Gloriosa…
Está-se repetindo agora o que me sucedeu em Paris. Sofrendo horrivelmente com a
necessidade de me alimentar na Taberna, como um Idiota agarrava-me, em Paris, a todos os
doces dourados que encontrava a cada passo nas confeitarias que electricamente me atraíam, me
subjugavam. Muitas vezes não podia almoçar nem jantar por ter gasto tudo em insignificâncias
que não me alimentavam mas que eu não podia evitar. Não era o dinheiro gasto estupidamente
que pavorosamente me angustiava mas a significação horrível dos meus actos idiotas. A que
dissolução eu tinha chegado…
Pois agora, se a atracção dos doces dourados não é tão imperiosa, se eu a poderia dominar e
se às vezes consigo já dominá-la, contudo a obsessão dum determinado bolo não me deixa
enquanto não me decido, então voluntariamente, a comê-lo. Já não é aflitivamente que me sinto
atraído, é por espírito de reacção, de revolta contra as formidáveis peias económicas que me
envolvem. É assim que, correndo, às vezes, uma ou numa noite todas as confeitarias de Sevilha,
encho-me de doces, mais mesmo que os meus sentidos pediriam. Resultam disso princípios de
disenteria que mais ainda me deprimem e ignobilizam… Não me iludo, esses acessos de revolta
são apenas um sofisma para encobrir uma fraqueza real. E por isso contra eles preciso também
reagir. Além de que como se explica a não ser por um estado d’alma profundamente dissolvente
a obsessão deste ou daquele doce determinado que vejo numa determinada confeitaria?…
Também ultimamente em Lisboa sofri uma atracção eléctrica semelhante à de Paris seguida
de outra já então cheia de revolta, de reacção contra a detrésse, mas num campo mais
interessante posto que ainda mais ignóbil, a atracção estupenda dos urinóis públicos! Era naquela
atmosfera animalizadora de urina que eu precisava realizar as minhas perversões. E então corria
espavorido pelas Avenidas e Aterro em busca de porras que me explodiam nas mãos para eu
depois as lamber numa nervosidade estonteante de alcoólico…
É pavoroso!…
E tudo isto é causado por uma detrésse material que progressivamente galopa e pela Ambição
Formidável de me tornar Rei! Estou lendo agora o Alcorão; nele se descrevem os brocados e
sedas chamejantes de que no Paraíso Árabe os Bem-aventurados se envolvem arrastando-se em
jardins infinitos de Éter e Luz! Pode você imaginar como esses quadros indignam e me afligem
profundamente porque não são a realização da minha vida… Em lugar de licores luminosos que
em torrentes se espalham pelos jardins edénicos tenho como bebida imensurável, fatal, o Pão da
Gehena!
Não quero dizer com isto que não me cubra ainda de sedas e de brocados mas estes só são um
sarcasmo lançado perversamente à minha Existência Real! E esse sarcasmo que eu próprio
lubricamente desperto, faz-me dolorosamente gozar. É assim que todas as noites, numa volúpia
angustiosa, por sobre a minha cama miserável estendo o meu robe-de-chambre de cetim azul. E
na mesma ansiedade voluptuosa olho-me de manhã quando coberto de malhas duma seda
caríssima. Encho de pasmo e quase Ternura os donos das casas de penhores e só um, uma vez,
franziu o sobrolho quando ao lado de ceroulas e camisolas de seda lhe apresentei uma grosseira
chandail de apache!
E esse Destino que todas as minhas cousas vão tomando, prova bem como é ilusória a minha
opulência restante. É um desmoronamento… Já nem posso cuidar as minhas unhas pois o meu
belo onglier de marfim jaz depositado numa dessas casas de penhores!… Além disso, a seda
finíssima que vou ainda trajando, perdeu já o brilho duma vida luminosa para adquirir um outro,
lívido e morto! O Diamante tornou-se Vidro, o Sol degenerou em Luar… Os meus lenços, dum
brilho acetinado e transparente, que eu, em tempos, comprei no Charvel, surgem hoje
esfarrapados e é assim que os posso usar ainda…! Que decadência, que mil horrores!!… Em
breve, andrajosamente me cobrirei de farrapos sangrentos de seda e ouro…
E não calcula a revolta odiosa que me estrangula e congestiona quando diante dos meus olhos
surgem em altivez principesca os mais magníficos autos. Em frente da montra duma agência de
viagens todos os dias me extasio e julgo-me então soberanamente transportado pelo mundo fora
em grandes expressos europeus e nos mais luxuosos, nos mais opulentos transatlânticos
modernos. Mas vendo, depois, que só em sonhos efémeros se desenrola essa vida magnífica, os
dentes rangem-se-me, a pele contrai-se-me e sinto ânsias de dinamitar o mundo!!… Você, às
vezes, sonha-se Príncipe mas sentindo o contraste dos seus sonhos e da existência real mal sofre
e jamais se enche de Rancor e de Revolta… Não é que o Sonho não seja a Vida Inteira mas é que
a maior parte dos sonhos que sonhamos não tem consistência, força, perdem-se efemeramente
porque integralmente os não podemos Viver. E a estes se opõem então outros, a Vida, que sendo
então bem vividos, são-no como desenrolamento desolador dum espírito apodrecido… E são
estes, é a vida que eu vivo que eu quero expulsar da minha alma, não quero mais sonhar o sonho
da Fome, da Dissolução e intensificando profundamente os meus devaneios efémeros quero dar-
lhes enfim a Força, a Viabilidade de Vida! Não quero que a Beleza perpasse fugitivamente por
mim em débil Onanismo, a Beleza quero sentir integralmente, em absoluto a Quero Viver!…
É essa Ânsia que enche Toda a minha Vida Interior, a Única Vida…, essa ambição
estonteante de arrebatar divinamente o Universo, de me sentir Tudo, de me Sentir Deus, essa
Ânsia, essa Ambição você jamais sofreu e mal poderá pois avaliar a grandeza da Minha Dor!…
Porque Eu não quero viver-Me em Ouro, em Luz, só pelo Ouro, só pela Luz, Esta é o símbolo do
Poder, o Símbolo apenas, e então se a quero é que através d’Ela desejo encontrar a Essência
Puríssima do Infinito para que eu possa Tornar enfim a Minha Alma… Não desejo viver-me só
banalmente como mundano, se pelo mundo Me quero arrastar como Dominador e para que o
Mundo se Engrandeça em Mim! Vivendo-Me em Salões de Majestade de modo algum desejo
viver-Me Exterior como que comunicando-Me com os outros que não estejam em Mim; mais do
que um Rei Oriental isolado materialmente de todos como Ídolo jamais profanado pelo Exterior
para que só o espírito de todos arrebate em Si através da Adoração, mais ainda Eu quero ser, se
os homens se prosternam perante os Ídolos que só as suas almas podem atingir e jamais a Vista e
a Palavra que a Eles oporiam um Exterior Real, Absoluto, é que Este, posto que vagamente,
ainda existe, ainda se impõe… Os homens sentem-se dissolver no Ídolo mas não ainda a ponto
de, sentindo-se absolutamente perdidos na sua individualidade, brutalmente reagirem ou,
espavoridos, aterrados, fugirem d’Ele como do Mal, da Fatalidade! Da hipnose dissolvente ainda
não têm consciência plena e porque ela ainda não se lhes impôs absolutamente… Eu não quero
pois atravessar o Mundo lentamente absorvido por Mim, como simples Ídolo inatingível, quero
mais, quero em fulminações sangrentas de morte com violência arrebatar em Mim as almas,
numa Angústia e num Terror de Vácuo. Só então, julgado […]1 atordoamento Universal, sentirei
bem a dissolução do Mundo, a morte do Universo em mim, em Mim, Deus e Satan!…
E elevando o Infinito à Morte Me elevarei enfim, tudo que me surge Concrét, da Minha Alma
Transcendida se evolará, num grande Vácuo de Espírito Eu Me Transfigurarei, serei mais do que
Absoluto, realidade concreta, definida, determinada, para em Abstracção Pura, Abstracção em Si,
viver a essência verdadeira do Infinito que não tendo determinação possível não só nos seus
limites como ainda na sua natureza essencial, e só Indefenido, só Morte, só Vertigem…! O
precursor do Divino Paracleto, a Vertigem, que no nosso século se espera, sou Eu, uma grande
vitória alcançarei sobre a Águia Prussiana, Génio do Anticristo, Génio do Absoluto, do Limite
que assim se dissipará e erguendo enfim o Mundo ao Deus que ele lhe envia, o Próprio Deus
enfim, Me Tornarei!!…
Da dissipação da minha vida actual preciso sair e não é em Exterior que a Vida se me
Transformará, a Vontade restabelecida, arrastando-me de novo, é que interiormente transfigurará
a Vida num Sonho Alucinatório de Força Extática! Primeiro arranjarei o que já sinto como Alma
e depois, ocultamente e espontaneamente, o que ainda sinto como Exterior será transfigurado em
Mim… De abismo em abismo espiritual cada vez me entranharei mais em Mim que Me
erguendo à Pura Harmonia, à Condensação Pura de Força, à Condensação em Si, Força em Si,
todo finalmente Me Transcenderei… E assim, a pouco e pouco a Minha Grande Ambição se
realizará!
Dizia-me o Santa Rita com quem tive de cortar relações para evitar impertinências e
grosserias, que Eu, sempre apático, sempre sonâmbulo, não vivia, era um Cadáver… Ele é que
sabe lá o que é Viver e o que é Ambição!… Apenas pretende ser cuidadosamente amimado como
homem enquanto que Eu não Quero adulações dissolventes, não Quero ser Homem porque
Aspiro antes, erguer-me a Deus…! Toda a minha apatia perante as ofensas materiais, a ausência
de paixão em Mim só provém do Meu excessivo Orgulho, da Minha Grandeza Inco-
mensurável!…
Desculpe-me, meu querido amigo esta Enormidade Imperdoável e que ela apenas sirva para
lhe inspirar um novo livro de novelas. Que a Minha Vida possui milhares de trechos
inspiradores… Totalmente a escreverei numa Obra em mil volumes.
Abraça-o o seu muito amigo e admirador
Raul Leal
1 Palavra ilegível.
Dezembro de 1916
É numa grande inquietação, num desassossego enorme que eu lhe escrevo. Como
naturalmente já devia ter previsto pelo meu horóscopo a minha vida tem pesado muitíssimo.
Sabe do meu projecto de me ir alistar como voluntário no exército francês; depois de grandes
dificuldades que me aborreceram muito acabei por desistir. E foi esse um triunfo sombrio que
alcancei sobre a minha alma! A guerra, nas circunstâncias em que me encontro seria quase uma
libertação contudo através de muitas lutas íntimas convenci-me a pouco e pouco que o meu
dever era antes sacrificar-me absolutamente ao estudo, fossem quais fossem as provações por
que eu teria de passar. A perspectiva do futuro era cada vez mais pavorosa mas deixá-lo, eu tinha
que resistir. Outro procedimento seria de um egoísmo acanhado, a tal libertação que satisfaria
em parte os meus interesses materiais prejudicaria muito a minha vida de Espírito. E não calcula
como foi gigantesca a criação estonteante do meu Espírito durante os meses de Agosto e
Setembro contra a depressão enorme em que a miséria galopante me queria prostrar. Ele cada
vez mais resplandeceu por sobre as Trevas apodrecidas da minha existência material! E à medida
que Ele ilumina mais e mais a alma a minha vida se enterra cada vez mais num charco duma
podridão ignominiosa…
O dinheiro que recebo de Lisboa vem consideravelmente diminuído e essa gente mostra
tendências claras de me abandonar por completo. As minhas cartas de revolta e aflição para nada
têm servido. São uns cães…
Em Setembro para fugir ao despedaçamento Angustioso em que me lançava um meio
profundamente depressivo deixei Madrid mas evitei a Depressão para cair num abismo de
Opressão cem vezes mais tenebroso. Não pode imaginar a sublimidade lúgubre de Toledo. É
uma fortaleza infernal de Morte. Parece que milhões de espectros nos subjugam e nos
comprimem astralmente sob uma hipnose sombria. Aqui tornamo-nos duendes abismicamente
petrificantes. O Génio requintadamente lúgubre da Inquisição envolve-nos ainda num manto
negro de nuvens sinistras tal como os panos que cobrem os caixões… No dia de defuntos fui ao
Cemitério. Saí apavorado porque tudo em Toledo apavora, petrifica! Estava um dia de sol mas
Toledo possui o poder mágico de tornar o Sol em Trevas…
Foi pois num abismo de Vácuo que me precipitei e todos os sintomas horríveis duma
tragédia formidável eu tenho sentido já. Logo que cheguei sofri três dias seguidos de fome
absoluta precedidos de seis dum jejum rigorosíssimo. Não dava já um passo que não
cambaleasse estonteado e resolvi pedir então à dona da pensão em que estou que me desse de
comer até me vir dinheiro. Como ela é boa mulher acedeu ao meu pedido. Eu tinha alugado
apenas um quarto com tenção de comer nas Tabernas mas visto não me chegar o dinheiro que eu
esperava, fui forçado a comer na pensão. Quarto e cozinha custam-me três pesetas diárias mais
do que eu tencionava gastar, d’outra forma porém, não teria que comer. Contudo o dinheiro que
vem agora de Lisboa não chega para essa despesa e o resultado é eu dever sempre imenso. Agora
por exemplo a minha dívida sobe a mais de um mês. Como poderei aguentar isso? Em breve a
mulher corre comigo e terei de sofrer além da fome todos os horrores do frio e da neve que tem
já sido abundante. Porque eu não tenho agasalho algum, a camisola é de seda, é pois finíssima, o
fato não é muito forte e os meus sobretudos há muito que os perdi! Ando todo esfarrapado a
ponto de a lavadeira dizer que não pode coser mais as minhas camisas já transformadas em
trapos apodrecidos (…) e como sou forçado a mudar de roupa só de oito em oito dias visto
possuir apenas duas peças de cada uma, tiro-a todos os domingos num estado miserável de
porcaria tanto mais que tendo constantemente no corpo furúnculos e feridas sifilíticas estas
enchem de pus e de sangue tudo que está em contacto com elas. O Espírito cada vez brilha mais
mas através duma crescente decomposição de matéria e de vida. É porque as quer destruir por
completo? É porque quer dominar por si só como Astro resplandecente de Além?… Talvez mas
então… é a Morte!
………………………………………………………
Depois, por muito grandes que tenham sido os meus sofrimentos ainda não correspondem à
grandeza Lúgubre de Toledo. É uma Tragédia Formidável que eu tenho de viver ainda. Isto é
lógico, é terrivelmente lógico! Para este inverno pressinto coisas espantosas. Será a Sífilis que
acabará de vez com a Carne? Tenho sentido já sintomas sombriamente estonteantes de Loucura
que o Poder do meu Espírito tem conseguido dominar; em Loucura agonizarei? Ou perdido no
Gelo e na Fome, suportarei um delírio cem vezes mais horrível?… Seja como for só vejo Trevas
e Trevas de Vácuo…
Promete-me o Fernando Pessoa um Triunfo Glorioso para daqui a nove anos. Sim, mas isso é
se eu viver. O meu horóscopo não indicará agora uma época possível de crise que poderá ser
mortal? Podem-se reunir agora os mais pavorosos aspectos astrológicos que só no caso de não
indicarem morte, o que talvez não seja fácil de averiguar, possam então ser seguidos de outros
que pressagiem Luz, que pressagiem Glória! E que estou atravessando um grande perigo há dois
factos que o provam bem. O Fernando Pessoa só quis falar-me de Julho e foi realmente a partir
de Agosto que a minha vida se afundou muitíssimo. Além disso, aconselhando-me com toda a
alma a não partir para a guerra você disse-me que eu não devia de modo algum «tentar o
Destino». Ora se o meu horóscopo não marcasse um aspecto Terrível havia necessidade de você
falar-me assim, procurando ansiosamente evitar-me um perigo excessivamente iminente?… Seja
como for, por tudo lhe peço, meu querido Fernando Pessoa, que me tire dessa incerteza. Quer me
diga coisas horríveis quer acalme os meus Tenebrosos pressentimentos, diga-me com toda a
sinceridade, sem evasivas algumas, o que posso esperar, essa incerteza em que estou é que é para
mim apavorante. E olhe que espero tudo cheio de audácia, quase com volúpia. Não quero despe-
daçar-me em Vácuo, quero tornar-me o Vácuo, mas como pressinto que à Prova Máxima só
agora o meu Espírito se irá submeter e como apesar de tudo confio ainda na Vitória é com
volúpia que quase a desejo para que a Minha Grandeza se imponha em Infinito!… Muitas vezes
senti, em tempos, terrores convulsionantes de Astral, tudo era espectros em volta para me
oprimirem mas tanto tanto me tocavam a Alma que enfim era Ela que os absorvia num gesto
violento de Morte! A atracção hipnótica crescia tanto, tanto que o Vácuo-Fantasma e eu
tornávamo-nos um só Eu! E então não era mais despedaçado pelas trevas porque tornava-me as
próprias Trevas. Elas tanto me queriam esmagar que, entranhando-se em mim, me transmitiam
todo o seu Génio divino, todo o seu Poder Incomensurável em que todo Me Transfigurava.
Trocavam-me tão de perto para me despedaçarem que se tornavam Eu. E assim, por momentos,
de vítima de Deus eu tornava-me Deus! Era a sua acção excessiva que ele Divinizava. Não será
esse o Presságio Glorioso do que hoje se passará? De vítima sangrenta da Morte não me tornarei
a própria Morte dominando a Vida?… Sim, o embruxado se tornará Mago! Nisso confio e
portanto não temo a Prova Máxima que mais Engrandecerá o Meu Espírito, Infinitizando-o…
Adeus, meu querido Fernando Pessoa, abraça-o
seu muito amigo e constante admirador
Raul Leal
2. Plaza de S. Gines
Toledo
Meu Querido João Gaspar Simões
Não teve deveras muita sorte, o Aleister Crowley, no meio circular (intelectual) português. O
meu querido amigo, como forma de esclarecimento para leitor incauto, avisa que se trata de um
«charlatão-mago inglês», figura que não existe nem na teoria nem na prática. Se à sua probidade
intelectual — à conformação dela — repugna o Ocultismo, seria em todo o caso mais ponderado
chamar-lhe charlatão e mago, sem hífen, já que o rosto da luz deve formá-lo a sombra e não
existe água sem terra por onde corra. Responde por isso a quase verdade de um corpo humano
esfolado vivo, e a quase mentira do corpo vivo não esfolado, como na pintura de O Julgamento
de Cambyse, do Hospital de S. João de Bruges. Viu-a? Melhor não ver. Eu daqui, vejo-a, com
horrível nitidez. E é logo na carta onde tento «apresentar-lhe» o Crowley, em termos que julguei
audíveis para si e para mim possíveis, que o meu amigo lança aquela Nota de pé de página!
Concordará comigo, ou não, que ela é um apelo à consciência burguesa (ia dizer: idiota) do leitor
assim advertido? Eu, a si, dizia-lhe, apenas: «O Mestre Therion não é heterónimo meu; é
simplesmente o «nome supremo» do poeta, mago, astrólogo e «mistério» inglês que em vulgar se
chama (ou chamava) Aleister Crowley, que também se designava por «A Besta 666». O emprego
reiterado do pretérito leva-me a crer que, à data, eu continuava motivado pelo episódio da morte
do «poeta, mago e astrólogo» (insisto, perdoa-me?) na Boca do Inferno, em Cascais, episódio
inteiramente montado por ele e coadjuvado por mim e pelo Augusto Ferreira Gomes, que
tampouco é, ou era, um mero redactor de jornais, como o supõe o herdeiro dos papéis de
Crowley, John Symonds.
Na ignorância sensitiva que vi instalar-se na inteligência portuguesa julgo que o Casais
(Adolfo Casais Monteiro), fez melhor, mais limpo (sem ironia o digo): errou por conta própria e
não afligiu ninguém, quando, como aviso de recepção da minha, e única, tradução portuguesa do
«Himno a Pan» do Crowley, escreveu: «Dado por Fernando Pessoa como tradução de um
original que ele atribui a um autor inexistente.»
Elevar-me a um Chatterton da era do Futurismo é obra que eu já reservara para um dos meus
cúmulos de insinceridade mais Campos, se se lembra daquele meu «Diário» de pouco página
(Maio-Junho 1906), onde apontei: «Nada de importante. Li Chatterton», e, com o mesmo passo,
eliminar da existência mundi um poeta, mago e astrólogo, e mistério inglês, com mais de uma
centena de obras publicadas — as Confessions of Aleister Crowley, que espero ainda estejam nas
minhas estantes, são a septuagésima nona publicação dele, e o Magick, que ele pessoalmente me
enviou, a nonagésima sexta. Não faz alguma pena a extraordinária qualidade de investigação
exacta da Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que eu visivelmente não li, ou o Teixeira Rêgo da
Nova Teoria do Sacrifício, e mesmo do O Encoberto e de Os Cavaleiros do Amor, do Sampaio
Bruno?
Mas vejo que divago, derivo, saio do essencial para o supérfluo, e do que quero realmente
dizer-lhe ainda não veio palavra. Sem orgulho, ou vaidade, que é disposição de ânimo ainda mais
ridícula, creio que pouca gente teve por quinhão uma capacidade de discurso mental, equiparável
ao meu. Não me refiro a verdades, que é coisa que todos têm (como se tem um sexo, não?) mas
ao exercício para o centro delas, que exactamente não existe, para o tiro ao alvo sem alvo, que é
já coisa de poucos. Pois esse rigor na exposição e no método, que eu alicerçava na regra de três
simples, está-me a sair do bolso, onde o vejo apetecer o polígono, a espiral, a hipérbole…
Fez-me mal à cabeça aquela ida dos Prazeres para os Jerónimos. Com o abrir da urna caiu-
me, desfeito em pó, muito cabelo, e o meu fato, até aí incólume, entrou em corrupção acelerada.
A névoa que cultivei à minha volta, nas rodas de amigos — a tal tão invocada afabilidade pra-
zenteira minha — procura-me agora para seu interior. Há muito que não durmo e falta-me a
máquina de escrever, o tablado onde fazia evoluir os meus actores ante os quais eu só era uma
espécie de encarregado do órgão de luzes que manejava a velocidades incríveis, com o
virtuosismo do pianista, a absoluta insciência da nota seguinte a ferir e o total imprescindível
olvido das notas já dedilhadas. O relâmpago contínuo que não deixava lugar ao trovão.
Há que rever a minha teoria da libertação da mente pela paragem do corpo e atravessar de
vez toda a zona de sombra do Monte Abiegno; escalar-lhe a saída para a luz, que não é só do
Christian Rosenkreutz.
Pois o que eu quero dizer-lhe e espero saia agora sem mais arredores, é que o principal e
talvez único responsável do desconhecimento entre nós da vida e obra do Aleister Crowley, sou
eu, o Fernando Pessoa. Em parte, sim, porque sabendo eu bastante mais que o bastante para não
levar os outros, sobretudo se amigos, a cair em ligeirezas como a sua, ou em dislates como o do
Casais, tampouco estava eu na posse inteira do que com o Crowley se passava ou havia passado
já. Que ele era um mago, ou todo um extraordinário esforço para o ser sobejavam, para que o
soubesse eu, os livros que dele tenho. Que ele era um poeta de espécie até então desconhecida,
soube-o não só do «Himno a Pan», prova e marca de talento geralmente reconhecida mas mui
provavelmente só passível de entendimento por quem na posse do Princípio que o rege e do fim
a que se destina. Soube-o de poemas como o «The Sevenfold Sacrament», grito de um desespero
e de um horror tão intenso pela condição humana que não vejo nada que se lhe compare.
Para ascender a Mago, Crowley criou a sua própria Ordem, a Ordem da Estrela de Prata, mal
pôde obter de McGreggor Matters, sucessivamente, os graus de Neófito, Zelador, Teórico e
Prático, que o levam a ser confirmado no grau de Adepto Menor de uma Ordem Segunda,
adstrita à Golden Dawn, mas a única que dava acesso ao Poder e à Prática da Magia.
Para ascender a Poeta, Crowley publica, como primícias, Aceldama e White Stains. O título
da primeira significa campo de sangue, lugar de carnificina, e o texto, entre outras abomináveis
coisas, dá página à prática da coprofagia. Quanto às White Stains, foram consideradas por Peter
Fhyer, «autoridade britânica em matéria de erotismo», «a obra mais obscena jamais publicada em
língua inglesa». No entanto, Crowley, nas Confissões afirma que elas «são a prova da minha
inocência, mais além do humano». Impressas em Amsterdam, foram destruídas na quase
totalidade pelas autoridades aduaneiras inglesas.
E em parte, sim, porque o mais que bastante que eu sabia não era facilmente comunicável,
fosse a si, João Gaspar Simões, fosse ao Casais Monteiro. Provam-no as minhas reticências
quanto à revelação da génese do meu poema «O Último Sortilégio» — reticências que hoje
considero fúteis, já que tal génese pode ser soletrada em qualquer sofrível compêndio da espécie
— e mais o provam as disposições contraditórias em que o Gaspar Simões me viu cair quanto à
publicação ou não do «Himno a Pan» — primeiro, «só para você ler» («e o não mostrar a muita
gente»), depois, para publicar mas só sob caução de autorização do autor — que aliás eu não
sabia onde estava — e, enfim, votos e ânsia de vê-lo impresso, suponho que mesmo antes de
recebida carta do Mago perguntando-me pela publicação.
Mas culpo-me, isso sim, de ter fechado, para sempre, qualquer referência minha, fosse à obra,
fosse à pessoa do Crowley, com aquele algo degradante a fazer irónico: «O Crowley, que depois
de se suicidar passou a residir na Alemanha…» Como me culpo, sim, de, após ter-lhe negado tão
peremptoriamente o acesso à génese de «O Último Sortilégio» lhe ter posto nas mãos o «Himno
a Pan», produto bem mais temível da cabeça do Mago, com o qual lhe fazia, a si, não ver «o que
é um poema realmente mágico», palavras, estas, também bastante côncavas, posto que, se
poema, eliminava o princípio mágico e se «realmente mágico» nunca seria apenas um poema.
Mas agora que, por assim dizer, já estamos ambos… e nada pode alterar o que foi bem ou
mal na evasiva com que mais de uma vez correspondi à estima sem limites e à atenção
incansável com que o Gaspar Simões sempre quis abeirar-se de mim, lutando depois (como
ninguém mais, que eu veja) por salvar do esquecimento, se não da destruição, a quase totalidade
da minha obra, quero, por todas as vezes em que o não fiz, ou fiz só distraidamente, dar-lhe
prova, a mais alta, da minha gratidão, que eu queria fosse também o meu extirpar-me do pecado
original em que incorri com o Crowley — o silêncio, a mentira por omissão, que acabou por
atingi-lo a si. O que o Casais Monteiro disse, ou disse que eu disse, é irrelevante. Fumisterie
minha em tarde de calor, café a mais ou a menos à mesa do «Montanha», deixemo-la a fumegar.
O Casais era — é — um poeta a quem só o real apetece, sobrando-lhe pouco para o imaginário.
Assim, pelo «Himno a Pan»:
O «Himno a Pan» foi escrito por Aleister Crowley em 1913, em Moscovo, e pela primeira
vez publicado em Nova Iorque, quatro anos depois, em folha única de papel dobrado em quatro e
impresso dos dois lados. Que não vi. Possível é que já nessa altura o Mago tivesse cruzado
Lisboa, pois é no paquete norte-americano «Lusitânia» que ruma aos Estados Unidos no intento
de fazer construir uma arca que sobrevivesse ao Eon de que ele se dizia o Anunciador, o Eon de
Horus-Thoth. Nas suas próprias palavras, uma Arca «que pudesse preservar o Phalus Sagrado de
forma a que, ainda que destruída a Tradição, e com ela as mentes que hoje são seu garante, seja
dado aos vindouros recobrar a Palavra Perdida».
Como direi melhor agora, o «Himno» não é, em absoluto, um poema, no âmbito daquilo que
os poetas recebem e prosseguem, por tradição sua, literária, mas sim um texto litúrgico, servindo
uma tradição muito outra que pode ser buscada nos primeiros livros Proféticos — o Crowley
tinha como um dos seus guias o Livro, ou os Livros, de Enoch — mas também na Índia
multimilenar, no suposto Zoroastro e no suposto Hermes. (Não estou a dizer-lhe que o «Himno a
Pã» contenha, em si-mesmo, tanta coisa — a que aliás faltariam, então, muitas outras, — mas
sim que é resultante delas.)
O Thelema em que Crowley se individualiza e de que faz regra principal, é o já hoje
conhecido em toda a parte de que Portugal não faz parte: «Faz o que queiras será toda a Lei. O
Amor, segundo A Vontade». Com o que, destrói a fronteira existente, pelo menos na
modernidade, entre Magia Branca e Magia Negra, entre o Deus-Princípio de Luz Imaculada, que
há que invocar e adorar, e o Deus-Princípio Negro, o Senhor das Trevas, que é preciso abater e
denegar. Na verdade, invoca o Caos primitivo, pré-existente à Criação, servindo-se dos Nomes-
Potestades simbólicos, deuses, anjos, demónios, que a Criação suscitou. É neste sentido que pode
afirmar (como aliás ainda hoje o Sufismo) que Deus não existe ou existe apenas no que dele resta
no mais profundo interior da consciência, ou subconsciência, do homem, em companhia do que
Ele-Mesmo, Ele-Os--Deuses, criou. De onde que: «Todo o Homem e toda a Mulher é uma
Estrela, desde que possa e saiba encontrar a sua mais sua Entidade».
Negando e execrando os vinte séculos de Cristianismo, é com a invocação do Nome-Deus-
Pan que Crowley quase sempre inicia os seus ritos, onde o «Himno», a sua declamação pelo
Mago, acompanhado pelos oficiantes paramentados segundo o rito escolhido e projectados por
ingestão de láudano, servia sobretudo para a auto-dissolução da consciência e conseguinte
abandono de toda moral, uso e costume impostos, bem como dos instintos de conservação ou de
auto-defesa da espécie. A recitação era marcada, como nas velhas Sagas, pela percussão de
tambores e outros instrumentos primitivos.
Se reparar bem, na primeira parte do «Himno» invoca-se o deus ausente. Na segunda, é já o
próprio Pan, presente, que fala. «Eu sou Pan!», proclama o Mago. Segue-se — e isto, sim, seria
boa provisão para o leitor incauto, arrebatado pela beleza do «poema» — a prática orgiástica
sagrada, a cópula por detrás, como o centauro a praticava, sendo indiferente a natureza,
masculina ou feminina, do vaso receptor. Porque só a concentração máxima de energia de que o
ser humano é capaz —: o momento mesmo da ejecção do esperma — pode aproximar «a carne
dos teus ossos, a flor da tua vara»; a energia absoluta, sobrenatural: Pan.
Quanto ao Chefe Secreto que devia iluminar os caminhos do Mago e conceder-lhe o mais
alto Poder, sabemos que Crowley o procurou com afinco e não estava seguro de tê-lo
encontrado. Em terreno tão íntimo — segredo maior da Ordem Rosacruciana — debito-lhe as
palavras de MacGregor Mathers:
«Quanto aos chefes Secretos da Ordem a que faço alusão e da qual recebi a Sabedoria do
Segundo Grau, nada posso dizer a seu respeito. Não conheço, sequer, os seus nomes Terrestres.
Conheço-os somente por certos hierónimos secretos, e escassas vezes os vi na sua espécie física;
nessas raras ocasiões concediam-me encontro astral comigo, em carne e osso, e em hora e lugar
previamente fixados. Quanto a mim, creio que sejam humanos e que vivem sobre a Terra; e que
possuem poderes terríveis e sobrenaturais.
Quando um desses encontros tinha lugar em sítios muito frequentados, nada havia na sua
aparência pessoal, ou nas suas vestes, que os distinguisse da gente comum, a não ser um aspecto
e um halo de saúde e de vitalidade transcendental, fosse de jovem ou de idoso o semblante; essa,
a sua característica invariável; por outras palavras: tinham a aparência física que a posse do
Elixir da Vida, segundo tradicionalmente cremos, pode conceder.
Quando o encontro era em lugar isolado de todo o Mundo Exterior, vinham revestidos das
insígnias e dos trajos simbólicos.
Mas o meu contacto pessoal com eles, nessas raras ocasiões, provou-me como era difícil para
um Mortal, por muito avançado que esteja no Ocultismo, suportar a presença física de um
Adepto. Não quero dizer que nesses encontros materiais tenha sentido o intenso esgotamento
físico que sucede a uma forte carga magnética: pelo contrário, tinha a sensação de estar em
contacto com uma força tão terrível que só a posso comparar ao efeito prolongado do que
momentaneamente sente alguém quando, perto de si, cai um raio, durante uma violenta
tempestade; a essa impressão juntava-se uma dificuldade de respirar análoga à sensação de
sufocamento do eterizado; e se era tal o resultado produzido sobre alguém tão experimentado
como eu na Obra Oculta, não posso imaginar que um iniciado menos avançado possa suportar tal
tensão, mesmo por cinco minutos, sem que desfaleça e morra.»
Sobre o Crowley-e-o-seu-Mundo-Mágico e o que dele eu possa ter recebido, permanece
válido o que asseverei em carta do meu punho mas escrita a pedido do Raul Leal, que não sabia
inglês e bem mais do que eu ansiava adentrar-se pelo que se passava na cabeça do Mago:
«Não tenho nada que ver com isso como não tenho nada que ver com coisa nenhuma.» (4-12-
29).
Sobre Ocultismo, Crowley nada me revelou que eu não soubesse já. Sobre a Magick, sim, e
até talvez de mais, no espectro que abordei, embora a muito galope: a fusão ritual do Sagrado e
do Profano, do Espírito e da Matéria, sem, de permeio, nenhum Deus, hebraico, romano,
muçulmano ou persa, tal não se vira antes, tão estentoricamente proclamado, desde o isabelino
John Dee, intérprete-seguidor das Cartas de Enoch, até à assumpção absoluta do Grande Deus
Pan, simultaneamente «a verdadeira natureza do homem», segundo o Ipsíssimo (o Crowley), (e
os gregos também).
Era fatal que tal cisma causasse a maior repelência entre os convictos da Magia Tradicional
Rosacruciana, inclusive da Golden Dawn, que o cobriu de mofas e lhe lançou o anátema do
descrédito por tudo o que era sítio. E que a própria «Besta 666» algumas vezes perguntasse a si-
mesma se não estaria possessa do Demónio (não do diabo apostólico romano, mas de um muito
mais recuado no tempo, cujo nome rotundo não recordo agora) e o fizesse com a mesma aflição
(segundo uns) ou com o mesmo à-vontade (segundo outros) com que declarava:
«Tenho a absoluta certeza de que estive sempre doido, durante toda a minha vida.»
Este, meu querido Gaspar Simões, o processo de dissemelhança do senhor Crowley, Mago, e
do senhor Pessoa, Poeta, «que não tem nada que ver com coisa nenhuma» e não tem a certeza
absoluta de nada, sequer se esteve ou não doido toda a sua vida ou só em partes alíquotas dela.
Mas, tal como os opostos mutuamente se obrigam e por vezes se cruzam, há coincidências
singulares, caminhos de cruz que a mim mesmo perturbam e ainda não pude exorcismar.
No meu poema que começa «Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar…», que eu datei
19-8-1930, ano em que travo correspondência com o Mago, em que me envia os seus livros e,
em Setembro, vem a Lisboa conhecer-me e montar a farsa do desaparecimento na Boca do
Inferno em Cascais; esse poema, digo-lhe, tem quatro abjurgatórias (sobre «a vida», «o amor»,
«a glória», «a fé») que vêm expressas, quase pela mesma ordem, em The Sevenfold Sacrament.
Se eu li ou não li este texto, antes de ter escrito o meu, não sei em verdade dizer — o que não
torna menos inquietante a questão, de importância nula se só literariamente encarada. Maior
relevância, para quem lhe der na moina puxar por ela, terá a questão dos meus heterónimos
observados ao espelho das inumeráveis encarnações que o Mago sofreu, ou gozou (não só em
espírito, entende-se). Aqui, uma linha de fronteira pode ser traçada: a que separa o termo
evocação do termo invocação. Embora isso, serei o primeiro a admitir que os (meus) heteró-
nimos possam ser considerados primos lunares das personalidades que Crowley abundantemente
encarnou, viveu, escreveu, falou, comeu e vestiu, em todos os seus anos de existência terrestre.
E é que, meu Querido Amigo, quando Você veio, com o seu Freud debaixo dos olhos, lançar
os olhos sobre a minha pessoa, já eu os tinha passado sobre infinito de textos como este:
«(Para a concessão do Grau da Travessia do Portal) o Aspirante deve fazer a introspecção e
tomar consciência da evolução que formou o seu espírito tal como agora se lhe apresenta e
funciona. A meditação conduzi-lo-á a deixar de considerar-se a si-mesmo unicamente como um
ser consciente; atingirá sair de si-mesmo como personalidade, como máscara, e, então se esforça
por perceber de que maneira a sua própria máscara surge a outrém; vê-se na consciência de
outrém como um indivíduo que se critica e observa. Meditará sobre as palavras e sobre o poder
das palavras. Surpreender-se-á a enlaçá-las, a jogar com o seu significado, e a mistificar desta
forma os outros e a si-mesmo.» Se quiser dar-se a pena de considerar esta «Travessia» na
finalidade para que tende, e a ausência de um limite nas consequências dela, considerará
também, sem grande esforço, não apenas que andam inúmeras gentes, desde diversos tempos e
lugares, a minar por cima os éditos do seu Freud, mas igualmente devia supor que o Fernando
Pessoa, de «fingidor» (de «aldrabão» como você lançou à cara do Crowley), talvez tivesse
pouquíssimo, embora lhe agradasse ser considerado (por si, sobretudo) como tal. E que noutra
ordem do conhecimento (a ordem a que pertenço), e não também por acaso para além do bem e
do mal, já o Nietzsche pedia para a cara dele «outro disfarce, outra máscara.»
Posso achar graça à ideia de que atrás do meu órgão olfactivo subsiste um pénis assistido
pelos globos oculares direito e esquerdo, mas não é coisa que eu leve para casa. Mais facilmente
creio que me crescem as orelhas até ao tecto quando, no Swinburne, leio que só quando chegar-
mos ao Inferno, se existe, «só então saberemos se o Inferno não é o Paraíso».
Um «charlatão», mesmo «mágico», não seria capaz de escrever isto:
«Fisicamente, sou um cobarde, mas expus-me a todas as formas da doença, do perigo e da
violência; sou de natureza naturalmente delicada, mas obriguei-me a perversões repugnantes, a
comer excrementos e carne humana. Neste momento, desafio o poder da droga a turvar o meu
destino e a distanciar o meu corpo do seu natural. Sou um débil mental e moral, cuja educação
em menino foi coisa tão horrível que transformou toda a minha vontade num ódio sem limites a
esse tempo em que a minha humanidade, não exercitada, estava a converter a minha mente e a
minha alma animal a algo semelhante a um elefante no cio a destruir a paliçada1. E se subjuguei
cada uma das particularidades da minha mente, e construí para mim-mesmo uma moral mais
severa do que qualquer outra existente no mundo, fi-lo apenas para benefício de uma liberdade
absoluta frente a todo o código moral imposto.»
O Ritual 671 da Ordem da Estrela de Prata acolhe palavras de Gauguin. Cito as do Ritual:
Apaixonara-se pela figura moral do grande pintor francês, («o homem mais solitário do
mundo, como eu»), ao ponto de imaginar-se transmisso nele. Pôs-se a pintar, freneticamente, dia
e noite, quando soube que Gauguin pintava nas paredes da «casa» dele, no Tahiti; e, na Abadia-
Thelema do «Faz o que queiras será toda a Lei», dedica-lhe um ritual onde o investe na
dignidade de «um dos maiores Santos da missa gnóstica».
Crowley morreu em 1947 e foi cremado no cemitério de Brighton enquanto alguns dos seus
mais fiéis seguidores entoavam o «Himno a Pã», o que causou distúrbios e algum pavor na
edilidade local.
Enfim, para terminar esta carta e prometer-lhe outra ainda mais excessiva (em tudo), dou-lhe
esta palavra do Irmão Perdurabo ainda não Mago, ainda só escolar do Trinity College em
Cambridge:
Seu, muito
Fernando Pessoa
1 «Uma Infância no Inferno» é o prefácio autobiográfico que Crowley escreve para o seu livro A Tragédia do Mundo publicado
em Paris em 1910, com proibição de envio de exemplares para Inglaterra e para os Estados Unidos. Tem, então, 25 anos de idade.
Snr. dr. João Gaspar Simões
Assisti sempre, de lado, e na clausura de um silêncio total, quer aos seus encontros no Café
Montanha com o meu irmão, quer ao epistolário com que ambos honraram a literatura
portuguesa, desde os seus bastidores, por tempo não inferior a cinco anos, e devo-me dizer-lhe
que bastante me impressionou o facto de, quer nas cartas enviadas pelos correios, quer nos
conúbios do Café Montanha, o snr. dr. nunca ter percebido que eu também lá estava, a olhar
muito para si e a fruir o estatuto de voyeur ignorado.
Assim, é no total e geral conhecimento do processo (percebe?) que por esta lhe digo que o
meu irmão não vai escrever-lhe a prometida carta «mais excessiva (em tudo,) do que» etc. Ele
toma por excesso o que é franqueza, por indelicadeza o que é verdade passível de incomodar, por
perda de espaço e tempo o que, pelo contrário, pode ser recuperação de gasto mal empregado.
Essa carta, que o horror a incómodos (seus ou dele) o inibe de escrever, escrevo-lha eu, na
posse de todos os etc. com que vergastei e comi aquela criançada toda em idade de ir para a
marinha de guerra, inglesa, como depois se viu na chatíssima ópera do Benjamin Britten, Billy
Budd, o gago, do conto de Melville, que é bom.
Não deve o snr. dr. poder lembrar-se do trom que por alguns segundos alarmou a assistência,
até aí imersa no encanto de ouvi-lo pronunciar a conferência, nos idos de 1977 crismada
«Fernando Pessoa e a Revista Presença», no intuito de comemorar o quadragésimo aniversário
do aparecimento dessa Revista, mas na verdade apenas e só dedicada à exaltação maluca do
papel nadador-salvador que ela — a «sua» Revista — teria desempenhado no metro e meio de
água onde encontrou os nautas do Orpheu. Não fora, dizia, o snr. dr., o aparelho crítico da
Presença, a consciência crítica da Presença, a atenção crítica da Presença, a imposição crítica da
Presença, e a nau-capitânea do Orpheu — isto é, o meu irmão o leme, o Sá-Carneiro a flâmula, o
Raul Leal, o convés e o Almada a proa — teria tocado o fundo do mar tenebroso e ali ficado
décadas, centúrias, esquecida pelos porcos dos portugueses.
Digo-o porque o não senti perturbado pelo trom que ainda assim foi bastante e fez erguer
quantidade de gente, enquanto o snr. dr. prosseguia incólume, como em discurso gravado, a sua
lauda. Admito possa ter tomado aquele desastre por uma entusiasta salva de palmas e assim nem
haja erguido olhos jubilosos para o merecido laurel. Ponto a seu favor. Mas a verdade é que tudo
foi causa da minha cadeira que abruptamente se desconjuntou e partiu, tão podre estava por
dentro e envernizada por fora, no momento em que o snr. dr. revelava à assistência que o Fernan-
do Pessoa era da seita do Crowley, o bruxo. Isto, ou isso, mais de quarenta anos depois de o meu
irmão lhe ter explicado ao tim-tim não ser correligionário de coisa nenhuma, sequer dele-
mesmo.
Movido pelo que ouvia, soergui-me nas duas pernas, guinei as costas para trás, e foi aí que o
monstro abateu, largando muito pó de bicho e espetando as tiras do vime estragado em forma de
coroa de espinhos, o que, estupidamente, por assim dizer, me fez lembrar a quantidade de Cristos
que o também co-fundador da Presença, o poeta José Régio, coleccionava ao pacote, à centena,
ao milhar, Cristos baratos, INRIS de artesanato, de cem a duzentos escudos o par. E anjinhos
também, de igual portagem. E nem me atrevi a pensar no que podia suceder-nos a todos se este
coleccionador fosse rico. Cristos do Luxemburgo e da América Mormon, INRIS da Ilha de Elba
e do Zebú. Por um transfert que o criador de Éloi ou Romance numa Cabeça decerto
compreenderá, deixei de ouvir as suas palavras para transportar-me àquela tarde antiga em que o
snr. dr. levou pelo bico, para o Café Montanha, o poeta de As Encruzilhadas de Deus, para o
apresentar ao meu irmão. Digo «pelo bico», porque mal entrou na casa me pareceu um pinguim
recuperado da Antártida, e, quando se sentou, o colarinho dele mal aflorava o mármore. Mesas
altas, é verdade, e não é meu costume criticar trabalhadores do espírito pela altura a que chegam
com o corpo. Soube porém, mais tarde — por informação sua, snr. dr. — que o autor do Jogo da
Cabra Cega, vivendo nos termos da província, odiava tudo o que poeta nado ou criado em
Lisboa. O que, se não é justificativa minha, podia servir de nota de pé de página para os Amigos
Sinceros, uma das obras do snr. dr. mais representativas da Presença em prosa.
Quando pude recuperar-me, estava V. a dizer que o Fernando Pessoa era melhor poeta do que
crítico. Foi isto o que o auditório efectivamente colheu, embora a seta viesse temperada em mais
subtis venenos. Estes: «Aquele que é o maior poeta português de hoje mostra não ser tão
admirável crítico literário».
Muito de passagem para outros cais creio eu que de maior tonelagem, gostava de pôr à vista
do snr. dr. que figuras como essa de «o maior poeta português de hoje», figuras que, hoje, se
passaram para outras não menos palermas, como a de «fulano, o maior poeta português vivo»,
são letras muito perigosas e passíveis de muita ondulação, pois, uma vez ultrapassado o «hoje», e
enterrado o «vivo», este fica pronto para passar à fase de «menor poeta morto». Palavras tais
significam, em língua portuguesa, coisa nenhuma e dignificam, exactamente, ninguém.
Mas tive de ouvir ainda que aquelas suas palavras não eram metáfora sua. Inteligência ou
prudência, não fosse o diabo merendá-las, eram retiradas do reportório crítico do dr. Adolfo
Casais Monteiro que se sentiu muito quando o meu irmão fez e deixou publicar um prefácio para
um livro de versos de um tal Luís Pedro. Que o livro (e o prefácio) não eram peças de museu
logo eu o disse ao Fernando, que riu, ciciou, sem as deixar sair da boca, umas palavras tipo latim
bárbaro, e, em suma, não deu resposta. No emaranhado, pareceu-me que dizia para si-mesmo
poemas dele, como aquele em que afirma… «nunca encontrei parceiro», ou daquele outro,
incompleto, que dedicou à morte do Sá-Carneiro: «Hoje, falho de ti, sou dois a sós.» Que eu,
pelo contrário, acho admirável que o homem que escreveu a «Ode Marítima», e tem o
inacreditável auto-da-fé de atribuí-la a outro, aceda a apresentar o livro de um burro. Se é de
burro, porque, à excepção do dr. Casais Monteiro, não sei de mais ninguém que lhe tenha posto a
vista em cima. E muito me erotiza, exalta, e enaltece, que o tal prefácio não fosse para o Dante.
Com sensibilidade de garça — que a tem — e memória de elefante — que o não deslustra —
tinha o snr. dr. de chamar à colação a menoridade crítica, literária, do meu irmão. Mas igual
sensibilidade e memória tenho eu, em alto grado, e posso assegurar-lhe que vi o Fernando muito
aflito quando V. lhe pediu o parecer crítico dele para o livro Temas, que V. acabava de publicar,
ano 1929.
Não é verdade, como ele a outro propósito lhe escreveu, «Que eu saiba ou repare, só a falta
de dinheiro (no próprio momento) ou em tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me
deprimir.» Ou será verdade mas só no sentido de ele ter reparado que vinha aí um tempo de
trovoada. Pouco lhe importava, evidentemente, malquistar um crítico, mas afligia-o magoar um
amigo. E, de promessa em promessa, de evasiva em evasiva, vêmo-lo deixar passar 2 anos (dois)
sem que escreva, ou lhe envie, a almejada crítica.
Com o que, o snr. dr. volta à carga, enviando-lhe o seu interessante livro O Mistério da
Poesia, que sai em Novembro de 1931 e reimprime o estudo, ou ensaio, ou artigo, já aparecido
nos Temas, sobre o meu irmão. Aí, ele sente já não ser possível protelar por mais tempo («não é
decente, nem bonito») a factura, «qualquer ela seja», que lhe deve, e o que nela terá de dizer-lhe.
E ainda assim vai de salamaleque a carta-aviso-de-recepção do Mistério:
«… Prefiro, pois, desde já e simplesmente lho agradecer, deixando para depois da tal leitura
mais atenta, os comentários, quaisquer que sejam». (3-12-31). Insere, no entanto, (vai começar a
borrasca!), uns prolegómenos menos agradáveis:
«[…] Faço, mas sob reserva de emenda possível, uma reserva: no relance, pareceu-me que V.
(tende) para explicar de mais. Na carta que daqui a dias lhe escreverei, esclarecerei esta frase, se
a não tiver que retirar.»
Se a não tiver que retirar! O meu irmão, snr. dr. Gaspar Simões, era um Santo! Que de
cautelas, quanta finura, que de antecipadas desculpas pelo que sabe ter de escrever a seguir! E o
que escreve a seguir é uma tapona mestra no aparelho crítico da Presença, na consciência crítica
da Presença, na atenção crítica da Presença, na imposição crítica da Presença, e nos seus livros
Temas e O Mistério da Poesia. Diz-lhe coisas horríveis, devastadoras, continuamente adversas,
tirante o elogio que faz de conta e que faz de ponte.
E é por isso e, infelizmente e unicamente por isso, que V. tinha de ir às terras do Casais
Monteiro procurar a menoridade crítica, literária, do meu irmão, extravasando o assunto para o
Luís Pedro, ajudante de guarda-livros cujos poemas o Fernando Pessoa passava à máquina para o
levar à Revista Descobrimento, o que acho admirável, já disse, e de pouca cópia entre toda a
ilustrandade poética portuguesa.
Mas, advirto-me agora, com inenarrável angústia — e por informe seu, snr. dr. — que ao
Casais Monteiro importava uma ova que o Anacrónicos do L.P. fosse bom ou mau livro, melhor,
pior, ou igual a muita copla à data publicada por pinhas de vates. O que franziu a testa do C.M.
até ao pentagrama foi, no inditoso prefácio, a referência a uma tal ou qual poesia moderna que
mais não seria do que «prosa com pausas artificiais», no que ele viu barrete para os poemas dele.
Ouvi ainda, do snr. dr., que o meu irmão viciava a data de feitura dos seus poemas, quando o
achava útil e necessário. Ponto cuja importância, e o facto de havê-la posto, nem o snr. dr.
certamente imagina. Mas mais interessante será dar alguma atenção ao facto de V. também não
ter percebido que aquele reparo do Pessoa ao poema que começa: «O sino da minha aldeia…» é,
verdadeiramente, um lamento, e não uma introspecção de ironias ou verve de fingidor. O poeta
deplora que o sino da sua aldeia seja o da Igreja dos Mártires, no Chiado, e não um ermo perdido
do mundo, entre serranias. O meu irmão, dr. Gaspar Simões, foi sempre um aldeão. Pior que
aldeão: um saloio remediado, como algumas vezes, com muito amor, lhe chamei. Pois não é
desgastante que numa cidade tão imperial como Lisboa, com tanta e tão diversa concentração
urbana, tanta esplanada, tanto café, tanto quiosque, tanta rua, tanto elevador, tanto carro
eléctrico, tanto side-car, tanto cinema, tanto teatro, tantas avenidas, tanta loja, tantos armazéns,
tanto escritório, tanta luz acesa toda a noite e tanta polícia, o meu irmão só veja o céu, o vento, a
onda, o rio, o monte, a estrada, a fonte, o luar, «o entardecer da terra, sopro do longo outono»,
o lago, a folha, a árvore, rebanhos, pastores perdidos, a montanha, «o trigal» sobre o qual
repousa «um sol parado», a floresta, o moinho, a quinta (onde secaram todas as fontes), o sol na
eira, a «luz no tojo e no brejo» e por aí fora? E que até o poema onde ele tenta fixar a lume
esperto o que ele quer que acreditemos ser «o cerne da sua filosofia» seja dirigido a uma ceifeira
que ele nunca viu nem ouviu em toda a sua vida?
Tenho para mim que o rocinante que assina M.C.V. e lhe chamou «aldeão do mundo a
haver», nisso, acertou, retirado o «mundo», e o «a haver», que bem se vê serem jeito da
redondilha. E que este senhor Aldeia (Hamlet, se quisermos ser magnânimos) é a vingança do
Pascoaes metido na cabeça do meu irmão e a rir-se dele, a bandeiras desfraldadas, por toda a
eternidade! Que ele tenha descarregado sobre mim todo o seu cosmopolitismo, todo o seu
internacionalismo, todo o seu sado-masoquismo, sobre mim, que sou de Tavira que é tudo menos
uma aldeia (vá lá ver), não tira uma vírgula ao período. Saloio ainda quando taxa de obscenos o
Antinous e o «Epithalamium». Que tem aquilo de obsceno, dir-me-á o snr. dr.? Obsceno, talvez o
tremor que o tomou quando, uma vez, como o Dante Gabriel Rossetti fez com o Swinburne, lhe
levei ao quarto uma mulher da vida. Ele saiu disparado para a rua e nessa noite foi dormir ao
Hotel Frankfurt com o Chevalier de Pas, por acaso inaudito encontrado no mesmo hotel, e a
quem ele, ainda menino, tanto escrevera. Significa que tenham feito «coisas» um ou outro ou
ambos a par? Nada disso. Significa o que significa, verdadeiramente, O Mistério da Poesia.
Trully yours
Álvaro de Campos
P.S. — Elevado ao cuidado de ler antes de enviar, fere-me o receio de que o snr. dr. possa
considerar-me como mais um nas hostes dos seus inimigos. Não faça isso, snr. dr.! Eu quero-lhe
muito, como lhe quer o Fernando, o Alberto e o Ricardo. O que todos à uma lhe devemos, a si e
ao Luís de Montalvor primeiro, depois a si e a si só, não tem paga possível na terra, no céu ou no
mar. E para seu consolo, comunico-lhe que saiu não há muito exportada para o Brasil, uma série
de 292 (duzentos e noventa e dois) inéditos, dos quais para sermos benévolos, cento e oitenta e
quatro são para pôr na retrete e puxar o autoclismo, energicamente. Quer ver?:
Quanta tristeza
Sem o perdão
De chorar, pesa
No teu coração.
E ó vento vago
Das solidões
Traz um afago
Aos corações.
Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.
……………………………………
Papéis do Luís Pedro? Meninas ao piano a esganiçar in pecto Soares dos Passos? Não. São
mesmo do meu irmão e de, respectivamente, 1921 e 1924. Implacavelmente arrancados ao baú
de onde nunca deviam ter saído. E de então para cá chove inédito, verso e prosa, que dá medo
sair à rua. Completos, inacabados, truncados — não escapa rato!
P.S. 2 — Dá-me um grande intervalo sempre que penso que o dr. Casais também censurou ao
«Prezado Camarada» a publicação da Mensagem. E que publicou com pompa e circunstância
uma «Tábua Bibliográfica» do punho do meu irmão, escrita na intenção de limpar com ela o rabo
mal fosse à casa de banho. Em vez disso, deu-a às casas de banho da revista «Presença», onde o
Casais a apanhou já usada, reimprimindo dela a parte mais etc., se não francamente de colapso
mental parietal matinal.
Seu, sempre,
A. de Campos
— A fechar, tropecei naquela do «Para além de outro Oceano», que o C. Pacheco publicou na
Revista Centauro, em 1916, ser «obra surrealista». Muito exquis, deveras. O parecer é seu, tem o
seu cunho, e, seguindo a lusa tradição actual no todo e neste pormenor, também não vou discutir.
Mas o que a mim me entra é que sendo esse texto um dos muito chatos que o Fernando António
não baixou ao bidé, e não sabendo você nem os seus etcs. como levá-lo a despacho ao Diário de
Notícias, de Lisboa, lembrou-lhe essa elegância de dar o Pessoa como precursor de alguma coisa,
mesmo de coisa tão mínima «e inimiga do modo de ser lírico português», como o Surrealismo, e
assim o arma em ante dos Aragons, dos Éluards e dos Pérets, surrealistas franceses. Mas o
Fernando, quando me leu «O Marinheiro» — «Drama Extático» e me viu de olhos a chorar de
sono e de conjuntivite nervosa, disse-me, com a maior placidez de espírito e de rosto:
«O meu melhor instrumento de sopro é, em verso e prosa, não ser precursor de ninguém.»
OUTROS POEMAS
A ESTRELA
O copo nupcial.
O carro.
A casa.
10 + 3, 10 + 7. Lua em alemão.
O BERLINDE BERG
Resolução da antinomia:
O BERLINDBERG
LEVE
Leve
o roupão que foste
e o horror de sê-lo
Leve
o traço vermelho
no cabelo
Leve
o em forma de velho
rosto aflito
Leve
o jasmim e a neve
sobre o rito
Arrumaram-se à luz de um candeeiro
a recolher esmolas.
Mas quem passa, passa. Nem sempre há dinheiro.
É assim mesmo!… — Bolas!
A marcha
a fome
as mãos vagas
não resistiram
e já a Ásia (margem direita)
procede a golpes
de inverno ciclone
E
eis
o Gás
UR
o homem
ao vosso gosto
Campos
olhos
vendas
cortejo
querem dançar
o Circo Casamento
É PRECISO
QUEBRAR
O ARSÉNICO
PASSAGEM DE CRUZEIRO SEIXAS EM ÁFRICA
Este é o segredo
para todos os usos
Eu mastrucharco
tu mastrucharcas
ele mastrucharca
nós mastrurcharcamos
vós mastrucharcais
eles mastrucharcam
Eu charcomastrava
tu charcomastravas
ele charcomastrava
nós charcomastrávamos
vós charcomastráveis
eles charcomastravam
Eu mastrucharquei-te
tu mastrucharcaste-me
ele mastrucharcou-se
nós mastrucharcámos
vós mastrucharcastes
eles mastrucharcaram-se
Eu charcomastrarei
tu charcomastrarás
ele charcomastrará
nós charcomastraremos
vós charcomastrareis
eles charcomastrarão
Eu mastrucharcaria
tu mastrucharcarias
ele mastrucharcaria
nós mastrucharcar-nos-emos
vós mastrucharcar-vos-eis
eles mastrucharcar-nos-ão
Se eu te mastrucharcasse
se tu me charcomastrasses
se ele se mastrucharcasse
se nós nos charcomastrássemos
se vós vos mastrucharcásseis
se eles se charcomastrassem…
Eu desço
tu sobes
ele sua
nós sabemos
vós colheis
eles salgam
Eu vi
tu viste
ele Victor
nós vimos
vós vistes
ele Victor
Eu vendi
tu vendeste
ele vendeu
nós vendámos
vós vendestes
ele Victor
Eu ventretenho
tu ventretens
ele ventretem
nós ventretemos
vós ventretendes
eles ventretêm
Eu ventretinha
tu ventretinhas
ele ventretinha
nós ventretínhamos
vós ventretínheis
eles ventretinham
Eu ventretive-te
tu ventretiveste-te
ele ventreteve-se
nós ventretivemos-te
vós ventretiveste-vos
eles ventretiveram-te
Eu ventreter-te-ei
tu ventreter-me-ás
ele ventreter-se-á
nós ventre-ternos-emos
vós ventre-ternos-eis
eles ventreter-se-ão
Se eu ventretivesse…
LITERATURA FRANCESA
sala 1
o roman — o
o roman — á
o roman — aus
o roman — cebo
o roman — ce
o roman — tismo
o roman — rolland
o roman — cefálico
o roman — do antigo
o roman — iconográfico
o roman — off side
o roman — of course
o roman — da-mo
o roman — comunado
o roman — to de luces
o roman — zatzigana
o pobre — romanco
o feliz — romano a mano
o roman — chado de espuma
o roman — ray
o roman — uel
sala 2
Entro numa casa onde parece que vivo. Falo com o meu companheiro de quarto. A vida é um
longo hábito de ruas em liberdade.
Surge um guarda sobriamente vestido, sem sinais que o aparentem às polícias que há, apenas,
no boné, umas letras a branco, indecifráveis. Deixou na rua uma motocicleta enorme, e convida-
nos a acompanhá-lo. Subo para a moto tomando o guiador. O meu companheiro instala-se atrás
de mim, e, atrás dele, o guarda. Há confusão por causa da colocação dos pés. Entramos numa
capelista onde, além de outras velhas bisonhas, está uma mulher de aspecto simples, vestida de
preto, atrás do balcão. O guarda avança, finca o cotovelo no balcão e a mão na cara, e diz: a
senhora é amante de Isidore Ducasse? A velhota reflecte um ar confuso, mas divertido, agradado.
Se não a amante, continua o guarda, uma das suas amantes? A velha desapareceu. Todo o décor
toma um ar de ameaça, de local implicando perigo de vida e desencadeia-se grande perseguição.
Nem eu nem o meu companheiro sabemos quem são os que nos perseguem, nem porque o
fazem, mas vemos que estão armados e implacavelmente decididos a abater-nos. Subimos e
tomamos pelo interior de um túnel que atravessa uma fábrica de panificação. Lá dentro,
corremos. À nossa passagem, tudo adquire um tom de extrema violência. Chegados ao telhado
mais alto da fábrica, estamos numa pequena povoação marítima. Ar despaísado, de pequena
praia no inverno. Há um hotel e carros eléctricos passando junto ao mar, vindos do alto de uma
rampa muito íngreme, pela qual descemos a pé. À nossa direita arde em chamas miúdas um
edifício que parece «descender» da fábrica cujos telhados atravessámos.
Eles deitaram fogo ao hotel, oiço dizer, ou dizerem-nos. Ganhamos a grandes passadas o fim
da rampa. No cimo desta, surge a grande velocidade um carro eléctrico e desencadeia-se um
tiroteio cerrado entre atiradores escondidos. É como num acaso que estamos envolvidos naquela
refrega, talvez ela não seja contra nós mas sucedida assim ao nosso lado. Estendo-me no chão da
calçada junto de outros corpos que já ali encontramos, mortos. Defendo-me das balas puxando
contra mim um desses corpos. Ligeira sensação de que esse corpo vive e de que estou
assassinando alguém. Findo o tiroteio, levanto-me e começo a subir a ladeira sozinho. No alto da
rampa surge velozmente o cartro eléctrico — não outro, o mesmo, o de há bocado, como num
filme projectado segunda vez e que repetirá no todo e no pormenor a cena há momentos vivida.
Agora, porém, estou só. Corto por uma rua à minha esquerda e vou dar a um jardim de areia lisa
e longos canteiros verdes. Em baixo, o mar como que decifra remotamente a posição das casas
que orlam o jardim e a sua arquitectura de deserto.
Num paredão que avança pelo mar, um pequeno pavilhão hexagonal. «O casino de inverno»,
penso eu. Entro. É um aposento único, circular, paredes de tijolo e escassos metros de raio.
Percorro até ao seu centro o chão descarnado. Numa das mesas encostadas à parede, um criado
sonolento. Mas lá fora, em terraço sobranceiro ao mar, há outras mesas, murmúrio de vozes,
certa agitação. Um grupo de pessoas aponta para o mar em baixo. No fundo da água, um afogado
de olhos escuros e abertos, a face pálida, o corpo dobrado em dois. A seu lado, com a lentidão
dos corpos submersos e agindo convencionalmente, um médico procura reanimá-lo, põe-lhe
tubos de borracha sob a camisa aberta. Os olhos do afogado fitos em mim são o final deste
sonho.
Tive sonhos de voo durante muitos anos, todas as noites, desde rapaz. Narrá-los a todos ou
em quantidade resultaria inútil porque não transmite e porque a única coisa maravilhosa,
fantasticamente acontecida, era o próprio voo. Uma vez, sonhei que acordava no alto da
escadaria que dá acesso ao Ateneu Comercial de Lisboa (frequentei em menino o ginásio do
Ateneu). «Acordado», precipitei-me de novo no espaço. Não era suicídio, era desafio certo de
ganhar: em vez de estatelar-me no solo, que eu julgava ser já o do chão real, segui rumo ao
espaço exterior.
Em criança, sonhava com um recanto escuro da oficina do meu pai onde havia um fole
accionado a pedal, e, numa velha armação de madeira, um grande pote de barro para onde
escorriam as decantações ácidas da prata e do ouro fundidos, o total ladeando uma chaminé que
dificilmente expelia o cheiro dos resíduos um ano conservados em água suja. Nessa chaminé, o
meu pesadelo criava uma aranha, ou algo que a escuridão revelava assim, poderia ser também
uma presença humana, para a qual eu era irresistivelmente atraído. Mas o horror, aqui, era o
preço da curiosidade, desfeita, sempre, pelo meu acordar antes de atingida a zona maléfica.
Outro é o pesadelo que pode matar, como tive pouco depois da morte de António Maria Lisboa:
uma escada subterrânea, branca, entre paredes de azulejo branco. Um cheio a desinfectante,
como num urinol, ou de hospital votado às mais cruéis doenças. No fim da escada, um aposento
em forma de rectângulo, fechado, não muito espaçoso, de azulejo branco também as paredes,
talvez o tecto. Utensílios grosseiros, como um bacio colocado no fim da escada, aumentam a
brancura de casa mortuária ou de enfermaria sem esperança. Naquele ambiente cruelmente
esquematizado pelos humores do meu cérebro, pairava, digo bem pairava porque podia deslocar-
se no espaço, sem peso, como um (… impossível escrever a palavra adequada!) olhava-me
medonhamente decomposto, descarnado, podre, erguendo os braços na minha direcção,
esperando que eu descesse, fosse ter com ele, atravessasse o último degrau, o «cadáver»
vermelho negro e branco do António Maria Lisboa. Ao acordar, o coração batia-me tão forte, o
descontrole era tal, que percebi com o próprio corpo que se tivesse descido o último degrau,
aceite em mim a visão pavorosa, decerto não teria regressado.
Sonho um barco em naufrágio e um mar tão fundo que a descida ao abismo é lentidão sem
fim. Os afogados, no castelo da proa, ou subidos aos mastros, interrogam sem resultado aquele
novo horizonte. Alguns, mais animosos, experimentam lançar-se, desde o mastro grande, para o
caos sereno e azul que envolve tudo. Mas o gesto é inútil: permanecem pairando, o corpo em
cruz, até que voltam ao ponto de partida. Outros, propõem remar. E entretanto descem
lentamente o abismo.
Recomeço a voar, lançando-me do alto da Rua Barata Salgueiro. Digo: «recomeço» porque
no meu sonho há lembrança nítida de incursões semelhantes, iniciadas sempre nesta rua. Entro
no espaço abstracto, sem imagens, que será para o homem o voo puro. Os meus braços abertos
são os reguladores da direcção.
Desço, quase a rasar o solo, sobre a Avenida da República, em direcção ao Saldanha, que
oferece o aspecto habitual de um fim de tarde de verão. Do lado da Avenida Fontes Pereira de
Melo, voando baixo como eu, uma mulher magnífica, solene, vestindo um longo traje de renda
negra cujo ondear a continua no espaço. Reunimo-nos sem trocar palavra, fitando-nos apenas, e,
sem desvio na direcção comum, traçamos lentamente dois círculos concêntricos à estátua de
bronze em baixo, afligida de grande circulação automóvel.
ROMANCE
O antigo dono de uma hospedaria chamou três antigos companheiros de um filho e fizeram
um pacto: que tudo o que se visse nas florestas do Ocidente fosse fabricado pela mão do homem!
Meu dito meu feito. Compraram uma casa, disseram adeus às mulheres e ninguém mais os
viu durante um ano. A voz corrente era que se embebedavam. Como, porém, nunca saíam, nada
se podia assegurar. Começava a temer-se pelas suas vidas quando o estrangeiro pediu silêncio,
meteu os quatro homens numa caixa e os levou para a nau.
Os tipos de crânio e de esqueleto correspondiam, anotou o estrangeiro no livro de bordo. Os
outros, seguiriam para entulho.
Sussurrando alto, o que é uma excelente maneira de proporcionar uma respiração satisfatória,
o antigo dono disse para os companheiros:
A nossa voz é monótona em vez de vibrante. Vamos morrer todos nesta caixa.
Este estado durou vinte e seis horas.
No estado seguinte, a mola mestra dessa preparação espantosamente rápida que é um rapaz
de vinte e cinco anos, entrou na ponta dos pés, sentou-se ofegante e disse:
— Vocês chamam a isto nadar?
Era uma voz de alarme. Efectivamente, fora da cidade, quantos saberiam da situação dos
quatro amigos? Começaram a colher informação nos tomos dos jornais. Em movimento, não
pareciam estar feridos. Sentados, o sangue escorria, tentando a eliminação de substâncias
prejudiciais. A posição dos joelhos, sobretudo, era incómoda.
Este estado durou dezassete horas findas as quais o estrangeiro apareceu, abriu com
afabilidade, e convidou os passageiros para o deck, dizendo-lhes que comessem e bebessem
porque os tempos não iam para outra coisa.
No estado seguinte as nações livres do mundo estavam progredindo e as obras dos serviços
de utilidade pública multiplicavam os progressos das nações livres — o corpo humano deixara de
aspirar ao sono — as mulheres arrumavam os quartos dos maridos com adoráveis mãos que
sabiam escolher.
Emagrecer repousando foi, neste estado, a única preocupação dos quatro amigos. Aliás, a
situação no barco era excelente, com bastantes vistas para o mar. Paco Bill, o urbanista-armador
e os homens de equipagem, os admira-dores, os solicita-dores, os canaliza-dores, os trabalha-
dores, os avia-dores, os computa-dores, os opera-dores, os prega-dores, os pesca-dores, os
alumia-dores, os anuncia-dores, os salva-dores, além dos oficiais de serviço, o monta-dores, o
chupa-dores, o canta-dores, o limpa-dores, o beija-dor, e o de serviço em baixo, restaura-dores,
Paco Bill, dizia-se, tratara de tudo, não permitindo que se lhe adiantassem em imaginação, tacto e
disciplina. Já em laboratórios produzira homens em miniatura, agora em exercício na cabra da
nau. A única deficiência consistia numa dificuldade em classificar tais objectos.
Os quatro amigos prestaram-se de bom grado à obtenção do material necessário: uma
madeira leve, resistente, insusceptível de fadiga ou ardor.
O estado seguinte é apoteótico. Os 150 motetes e as 93 missas de Palestrina faziam ressoar o
grande orgão de Leipzig. Pois bem: o antigo dono dos companheiros de um filho não
desmereceria de tal responsabilidade. Já a região de Champagne se tornara famosa por obra de
Dom Pedro Perignon; ele, poria o telegrama seguinte:
Neste estado chegaram a Procopio’s Town, entrando como uma flecha em Mosca’s Basílica
por Còcácos Tower.
CONTO
Filho de boa família: desta vez era um marinheiro que estava sempre com tanto sono que
nunca fazia a continência.
mandaram-no então para santa clara a ver se teria remédio.
o remédio foi que assim que lá chegou pegou em todas as camas da camarata, pôs umas por
cima das outras em forma de couraçado, meteu-se dentro e desatou a dormir. Ainda por cima,
colocou nas portas daquela enfermaria uma invenção campainha-maquinismo-vassoura que batia
nas pessoas que tentavam entrar. Os enfermeiros porém entraram pelas janelas e foram lá saber o
que era aquilo.
não mo pergunteis, disse o marujo. E virou-se para o outro lado.
muito excitados, os enfermeiros foram comunicar aos superiores, que foram contar aos
amigos, que foram dizer às irmãs. Estas resolveram aparecer de repente.
quando o carro eléctrico foi embora formavam uma grande bicha à porta do hospital.
Entradas na enfermaria — o maquinismo não batia em irmãs — deram duas voltas à praça, a ver
como era dentro. Era exactamente como se supunha que fosse, visto de fora. Para tentar outra
coisa resolveram saltar à corda, ao avião, à estrela e acamaradar. Fizeram de índios, de polícias,
de cantoras, de tudo enfim que lhes veio à cabeça. O entremês findou com a execução a várias
vozes terríveis, do improviso seguinte:
marinheiro marinheiro
diga-nos lá o que tem
as barbas do enfermeiro
por aquela porta vem
A paisagem do relógio branco talvez dentro do palco talvez fora dele — penso numa janela
que dá para certo jardim de três dedos janela por abrir quando faço um sinal de assentimento aos
outros pés do móvel — passo bastante veloz entre almofadas custosas de digerir, água de seltz.
Fui dar à grande gruta onde todo o maquinismo respira brutalmente de encontro a um animal que
de curioso só tem os olhos — uns olhos de curiosidade. Outra estranha figura gira continuamente
em torno de uma grande mão percorrida por inúmeros insectos de madeira.
O maquinismo começou a dar horas — pancadas unilaterais muito sensíveis na minha perna
direita que se retraiu por momentos. Um grito lindíssimo nasceu na parte superior da
concavidade calcária e uma rapariga graciosa, graciosa apesar do cancro que lhe roera o nariz e
parte do ventre, atou-se vagarosamente ao poste e começou a girar também. A explosão não
tardou a dar-se nas minhas próprias cadeiras. Uma grande angústia tomou conta de mim e,
subindo em balão, encontrei uma casa de caridade pública cheia de brilhos que subiam dos olhos
de uma série de damas sentadas numa caixa de vidro cortical.
És tu? disse a segunda.
Terrivelmente rápido transformei-me em mosca dos pântanos instalando-me no pescoço da
prostituta. Não será preciso acrescentar que a breve trecho ela estava morta. Um senhor que
aparecia a ler um romance antigo desfez-se no mesmo momento em que uma das minhas patas se
levantava daquela carne dorida.
Tudo leva a crer que se tratava de incesto e voei para cima da cómoda habitando hoje o
dentinho — o primeiro que lhe caiu — da menina que dorme irregularmente na Praça Luís de
Camões quando o polícia do lugar fita distraidamente o último automóvel da madrugada e os
insectos começam a murar as suas habitações invisíveis aos olhos dos trabalhadores que se
levantam com o t. do m.
CABALA FONÉTICA
As aias agem por elogio sob a viuvez do talco, centro de uma vela branca como um dorso,
larga como um farol de vastos estremecimentos. Acusados de aspirar o ar puro dos montes,
expiram os maquinistas. Há-os a pé e a cavalo, há-os com passo de subúrbio, há-os já sem vida,
sobre as fogueiras. Um homem ergue lentamente o braço, deixa-o cair em cima da cabeça. Está
nisso desde a infância, uma organização comercial leva-o às feiras de Maio, semi-nu. O
cataclismo sai-lhe pelas esporas.
À claridade sóbria
insistente e velada
o cargueiro desliza.
E o nada
do pequenino ponto
que vai ser
pontilha a face lisa
da enseada
E ela
a água que tem
o seu correr
abre-lhe o seio suave
de mãe fria, de mãe
que o não pode saber
Segue o veleiro rumos bem seguros.
A vela é branca e alta de comando.
Do outro lado do mar há um prolongamento
Que guarda qualquer coisa da brancura
E da serenidade clara e firme.
Há mesmo olhos cerrados que aguardam
E uma réstia de cais que está vazia.
Salas de Permanência
Nenhum mistério
a mão trabalha
e também a doutrina
Na Cidade
estrépito contra estrépito
Raimundo observará
O cavalo
Halifaz
Os pés na terra
o menos possível
Oferecei-vos
o
in-com-pa-rá-vel
Uma árvore
de tal modo
o mar
Do Amor
Cor
de Muralha
Todo o homem
é capaz
II
Do que eu primeiro gostei no seu poema, Nemésio, foi poder lê-lo sem gralhas.
Ao invés do meu texto, saído a 3 de Janeiro também com Natália,
o poema Nemésio vai como gato aos olhos do leitor
(sem penas de gralhas nas unhas)
enquanto para mim é gralha de meia-noite e sol e sombra.
ALLEGRO BARBARO:
Dó ré mi fá
mi ré dó
MODERATO
(que é o tempo
com que Fernando musicou versos meus no tempo da ilusão menina e moça — 1946):
o meu ex-mestre Graça escreveu mesmo:
— uma carta!
chegada ontem pelo correio à noitinha
Pois muito bem (VELOCE FURIOSO)
eu, essa carta, não a abri, nem abro.
Eu, dominei a custo uma grande gana
de pôr noutro envelope e devolver intacto ao remetente.
Eu penso sinto e creio
que já não é o tempo
da carta particular ao particular
eu apenas disse o que penso dos mutis
não mandei carta alguma ao meu ex-mestre Graça
produzi um texto público que ou tem resposta pública
ou então deixem estar não se incomodem
POCO ANIMATO:
Fusa e semifusa
(Vale de Zebro);
transformada em almôndega a criança recebe o prémio slot-machines criança trabalhadora contra
criança facho.
ALLEGRO JUSTO:
O Reino do Pai
O Reino do Filho
O Reino do Espírito Santo…
Tudo
Só
Homens.
Já cansa a cona, caramba.
Out. 89
NOTAS
—
BIOGRAFIA
NOTAS
MANUAL DE PRESTIDIGITAÇÃO
PENA CAPITAL
PENA CAPITAL
A 1.ª ed. de Pena Capital tinha a seguinte dedicatória: [N. do E.]
A MINHA MÃE
MERCEDES CESARINY ROSSI
ESCALONA DE VASCONCELOS
MÃE DE POESIA
Afinal, entre a dúvida razoável e a brincadeira não menos razoável, Mário umas vezes recitava — e assim foi reproduzido —
o poema com o «querer» e outras com o «dever». Aqui decidi escolher a segunda, que foi a primeira e por muito tempo a
única. [N. do E.]
Autoractor
Não aparece na 1.ª ed. [N. do E.]
ESTADO SEGUNDO
A primeira versão deste conjunto é publicada na 1.ª ed. de Pena Capital, com o título «Pequeno Diário de Um Piloto de
Guerra» dedicado «a Antoine de Saint-Exupéry». [N. do E.]
PLANISFÉRIO
Dedicado na 1.ª edição «À Maria Helena e ao Arpad» [N. do E.]
POEMAS DE LONDRES
Visto a esta luz (Walton st.); Outra Coisa (Walton st.); Olho o Côncavo Azul (Walton st.); Piccadilly Circus (Walton st.);
Being Beauteous (Walton st.); Shaftesbury Avenue (Walton st.); Ode a Outros e a Maria Helena Vieira da Silva (Walton st.);
Poema (Fullan Road); O Inquérito (Edith Grove); Atelier (Sidney st.). [N. do E.]
Being Beauteous
Dedicado na 1.ª edição ao «Luiz Pacheco, poeta da cama». Lembre-se aqui a dedicatória de Luiz Pacheco na 1.ª edição de
Comunidade na Contraponto: «Ao Mário Cesariny de Vasconcelos. Poeta do corpo». [N. do E.]
NOBILÍSSIMA VISÃO
NOBILÍSSIMA VISÃO
A 1.ª edição está dedicada «A FERNANDO LOPES GRAÇA / meu primeiro mestre», e leva anteposta aos poemas a seguinte
citação de Georg-Christoph Lichtenberg: «Na mesa de jogo encontrava-se uma mulher muito alta e magra, que fazia tricot.
Perguntei-lhe o que se podia ganhar. Ela disse: nada! E quando lhe perguntei se se podia perder alguma coisa, ela disse: não!
— Este jogo pareceu-me muito importante». [N. do E.]
Na mesma edição, e a seguir ao poema, o Editor incluiu esta resenha de António Ramos Rosa, publicada em Ler, n.º 12:
«Chamo provocação a toda a séria tentativa surrealista de denúncia da realidade através duma coerência total com o próprio
grito. Neste sentido — e sobretudo depois de Baudelaire — toda a grande poesia é surrealista. A de hoje, porém, ousa não só
afirmar um plano super-real da realidade como a possibilidade de todos os homens acederem a ele, transformando
completamente, realmente, a surrealidade em realidade, ou vice-versa. Pode dizer-ser que o surrealismo continua, pois, sob
uma forma ou outra, com este ou outro rórulo: é essa a grande tarefa do homem de hoje. A transformação, recuperação e
conquista de estruturas mentais que permitam uma integração total no mundo, sem sacrifício de nenhuma das possibilidades
humanas, é tarefa tanto de filósofos como de surrealistas, tanto de pedagogos como de sociólogos, tanto de psicólogos como
de políticos, tanto de artistas como de cientistas; e cada um, a título de homem, pode e deve cooperar nessa tarefa.
Cesariny, que nos prometera a reabilitação do real quotidiano, cumpriu-o efectivamente. O quotidiano, o quotidiano lisboeta
da hora matinal em que se vai para o trabalho, tem neste Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos o seu grande poema.
Não receio chamar-lhe grande poema, como não receio chamar desde já a atenção (embora não tenha a pretensão de haver
descoberto Cesariny) para alguém que tão necessariamente está a perturbar e indisciplinar o panorama da poesia portuguesa.
Não é certamente indiferente o signo de Álvaro de Campos, ou seja, Fernando Pessoa, esse mestre da indisciplina, como Jorge
de Sena lhe chama, e cujo martirológio começou com a restritiva consagração antológica e oficial e prossegue com a
descascagem a que o estão submetendo os novos justiceiros da poesia. Só um extraordinário poeta pode impunemente
empregar com tanta certeira naturalidade o verso livre usado magistralmente pelo heterónimo de Pessoa e dar-lhe esse
movimento aparentemente prosaico, mas no fundo intensamente poético, que é agreste e contudo fluente, e falar em
“crocodilos”, “caixeiros”, “partes pretas de lã carneira”, etc., integrando tais palavras num ritmo perfeito, num estilo
descolorido mas vivo e oral, um estilo que imita e recria a neutralidade, a indiferença e a alegre brutalidade do próprio
quotidiano, (gente jovial a acompanhar um enterro — um tiro nos miolos e muito obrigado sempre às ordens!). Admiremos
ainda esse crocodilo a rir em corredores bancários / apesar de as mulheres terem varrido muito bem o chão. Tais crocodilos,
em vez de serem uma arbitrária intromissão do insólito no quotidiano e na contextura desta reportagem (mas não tenham
dúvidas que o é), são, na verdade, uma iluminação desse quotidiano, uma iluminação feroz e crua, mas verdadeira,
profundamente verdadeira. O autor destas linhas, que como empregado comercial tem entrado várias vezes em bancos, ao ler
estes versos, recordou-se imediatamente de já ter visto os ditos crocodilos. São um facto. Mas o ponto de maior altitude neste
poema é a estrofe que principia pelo verso Paro um pouco para enrolar o meu cigarro (chove), onde o humor negro de
Cesariny atinge a sua mais expressiva e deliciosa graça. É o desdém máximo, o nojo total, a revolta absoluta, dados sem o
menor patético, com a máxima naturalidade artística, com um chiste e um desprendimento que é já por si poesia e que nem
por se identificar com o melhor de Álvaro de Campos é menos Cesariny. (Não a probabilidade do dinheiro ainda não
estragou inteiramente o gato / mas de gato para cima — nem pensar nisso é bom!)
Valeu a pena Cesariny ter dado tal passeio matinal para ver “esse gato branco à janela de um prédio bastante alto”, pois não
encontro desde Fernando Pessoa para cá alguma coisa tão viva, tão provocante como esse gato branco. Cesariny criou uma
nova obsessão. Esse gato branco não sei como nós o poderemos esquecer. Já aquele “homem das pensões e das hospedarias
que levanta a fronte de cratera molhada” que ele viu nesta Lisboa é difícil de esquecer; vemo-lo todos os dias. E já repararam
que um poeta vale pela força de certas imagens, pelo seu poder mágico e perturbador? Falta saber se neste aspecto não são os
poetas rivais da realidade em certos momentos… e se o surrealismo, pelo menos certo surrealismo, não é, como a palavra
contém, um novo realismo que, em vez de fotografar as aparências da realidade, as concentra, aproximando os seus aspectos
mais distantes e antagónicos, condensando-os para nos dar uma visão da realidade que ao menos nos faça suspeitar do que é a
realidade quando um poeta a catalisa num dado momento e ousa desafiar o destino humano com um gato branco. Eu, pelo
menos, já há muito tempo não respirava um clima tão acre, tão realista, e que me dá vontade de ir a Lisboa, ao menos para me
desiludir. É afinal um surrealista — vejam lá! — que por intermédio de Álvaro de Campos e sem o parecer logo, vem
encontrar-se com Cesário Verde.» [N. do E.]
A CIDADE QUEIMADA
A CIDADE QUEIMADA
Consultando as edições da poesia de Mário Cesariny, encontramos várias versões de A Cidade Queimada. Algumas com os
poemas-colagem (todos com os textos em francês), e outras com a forma do poema tradicional e em português (como a
reproduzida no capítulo final «Outros Poemas» desta edição). Mas no espólio da Fundação Cupertino de Miranda de Vila
Nova de Famalicão encontra-se uma versão de um livro da Assírio & Alvim em primeiras provas que tem na primeira folha,
com corpo de letra de título geral do livro, A CIDADE QUEIMADA, e, na página seguinte, com o mesmo corpo e também a
representar um título geral, O NAVIO DE ESPELHOS. Depois, o livro divide-se em duas partes: O NAVIO DE ESPELHOS
(que inclui o poema do mesmo título) e A CIDADE QUEIMADA. O livro, assim estruturado, nunca se publicou. [N. do E.]
[sur la mort…]
Paris, 1947. Publicado na monografia Mário Cesariny editada pela Secretaria de Estado da Cultura, Lisboa, 1977.
[le vide…]
Paris, 1947.
À Alfred Jarry
Paris, 1947. Publicado na revista surrealista inglesa dirigida por John Lyle, TRANSFORMACTION, 1973.
Rebelião
1947. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
Publicado inicialmente no n.º 4 da revista Cronos com algumas variantes, entre elas o título, «Projecto de Rebelião». [N. do
E.]
A Antinomia Em 1947
Com Alexandre O’Neill. Idem.
Adozites
Com António Domingues, Alexandre O’Neill e Fernando de Azevedo, 1947. Parcialmente publicado na Antologia Surrealista
do Cadáver Esquisito, Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
Os Anos Felizes
Com António Domingues, 1947. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres,
Lisboa: Quadrante, 1971.
Espelhos
Com Alexandre O’Neill, 1947. Publicado na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, Lisboa: Quadrante, 1971.
Que Concluir?
Com Alexandre O’Neill, 1948. Idem.
André Breton
1949. Traduzido de Antonin Artaud, Victor Brauner e André Breton. Lido na Noite dos Poetas efectuada com António Maria
Lisboa nas salas da I Exposição dos Surrealistas, Lisboa, Julho, 1949. Publicado em A Intervenção Surrealista, Lisboa:
Editora Ulisseia, 1966.
A Imaculada Conceição
1948. Escrito na intenção de continuar a experiência tentada por Breton e Éluard em L’Immaculée Conception, de 1930:
mania aguda, paralisia geral, demência precoce, etc. Lido pelo autor na sessão que intitulámos de O Surrealismo e o Seu
Público em 1949, Casa do Alentejo, Lisboa, 6-5-49. Publicado em A Intervenção Surrealista, Lisboa: Editora Ulisseia, 1966.
Estados
Cerca de 1950. Texto por colagens. Idem.
O Automóvel Verde
Com Alexandre O’Neill, António Maria Lisboa, Pedro Oom e Mário de Sá-Carneiro invocado. Mesa pé-de-galo, 1950. Publi-
cado na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito.
Cadame
Com António Maria Lisboa. Hospital de S. Luís, Lisboa, 1953. Publicado em Poesia de António Maria Lisboa, Lisboa:
Assírio & Alvim, 1977.
Soneto
Com João Rodrigues, 1958. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa:
Quadrante, 1971.
Soneto 2
Com João Rodrigues, 1958.
Redondel do Alentejo
Com João Rodrigues, 1958. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa:
Quadrante, 1971.
O Lorinhão Escorreito
Com João Rodrigues, 1958-1959. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres,
Lisboa: Quadrante, 1971.
Vida de Kandinsky
Com Gonçalo Duarte e Ernesto Sampaio, 1960. Publicado na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, Lisboa: Guimarães
Editores, 1961.
Canção
(Paris, 1964, Publicado na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Natália Correia, edição Fernando Ribeiro de
Mello, Lisboa, Dez. 1966. Apreendida, e julgada em Tribunal Plenário como «ofensiva do pudor geral, da decência e da
moralidade pública e dos bons costumes» 4 anos depois. Embora «reconhecendo o mérito literário da obra» (com excepção
para os textos de Mário Cesariny, cujo mérito literário foi considerado nulo), os julgadores ordenaram a destruição dos
exemplares mandados roubar das livrarias, e condenaram:
Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello em 90 dias de prisão correccional, cada um, substituíveis por igual tempo de
multa a 50 escudos por dia e mais 15 dias de multa à mesma taxa; Mário Cesariny, em 45 dias de prisão correccional,
substituíveis por igual tempo de multa a 30 escudos por dia e mais 7 dias de multa à mesma taxa; José Carlos Ary dos Santos,
idem a 40 escudos diários; E. de Mello e Castro, idem, a 50 escudos diários; Campista Escritor, idem a 25 escudos diários.
Exceptuando Campista Escritor e Fernando Ribeiro de Mello, todos os mais tiveram penas suspensas por três anos.
O imposto de justiça e o de procuradoria foram arrecadados como segue: Natália Correia, Mello e Castro e Fernando Ribeiro
de Mello, 2000 escudos cada; Mário Cesariny e José Carlos Ary dos Santos, 1500 escudos idem; Campista Escritor, 880
escudos.
Dos jornais Diário de Notícias e Primeiro de Janeiro, de 22-3-1970)
Praeludium
Paris, 1964. Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1966.
Praeludium Penado
1979. Sobre fotocópia do original.
Papásca
1979. Versão definitiva, sobre fotocópia do original na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica.
Erik Satie
Londres, 1968.
Raúl Perez
Catálogo da exposição Dezasseis Imagens do Meu Diário Onírico, de Raúl Perez, Galeria S. Mamede, Lisboa, Out. 1972. «A
Princesa», «O Filósofo», «A Fortaleza Com Polvo A Jogar Ao Bilhar», etc., são títulos do pintor para os quadros expostos.
Peter Weiss
Tradução do início do Esboço para um Drama sobre a Divina Comédia, de Peter Weiss. Catálogo da Exposição de Edmundo
na Galeria Ottolini, Fev. 1974.
Asger Jorn
Tradução. Catálogo da mesma Exposição.
O Norte da Europa
I. Com António Dacosta, 1975. Publicado em versão inglesa de Miriam Rewald no catálogo da Exposição Surrealista
Mundial de Chicago, U.S.A., Maio de 1976.
II. Com António Dacosta e Graça Lobo, 1975.
III. Idem, ibidem.
Breyten Breytenbach
Jornal A Luta, 17-11-1975.
A Irmãzinha do Papa
Com Franklin Rosemont, Nancy Joyce Peters, Amparo Granell, Penélope Rosemont, Paul Garon, Roman Rao, Lawrence
Weisberg, Philip Lamantia, E.F. Granell, Graça Lobo. Chicago, Maio, 1976, inédito. Tradução de Mário Cesariny.
Sábado Meia-Lua
Tradução. Original inédito de Paul Garon, Jean-Jacques, Jack Dauben, Franklin Rosemont, Penélope Rosemont, Jocelyn
Koslofsky, Janine Rothwell, Brooke Rothwell, Ronald L. Papp. Chicago, 1975.
António Areal
Uma primeira versão publicada no Jornal Novo, 28-8-1978. Afixado ilustrado na Exposição de Mário Cesariny na Galeria
Tempo, Fev. 1979.
Segismundo
Catálogo da Exposição de Francisco Relógio na Galeria Tempo, Fev. 1979.
Antero
1979.
Natália Correia
1979.
Dádivas para…
Publicado em versão inglesa de M.S. Lourenço, em «Surrealism & Its Popular Accomplices», textos reunidos por Franklin
Rosemont na revista Cultural Correspondence, Providence, Rhode Island, U.S.A., 1979
O VIRGEM NEGRA
Alheio…
2 Alude a Seth e a Hórus, filhos de Ísis e Osíris.
20 Referência directa, parece, à «cantiga de maldizer» atribuída a Afonso Eanes de Coton, recolhida por Rodrigues Lapa e
actualizada por Natália Correia in «Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica»: Marinha, o teu folgar / tenho eu por
desacertado / e ando maravilhado / de te não ver rebentar; / pois tapo com esta minha / boca, a tua boca, Marinha; / e com
este nariz meu / tapo eu, Marinha, o teu; / com as mãos te tapo as orelhas, / os olhos e as sobrancelhas, / tapo-te ao primeiro
sono / com a minha piça o teu cono, / e como o não faz nenhum / com os colhões te tapo o cu. / E não rebentas, Marinha?
40 António Botto e Raul Leal.
O Mário Sacramento…
21 Segue, algo paradoxal, a nota titulada «Nota Supérflua»:
«Aos a quem sempre cansa a rima dobrada devemos consentir que tenham razão. Todavia, a aliteração reiterada num só verso
é usada na Europa nor-ocidental desde o século VIII pelos que desconheciam a rima mas usavam a quantidade, digo
qualidade de percussão do tambor, a cadência deste, acentuando por ecolalia forte os prefixos étimos de três vocábulos
constitutivos do mesmo verso.
«Se o poema aqui, como tantos outros na modernidade, pode ao ouvido ter e ao sentido cobrar o menos de uma arte do verso,
é também ou é mais porque se transferiu para sufixo cantabile a impulsão ctónica inicial.
«No (meu) poema, que começa: “Na sombra do Monte Abiegno…” deixo ouvir a cadência desse tambor.»
Introdução ao Volume
40 Para Thomas de Quincey, civilação é a pronúncia adequada ao vocábulo civilização depois de um bom jantar.
84 Arcaísmo.
Ela Canta…
1 O nome ceifeira traz no seu interior a imagem simbólica da morte. Sem razões para o suicídio, o poeta prefere o assassinato.
Não serve — não deve servir — a interpretação das propensões sexuais, ou meramente eróticas, do poeta, o que seria irrele-
vante no todo e no pormenor. Servirá antes para desvelar essa outra máscara — a mais incipiente — e levar ao seu sítio verda-
deiro: as antimonias-pseudo de que demasiadas vezes dá exemplo o discurso fernandino («Poder ser tu sendo eu»), («Penso,
logo não sinto») (Etc.). Já Oliveira Martins, no prefácio aos Sonetos de Antero, dá cabo desse jogo, hoje de uma piresa
(filosofância) devastadora, num poeta de tão alta estirpe.
[Dícen]
12 Esta incursão na língua de Cervantes em poema datado 8-11-1935 — antecedendo, pois, de apenas duas semanas a entrada
no Hospital de S. Luiz — pode indiciar um intento de fuga aos modos e aos mulas da Era Vitoriana que de Durban aos Praze-
res pesaram sobre o poeta como laje de túmulo. O «’Sforzar», com ser elisão habitual em Pessoa, gerida de esforçar, será pas-
sagem irónica pelo nome da família Sforza, do medievo italiano.
[Vem, vulva…]
50 Divindade sintoísta.
51 O mesmo, sob outro nome e noutra conjugação.
OUTROS POEMAS
A Estrela
Publicado em Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor, Lisboa, colecção A
Antologia em 1958. [N. do E.]
O Berlinde Berg
Publicado em Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor, Lisboa, colecção A
Antologia em 1958. [N. do E.]
Leve
Publicado em «Nicolau Cansado Escritor», «Os Poemas», Poesia (1944-1955), Lisboa, Delfos, 1961. [N. do E.]
Poema-Semáforo
Publicado em Planisfério e Outros Poemas, Lisboa: Guimarães Editores, 1961. [N. do E.]
Investigação Semântica
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]
Literatura Francesa
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]
Exposição
Sala 1 / Sala 2. 1967. O primeiro foi publicado no catálogo da exposição Mário Cesariny na Galeria Buchholz, Lisboa 1967, e
ambos em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]
Romance
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
O texto corresponde ao de «Estados», Primavera Autónoma das Estradas, p. 514. [N. do E.]
Conto
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
Faz parte de Titânia. [N. do E.]
Novela
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
O texto corresponde ao de «A Paisagem do Relógio Branco», Primavera Autónoma das Estradas, p. 512. [N. do E.]
Cabala Fonética
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
O texto corresponde ao de «Paranóia Fonética do Texto Anterior» em Primavera Autónoma das Estradas, p. 513. [N. do E.]
Informática
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]
[O Homem]
Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]
[Oferecei-vos]
Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]
[Do Amor]
Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]
Poema
Publicado em As Escadas não Têm Degraus, 3, Lisboa: Livros Cotovia, 1990. [N. do E.]
BIOGRAFIA
António Soares
1923
Nasce em Lisboa a 9 de Agosto.
1934-1944
Frequenta o Liceu Gil Vicente e a Escola António Arroio.
Estuda música com o compositor e musicólogo Fernando Lopes Graça.
A partir de 1942 produz as primeiras pinturas, desenhos e poemas.
Escreve A Poesia Civil e Burlescas, Teóricas e Sentimentais.
Mário Cesariny, António Domingues, Cruzeiro Seixas, Fernando de Azevedo, Fernando José Francisco, José Leonel Martins,
Júlio Pomar, Pedro Oom, Marcelino Vespeira, alunos da Escola António Arroio e alguns dos jovens artistas que
desencadeariam o movimento surrealista, reúnem-se em tertúlia de características dadá no Café Herminius, em Lisboa.
1945
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, e até 1946, adere ao neo-realismo e à actividade política correspondente.
Apresenta a conferência «A Arte em Crise» para os operários da Companhia União Fabril, no Barreiro. Publica artigos no
jornal A Tarde e nas revistas literárias Seara Nova e Aqui e Além.
Escreve os poemas do livro Nobilíssima Visão.
1946
Escreve o poema Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, despedida da teorética neo-realista.
Produz a primeira colagem surrealista, com fotografia do general De Gaulle.
1947
Viagem a Paris onde encontra os membros do grupo surrealista francês, André Breton, Victor Brauner e Henri Pastoureau.
Pinta O Operário e Homenagem a Victor Brauner e uma série de Figuras de Sopro e de Sismofiguras onde introduz técnicas
que lhe permitem explorar processos abstractos de carácter automático, como a escorrência e a dispersão de tintas.
Participa na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa do qual fazem parte Alexandre O’Neill, António Domingues, António
Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Marcelino Vespeira.
1948
Escreve poemas do Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano e de Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores
Propostos à Circulação pelo Autor.
Abandona o Grupo Surrealista de Lisboa. É formado o grupo Os Surrealistas composto por Mário Cesariny, António Maria
Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Cruzeiro Seixas, Fernando Alves dos Santos, Fernando José Francisco, Henrique Risques
Pereira, Pedro Oom.
1949
Texto cadáver-esquisito do manifesto colectivo A Afixação Proibida com António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira e
Pedro Oom.
Primeira sessão de «O Surrealismo e o seu público em 1949» no Jardim Universitário de Belas-Artes (Casa do Alentejo), em
Lisboa.
Primeira Exposição dos Surrealistas, em Lisboa, na Sala de Projecções da Pathé-Baby (18 de Junho a 2 de Julho).
1950
Publica o poema Corpo Visível (edição de autor).
II Exposição dos Surrealistas. Lisboa, Galeria de «A Bibliófila», 1 a 10 de Junho.
1951
Primeira exposição individual em casa de Herberto de Aguiar, no Porto.
Edita os panfletos Para Bem Esclarecer As Gentes Que Ainda Estão À Espera, Os Signatários Vêm Informar Que: com
Mário-Henrique Leiria e Do Capítulo da Probidade com António Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Cruzeiro Seixas,
Fernando Alves dos Santos, Henrique Risques Pereira e Mário-Henrique Leiria.
Visita o poeta Teixeira de Pascoaes que se tornará referência na sua obra, em S. João de Gatão.
1952
Publica Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (Ed. Contraponto) e escreve A Bruxa, o Papagaio e a Solteira.
Conhece José-Francisco Aranda e o casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes.
1953
Publica Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (Ed. Contaponto).
Edição do manifesto A Afixação Proibida (Ed. Contraponto).
Escreve Titânia, História Hermética em Três Religiões e Um Só Deus Verdadeiro, com Vistas a Mais Luz Como Goethe
Queria.
1956
Publica Manual de Prestidigitação (Ed. Contraponto).
Exposição de Capas-Poemas-Objectos para o livro A Verticalidade e a Chave de António Maria Lisboa. Lisboa, Livraria
António Maria Pereira, 3 a 15 de Dezembro.
1957
Publica Pena Capital (Ed. Contraponto).
1958
Iniciam-se as reuniões no Café Gelo, que prosseguirão até 1963, no âmbito das quais é publicada a colecção A Antologia em
1958 e que inclui Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores de Mário Cesariny.
Manifesto Autoridade e Liberdade São Uma e a Mesma Coisa (folheto editado pelo autor).
Pintura de Mário Cesariny Vasconcelos. Lisboa, Galeria Diário de Notícias, 11 a 17 de Abril.
1959
Publica Nobilíssima Visão (Guimarães Editores).
Pintura e Poesia. Porto, Galeria Divulgação, 2 a 10 de Maio.
1960
Traduz e prefacia Une Saison en Enfer de Jean-Arthur Rimbaud (Portugália Editora).
1961
Publica Poesia 1944-1955 (Editora Delfos), Planisfério e Outros Poemas (Guimarães Editores) e Antologia Surrealista do
Cadáver-Esquisito (Guimarães Editores).
Organiza os livros Poesia e Erro Próprio de António Maria Lisboa (Guimarães Editores).
1963
Organiza e publica a antologia SURREAL-ABJECCION(ismo) (Editorial Minotauro).
Mário Cesariny — Tábuas, Pinturas e Objectos. Lisboa, Galeria Carlos Bataglia, 10 a 24 de Dezembro.
1964-1965
Publica Um Auto para Jerusalém (Editorial Minotauro).
Estada em Paris, Lausana e em Londres como bolseiro da Fundação Gulbenkian.
1966
Publica o poema A Cidade Queimada com ilustrações de Cruzeiro Seixas (Editorial Ulisseia).
Publica A Intervenção Surrealista (Editorial Ulisseia).
1967
Na comemoração do 20.º aniversário do surrealismo em português, expõe na Galeria Buchholz, em Lisboa, onde lê versões
suas de textos e poemas de Luis Cernuda, Luis Buñuel, Octavio Paz, Francis Picabia, Arrabal, Henri Michaux, Hans Arp,
Kurt Schwitters, Raul Hausmann, Marcel Duchamp, André Breton, Benjamin Péret, John Cage.
Publica Do Surrealismo e da Pintura em 1967: Cruzeiro Seixas (Ed. Lux).
Pintura Surrealista, Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas. Porto, Galeria Divulgação, 12 a 21 de Junho.
XIII Exposição Internacional do Surrealismo. S. Paulo, Maio.
Salão de Verão. Lisboa, SNBA.
1969
Exposição Internacional Surrealista. Haia.
Cesariny. Lisboa, Galeria S. Mamede, Maio.
1970
Edita o panfleto Para Bem Esclarecer As Gentes Que Continuaram À Espera, Os Signatários Vêm Informar Que: com
Cruzeiro Seixas e Mário-Henrique Leiria. Organiza o catálogo da exposição de Vieira da Silva na Galeria S. Mamede.
Conhece Édouard Roditti.
Exposição Novos Sintomas na Pintura Portuguesa. Lisboa, Galeria Judite Dacruz, Junho.
1971
Organiza e edita, com Cruzeiro Seixas, o volume Reimpressos Cinco Textos de Surrealistas em Português e publica 19
Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres (Ed. Livraria Quadrante).
30 Pinturas de Mário Cesariny. Lisboa, Galeria de S. Mamede, Janeiro.
Algumas Obras de Pintura Contemporânea das Colecções da Secretaria de Estado da Informação e Turismo e da Fundação
Calouste Gulbenkian. Lisboa, Galeria de Exposições Temporárias da FCG, Julho/Agosto.
1972
Publica a recolha antológica Burlescas Teóricas e Sentimentais (Editorial Presença), As Mãos na Água a Cabeça no Mar (ed.
de autor) e a tradução portuguesa de Iluminações e de Uma Cerveja no Inferno de Jean-Arthur Rimbaud (Ed. Estúdios Cor).
Organiza e edita, com Cruzeiro Seixas, o caderno Aforismos de Teixeira de Pascoaes.
Organiza o volume antológico Poesia de Teixeira de Pascoaes (Ed. Estúdios Cor).
Os Lusíadas que fomos, Os Lusíadas que somos. Lisboa, Galeria Diário de Notícias.
Mário Cesariny. Porto, Galeria Alvarez, Março.
10 Artistas da Galeria S. Mamede. Lisboa, Galeria S. Mamede, Maio.
1973
11 Crucificações em Detalhe / 3 Afeições de Zaratustra/ Retrato de Jean Genet. Lisboa, Galeria S. Mamede, 15 de Fevereiro
a 10 de Março.
Pintura Portuguesa de Hoje — Abstractos e Neofigurativos. Barcelona, Palácio de la Virreina, Abril/Maio. Salamanca,
Universidade de Salamanca, Maio/Junho. Lisboa, SNBA, Julho.
Phases — Homenaje a César Moro. Lima, Casa Taller Delfin, Outubro/Novembro.
Phases. Lyon, Galerie Le Passe-Muraille, Novembro.
1974
Organiza e com Cruzeiro Seixas edita o caderno Contribuição ao Registo de Nascimento Existência e Extinção do Grupo
Surrealista de Lisboa no 50.º aniversário do Primeiro Manifesto do Surrealismo em França.
Publica Jornal do Gato (Ed. de Raúl Vitorino Rodrigues).
Traduz e prefacia Os Poemas de Luís Buñuel de José-Francisco Aranda (Ed. Arcádia). Prefacia Imagem Devolvida de Mário-
Henrique Leiria (Plátano Editora).
Organiza e integra a Exposição Maias Para o 25 de Abril. Lisboa, Galeria S. Mamede, Junho.
Expo AICA. Lisboa, SNBA.
Diálogo 74. Lisboa, Galeria S. Francisco, Junho.
Exposição do Movimento Phases. Bruxelas, Museu D’Ixelles, 9 de Outubro a 17 de Novembro.
1975
Inicia a publicação das folhas volantes Bureau Surrealista (1975-1988)
Figuração-Hoje?. Lisboa, SNBA, Janeiro.
O Cadáver Esquisito Sua Exaltação Seguida de Pinturas Colectivas. Lisboa, Galeria Ottolini, Fevereiro.
1976
Inicia a série de pinturas As Linhas de Água.
Segunda edição de Nobilíssima Visão (Guimarães Editores).
Visita Octavio Paz, no México, e Eugénio Granell, em Nova Iorque.
Organiza a representação portuguesa na Exposição World Surrealist Exhibition. Chicago, Galeria Black Swan.
1977
Pinta uma série de Cinco Memorizações do México e alguns trabalhos (pintura e elementos gráficos) sobre a geração do
Orpheu, à qual pertenceram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros.
Publicação de Titânia e A Cidade Queimada (Publicações Dom Quixote) e de Textos de Afirmação e de Combate do
Movimento Surrealista Mundial (1924-1976) (Ed. Perspectivas & Realidades). Segunda edição da tradução de Os Poemas de
Luís Buñuel de J.F. Aranda (Ed. Arcádia).
Organiza e prefacia o volume Poesia de António Maria Lisboa (Ed. Assírio & Alvim).
A Fotografia na Arte Moderna Portuguesa. Centro de Arte Contemporânea, Março/Abril.
1.ª Exposição «Phases» em Portugal. Estoril, Galeria da Junta de Turismo da Costa do Sol, Novembro.
Mário Cesariny, Exposição de Obras Inéditas (1947 a 1977). Lisboa, Galeria Tempo, Dezembro.
1978
Surrealism Unlimited 1968-1978. Londres, Camden Arts Centre, 17 de Janeiro a 5 de Março.
Surrealism in 1978 — 100th Anniversary of Hysteria. Cedarburg, Ouzaukee Art Center, 5 de Março a 9 de Abril.
A António Maria Lisboa 1928-1953. Estoril, Junta de Turismo da Costa do Sol, Maio.
Claridade Dada pelo Tempo — Homenagem a Mário-Henrique Leiria. Estoril, Junta de Turismo da Costa do Sol, Agosto.
1979
Prefacia e traduz Enquanto Houver Água na Água e Outros Poemas, de Breyten Breytenbach (Publicações Dom Quixote).
Cesariny. Lisboa, Galeria Tempo, Fevereiro de 1979, Porto, Galeria Alvarez-Dois, Março de 1979.
Presencia Viva de Wolfgang Paalen. Cidade do México, Instituto Nacional de Belas Artes, Julho.
Arte Moderna Portuguesa. Lisboa, SNBA, Setembro.
1980
Publica Primavera Autónoma das Estradas (Ed. Assírio & Alvim).
Fondo de Arte. Santa Cruz de Tenerife, Sala de Arte e Cultura La Laguna, 24 de Novembro a 10 de Dezembro, Sala de Arte e
Cultura Puerto de La Cruz, 12 de Dezembro a 24 de Dezembro.
1981
Publicação de Manual de Prestidigitação (Ed. Assírio & Alvim).
Organiza o catálogo e a exposição Três Poetas do Surrealismo — António Maria Lisboa, Pedro Oom e Mário-Henrique
Leiria, na Biblioteca Nacional.
Organiza um número da revista Mele — Carta Internacional de Poesia dedicado aos poetas surrealistas portugueses.
Papeles Invertidos. Santa Cruz de Tenerife, Aula Cultural — Caja Insular de Ahorros, 3 a 13 de Fevereiro.
Mário Cesariny. Lisboa, Galeria S. Mamede, Março.
Permanence du Regard Surréaliste. Lyon, Espace Lyonnais d’Art Contemporain, 30 de Junho a 22 de Setembro.
Antevisão do Centro de Arte Moderna. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Julho/Setembro.
Mário Cesariny. Viseu, Galeria 22, Dezembro.
1982
Tradução de Heliogabalo ou o Anarquista Coroado de Antonin Artaud (Ed. Assírio & Alvim).
Publicação de Pena Capital (Ed. Assírio & Alvim).
Mário Cesariny. Amarante, Museu Municipal, Janeiro.
Os Anos 40 na Arte Portuguesa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 30 de Março a 17 de Maio.
1983
Publica a antologia Horta de Literatura de Cordel (Ed. Assírio & Alvim) e o poema Sombra de Almagre, com serigrafia do
autor (Ed. de Isaac Holly).
Le Surréalisme Portugais. Montreal, Galerie UQAM, 16 de Setembro a 9 de Outubro.
Harvest of Evil — Group Surrealist Exhibition. Columbus, Ti Rojo Studio, 29 de Outubro a 12 de Novembro.
1984
Publica Vieira da Silva, Arpad Szenes ou o Castelo Surrealista (Ed. Assírio & Alvim).
Os Novos Primitivos: os grandes plásticos. Porto, Cooperativa Árvore, Janeiro.
Exposição Internacional: Surrealismo e Pintura Fantástica. Lisboa, Teatro Ibérico, Dezembro. SNBA, Janeiro de 1985.
1985
Reedição (aumentada) de As Mãos na Água a Cabeça no Mar (Ed. Assírio & Alvim).
Um Rosto para Fernando Pessoa. Lisboa, FCG/CAM, Julho.
Pintura Portuguesa: obras destinadas ao Museu de Arte Moderna do Porto. Lisboa, Galeria Almada Negreiros, 17 de
Setembro a 3 de Outubro.
1986
Traduz uma selecção de Fragmentos, de Novalis (Ed. Assírio & Alvim).
Colectiva de Pintura. Lisboa, Galeria Isaac Holly.
O Fantástico na Arte Contemporânea. Lisboa, FCG/CAM, Fevereiro/Março.
56 Artistas da António Arroio. Lisboa, SNBA, de 20 de Maio a 8 de Junho.
Mário Cesariny: 11 acrílicos comemorativos do nascimento da primeira linha de água. Lisboa, Livraria Assírio & Alvim,
Dezembro.
1987
III Bienal Nacional de Desenho. Porto, Cooperativa Árvore — Mercado Ferreira Borges, 4 a 27 de Julho.
Anos 40 a 60. Macau, Galeria do Leal Senado, 22 de Fevereiro a 4 de Março.
VIII Salão de Outono. Estoril, Galeria de Arte do Casino do Estoril, 13 de Novembro a 1 de Dezembro.
Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, 21 de Novembro a 20 de Dezembro.
III Exposição: Pintura, Desenho, Cerâmica. Constância, Galeria de Constância, 28 de Novembro a 19 de Dezembro.
1988
Reedição de A Cidade Queimada (Ed. Assírio & Alvim).
Exposição Internacional L’Experience Continue Phases 1952-1988. Le Havre, Museu de Belas Artes André Malraux.
A Galeria D’Arte de Vilamoura e a Colecção de Cruzeiro Seixas. Vilamoura, Galeria D’Arte de Vilamoura.
Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, Fevereiro.
O Mar-i-o Cesariny: o navio de espelhos. Lisboa, Galeria EMI-Valentim de Carvalho, Maio.
Exposição Phases 1952-1988. Le Havre, Museu de Belas Artes André Malraux, Maio.
Oitenta Anos de Arte Portuguesa. Lisboa, Galeria de São Bento, Maio/Junho.
14 + 1 Pintores Contemporâneos, Torres Novas, Galeria Neupergama, Junho.
IX Salão de Outono. Estoril, Galeria de Arte do Casino Estoril, 1988.
9 + 3 Pintores Contemporâneos. Torres Novas, Galeria Neupergama, Novembro/Dezembro.
Exposição Outono/88 — Inverno/89. Constância, Galeria de Constância, 8 de Dezembro a 15 de Janeiro de 1989.
1989
Publica O Virgem Negra (Ed. Assírio & Alvim).
Reedição da Antologia do Cadáver Esquisito (Ed. Assírio & Alvim).
15 + 3 Pintores Contemporâneos. Torres Novas, Galeria Neupergama.
Exposição Colectiva. Lisboa, Galeria Holly, 4 de Maio a 4 de Junho.
13 Pintores Portugueses. Torres Novas, Galeria Neupergama, Maio/Junho.
2.º Fórum de Arte Comtemporânea. Lisboa, Fórum Picoas, Junho.
Exposição de Pintura e Escultura do Património da Caixa Geral de Depósitos. Porto, Casa de Serralves, Julho/Agosto.
12 + 2 Pintores Portugueses. Torres Novas, Galeria Neupergama, 5 de Outubro a 7 de Novembro.
X Salão de Outono, Descobrimentos Portugueses. Estoril, Galeria de Arte do Casino Estoril, 18 de Novembro a 10 de
Dezembro.
1990
Colectiva de Pintura. Lisboa, Galeria Nartis, Maio.
Surrealismo E-Não-Só. Torres Novas, Galeria Neupergama, Outubro/Novembro.
20 Pintores no Décimo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 24 de Novembro a 15 de Janeiro de
1991.
1991
Reedição de Nobilíssima Visão (1945-1946) (Ed. Assírio & Alvim).
Cesariny: A Ilha Misteriosa. Costa da Caparica, Galeria Almadarte, de 22 de Junho a 28 de Julho.
Jardim do Tabaco: exposição de pintura e escultura. Lisboa, Pavilhão AB do Jardim do Tabaco.
3.ª Bienal de Arte dos Açores e Atlântico. Horta, Outubro/Novembro.
17 + 2 Pintores no Décimo Primeiro Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 14 de Dezembro a 20 de
Janeiro de 1992.
1992
17 Pintores no Décimo Segundo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama.
Automatismos. Las Palmas de Gran Canaria, Centro Atlántico de Arte Moderna, 11 de Fevereiro a 29 de Março.
Homenagem a D’Assumpção. Portalegre, Galeria Municipal de Portalegre, 7 a 17 de Outubro.
Exposicion Surrealista. Madrid, Estudio Ancora, 13 de Novembro a 11 de Dezembro.
Arte Portuguesa nos Anos 50. Beja, Biblioteca Municipal, Outubro/Novembro. Lisboa, SNBA, Janeiro/Fevereiro 1993.
1993
Verão 93 – 14 Pintores Portugueses. Torres Novas, Galeria Neupergama.
Mário Cesariny, 47 Anos de Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, 23 de Outubro a 5 de Dezembro.
18 Pintores Contemporâneos no 13. º Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, Dezembro a Janeiro de
1994.
1994
Reedição de Titânia História Hermética em Três Religiões e um Só Deus Verdadeiro com Vistas a Mais Luz como Goethe
Queria (Ed. Assírio & Alvim).
Phases — 87 images, 71 artistes, 23 pays de la planisphére. Galerias de Arte de Plemet Ploeuc / Lié et Quintin, 26 de Maio a
28 de Junho.
Primeira Exposição do Surrealismo ou Não. Lisboa, Galeria S. Mamede, Julho a Outubro.
Surrealismo (e não) — Obras da Colecção Doada pelo Eng. João Meireles. Vila Nova de Famalicão, Novembro.
Colecção Manuel de Brito: Imagens da Arte Portuguesa do Século XX. Lisboa, Museu do Chiado, 16 de Novembro a 31 de
Dezembro.
Vinte Pintores no Décimo Quarto Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 10 de Dezembro a 22 de
Janeiro de 1995.
1995
Publica Uma Combinação Perfeita (Edições Prates).
Mário Cesariny e Álvaro Lapa. Torres Novas, Galeria Neupergama, 18 de Fevereiro a 2 de Abril.
Plural. Torres Novas, Galeria Neupergama, 17 de Junho a 6 de Agosto.
Imargem 95. Almada, Câmara Municipal de Almada, Dezembro.
Vinte e Dois Artistas no Décimo Quinto Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 16 de Dezembro a 28 de
Janeiro de 1996.
1996
Reedição de Corpo Visível com 15 ilustrações, capa e retrato do autor por Pedro Oom (Edições Prates) e publicação de
António António (Ed. da Secretaria Regional da Educação e Cultura, Região Autónoma dos Açores). Segunda edição (revista
e aumentada) de O Virgem Negra (Ed. Assírio & Alvim). Reedição da tradução de Os Poemas de Luís Buñuel de J.F. Aranda.
Colecção Mário Soares. Lisboa, Museu do Chiado, 22 de Fevereiro a 21 de Abril.
António Areal, Mário Cesariny, Álvaro Lapa. Torres Novas, Galeria Neupergama, 30 de Março a 12 de Maio.
El Juego de los Espejos — Colección Fundación Eugenio Granell. Instituto Leonés de Cultura, Sala Província, 3 de Maio a
22 de Junho.
Associação Académica de S. Mamede — 50 Anos / 50 Artistas. S. Mamede de Infesta, Galeria Municipal Arménio Losa, 24
de Maio a 30 de Junho.
Pluralidades. Torres Novas, Galeria Neupergama, 1 de Junho a 28 de Julho.
Mário Cesariny: Regresso a 1947. Torres Novas, Galeria Neupergama, 5 de Outubro a 30 de Novembro.
Feira de Arte Contemporânea — FAC 96 / Fórum Atlântico de Arte Contemporânea — Fórum 96. Matosinhos, Exponor, de 5
a 10 de Dezembro.
Vinte Artistas no Décimo Sexto Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 7 de Dezembro a 25 de Janeiro
de 1997.
1997
Reedição de A Intervenção Surrealista (Ed. Assírio & Alvim).
4 Pintores Portugueses — Cesariny, Charrua, Álvaro Lapa, Julião Sarmento. Torres Novas, Galeria Neupergama, 15 de
Março a 27 de Abril.
Colecção José-Augusto França. Lisboa, Museu do Chiado, 20 de Março a 29 de Junho.
Gravura Moderna — Exposição Comemorativa do X Aniversário, Costa de Caparica, Almadarte Galeria, 10 de Maio a 17 de
Agosto.
A Arte, o Artista e o Outro. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda.
Vinte e Dois Artistas no Décimo Sétimo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 29 de Novembro a 18 de
Janeiro de 1998.
1998
23 Artistas Contemporâneos. Torres Novas, Galeria Neupergama, 10 de Junho a 19 de Julho.
O que há de Português na Arte Moderna Portuguesa. Lisboa, Palácio Foz, Junho/Setembro.
Mário Cesariny, Pintura Surrealista Monocromática e Outra. Torres Novas, Galeria Neupergama, 10 de Outubro a 6 de
Dezembro.
Dez Artistas no Décimo Oitavo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 12 de Dezembro a 7 de
Fevereiro de 1999.
1999
Segunda edição de Pena Capital (Ed. Assírio & Alvim).
Desenhos dos Surrealistas em Portugal 1940-1966. Porto, Museu Nacional de Soares dos Reis.
Natália: Arte e Poesia. Lisboa, Palácio Galveias. Porto, Fundação Eng. António de Almeida.
Linhas de Sombra. Lisboa, FCG/CAM, de 29 de Janeiro a 18 de Abril.
Surrealismo. Torres Novas, Galeria Neupergama, 27 de Março a 16 de Maio.
Doações Recentes. Lisboa, Museu do Chiado, 28 de Outubro a 15 de Novembro.
Agriculturas. Lisboa, Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos, 29 de Novembro a 7 de Dezembro.
Doze Artistas no Décimo Nono Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 4 de Dezembro a 30 de Janeiro
de 2000.
2000
Publica Tem Dor e Tem Puta (Ed. de Ernesto Martins) e traduz Hamlet, tragédia cómica por Luís Buñuel (Ed. Assírio &
Alvim).
Nova edição de A Cidade Queimada (Ed. Assírio & Alvim).
Caminha nos Caminhos do Surrealismo — Mário Cesariny: Uma Antologia. Caminha, Câmara Municipal de Caminha, 12 de
Maio a 12 de Junho.
Feira de Arte Contemporânea — FAC 2000. Lisboa, FIL — Parque das Nações, 23 a 28 de Novembro.
Dezasseis Artistas no Vigésimo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 2 de Dezembro a 21 de Janeiro
de 2001.
2001
Mário Cesariny, Enrique Carlón, J.F. Aranda. Torres Novas, Galeria Neupergama, 24 de Fevereiro a 22 de Abril.
Surrealismo em Portugal 1934-1952. Badajoz, Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, 16 de Março a
13 de Maio. Lisboa, Museu do Chiado, 24 de Maio a 23 de Setembro. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de
Miranda, 27 de Outubro a 31 de Dezembro.
Catorze Artistas no Vigésimo Primeiro Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 8 de Dezembro a 31 de
Janeiro de 2002.
2002
Recebe o «Grande Prémio EDP» de artes plásticas.
Versão portuguesa de História do Soldado em duas partes de C.F. Ramuz (Ed. Assírio & Alvim).
Surrealismo em Portugal 1934-1952. Círculo de Belas Artes, Madrid.
1940/1960 — Figuração e Abstracção nas Colecções do Museu do Chiado. Castelo Branco, Museu de Francisco Tavares
Proença Júnior.
Mário Cesariny — Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, 9 de Março a 5 de Maio.
Territórios Singulares na Colecção Berardo. Sintra, Museu de Arte Moderna, 26 de Outubro a 28 de Fevereiro de 2003.
Quinze Artistas no Vigésimo Segundo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 5 de Dezembro a 20 de
Fevereiro de 2003.
2003
Acervo 03. Lisboa, Perve Galeria, Junho.
O Surrealismo na Colecção Berardo. Tavira, Palácio da Galeria, 12 de Julho a 14 de Setembro.
Vigésimo Terceiro Aniversário — Quinze Artistas. Torres Novas, Galeria Neupergama, 6 de Dezembro a 31 de Janeiro de
2004.
Uma Colecção. Montijo, Galeria Municipal do Montijo, 6 de Dezembro a 7 de Fevereiro de 2004.
2004
Reedição de Jornal do Gato e de Horta de Literatura de Cordel (Ed. Assírio & Alvim). Terceira edição (aumentada) de Pena
Capital (Ed. Assírio & Alvim).
Da Convergência dos Rios / Exposição de Arte Contemporânea de Moçambique e Portugal. Lisboa, Perve Galeria, 21 de
Março a 24 de Abril.
O Surrealismo Abrangente — Colecção Particular de Cruzeiro Seixas. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de
Miranda, 24 de Abril a 30 de Maio.
Revisitar Obras do Anos 60-70-80-90. Torres Novas, Galeria Neupergama, 15 de Maio a 12 de Junho.
Acervo 03 / Razões de Existir. Lisboa, Perve Galeria, 7 de Novembro a 18 de Dezembro.
Mário Cesariny — Exposição Grande Prémio EDP 2002. Lisboa, Museu da Cidade, 2 de Dezembro a 13 de Fevereiro de
2005, Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda, 5 de Março de 2005 a 30 de Abril de 2005.
2005
Recebe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e o Prémio «Vida Literária» da Associação Portuguesa de Escritores.
Segunda edição (revista) de Manual de Prestidigitação (Ed. Assírio & Alvim).
O Surrealismo Abrangente — Colecção Particular de Cruzeiro Seixas. Lisboa, 11 de Janeiro a 12 de Fevereiro, Lagoa,
Convento de S. José, 1 de Julho a 8 de Setembro.
Iluminações. Torres Novas, Galeria Neupergama, Março/Abril.
Arte Lisboa 2005 — Feira de Arte Contemporânea. Lisboa, Feira Internacional de Lisboa, 24 a 28 de Novembro.
O Contrato Social. Lisboa, Museu Bordalo Pinheiro, 4 de Outubro a 8 de Janeiro de 2006.
Fernando Lemos e o Surrealismo. Sintra, Museu de Arte Moderna, 26 de Novembro a 30 de Abril de 2006.
5.º Aniversário da Perve Galeria. Lisboa, Convento do Beato, 8 de Dezembro a 14 de Janeiro de 2006.
2006
Morre em Lisboa a 26 de Novembro.
25 Anos da Galeria Neupergama. Torres Novas, Galeria Neupergama, Janeiro/Fevereiro.
II Exposição de Artes Plásticas — Arte na Planície. Montemor-o-Novo, 8 de Abril a 30 de Maio.
Feira de Arte do Estoril. Estoril, Centro de Congressos do Estoril, 14 a 18 de Abril.
20 Anos — 20 Nomes Portugueses. Porto, Galeria Nasoni, Abril/Maio.
Artistas na Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, Maio/Junho.
Mário Cesariny: Navío de Espejos. Madrid, Círculo de Belas Artes, de 20 de Setembro a 19 de Novembro.