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Poesia

Mário Cesariny

Publicado em Portugal por:


Assírio & Alvim (www.assirio.pt)

© Herdeiros de Mário Cesariny


© Porto Editora, 2017

Na capa: Mário Cesariny (sobre fotografia de Eduardo Tomé)

1.ª edição em papel: Novembro de 2017

Assírio & Alvim é uma chancela da


Porto Editora

ISBN 978-972-37-1992-5
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS, MÁRIO
(apresentação cordial)

O navio de espelhos
não navega, cavalga
[…]
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo.

Partindo do extraordinário e universalmente conhecido poema «You Are Welcome to


Elsinore», podíamos ter escolhido outro título para esta lembrança-homenagem vestida para a
ocasião de apresentação cordialíssima: PRANTO DOS EMPAREDADOS POR MÁRIO
CESARINY. A situação nossa e do mundo e de nós no mundo e do mundo em nós próprios o
justificariam suficientemente. Mas, como navegar é preciso e viver mais não é do que um
complemento circunstancial, preferimos a imagem de Mário na proa do Navio de Espelhos para
lembrar desde o cais algumas das características essenciais do Surrealismo e da intervenção
surrealista em Portugal e propor depois um itinerário pelos labirintos da pessoa, da personagem e
da obra literária e plástica de Mário Cesariny — um poeta luminoso, um mestre, um amigo
generoso, um homem livre. E aqui caberia ainda mais um título, com Álvaro de Campos no
coração e na cabeça: LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE MÁRIO CESARINY. Embora, diga-se
de passagem, eu pense que a Lisboa do Louvor… é mais a de Cesariny do que a de Álvaro de
Campos, ou então uma (con)fusão entre as duas.
Lembrança, louvor, homenagem: do Surrealismo, da Poesia, da Liberdade, do Desejo, do
Amor, da Imaginação — cinco maneiras de dizer Mário Cesariny, cinco pessoas e um só Mário
verdadeiro. (Con)celebração, convocatória e homenagem: celebração colectiva da figura e da
obra de Mário Cesariny, convocatória do próprio Cesariny (porque a palavra tem esse poder de
se fazer carne e sangue, como se diz no Evangelho de João), e homenagem a quem, desde a sua
ausência material, continua a ser presença viva no ser e no ver e no viver e no dizer de quem o
conheceu ou de quem desde a sua própria necessidade e paixão soube adivinhá-lo. E como de
evocar e convocar e de lembrar se trata, quero lembrar aqui o poema que Mário dedicou àquele
outro Mário (de Sá-Carneiro), e que, mudando a anedota da forma de suicídio, bem pode servir-
nos para entender e definir uma comum atitude perante a vida:
hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte


de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma


uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio

Viver é ser lembrado, diziam os que sonhavam a memória dos vindouros como arma para
vencer a morte. Depois da morte de Mário, lembrei muitas vezes o autor da Pena Capital para o
sentir perto de mim, de todos nós. Hoje relembro e lembro, escrevo e transcrevo e reescrevo,
volto a viver com Mário nas palavras que necessariamente falam também de mim. Não me é
nada fácil — disse eu algures, repito agora — falar de Mário Cesariny. Não se fala da luz: a luz
sente-se, sente-se sobretudo a sua ausência nas trevas. Encontrei Mário Cesariny numa das
estações da minha viagem pessoal e daí fiz já sempre com ele o meu caminho, embora numa
classe diferente (pode aplicar-se a Mário o que ele disse uma vez de Pessoa: que viajou sempre
em primeira classe; claro que a seguir acrescentava, em jeito de consolação, que isso das classes
só tinha interesse para os que não viajavam nunca). Falar de Mário é falar do Surrealismo, e falar
do Surrealismo é falar duma moral, duma ética e duma subsequente política, é falar, em termos
bretonianos, dum projecto de coincidente transformação do indivíduo interior e do indivíduo
exterior ou social, um projecto que ainda não foi, um projecto que continua a ser, que será
sempre. Em palavras do próprio Mário: «O Surrealismo continua a ser o último enunciado
verdadeiro dos problemas centrais do nosso tempo, para quem quer viver como um homem, e
não como um porco farto e satisfeito. Como filosofia, como poética, como busca da direcção
desconhecida, da divindade civil: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, deram lugar aos
mandamentos sagrados do Surrealismo: Liberdade, Amor, Conhecimento.»
Nos primeiros anos da década de 80 (do século passado) eu começava a perfilhar horizontes e
procurar afinidades electivas para fazer o meu particular caminho de perfeição. De olhos muito
abertos, febril na minha procura, e num estado de «disponibilidade absoluta» como tinha
aprendido do mestre André Breton, essa minha procura havia de propiciar «necessariamente»
(segundo as teorias sem sistema do acaso objectivo) a minha descoberta dos surrealistas
portugueses — não propriamente descoberta, mas sim festa sucessiva de encontros e
reconhecimentos. Daqueles meus companheiros surrealistas portugueses de navegação à procura
da nossa ilha de São Brandão, alguns já desapareceram (ou embarcaram num outro Argos para
sempre) como António Domingues, Carlos Eurico da Costa, Risques Pereira, Vespeira, Ernesto
Sampaio ou Carlos Calvet (junto com outros pilotos de altura como Al Berto, Hermínio
Monteiro ou Ana Hatherly), enquanto alguns continuam felizmente vivos, no sentido pleno e
activo do verbo «viver», e não no mais frequente de deixar-se viver ou ser vivido. Num mês de
Novembro — o de 2006 — embarcou também para a sua viagem definitiva um dos meus
(nossos) argonautas maiores, de seu nome Mário Cesariny (pelo menos até encontrar, ele e todos
nós, o nome puro, verdadeiro e terrível naquela «idade em que serão esquecidos por completo /
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas»). No meu caso, foi primeiro o «autor», o
«artista», o «poeta» Mário Cesariny de Vasconcelos encontrado nos livros e nas falas de amigos
já transformados pela sua magia. Depois, o Mário Cesariny procurado em Lisboa-Os-Sustos e
encontrado no seu santuário de Delfos particular da rua Basílio Teles (da editora Delfos era,
aliás, o primeiro livro que comprei de Mário Cesariny, a antologia Poesia 1944-1955, de 1961).
Aí apareceu-me já, numa só pessoa, o mago e o amigo, a palavra oracular e o abraço fraterno. E
assim Mário Cesariny (ou Cesariny-Rossi, como ele gostava de aparecer nalgumas das nossas
últimas tardes cesarioverdianas, na hora do lusco-fusco), passou a ser simplesmente,
definitivamente Mário, o gato marujo em permanente metamorfose e cio, o menina-poesia de
cabelos-de-medusa (assim chamava ele a Olga Gonçalves) e olhar e sorriso breve azul-
relâmpago e duro e cheio de ternura, o jovem mágico e o velho da montanha, o grande sábio que
conhecia o segredo rimbaldiano de dizer num verso ou num leve aforismo iluminado os mil
rostos e atitudes e gestos de cada instante de realidade, duma realidade que ele constantemente
«reabilitava» só com a sua presença (embora ele sempre negasse a possibilidade dessa
reabilitação), o capitão do navio de espelhos com um porto e um cais e um abraço em cada
coração. Dele, de Mário, e desde ele e com ele doutros muitos amigos (às vezes instalados na
distância e na ordem da memória afectiva, como Cruzeiro Seixas), aprendi o que ele aprendeu (o
que eles aprenderam) dos mestres da «única real tradição viva»: que a beleza é sempre convulsão
que nos desloca para cima, no sentido dos deuses; que a poesia, para ser, deve ser sempre uma
verdade prática; que devemos aprender a tirar as mãos dos olhos se queremos ver a bela
adormecida na floresta; que para isso temos de (re)conquistar o «olhar selvagem» da criança, do
forasteiro, do bêbedo, do louco, do namorado, do poeta; que a poesia é a nossa mais verdadeira e
profunda via de conhecimento e que desse conhecimento advém o único saber positivo e possível
sobre as coisas que verdadeiramente (nos) importam; que o verbo na sua força dinâmica cria o
que nomeia, convoca o que evoca e dá realidade ao real; que só a imaginação transforma e
transtorna; e que só ela é capaz de nos descobrir a realidade poética por trás da realidade real;
que o humor é também uma força (auxiliar) revolucionária, em aliança de iguais com o amor e as
suas muitas variantes, do amour fou à amizade ou ao simples olhar de cumplicidade e de desejo
trocado num bar ou num comboio ou numa rua qualquer; que a tudo isso podemos chamar-lhe
«Surrealismo» ou dar-lhe um outro nome, mas que, chamado assim, devemos acrescentar que
esse Surrealismo nada tem a ver com maluquices ou brincadeiras ou bizarros desvarios, mas sim
com uma poética e uma estética e umas práticas literárias e artísticas (de que foi mestre inventor
e guia Mário Cesariny), e sobretudo com um projecto de transformação individual (moral) e
social (ética e política) que hoje parece necessário e urgente lembrar e assumir e por ele voltar à
rua para gritar que o rei vai nu e que precisamos de novos alfaiates (no que Mário Cesariny tem
sido exemplo e às vezes vítima — propiciatória ou não).
Falo do «meu» Cesariny. Se quiser falar nele visto de muito longe, desde a maneira
enciclopédica e pedagógica de arrumar o mundo a que nos têm acostumado, poderia dizer, por
exemplo, do Mário Cesariny (ou Cesariny, vírgula, Mário, para ser mais exacto):
Figura fundamental na história da intervenção surrealista em Portugal na altura em que essa
aventura nos aparece sob a forma dum «movimento (mais ou menos) organizado» — 1947/1953
e 1958/1963. Cesariny prosseguiria individualmente, como haviam de fazer alguns outros dos
seus companheiros sobreviventes, a aventura surrealista através duma actividade inesgotável e
multiplamente orientada. Dedicou-se à pintura, primeiro em paralelo com a escrita e, a partir
duma certa altura, de forma quase exclusiva — exactamente desde o momento em que decidiu
abandonar a poesia «cansado de invocar o santo, sem que o santo aparecesse». «Escrevo desde
1942. A febre durou doze anos. […] No fundo escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever
poesia é uma espécie de invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo,
sobretudo se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais. […] A pintura parece não bulir tanto
connosco. É imagem à mesma mas parece exterior. É um trabalho de mediação em que parece
não se estar implicado. Na poesia, na escrita, estão todas as nossas vísceras.»
Colaborador habitual de diários e revistas, publicou várias séries de panfletos em fotocópias
numeradas e assinadas, fez exposições da sua obra plástica em numerosas ocasiões, de maneira
individual, e participou também em muitas exposições colectivas, desenvolvendo até à sua morte
uma frenética actividade de transformação e reabilitação ou redenção do real quotidiano de que
foram nascendo dia a dia colagens, objectos e outras fantasias materiais.
Da sua extensa obra literária, destaca o seu trabalho de antólogo, recopilador e, apesar dos
seus (fundamentados) paradoxos anti-historicistas, historiador (polémico e quase exclusivo, o
primeiro talvez por causa do segundo) das actividades surrealistas em Portugal, sendo por outra
parte a sua obra poética uma das mais ricas e complexas aportações para a história da poesia
portuguesa contemporânea. Poesia primeiro de intervenção contra as poéticas dominantes no
Portugal dos 40 (presencismo residual, neo-realismo, panlirismo ecléctico) desde a trincheira da
paródia e do pastiche sarcástico, poesia do falhado intento de reabilitação do real quotidiano
(exemplar, nesse aspecto, a sua utilização de Álvaro de Campos como interlocutor privilegiado e
cúmplice ao mesmo tempo homenageado e «simplificado» para a ocasião), poesia depois e
sobretudo do amour fou desejado, vivido ou malvivido, abandonado ou traído, olimpicamente
cantado ou lembrado e recriado elegiacamente. Reabilitação do homem exterior, libertação do
homem interior: eis o papel, o sentido exacto e fundamental da Poesia. Numa entrevista
lembravam-lhe que alguém tinha escrito que «a sua poesia é um grito que conhece a sua própria
inutilidade», e ele respondia assim: «Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito,
não grita. A poesia que escrevi é uma coisa que me foi e ainda é útil. Se o é para os outros não
sei. A questão da inutilidade não se põe. Já Valéry dizia que o poema é o acto de criar, é a
criação de um espaço. É um exercício de libertação em que muito daquilo que nos ensinaram não
serve para nada, antes pelo contrário… Poesia que, aliás, é sinónimo de Surrealismo: Não vamos
dizer surrealismo. Vamos dizer poesia. Porque surrealismo é o que existe de mais parecido com
a poesia. Tudo o que nasce como revolta é um tormento. O surrealismo foi um convite à poesia,
ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o
futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai
desaparecer, ficou explícito. Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre...»
Podemos jogar a situar a personagem na paisagem da Lisboa e do Portugal onde «em tempos
que já lá vão» (felizmente) começava a aventura do tormento e da revolta, e para isso pode
ajudar-nos também a própria formulação lírica do Poeta:

no país no país no país onde os homens


são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país


onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país


onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma — ora aí está —
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)

diz que grandeza de alma. Honestos porque.


Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

Ainda não se tinha inventado o «abjeccionismo» como específica tendência literária, mas o
ambiente e alguns dos seus efeitos começavam já a apontar nessa direcção. «Que pode fazer um
homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?», perguntava Pedro Oom.
Nessa atmosfera, o objectivo para Cesariny, para muitos, era claro: reabilitar profunda e
urgentemente a realidade quotidiana. Objectivo possível ou impossível? Para demonstrar a
impossibilidade (trágica) dessa reabilitação, Cesariny dialoga com Pessoa desde Louvor e
Simplificação de Álvaro de Campos, ponto de intersecção e de ruptura e de fugida para outros
horizontes literários e (também, necessariamente) morais e políticos. Não se tratava de uma
deserção, mas sim duma necessidade interior de «abrir portas ao campo», como pedia Octavio
Paz. A chave — a clé des champs — encontrou-a (encontraram-na alguns) no Surrealismo
através dos textos então reeditados e divulgados de Breton e dos seus fiéis ou infiéis
companheiros e amigos. Claro que melhor que «neles encontraram» deveria ter dito que neles
«se encontraram» ou, se calhar, que neles viram adequadamente formuladas algumas das suas
maiores interrogações e respondidas algumas das suas perguntas e perplexidades. Estamos a falar
de finais dos quarenta, momento em que acontece em Portugal o milagre daquilo a que com
justiça e com rotundidade chamou Cesariny «a intervenção surrealista», intervenção fugaz mas
explosiva, iluminadora. E nessa luz e desde essa luz e dando força a essa luz iremos encontrando
já a poesia «maior» de Mário Cesariny, bebendo nas crescentes da tradição popular ou
aproveitando a lição dos poetas «experimentais» do barroco português e espanhol, utilizando
com mestria as diversas «técnicas» (?) — o humor (negro ou objectivo), os jogos (entre eles, o
cadáver-esquisito), os inventários, o automatismo, a colagem e o picto-poema — aproveitadas
pelos surrealistas para desarticular (e rearticular depois satisfatoriamente) o mundo (a sua
aparência diurna a sua oculta nocturnidade, o fenomenológico e a sua apropriação pela
consciência), para impor desde o poema e pelo poder da palavra poética o «princípio do prazer»
sobre o «princípio de realidade» (aqui a sombra de Freud), para «dizer» o mundo na sua mais
difícil e terrível e divina leitura, aquela em que, e pela qual, pode dialecticamente chegar-se à
síntese definitiva de (todos) os contrários. E «dizer» acabaria por se transformar em «dever», em
tarefa difícil (prometeica) porque «entre nós e as palavras há metal fundente» e porque, todavia,
entre nós e as palavras interpõe-se «o nosso dever falar», como explica o poema talvez mais
conhecido de Mário Cesariny, «You Are Welcome to Elsinore», que nos serviu para iniciar esta
evocação:

Entre nós e as palavras há metal fundente


entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte % violar-nos % tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas % portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos


há palavras de vida % há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras e nocturnas palavras gemidos


palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados


e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

O título do poema remete para o Hamlet de Shakespeare, quando no Acto II, cena II, Hamlet
dá as boas-vindas ao castelo de Elsinore aos velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern,
convocados pelo Rei sob o pretexto da «loucura» do Príncipe e destinados a ser os seus carrascos
(sem eles o saberem) para serem afinal (sem eles suspeitarem) as suas vítimas. Convém que nos
detenhamos justamente no título e no que evoca e convoca e significa. Quando se fala no
Surrealismo português, na sua breve e polémica e decisiva intervenção (alguns, com
indissimulada satisfação, já falaram em «fracasso»), e quando se pretende caracterizar essa
aventura e a sua produção em relação sobretudo às suas relações com o Surrealismo francês (e
aqui, outra vez, a satisfação dos que apontam o Surrealismo português como tardio, querendo
dizer imitativo ou repetitivo, pobre e não original), sempre se tem referido a circunstância
política em que essa aventura surrealista teve de se desenvolver e como essa circunstância teria
sido a responsável tanto do tal «fracasso» como duma orientação mais ou menos original: o
«abjeccionismo», para alguns (que não eu, como já disse algures) um surrealismo
«especificamente português» ou, pelo menos, o mais específico do Surrealismo português. A
referida obra do dramaturgo inglês foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente
a miséria da «prisão» do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente
nomeado por O’Neill — No Reino da Dinamarca (no diálogo entre Hamlet e os seus
amigos/convidados, o príncipe dirá a uma dada altura da conversa que «Dinamarca é uma
prisão»). Dinamarca é assim o Portugal onde o Surrealismo português quis materializar o seu
sonho de Liberdade, Desejo, Amor e Poesia, e Elsinore a Lisboa que foi o seu território
acoutado, a cidade amada/abominada por O’Neill e contraposta a um Paris «onde o amor
encontra os seus caminhos» (o Paris de Nadja, por exemplo), a cidade de Palagüin de Carlos
Eurico da Costa ou, enfim, a cidade do poema «Crónica» de Fernando Lemos.

***

Perdida a confiança no poder convocador da palavra poética, e temeroso do seu poder


magnético que a pode transformar em prisão e tormento, mantém-se no Poeta aquela necessidade
e aquela vontade de «falar» que advém dum íntimo imperativo moral e ético. E para não se calar,
refugia-se nas práticas de procura, descoberta e transformação poética dos objets trouvés e,
sobretudo, na linguagem da poesia plástica que desde sempre tinha partilhado a sua especial
maneira de traduzir a vida e de contar o mundo à sua volta. Não é do meu (pouco) saber o mundo
da pintura e do desenho, mas tenho um bom mestre — João Pinharanda — para resumir, nas suas
palavras, alguns aspectos que convém salientar do Mário-pintor no processo de reivindicação da
importância da sua obra plástica no contexto nacional e internacional. O primeiro, a atitude de
permanente ruptura que desde as primeiras obras viria a marcar o percurso artístico do autor; o
segundo, a confirmação da sua obra como «lugar de contrários: informe e figura, abjecção e
lirismo», contrários que se orientam para uma síntese final como convém à maneira dialéctica de
entender o mundo e à procura de absoluto não só no ver, como também no pensar, no sentir e no
dizer esse mundo que são marcas essenciais da vida e das obras dos que, como os surrealistas, se
filiam na melhor tradição romântica; finalmente, o terceiro, e sempre nessa linha de superação
dos contrários, a conjunção na sua obra da poesia, da plástica e da reflexão sobre o «ofício» e o
estatuto do Poeta, bem como sobre o sentido do fruto do seu trabalho, e, desde essa trindade, o
seu diálogo com outros argonautas da Modernidade que acaba por fazer da ruptura uma espécie
nova e diferente de continuidade. Em conclusão:

«O que Cesariny procura nas suas reflexões escritas na sua prática poética e na sua prática
plástica é um conjunto de valores capazes de integrarem um sistema explicativo da vertente da
sensibilidade nacional que lhe interessa. Tais valores, protagonizados por autores e obras
díspares, possibilitam-lhe o entendimento do nosso modernismo literário e artístico
(notoriamente Mário de Sá-Carneiro e Amadeo de Souza-Cardoso) em ligação ao simbolismo
que o precedeu (notoriamente Camilo Pessanha) ou que para além dele se prolongou
(evidentemente em Teixeira de Pascoaes) e ao lirismo (exacerbando a dimensão onírica de
Vieira) e estabelecem uma continuidade onde Cesariny procurou, à semelhança dos modelos
internacionais que também evoca (ingleses e franceses) enraizar e expandir o surrealismo
português. Esta é, finalmente, a ruptura que afirmamos poder associar à acção de Cesariny: o
modo como precede, aceita e promove a fusão das componentes atrás enunciadas num alargado
campo de influência e intervenção do surrealismo.»

Há uma década já que o navio-mário largou o cais para se aventurar no nevoeiro à procura do
mistério da pirâmide, depois de ter bebido das águas daquele lugar tenebroso e cantante onde se
juntam todas as nascentes. Mário foi, antes de mais, um homem livre e luminoso que cada dia
inaugurava o dia na noite da caverna e que soube encontrar mil tempos novos para o verbo amar.
Quero acabar este itinerário afectivo com outro poema de Mário, o «Exercício Espiritual», mas
desta vez «intervencionado» desde o amor, a saudade e o agradecimento pela sua luz que, como
dizia Pascoaes, é «hoje cada vez mais luz», talvez porque «as trevas são cada vez mais negras».

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia


é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer Mário em vez de dizer Surrealismo


É preciso dizer Mário em vez de dizer Amor
É preciso dizer Mário em vez de dizer Liberdade
É preciso dizer Mário em vez de dizer Poesia
É preciso dizer Mário em vez de dizer Aurora

Tenho dito.

Perfecto E. Cuadrado
ESTA EDIÇÃO
(ou seja, mais um aviso a tempo por causa do tempo)

A edição que aqui se apresenta da POESIA de Mário Cesariny não leva acrescentados
adjectivos frequentes em edições parecidas, como COMPLETA ou CRÍTICA. Não é uma edição
crítica — mas sim simplesmente anotada — porque o editor não tem a suficiente ciência nas
artes académicas da ecdótica e porque lidar com a obra de Mário Cesariny equivale a penetrar e a
se perder num labirinto de danças e mudanças de palavras, versos, fragmentos, poemas e até
livros inteiros (leia-se atentamente o magnífico trabalho da Professora Maria de Fátima Marinho,
O Surrealismo em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987) que, mesmo
encontrando afinal uma porta de saída, acabariam por fazer da edição um livro quase ilegível. E
não é uma edição da poesia completa porque ficaram deliberadamente fora deste livro muitos
poemas filhos da fusão da palavra e da imagem como alguns picto-poemas, poemas-colagem e
livros que ficaram muito próximos do que Alexandre O’Neill chamou «novela em imagens», e
porque outros poemas irão aparecendo aqui e acolá na rota do navio de espelhos.

A lista das sucessivas edições da poesia cesarinyana poderia parecer-se muito a esta:

Corpo Visível, poema. Ed. do autor, 1950. Nova ed.: Corpo Visível. 15 ilustrações, capa e retrato do autor por Pedro Oom.
Lisboa: Edições Prates, 1996. Ed. fac-similada, com um hors-texte que reproduz a intervenção de Cruzeiro Seixas no seu
exemplar dedicado da 1.ª ed. do livro. Vila Nova de Famalicão/Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Assírio & Alvim,
2010.
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, poemas. Lisboa: Contraponto, s.d. [1952].
Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos. 1.ª ed., 1953; 2.ª ed., s.d. [1953]. Ed. fac-similada incluindo as duas edições: Vila
Nova de Famalicão/Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Assírio & Alvim, 2008.
Manual de Prestidigitação. Lisboa: Contraponto, 1956. Nova ed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 1981. 2.ª ed. revista: Lisboa: Assírio
& Alvim, 2005. Reed.: Lisboa: Assírio & Alvim [col. Biblioteca Editores Independentes], 2008. Reed.: Lisboa: Assírio &
Alvim, 2017.
Pena Capital. Lisboa: Contraponto, s.d. [1957]. Nova ed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. Reeds.: 2.ª ed., Lisboa: Assírio &
Alvim, 1999. 3.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor, poemas. ed. do autor, 1958. Nova ed., com
frontispício de Cruzeiro Seixas. Lisboa: A Antologia em 1958, s.d.
Nobilíssima Visão, poemas. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. 2.ª ed.: Lisboa: Guimarães Editores, 1976. Nova ed.: Nobilíssima
Visão (1945-1946). Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
Planisfério e Outros Poemas. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
Poesia 1944-1955. Lisboa: Delfos, 1961. Com um desenho à pena de João Rodrigues. Inclui: A Poesia Civil. Discurso sobre a
Reabilitação do Real Quotidiano. Pena Capital. Manual de Prestidigitação. Estado Segundo. Alguns Mitos Maiores Alguns
Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor.
Burlescas, Teóricas e Sentimentais (antologia de poemas). Lisboa, Editorial Presença, 1972.
19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres. Lisboa, Livraria Quadrante, s.d. (1972).
Primavera Autónoma das Estradas. Lisboa, Assírio & Alvim, 1980. Reed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 2017.
Sombra de Almagre. [Lisboa: Edição de Isaac Holly], 1983 [Com serigrafia assinada e numerada pelo Autor].
A Cidade Queimada, poema. Com ilustrações de Cruzeiro Seixas. Lisboa: Ed. Ulisseia, 1966. Nova ed.: Titânia e a Cidade
Queimada. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. Nova ed.: A Cidade Queimada, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988. Reed.:
Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V. Who Knows Enough About It
seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo mesmo no mesmo lugar. Com 2 Cartas de Raul Leal (Henoch)
ao Heterónimo; e a Gravura da Universidade. Escrito & Compilado de Jun. 1987 a Set. 1988. Lisboa: Assírio & Alvim,
1989. Reed.: Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.
Uma Grande Razão. Os Poemas Maiores. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007 [antologia].

Alguns livros de «Novela em imagens»:

Uma Combinação Perfeita. Lisboa: Edições Prates, 1995.


António António. Região Autónoma dos Açores: Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direcção Regional dos Assuntos
Culturais, 1996.
Tem Dor e Tem Puta. Póvoa de Varzim: Edição de Ernesto Martins, 2000.
Fora d’Horas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

Inicialmente tentámos — o editor responsável e os colaboradores da Assírio & Alvim — uma


possível arrumação da poesia seguindo a ordem cronológica das publicações, mas, depois de ter
trabalhado muito e de muitas considerações sobre o modelo de edição, eu, como editor, decidi
publicar a poesia seguindo a ordem de publicação dos livros na Assírio & Alvim, ordem essa e
arrumação de livros e poemas que foi revista e autorizada definitivamente pelo Autor. Tirei
alguns textos — como Um Auto para Jerusalém ou «A Norma de Bellini», por exemplo — para
serem integrados posteriormente num volume de teatro, poemas dramáticos, um guião
cinematográfico… e a inclassificável Titânia, bem como os picto-poemas não incluídos pelo
Autor e os livros-colagem, que passarão a um volume específico. Acrescentámos aos livros
editados, um apartado para OUTROS POEMAS, integrado por poemas retirados dos livros pelo
Autor. Finalmente, tirámos também a esta edição os dois textos que começam «Para bem
esclarecer as gentes…», manifestos escritos em colaboração, o primeiro com Mário-Henrique
Leiria, e o segundo com Mário-Henrique Leiria e Cruzeiro Seixas, textos que passariam também
a um volume geral de textos de intervenção individuais e colectivos.
Quanto às notas finais, todas as que não aparecem como responsabilidade do editor [N. do
E.], foram incorporadas pelo próprio Mário Cesariny às edições que chamámos definitivas.
MANUAL
DE PRESTIDIGITAÇÃO
BURLESCAS TEÓRICAS
E SENTIMENTAIS
ROMANCE DA PRAIA DE MOLEDO

Canto da hora do banho

ó mar contente, tão frio


que o verde das ondas é neve
fazes meu corpo tão leve,
no ar, vazio!
meus seios, cabelos, tudo é brando!
na mão do mar talhado cerce
vou, como se a um velho comando
desobedecesse!

e raia de leve um sol macio


que ainda não amadurou
frio
de manhã forte e silente
as minhas mãos nem são de gente
são formas de água, de neve
sobre o maillot
Arte poética

a) O metro

creio em deus pá’


um dois três quá
tod’ poderô’
um dois dois três
cridor do céu e da té’
sete sete oito
e em jesus cris’
nove dez on’
nosso senhor
ze doze trê’
o qual está sentá’
quatorze quinze
à mão direi’
zasseis zassete
de deus pàd’tôd’poderô’
um dois três um dois três um quatro quatro

b) O mesmo

avé mari’
um dois dois três
cheia de grá’
um dois três quá
o senhor é convosc
dominus vobisc
bendita sois vós
espírito tu
entre as mulheres
nove dez on’
bendito é o fruto
zasseis zassete
do vosso ventre jesus
um dois três um dois três um quatro quá’

c) A rima

mar
ar

(engordar)

ver
chamar

(ter para crer)

(emagrecer)

cio
clio
macio mio

o
tutu
nu
JORNAL

Da janela à rua. Feliz dia.


À serra da Estrela: um nevão.
Vinte defuntos na Turquia.

Memórias do grande homem, no verão


A FONTE

na mudez do pinhal
a fonte
sempre tem
um murmúrio casual
de vigiar quem passa
que vem
de ver o mar, tão servo
do sol, ave de fogo no horizonte
NO CAIS

no cais
vaga uma luz
sombria
desde que o dia
se perdeu
uns dizem que é a noite
a noite e nada
outros não sabem que dizer
e dormem e sonham e desmentem
o sonho que dormiram
a minha alma, calada,
também não diz quem é
a alma dessa sombra
que talvez seja só
luz do anoitecer
e deixa-se prender
em movimento de água
fluir e refluir
que a maré tem
com velha indiferença
e no entanto
ela é como que a mãe
de coisas e seres
porque a todos molha
e vem
indistinta corrente
a quem
pouco importa ter alma ou ser gente
a luz do dia
não sai já, também,
emersa na água escura
múrmura, oleosa, ela
que o céu tem?
não é já sem vida
toda a abstracção
ou pensamento
que a quisesse guardar?
só o fluxo contínuo
do rio que sustém
as inflexões do vento
busca o mar
e encontra-o
num mudo entendimento
alheio
à graça desavinda de falar
não seja embora
essa casta harmonia
uma harmonia humana
nem o resto de água
saiba
que a morta luz do cais
é indicação vaga
de outra luz que raiou
e de outra hora.
ALCATRÃO

mais primaveras que treze não tem


mas eu far-lhe-ia, por bem,
um bom cumprimento rural
e, pois que é campo, todo em pastoral:

olá puxavante de cabelos louros


que com tua gola azul-poeta
matas o estio na bicicleta
que tem mais raiar que o rei d’ouros!
ODE DOMÉSTICA

tudo no teu sorriso diz


que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse


ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor

eu
vou pensando em coisas velhas
— sem sombra de desdém! —
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado

e declina, o dia

o pequeno pastor já não vem


CORNETA

ao cinema da terra
vai jean-claude e eu
a ver:
rotos de tule
as senhoritas guerra
o anjo azul
e
foi uma mulher que o perdeu
O JOGO

longe dos jogos civilizados


livres da hora da mãe e da filha
jogamos fumo para uma bilha
jogamos o poker o king a vrilha
jogamos tudo como danados

até que ísis-a-louca apareça


cansada de tanto esperar
que a noite tenha fim ou pressa

ou que, junto à cama do mar


joguemos de principiar
os jogos de Diana correça
HISTÓRIA DE CÃO

eu tinha um velho tormento


eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros


os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada


havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou


fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia


e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar


da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo


azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história


sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada


NA FOZ DO RIO MINHO

Com as mãos na água fria era melhor.


Tu largavas a vela e o mar cobrava
De ondas mansas a barca sem motor.

Eu tinha o medo que a alegria dava


Ao teu quase francês e ao meu espanhol
Que a nenhuma das línguas namorava.

O monte Santa Tecla e em baixo o Forte,


Eremita mirando as laranjeiras
Das abras Norte e Sul e Sul e Norte.

Tu sol a pino eu senhor do croque


Que com um seco raspar de unha
Batia as margens sóbrias da Corunha.
POLÍPTIKA DE MARIA KLOPHAS
DITA MÃE DOS HOMENS

Antes do começo da audição pode discar-se, forte, As Corças, de Francis Poulenc.


Orquestra (*) — Afinação de instrumentos, como antes do início de um concerto. Silêncio.

Voz — Envio

Piano — Contínuo para a mão direita das notas de dó a sol, ascendente e descendente, sem
pedal, nos médios do piano. Andante, forte, mecânico, quatro vezes.

Voz Àquela
que em vida
foi desapossada
foi morta
descida
crucificada
e ao terceiro dia
não foi nada

Piano — Duplo acorde de dó maior com as mãos em grave e agudo, forte, seco, sem pedal.

Voz — Composição

Piano — Quinta lição da primeira parte do Novo Método de Piano, de Schmoll. À disparada. A
Voz entra logo a seguir ao ataque do Piano.

Voz Um tempo havia


muito feliz
em que eu pedia
ao céu raiz

a terra era
pensava eu
sala de espera
carinho meu

nossa senhora
do mau ladrão
chegada a hora
da coroação

agrilhoado
— antes, depois —
chorei dobrado
por nós os dois

Piano — Três oitavas sucessivas de dó maior nos agudos com oitavas simultâneas de dó
sustenido nos graves. Forte, seco, sem pedal.

Voz — Apresentação

Orquestra e Canto — Ária de Leporello contando a dona Elvira as façanhas amorosas do Dom
João, de Mozart. Até onde convier. Quando entra a Voz, o comentário musical passa a segundo
plano. Finda a recitação, a ária volta em grande força e desmancha-se com a pressão progressiva
de um dedo de mulher sobre o disco emissor.

Voz Cecília pediu o céu


nossa senhora não

Teresa pediu as dores


nossa senhora não

Inês falou ao senhor


nossa senhora não
Helena morreu no circo
Joana fugiu de casa
Ruth cortou os cabelos

nossa senhora não

Senhora por humildade


Nossa por submissão

Madalena teve um filho


nossa senhora não

Fim do Dom João, de Mozart.

Voz — Reflexão

Piano — Décima segunda lição do Novo Método de Piano. Andante rápido, sem pedal, até ao
oitavo compasso. Entra a Voz, sem fundo musical até ao décimo verso. Neste, a Voz suspende-se
e o piano volta ao início do trecho, desta vez tocado ansiosa e aceleradamente até ao fim. Findo o
trecho, a Voz retoma desde o princípio da terceira quadra («entrou o anjo»…)

Voz Maria Klophas


não era nada
antes de ser
predestinada

nunca saíra
de Nazaré
fiava lã
tinha José

entrou o anjo
pela janela
que modo estranjo
de falar dela
«Maria tu
vais conceber
o senhor nu
que vem morrer

de entre as mulheres
foste escolhida
tu és a serva
tu és a vida

de Gabriel
aceita, crê
vai para Belém
conta a José»

Maria Klophas
não percebeu
mas perguntar
não se atreveu

Piano — Acorde duplo de dó maior em trémulo, forte, sem pedal, com as mãos em grave e
agudo.

Voz — Visão

Orquestra — Primeiros compassos do Assim Falava Zaratustra, de Ricardo Strauss. Seguem-se


em surdina, na surdina que já são, os primeiros compassos do «Nascer do Sol» da suite Daphnis
e Chloé, de Ravel. Com a orquestra do «Nascer do Sol», entra a Voz.

Voz Era na manhã primeira


o fulvo sol de hoje prateava
Adão ainda barro esperava
tombado na erva ligeira

em seu movimento futuro


a terra queria girar
os astros subiam no escuro
para a obra de Deus começar

e na geométrica pureza
que emergindo vinha da treva
era uma rósea luz acesa
o corpo de nossa mãe Eva

com veias para o sangue correr


com nervos para a carne pegar
e os altos mistérios do ser
nos grandes espelhos do olhar

levantando os fulvos pescoços


que as forças da terra assentavam
sobre a escadaria dos ossos
nas trevas que se desmanchavam

os bichos da noite pararam


um momento só, na descida
e os rios de fogo chegaram
e as seivas pariram a vida

Interrupção do comentário musical.

erecto na luz matinal


nosso pai desperto comeu
dos pomos cobertos de sal
que a primeira rama lhe deu

e à claridade ainda fria


a forma que era a da serpente
para o sonho de Eva nascia
baloiçando-se placidamente

Piano — Escala de dó a sol, ascendente e descendente, fraco, lento, sem pedal, uma só mão nos
médios do piano, três vezes.
Voz — Continuação

Piano — Oitavas simultâneas de dó e dó sustenido maiores com as mãos sobrepostas nos agudos
do piano, com pedal, e antecedendo, uma por uma, o primeiro, o terceiro, o quinto e o sétimo
versos do poema que segue. Intensidade sonora irá do fraco ao fortíssimo.

Voz O jogral do céu


riscou uma estrela no manto judeu

e o milagre veio
sem perdão nenhum sem forma sem meio

sobre a palha loura


caiu o menino de nossa senhora

menino perfeito
com fomes e prantos com raivas e peito

Piano — Acorde simultâneo de dó e dó sustenido maiores nos graves e agudos do piano, seco e
pouco forte até cinco, e de seis a dez diminuindo som.

Voz — Comunicação

Piano — Muito lenta e lamentosa, a Décima quarta lição («Alegria de Brincar») do Novo
Método de Piano, até à coda. Com a entrada da Voz, continua em fraquíssimo segundo plano.
Desejável que os dois últimos compassos sejam dados imediatamente a seguir ao último verso do
poema que segue. Dados em fortíssimo e aceleradíssimo.

Voz E uma vez


uma vez só
nossa senhora desesperou

mas nossa senhora é decência


claridade
paciência
maternidade
na revolta que teve
não durou
desapareceu
na poalha do céu

e assim é que ela passa


no andor
nossa senhora
do exterior

a que ficou no fundo


a que não foi
só ao poeta dói

Fim da «Décima Quarta Lição».

Voz — Alguns anos depois

Piano — Primeiro Prelúdio do Cravo Bem Temperado, de J.S. Bach. Serve de fundo.

Voz Alta, seroal


na tarde canora
vai nossa senhora
pelo meloal
a ver o melão
que se há-de comer
se Jesus quiser
antes da Paixão
e quer dos maiores
e procuram bem
os olhos de mãe
crivados de dores

céu da Galileia
que a viste furtar
vento que ao passar
na túnica feia
não tiveste enleio
nem religião
que a coroação
depois é que veio
foi nossa senhora
que está no altar
sem poder andar
livre como outrora
quem ali sagrou
para os filhos teus
os pecados nossos

a terra e os ossos
do corpo de Deus

Fim do Prelúdio.

Piano — Os antebraços do ou da pianista no teclado do piano. Forte, seco, sem pedal.

Voz — Consumação

Piano — «Gimnopédia», de Erik Satie. Mais lento do que é usual ser tocada. A Voz não entrará
antes de ser ouvida metade deste trecho musical, e este será executado até ao seu fim, mesmo que
já dito todo o poema seguinte.

Voz Sobre a cruz o ergueram


assim ele veio ao mundo

pedro paulo simão


sobre a cruz o ergueram

cânticos de guerreiros
pedro paulo simão

ódios de velhos monges


assim ele veio ao mundo

sobre a cruz o ergueram

Fim da «Gimnopédia».

Disco — Canto, dos mais graves e vibrados, dos monges tibetanos. Prolonga-se até à
conveniência da inconveniência. Interrompe-se.

Voz — Congelação

Disco — De novo o canto tibetano, em fortíssimo logo levado à surdina servindo de fundo.

Voz — (diz os versos com intervalos de silêncio de extensão pelo menos igual ao do tempo de
dicção, lenta)

Desde o sol-posto
que num torpor
maria klophas
morre de dor

desde o sol-posto
tempo foi tanto
oculto o rosto
rasgado o manto

a job igual
por gabriel
de deus hiemal
e hiemal dele

desde o sol-posto
que à beira-rio
maria klophas
morre de frio
Brusca variação da intensidade sonora do canto. Logo volta à surdina. Logo se interrompe.

Voz — Canção

Apito de comboio ainda longe e que a seguir passa com o devido estrondo. Breve música de
flauta pastoril. Canta o galo, duas vezes, uma perto, outra longe. Voz afastada que profere alguns
monossílabos indistintos e a seguir trauteia a jota de El Sombrero de Três Bicos, de M. de Falla.
Este trautear, por vezes mais claro, por vezes atabalhoado, sempre ténue, serve de fundo.

Voz Junto do rio cantam os galos


de Jerusalém enquanto amanhece.
Na relvagem o dorso dos cavalos
com uma nudez que entontece
esperam a hora de amarrá-los
à lida, mãe fulva do campo
agora, numa estrela, todo branco
e sóbrio enquanto cantam galos

Fim da voz que trauteia. A toda a força sonora, os compassos mais melodramáticos da «Valsa
das Flores» do Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Interrompem-se.

Voz — Conclusão

Orquestra ou Órgão — «Marcha Nupcial», de Mendelssohn. Voz ao esgotar-se a primeira frase


melódica do trecho. A segunda frase em maior surdina.

Voz Nossa Senhora morreu


à hora da missa. Ninguém percebeu.
E o mundo que ela tanto amou
não teve uma lágrima só

Mas soaram acordes finais


quando ela de morta passou
com círios de estrelas reais
nos pés ainda sujos de pó
Está agora mais perto do céu
sem lá ter entrado porém
e pede, com o rosto seu
naquele menino judeu,

que oremos por ela também

Orquestra — Interrompida assim que convier a «Marcha Nupcial», irrompe em estridências


monocórdicas como é uso no circo quando acaba de ser executado «o número mais arriscado do
mundo». Voz agradece a Orquestra que agradece a voz que agradece ao Público. Se este mostra
não querer abandonar fornece-se a «Cantiga de S. João».

(*) — Ou disco.
CANTIGA DE S. JOÃO

Esta cantiga é de retorno perpétuo e noite inteira para solista e coro num mínimo inicial de vinte
e uma vozes. Marcação, caracterização e variação do solista e dos coros a cargo de quem o fizer,
cabendo aos possíveis realizadores, por progressivo recurso a novos recursos incidindo em
diferentes dicções e distribuições delas, mímicas, representações estudadas ou espontâneas,
danças isoladas ou de colaboração com o público, introdução atroadora de elementos de música e
percussão, aparecimento de elefantes na sala, etc., e a renovação da repetição.
A partir da possível quarta repetição o estado de histeria colectiva para que o texto apela desde o
primeiro verso não pode nem deve deixar de manifestar-se, e se o público que agradece continua
a não querer abandonar, deve descer um cartaz com, bem visíveis, os seguintes dizeres:
ATENÇÃO! PERIGO DE VIDA. É MELHOR RETIRAR.

É noite de S. João
repete três vezes quero
os dedos da tua mão

E o meu amigo afogado


em vinho falsificado!
Não viemos para dançar?
Onde está o violão?

S. João João João


S. João que nos quer bem
leva a tristeza contigo
leva a saudade também

Já certamente passaram
por aqui a procurar-nos
passaram e não nos viram
onde estão que se enganaram
nos caminhos que seguiram?
E os outros, que se casaram?

S. João João João


S. João de marinheiro
com dinheiro — sem tabaco
com tabaco — sem dinheiro

Ruth dos cabelos de oiro


Maria da Conceição
vem falar ao meu amigo
muda-lhe a pena em paixão!

E o meu amigo afogado


pálido loiro virado
prò lado da escuridão!

Eu já estive pra matá-lo


e acabava-se o romance
mas achei melhor deixá-lo
andar até que se canse

Daqui pra casa é um talo


de casa à cama é um lance

São João João João


eu quero um submarino
que pareça um avião
e ande como um menino

As asas — até ao chão —


os ombros — até ao cimo —

Olha a noite como corre


como passa tão depressa
amigos a noite morre
quando é que a manhã começa?
Quando é que a manhã começa
que é para a gente começar
dos pés até à cabeça
a mexer a respirar?

S. João João João


das putas bravas do rio
ajeita-me no calção
esse mastro de navio

Moço de cabelos de oiro


edénico anjo expulso
há pedrarias, besoiros
romances, olhos de toiros
no contorno do teu pulso

Não te deixam ir embora


e não te deixam ficar
ó meu poeta antes fora
que te quisessem matar

S. João João João


S. João de carniceiro
eu sou como o gavião
quem me queira pôr a mão
há-de vir a mim primeiro

Cravos vermelhos e rosas


dedos de mãos capitosas
ó que lindo travesseiro!

S. João João João


eu não quero exagerar
mas achas que na prisão
se vive mais devagar?

se tem mais cara, mais chão


mais gosto no acordar?

Oh que alto leito se abrasa


cheio de luz e de cor!
quem será que está em casa
do senhor governador?

S. João João João


de corpete e de penante
fazias um figurão
fardadinho de almirante

Meu cabelinho pequeno


e meu ombro latagão
meu pinho da cor do feno
meu pinheiro de verão

Não vás para o céu tão sozinho


tão bonito tão contente
olha que pelo caminho tem ficado muita gente

S. João João João


da chegada e da partida
vê lá se o meu gavião
ainda vai na subida

Meu santo que por três vezes


quiseste arranjar mulher
não estás entre portugueses?
Olha o que tu ias fazer!

Julgas que querer três vezes


é querer o que se quer?

Oh que festa tão contente


que povo tão ensinado!
Mas que rosto repelente
nos espreita do telhado

que é tudo dançar por fora


do que não dança por dentro
ai João vamos embora
tu para o mar eu mais para o centro

S. João João João


eu não quero presumir
mas achas que de avião
é mais de se conseguir?

Se tem mais fio mais mão


mais força no revenir?

Quebrei os vidros da igreja


escrevi a Nossa Senhora
fiz das tripas coração
e ó meus amigos de agora
meus amigos, S. João,
eles todos onde estão?

Onde, que já não demora


a hora da coroação?

S. João João João


S. João que nos quer bem
leva a tristeza contigo
leva a saudade também
VISUALIZAÇÕES
suave
a vela abre
e principia
o dia

ela
que pelo azul
que corta
considera e chama
outras velas irmãs para o claro rio
e enquanto
o cais
é um enorme navio
que se nega
e no entanto cumpre
a mais estranha viagem

ela
que parte
vira
para o que abandona
um olhar de brancura
que é toda a matemática
singela
da manhã que a inspira
cores ramos árvores sobre a água fazem
um desenho primaveril
o sol as nuvens meigamente trazem
secreto e juvenil

casto doirado e simples como a vida


meu canto diz
que está cantando a dádiva querida
do que nem ele quis

jogo gratuito, forma, dom


que permanece ser
assim o rio corre leve e bom
corre sem o saber
o moço pastor que ali vem cantar
a sombra que deu
aos montes que têm o rio a passar
outro azul no céu

vê perto seu canto que ouvido se esconde


e é o que ele sabe
mas longe na noite sem fim lhe responde
a mesma verdade

que é a estação fria como está nos ramos


e na lua cheia
pequeno cordeiro que há anos e anos
ele pastoreia
à claridade sóbria
insistente e velada
o cargueiro desliza
e o nada
do pequenino ponto
que vai ser
pontilha a face lisa
da enseada

em fim de tarde e luz


demanda o céu escurento
uma forte nostálgica
— mas benéfica! — vela
pelo seu movimento

e ela
a água que tem
o seu correr
abre-lhe o seio suave
de mãe fria, de mãe
que o não pode saber
O adolescente morto
que está nos meus braços
de que velho horto
tem os membros lassos?

Eu, para salvá-lo


— se vos fosse dado
— forças! — despertá-lo
beberia o sangue
de que está manchado

Campeava amor
— quem o ama agora?
E este meu estupor
que nem sequer chora?

Decerto o vencido
foi, de uma batalha,
teve uns sustos de ferido
ou coisa que o valha

Como se mimasse
adagas aos molhos
sobre a própria face
sobre os próprios olhos

E falava de querer
— se ele agora soubesse…
eu senti-o morrer
como quem se esvanece
Está morto. Paciência
se nada o desperta.
Fugiu-lhe a ciência
pela boca aberta
debruça-se interior e calmamente
para o corpo do rio e também pensa
tão-só a ideia de ser flor e não
estrela ou emoção
sob o pequeno esquema natural
que a envolve e a consente
RETRATO

geometria
rumo incerto
alegre e triste alegria
sempre mais perto

força fria
mãe do dia
regaço puro e coberto

dom breve
silhueta esguia

catapulta no deserto
ANTILÍRICA

bom choro repartido


sem lágrimas nem rosto
aqueça-te o olvido
em que te tenho posto

chora uma vez vá lá


liberto como os demais
chora por tudo, vá,
sem pretensões orquestrais

vês? não há nada a chorar


o que penavas não existe
a esfera é assim: bola ao ar
e muito mais bola que triste
O LUAR DE LAGOS

igual a noite é
como o jardim deserto
um espelho no café
que permanece aberto

nenhuma voz ou campo


há o luar a paz
que na sombra perfaz
o seu tecido branco

e à rua percebida
passam ciganos com as suas mães

mais tardos na subida


os xailes — grande vida!
seguidos pelos cães
À JUSTA

vou aqui por este lado


a vistoriar o historiado

vou por aqui e vou bem


já o dizia a minha mãe

pobre morta é verdade


mas é assim a eternidade

vou depressa antes que anoiteça


e o campo de facto desapareça

e canto esta canção irregular


que é como canta quem anda a vistoriar
NOTÍCIA

em portalegre o cemitério
deita por cima dos ciprestes
no leve solto azul funéreo
o exterior véu de mistério
que tem qualquer cemitério
MOVIMENTO

movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim


que não tem dizer
e explica melhor?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo
LAFCÁDIO

o que a minha mão segue


tem mais perplexidade que moral
nunca é só triste nunca é só alegre
é o instante a curva desigual
a seta desferida
pela gratuitidade acontecida
ELOGIO DO PRÍNCIPE DA DINAMARCA

coitado do hamlet
assassinado
empurrado
para o sepulcro que é

oculto entre reposteiros


sem paixões
como os ladrões
que lucram trinta dinheiros

coitado do que ele vê


crimes
espectros
correctos

coitado do hamlet
TOCATA

quando tu tocas Debussy


chove extraordinariamente
o sol as casas levemente doira
mas na saleta está-se bem
fazes sempre assim!

por mim
sinto um duende benigno que sorri
não bem de ti!
nada de Debussy!
mas do igual da hora
de sempre chover
de estar sempre frio lá fora
quando tu tocas Debussy
TOCATA II

o piano dá num seco harpejo


as rosas brancas de um jardim esquisito

o piano dá num seco harpejo


as pernas ágeis de um maligno esprito
que sobe a passos contentes
os degraus breves do harpejo

troçando dos lagos silentes


DENÚNCIA

esse girassol
amarelo e só
tem do que é o sol
a luz que o rodou

não haverá tudo


do muito que é seu
fita mago e mudo
o azul do céu

e essa forte queixa


branda no acusar
a vida que o deixa
apenas fitar

no jardim sem fama


clama sem sinal
amarela chama
ao vento hibernal
ALQUIMIA DO VERBO

agora fiquei triste, realmente,


emudeci

o que esta boca sente


quando sorri!

o jardim está sem gente


e anda um vago sonho por aí

quando voltar a minha força ausente


hei-de pensar neste álibi
O RISO ÚTIL

o riso útil da amorosa


retine de tal maneira
no pobre quarto cor-de-rosa

que as tuas mãos de senhor


já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor
MÚSICA PARA PERCUSSÃO E CELESTA

anjo meu, obrigado


pelas benesses que me deste,
pelo instante-estátua-equestre
do teu sorriso consolado

não faço troça, querubim,


mas este mundo é tão diferente
tu não pensavas seriamente
que eu quisesse olhos de marfim?

vens lá das velhas poesias


de acónito e de pentagrama
enquanto eu numa semana
não peno mais que sete dias

mas mesmo assim, anjo meu tão moral,


eu agradeço o muito que puseste
nesse carinho-estátua-equestre
todo candura jovial
AEROPORTO

a mala que segue viagem


assim como o avião
têm a grande vantagem
de não terem coração

só formas amplas — metais


de uma brancura de praia —
dentro vão sonhos a mais
é bom que a mala não caia

mala do sonho vais bem


assim deitada de lado?
chega-te a roupa que tens
ou chamamos o criado?

ou chamamos o fantasma
da queda livre no espaço,
verga do pássaro de aço
onde a poesia se espasma?
A UM SOLDADO QUE CHORAVA DE TANTA COISA
TINHA PARA LEVAR AOS OMBROS E ARRASTAR
COM AS MÃOS

anda soldado
não te demores
vais atrasado
anda não chores

parte o comboio a toda a pressa


comboio sombra inaugural
da gare onde tudo começa
pior que bem melhor que mal
não tens quem de ti se despeça
cabelos de oiro mãos de metal
parte o comboio a toda a pressa
ai torna à cidade natal

fiquem as casas que a noite começa


a murar por todos os lados
fiquem as casas o sol que impeça
que o sol do veneno dos dados
caia
sobre
a tua
cabeça
essa
figura
de
mulher
essa
eça
com todos os selos selados

anda soldado
afia os gumes
vais atrasado
anda não fumes

parte torna tudo começa


arde carvão distância metal
são os teus astros levanta a cabeça
meu crânio de aurora minha boca lustral
não tens quem te peça ou impeça
amor carvão filosofia moral
toma o comboio a toda a pressa
ai torna à cidade natal

anda soldado
acenam chamam
ainda te esperam
ainda te amam
MANHÃ FRESCA

Manhã fresca, reclinada


pela primavera crescente.
O mais pequenino nada
está como se fora gente

De um rapaz louro que finda


(na alameda) uma novela perturbada
uma mulher ainda linda
esperou mas não foi olhada

E na folhagem também
certo desencontro corre:
a primavera que vem
na trovoada que morre
EM FORMA DE POEMA

dou os meus prantos às procelas


para que cessem e me deixem
dou os meus sonhos às estrelas
para que os meus sonhos não se queixem

fico só como o lobisomem


na estrada sem forma e sem fundo
meus sonhos no ar dormem dormem
à espera da manhã do mundo

vê tu se nesta alegoria
descobres porque estou inteiro
e nunca terei agonia
sem fartar meus sonhos primeiro
DISCURSO SOBRE
A REABILITAÇÃO
DO REAL QUOTIDIANO
I

quando aqueles que chegavam


olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam
II

um grande utensílio de amor


meia laranja de alegria
dez toneladas de suor
um minuto de geometria

quatro rimas sem coração


dois desastres sem novidade
um preto que vai para o sertão
um branco que vem à cidade

uma meia-tinta no sol


cinco dias de angústia no foro
o cigarro a descer o paiol
a trepanação do touro

mil bocas a ver e a contar


uma altura de fazer turismo
um arranha-céus a ripar
meia-quarta de cristianismo

uma prancha sem porta sem escada


um grifo nas linhas da mão
uma Ibéria muito desgraçada
um Rossio de solidão
III

inteligente mas não gracioso


gracioso não pertinente
um organizador de culturas
o tipo do matemático funcional

inteligentemente estúpido
estúpido nunca grosseiro
um pateta que tivesse lido Joyce
lanceiros 2

uma barata atravessada no pão


os três cavalgaduras do costume
à patada entre lombo bojadouro e alcatra

o protótipo de metralhadora
vai cheio de cinema até aos olhos
tapa
IV

a velha que vende bananas


o velho roxo de calor
o rapaz que grita sacanas
dêem-me um pouco de amor

a outra viagem por mar


o jovem que já é livreiro
a camioneta a esmagar
o túmulo de Sá-Carneiro

o sapato branco do réu


a imobilidade do rato
que rói a ala esquerda do hidro

a mão erecta contra o céu


o céu de súbito contracto
a água a morte a mosca o vidro
V

vinte e quatro tragédias burguesas


dois casais cheios de felicidade
nove mulheres casadas (portuguesas)
e um caso de mendicidade

um coronel reformado um visconde nazi uma sorte adversa


uma vista para o campo uma menina Ester
um prédio em construção dois dedos de conversa
um lindo rapaz que adora perder

uma prostituta elegante dois galos sem crista


uma vida sem vida um defunto a viver uma vida asquerosa
dois carris de ferro o filósofo existencialista
e
um cínico e a esposa
VI

uma corda uma garganta


duas dores o infinito
um irmão que chora uma mãe que canta
e uma noiva que diz ai que eu grito

um soluço uma noite uma aurora


uma mesa um suicida esquisito
um irmão que sai porta fora
um menino que compra um apito

uma senhoria irritada


dois odores a gato pingado
uma noiva inconforme coitada
uma mala muito bem fechada
um quarto de novo alugado

uma mãe que sorri alguém que ama


um corpo quente que nem quê
uma rua cheia de lama
uma noiva que sabe porquê
VII

como a vida sem caderneta


como a folha lisa da janela
como a cadela violeta
— ou a violenta cadela?

como estar egípcio e mudado


no salão do navio de espelhos
como nunca ter embarcado
ou só ter embarcado com velhos

como ter-te procurado tanto


que haja qualquer coisa quebrada
como percorrer uma estrada
com memórias a cada canto

como os lábios prendem o copo


como o copo prende a tua mão
como se o nosso louco amor louco
estivesse cheio de razão

e como se a vida fosse o foco


de um baço lento projector
e nós dois ainda fôssemos pouco
para uma tempestade de cor

um ao outro nos fôssemos pouco


meu amor meu amor meu amor
VIII
abate a conjuntiva; lê-se sobre o verbo comer

como a vida sem caderneta


como a folha lisa da janela
como a cadela violeta
— ou a violenta cadela?

como estar egípcio e mudado


no salão do navio de espelhos
como nunca ter embarcado
ou só ter embarcado com velhos

como os lábios prendem o copo


como
o copo prende a tua mão
como
se o nosso louco amor louco
estivesse cheio de razão

como. Se a vida fosse o foco


de um baço lento projector
e nós dois ainda fôssemos pouco
para uma tempestade de cor?

um ou outro comêssemos pouco


meu amor meu amor meu amor
IX

no país no país no país onde os homens


são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país


onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país


onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma — ora aí está —
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)

diz que grandeza de alma. Honestos porque.


Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato
X

falta por aqui uma grande razão


uma razão que não seja só uma palavra
ou um coração
ou um meneio de cabeças após o regozijo
ou um risco na mão
ou um cão
ou um braço para a história
da imaginação

podemos pois está claro


transferir-nos
imaginar durante um quarto de hora
os séculos que virão
— os séculos um
e dois
da colonização —
depois
depois é este cair na madrugada ardente
na madrugada de constantemente
sem sol
e sem arpão

faltas tu faltas tu
falta que te completem
ou destruam
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada
— não, de nenhuma maneira resultante!
nem mesmo o amor
não é o amor que falta
falta uma grande realmente razão
apenas entrevista durante as negociações
oclusa na operação do fuzilamento cantante
rodoviária na chama dos esforços hercúleos
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo

falta uma flor


mas antes de arrancada

falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro


mas que todos os burros se comam a si mesmos
que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e de propensões
se comam a si mesmos
muitas horas por dia até de manhã cedo
até que só reste o a o b e o c das coisas
para o espanto dos parvos
que aliás não estão a mais

isso eu o espero
e o faço
junto à imagem da
criança morta
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo
sobre o cadáver dela
e longas filas de bandeiras esperam
devorar Picasso
que é perto da criança, ao lado da boca minha
XI

queria de ti um país de bondade e de bruma


queria de ti o mar de uma rosa de espuma
XII

seco o sorriso seca a vontade


seco o pão seco da mistura
seca a luz desta cidade
secos até os leguminosos

vamos todos até a um líquido


químico fresco intolerável
vamos todos até a um líquido
sintético ou outro é igual
vamos todos até a um líquido
esperma esganato
pena de pato
um pouco cimento um pouco cal
XIII

e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir é preciso suor


é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda o fogo-de-artifício
é preciso o demónio ainda corpulento
é preciso a roda sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o logro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado

E é preciso gente para a debandada


é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rôgo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas
XIV

hoje, dia de todos os demónios


irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte


de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma


uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio


XV

estou muito zangado


tudo isto cheira a trapo e a ervanária
tudo isto cheira a hera para estátuas líricas e eu nasci em perfeitas condições de trabalho
que fazer que fazer
a oxidação seria um escândalo gigante
um braço de cristal servindo de sirene
às aves trôpegas de tanta música grátis

nem os teus olhos nem o teu cabelo


me tiram hoje deste vento de cinzas
armazém de retém de sofistas menores
lata de tinta de borrar a vida
enquanto não chega a mão definidora

zangado muito zangado


o vento alisa as frinchas do organizado
anoitecer geral
e a morte ronda perto
próxima como nunca da garganta dos lobos

vamos crianças para a cova espigar um rato cinzento


vamos cessando connosco todo o murmúrio
XVI

Duas aranhas esperam a mosca


com radiadores ventiladores rosa-chá
passagem ao estado de amora
alguns coupons
e várias teses de combate moderno

A mosca
passa
ou não passa
é um pouco como todas as coisas
estão mas não aparecem
e podem levar anos nisso

Mas duas aranhas esperam a mosca


com serviço de Turismo Dlão
lume aceso
página de sentença judiciária

Ao fundo
o galo enerva-se e quebra a mobília
numa grande convivência francesa
co’a mosca que foge espavorida no vento

Agora à luz das baratas e dos apetrechos para campo


duas aranhas esperam a aranha
e esta é que não escapa
às honras amarelas

à ligeira tremura de ter vindo


pois nenhuma aranha escapou jamais às aranhas
nenhuma não sendo mosca fugiu
ao que mandam os deuses
XVII

eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa)


num café da baixa por ser incapaz coitados deles
de escrever os meus versos sem realizar de facto
neles, e à volta sua, a minha própria unidade
— Fumar, quere-se dizer

esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava ver num livro de versos. Pois é verdade.
Denota a minha essencial falta de higiene (não de tabaco) e uma ausência de escrúpulo (não de
dinheiro) notável

o Armando, que escreve à minha frente


o seu dele poema, fuma também.
fumamos como perdidos escrevemos perdidamente
e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta
mais espantosa e violenta incompatível e reconfortável
do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros
(excepto coisas como vergonha, naturalmente,
e mortalhas)

(que se saiba) é esta a primeira vez


que um poeta escreve tão baixo (ao nível das priscas dos outros)
aqui e em parte mais nenhuma é que cintila o tal condicionalismo
de que há tanto se fala e se dispõe
discretamente (como quem as apanha).

sirva tudo de lição aos presentes e futuros


nas taménidas (várias) da poesia local.
Antes andar por aí relativamente farto
antes para tabaco que para cesariny
(mário) de vasconcelos
XVIII

a noite como um prego a noite louca


a noite com árvores na boca
XIX

ia muito bem a guiar o automóvel


quando ao fazer a mudança (necessária?)
tudo mudou muito mais do que esperava
o automóvel (embora sempre andando) virou caixote do lixo

e ela — aflição — passou a ser apenas


um busto fora do caixote fechado
e a dar à manivela muito depressa.
A rua era comprida? perguntou a que também estava

que contou de repente que com ela era assim: uma escada para o alto, que nunca mais acabava.
Também havia quem viajasse muito
todas as noites e no mesmo sentido

estava esse muito cansado pois com os comboios normais


basta não querer e pronto mas se é sonho
não há manobra possível tem de se ir mesmo
XX

e em toda a parte
o sexo feminino estadista e general
extra-strong e super-cream
procura uma saída em caso de acidente
mortal em toda a parte
duplicações de indivíduos estranhos
esperam indicações úteis com o auscultador no ouvido
enquanto cinquenta anos de vida missionária
fazem descer o preço do café que tomamos
com o vestuário em chamas em toda a parte
aparece a palavra Napoleão
no cotovelo de indivíduos portadores
das mais recentes leis da maternidade
tanto para senhoras como para rapazes em toda a parte
um mendigo dactilógrafo corta fiambre
para a edificação da grande árvore
enquanto o marinheiro limpa a sua unha
em toda a parte
e um crocodilo que nasceu de costas
aguarda assim a decisão injusta dos tribunais competentes de toda a parte
POEMA PODENDO SERVIR DE POSFÁCIO

ruas onde o perigo é evidente


braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona de água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume

isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante


e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas escarlates a caminho do mar
e que chegam, ao crepúsculo,
encostadas aos submarinos

isto ou um torso desalojado de um verso


e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
— uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida — tome lá —
dois netos para essa velha aí no fim da fila — não temos mais —
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e
tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?

sim meu amor a pirâmide existe


a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

e em todo o caso

há praças onde esculpir um lírio


zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar
ALGUNS MITOS MAIORES
ALGUNS MITOS MENORES
PROPOSTOS À CIRCULAÇÃO
PELO AUTOR
O GATO LEGÍVEL

OU ILEGÍVEL OU ILEGAL — A catástrofe do estabelecido: doença do sistema métrico


legal, abandono da posição horizontal para os defuntos, repúdio muito activo dos direitos
do Pai, dos deveres da Mãe, da exploração do homem pelo Filho, etc.

VIRGULAMPÉRAGEM — Dialéctica convulsiva. Libertação do objecto sujeito,


trepanação do sujeito fascinado pelo objecto. Primeiras concreções de grande estilo: os
picto-poemas de Victor Brauner.
O GATO DITO DOMÉSTICO OU DE LINEU

Primo em linha recta do Gato Legível, uma nem sempre fundada tradição de abandalho
pesa sobre a origem egípcia, eminentemente cruel e aristocrática, dos da sua espécie. O
GATO urina com êxito nos objectos de lar, e quando a angina estala enfim os peitos da
patroa que julgou poder fretá-lo para pequenas voltas, O GATO esfrega os olhos, abre
uma janela, e voa toda a noite, de barriga para cima. Nestas surtidas voantes encontra-se
por vezes com os seus camaradas libertários, e então acendem fogos que, uma vez por
ano, formam cortejo em direcção à Lua, onde um gato já cego os devolve aos espaços,
transformados em cinza e em máquinas de luar.
O FUTURO REI RAPAZ DE ESPADAS

Morfologia psicológica:

a coroa — o sexo
o ceptro — a vírgula
as asas — as garras
as pernas — o fogo
a cabeça — o túnel
a mão esquerda — a gruta
a pata direita — a lua
os pés — o desejo
as membranas — o olhar

Primeiro surgimento experimentado:


o caso Mirin Dajo, na Holanda.
O MARINHEIRO

O que vai ao mar buscar dinheiro.


Rapaz nave-gado que pratica a arte da marinharia.
AMARINHEIRAR — O mesmo que amarinhar. Pôr-se a pessoa à moda de amarinha
(caso Fernando Pessoa, no drama: «O Marinheiro»).
O SOLDADO
(A NOITE DA CIDADE ERA)

Aforismo — O sol dado não custa o que custa é sabê-lo dar.


Encic.ª — Liga-se à solda dura hoje usada na tropa e que é uma mistura de estanho e de
sol dado a que primitivamente se chamou Solda Desca, por ser o sol da primeira rainha
nada em Desca.

Lit.ª —

«Entre a noitenenterraço
e a mortenentelescópio
o Sol Dado assoma ao ralo
e faz o sinal anti-grito»

(Arturo Lapinski — «Trovas»)


O ARTESÃO

O ar tesão (nato) é o ar do artesão quando em artesanato assim como o sol dado é o ar do


soldado quando em ar tesão.

Lit. — «não havia braço são que pudesse romper o tesão da água.», Dic. de Marinha, 505.
«Correm as águas como sangue», id.
A CABEÇA DE ARCAIFAZ
(SISMO)

Localização fonética:
a) A cabeça: onde cabe a eça. Pop.º: cabe a eça agora!
b) de Arcaifaz (sismo): o ar (que) cai, faz (produz) sismo. Faz sismo: o ar cai. Caído o ar,
fica o caifascismo, o que dá cai, dá sismo, e retira o ar que caiu. Por isso se diz que não há
ar onde há alguém que faz sismo, podendo no entanto sufixismar-se o prefixo, o que dará
a CAIFAZCISMAÇÃO, sublimação da cisma que Caifaz.
A NOIVADIAGEM SERPENTE

Mistura clássica de noiva e de vadio. Vista com bons olhos na antiguidade (Zaratustra,
Ulisses, Aquiles e Pátrocles); ligeiramente encarada por Sócrates; reformada de alto a
baixo por Platão; cruzando já a estrada do sacrifício com o florescimento dos impérios
cristãos — Tristão e Isolda, a Cavalaria Andante —, o advento da burguesia lançou a
noivadiagem na morte civil, criando perspectivas absolutamente alternas à sua força
inicial de amor físico, heróico, transfísico e alquímico.

«A verdadeira poesia (isto é: a noivadiagem) é de malditos», António Maria Lisboa, carta


ao autor.
A GRAFIARANHA MAIOR

A Grafiaranha vive nos poços de água limpa rodeada de espelhos diamantíferos que se
transformam em pássaros quando são descobertos. O seu sinal é uma forma roxa,
extraordinariamente vagarosa, que avança a custo por uma planície cujo chão é o espaço e
cuja noite é o mar.

ARANHOGRAFIA — A Grafia do Génio. Pintura = Grafia e a Antigrafia. Teoria dos


Espaços Intersticiais. Operação do Sol.
A Pintura de Maria Helena Vieira da Silva.
A CRIANÇA

Objecto que se usava para provocar solidão. Os últimos a conhecerem o seu emprego
foram os druidas, que lhe chamavam «o prego da melancolia» e o cravavam na testa das
mulheres para que fossem puras e isentas de precipitação.
Há fósseis que permitem localizar o aparecimento deste utensílio durante todo o segundo
glaciar.
A HOMOSEXOALMA

A
ALMA
SEXO
DO
HOMEM
O ESTUPROPULSOR DIATÉRMICO DA HONRA

Investigar nos lares e outras associações secretas. Tem revestido o aspecto duma forma
benigna do cancro: A DAMA ANTINOMA.
Mata à terceira vez que lhe aparecem.
A ROSA ÍRIS, RAPARIGATAÚDE

Forma da Rosa Mundo.


Os lados da visão. A morte do Poeta.
Ísis e Osíris, a «realidade misturada»
por oposição a «realidade eleita».
O CRUCIFICADOR CRUCIFICADO.
PINTAR O SETE

Voltar ao fim.
Pintar três vezes o sete:
ficar doido.
O ASSASSINOS

Vendedor de sinos assados.


Lit.ª — «EIS O TEMPO DOS ASSASSINOS», J.A. Rimbaud. No original: VOI SI LE
TEMPS (DES) DÉS A SA SANG (sua sangue). Trad.: Vê se o tempo dos dados conhece
o seu próprio àssassinos. O àssassinos tipo Rimbaud lança a perturbação nos espíritos os
mais variados, dando lugar a dísticos, sonetos e paráfrases de requintado travor.
O ALMIRANTEXUGO

A procurar entre os grandes responsáveis da actual Miséria Humana. Encontrado pelo


autor na noite de 14 de Dezembro de 1947. Hèlicereja. Hèlicevado. Crocodilupa.
O HOMEM-MÃE

Pai — ai
Mãi — em
Um ai.
Em.
Homem.
Ó Mãi.

M HOMEM
EI OMÃI
MÃI MÃI
OMÃ I I E
HOMEM
MANUAL DE PRESTIDIGITAÇÃO
ARTE DE INVENTAR OS PERSONAGENS

Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes e os personagens aparecem
ARTE DE SER NATURAL COM ELES

Senhor Fantasma, vamos falar

Tudo foi e tudo acabou


numa cidade venezuelana
Boa parte de mim lá ficou
não vês senão o que voltou
no princípio desta semana

Senhor Fantasma, em que é que trabalha?

Em luzes e achados
chãos e valados
barcos chegados
comboios idos
Procuro os meus antepassados
altos hirsutos penteados
mudos miúdos desprevenidos

Senhor Fantasma, a vida é má


muito concerto pouca harmonia

A vida é o que nos dá


Não quero outra filosofia

Senhor Fantasma, diga lá


que estrela se deve seguir?

(Mestre Fantasma: Ah, ah, ah!)

Senhor Fantasma, vamos dormir


EXERCÍCIO ESPIRITUAL

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia


é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência

é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem


É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
CENA PARA O FINAL DE UM TERCEIRO ACTO

Uma esquina outra esquina


depois os breves canteiros floridos
de quando a cidade era pequenina

depois os longos rochedos brutais


a lua o mar eterno o cais
VARIANTE DA CENA ANTERIOR

Onde uma pancada súbita nos faz largar a presa


onde o extremo limite do horizonte é assinalado por uma gigantesca toalha de pedra
onde não é conveniente que entre o homem
onde a fortuna a que os mestres aludem é um licor muito forte em ânforas de prata
onde os olhos se movem precipitadamente
onde um rosto azulado estremece de olhos fechados
onde a infinita meiguice dos noivos gravou a oiro as nuvens da montanha
onde a estatura atlética dos túneis chama dragões que cantam e atacam
onde novas pazadas de carvão fazem gritar dois homens aterrados
onde uma carta e a sua maravilhosa odisseia são dirigidas pelo desconhecido mau grado as
explosões tremendas que se sucedem
graças a um filtro milagrosamente ileso que no interior da massa líquida descobre
um cavaleiro em mutação constante
a imensa distensão do globo
onde salta para leste-sudoeste o vento e o céu fica brilhante e a terra desconhecida
onde o assunto principal é uma pequena barca munida de dois pares de remos oculta em certo
ponto do paredão que serve de ancoradouro aos grilos e aos fantasmas
onde o dia seguinte é uma canção igual para os fugitivos
onde nunca ninguém alcançará a cidade sabendo-se que a água gelada à altura do peito separa a
pele da carne e as mãos das mãos
onde, presas da agitação que precipita as catástrofes
há quatro formas brancas no horizonte
onde o assalto é a última esperança
onde à luz amarela da lâmpada de arco que ilumina a estatura do homem recém-chegado
milhares de berços de soldados-crianças são atirados do deserto para o mar
CENA DE LIBERTAÇÃO NOS JARDINS DO PALÁCIO
DE EPAMINONDAS, IMPERADOR

Como um vasto programa contra a poeira


contra a erosão das operações da noite
um braço apenas um braço
sai em liberdade
a parte útil rodeada de escombros
os dispositivos especiais dissimulados atrás
de misteriosas armas incorporadas

Nada que se pareça com centenas de escudos


ou com a sensação de segurança
essa forma de anel sobre as melhores cidades
que estrangula não mata aperta não afoga
um braço apenas um braço hábil solução do conjunto
um braço sai em liberdade
MANUEL

A cidade a que tanto serviste de modelo morreu


Esta rosa cortada para ti morreu
O teu irmão morreu
A noiva e o amigo a alegria da sede e da fortuna
morreram

A bem dizer estás vivo no deserto

Foi um luto gradual um luto que só foi luto de repente


um dia
ninguém estava a dar por isso
e que alargou os teus braços essa forma especial de pensamento
que trazes colada ao peito para destinar países

É verdade Manuel. É verdade! É verdade!

Eu, de luto para luto, fico mais criança.


Havias de brincar à criança que sou
em volta desta mesa — e que servisse de exemplo!

Não falas? Não. Não falas


Os fantasmas não falam logo ao primeiro encontro
e tu és um fantasma COM TODA A FAMÍLIA VIVA
apesar do que eu digo, para variar

Que crueldade, não é? Mesmo variada.


Antes a tua sombra e essa rosa cortada.
Boa noite Manuel vou-te concretizar
ARS MAGNA

Devo ter corredores por onde ninguém passe devo ter um mar próprio e olhos cintilantes
devo saber de cor o ceptro e a espada
devo estar sempre pronto para ser rei e lutar
devo ter descobertas privativas implicando viagens ao grande imprevisto
de um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do teu peito o animal que inanimado canta
devo ser Júlio César e Cleópatra a força do Dniepper e o carmim dos olhos de El-Rei D. Dinis
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não
dia sim dia não
devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos técnicas mais sérias prestígios maiores
devo saber que és forte amplo transparente e colher-te murmúrio flébil aureolado
que eu arranco da luz que encharca o mundo
dia sim dia não dia sim dia não
devo portar-me bem à saída do teatro
devo dar e tirar as chaves do universo
num passo ágil belo natural
e indiferente ao triunfo aos castigos aos medos
fitar unicamente, sob as luzes da cúpula, o voo tutelar da invisível armada
MÁGICA

É uma estrada no céu silenciosa


um anão sem ninguém que o suspeite
é um braço pregado a uma rosa
um mamilo escorrendo leite

São edénicos anjos expulsos


sonhando quietude e distância
são homens marcados nos pulsos
é uma secreta elegância

São velhos demónios ociosos


fitando o céu bailando ao vento
são gritos rápidos, nervosos
que destroem todo o pensamento

É o frio deserto marinho


operando na escuridão
é o corpo que geme sozinho
é a veia que é coração

São aranhas jovens, pernaltas


arrastando embrulhos para o mar
são altas colunas tão altas
que o chão ameaça estalar

São espadas voantes são vielas


passeios de todos e nenhuns
são grandes rectas paralelas
são grandes silêncios comuns
É uma edição reduzida
das aras da história sagrada
é a técnica mais proibida
da mágica mais procurada

É uma estrada no céu silenciosa


por um domingo extenso e plácido
é um anoitecer cor-de-rosa
um ar inocente, ácido
VIDA E MILAGRES DE PÁPÁRIKÁSS,
BASTARDO DO IMPERADOR

Era uma vez uma grande boa vontade que se pôs a correr mundo e que no gastar dos sapatos
daqueles dias se fez tão pequenina que cabia em qualquer bolso. O crescimento definitivo foi
numa quarta-feira de Primavera, dia em que a meteram na parte de dentro de umas calças e a
embarcaram para o México. No México só há polícias sinaleiros baixinhos e adolescentes de
olhos encarnados, sempre a bocejar, e a dizer de hora a hora a palavra: cabana, de forma que a
boa vontade não sabia o que havia de fazer.
Para ir ganhando tempo, resolveu montar uma indústria chapeleira, com a qual inundou o
mercado. Como é natural, as cabeças andavam todas contentes, de trás para diante e de diante
para trás, o que as fazia produzir um som comprido, em forma de enseada, que os músicos iam
recolhendo para as suas óperas. Dado o bom êxito inicial, a boa vontade não só se deixou
cumprimentar, num estrado vindo da América, como estabeleceu ligações com Pápárikáss,
homem muito odiado e sempre pelos casinos —: aderiu à guerra que estalou naquele tempo,
lançando de repente os célebres chapéus marca PERA, para abrigar generais. Estes, porém,
dissolveram a empresa, sob a alegação seguinte: não está a acompanhar.
Solteiros de profissão e naturais de Sevilha, os criados revoltaram-se, mexendo muito uns nos
outros e recusando-se a andar. O distúrbio custou duzentas mortes, um casino, a esposa de
Pápárikáss (pendurada de uma janela a arder), onze bois do abastecimento, e a Sagrada Relíquia,
que o inimigo apanhou comendo-a logo ali com um apetite enorme.
Então, como hoje, as ruas estavam cheias de desonestos, e uma canção acanalhada, francesa,
La Petite Enorme, correu todos os bares, pondo em perigo fastios e governação. O sinal de
acabar aqueles insucessos foi um ovo estrelado milagreiro, que não só deitava petróleo e carvão,
quando ofendido, como sabia processos divinatórios de encontrar os ladrões naqueles sítios
certos em que eles é raro estarem. Isso acabou de vez com a ameaça de distúrbio civil, coisa
sempre de temer quando as guerras grandes acabam e os generais voltam para casa.
Comemorando a vitória, mandou o governo um grande Parque onde as crianças se arejavam
imenso e cuspiam à vontade à vista de todos os peixes. Ao sábado, tocava a música, e apareciam
mãos por todos os lados, o que originou um desporto bastante original: o sape-gato-codorniz-
galinha. Era assim: uma enorme correnteza de mãos, formando meta. Com o sinal da partida iam
todas por ali fora às trabuzanadas umas nas outras e a que chegava primeiro era separada do
respectivo pulso, e enviada para França. Nunca mais se sabia dela e os prémios eram distribuídos
por todos os assistentes que, em sinal de regozijo, comiam bacalhaus e prometiam novos
formatos de mãos, para as competições seguintes.
Assim começa a história da boa vontade que embarcou para os brasis e lá montou indústria.
COLAPSO

Tudo está
eternamente
escrito
(Spinoza)

Tudo está
eternamente
em Quito
(Uma Rosa)
A IMACULADA CONCEPÇÃO

Um pássaro
a pino sobre as rochas
um pássaro jamais visto
um pássaro só pássaro
um pequeno pássaro enorme
fascinante
gelado

Um pequeno pássaro vivo


sobre as coisas
como um lado do mar
brilhante
impalpável
seguro
e apesar disso impossível
terrível
obsediante

Foi quando me voltei


para dizer-te: «Repara!»
que ele passou
JULIÃO OS AMADORES

Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos fechados a passagem do vento
dizia eu dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os palácios rasos de água
no escuro no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos, deitados, sem dizer palavra,
morreremos de ter-nos conhecido tanto
e depois? e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a pedra de um sonho
mas os salões? e a casa?
e o cão que nos seguia?

o teu rosto meu rosto


este homem alto
o Sol
CAMARIM

Rosa Íris Rosa Íris escuta


é qualquer coisa a chávena as tuas mãos a mesa
estão imóveis demais preparam algo
certo e sabido que se os grandes olhos que trago comigo pudessem preencher toda a sua função
(exposição sobre os órgãos sexuais na infância)
grandes e nobres chamas sairiam do mundo destes seres
lá vem a caixa de fósforos castelo
como assim castelo e não andorinha ou optimus
atenção os sinais o trunfo é ver sem lâmpada
fechar os olhos e abrir os olhos
fechar os olhos
a carruagem puxada pelas linhas do vento
chegou quem embarca? trrim trrim partiu
na parte mais escura da ruela que sobe o castelo de S. Jorge
há um homem deitado atenção levantou-se
a que veio? onde vai? que diz ele do vento?
que saco de desgostos pendurado do sexo como se fosse às compras?
Rosa Íris Rosa Íris escuta
eu o manequim verde pela janela
eu a mosca que assiste ao vaivém contínuo dos dois elevadores ditos de Santa Justa
Rosa Íris escuta Rosa Íris escuta
eu o sereno pacto de ilegalidade perpétua

Lá passam as gabardines a caminho do Inverno


este é o melhor tempo da minha vida
o melhor o mais belo o mais lúcido o mais da minha vida
onde está isso bandidos onde está isso
ah os pequenos orifícios para a respiração dos grandes monstros
monstros de incêndio monstros de inocência
monstros de amor boca livre mãos nuas
bandidos
bandidos sem chapéu
nuas só as crianças e as galinhas
livre só a penúria que nos segue com um vidro fosco
para medir a extensão de certas sobrevivências
doem-me doem-me os olhos e as mãos
os meus olhos cansados e até mordidos pela valente brocha da miséria local
mas como assim que apesar de seguida de longe e de perto pelas brigadas de choque da academia
e do folheto
tenhas vindo parar às minhas mãos encontrado o teatro
ó Rosa Íris rapariga ataúde
passada a zona dos protestos-coreto
fica no entanto um silêncio é a boca da Terra
é por detrás das árvores do teu quarto
é o teu rosto o ar que há no teu rosto

— o oxigénio será o génio oxigenado?

Rosa Íris levanta-te dos meus olhos


Rosa Íris é noite é dia claro
vai ser preciso sangrar as palavras
vai ser bom ver correr o vidro das palavras
a palavra partir a palavra chegar
sangue por cima por baixo nos lados atrás dos flancos
O PRESTIDIGITADOR
ORGANIZA UM ESPECTÁCULO

Há um piano carregado de músicas e um banco


há uma voz baixa, agradável, ao telefone
há retalhos de um roxo muito vivo, bocados de fitas de todas as cores
há pedaços de neve de cristas agudas semelhantes às das cristas de água, no mar
há uma cabeça de mulher coroada com o ouro torrencial da sua magnífica beleza
há o céu muito escuro
há os dois lutadores morenos e impacientes
há novos poetas sábios químicos físicos tirando os guardanapos do pão branco do espaço
há a armada que dança para o imperador detido de pés e mãos no seu palácio
há a minha alegria incomensurável
há o tufão que além disso matou treze pessoas em Kiu-Siu
há funcionários de rosto severo e a fazer perguntas em francês
há a morte dos outros ó minha vida

há um sol esplendente nas coisas


DISCURSO AO PRÍNCIPE DE EPAMINONDAS,
MANCEBO DE GRANDE FUTURO

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem
MANUAL

Tão calmo e seroal


tão de minha invenção

Ai
Manuel de trabalho manual
Ai manual de prestidigitação
CORO DOS MAUS OFICIAIS DE SERVIÇO
NA CORTE DE EPAMINONDAS, IMPERADOR


uma morte loura
simpática
acolhedora
que não dê muito que falar
mas que também não gere
um silêncio excessivo


uma morte boa
a uma boa hora
uma morte ginasta tradutora
relativamente compensadora
uma morte pedal espinha de bicicleta quase carapau
com quatro a cinco soltas a dizer
que se ele não tivesse ido embora
tão jovem tão salino
boas probabilidades haveria de ter
de vir a ser
dos melhores poetas pós-fernandino

vá lá vá lá Mário
uma morte
naniôra
que não deixe o esqueleto de fora como nos casos do mau gosto
os esqueletos têm sempre um quê de arrependidos
se bem que por aí já convinha lá isso já também era verdade


o demais demora
e
francamente
nunca será teu

vá vá vamos embora

custava-te menos agora


e ainda ias para o céu
TAL COMO CATEDRAIS

Consumada a Obra fica o esqueleto da mesma


e as inerentes avarias centrais
entre céu e terra à espera do descanso
Consumada a Obra ficamos tu e eu
pensando frases como: como é possível?
o que foi que fizemos?
ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
Onde está a camisola?

Sim realmente
onde está a camisola? Ola
palavra espanhola que quer dizer-nos: Onda
coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras há tantos anos
não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras?

O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia


— frase entre todas triste, a atentar na significação

Sim consumada a Obra sobram rimas


pois ela é independente do obreiro
no deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores
é que se vê se uma obra está completa

Fiquemos tristes abraça-me nós fizemos tão pouco


e ela aí vai pelo mar fora cavando a sua avaria!

(O mundo é redondo
talvez a reencontremos…

— Esperança cínica e conservadora…)


TU MEU ÚNICO AMOR MEU
MÚLTIPLO AMOR MEU!

Sim, sim, de facto


Efectivamente
mas o dia arrefece
e pálidos pálidos estamos
O PRESTIDIGITADOR VAI A ROMA
IMPLORAR A BÊNÇÃO PAPAL

Em cima do barco
que esperta a corrente
é hoje que parto
para sempre

Todos os teus rostos


me verão chegar
ver-me-ás saciar
todos os teus gostos
alvuras e mostos
da lira solar

Hoje a noite é una


em luz e razão
Dois olhos — e espuma

Enfuna-te, escuna

Aproa ao vulcão
ENQUANTO…

… Enquanto num riso sereno


à beira-lugre Estrela-Segundo
Mestre Fantasma, muito moreno
toma o barco do outro mundo
ESTE FRESCO JARDIM

Este fresco jardim era teu


Com suas terraças para o mundo.
Eram tuas as cores deste céu
E o pequeno pastor, ao fundo
PENA CAPITAL
PENA CAPITAL
NOTÍCIA

Enquanto três camelos invadiam o aeroporto do Cairo e o pessoal de terra loucamente tentava
apanhar os animais
eu limpava as minhas unhas
quando acabava de ser identificada a casa onde viveu Miguel Cervantes, em Alcalá de Henares,
eu saía para o campo com Rufino Tamayo
enquanto um português vivia trinta anos com uma bala alojada num pulmão
chegava eu ao conhecimento das coisas
Agora já não há braseiros — os destroços foram removidos —
os animais espantaram-se
e como se não fosse desde já um admirável e surpreendente esforço a nossa acção de escritores
afogado num poço canta um homem

ORADOUR-SUR-GLANE

Gritos brancos gritos pardos gritos pretos


não mais haverá braseiros — os destroços foram removidos

E não esquecendo o esforço daquele outro


que para aquecer o ambiente apareceu morto
e não enviou convite nem notícia a ninguém

Mundo mundo vasto mundo


(Carlos Drummond de Andrade)
os conspiradores conspiram
os transpiradores transpiram
os transformadores aspiram
e Deus acolhe tudo num grande cesto especial

A lei da gravidade dos teus olhos, mãe,


a lei da gravidade % aqui está % é um poeta
num barco a gasolina % não não não % é um operário
com um martelo na mão muito depressa
os automóveis passam o rapazio grita
o criado serve (se não servisse morria)
os olhos em vão rebentam a pessoa levantou-se
tantas crianças meu Deus lá vai o meu amor

Também ele passou trezentas vezes a rampa


— que estranhas coisas passaram % os poetas é que sabem

construção % construção
progresso no transporte

ORADOUR-SUR-GLANE

Souviens-toi

REMEMBER
HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE

Aos pés do burro que olhava para o mar


depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou


com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!
VINTE QUADRAS PARA UM DADÁ

Eu estou presente
todo eu sou sim
e é de repente
não dou por mim!

Um bom vazio
me vem encher
(nem sinto o frio
de me não ver)

Heróis antigos
olhos cientes
passam amigos
dizem parentes

Passam os manes
do eternal
e os ademanes
do amoral

Passam aqueles
com os aquelas
tanto sou deles
quanto sou delas

Sou de ninguém
estou em olvido
e mais despido
que Pedro Sem
Colorações
Trigos e joios
Caem aviões?
Chegam comboios.

Os tristes olham
o escasso cais
que as ondas molham
(Água demais…)

Os ébrios, esses
passam de largo
Ai Sá-Carneiro
Carneiro amargo

Praças pequenas
como alçapões
São os cinemas?
Serão ladrões?

E eu que não digo


eu que não deixo
eu que mim migo
só pelo queixo

Esfriei a rua
das Grandes Dores
fritei-lhe a lua
raspei-lhe as flores

Fui-me à de lata
sangrenta escura
patrícia pata
da dita dura

Esfriei-lhe o jeito
de assassinar
comi-lhe o peito
mais pulmonar

Esfriei as frentes
esfriei as trazes
fiquei sem dentes
merda, rapazes!

Gritar não grito


esperar demora.
Viva o infinito!
Ora, ora, ora.

Altas, morenas,
com janelões
boas pequenas
estas prisões!

Dão lá por dentro


gozos astrais.
Anda-se menos
pensa-se mais.

Ó burguesinhos
que quereis fazer
que heis-de fazer
queridos vizinhos?

Sabeis lutar?
Sabeis perder?
Viver? Morrer?
Que heis-de fazer?

Eu que não puxo


cabo ou começo
fluxo… defluxo… e
não sei. Nem peço.
E à multidão
contente e só
eles que são
e eu que estou

Apenas vejo
como se ouvisse
um negro harpejo
que nem florisse

Pois no que vi
não ver é que há
e eu estou ali
não estando lá.
PARADA

Com um grande termómetro no chapéu


e um certo ar marcial de género equidistante
todos saíram hoje das suas casas na duna
para a rua a soprar o vento que vem de longe
a certeza que há-de vir de longe
a formiga que vem de muito muito longe

Os prisioneiros polícias dos polícias prisioneiros


nas montras nos passeios por baixo dos bancos
passam os pontos escuros para o outro lado
sem esquecer o espelho
sem esquecer o aranhiço meticulosamente pequenino para fazer a surpresa
sem esquecer a borboleta tonta que sobe no horizonte
da cor do sol
o pescoço da nossa felicidade
DE PROFUNDIS AMAMUS

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me


os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
ESTAÇÃO

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te


vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada


De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
POEMA

Tu estás em mim como eu estive no berço


como a árvore sob a sua crosta
como o navio no fundo do mar
A UM RATO MORTO ENCONTRADO
NUM PARQUE

Este findou aqui sua vasta carreira


de rato vivo e escuro ante as constelações
a sua pequena medida não humilha
senão aqueles que tudo querem imenso
e só sabem pensar em termos de homem ou árvore
pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube)
o milagre das patas — tão junto ao focinho! —
que afinal estavam justas, servindo muito bem
para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar atrás de repente, quando necessário

Está pois tudo certo, ó «Deus dos cemitérios pequenos»?


Mas quem sabe quem sabe quando há engano
nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer
que não era para príncipe ou julgador de povos
o ímpeto primeiro desta criação
irrisória para o mundo — com mundo nela?
Tantas preocupações às donas de casa — e aos médicos — ele dava!
Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam?
Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar
e passou nela a roda com que se amam
olhos nos olhos — vítima e carrasco

Não tinha amigos? Enganava os pais?

Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido


e agora parado, aquoso, cheira mal.

Sem abuso
que final há-de dar-se a este poema?
Romântico? Clássico? Regionalista?

Como acabar com um corpo corajoso humílimo


morto em pleno exercício da sua lira?
O JOVEM MÁGICO

O jovem mágico das mãos de ouro


que a remar não se cansa muito
e olha muito depressa (como se fosse de moto)
veio hoje ficar a minha casa

Vivia longe longe já se sabia


tão longe que era absurdo querer determinar
metade campo metade luz
aí era a sua casa o sítio onde era longe

mesmo de olhos fechados (como ele estava)


e de braços cruzados (como parecia dormir)
o jovem mágico das mãos de ouro
que era todo de empréstimo à minha noite

que falou por acaso que nem se chamava assim


(segundo também contou) tinha vivido há muito
ele, que estava ali, era um falsário
um fugido de outro basta ver os meus olhos
nada sabemos de nós a não ser que chegámos
sem uma luz a esconder-nos o rosto
belos e apavorados de estranhos casacos vestidos
altos de meter medo às aves de longo curso

nem há noites assim não há encontros


ao longo das enseadas
não há corpos amantes não há luzeiros de astros
sob tanto silêncio tão duradoura treva

e não me fales nunca eu sou surdo ou não te oiço


eu vou nascer feliz numa cidade futura
eu sei atravessar as fronteiras das coisas
olha para as minhas mãos que te pareço agora?

No entanto surgiu como simples criança


conseguia sorrir sentar-se verter águas
com as mãos na cintura livre natural
ele que era um fantasma um fugido de outro

um que nem mesmo se chamava assim


o jovem mágico das mãos de ouro
desaparecido nu de todos os sítios da Terra
UMA CERTA QUANTIDADE

Uma certa quantidade de gente à procura


de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura


duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse


que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro
BARRICADA

Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando
para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já
belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-
nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para
um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que
corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama
feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a
barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é
um duende gritando no telhado às ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus
braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer
chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choraremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio.
Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó
arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e
arame, homens e arame, rosas e arame.
POEMA

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
OS BANTOS E AS AVES

Junto da pobre praia sempre suja


onde é desconhecido o automóvel por dentro
ele repousa da sua longa miséria
ouvindo o pássaro-bicho canta que canta
mirando o rio-pluma desce que desce
o molhado batuque das cinturas
Sobre a areia da cerca canta que canta
ele repousa ignoto na sua mão
que não tem que fazer. Na sua aurora
que não tem que raiar. Na sua cama
vincada há dois mil anos para ele

Convém que seja noite porque ele ri


e o seu riso é uma coisa insuportável,
uma feérica praia muito limpa
coberta de pancada e de água escura
À entrada da cerca canta que canta
assomou para ele o noivo-noiva estranho
com o seu passo de um dia de descanso
seu riso de água doce pela boca
(na cinta a chibatinha e a lanterna
na mão os dedos com que guarda tudo)

«Condicionalismo económico! Condicionalismo económico»!


protesta o pássaro-bicho canta que canta
gorjeia o rio-pluma desce que desce
ao dente sexual do automóvel por dentro

No entanto eles entram na cubata


juntos repousam nus do mesmo inferno
seus corpos eriçados de diamante
seus olhos de murmúrio e de paciência
são uma grande selva inconquistável
RADIOGRAMA

Alegre triste meigo feroz bêbedo


lúcido
no meio do mar

Claro obscuro novo velhíssimo obsceno


puro
no meio do mar

Nado-morto às quatro morto a nado às cinco


encontrado-perdido
no meio do mar
no meio do mar
YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

Entre nós e as palavras há metal fundente


entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos


há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,


as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos


palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados


e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
AUTOGRAFIA I

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore
miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente — tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris — já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião — não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais — também já por cá passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas
vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha

E para dizer-te tudo


dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O
Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu
retrato grande!
AUTOGRAFIA II

E era uma vez este homem


que era um chevrolet
casado com uma mulher de vidro
que era uma colher de prata
Tempos depois sobreveio uma zanga
que era uma criança nua
entre umas tábuas de passar a ferro
e dois elevadores lindíssimos

Metrónomo (disseram eles)

Verdadeira saudade pernilonga


o pára-raios pôs-se a esfalfar romanticamente o toldo
de uma máquina de escrever disposta para o amor às quatro no interior de um quarto
que era uma planície redonda semeada de vírgulas violeta
com um pequeno garfo nas costas
que era o amanhecer que é uma árvore
na boca de uma mosca de veludo rosa

Metrónomo metrónomo (disseram eles ainda)


«é uma árvore é uma pedra que vai começar o terceiro canto?»

É a aflição dos outros, meu amor.

Lembro-me de tudo como se fosse hoje


as crianças brincavam nos jardins
com um pequeno garfo nas costas
sem dúvida o mesmo de há bocado
e até era domingo vê lá tu
de repente apareceste muito devagar a meu lado
arrastando sem esforço dois aparadores baratíssimos
ai! a minha tristeza não era uma barca
breve houve lapidações em série
com um ligeiro clic de chaufagem aberta
todos os meus irmãos começaram a andar velozmente para trás
pobres dos meus irmãos que será feito deles e de nós que fizemos?

Impossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança


Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólume os espaços vazios
Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre os bichos e eu
tu meu único amor meu amor meu múltiplo amor meu
tu que és uma mesa redonda enamorada dos seus próprios círculos
um alcaide sem discos um maço de cigarros
que se descobriu flor
que se descobriu água
que se abriu de repente
que gritou de repente
que implantou na minha vida de repente a corola perfeita
da desorganização

Não me encontrarás como um anel na curvatura I — Z do teu dedo mindinho


nem na treva que exalta os teus cabelos
nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadíssima
encontrar-me-ás numa nuvem de escamas milimétricas em torno da tua boca
com toda a força principal na boca
ou nesta casa que é um homem morto
rodeado de rostos sempre translúcidos

— Onde está o homem que era um chevrolet


casado com uma vírgula de amianto?
Certo e sabido que anda sobre as águas que o matei sem querer
estas estrelas brilham com tal nitidez
que acabam sempre por tornar-se suspeitas

Não importa transfigurá-lo-ei em poderoso egípcio

Abracadabra! Vram! Abracadabra!


Os teus olhos estão belos como a lua dos rios exteriores
POEMA

Reconheço este quarto impermeável


reconheço-te estás adormecido
o peito muito aberto as mãos luminosas
o grande talento dos teus dentes miúdos

Há o perigo de um grito lindíssimo


quando andas assim comigo no invisível

Quando a manhã vier sairás comigo


para o espaço que nos falta para o amor
que nos falta

A aurora
está fatigada

a aurora
como um rio nosso
em torno dos elevadores

Tinha eu a idade
de um marselhês
silencioso
e tímido
Tu davas-me a lousa dos magos
o teu riso as letras
mais obscuras do alfabeto

Foi há muito tempo


ou agora
na caverna dos leões expressivos
A caverna que dá para a caverna
a caverna os lagos diligentes

Belo tu és belo
como um grande espaço cirúrgico

Porque tu não tens nome existes

A minha boca
sabe à tua boca

A minha boca
perdeu a memória
não pode falar as palavras
entram no seu túnel
e não é preciso segui-las

Disse que és alto


alto
branco e despovoado
POEMA

Faz-se luz pelo processo


de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz


não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como os amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca
A EDGAR ALLAN POE

Meu relógio soando de pés nus a quinta hora da noite italiana


minha cabeça de anéis dolorosos como jacintos pretos recém-colhidos
minha criança grande escorregando pelos braços da mãe quando mil candelabros dardejando nas
escadas dos palácios anunciavam um corpo delicado e quente
minha caranguejola de diamante entre a vida e a morte a graça e a desgraça a verdade e o erro
meu malfadado e misterioso homem
figura descida figura embrulhada figura muitos pés acima de si mesma e no entanto
figura de claridade
figura de homem deitado com uma estrela na boca escorrendo água
meu Eliseu do mar amado das estrelas
segredo das suas águas silenciosas
meu rio negro áspero venenoso cintilante e tremente esmeralda e violeta
por onde mil nadadores lutando contra a corrente procuram ainda em vão à superfície o que só
no mais fundo da água resplandece
a tua parede branca de aparições fumegantes

LIGEIA
«acima ou fora da matéria só comparável à estrela de sexta grandeza, dupla e variável, que se
encontra próximo da estrela grande da Lira»

MORELLA
de mãos frias e agudas, falando, falando sempre, «porque as horas de felicidade passam e a
alegria não se colhe duas vezes na vida, como as rosas de Paestum duas vezes no ano»

RODERICO
os cabelos sedosos em torno da face, os olhos grandes, húmidos, luminosos, os lábios numa
curva extremamente bela

«Contei-lhes a minha história» — «não quiseram acreditar-me!»


Mas há, sim, outros mundos além deste,
outros pensamentos além dos pensamentos da multidão,
arcanjos que se ergueram para cobrir desertos
onde só o universo arde
porque dois lábios finamente delineados tremem
porque Mentoni ainda ri, em traje de cerimónia, com a sua figura de sátiro
porque não houve forma de passarmos adiante e uma terrível nuvem cor de chumbo enche de
espantosa velocidade o espaço
Maelstrom Maelstrom dos teus olhos no mundo
Maelstrom destruindo caixas sobre caixas sobre o ventre total de uma caixa de música americana
como as que às vezes se vêem nos porões
as mãos brancas e nuas de firmes aranhas de prata
A ANTÓNIO MARIA LISBOA

O rato abriu o interior da cúpula


os amantes acharam água e mármore
criança de olhos de oiro ergue-te e anda
as portas estão abertas escancarado
o mundo das distâncias incalculáveis
e as palavras sentadas inúteis à porta dos dias
as trémulas palavras ainda quentes
dos machados de seda dos teus lábios
procuram sem cuidado a vertical
da nova supliciada arquitectura

O amor é um sentido! O amor é um sentido!


O AMOR É UM SENTIDO!

O amor é uma chave que deve perder-se


um burro que tropeça na vastidão dos mares
um solário na areia para soldados meninos
uma luz e uma sombra a cercar-nos a língua
Mas tu chegaste antes das pedrarias
antes de todo o intervalo para o crime
um risco de bondade separava as estátuas
e a treva era paciente no teu joelho

E depois longo tempo eu te perdi de vista


lá longe, numa fonte cheia de fogos-fátuos

De andaime para andaime o rato PASSA


de estrela em estrela — rumo aos arquipélagos —
uma minúscula mão percorre o espaço
como tu, Duque, deveste correr
a pé os mais altos montes
como ris no Himalaia antes de lá chegarem
com a arca de noé e quatro ou cinco dúvidas suplementares
os de sempre os
mestres — Mestres em morte! — (Eles agora pensam que é chegada a altura
de ensinar os montes a ler e a escrever…)

Estrela de Todas as Horas Odasashor — Asest — R

Daqui até Saturno sempre houve muito que andar


a não ser que se tome o caminho mais íngreme
eu tomei — se tomei! — o caminho mais íngreme
a raia da floresta entre onda e a lua
quando voltei não estavas só a sombra de um deus
falava da tua força e do teu hábito
Mas hoje as tuas mãos parecem-se comigo

Já não se trata de dançar com os mortos


ou de pedir à vida catedrais
maiores que o outro sono

Já não se trata de elmos e clareiras


onde o demónio grita deslumbrado

Mas de se olhar nos olhos a torrente


mas de tocar com o pulso um sol antigo
lá longe, onde se cruzam as nascentes
A ANTONIN ARTAUD

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.


Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.

Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria

Eu estou só neste avanço


de corpos
contra corpos
Inexpiáveis

O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso e cantante» suficientemente
glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem —
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante

Por outro lado, se eu tivesse um nome


um nome que me fosse realmente o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas

II

Haverá uma idade para nomes que não estes


haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras

Ah não será o esperma torrencial diuturno


nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão

Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo


os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas

Haverá
um acordar
DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO

Para Carlos Eurico

Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu leito, um corpo estranho e surdo
um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do outro reino tristeza de
menino a quem tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos
como os que ainda podem interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras com cuidado o oxigénio
que o espaço te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição de
animal fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de
um soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e iluminada como a
noite como um rasto de fumo sobre os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e gratas, a fazer a manhã de
outras paragens; outra sombra, outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a minha miséria, os teus braços e os
meus, altos como cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as escadas, fechar ainda a porta
do teu quarto, atravessar de um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas


DITIRAMBO

Para Daniil Harms

Meu maresperantotòtémico
minha màlanimatógrafurriel
minha noivadiagem serpente
meu èliòtrópolipo polar

meu fiambre de sol de roseira


minha musa amiantulipálida
meu lustrefrenado céu grande
minha afiàurora-manhã

minha fôgoécia de estátuas


minha lábioquimia cerrada
minha ponta na terra meu arsgrima

meu diamantermita acordado!


CONCREÇÃO DE SATURNO

vem dos comboios lentos


do cristal dos gritos
das mãos prodigiosas e dos seios de pedra corrompida
vem do fim das palavras inaudíveis
como um tremor de terra nos ouvidos
girando em tua órbita de agulhas
belo e desaparecido como o café chinês da Póvoa de Varzim dos tempos da minha infância
alto como dois rios inimigos
e perplexo e leal como um cometa arrastando as estrelas podres da memória
para a ponte velocíssima onde geme a farinha deste silêncio
para o latido dos cães de que só resta a baba donde emerges
com os teus préstitos de facas adoráveis setentrionais e unas como orelhas
com os teus lares de vírgulas ferozes
sem rosto contra a lua
ó meu barco de sempre
minha rota suspeita
meu grande ornitorrinco deportado por enormes travessas sem oráculo
por teus chumbos de discórdia teu hálito seminal de liberdade de homem
de homem-mãe
minúsculo ovo azul na pálpebra secreta dos meus dedos
encontrado-perdido encontrado-perdido

no erro dos aviadores quando tentam explicar determinadas sensações que o andar pelo espaço
causa ao homem

na festa magnífica de um reposteiro de veludo preto meticulosamente abandonado à fúria de uma


cama

nos dois tentáculos de árvore que apesar de tudo jorram da minha vida às dez e trinta da noite
esperança macho
nos dias em que marcho sem esperança até que um grão de areia fura toda a barragem subindo
rapidamente ao coração

Falo de uma montanha presa pela cinta


falo da festa mágica para a morte dos nomes
falo como se a aurora nos banhasse
como se nada houvesse contra nós
como se entre o teu rosto e a minha carapaça não mediasse esta ausência de um grito este lugar
friíssimo e necessário
e falando de ti anémona-menina em qualquer ponto da praia
falo de ti Saturno antilúnio antimuro antiaspiração ao desaparecimento

O único fim que eu persigo


é a fusão rebelde dos contrários as mãos livres os grandes transparentes
a primeira coisa que me alegra
é o doce roncar do avião
em cada ave que voa voa um homem
nunca foi tão exacto falar de realidade
mas a cisão do homem contra o homem instalou a espiral do grande assassinato
o bibe das mulheres miraculosas sob o arco voltaico da parada
para a consagração do acto macho
para o tan-tan da adoração sem escrúpulos
merda de merda Saturno afixa o teu revólver
arruína a esperança das cidades levando-lhes ao domingo o teu rosto suspeito
colore a mão das estátuas cintilantes
já estás grande demais para o teu leito

instala-te de lado o perigo é enorme

barbeia-te com ódio a barba ajuda


LEMBRA-TE

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
INTENSAMENTE LIVRE

Intensamente livre o homem dirige-se para a praia mais pequena que ele
leva na mão um mapa-múndi azul é a custo que desce as dunas mais pequenas que ele
e sem ninguém que ateste a visibilidade radiogoniométrica destes seres
o homem perfura o poço mais pequeno que ele
abrindo o leão de costas que há no fundo do poço
o doce leão alado muito limpo que há no fundo do poço

Como ver este homem o seu dorso a sua cabeleira


correria nocturna ao longo de um túnel em transe
onde será verdade onde é rosa íris
que este homem sobrevive
sob o seu talhe mais pequeno que ele
sob o seu pedestal a sua obscura força militar
e o seu porte essa porta essa maçã
de vinagre
essa locomotiva feita armada pronta para surgir
arrastando uma época sem calendários
cheia não só de estradas mas de signos de estradas
estrada-dedal estrada-violino corpo-estrada de Rei RapAz de Estrada

Há muito que vou com ele por um caminho livre


quem cessará primeiro? ele? o caminho?

Este homem que apenas nasceu — este homem


sem lágrimas
voltou-se! é prodigioso o espaço que arde na sua sombra
face árida lisa para o incêndio com as mãos
CORPO VISÍVEL

A esta hora entre os blocos de prédios enevoados a bela mancha diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentado seguido pelas aves que acordam a duzentos e mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
não são
quem sabe

Dentro do grande túnel digo-te a vida


esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada como a proa de um barco
bateira que me traz os dados e a roleta onde no branco ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
malmequer
bem-me-quer
ou muito ou pouco
ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito

Dentro do grande túnel digo-te a vida


o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do outro lado da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto impertinente e desde logo minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana tende a reduzir o indivíduo receptor ao
estado de serpente fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável

Eu digo que há tambores


mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira da porta — a tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da viagem —
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa avança sem deixar qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz na orla do rio a nuvem de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas — digo o grande baile do século na ilha

O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos perdidos


é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa dos meus dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo o fio da meada sem que é engraçado
hajam batido à porta entrado ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar

Livres
digo Livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais espectaculares — aí a memória é fácil

mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela tu que disseste:
«vai haver uma grande guerra»
«nenhum de nós eu sei escapará vivo»

vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze enterrada na areia
o écran que floresce
como tu como eu nos tubos que dissemos
fizemos
faremos acordar
até quando?

Amor
amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cintilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu preto as suas hastes mudas

Começa a ouvir-se o canto da cigarra


sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses aqueles que nos foram queridos
na maré límpida que nos impele sabe o polvo dos mares até onde e se haverá regresso
em qualquer lado a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda e sempre o teu rosto
como é fácil como é belo
A Vida Inteira Meu Amor
SOMOS NÓS
O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire decidida importância
amanheceu é óbvio amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica ou antes na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões

Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se pareça

O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade carfológica


verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de invólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção espantosa masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual admira-te vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um — o crocodilo
e dois — o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia sobre a cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lhe à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à esquerda a sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem atinja bravo bravo bravo a imobilidade do
sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos

Convenhamos meu amor convenhamos


em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo devido à miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que seja o último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
— A ensombração maligna de certas lágrimas quando a alegria é mais resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é quanto basta para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não o está na sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto uma flor especiosa
décor para a entrada pela esquerda alta da figura do Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu cinzento rosto impermeável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até aos confins da terra

Contra ele meu amor a invenção do teu sexo


único arco de todas as cores dos triunfos humanos
Contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de água por todos os lados estéreis
Contra ele meu amor a sombra que fazemos
no aqueduto grande do meu peito O MAR
OS BRAÇOS SOBRE A AREIA

Solta a nuvem como se soltava repentinamente no silêncio das coisas esse infinito turbilhão
de halos que eram a festa e a força do teu rosto, o céu abriu um buraco vazio que se pôs a
espreitar o soluço daquele que, nu sobre a rocha, estende para o mar as paralelas ferozes dos seus
braços. Quando a noite vier, e o recorte já frágil da nuvem desconjunta tocar o horizonte e entrar
nas águas, livrai-vos, vós, amantes atraídos pela aparente solidão dos rochedos, de procurar nas
concavidades próximas o leito ocasional da vossa estrela! Tu, meu amor — se devo voltar a ver-
te! — se ainda podes julgar ser possível abreviar assim as distâncias e o tempo… — que te não
lembre nunca cortar pelo atalho que inexoravelmente te deixaria à mercê, não dos elementos,
contra os quais, corpo a corpo, o homem pode lutar, mas de uma ambiência mais anti-natural e
envenenante do que os nervos do homem podem suportar. E vós todos, meus monstros
familiares, formas que andais de rastos toda a noite e que subis dois olhos rasos de água quando
um sol exuberante queima os vossos signos, afastai para bem longe, agora, essa procura, se
quereis que ela vos dure toda a vida! E o meu mais veemente aviso é para ti, cabeça entre todas
querida do assassino, ponte brilhando oclusa no universo, adolescência, tu, que deverias ser a
própria claridade e já afagas, sob as arquitecturas dos teus dedos, o sinal rutilante de mil votos
secretos.
É bem verdade que só o seu grito — que a distância transforma em música celeste… —
horroriza e afasta as criaturas das imediações. (Toda uma aldeia se mudou para longe quando
subiu pela primeira vez essa voz que ameaça sublevar contra ela homens e animais.) É bem
verdade que, se ele calasse, criaturas sem conto disputariam como um privilégio poder estar
junto a ele e, mesmo, tocar-lhe a fronte. Porque a sua figura, os braços sobre a areia, lança de
leste a oeste da sua base um resplendor tão intenso que uma ave, ferida em pleno voo pelo que
aos seus olhos aparece diferente da luz da criação, suspende um risco branco e desce até à rocha.
Ali estaca e rouqueja e passa horas, até que num pavor cuja raiz provavelmente ignora se lança
como uma pedra ao voo interrompido. Uma aranha do mar, seduzida pelo intenso dia desses
olhos que abarcam no seu raio a imensa e dolorosa distensão do globo, passou a um e um os
sulcos dos cabelos, chegou (como a um País!) ao começo da testa, e cravou nela o lar de seis
patas escuras, filhas da solidão, filhas do céu. Mas que se não conclua desse Fogo uma benesse
dada pelos deuses, nem se veja na insólita harmonia que por todos os lados esplende e
transfigura o seu enorme corpo acachapado, uma compensação requerida e outorgada. Se as duas
aguçadas fileiras de dentes se casam harmoniosamente com a celeste candura da face e dos
cabelos; se a juvenilidade do seu peito, experimentado e liso, recebe sem afronta a sombra de
umas mãos cujo desenho deixaria eufórica não importa que voz de câmara de horrores, é porque
um totem perverso e perseguidor lhe atirou como um dardo a sua maldição.
Um aranhiço, consciente da sua responsabilidade, desliza pela falésia e entra na areia. Ergue-
se o vento, e as formas alinhadas uma a uma nos grandes seios que apertam a duna, modificam a
sua anatomia, esfarelam-se sem ruído, e embora o aranhiço marche sempre, sem dúvida a
caminho do seu lar ignoto, o homem, menos apetrechado do que ele, deixou de circular pelas
cercanias. A areia lisa responde por isso… Então um sol prodigioso e negro explode no
horizonte! Atravessa os espaços majestosamente, e depois de riscar no céu iluminado uma
enorme figura chamejante, desce para o solo, desde grande altura. Esta é decerto a origem das
cidades porque já de todos os lados soam gritos e chegam casas aladas. Um barco maior que os
outros, ostentando nas velas cortinas de pássaros, levanta à proa um homem, as quatro
extremidades representando os pontos cardeais, as quatro direcções, as quatro únicas fontes! E
rutilando um fulgor muito frio, compacta sob a sua infindável dureza, surgiu, lua da noite de um
festim de cadelas, a tua boca. Ela tem mais veneno e mais horror do que toda a farmacopeia das
idades sombrias pôde descobrir. Vem ainda trémula do contacto das virgens que tu estendes nas
linhas dos comboios para tocares o fundo, não da epiderme fácil e oferecida, mas da alma que
grita dentro dela. Porque o amor, (agora és tu que falas), é um caso ante o qual só o vampiro
pode e sabe agir.

De homem ou de animal — visto que o homem já difere da besta, e não só pelo seu porte:
pela inteligente e estreme humanidade dos seus filhos; de homem ou de animal (embora fosse
melhor atribuir a qualquer espécie ainda não catalogada esse sangue, ou torrente de olhos
violentos que giram pela areia sem poder parar); de homem ou de animal — e eu penso nesses
seres ainda sem nome e ágeis, essas asas guardadas para voar; de homem ou de animal — uma
garganta clarifica a noite. Não é melhor do que a tua. (Nem mesmo pior que isso…). Mas é mais
resistente: lança a milhões de vóltios o seu pequeno incêndio.

(Com uma violenta contracção epidérmica fincou os largos cotovelos que sangram e
soergueu o busto: espreita a eternidade… Mas no mesmo momento fende a superfície, antes lisa,
da areia. A Terra abre e mostra as suas feridas.)

À transparência, entre alas de cristal, este quarto que parte para o desconhecido leva consigo
o chão de uma aventura que deve transcender os sentidos humanos. De um lado, o leão, do outro
lado, a águia. O amor na cama torna ao amor no espaço. Dizem-no assim, pelo menos, os
objectos raros que ainda voltejam em torno deste leito sem dimensão possível,
concentracionário. As velas apagadas e a brancura hermética de seis superfícies formando
pirâmide para um salto (aonde?), têm a caligrafia desse nome que se deixa, apenas, perseguir.
Quando a aurora forçar estas paredes e fizer emergir, sob as asas da sombra, as marcas desiguais
do mistério amoroso revelado — corta a mão que ficou no meu cabelo.
Leitor agradado deste poema mais eficazmente nefasto do que ao primeiro relancear de olhos
a curiosidade acusa: se ainda queres voltar à presença daquele que envia à natureza, através dos
seus braços estendidos, um desafio insolente; se algum instinto novo, ou até então obscuro,
desperta em ti o desejo de saber o que pode este texto fazer (ainda!) com ele — ou que revelação,
tu, que tanto me ignoras, receberás de mim se ao seu grito voltarmos — vira estas poucas
páginas e começa de novo. Como hoje me encontraste, encontrar-me-ás sempre… Quanto a ele,
acredita que, para o teu futuro (como para o futuro de uma humanidade que à falta de tarefas
mais elevadas pretende ser feliz, e que foi descobrir — sabem os anjos como! — que o saber é
uma estrela negra e inamovível em direcção à qual poucos singram intactos) é bem melhor que
fiques por aqui, que não o encontres nunca. Para viver, é preciso fazer mal. Antes, sempre, a um
outro, do que a ti. Por isso, se algum dia alguém te vier dar sinal da sua presença, ou se entre a
sua voz lancinante e contínua e a tua pessoa a distância parecer subitamente pouca, lança as mãos
aos ouvidos e procura correr, ainda que para isso tenhas de deixar saco de provisões e restante
bagagem.
UM CANTO TELEGRÁFICO

Este passo encontrado que nos guia entre as mesas


este chegar tão tarde às pontes levadiças
para uma exposição de rosas no nevoeiro
este eterno trabalho de dadores de sangue
é o que mais nos defende do massacre
vá recomecemos
do ocasional gemido do fantasma eriçado
as notas principais:

pendurar numa árvore o rio capitoso de tantas lágrimas


descer de chapéu na cabeça até ao patamar
dizer para sempre aos cabelos da noite
que basta descalçar lentamente um sapato
que basta ter achado atrás do travesseiro o relâmpago azul do contacto com as mãos
ou ter ido seguro por lençóis de linho a devastar de arbustos as solidões do teu corpo
do qual recordo ora as mais vivas carícias ora um mar interior de grande obscuridade
feito de todo o mármore do mundo de toda a areia que sobra do mundo erguido para o silêncio
que estrutura o dorso de todas as paisagens belas frágeis no mundo
descer depois já a chorar de medo e a tremer de amor todo o lado de cá
chegar de rosto na água a aparecer às janelas
com um capuz no sítio da cabeça

ah um automóvel!

Nós vivemos há muito nesta nova espécie de caverna bruxa


alta pelo silêncio que nos veste
real pela erosão de um sol peculiar que ilumina o recinto intermitentemente
um sofá que não é para aqui chamado
também podia servir de modelo à ampla descrição do fenómeno a luz
que nos excede e emite nos liberta e sufoca
depois há um que entra a perguntar o que é
e tudo assume um pouco o ar policial
dos casacos em fuga pela realidade fora

Merecemos o nosso passo de bichos de dilúvio


merecemos que nos ceguem todos os dias
merecemos estar sozinhos rodeados de prédios
merecemos ter connosco toda a vontade
fim princípio moleza de costumes
assassinatos histórias de basílicas
e até porque não dominicais
mas como não gritar à passagem triunfal do Grande Monstro Parado
como sermos bem nós e a localidade
muito bem disfarçada de necessidade
pela subterrânea passagem que é nossa
como não aspirar a um ponto do espírito um ou outro
em que a deflagração cristalize uma rosa ascensional
e como são as palavras para dizer que te amo
fantasma
cidade doida
braço contra as nuvens
alta promessa minha
sempre em vão coroada

Apetece contar uma história tão estranha, que as pessoas saiam aos tropeções de casa
apetece anunciar com voz fanhosa
cronologicamente cruelmente
todas as horas do pasmo
todos os dias do calendário do medo
todas as terças-feiras da angústia de haver rosas
todo o fumo e toda a raiva de um relógio de sol
Tomaram-nos o pulso e ficámos febris
com o amor que não há a inundar-nos a cara
este amor não esquece este amor
não se esquece há um rato
na tua camisa o céu brilha o céu está
os amantes retomam os seus quartos
num plácido e extenuante recolhimento gráfico
mas não basta encostarmo-nos à parede
para que tudo ressurja e vestir de novo as fardas
a imaginação ainda não é
para servir de pedreiro A Imaginação
as radiosas salas superiores
através da cidade nos jardins nas gárgulas
abre-se o leque das mil cenas celestes
com o homem na ponte cor-de-rosa velho
as mãos na água a cabeça no mar

Onde é sem partilha este verdete


esta limalha que nos sobem à boca
onde é esta verdade que empurra as estrelas
para intransponíveis mundos transportadores
uma última vez despedaçados amemos
amemos a nossa pedra o nosso olhar de mil cores
o mármore sem remédio das figuras bloqueadas
como são as crianças e os gigantes
uma última vez e mais estranhos
mais desertos de enigmas mais atrozmente firmes
sob a opulenta folhagem dos soluços

Dir-te-ei que os meus dias foram os teus dias o teu leito o meu leito o teu corpo este mar
dir-te-ei que há uma rosa oculta num jardim e que ela é uma e outra como nós fomos
estas pétalas são os teus olhos fechados
são as ondas por onde sopra o vento e nasce a cor da aurora e o grito gelado das coisas

Dir-te-ei foi agora


cintilante mortal contado a fogo
e breve
rigoroso

Na sombra repousante
os teus olhos os teus
vãos pensamentos
como um leito avançando sem suporte
ou um navio perdido do dono

Tu partirás primeiro de lado contracenando


e arrastando contigo toda a paisagem
vejo uma águia assustadoramente voando alto
na retina
do vento
vejo o que foi permitido: tocar o horizonte

Amanheceremos fantasmas doutro teatro de sombras


seguiremos imóveis caindo por distracção
de amarra para amarra tomaremos o eléctrico
para o fundo da Terra cidade lúcida e quente
e aí expostos de novo sempre à fúria de curiosos engenhos destruidores
interceptaremos outra vez a vida
digo-te sim faremos girar a Terra
com o polegar nos pólos canto telegráfico só captável pelo ar do Karakorum, entre os gelos
gigantes do Tibete
e o indicador no céu realizando o futuro da harmonia
para além de uma lágrima de um adeus com os olhos
numa estação sombria vomitando morte

Dito isto fica um grande espaço vazio


onde não chega o mais ligeiro canto
onde o homem está só não já de corpo ou de espírito
mas de todo o murmúrio e todo o espasmo
e então sim contra os vidros
o amor soluça tempestade
deuses cegos assomam às janelas e tombam
sobre o odioso chão que ladra e ladra
uma aurora de cães afivela o teu pulso
e a cobardia responde à cobardia
como a coragem responde à coragem

Um pouco de certo modo por toda a parte


há homens desmaiados ou simplesmente mortos
O AMOR REDIME DO MUNDO diziam eles

mas onde está o mundo senão aqui?


PENA CAPITAL

O Poeta, exorcismando no seu atelier nos astros:


das páginas do livro jovialmente aberto
primeiro os pés depois a cabeça sais tu
não estás nada parecido
mas és sem dúvida o que se pôde arranjar

Olho-te no meu espelho de atravessar os mares


olho-te com simpatia com anterior amizade
respiras
tu respiras!
e deste um passo para o lado como quem chega
um pouco mais a si o seu ar pessoal

Caramba caramba António


já estás muito mais parecido
ou então era eu que não me lembrava
Olha hoje o teu clima está magnífico
olha vamos sair desta cidade
onde o teu clima é sempre para dividir por cinco
vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos
vamos ser os heróis duma tragédia química
e convidamos o Azul por uma questão de princípio

O Azul, entrando:
Azul criado incriado
azul de todas as cores
dos caminhos anteriores
ao mistério revelado

António, erguendo-se agressivo:


Tu não és o azul tu és a morte
tu
estás feito com os meus olhos
fora daqui para fora
desaparece ou passo-te o automóvel em cima

O Azul:
Teus olhos lugar geométrico teus olhos estrada marinha
teus olhos vivos por dentro teus olhos treva exemplar

António:
Fora! Fora!

O Poeta:
Então que é isso rapazes estamos atrasados
toca a andar para o comboio meu amigo
e tu António cautela
já estás mais que parecido vai ser mau continuar

António chora, contrariado. E assim vão para o comboio, que os leva para o mar.

O Mar:
Eu faço a tempestade…

O Poeta:
Oh!

O Mar:
Eu, só, criei a terra por retirada minha…

O Azul:
Oh!

O Mar:
Eu dei o nome às pessoas…

O Azul e o Poeta:
Oh!

O Poeta, para António:


O Mar não dá nada às pessoas
O Mar é mau
O Mar o mais que dá é uma alma
negócio de bruxas — rrrrr

O Mar, para António:


Escuta, corpo meu, meu filho natural…

António entra na água.

O Poeta e o Azul, ajoelhados na areia:


Deus o guarde do Espírito do Mar!

António, gritando no banho:


Quando eu for pequenino aumentará o mundo
Tudo me será dado por acréscimo!

Passa uma flor perseguida pela Morte.

Flor:
Bom dia, boa noite.

Desaparecem. António volta do banho, António, O Azul e O Poeta comem figos e é


chegada a hora da lição. Dão-se humanidades, germânicas e ciências naturais. O Azul
ponta a lição servindo-se de um livro especialmente disposto.

O Poeta:
Pão a cozer…

António:
… Menino a ler.

O Poeta:
Fogo na palha…
António:
… Canta o canalha.

O Poeta:
Pouca atenção…

António:
… Cornos no chão.

O Azul, virando a página:


Virou!!

O Poeta:
Enterocolites…

António:
… Frederico Nites.

O Poeta:
Delirium trémos…

António:
… Dá cá os remos.

O Poeta:
Esterno-cleido-mastoideu…

António:
… Foi uma mulher que o perdeu.

O Azul, virando a página:


Virou!!

O Poeta:
A noite…

António:
… Não me lembro…

O Poeta:
A noite…

António:
… É o corvo em liberdade

O Poeta:
A Águia…

António:
… É o amor na cama

O Poeta:
Os Poetas…

António:
… São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética

O Azul:
Novalis.

O Poeta abraça António dando por finda a lição.Passam então, em velocidades


conformes:

Um barco a que faltam os pulmões


Goethe em cima dum plinto onde segue também o seu segundo Fausto
Um Frade que arrasta Ofélia pelo bico.

Reaparece a Morte com a Flor na lapela.

António:
Salvemos Ofélia!
Salvemos a pureza que vai pela mão
Salvemos o doce cabelo
Salvemos, pelo menos, o braço.
Corre atrás do Frade que puxa dum pau e dá para baixo bem em cima da cabeça de
António que se agarra ao Frade e luta com ele, esquecendo-se ambos de Ofélia, que se
atira ao mar.

António, largando o Frade:


Ofélia! Ofélia!

O Frade desaparece transformado em lobo.

António, chorando:
Poeta!…

O Poeta:
Não.

António, chorando:
Poeta!…

O Poeta:
Não.

António lança-se ao Mar, onde flutua ainda o branco corpo de Ofélia. O Poeta e O Azul
impedem-no de se afogar dançando com ele animada sarabanda que em estreitos
movimentos circulares os começa a subir pelo espaço fora.

António:
Olha olha os países.

O Poeta:
Não são mais do que três.

O Azul:
Eu vou acelerar vertiginosamente.

Acelera vertiginosamente. António começa a vomitar nuvens de borboletas brancas e


azuis, e a cabeça pende-lhe ligeiramente para o lado, forma expressiva de dizer que não
se sente bem.
O Poeta:
Dança! Dança! Dança!

O Azul:
Marialfabeta
Iowanalfabeta
Ariana alfa beta

Os Astros:
Um, três, cinco, sete, dez!
Dois, quatro, cinco, oito, um!

Voz, dentro duma nuvem:


Deixem passar Deus! Deixem passar Deus!

Passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais.

António:
Eu amava, tu amavas, ele amava…

O Poeta, analisando à lupa os olhos de António:


De olhos para olhos a distância aumentou.

Passam então por um pequeno Olimpo que anda a voar perdido de referências. Os
Deuses abandonam os jogos do costume e montam observatórios-periscópios por onde
estudam o grupo voante. Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros. A Máquina de
Consultar Os Astros diz o seguinte: Um, dois, dois, três, um. Das janelas dos terraços
alguns Deuses mais importantes escrevem em alvos cadernos individuais observações
pertinentes sobre o número e o propósito dos intrusos.

Caderno de Ares:
Tudo o que usa chapéu lhes diz respeito
Tudo o que à noite brilha conta com eles
Todo o anjo vestido de diamante
Toda a hora de luto e crueldade

Caderno de Zeus, em caracteres estenográficos:


São mágicos cartógrafos amando
pelos bolsos das calças A Montanha

Caderno de Afrodite Anadiómena. (Letra crispada, irregular, denunciando perturbação):


Vêm da Terra! Nada
pode já salvá-los!
Nem as Torres do Reino das Pacientes Esperas
nem as rosas da mais solene exéquia!
Pelo espelho das suas pernas nítidas
pela curva dos seus braços desce um pássaro
de límpida memória
e uma frota de cardos luxuosíssimos
segue-os para sempre para toda a vertigem

Caderno de Afrodite Urânia:


São quatro! QUATRO! Aliás, cinco mil
pronunciados por crimes de aparição na duna
junto à terra da Ilha dos Amores
na pálpebra de sol que me deixaram
vêm exaustos de esperança, exaustos de água,
respirando pelas mãos, ouvindo atónitos
a música da guerra que levantam

Zeus, num grito:


Que cesse todo o trânsito
entre um corpo e outro corpo
RODA E ESTRADA!!

Uma Vendedeira de Fruta, fechando as portas do Olimpo:


Estranha gente. Sem música. Sem armas
e bela, apenas, da sua própria beleza…

O Poeta, num murmúrio:


Para uma boca, outra boca, para um leito, o telhado.
Nem sempre, como se diz, a batalha é de flores.

Passa lentamente uma rosa.


António:
Olha olha uma rosa.

O Poeta, num repente:


As rosas deviam deixar de saber tão bem que são rosas
As rosas incomodam-me quando se põem assim
Com o ar de quem diz: Olha, este não é uma rosa no seu jardim

O Azul:
Ó rosas catedráticas! Esplendorosíssimas rosas!

António:
Morte, morte, morte.

Dito o que, desfalece. É óbvio que vai morrer. O Poeta e o Azul carregam-no para cima
de uma cama de folhelho, acendem duas candeias e velam a seu pés. Um vulto muito alto
que parece pairar na vastidão dos ares, mas que em verdade se dirige para eles a uma
velocidade vertiginosa, é A Morte.

António, delirante:
Poeta! Meu Poeta!

O Poeta, deitando sangue pelos ouvidos:


Eu vejo! Eu vejo! EU VEJO-TE!!

O Azul, soprando as candeias e gritando no escuro:


Dança!

O espaço tem agora a cor dos olhos de António.

Voz do Mar, falando de baixo:


Eu sei as bodas químicas do princípio e do fim
Eu, só, criei a Terra por retirada minha
Eu sei os grandes espaços intervalares
Eu sei Ofélia…

António:
Ofélia…

O Poeta:
Muito parecida, António, muito parecida.

Voz da Terra, falando de baixo:


Ah se toda a viagem fosse para mim
e todos os navios me buscassem!

A Morte, tocando a fronte de António:


HOME SWEET HOME

António morre.
O Azul, o Poeta, o Desmaiado e a Morte, descem em lentidão pelo ar abaixo.

Voz, dentro duma nuvem:


Não deixem passar Deus! Não deixem passar Deus!

Não passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais. O Poeta regressa ao seu
atelier nos astros, que a sua governanta encheu de flores. Faz café, que ingere em
goladas pequenas, sentado abstracto em cima do telhado. Chora um pouco e murmura,
olhando o céu escuro:

Sou um rio injusto, com margens de labaredas,


Se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.

Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor.
AUTORACTOR

Entre o amor que mata e o amor que se mata


descem rápido o pano do 4.º acto
é o fim
contando que nos deixem representar ainda
o formoso episódio do encontro no bosque
imagem do nosso trânsito único magistério
tirado da nossa água e feito com ela
idos cada vez mais ao nível da fénix
em carne e sangue vivos ao pé de nós descem rápido
o pano do 4.º acto
na plateia vazia sentou-se a metralhadora
e esta? não era costume
personagem tão nobre entrar assim
quando a peça vai ainda no ensaio
e das intenções do autor por ora falam apenas
os olhos em forma de til do prédio em frente

Do que me conta à noite a cabeça de corvo dos séculos dos séculos


(teu pai o sol tua matriz a lua teu filho o mais capaz o mais esbelto o mais livre etc.)
a morte morte mesmo entra pelo tecto
tum
recondução do corpo ao estado de corpo
comissura dos lábios e da caliça
os actores o autor a criançada e os outros
(se há alguns reis então é um sucesso)
procedem à reverência
procedem à profunda reverência
a esta bem conhecida ou como tal celebrada comissária indutora das coisas sublimes de cima e
das coisas sublimes de baixo
a morte agradece soluça voa pelos camarotes estende alguns pelo caminho contentíssima
e volta de novo a sentar-se

Assim era no tempo dos imperadores


e das primeiras repúblicas
aviões baratos e fortes, de fumaça anestesiante
ronronavam à entrada das cidades
para que não florescesse no canteiro errado
Melmoth o homem errante
testa de assassino
cara de labareda
perfil de suplício
boca de tempestade
à imagem e semelhança dos vinhos mais espumosos
e comprimidos
certos homens por sua forma e cheiro nunca admitidos ao espectáculo de gala da nova comida
rebentavam de vida por asfixia
e culminado o total pelo voo rasante de um que outro percebes perdido da base
aos domingos explodia a televisão
os aterrados cristos da hora do suplício
eram sempre os primeiros a desfilar
mas seguiam-se logo os primeiros do artefacto
os tac os pim pam pum os febre os injecção
e os anúncios
Sobre esta metafísica do braço picado
e remindo a mão pífia do artista atacado do célebre mal de piano
ainda hoje ondula a bela cabeleira de Beethoven
e algumas revoluções emergiram daqui o melhor do seu vernáculo
fora no entanto com a morte que vem pela mão da morte
o que se passa em cena nunca a morte o saberá

A cena representa
um rio à beira do rio
do festim que houve restam muitos sinais
no tronco de carvalho que vai à deriva
os lagartos pintados filhos da aranha de gala
tiram as sobrancelhas uns aos outros
ainda não é noite mas também
logo se vê que ainda não é dia
o mágico conduz o músico ao bufete
no sítio da cascata de obrigação estás tu a cena representa
os portadores de imagens
o primeiro edifício é um cinema pobre
que dá para a grande praça do obelisco
aqui é tudo mistério
contam a tropa do califa hassein
à ordem de rodolfo valentino
os fumadores estrangulam docemente a rainha
em costume escarlate cigarros sobre cigarros
no sítio da cisterna de obrigação estás tu a cena representa
a viagem por mar
tu levantas o vento dos corredores e fechas-te no quarto toda a manhã contigo
tu procuras a língua original e tombas num abismo de translação de corpos
chegou ao fundo a falua dos beijos
quem sair dela será rei do mar a cena representa
o desastre no moinho
minúsculas entidades postas de perfil para resistir mais tempo ao vento da eternidade
escalam os tempos de vida do poeta
lá em baixo parece que passa a tropa
trata-se na verdade de assassinato
saem a passo filósofos ratazanas terrinas de acesso duplo viagens ao conhecido
e extraordinariamente nos grandes dias felizes
sai a intentona subliminal da arte
na cela do vadio
implorando o milagre da ascensão do sol
doutor entregue às penas para sempre livre estás tu a cena representa
a oração da noite
que todos os dias começa no lado setentrional do quadrado da praça dita D. Pedro IV
e todos os dias acaba no lado norte do Jardim de Santos
à tua sombra avançam todos os meus gritos
de único muezin mil léguas em derredor
e ao pé de ti não há memória válida
ao pé de ti é a hora de partir sempre
não sem motivo choram na cadeia os velhos cristos de olhos purulentos
e a palavra de eterno deita sangue pela boca
e a noite faz à lua uma estrada limpa
és o tronco lançado pelos da mala-posta às rodas da carruagem
ergues-te e andas sobre toda a cidade
e a operação do fumo
o não-mais-drama o corpo
que se espacializa
esta aurora total a que chamam lepra
mil vezes a despimos e vestimos de novo
nós a fazer e a desfazer o leito
onde abraçados emergimos dos mortos
em direcção ao dos pés para a cabeça
norte sul orion a ursa Revolução a cena representa
(a cena final representa)
o cão em cima da árvore

em baixo corre o rio da pestilência

Bravo
sobem enfim o pano do 4.º acto
não foi de todo inútil a objurgatória anterior
começa a fuzilaria
tá-tá-tá
buum
trá-trá
BUUM

What a proud dreamhorse pulling(smoothloomingly)through


(stepp)this(ing)crazily seething of this
raving city screamingly street wonderful
flowers…1

Pois mas agora são os adereços que faltam


a cara de levar tiros o gato que tudo sabe
e tudo deita a perder
e onde estão os teus fatos os teus feitios inúmeros de dizer alto
que os homens e os bois são duas coisas distintas
porque se os homens suam e dejectam e PUXAM
os bois puxam para a frente e os homens puxam PARA CIMA
de onde o instinto aeronauta da espécie
que aliás não ofende o boi pois ágeis e pachorrentos
têm esposas célebres chamadas vacas
e uma quinta é sempre bonito de se ver do ar
Sim não há negar que
a cena vai subindo de luz e de coragem
e como diz no telhado Jean-Arthur Rimbaud
já não se ouve nada o tacto desapareceu
ainda somos nós lívidos insurrectos

a mais doce e a mais áspera intimidade do homem?


ainda somos nós o tesouro violento
com todas as formas de nuvem e de barco secreto
apenas esperamos
ninguém pode dizer que não nos vê
sentados a conversar com o leão de Nemeia
eu procuro do lado dos quarteirões desertos
tu pareces a igreja de S. Domingos a arder

1 E.E. Cummings
ESTADO SEGUNDO
I

Matilha promessa
Nossos Filhos
A Carpa

Palavras que nos guiam


que parecem
reais
II

A 10 000 metros de profundidade


o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:

Abre as portas do teu coração


é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam

Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido
III

Poucos conhecem uma carta


uma carta e um bilhete ilustrado com a tradução
duma estrofe
S. Marcos o sol a Santa Catarina
como se fosse no inverno à lareira
«no escuro dessas noites mal iluminadas enevoadas
desertas em que as casas com luz interior ou sem ela
têm muito relevo são pesadas e misteriosas»
Poucos poucos conhecem
os últimos dias do enigma
de uma porta chapeada de alto a baixo
à beira de um caminho ladeado de sebes de espinheiro
IV

Um corte nos dedos e agora


que estamos no inverno
vale a pena esperar mais depressa
a maravilha minúscula
o império
que foi comprado para bêbedos
a dez centavos o hectar
V

Katyn?
Grande Descoberta!

O homem encontra
com tão pouco esforço
o pus o sangue
a peste a guerra
VI

Seis horas três minutos

No rico reino dos ondatras


sobre os campos de batalha sob o aparente reinado
da massa
o dedo trémulo de uma criança
luta contra a dor silenciosa de sempre
subindo às maiores alturas
novos e estranhos náufragos em gozo de licença
quatro homens
que olham
enquanto
por todos os lados
quatro cadáveres
passam
VII

Dorme meu filho


dezenas de mãos femininas trabalham
a atmosfera
onde os namorados pensam
cartazes simples
um por exemplo
minúsculo crustáceo denominado cíclope
por baixo da pele ou entre os músculos

Dorme meu filho


o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas
VIII

Na idade em que a maioria dos homens vai para cima das árvores
levando somente a carga instantânea
há aqui palavras que se engolem como espadas
motores planejados para sofrer os maiores abusos sem queixas

poéticas viagens com Júpiter


um homem que nunca falhou
embora não seja orador
IX

No meio duma vedação circular, esperava a ocasião favorável a ignominiosos projectos


de entrada. E todas as noites, depois do jantar, a comissão de dança abarrotava de gente.
Examinaram o anel pondo-o de parte, ainda dentro do quarto. Qualquer coisa ardia ao
contrário, com frieza de ânimo e contrariamente à expectativa. Fixaram, também, com
virginal indignação, o grande quadro a óleo que pendia do tecto, certamente um ex-militar
pois no seu casaco farraposo havia fitas de medalhas.
A cancela rangia docemente quando, na mão de alguém, uma ponta de preocupação se
tornou de um cinzento pouco recomendável.
— Não, muito obrigado…
O dia surgiu a partir da fachada. Não havia neles cabelos brancos nem uma só linha que
estivesse seca.
X

Uma fonte
Alta, esbelta, resistente
arte de ser natural

ilumina agora o céu escuro


Para que não esqueçamos
A origem das pequenas invenções
e o suave e macio deslizar de uma pena tubular
encerrada, sempre húmida,

Da arte de medir o tempo


XI

Para os lábios
que o homem faz
que atraem beijos
ao redor do mundo
ficou na nossa memória
em qualquer parte a qualquer hora
um pedaço
de pão

Promessa
que se cumpre
que alimenta
o mundo

Olhos
a exigir
uma floresta
XII

Cego
para que os cegos vejam
quatro toneladas

A CIDADE DA VENTANIA

Erosão da alma
debaixo da roupa
XIII

As Luzes
Voltam A Acender-se

Olho o mais tentador dos delitos


o homem que volta ao abismo seu corpo
para demolir
uma noiva
no céu

Dulcineia
e o cisne
são a sua voltagem verdadeira

Imóvel como uma aula de desenho


ele é
o passo estratosférico do mundo
a imagem precipitada
a toda a altura
XIV

A enfermeira que esqueceu o amor


ciranda nos canteiros
e em cada quartel
o sol
despedaça aviões

Há tempo de matar e tempo de curar

Meus jovens cigarros


sempre prontos
para serem usados
ajudam
auxiliam
sempre
o homem
que nos não conhece
que nos rodeia
logo que entra
de mochos fumantes, de armas de guerra
XV

Nenhuma enfermidade
nenhum corpo
nenhum que tenha de viajar
enquanto cresce

Nenhum que fixe os instrumentos do processo


grandemente disseminado
nenhum que ainda simples
seja um serviço de homem
XVI

A vida
às portas da vida

e o azul masculino de um rio

Amor Ardente
de forma distinta
XVII

O fogo, rapidamente ateado pelos barqueiros, atingiu enfim a outra margem: os peixes
fogem em sobressalto apinhando-se em cima duma rocha onde, julgando-se seguros,
contemplam o espectáculo. A casa, realmente, está a chegar ao fim. Só as paredes mestras
resistem ainda e com elas um pequeno guarda-chuva preto abandonado na confusão do
incêndio. Os bombeiros envidam esforços sobre-humanos para salvar de entre as ruínas o
pequeno objecto, juntando-se-lhes uma multidão ululante e caótica. Furtando-me às Ma-
girus furo as chamas e levo-o. É sensível e triste como uma criança. Desenvencilha-se da
mão que lhe estendo para diligenciar andar sozinho, embora não tente fugir e caminhe
sempre a meu lado. As últimas derrocadas e as sirenes dos carros, no lado de lá da cidade,
parece que saúdam a urgência da nossa fuga e da nossa boda.
XVIII

Na ponte
uma fogueira
calma

(O final
entre sombras)
XIX

Muito acima das nuvens seja o centro


das nossas misteriosas poéticas
o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
nos ermos mais altos
mais desaparecidos
XX

Não houve
nunca
acima do mundo
a alegre aventura
de um sol militar
XXI

Ama como a estrada começa


PLANISFÉRIO
FIDELIDADE

Porquê não se sabe ainda


mas ainda aos que amam o poeta porque ele lhes dá o livro do não trabalho
e diz cor-de-rosa adiante de toda a gente
mas lhe lêem o livro só nas férias
(entre trabalho e trabalho)
e à noite vão a casas dizer cor-de-rosa em segredo a esses e ainda
aos que estudaram o problema tão a fundo
que saíram pelo outro lado
e armaram um quintal novo para as galinhas do poeta porem ovos
e disseram ao poeta estas são as nossas galinhas que tu nos deste
se elas não põem os ovos que amamos
matamos-te
e então o poeta vai e mata ele as galinhas
as suas belas galinhas de ovos de oiro
porque se transformaram em malinhas torpes
em tristes bichas operárias que cheiram a coelho

a esses e ainda
aos realmente explorados
aos realmente montes de trabalho
ou nem isso só rios
só folhas na árvore cheia do método árvore
PRANTO SOBRE DOIS TEMAS
GRATOS AOS PORTUGUESES

A António Quintela

Tenho braços tenho remos


tenho navios no mar
tenho um amor tão bonito
não me deixam namorar

Não me deixam namorar


não mo deixam sequer ver.
Vai-me a lembrança tão alto
qu’ inda me deita a perder

Inda me deita a perder


na cama grande do mar
Tenho um amor tão bonito
não mo deixaram ficar

Não mo deixaram ficar


por mor da satisfação
de quem nega moradio
à casa do coração

À casa do coração
aos seus quartinhos de altar
Tenho um amor tão bonito
não me deixam namorar

— Não chores filha não chores


que o teu pranto leva o mar
Água que sai dos teus olhos
ninguém na pode sarar
Prisão fosse a sua casa
o seu quarto, calabouço.
E cadeias os meus braços
à roda do seu pescoço

À roda do seu pescoço


como prenda tão subida
que não se me dava a mim
de prendá-la toda a vida

De prendá-la toda a vida


como a vela prenda a vante
Ela, de branco vestida,
eu, vestido de almirante

Eu vestido de almirante
sobre esta roupa que tenho
tão farta do meu tamanho
de escuna sem mar diante

— Não chores homem não chores


que te vão envergonhar
Água que sai dos teus olhos
ninguém na pode apagar
PASSAGEM DO ANTI-MUNDO
DANTE ALIGHIERI

O amor que é só o amor é já o inferno


diz Dante
mas isso era antes de ser traduzido pelos palhaços
era quando os Titãs asseveravam
que só no interior de grutas inabordáveis
sob gigantescas moles de granito
haviam conseguido viver livres

Era quando o inferno queria ser inferno


e para aborrecimento dos tenentes do empíreo
não havia a menor possibilidade de drama
depois houve e logo um fez a todos palhaços
os que estavam em baixo alaram os pés, para cima
os que estavam em cima puxaram a pista, para baixo

Fez-se um grande intervalo


este intervalo onde ainda hoje a Terra rola à força de vácuo
com homens que crescem e minguam pela força de inércia do vácuo
abandonados pelos grandes faz-tudos
que riem lá muito em cima e ainda mais lá em baixo

E que quer dizer isso de amor só amor?


partes alíquotas de dois na cama
que Dante nunca viu aos pés de Beatriz
Petrarca também não ao pescoço de Laura
Abelardo esse então no ventre de Heloísa
Tudo isso são histórias de encarregados
que andam a ver se não pagamos a conta
se damos sem vencimento a letra antiga
marcada a hebraico na carcela da história
São contos miseráveis de miseráveis
com vinte e cinco séculos de ódio ao corpo
o único transporte navegável
a única matéria que se aguenta
e aguenta
com dentro dele a linfa que varre tudo

O amor que é só o amor é já o inferno?


Bandido

Inferno é o nome do primeiro amor?


Vadio

Vós que entrais perdei toda a esperança?


Gatuno

II

Primeiro segundo terceiro quarto quinto


ao homem dos elevadores o cuidado de prosseguir
mas que amplexo de homem poderá dividir
somar
subtrair
o amor seu amor todos os braços da esfinge?
essa que quatro ao raiar da manhã
essa que dois ao longo do sol a pino
essa que três quando caída a noite
os passos voam no areal do tempo

O amor só amor é já o inferno


diz Dante
mas é o amor que é um fogo devorante
Não me refiro à prestação do calor
o pra baixo e pra cima também os êmbolos fazem
e todos os dias vêm navios ao mundo
Refiro por exemplo a estrela sextavada
que há no corpo do rio que é o amante
é aí que o amor é um fogo devorante

III

Aqui o limbo além o paraíso além o inferno


que cheiro a despegado meu general

Eu todos os meus anjos vão juntos para a guerra


se falta algum é como faltar o chão
PASSAGEM DE ÉMILE HENRY

Era no tempo da palavra papel


da pluma bem comida lançando ideias de justiça aos chineses
da espingarda de ar podre ao ombro de cada um

Depois de ver com os seus próprios olhos como é que o ratazana toma o seu chazinho
Émile Henry
escritor da literatura da dinamite
lança a segunda bomba à porta do Café Terminus
dado que: da má distribuição da riqueza e das coisas boas da Terra
TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA
PASSAGEM DOS AMANTES JUSTIÇADOS

Nós somos como a urina do primeiro mês de outubro


propala-se não cria
pega-se
não se desenvolve

O que temos para um crime não é essa matéria


com que alguns varredores limpam os cadafalsos
«morre jovem o que os deuses amam»
«não há estrada no mundo ó céus para estes»
e outras frases também invenção da polícia
para não deixar beijar a sério ninguém

O que temos para um crime é o nosso sangue


de animais quadripétalos convexos simples
entregues pela frota dos normais aos homens de rosto súplice
e sofrendo nos pés a imensa massa líquida oceânica

Nós somos como a árvore mais jovem


que todo o ano precisa ser cuidada

Mortos vamos e expulsos e incriados


mas é em nós que os planetas e os mais corpos do espaço
molham as mãos
e esmagam a cabeça
PASSAGEM A LIMPO

O navio morto
que sobe a corrente
de que velho porto
era o adolescente?

Cingiam-lhe a boca
água e nevoeiro?
Tinha muita, pouca
falta de dinheiro?

Bom barco, subido


aos da mor igualha,
tens o ombro ferido
até à fornalha

E puxado a cabos
— este rei de oceanos! —
por ginasticados
loiros namorados
a diesel e canos

Foi-lhe a estrela má.


— E se recomeça?
— Vamos daqui já
enterrá-lo depressa.

Vai morto. Não sonha.


Não grita. Não soa.
Saiu-lhe a peçonha
pelo buraco da proa
PASSAGEM

Um marujo rebelde

em busca de

pólen

uma camisola

sob os nossos pés

A CIDADE

Ea

Ave de Plumas de Ouro

como

quem

se

abandona

luminoso e mais belo

o homem
descobre

o metal do futuro

uma

nova cintura

verdadeiro

amor

fenómeno

micro eléctrico

raramente visto

o barco salva-vidas

isolado

perfeito
VOZ NUMA PEDRA

Não adoro o passado


não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada


sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco-íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
«a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma»
nada está escrito afinal
PASSAGEM DE RIMBAUD

Mazan Charleville Bruxelas Charleville Paris Charleville Paris Charleville Bruxelas Londres
Charleville Londres Roche Bouillon Londres Bruxelas,
Roche Charleville Paris Londres Alemanha Suíça Itália Marselha Charleville Holanda Batávia
Bordéus Charleville Viena Charleville,
Holanda Hamburgo Suécia Dinamarca Marselha Alexandria Roma Charleville Hamburgo
Charleville Suíça S. Gotardo Lugano Génova Alexandria Chipre Charleville Egito Aden,
Djeddah Suakin Hodeidah Massava Aden Zeylah Harar Bubassa Harar Aden Zeylah Harar
Hubbe Harar Aden Tadjurah Ankober Antoto Harar Aden Cairo Aden Harar Aden Harar
Zeylah Aden Marselha Roche Paris Lião Marselha.
PASSAGEM DOS ELEFANTES

Elefantes na água optimistas à solta


optimistas à solta elefantes na árvore

elefantes na árvore optimistas na esquadra


optimistas na esquadra elefantes no ar

elefantes no ar optimistas em casa


optimistas em casa elefantes na esposa

elefantes na esposa optimistas no fumo


optimistas no fumo elefantes na ode

elefantes na ode optimistas na raiva


optimistas na raiva elefantes no parque

elefantes no parque optimistas na filha


optimistas na filha elefantes zangados

elefantes zangados optimistas na água


optimistas na água elefantes na árvore
A CARTA EM 1957

Quando assentaram em que era urgente o poeta apesar dos olhares que ele lançava a tudo e
daqueles casacos de trazer pelos mapas
todos se viram a braços com mil dificuldades
em primeiro lugar a da morada
Um prédio da cor dos pássaros disse o ao fundo da sala
fora deixa lá ver dois anos antes
ou já tivera aquilo e era depois? não interessa
de qualquer forma jardim do tabaco
carnide portas de loures
alto magro peludo pouco de aconselhar
escrevia não escrevia
cumprimentava não cumprimentava
ia não ia demais
provavelmente até onde os outros estavam quietos

era ele!

posto o que entraram os jornalistas em acção


por meio de telefonemas:
se não se tinha visto se seria possível ah isso é que era obrigada desligo
e sondaram também algumas mulheres de porte sexual
que atribuíram aquele preguntâme todo às polícias políticas
e não abriram bico sobre coisíssima nenhuma
e ainda se riram deles fazendo imitações

Bem
havia outros poetas mas esses já estavam de acordo
até pela apresentação a tempo e horas
de valorosos trabalhos eleitorais
simples fortes de resultado à vista — nada de metafísicas —
como se tinha visto nas também grandiosas
eleições anteriores
esses porém estavam certos mais que certos
o que convinha agora era que o outro aparecesse
não fossem lá os bandalhos julgar
que o poeta estava co’s outros ou que se calava
num grande insulto a todos
(é dizer: de propósito)

Volta não volta veio uma informação de paris


mas tão contraditória sendo boa
que até fazia mal lê-la
segundo o relato o poeta estava agora
em três sítios ao mesmo tempo
na negra moscóvia
na branquíssima washington
e nas londres
além disso
e aqui o informador amarfanhara um pouco o papel do relato
o-homem-tinha-um-plano

Um Plano!
exclamaram os poetas politas de Lisboa
sabe deus se conforme
com a excelsa dignidade que nos leva
neste momento de consciência humana
às eleições igualmente grandiosas

Entretanto
algures
rua amália kandinsky
o poeta premia os intestinos
tinha acabado de traduzir Rimbaud
e preparava atmosfera para mais
alguns trabalhos decentes em prosa rítmica
a literatura propriamente saía-lhe
a barriga é que estava cada vez pior
a um febrão sucedia-se outro
com mais sal e pimenta à volta do prato limpo
os graves problemas da pátria enferma
como que coincidiam (na região do corpo)
co’ aquela aguda sensação de desgraça
que ia do esterno ao sexo e à região das mãos
de modo que pela pátria ele ia com certeza
assim lhe dissessem onde
nunca tal lhe seria mais difícil
do que evacuar depois de dez dias de molho
ou saber vomitar apenas as coisas más
Diga-se agora em abono da verdade
que um poeta nem sempre é tal qual uma pátria
não tem hotéis nem caminhos-de-ferro
nem imprensa por ele nem ordenado
onde se engana vão vê quem o corrija
até ficam contentes
e qualquer juiz do supremo é mais a sério que ele
(também que por isso mesmo se tem visto
muitíssimo bom poeta na enxovia)

Quanto ao da liberdade
o poeta atingira os tamanhos adultos
num grande cemitério sempre cheio à força
de jazigos que não assentavam na terra
nem ficavam no ar eram como flores brancas
onde as pessoas se deitavam a respirar
pequenos dísticos saíam da terra húmida
o mais impressivo de todos rezava assim
— o homem que queria fazer uma revolução veio para aqui pensar nisso
não maces a sua forma de revolução —

Apesar disso
ou já com isso às costas
o poeta forjara realmente um plano:
louvar o ser amado
ter amigos leais
escrever todos os dias ou dia sim dia não
publicar (o possível)
e protestar com lhanesa com simplicidade quer pessoalmente quer por telegramas contra toda e
qualquer prepotência mandona

Este plano tão simples tão nacional


é que ficara longe da realização
para amar com decência eram precisas muitas muitas coisas
principalmente gente menos zangada
para ter amigos leais que seria preciso?
e protestar com lhaneza com simplicidade quem pode ter lhaneza e simplicidade quando lhe dão
para baixo em cima do cabelo com um pau?
ORTOFRENIA

Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém
ALEGORIA DO MUNDO NA PASSAGEM DE
ARNALDO DE VILLANOVA

Ouro trigo leão e prata e crina


te esperam sob o vaso menstrual
Separarás primeiro a água e a mina
porque a Água não é um mineral

No coágulo te espera areia fina


e sob a areia planta sideral
que ao manto do Rei Verde se combina
porque a Planta não é um vegetal

Ao homem cabe o Ouro de buscá-lo


E a sua cria morta ou imortal
tirá-la-ás do ventre de cavalo
porque o Homem não é um animal

E se o espelho de cobre te fascina


se te aparece o Monstro do Umbral
que à ígnea terra o atro abismo ensina
e nas trevas afunda o Bem e o Mal

Reduz expurga fende e ilumina


e com espada de fogo talha e inclina
porque o Fogo não é o seu sinal
URGENTE

As bombas matam porque sofrem duma espécie de doença incurável


que as faz ganhar saúde quando as largam no ar
uma vez expostas à lei da gravidade
e por ela arrastadas para o mundo humano
as bombas precisam de explodir tal como uma criança precisa de urinar
até fazerem um lugar onde fiquem
que se não mova que seja
como um direito a isso
ao pé do deus adulto que lhes deu comida
POEMAS DE LONDRES
VISTO A ESTA LUZ

Visto a esta luz és um porto de mar


com reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços

Constroem-te uma ponte


que deverá cingir-te os rins para sempre

O que há horrível no teu corpo diurno


é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar

Quero-te sempre como não querer-te?


mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade
OUTRA COISA

Apresentar-te aos deuses e deixar-te


entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo


que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato


de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto

pôr-te na posição sexual


tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato
OLHO O CÔNCAVO AZUL

Olho o côncavo azul do firmamento


é tarde
um sobretudo agita-se para os lados de alcântara

Felizes os que morreram canta um sino


e com certo compasso certa razão se se pensa
na quantidade de espaço ocupado
pelos que sopram coisas há séculos debaixo de terra
os que vêm aqui fazer eternidade grandes ovas do espírito
e não levam para lá coisa nenhuma
nem um pequeno vaso uma estatueta de bolso
um balão de criança que é tão leve
nada
porque o lá não existe lá, nós que carreguemos
as mil missas em ré do bicho-de-conta
as quinhentas pinturas do mão já nenhuma
o bilião de palavras do caveira três
e mais os planetas desertos, que também mandam coisas

Felizes os que morreram realmente ó sino


mas mais felizes ainda os que mataram
mais felizes os que ergueram à altura simples do corpo punhal fundente
as molas sete e oito da grande máquina
e a quebraram nos ossos do espectáculo
porque ele é a usura
da noite de cavalos submergidos no lago
a estrada contra-curva
onde Harcamone passa a caminho do teatro
a uma mesa de mortos galvanizados
Porque a poesia não é para galvanizar isso
a poesia a poesia
o recôncavo azul do firmamento
que é negro
e outras coisas mais
se ainda é tempo de ver por cima do prato
os vigia os paloma os clandestinos os lâmpara
os invisíveis anjos guardadores
do trabalho que não pode ser adiado
e não esta linguagem de lamento esta linha de rogo que frustra a voz
não este verso exposto a mil vagares na almofada branca de uma página
mil vezes decapitada na praça pública
em oitavas e quartas paralelas e sétimas dominantes cheias de horror
e ainda assim contentes
de bailarem em torno do seu próprio círculo
mas o que na manhã só uma vez quase ouvimos
um para o outro
um dentro do outro
mais interiores à magnificência da espécie
do que aos espaçosos e nobres labirintos do canto
PICCADILLY CIRCUS

Uma pomba atravessa Piccadilly Circus


em direcção ao rio

em baixo
grandes extensões desérticas de pernas
ressoam como forças paralelas
nos tubos do grande órgão

o homem
é o mar
e o mar «é em cima, como nas gravuras»

no dilúvio da luz
um braço pica-se numa seringa
que hoje faz vinte anos de amor bárbaro
todos os lábios falam português por baixo das palavras selvagens que dizem
e mesmo os pensamentos de olhos muito azuis
ideando quem sou no subterrâneo alado
este onde o homem redescobriu o sol e o cobre de cabelos de liberdade
e o submerge no ouro das palavras
e o devasta de corpos e de auroras
Piccadilly Circus
lugar geométrico da terra
disco rodando o espantosíssimo número
do casamento
do metal
com a carne

Vicente Huidobro sobre a torre Eiffel em 1917


é aqui que estás hoje
com sacos de pop-corn
e gestos de a quatro e quatro
na noite de cabelos mais alta que todas as luas

Sobre os dois seios de Trafalgar Square


a água sobe branca
aos olhos de Lord Nelson

eu entro sigo saio torno desapareço


caminho muito acima dos meus ombros
sou quem vejo num espelho que vai de autocarro
para um hoje de cidades sem fissura
sou o bombeiro que volta do incêndio
com nos dedos o riso do fogo extinto
a salamandra assistindo ao futuro
e ajeitando ainda
ainda um pouco
o colo
BEING BEAUTEOUS

O meu amigo inglês que entrou no quarto da cama e correu de um só gesto todas as cortinas
sabia o que corria
digo disse direis era vergonha
era sermos estranhos mais do que isso: estrangeiros
e tão perto um do outro naquela casa
mas eu vejo maior mais escuro dentro do corpo
e descobri que a luz é coisa de ricos
gente que passa a vida a olhar para o sol
cultiva abelhas no sexo liras na cabeça
e mal a noite tinge a faixa branca da praia
vai a correr telefonar para a polícia

E não bem pelas jóias de diamante os serviços de bolso e as criadas


digo ricos de espírito
ricos de experiência
ricos de saber bem como decorre
para um lado o sémen para o outro a caca
e nos doces intervalares
a urina as bibliotecas as estações o teatro
tudo o que já amado
e arrecadado no canto do olho a implorar mais luz para ter sido verdade

O meu amigo inglês não se lembrava


senão dos gestos simples do começo
e corria as cortinas e criava
para além do beijo flébil que podemos
a viagem sem fim e sem regresso
SHAFTESBURY AVENUE

Vi um anão inglês e fiquei perturbado


desceu-me a chávena ao peito como quem sofre
julgava ter olhos para tudo e não os tive para isto
um anão inglês a atravessar uma rua inglesa
com um fato à inglesa muito curto
e a mãozinha inglesa a dar a dar

Eu que ainda ontem escrevi um poema


sobre os tamanhos fantasmas dos ingleses
as pernas de oceano dos ingleses
os braços florestais dos ingleses
dei um salto para o chão e entornei a bebida sobre o pedinte
que afinal também há nas casas de chá barato

«Dwarf! Dwarf! burning bright»


«In the forest of the night»

Que nome lhe darão na intimidade?


Vic? Jimmy? Christian Dwarf Road?
Deixá-lo-ão sair para o estrangeiro sem ser de circo?
Quem já viu um anão inglês em Sintra?
Mérida?
Ferrara?
Quem apertou o sexo aos ingleses
e lhes pôs estas caras de infinito langor
apertou também a ti?
«Did He smile His work to see?»
«Did He who made the Lamb make thee?»

Claro que isto são maneiras


Não vivo como o outro, preso pela espinha
aos caudais da verdade.
De um lado Buckingham Palace
do outro o caso do
profundamente humano.
E seria inglês, este anão?

Não seria italiano?


ODE A OUTROS E A MARIA HELENA
VIEIRA DA SILVA

Sol de apaziguamento sol gelado


sol coberto de beijos só uma vez na neve
que começou a cair às quatro da tarde em Lausana
tinha eu acabado de arranjar hotel
às oito da noite em Grenoble

Era uma noite quente de princípio de estio


com uma cor de folha muito junta
as pessoas tomavam coisas era festa
eu tomava nos braços um poeta
que ia fugido em direcção a Marselha
de auto-stop ia ele com uma mala
o que não nos fazia mais felizes
e depois fiquei só ao pé daquele rio
que falava espanhol sempre que lhe tocavam

Tudo na Suíça! Tudo pela Suíça!


Anoitece e as primeiras idades do mundo
levantam a cabeça por cima de Évian
o próprio lago Léman
não é o que parece à primeira investida
a 30 de Fevereiro sob a névoa oferece
a paisagem perfeita de um oceano
um pouco mais pequeno que nature é certo
e um pouco mais ao norte também digo
mas só lhe chame lago quem não sabe
e eu soube-o há duas horas comovidamente
que dormem nele as presenças primeiras
do casamento do mundo
os primeiros ensaios da matéria
em direcção à boca actual do homem

Se to dissesse não acreditavas


mexe-se com um dedo ao de leve na pedra
e começa a aparecer
um pé vi eu capaz de esboçar de um só traço todas as telas sombrias de Rembrandt
uma pata preta com garras
vi também uma boca de orador antigo
com dentes do tamanho das tuas pernas
no dia em que a encontraram não longe do teatro
onde hoje toca Richter
levaram-na a correr para palácio
e instalaram o todo sob vitrina
mas o resto daquilo ainda vaga nos mares
qualquer dia aparece e cai tudo para trás
Claro não surge sempre um soldado de César
ou um ferro totémico de Gilgamesh
(para quem não sabe: o primeiro herói lendário
que também era bicha ou o primeiro bicha
que também era herói, para quem saiba)
mas todos podem levar qualquer coisa agradável
ou cristalina ou medonha
vidro de bolso
tarso desirmanado
e os que não podem fumam e passeiam
o que ainda não é pequena maneira de ter

«A técnica por excelência xamânica consiste na passagem de um plano cósmico a outro.


O xamã é detentor do segredo da ruptura dos níveis. Existem três grandes planos
cósmicos ligados por um eixo central, o Pilar do Céu. Este eixo passa por uma “abertura”,
um “buraco”, por onde o espírito do xamã pode subir ou descer em voos celestes ou
descidas infernais.» Mircea Eliade

Que pena realmente o nosso excesso de mares


e o nosso realmente só querermos isso
que pena a praia abandonada às ondas
e a lua que não deu uma para a caixa
assim como fizemos nem os bichos quiseram
foram todos para a Suíça que é mais perto
mesmo do vácuo mais perto da morte branca mais limpos
(digo bichos decentes de vários metros de alto
porque ao cão e ao gato tanto se lhes dá)
A neve nos sapatos como uma barba
lembra-me o Gama dos livros da infância
Que chapéu que ele usava!
Então aquela Índia começava assim?
E o mar que nós fizemos só para ser ondeado?
Crianças de piroca grande a remexer na trave do infinito
Luís de Sousa Luiz Vaz de Almada Luiz Pacheco
depois da praia surgia o terror
e depois do terror a destruição
Tudo o que aniquilámos porque parecia nosso sem testemunhas
e era jovem dúctil como um corpo nu
que esburacámos vivo só porque tínhamos ferros para isso
e assim não ficou escrito nunca será lido

«Para os Esquimós, por exemplo, o Pilar do Céu é em tudo idêntico ao poste que colocam
no centro das suas habitações.» Mircea Eliade

Por isso a tua Cidade Suspensa é toda a nossa história por contar
o nó que nos cerca a garganta sabiamente o abriste sobre a tela
a negro e a vermelho a cinza e a branco silvestre
para sempre livres do dédalo nosso
mas como ele mudo silêncio do nosso silêncio
E todas as bibliotecas inundadas perdidas incendiadas
todas as quimeras onde houve gente e de que não resta pedra sobre pedra
rosto ao lado de um rosto num portal antigo
por isso a tua Gare Ilimitada a que arrancaste portas e telhado para homens e mulheres poderem
sempre partir
e os infindáveis baralhos de cartas onde a cada momento interrogaste o destino
ó vieira das silvas dos teus cabelos
presos à dança da pedra e do ar
«A este propósito, lembraremos o mito de uma idade paradisíaca onde os seres humanos
podiam facilmente subir ao céu e estabelecer relações familiares com os deuses. O
simbolismo cosmológico da casa e a experiência xamânica da ascensão confirmam, sob
outro aspecto, este mito arcaico. Eis como: depois da interrupção das comunicações fáceis
que, no início dos tempos, havia entre o céu e a terra, certos seres privilegiados (e em
primeiro lugar Vieira da Silva) continuam a poder efectuar a ligação dos planos superior e
inferior. Da mesma maneira, os xamãs têm o poder de voar e de aceder ao céu através da
‘‘abertura central’’, enquanto para os outros mortais essa abertura serve unicamente para
a transmissão de oferendas.» Mircea Eliade / Mário Cesariny

Por isso a tua Cidade para Gatos onde Rimbaud terá sempre o seu quarto
e onde Cecília a Doce vai começar a abrir
os seus braços de vento misturado ao vento
por isso as tuas mãos traçando linhas à passagem contínua do navio
que fantasticamente flutua a teu lado
e o vale o vale imenso aberto a branco
onde para sempre a tua mãe repousa
e onde um dia quem sabe tu também
minha rainha negra para um cavaleiro húngaro
minha «águia imperial rindo às dentadas»
para o mais obscuro coração da matéria
minha nossa senhora da vitória
que corre o espaço sem morada certa
Ofélia roubada a Hamlet Inês de Castro Szenes
pelo poder da sucessão infinita
e pela força do sacrifício total
quando se abre uma porta como o inferno
e o invisível te procura na sala
para que ilumines todos os seus portos
e todo o seu afã de eternidade

Estátua por descobrir no chão da catedral


mas que tu vês
negra e lenta surgir na madrugada lívida
sobre os olhos em chama o exílio mudo
nossa nossa senhora de Paris
POEMA

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam do esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz rasante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos
O INQUÉRITO

1.ª Voz
Armazenadas todas as essências

2.ª Voz
Dividido o calor

3.ª Voz
Dispostas as correias de transmissão dos cabelos

1.ª Voz
E a mão a alada mão que resume a experiência

2.ª Voz
Despidos mas não mais que as petrificadas roupas

3.ª Voz
A pouco e pouco passamos

1.ª Voz
A mosca do infinito serve à mesa

2.ª Voz
Faz a barba aos homens

3.ª Voz
Dá bilhetes para

1.ª Voz
É como se vestisse fato novo
quem nem sapatos tem para ir à polícia
2.ª Voz
Quem será o juiz desta manhã sem cadáveres
docemente despida para fora do movimento

3.ª Voz
De um lado escadas do outro lado escadas

1.ª Voz
Dir-se-ia que vai haver parada

2.ª Voz
Se houvesse uma chave para abrir esta história
de espelhos deitados ao longo da praia

3.ª Voz
Porque é que não se largavam? Porque é que não tinham casa?
Porque é que a cara deles estava sempre maior?
Mais imóvel? Mais lenta? Mais cega de claridade?

1.ª Voz
Este tempo está feito um domingo monstruoso

2.ª Voz
É dos que lavaram do cavalo as mãos

3.ª Voz
Levaram os sonhos para casa

1.ª Voz
Fazem de mortos para escapar aos vivos

2.ª Voz
Fazem de vivos e fazem mal

3.ª Voz
Entretanto no fundo de olhos inteligentes
agitam-se oceanos de saliva
1.ª Voz
Um pequeno espaço no tempo
de que os pilotos gostam

2.ª Voz
O interior do meu navio a branco

3.ª Voz
O interior

1.ª Voz
O interior do meu navio a branco
são estas avenidas sem retrocesso
onde o sangue pagou o seu tributo ao esqualo
e onde tu não estás meu triunfo e meu espasmo
de corpo livre a ver o vento aterrar

2.ª Voz
Agora já passou agora basta

3.ª Voz
Agora regressar ao interior do navio

1.ª Voz
Agora vêm aí pedir-nos a verdade
como quem pede o troco do planeta para as dez
dez e meia onze horas da manhã

2.ª Voz
A verdade eu explico

3.ª Voz
Arcturus e Astralis egípcios-alemães
passam neste momento na direcção norte-norte
a terra vai tremer e precipitar-se

1.ª Voz
No donde nunca saiu embora se mova

2.ª Voz
E com ela a verdade

3.ª Voz
Verdade azul verdade branca dos rios

1.ª Voz
Verdade em linha recta dos olhos dos namorados

2.ª Voz
Verdade cor de muro

3.ª Voz
Cor de cinema pobre

1.ª Voz
E depois cor de fogo verdade escura cor de homem

2.ª Voz
E sabem para que são estas verdades todas
e todos estes livros de moradas?

3.ª Voz
São para glorificar o corpo a corpo
o boca a boca o calça a calça e as mãos nas mãos perceberam?

1.ª Voz
Não não perceberam

2.ª Voz
São milhares de cabeças separadas do tronco
mantidas por filamento fixo à nuca

(breve pausa)
3.ª Voz
Até aqui nada de extraordinário

1.ª Voz
Nada a ver com o grito do sol no horizonte quando uma ave subitamente sangra
e os sonhos voltam à sua casa no espaço

2.ª Voz
De um colchão carbonizado pouco fica

3.ª Voz
Erguia-se limpava o braço azul deixava ficar tudo como estava

1.ª Voz
Mas dele até ao pó e às sombras dos sapatos
quantas revoluções perpetuadas

2.ª Voz
Ali onde a parede não faz chão

3.ª Voz
E diz então que a catedral era em baixo

1.ª Voz
Não adivinho como nos encontrámos

2.ª Voz
Perguntava isto e aquilo respondia rindo

1.ª Voz
Ou era eu que ria não sei bem

2.ª Voz
Entrámos numa escada

3.ª Voz
Mas a alvura dos muros era contra vós
1.ª Voz
Com as costas da mão toquei-lhe no sexo fortemente arqueado dentro da roupa

2.ª Voz
Comecei a tremer como uma vara verde

3.ª Voz
Puxou-me o outro braço e apoiou-se pesou sobre mim como se eu fosse a base do universo

1.ª Voz
Ouvi o trabalhar de um relógio de pulso na minha nuca

2.ª Voz
Que som para a eternidade

3.ª Voz
Quase fazíamos a mesma altura a mesma sombra sobre o chão de pedra

2.ª Voz
Mas a farda marcava-lhe a figura enquanto o teu casaco adejava no ar

3.ª Voz
Falei-lhes nisso e ele riu divertido

1.ª Voz
«Então tu gostas mesmo»

2.ª Voz
«Gosto de quê»

1.ª Voz
«De um homem»

2.ª Voz
Não lhe deste resposta

2.ª Voz
Que resposta haveria para dar

1.ª Voz
Era um jogo de aves do paraíso num céu iluminado a caixas de fósforos

2.ª Voz
E o halo dos seus braços contra a porta chapeada

1.ª Voz
E o rosto soerguido num mimo trágico

2.ª Voz
Como de rei ou mago santo ou santa

3.ª Voz
Como acha então o mundo?

1.ª Voz
Algumas vezes foi preciso matar

(breve pausa)

1.ª Voz
Impossível saber para onde foi a nuvem
nem porque faleceram os principais

2.ª Voz
A cadeira a vapor da cerimónia

1.ª Voz
A augusta farrapa reluzente

2.ª Voz
Enquanto a bicicleta duma alegria enorme entra pelo mar dentro tenazmente saudada pela solidão
das barragens submersas que expelem barbas verdes para fazer a noite

2.ª Voz
Muito alta muito branca muito educada
a estátua tóxica avança

3.ª Voz
Todos atravessaram para ir ver o desastre e não houve desastre
houve um garoto com uma gaiola e uma rapariga que vendia laranjas há muitos anos

1.ª Voz
Quatro pequenos ratos formam hemiciclo

2.ª Voz
Mas nunca a rua pareceu tão deserta

3.ª Voz
Às quartas-feiras o amor é um plágio

1.ª Voz
Um vento de cadáver refrescado
produzido em quantidades industriais

2.ª Voz
Grandes barcos sem hélices são levados a correr para a cama e aí expostos ao sol dias inteiros

3.ª Voz
Verdade e água para todos diz o vento

1.ª Voz
E conquanto eu não creia muito em mim

2.ª Voz
Nem seja dos que andam à procura para a construção da personalidade

(risos)

3.ª Voz
Aqui está uma montra para ajeitar a gravata
1.ª Voz
E aqui está uma esquina para tratar do assunto

2.ª Voz
Dedo mindinho pressão na barriga maquinismo de levitação para a letra A
Dedo médio arco-íris o maquinismo liga à tinta verde transe para a emersão da letra M

1.ª Voz
É a letra do meu nome

2.ª Voz
Dedo anelar rosácea e estrela cadente letras U letras R e conjuntivas parágrafas
que me abstenho bem de nomear

3.ª Voz
Para a letra K é preciso que corra sangue

1.ª Voz
Empregar só nas grandes ocasiões

(breve pausa)

3.ª Voz
Até aqui nada de extraordinário

1.ª Voz
Já não custa nada o amor

2.ª Voz
Já não custa nada a experiência

3.ª Voz
Nada o beijo na boca

2.ª Voz
A cintilante piscina dos braços
1.ª Voz
Já ninguém tem a mais pequena imagem do leão que rasteja entre as arcadas

2.ª Voz
O caso é todo o da ampola marinha que emergiu com o seu espelho à hora do começo do
movimento parado

1.ª Voz
Na coluna marítima espelhada
a fria a lacónica data inexpressiva

2.ª Voz
Gatilho de todas as horas esperança tu sufocas

3.ª Voz
Ainda podes subir à altura dos telhados
e ver como rebentam as ondas na praia

2.ª Voz
É muito
é já demais
um dia e uma noite ao largo dos oceanos

3.ª Voz
Momento de beleza!

1.ª e 2.ª Vozes


Chora por mim que estou alegre
por esta paisagem de sangue
por estas rosas nos pulsos
da carne-mar da cidade
e chora pelo meu barco
de peixes e ventoinhas
marujos sem capitão
nem carta de identidade
violências e razão
castidade e crueldade
abraços de arribação
e outras plantas daninhas
que sobem ao coração
e fazem dele cidade
E também pelo segredo
que se não vende a ninguém
a chave de meter medo
à porta que se não tem
e pelos gestos sensuais
em rítmicas ondas mansas
demorados animais
assassinos de crianças
e pela confirmação
que não chegou à verdade
por Joaquim e João
por António e seu irmão
de excelsa virilidade

3.ª Voz
E pelos mortos nos mastros

1.ª e 2.ª Vozes


Jean-Claude Carlos José
Manuel Augusto António
que deviam ir de rastos
mas que se têm de pé
por pacto com o demónio

2.ª Voz
Chora enfim o mar insulso
desse honesto capitão
que prometia ser forte
e não tem direito ao lote
que lhe acaricia o pulso
que lhe floresce na mão
que lhe resvala na sorte
das ondas minha alegria
do vento carinho meu
ai chora por esse barco
espatifado contra o céu

(breve pausa)

1.ª Voz
Acenderam-se fogos sobre o rio

3.ª Voz
São vivas setas multicores
que o mais pequeno nada intersecciona
num movimento de pequenas ondas

2.ª Voz
Como se a noite negra
manasse
e das ondas em roda
o manto de Oberon cobrisse a água toda

(breve pausa)

1.ª Voz
Limpem bem os fatos

2.ª Voz
Lavem muito os dentes

1.ª Voz
Batam na engomadeira

2.ª Voz
Façam filhos

1.ª Voz
Sejam sensuais
2.ª Voz
Senso ais

1.ª Voz
Sexo ais

2.ª Voz
Procurem o buraco próprio

1.ª Voz
Da vossa saliência

2.ª Voz
E a saliência

1.ª Voz
Da vossa reentrância

2.ª Voz
Não tenham medo

1.ª Voz
Comam

3.ª Voz
O leque é extraordinário

1.ª Voz
Galinha

2.ª Voz
Pato

1.ª Voz
Tudo

3.ª Voz
Sejam alegres

1.ª Voz
Necessários

2.ª Voz
Sadios

3.ª Voz
O cofre dos países

2.ª Voz
Zanoni

1.ª Voz
Sutmil

3.ª Voz
Catorze

(breve pausa)

E diz então que a catedral era em cima

(breve pausa)

Tudo isto tem a ver com o conhecimento


de um pequeno jardim no meio da cidade
quando o sono e o silêncio despovoam a terra
e o último vagabundo entra a porta sem número e vai desaparecer correndo pelo telhado

(breve pausa)

2.ª Voz
Os barcos russos chegaram a Havana

1.ª Voz
Vou comprar uma camisola

3.ª Voz
Os barcos russos não chegaram a Havana

1.ª Voz
Vou comprar uma camisola

2.ª Voz
O pássaro cujas asas são dois olhos escuros vivos como chamas

3.ª Voz
Foi comido pela máquina fotográfica

(breve pausa)

1.ª Voz
Dois de sete pediu o meu amor

2.ª Voz
Mas caiu-lhe o boné

1.ª Voz
Tudo quanto ali estava foi ajudar a achar a trazer a limpar

3.ª Voz
Viste-o assim pela última vez

2.ª Voz
No meio de uma roda de transeuntes baixando-se a aceitar o boné que dançava

1.ª Voz
Erguendo-se e fitando-me nos olhos, fixo.
ATELIER

COMECEI A FORMÁ-LO PELAS PERNAS MAS ISSO AGITAVA-O DEMAIS OBRIGAVA-O A SER MAIS FORTE
DO QUE ERA.

COMECEI OUTRA VEZ PARTINDO DA CABEÇA, UMA BELA CABEÇA ERIÇADA DE PÊLO, QUANDO
CHEGUEI AO PEITO DEU UM GRITO DE IRREPRIMÍVEL ALEGRIA E VOLTOU A AGITAR-SE, AGORA
PERIGOSAMENTE. AS PAREDES DA CASA, TENTANDO DEVOLVER A FORÇA DE ÁGUA AZUL, CONVERGIAM
SOBRE ELE.

PAREI PARA FUMARMOS UM CIGARRO.

É UM CORPO MUITO BELO, COM A LIGAÇÃO ÀS MÃOS PERFEITAMENTE ASSEGURADA. OS OLHOS TÊM
ALGO DE MEDITERRÂNICO MAS O CABELO É COMPACTO, COMO NAS RAÇAS FORTES.

PREPARO O OUTRO CORPO, MAIS EXTENSO E MAIS ÁGIL. A ÁGUA VERDE ILUMINA TODA A SALA.

COM UM SOM AGUDO DE CAMPAINHA DE PRATA EXTINGUE-SE LENTAMENTE O ANTIGO ANTICORPO.


COMPREENDO A SUA SÚPLICA, O SEU FEROZ DESESPERO. É TUDO O QUE AINDA RESTA DAS IDADES
SOMBRIAS QUE NOS VIRAM NASCER, DA ÉPOCA EM QUE A FORÇA DILACERAVA A FORÇA APENAS PELO
GOSTO DE DILACERAR.

APAGO A LUZ E ESTENDO-ME. OS DOIS CORPOS GERADOS DANÇAM DE RODA, SAEM PARA O DIA DA
TERRA, INTERNAM-SE NO BOSQUE. OS SEUS TRAÇOS, AZUL E VERDE PROFUNDOS, SÃO VISÍVEIS DURANTE
MUITO TEMPO, NA ALVURA DOS TERRAÇOS, NA MONTANHA, NAS EXTENSÕES ILIMITADAS DO CAMPO, E
SEMPRE QUE ME VOLTO PARA O LADO DA LUZ.
CORTINA
CARTA DO XAMÃ

Para Mário-Henrique Leiria

Sagani bô
tangara pura
kormos ama orgiski oibonkungata
amagat
pûra toli
nigarasun kulin panaptu pana
karain bô
oigos timir vershok toli
amagat pûra tabitala ak kam
aiami kara kam oigos timir
NOMENCLATURA PARA DEPOIS
DO ÚLTIMO KATUN

Para Emilio Adolfo Westphalen

O Noite Constelada Almiscareiro Pobre


A Dama Destrutora do Coração da Água
A Dama Mocho de Asas Estendidas
O Pássaro de Fogo de Rosto Solar
O Veado-Estandarte
O Senhor do Rosto do Nascimento do Céu
O Grande Macaco-Artífice
O Dez Folha Escamosa
O Nove Fecundador, o Sábio
O Senhor da Flauta Vermelha
O Senhor de Estandarte de Turquesa
O Sete de Cem Patas Escolopendra
O Sete Coração Oferto
A Bruxa Preciosa da Água a Jorros
O Grande Carniceiro Caracol Terrestre
O Um-Senhor
PROCLAMAÇÃO DA SERPENTE

A Julio-Saúl Dias

De ora em diante não mais serei venenosa,


O meu veneno — ei-lo! — deitei fora,
Hoje risco o meu nome das folhas do livro bíblico,
Estou farta de maçãs e da forma espiral,
Vou começar outra história.

O leão e a águia, ouvindo isto,


Ficaram angustiados.
Como representar o nosso papel
Se te retiras?, diziam,
Tu, a mais necessária ao cálculo do voo!
Ao percurso directo, corrigiu o leão.

Mas a pôpa, o estorninho, o gato mouro e o esquilo


Pulavam de alegria
E saudavam a serpente que se afastava
Liberta para sempre do ódio extinto.*

* O penúltimo e o último versos são de Manuel Bandeira.


CANTIGA DE AMIGO E DE AMADO

Ca morreu o meu amigo


o que surrealista migo
na escurana da manhã,
ca morreu o meu amigo
por todolo bem que fez consigo
vou pôr outro Dolviran

Ca morreu o meu amado,


o que se fazia no prado
sobre las terras da louçã,
ca morreu o meu amado,
pelo sabor que me ha cobrado
vou pôr outro Dolviran

Ca morreu trigoso e gentil


e não mais irá a fossado
nem de seu elmo constelado
terá nome Alexandre O’Neill
ca morreu má hora e mau grado,
em as ondas do mar quebrado
vou pôr outro Deprimil

E s’ dormiu, o de corpo delgado,


sob’ lo pano mais fraguado
que todolos que possam estar,
nessa côrte que não tem lado,
em o quarto mais retirado
o seu sopro quero catar

E se lá secam as delgadas
e as aljavas deslustradas
que gostosa eu lavava aqui,
não mais serei destas estradas
e destas terras desterradas
irei pôr o Dolviran i.
ALGUNS VOCÁBULOS PARA A COMPREENSÃO

AA — Vocábulo germânico celta que significa Água.


AHAB — Rei caldeu tão mau que foi lançado aos cães.
ÁGUA LUSA — Água limpa e clara. «O mar está muito lúsio».
ÁGUAS DO CHEFE — Esteira da nau capitânea.
CORREREM AS ÁGUAS COMO SANGUE — Grande força de água.
AMANTE — Cabo de bitola e comprimento que tem num dos chicotes um rabicho e no outro
mão e sapatilho.
APARELHO DE LAMBAREIRO — Estralheira que vai engatar num turco de ferro cujo
cadernal inferior engata na cruz da âncora por meio de um gato de tornel, para o levar à
raposa.
ARMAR À RAPOSA — Evacuar.
ARCTURUS — Ver no Enrique de Ofterdingen, de Novalis.
ARTISTA — Rapaz que passa a vida na rua.
ÁRVORE — Mastro.
ARVOREDO — Conjunto de mastros e de vergas de um navio.
ATERRADO — Mais chegado a terra do que se deseja.
BOCA — A maior largura do navio.
BRAÇOS — Tratando-se de horas da noite obtidas pela posição dos astros, o termo designa os
braços da figura humana que o navegante imagina colocada no pólo, face ao observador, e
com os braços abertos na direcção Leste-Oeste.
BÚZIO — Atestado médico.
CAFETEIRA DE BICO — Nome de terra que não existe.
CÂMARA — Diarreia. «Morreu de uma purga que tomou fazendo muitas câmaras de sangue».
Sebastião Prestes.
CASTIÇAL — Cópula em que a mulher se coloca de costas por cima do homem.
CATORZE — Coveiro.
COLARINHO DE ALCAXA — Ou de alcaxe. Gola volante com três fitas brancas, estreitas, que
servem de cercadura e fazem parte do uniforme dos marinheiros da Armada.
COPO DE LEITE — Marinheiro da armada fardado de branco.
DAR VOLTA AO MUNDO — Fazer uma rotação completa com o navio.
DONZELIM — O mesmo que Pau do Donzel.
ELEFANTE — «… e porque se vinha armando um grande chuveiro a que chamam elefante…»
João de Barros.
FIEL DO GATO — Cabo ligado ao olhal de que alguns gatos são munidos.
FLAMENGO — Bilhete-postal.
FRADE DE VENTILADOR — Frade em cujo extremo é montado um ventilador.
GATO DE TESOURA — Sistema formado por dois gatos independentes.
GATO DE TORNEL — Gato que gira livremente em torno de um eixo.
LAGARTO — Patarraz que liga as cabeças dos turcos.
LAMBAREIRO — Gato de grandes dimensões que tem no chicote mão com sapatilho.
MAR — … agitado, de água branca, atravessado, cavado, cruzado, desencontrado, desfeito,
espelhado, esperto, estanhado, verde, em flor, de fora, grande, interior, lançado, largo, de
leite, livre, vivo. Ver em Isso Ontem Único, de António Maria Lisboa.
MARAVILHA — «Diz, louco, que coisa é maravilha? Amar mais o longínquo do que o
próximo, e mais o visível corruptível do que o invisível incorruptível». Raimundo Llull.
MASTRO — … do artimão, da contramezena, da contragata, do contraguente, enfaixado,
escarvado, de fortuna, da gata, inteiriço, da mezena, em pirâmide, em pagode, mastro real.
MOITÃO DE COLHÃO — Moitão de dente que tem o topo da caixa, do lado do cu, prolongado
em cunha a fim de não morder o tirador.
NAVIO — … ardente, assistente, das cartas, à corda, de cruzes, de ferro, de linha, longo, de
poço, redondo, de rodas, navio testa, navio telhado, navio de tronco, navio vivo.
PAU — … da amura, da bandeira, da borda, de botões, da bojarrona, de carga, de combate, das
costas, de cutelo, de donzel, de flâmula, de frade, da giba, de Jacques, de palanque, de
patarraz, de pica-peixe, do redondo, de sécia, de serviola, de surriola, de varar.
POLACA — mãe.
POA — Cabo em cujo seio está o sapatilho onde se fixa o amante da bolina.
SOL — … o Sol empinar, o Sol fora, o Sol não ser de consideração, o Sol não prestar, o Sol
passar pelo navio, segurar o Sol.
TESÃO — «Não havia braço são que pudesse romper o tesão da água». João de Barros.
UM POEMA DE LUIS CERNUDA
BIRDS IN THE NIGHT

O governo francês — ou foi o governo inglês? — colocou uma lápide


Na casa número 8 de Great College Street, Camden Town, Londres,
Onde Rimbaud e Verlaine, par exótico, tiveram um quarto,
Viveram, beberam, trabalharam, fornicaram
Durante algumas semanas tormentosas.
Ao acto inaugural assistiram decerto embaixador e presidente da câmara,
Todos os que em vida de Verlaine e Rimbaud foram seus inimigos

A casa é triste e pobre, como o bairro,


Com a tristeza sórdida que vai com o pobre,
Não a tristeza fúnebre do que é rico sem espírito.
Quando a tarde cai, como naquele outrora
Sobre o passeio, húmido e cínzeo ao ar, um realejo
Toca, e os vizinhos, que vêm do trabalho,
Dançam, os jovens; os outros vão para a taberna.
Breve foi a amizade de Verlaine o bêbado
E de Rimbaud o vadio, e em constante querela.
Mas podemos pensar que acaso um bom momento
Houve para os dois, pelo menos ao recordarem
Como tinham deixado para trás mãe insuportável e esposa enfadonha.
Mas a liberdade não é deste mundo, e os libertos
Em ruptura com todos, tiveram de pagá-la por alto preço.

Sim, estiveram ali, di-lo a lápide atrás do muro,


Presos ao seu destino: a amizade impossível, a amargura
Da separação, e logo o escândalo; para um
O tribunal, dois anos de cadeia, graças aos costumes
Que a sociedade e a lei condenam, pelo menos nos nossos dias; para o outro
Errar sozinho de um a outro canto da terra
Fugindo ao nosso mundo e ao seu famoso progresso.
O silêncio de um e a banal loquacidade do outro
Compensaram-se. Rimbaud repeliu a mão que oprimia
A sua vida; Verlaine beija-a, aceitando o castigo.
Um amarra à cintura o ouro ganho; o outro
Malgasta-o em absinto e mulherzinhas. Mas ambos
Sempre em conflito com as autoridades, com a gente
Que enriquece e triunfa com o trabalho dos outros.
Então, até a negra prostituta tinha direito a insultá-los;
Hoje, como o tempo passou, como passa no mundo,
Vida à margem de tudo, sodomia, borracheira, versos escarnecidos,
Já não importam neles, e a França usa os seus nomes e as suas obras
para maior glória da França e da sua arte lógica.
Os seus passos são investigados, dão-se a público
Detalhes íntimos das suas vidas. Ninguém protesta agora, nem se assusta.
«Verlaine? Ora adeus, caro amigo, um autêntico sátiro
Quando se tratava de mulheres; bem normal era o homem;
Tanto como você, ou eu. Rimbaud? Católico sincero, como já está provado.»
E recitam-se trechos do «Barco Ébrio» e do soneto às «Vogais».
De Verlaine não se recita nada porque não está na moda
Como o outro, de quem lançam textos falsos em edições de luxo.

Ouvirão os mortos, o que os vivos dizem deles?


Oxalá não: há-de ser um alívio esse silêncio interminável
Para aqueles que viveram pela palavra e por ela morreram
Como Rimbaud e Verlaine. Mas o silêncio ali não impede
Aqui a farsa elogiosa repugnante. Já alguém anelou
Que a humanidade tivesse uma só cabeça, para cortá-la.
Exagerava talvez: fosse apenas uma carocha esborrachada.
UM POEMA TRANSMITIDO
POR FRANK MITCHEL*

Com suas vozes me chamam


Com suas vozes me chamam

Sou o filho da Mulher-Concha-Branca


Com suas vozes me chamam
Sou o filho do Sol
Com suas vozes me chamam
Sou o Rapaz Turquesa
Com suas vozes me chamam

Desde as duas pontas do arco-íris, turquesa no horizonte,


Com suas vozes me chamam
Os cavalos do Rapaz-Sol-Descido
Com suas vozes me chamam

Os cavalos turquesa são os meus cavalos


Com suas vozes me chamam
Estrépido de água de pedra negra os cascos
Com suas vozes me chamam
Ponta de flecha a ranilha das patas
Com suas vozes me chamam
Espelho de pedra listada os cascos
Com suas vozes me chamam
Vento escuro as suas pernas

Com suas vozes me chamam


Sombra de nuvens as caudas
Com suas vozes me chamam
A mais preciosa fábrica seus corpos
Com suas vozes me chamam
Nuvem negra sua pele
Com suas vozes me chamam
Esparso arco-íris as crinas
Com suas vozes me chamam
Nasceu-lhes o sol diante para sobre eles raiar
Com suas vozes me chamam

Lua nova a sua sela


Com suas vozes me chamam
Arco-íris suas cilhas
Com suas vozes me chamam
Imóveis sobre o arco-íris
Com suas vozes me chamam
Os chuva-negra-quatro-pés, de crinas caindo em onda
Com suas vozes me chamam
Brotos de planta as orelhas
Com suas vozes me chamam
Grandes estrelas negras seus olhos
Com suas vozes me chamam
Todas as águas da primavera as faces
Com suas vozes me chamam
Lábios de concha seus lábios
Com suas vozes me chamam
Os seus dentes concha branca
Com suas vozes me chamam
Com relâmpagos na boca
Com suas vozes me chamam
Postados no meu caminho
Com suas vozes me chamam
Pólen de aurora seus beiços
Com suas vozes me chamam
Bocas de flor e orvalho
Com suas vozes me chamam
Ao meu braço direito, belos para a minha mão vindos
Com suas vozes me chamam
Este o dia que os vê meus
Com suas vozes me chamam
Sempre multiplicados nunca perdidos
Com suas vozes me chamam
Os meus cavalos de vida longa e venturosa

Com suas vozes me chamam


Com suas vozes me chamam

* O compilador não dá o nome natural do índio navajo autor do poema; é sabido que as crianças das reservas ao entrarem para a
escola da administração norte-americana sofrem um segundo nome. No livro Sun Chief, Don C. Talayesva relata: «… Quando a
minha irmã foi pela primeira vez à escola, a professora cortou-lhe os cabelos, queimou toda a roupa que levava vestida, deu-lhe
roupa nova e um novo nome, Nellie.// A minha irmã não gostou da escola e ao fim de alguns dias deixou de lá ir. Escondia-se dos
brancos que podiam forçá-la a lá voltar. Aproximadamente um ano depois, a minha irmã foi buscar água à nascente de Oirabi-o--
Novo, com uma calabaça do ritual Ooquol, e aí foi capturada pelo director da escola, que a deixou entregar a água na aldeia mas
exigiu que se apresentasse na escola depois da cerimónia. Então, os professores, tendo esquecido o nome que primeiro lhe
haviam dado, passaram a chamar-lhe Gladys.»
«Sou o filho da Mulher-Concha-Branca». A versão anglo-americana diz «I am the child», o que poderia dar «criança» (ou «cria»,
num mais nativo que não vem no texto).
Refere-se não apenas à própria mãe mas à-mãe-e-ao-clã a que a mãe pertence, o clã Concha-Branca. Citando ainda Don C.
Talayesva: «Havia (na cerimónia do meu “baptismo”) muitas irmãs de minha mãe e todas eram minha mãe, enquanto as irmãs e
irmãs do clã de meu pai todas eram minha tia. Os homens do clã do Sol que vieram para o repasto, todos eram meu tio, enquanto
os irmãos do meu pai e os seus irmãos de clã eram todos meu pai.»
A primeira estrofe refere três estirpes distintas: a de Concha-Branca, a linhagem materna; a do Sol, certamente a paterna; a de
Turquesa, designação que, longe de ser um adjectivo substantivado, deve referir um grupo importante e activo na comunidade.
Falta um verso, a que não consegui dar forma.
O poema é traduzido da versão de D.P. McAllester incluída no livro de Jerome Rothenberg, Technicians of the Sacred, Anchor
Books Edition, New York, 1969.
O REGRESSO DE ULISSES

O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA PREJUDICA
O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIQUE DELICIOSO À DIVERSIDADE DA ESPÉCIE.
MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS DIFERENCIAR-SE,
FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES COMO ESTA FAMOSA
«CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL» SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI DESAPARECER EM
BREVE.
PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR AS DISTÂNCIAS E NUNCA
PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA, AVIAÇÃO,
CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC… ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR LIBERTADORES
DIZEM-NA «ESCRAVA DO HOMEM» E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É UM HOMEM.

DESDE O INÍCIO DOS TEMPOS, ANTES DA ROBOTSTÓNICA GREGA, OS ÚNICOS HOMENS-HOMENS QUE
APARECERAM FORAM OS HOMENS-MEDICINA, OS HOMENS-XAMÃS (HOMOSSEXUAIS ARQUIMULHERES).
ESSES E AS AMAZONAS (SUPER-MULHERES-HOMENS). MAS UNS E OUTRAS ERAM DEMAIS DEMAIS. E DESDE
O INÍCIO DOS TEMPOS QUE PENÉLOPE ESPERA O REGRESSO DE ULISSES. MAS O REGRESSO DE ULISSES É O
HOMEM QUE É UMA MULHER E A MULHER QUE É UMA MULHER QUE É UM HOMEM.
POEMA EM DUAS LÍNGUAS GÉMEAS
PARA JOAN MIRÓ

Mira miró mira mira

a phormiga

madre antiga da phadiga

que labora la tierra antiga

dadivosa negro-rosa

almirantenientemerosa

y almirambolante pira

fulgurante

de los niños

a mirar

Mira miró mira mira

por orden de miramar

o céu a terra [do ar]

onde um pájaro admira no ar

Miró a mirar
LOS SIETE NIÑOS DE ÉCIJA

Para Francisco Relógio

Los siete niños de Écija


aún hablan por tu mano
dormida sobre espaldas
de indicible recorte.

El vidrio chispea, grita


y recoge la sangre.
No hay más que tierra y cielo
en el rectángulo puro.
CARTA CASI-POEMA PARA OCTAVIO PAZ

En 1964 en París compré dos libros tuyos en una librería del Boulevard de Saint-Germain
— fue acaso, sortilegio, ¿o es que «los encuentros son proporcionales a los destinos»?
me lo pergunto porque en aquel entonces nadie me hablaba de ti ni de tu obra
el Portugal de ese tiempo era una tumba cerrada por tierra mar y aire
por la ipsísima dictatura del Dr. Salazar
pero tambiém por la pro-pre-pri dictadura de los que a Salazar se oponían
en nombre de otro señor que, quitado el bigote al gato
no pasaba del mismo (señor) acelerado a millones de voltios igualmente asesinos
Stalin Gulag y Realismo Socialista
Pués en París yo y la Tour Saint-Jacques inclinada hacia mí todo un verano
y tus dos libros eran:
Libertad bajo palabra
figura hermosísima del dios en el hombre
y El arco y la lira saeta en el momento del disparo
como aún hoy te veo: aún en el aire

No faltará decir que otros libros cambiaran o ayudaran a mi juego de dados mínimo
que para medirse en toda la extensión habría de llegar hasta Enki-Du el soldado de Anu
y acabar no sé donde, ciego de luz
alguna vez hay que apagar la lámpara
para poder —¿no te parece?— d-o-r-m-i-r

¡Pero tus libros eses tus dos libros iniciales si lo fueran!

La última mitad del siglo éste empezaba


marcando en vano la formidable sortija
que le brindara su primer marido
(los años 1 al 50 de dicho siglo)
la fiesta espléndida llegaba al despilfarro
de lo ya visto ya oído ya nacido ya muerto
a las bocas rellenas de minotauro frito
se les caían los dientes caninos
cuando —solve y coagula— el numen niño entró en la cuadra,
sonreía, nada en su porte denotaba lástima o desprecio
el murmullo de su voz audible
remagnetizaba la energía vital

Orfeo mejica Odín de luna Hijo Mozuelao de Li-Po, saluda,


pero dejad inmune el cuerpo del Minotauro
el Minotauro —¡sabedlo!— no se mata
y todo ese recuento de Teseo y Ariadne y el testículo del Otro y la espuma del mar
no es más que una suma criminal de estupros parricidios guerras hediondas trampas de ladrones
yo vengo para otra historia y otra fábula
que entreabre la página del hombre del hiperbóreo
(30 a 40 mil años a.C.)
hasta el eón de Hiroshima y de la imagen virtual
yo vi hundirse el Tetis para dar cielo al peso inconmensurable del Himalaya
y el reparto del fuego por quien por vez primera lo encendió
y tuvo cara de hombre en los espejos de agua
éste es el cante
éste el Pasado en claro
y nosotros adentro, que no estamos de más.

Un remolino de exclamaciones ex-voto


estornudó en el palacio y pasó a la calle
entre los más notables protestatarios síndicos
podía verse Pablo Ruiz Picasso
seguido de sus lienzos sabiamente robados al arte negro
para fines puramente decorativos
para no decir más fuerte y feo:
sin chamanes ni incisiones rituales ni ingestión de cáscara de…
pero también entre otros personajes chic
Andy Warhol colgado de Roger Corman,
etc.

Octavio:
una y otra vez me incitaron a que escribiera «algo» sobre tu obra
la primera (creo que) para los cuadernos de L’Herne
a las otras no alcanzo a distinguir el intríngulis
Siempre-siempre con largo entusiasmo acepté el honor que me hacían,
y siempre mi mano se negó al bote.
¿El porqué? Zona negra, soplo del daimon que antes de llamarse demonio (forma actual de…)
llamaban ¿ángel, potestad, espíritu en el espíritu?
«Si no perguntas, lo sé, si perguntas, no sé» dice el santo-santo
pero lo más llano —más verdadero— será
que a la mano ésta le dio muchísimo miedo rayar tu verbo azul cianino puro
con unas guarras líneas de hierro cantil rocoso (éstas)
o con la hoguera del prof a mediodía
así fue y así está la mano mía
la mía, no la tuya, donde todo es poema
desde el primer compás de águila y de sol, flauta de Pan
hasta la ya sinfónica wagneriana poswagneriana antiwagneriana
Sor Juana Inés de la Cruz
tu Décima Sincronía
y no te digo taaanto de tu Duchamp
porque Duchamp me estira verde frío toda aquella álgebra donde ya no es posible encontrar el 2
en el armario
Y ahora me da gracia que en castellano
el nombre del viejo dios que Swinburne exaltó «sembrado de oro en su Palacio más majestuoso
que los Templos edificados por el hombre»
se pronuncie igual que el pan de comer.

Así que buenos días, Octavio, para el siglo que viene,


el tuyo
que el mío ya pasó un par de veces
y dice el tonto no estar permitido más.
MEDITACIÓN DE LEONOR DE AQUITÁNIA
ANTE UN CUADRO DE ENRIQUE CARLÓN

El pez ilustrado
el pez enrique(cido) por ele pe(s)cado
asediado por el principado
el pez vitral de la catedral
de la sal
el pez del con
del leon
el pez que aún huele a frontera portuguesa y galesa
y danesa
el pez de Heloisa y de la Religiosa esa
pero sin Abelardo ni Chamilly
dos maeses de mierda en la mili y en el púlpito
el pez que dice:
a mi señor, es decir, a mi padre
a mi esposo, es decir, a mi hermano
su sierva, es decir, su hija,
su esposa, es decir, su hermana
el pez que sube de la profundeza y te ata la cabeza como un rodo
el pez que es todo y de todo y desde luego inimigo del fuego
que será todo lo que usted quisiere pero que sea un elemento
natural va contarselo al gato
el pez fatal el pez (quitado) del natural el pez (nacido) sin pecado original el pez desaire
para la gloria eterna (y moderna) del aire.
MÁRIO SÉRIO

Los reyes
vienen a verte

LOS REYES

Tu
estás enfermo
de horas
de siglos,
de memorias

El pasillo se aplasta para la ceremonia

— Muy nuestros señores nuestros…

LOS REYES

Espejos ante espejos


Suspensos en el vacuo
Como en el día ese en que Sebastián los sacó de la tumba
Para irse más contento a Alcácer-Quibir
— Juan de Portugal («El hombre»), el Condestable D. Pedro
Estan particularmente animados
Pero, ante El-Rey, no hablan,
Escuchan, de rodillas, la música sabia

— ¿Le bajó a usted la fiebre?


Dueña Maria Coutinho no ha venido,
Se le rompió la rótula fractal,
Y el otro, igual, le sumnistrámos un veneno
Que aún no paró de actuar

Tu (¿lloras?) estás en la ventana


Te atreves a dar espaldas a la realeza
Que sonrie, generosa:
— Tú, ciudad, lecho carmin del mundo
Subió al cielo, y no vuelve
Pero en su misericórdia te deja
El soplo de la nada

Ese ruido de viento


En altamar

— De noche, dice la siempre novia y siempre nada de nada


hija de D. Manuel,
la redada del sol es una burla
Como hace mucho lo sabemos todos
los reyes

LOS REYES

Dicen que volverán que te dejarán


nunca
ya corren cuesta abajo por la escalinata
espectros meridionales, cálidos y fríos
hijos santísimos del crimen amoris
del muy gracioso y noble cuerpo de Portugal.
SOMBRA DE ALMAGRE

Buraco-negro-com-barba-postiça-de-Newton
ou pirâmide de De?

A pirâmide de De
com saltos altos e rara elegância de meios
caminha um mililímetro por segundo
em direcção a Maar

O qual em movimento inverso se expande


(tahafut-ul-tahafut) à razão
de 2 tri-leões por sebe. Por
outro lado

Se houvermos por verídico o retrato


que Blake fez de Newton
este NÃO TINHA BARBA (relativamente) (nenhuma)
e assim

Não haverá
qualquer porção
de almagre

O espaço come porém não altera


que os poços escaleres
possam nunca afastar-se
(ou precipitar-se)

de De
ou de Maar
EXQUISITE POEM

Mr. Pound is a Ezra corpse so awful to see


as the Pablo Corpse of Mr. Neruda.

Mr. Neruda is not a english penny. But


Mr. Pound is quite a half a crow.

Dust of a Second Empire Library: Mr. Pound.


Spaniard — tourist — dust around Machupicchu:
Mr. Neruda.

Mr. Pound was born in the United States (I


suppose) from the heart of his mother, Mr. T.
S. Eliot, and the belly of his father, Santa
Claus. That’s why he writes so frequently
the Greek — Latin — Arabian — and — Acadian
languages.

Mr. Neruda was born in Chili. That’s why his


poems are written on the most unmingled
Gongora’s mass. (Gongora: see Castile, Spain).

Mr. Pound is a well known nazi. His


poetry too.
Mr. Neruda is a well known marxist. His widow too.
Here in Europe everyone loves Mr. Pound. Chiefly
at the Universities of Rome, Sicily, Auschwitz, Dachau,
Belsen, Hydrosulfate, and Oradour-sur-Glane.

Mr. Neruda’s work is more cherished around Gdansk,


Budapest, Praha, Chasm, and Siberia.
INSCRIÇÕES INSCRIPTIONS

I am eu sou the first a primeira and the last conception e a última concepção.
The Lady of Lourdes. A Senhora de Lourdes.

I am eu sou the first a primeira and the last e a última


I am eu sou the honored one a venerada and the scarned one e a execrada
I am eu sou the whore a puta and the holy one e a santa
I am eu sou the wife a mulher and the virgin e a menina
I am eu sou the mother a mãe and the daughter e a filha
I am eu sou the members o clã of my mother de minha mãe
Eu sou I am the barren one a estéril
and many e muitos are her sons são os seus filhos
I am eu sou she whose wedding aquela cuja boda is great é grande
and I have not taken e não aceitou a husband marido
I am eu sou the bride a noiva and the bridegroom e o noivo
and it is my husband e meu marido who begot me é quem me gerou
I am eu sou the mother a mãe of my father de meu pai
and the sister e a irmã of my husband de meu marido
and he his e ele é my offspring a minha descendência.
Ishtar, Suméria.
NOBILÍSSIMA VISÃO
NOBILÍSSIMA VISÃO
O POETA CHORAVA…

O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela (talvez a salvação?)
O poeta era sinceríssimo honesto total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões

E agora o poeta começou por rir


rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
depois comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro, é um tanto sinistro,
mas é inevitável, é um bem, é uma dádiva.

Tirai-lhe agora os versos que e ele mesmo despreza,


negai-lhe o amor que ele mesmo abandona,
caçai-o entre a multidão.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA
destrói-vos
RUA DO OURO

Ai dele que tanto lutou e afinal


está tão só. Tão sozinho. Chora.
Direcção da Companhia Tantos de Tal.
Cinquenta e três anos. Chove, lá fora.

Chora, porquê? Ora, chora.


Uma crise de nervos, coisa passageira.
É, talvez, pela mulher que o adora?
(A ele ou à carteira?)

Seis horas. Foi-se o pessoal.


O homem que venceu está sozinho.
Mas reage: que diabo. Afinal…
E olha para o cofre cheiinho.

Sim estou só ainda bem porque não? ele diz


batendo com os punhos na mesa.
Lutei e venci. Sou feliz.
E bate com os punhos na mesa.

Seis e meia. Ó neurastenia


o homem que venceu está de borco
e sente uma grande agonia
que afinal é da carne de porco
que comeu no outro dia.

É da carne de porco ele diz


vendo a chuva que cai num saguão.
É da carne de porco. Sou feliz.
E ampara a cabeça com as mãos.
Durante toda a vida explorou o semelhante.
Por causa dele arruinaram-se uns cem.
Agora, tem medo. E o farsante
diz que é feliz diz que está muito bem.

Sim, reage. Que diabo. Terei medo?


E vê as horas no relógio vizinho.
Mas, ai, não é tarde nem cedo.
Ele, que venceu, está sozinho.

Venceu quem? Venceu o quê? Venceu os outros


Os outros, os que o queriam vencer!
Arruinou-os, matou-os aos poucos.
Então não o queriam lá ver?!

Sim, reage: Esta noite a Leonor


amanhã de manhã o Sàlemos
e depois? Ah o novo motor
veremos veremos veremos

Mas pouco do que diz tem sentido.


Tudo hoje lhe é vago uniforme miudinho.
O homem que venceu está vencido.
O dinheiro tapou-lhe o caminho.

Os filhos? esperam que ele morra.


A mulher? espera que ele morra.
O sócio? Pede a Deus que ele morra!
Só a Anita não quer que ele morra!

Ai, maldita carne, murmura


vendo a água que há no saguão.
Tinha demasiada gordura!
E veste o casaco e o gabão.

Passa os olhos pelo lenço. Acabou-se.


Vai sair. Talvez vá jantar?
É inverno. Lá fora, faz frio.

O homem que venceu matou-se


na margem mais escura do rio
ao volante dum belo Packard
LORD BEVAN EM LISBOA

Ora deixai-me dizer


que vejo tudo ao contrário
do que era lícito ver

Ontem encontrei um operário


todo de pernas para o ar
no bolso de um usurário

«Que linda vista para o mar!»


dizia — e dizendo isto
tinha uns olhos a chorar

que eram tal qual os do Cristo


nos bonecos de se orar.
De repente o usurário

vai para o bolso do operário


«Que linda vista para o campo!»
dizia — e dizendo isto

escondia num lenço branco


um dinheirinho
que era a túnica do Cristo
à moda do Minho.

Vai daí veio a polícia


o exército a milícia
com trinta carros de assalto

e um capitão muito alto.


Zás! Zim! Bum! já nada vejo
e até creio que morri.

«Que linda vista para o Tejo!»

— Mas o que é que se passa aqui?


PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura


nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio


nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante


— ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola


antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome


porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo


de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo


à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta


ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
RUA DA BICA DUARTE BELO

ESTES PRÉDIOS SÃO QUASE DE GRAÇA


diz a tabuleta encarnada
à gente que passa

E é que às vezes passa uma gente engraçada:


um estudante sem livros e ao lado
um operário desempregado
CALÇADA DO CARDEAL

Pequeno tambor orgia modesta


o lago tranquilo a descoloração
tintura de brancos e verdes floresta
o lago tranquilo a prostituição
candura doçura nos olhos em festa
mão no coração

A bola de vidro rola vis-a-vis


com as flores que altas são no jardim.
Há justos e réprobos porque o Senhor quis
vingar-se de nós porque sim
RUA 1.º DE DEZEMBRO

À hora X, no Café Portugal


à mesa Z, é sempre a mesma cena:
uma toupeira ergue a mãozinha e acena…
Dois picapaus querelam, muito entusiasmados:
que a dita dura dura que não dura
a dita dita dura — dura desdita!
Um pássaro cantor diz que isto assim é pena
e um senhor avestruz engole ovos estrelados
RUA DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS

Procurei os teus olhos quis achar


nos teus olhos a luz que nos salvasse
mas tu não tinhas olhos tinhas plateias
no Liz, no S. Luiz e no Terrasse

Busquei teu coração, não desisti à primeira,


teu seio arfava arfava docemente
por força que por baixo que por dentro
tinhas um coração terno como gatinhos
mas afinal não tinhas coração tinhas um saco
com Jean-Paul Sartre e rendas a cinquenta o metro

De forma que o entrar nas tuas pernas


foi como entrar num Tribunal de Contas:
não tinhas sexo, tinhas um juiz de paz,
arroz, licores, outro noivo, e gritinhos
VOZ NOS MONTES DE ALMADA

«Olá sol! Olá cão de dez minutos!


Bom dia aí no céu, longe da terra!
Havias de vir connosco lá para dentro,
brilhar lá dentro, belo como fogo no mar!
Havias de aprender a empalidecer havias de aprender a vomitar
quando o fumo é demais e agonia. Tu
vomitarias… raios!
Mas não podes, sabemos
que não podes, sabemos
que estás preso, de empreitada
aí no céu como nós cá na terra.
Ó sol, bom sol, é cómico! Filaram-te.
Puseram-te a coleira, eh, sol, estás preso!
Estás proibido de ir lá baixo, ouviste?
Estás proibido de ir connosco lá para baixo.
Eh, sol, que dizes? Tudo proibido.
Do teu lado direito, do teu lado esquerdo
à frente e atrás, sobre e sob, ora! de qualquer modo
é proibido. É cómico. É atroz. É assim.
Portanto — adeus! Até mais ver, um dia!
Até mais ver, eh, cão que vens connosco a medo
durante dez minutos, todas as manhãs!»

Dez minutos é o tempo de ir de casa à fábrica.


Dez minutos de sol às oito da manhã
Dez minutos de luz, dez rápidos minutos

Pois apesar do fumo espesso e imundo


estes homens adoram a carícia de um sol
que brilha doze horas e acalenta a gente que há no mundo
E mais: falam baixinho
duma aurora sem fim duma luz intemerária
que às oito da manhã saúda virilmente
o sol de dez minutos da população operária
BALADA DA BELA BURGUESA SEM UM OLHO

Chamava-se Marília Bastos


um estilhaço de vidro fez o resto

É perigoso encostarmo-nos a vidro


quando não somos tão fortes como isso

Nem só do céu nem só do céu vem a justiça


uma trave uma roda um parafuso

são justiça no mundo fazem sempre qualquer coisa


antes de se passarem a outra coisa

Ora o esgar da Besta espreita a sua vez


na momice da Bela

Uma risada — é simples — necessita um segundo


para ser o que é em osso luzido

Quantas vezes a torre é de babel


outras tantas a torre vem abaixo

e ao poeta nada custa mudar o tempo de um verbo

Marília Bastos (por exemplo)


que desgraçada foste
TOCANDO PARA A RUA BASÍLIO TELES

As linhas os carros
aerodinâmicos
a nuvem cinzenta
por cima de mim
a sapateirinha
noiva de três
o jovem operário
presa de mil
o salto que dei
galgando o passeio
o lápis miúdo
no bolso de trás
os versos que faço
sem grande alegria
a voz dos amigos
amigos amigos
negócios à parte
sempre (qualquer dia)
me darão alento

Bem vêem pensei


que a coisa era outra
desculpa estou velho
tenho inconsequências
Pensei… bem, pensei
em vida que o fosse
não deu resultado
não dá resultado

Amigos, dizei
deu-vos resultado?
Resultado o quê?

Abrir a barragem
vazar a dispensa
brincar ao herói
— ou ser herói mesmo

Herói? Herói? como?

Pois é. Sou escritor


não tenho experiência
já disse: pensei
que fosse possível
mas pronto. Acabou.
Juro envelhecer.

— Ó enforcados
o tempo passa
o tempo passa
que desgraça!

Passa nada, amigos!


A única coisa que passa
é o publicista Azeredo
que é chauffeur de praça

Paragem. Apêrto.

Vai isso? Vai isso?


Vai mal, obrigado.

Dinheiros? Pois sim


recebe depois.
E o que é que é?
Ah isso veremos.
Cinema. Teatro.
Poesia, talvez.
Bem, bem.
Bom, bom.
Saúde.
Adeus.

Apêrto. Partida.
Fico no meu sítio.
Lá vem o eléctrico
amarelíssimo.

As ruas as casas
de zincogravura
os barcos que saem
a barra que eu vejo
o freio nos dentes
do burro inocente
o forte em Monsanto
o santo em Monforte
o homem que é fraco
o homem que é forte
sempre (qualquer dia)
me darão alento
O HOMEM EM ECLIPSE

Ora foi que certo dia


o homem eclipsou-se.
— A data! Digam a data,
a datazinha, faz favor!
— Qual data! Foi por decreto
que o homem se eclipsou,
foi só manobra, espertice,
um, dois, três, e pronto, é noite,
que nem a Lua apareça
seja de que lado for!

Uns seguraram-se logo,


eram espertos, bem se viu,
outros caíram ao mar
com cabeça pernas e tudo.
Quanto a mim perdi a calma,
fiquei desaparafusado,
tradição, cultura, estilo,
certeza, amigos, fatiota,
tudo fora do seu sítio
— um desaparafuso terrível!

Segurem-me, camaradas,
sinto pernas a boiar,
cheiro fantasmas, enxofre,
estou aqui mas posso voar,
o parafuso da língua
vai partido, vai saltar.
Agarrem-me! Agarra! Pronto.
Pari o mais leve que o ar.
TODOS POR UM

A manhã está tão triste


que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?


Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto


sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de recorrer à vala comum
NICOLAU CANSADO ESCRITOR
NOTA AO PROJECTO DE EDIÇÃO
ARARUTA PROVÍNCIA (1945)

Perdida, entre tanta outra coisa que em Portugal se perdeu, à roda de 1944, a «Biografia de
Nicolau Cansado» moldada em verso jâmbico por Papuça de Arrebol; desaparecida com esta, nas
ruas de Constantina, toda a possível documentação para a descascagem ôntica de um ser a todos
os títulos raro, na literatura e na vida; ingloriamente perdida também a obra em prosa do autor do
«A Ti» — a qual não vi mas disseram, em 1944, ser ainda melhor do que os poemas: restam os
versos que ora se publicam antecedidos de nótula crítica da incansável polígrafa e grande amiga
do poeta Professora Doutora Marília Palhinha.
Nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex.mo Sr. Luís de Oliveira Guimarães,
lembra-me ter visto um fólio rabiscado pelo poeta aquando da sua viagem a Espanha, país onde,
premido pela sua bem conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher em 1943 e o mais
possível in loco alguns quadros multímodos da guerra civil espanhola. Tanto quanto me lembro,
tratava-se de um feixe de ditirambos «ao pobre Federico» claramente datados Agosto-Setembro
de 1943. Esta peregrinagem terá dado a Cansado a possibilidade de uma destilação clarificadora
de quanto ali se passou nos anos 1936-39, ao mesmo tempo que havia de preservá-lo de
contactos directos com tiros, granadas e outras relações de incerteza como as então ali vividas
por Hemingway, Malraux, Péret, Paz, Vallejo, Gascoyne, Penrose, Orwell e outros excessivos
sequiosos de tiros nos cornos.

Araruta Província
EM TORNO DA POESIA DE CANSADO
NÓTULA CRÍTICA DE MARÍLIA PALHINHA

Lisboa, 1945 — Os fortes laços de amizade que desde cedo me ligaram a Nicolau Cansado
fazem com que seja a expensas de uma profunda mágoa que eu deva pôr aqui uma por assim
dizer restrição aos inéditos vindos agora a lume: eles não serão compreendidos por toda a gente.
Com efeito, só uma escassa roda de iniciados na última fenomenologia poética portuguesa
(futurismo, sobrerrealismo, nervosismo, etc.) poderá acolher sem surpresa toda a sua mensagem.
Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a contradição fez a obra. E nisto como em tudo, apesar
dumas coisas esquisitas, dumas audácias mais brilhantes que fecundas, o poeta seguiu a tradição.
Tive oportunidade de verificá-lo ante o desprendimento que muitos homens da rua (eu buscava
Cansado nas suas incursões aos habitáculos do povo) manifestaram pela «Fantasia Gramática e
Fuga», por exemplo1. Alguns chegaram mesmo a interromper nestes termos (tentava eu explicar
a grandeza humanista que ia de par com a função social do poema): «Ó doutor dê cinco tostões
para uma sopa, que ainda lá não fui hoje!» Em contrapartida, os literatos terão com que
regozijar-se. Esses e mais quem anda a par sagrarão o poeta Cansado como um grande
incompreendido, uma genial vítima de um meio estupefacto.

Falar do substrato da sua obra — para quê? De certo modo, a poesia é o real absoluto, já o
disse um editor que também escreve. Atravancador se torna pois qualquer didactismo, e ainda
mais no caso de Cansado. Este homem, que abandonou as concepções burguesas sem por isso ter
mudado de vida, é um artista muito complexo. Formalmente, não é raro vê-lo brincar com as
subtis experiências de um Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Maiakovsky, e, então, que
esplendor épico! Noutros ainda, deita um olhar amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E ao
Camões — um Camões que tivesse lido Afonso Duarte! Conhece a fase íntima. Atravessa a
fronteira do religioso, E quando já desistíamos de ver nele mais do que um jogral de prodigiosos
recursos, eis que nos atira com as iluminações do «Herói», do «Raio de Luz», do «A Ti»!
Obra pequena, sim, mas de tentado alcance e forte significado, eu quero repeti-lo: ainda é
cedo para falar de Nicolau. Não faltará porém gente disposta a acusá-lo de ter chateado meio
mundo e vivido, como dizer?, assim. ASSIM! Eternos incompreensivos! Das vossas impotentes
instâncias hão-de altear-se sempre a dedicação funda e o labor sem mácula de Prof. Araruta
Província, que, no seu regresso de Las Palmas, logo meteu ombros ao conhecimento do valor dos
textos e à sua pronta edição.
Outra coisa: Cansado nunca versou o tema do amor. Inapetência? Excesso de hombridade?
Penso que não. O amor é, para muitos poetas de hoje, um tema de segunda ou terceira categoria.
Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Cansado, certa vez, me disse. E todos
compreendemos.

1 «Fantasia Gramática e Fuga, Com Eco». Nota do Dr. Araruta Província: O poema deste título foi perdido pela própria Marília
Palhinha durante a última das manifestações de rua que entre nós assinalaram o fim da segunda guerra mundial. Tendo sido,
como se sabe, particularmente dura essa manifestação, quase se aceita tão infeliz descuido — levar um poema daqueles para o
meio da rua!
NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO
(Jan. 1976)

Tão cedo pude desocupar-me das investigações e desaterros da obra de Fernando Pessoa
(baús do Castelo de S. Jorge, muros de Penalva e Aljustrel, selhas da Ordem Terceira de S.
Francisco e Mineiros Associados (Mafamede)) logo acorri de novo ao meu querido Nicolau. E
hoje, finalmente, comovidamente, até às lágrimas, posso anunciar: a «Fantasia Gramática e
Fuga», obra-prima da gesta de Cansado, indevidamente considerada perdida à data da primeira
edição dos poemas, estava depositada num gaveto da Sociedade Portuguesa de Escritores pouco
antes desta ter sido fechada pelo Governo. Alguém, que não sabemos quem, a enviou para ali.
Chamada eu própria, logo reconheci o fólio, que não conduz, como abusiva e fantasiosamente
Araruta Província algures aventou, a série alguma de versos escritos em Espanha, mas, além da
finalmente recuperada «Fantasia Gramática» apresenta ainda uma contribuição de primeira
plana: os poemas surgem dedicados pelo punho do poeta a todos quantos, mestres ou amigos, o
inspiraram. Achamos esta acha muito importante pois aquando da primeira publicação, 1961,
estabeleceu-se dúvida quanto a certas atribuições.
Agora, de acordo com o canhenho original, indica-se como segue — e não repetimos na
portada dos poemas, para não desfear—:

«MIGRAÇÃO» — Ao Ex.mo Sr. Dr. Poeta Adolfo Casais Monteiro.

«A TI» — Ao Sr. Dr. Poeta Ruy Cinatti.

«HERÓI» — A Poeta Dr. Joaquim Namorado.

«REABASTECIMENTO» — Ao Poeta Dr. D. Pedro I.

«BRASILEIRA» — Correcção ao Poeta Decadentista Manuel Bandeira.

«POEMA BÃO» A Poeta Dr. Francisco José Tenreiro.

«RURAL» — Ao Poeta Escritor Dr. Fernando Namora.


«FANTASIA GRAMÁTlCA E FUGA COM ECO» — A Poeta Dr. Mário Dionísio.

«RAIO DE LUZ» —

«O ÚLTIMO POEMA» — Ao Paulo Éluard.

Note-se como, apesar do crescente à-vontade com que Cansado dedica, o tom é sempre forte,
claro, VESPERAL!
Quanto ao belíssimo «Poema Bão», também aqui produzido pela primeira vez, recebi-o em
correio registado, sem qualquer palavra de companhia, cinco dias antes do falecimento do Poeta
Dr. Francisco José Tenreiro.

Bem hajam, todas e todos!

Palhinha, 1970
ADENDA CORRIGENDA

Nem a infausta morte de Marília Palhinha nem a admiração respeitosa em que tenho a sua
memória podem inibir-me de taxar de aleivosas algumas declarações que faz da minha pessoa.
Eu vi, de facto, nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex.mo Sr. Luís de Oliveira
Guimarães, um caderno de versos de Cansado, firmados e datados: Talavera de La Reina e
Buçaco, 1944, que todavia não li. O facto de tais poemas não estarem na Sociedade Portuguesa
de Escritores quando esta foi fechada pelo Governo nada demonstra contra a existência do
caderno. E sendo D. Marília useira e vezeira em deixar cair mais me inclino, a contragosto o
digo, para um novo descuido da morta. O que apenas sugiro e faço publicar para que de todo em
todo não se perca de virmos a encontrar («não procuro, encontro» dizia Kandinski) os
«Ditirambos Hispânicos» de Nicolau Rosendo Gastendo Cansado.

Araruta Província
OS POEMAS
MIGRAÇÃO

Ah
não me venham dizer
oh
não quero saber
ah
quem me dera esquecer

Só e incerto é que o poema é aberto


e a Palavra flui inesgotável!
A TI

Ó minha casta esposa


vais sofrendo… E eu sofro
de ver-te sofrer!
Espera um pouco! Façamos
como o caule da rosa
des-
fo-
lhada.

Nosso convívio é triste. A vida, errada.


Só a tortura existe e o poema é.
Ah
TENHO A ALMA CHEIA DE GAROTOS.
Não queiras ah não queiras vir comigo
Para esta atmosfera de chimpòzé.1

1 «Chimpòzé» não existe em língua oficial portuguesa, sequer nos pàlóps. Parece ser corruptela de «chimpanzé». «Garoto» é o
nome dado na capital do Império (Lisboa) ao café com leite servido em chávena.
HERÓI

Do claro sol e de hum teatro cheo


Seriam dignas tão notáveis obras…
Ó noite que em teu seio tenebroso
Tão grandes feitos d’armas escondeste!
TORQUATO TASSO — Jerusalém Libertada

Herói é o meu nome.

Meu olhar frio, arguto,


Não vê coisa que o dome.
Meu esforço rudo e sano
Não desmaia um minuto.

Sou herói todo o ano.

Quando passar por vós, naturalmente,


Com este meu ar simples e no entanto diferente
E no entanto diferente do ar do resto da gente,
Não digais: é fulano.

Dizei: é o Herói.
O herói, simplesmente.
BRASILEIRA

O vento não varria as folhas


O vento não varria os frutos
O vento não varria as flores…

E a minha vida não ficava


Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas…

O vento não varria as luzes


O vento não varria as músicas
O vento não varria os aromas

E a minha vida não ficava


Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos…

O vento não varria os sonhos


E não varria as amizades…
O vento não varria as mulheres…

E a minha vida não ficava


Cada vez mais cheia
De afectos e de mulheres…

O vento não varia os meses


E não varria os teus sorrisos…
O vento não varria tudo!

E a minha vida não ficava


Cada vez mais cheia
De tudo.
REABASTECIMENTO

Vamos ver o povo


Que lindo é
Vamos ver o povo
Dá cá o pé.

Vamos ver o povo.


Hop-lá!
Vamos ver o povo.

Já está.
RURAL

Como chove, Cacilda!


Como vem aí o inverno, Cacilda!
Como tu estás, Cacilda!

Da janela da choça o verde é um prato


Que deve ser lavado, Cacilda!
E o boi, Cacilda!
E o ancinho, Cacilda!
E o arroz, batata, o agrião, Cacilda!
Já cozeste?

Eu logo passo outra vez,


Em prosa provavelmente.
Arrozinho, Cacilda!
Os melhores anos da nossa vida, Ilda!

— Ausente.
POEMA BÃO

Preta cospe preta cospe preta cospe


No chão

Iáú!
Ilha de Nome Santo!

O mar é pró fábrica


De patalão.

Poema bão!
FANTASIA GRAMÁTICA E FUGA
(COM ECO)

No fundo eu não sinto


Como sou bruguês
Vou ao baile baile
Mas não sei dançar

Visto de cetim
Vou depressa e bem
Eu sei que serei
Do mundo que vem

Bate coração
Palhaço em Palheiro
Meu golpe de vista
Tapa a boca Oh
Tapa a boca Oh
tApa a bOca Oh
taPa A boCa Oh
tapa a boca sim

minto minto minto


vês? vês? vês?
aile aile aile
ar ar ar

sim não sim


olha quem
rei
mui to bem
ão! ão! ão!
mário de sá-carneiro
fu-tu-ris-ta
pó-ni-pi-ni-pó
pó-ni-pi-ni-pó

Fim
RAIO DE LUZ

Burgueses somos nós todos


ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.

Burgueses somos nós todos


ó literatos.
Burgueses somos nós todos
ratos e gatos.

Burgueses somos nós todos


por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
que horror irmãos.

Burgueses somos nós todos


ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.
O ÚLTIMO POEMA

Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.


Deixá-lo.
Coitadinho.
Carvão de coque.

Matá-lo
Devagarinho.
Lá vai ele a reboque.

Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.


LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO
DE ÁLVARO DE CAMPOS
(fragmento)
NOTA DO AUTOR NA PRIMEIRA EDIÇÃO
(1953)

Parece que houve Natal e Ano Novo e eu resolvo retribuir assim algumas das boas festas em
que amigos e parentes tiveram a bondade de envolver-me: a impressão do presente fragmento
do meu poema «Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos», para vender aos amigos, e aos
parentes, por vinte e cinco tostões.
O poema já é antigo, mas também é barato e sempre anima o ambiente. Dá, suponho eu,
certa compensação, mormente nesta quadra em que alguns dos mais festivos entram na tarefa de
iniciar o que há-se ser, o que já é o martirológio de Fernando Pessoa. Os mais cumprimentados
não deixarão decerto de perpetuar os festejos com uma bela ligação de girândolas, das quais
virão a sair grandes fichas obnóxias com os seguintes dizeres: Poetas Pataratas: Fernando
Pessoa, Rainer Maria Rilke, etc., etc., e etc. — Poetas Muito Bons e de Muito Juizinho: este,
aquele, aqueloutro.
«Simplificar» Fernando Pessoa tomando de empréstimo alguma da sua linguagem, e reduzi-
lo ao voto de um barco para o Barreiro, é coisa em que cada um só deve cair uma vez. Fique,
pela parte que me toca, o molde da queda e o valor da experiência: as pessoas sabidas
descobrirão depressa onde é que está o logro e onde pôde anichar-se autenticidade. As outras,
não sabidas (entusiastas, estas!) servem-me o apetite de dizer para já alguma coisa do que o
poema não diz:

Que Fernando Pessoa é um grande poeta. Viajou sempre em primeira classe, mesmo quando
estava parado.

Só as pessoas que não viajam ganham ódio às classes que o comboio tem.

Quem alcança viajar, mesmo só em terceira, vai sempre radiante. Não anda lá a prender-se com
essas coisas.

As pessoas que não viajam também têm as suas qualidades, são como os chefes de estação:
bondosos, diligentes, aplicados. Mas não viajam, pronto. Para que nos querem convencer
que viajam?
Assim como a Poesia não é para um par de sapatos, assim Fernando Pessoa não é para todos os
dias. Não consta, porém, que Pessoa haja querido monopolizar os dias. Se déssemos a
Pessoa os dias que ele tem, faríamos como ele — e até podíamos, como ele, ser grandes, com
muitos dias para ele, e para muitos de nós, seus iguais num desastre

Que não convém nomear.


Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente-gente, olhos, narinas, bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas, varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.

E agora, neste momento — que horas são? —


a telefonista guarda o bâton na mala usa os auscultadores liga electricamente Lisboa a Santarém
e começou o dia
o pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou qualquer coisa
para começar o dia
o banqueiro sentou-se, puxou de um charuto havano, pensou um bocado na família
e começou o dia
a varina infectou a perna esquerda nos lixos da Ribeira
e começou o dia
o desempregado ergueu-se, viu chuva na vidraça, e imaginou-se banqueiro
para começar o dia
e o presidiário, ouvindo a sineta das nove,
começou o seu dia sem dar início a coisa alguma.

Agora fumo, trepidação,


correias volantes de um a outro extremo da fábrica isolada,
cigarros meio fumados em cinzeiros de prata,
bater de portas — pás! — em muitas repartições,
uma velha a morrer silenciosamente em plena rua
e um detido a apanhar porrada embora acreditem nele.
Agora pranto e pranto
na bata da manucure apetitosa do salão Azul.
Agora, regressão, milhões de anos para trás,
patas em vez de mãos, beiços em vez de lábios,
crocodilos a rir em corredores bancários
apesar das mulheres terem varrido muito bem o chão.
Agora tudo isto e nada disto
em plena e indecorosa licenciosidade comercial
pregando partidas, coçando, arruinando, retorcendo o facto atrás dos vidros
— um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre às ordens!
(a velha já morreu e no seu leito de morte
está agora um automóvel verdadeiramente aerodinâmico
e a tocar telefonia: and you, and you my darling?)
Há uma hora, Isto! Há duas, ISTO!
E eu?

Eu, nada. Eu, eu, é claro…


Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto
Penso que a questão é esta: a gente — certa gente — sai para a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar —
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…
Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato
mas de gato para cima — nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão bielo-cosida, tão ininteligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por cento hipócritas.

E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente


que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite foi comprar para o cinema
porque há que ir ao cinema, ele é por força, é por amor de Deus, ah, não! não! isso não!, não se
atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que vê o logro? A quem é que isto cheira a ranço?
Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige três quartas de cinema
e sim três quartas partes de lã carneira?
Porque é que a pianista compra do Alves Redol
quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã yankee?
E porque raio despede o senhor Director três humílimos empregados
quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda não viu um que lhe enchesse as medidas?

Com certa espécie de solidariedade


lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,
Poeta-gato-branco à janela de muitos prédios altos.
Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso é já outra história…)

E com uma solidariedade muito mais viva


lembro-me de ti, meu vizinho de baixo,
sapateiro-gato-branco, mas no rés-do-chão, desta vez…
É curioso que não te possas suicidar
só porque a tua janela está ao nível do mundo
e que cantes alegremente de manhã à noite
com uma casa de seis andares em cima de ti.
Também tu foste empurrado, também te disseram: Fora, gato!
Mas achaste isso quase natural (e não o é, deveras?)
E agora, guardando em ti todas as tuas grandes qualidades
vais vivendo um pouco à margem, um pouco no quinto andar…

Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo


e decido-me a andar — mas para quê? Mas para onde?
As lojas estão abertas mas nunca se viu coisa tão fechada
Ah! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um proletário — vê-se logo
— mas odeio cordialmente a gataria
e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoológico me atraem
quanto mais estes! — E aqui é que começa o embróglio…
O pouco amor que eu tive à burguesia
deixei-o todo numa casa de passe
quando me perguntaram: quer assim? Ou assim?
E agora, era fatal, falto ao escritório,
falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs.
Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa escura que te deram.
Eu

estudei música, como toda a gente

(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)

Não. Por aqui não nos entenderemos.


Estudemos outro papel. Outro fim. Outras músicas.

Recomecemos: Um:
Estes versos não querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em Portugal quer de algum modo fazer versos versos
está em muito maus lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)

Segundo:
Apesar de tudo, saí para a rua com bastante naturalidade
e que vi eu? Que é isto? (e que esperava eu ver?)

Terceiro:
(e aqui começa, talvez, o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com ele
mas não sou um proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado — quem é que disse que pode?

Fiquei-me a vê-lo: primeiro junto ao cais


com um certo ar simpático de proletário dos mares
e apinhado de gente — tanta espécie dela!
Depois a meio do rio, destacado e nítido,
depois um ponto vago no horizonte (ó minha angústia!)
ponto cada vez mais vago no horizonte

e de repente, ao virar uma esquina, já depois de outra esquina,


vejo uma nova espécie de enforcado
um homem novo em cima de um escadote
a colar afixar cartazes deste género:

VOTA POR SALAZAR

Paro. Paro de novo. Pararei sempre enquanto


afixarem cartazes deste género.
Curioso, curiosíssimo este género.
Um chefe não é grande pelo nome que arranjou.
Salazar Xavier Francisco da Cunha Altinho isso que importa.
Um chefe é grande pelas suas obras, pelo amor que inspira.
Pois os fascistas os nossos bons fascistas
querem que a gente vote por um nome
por um nome calcula essa coisa qualquer que qualquer fulano tem!
Vota por Salazar ora pois ó meu povo
vota por sete letras muito bem arrumadas em três sílabas.

Deito a cabeça para trás para deixar sair a gargalhada


e aproximo-me do homem em cima do escadote
aproximo-me tanto que ele nota
alguém que se aproxima
e o braço cai-lhe, grosso, pingando água num balde
…………………………………………
… Dá os bons-dias a este irmão, a este bom irmão
que anda a colar cartazes para não morrer de fome!…
…………………………………………
A CIDADE QUEIMADA
A CIDADE QUEIMADA
O guarda-fatos do mar entreaberto para a noite
pergunta-me se amo
e é toda uma paisagem de arcos flamejantes
deslocando-se a oeste
um castelo perdido entre duas visões
o cavaleiro descendo a falésia
depois de tantos amos tantas fábricas tantos

arquitectos do amor fitando o espaço


No alto das arquibancadas o rapaz
que lindo

encarna a vitoriosa lividez do dia


A mim porém o que me apetece é dançar
dar um salto comigo
de forma a que não me evole feito fumo

nem resvale às profundas feito nada


Isso isso
o reino de Pràtazul
a linha de água
que suporta e separa
e contém os dois mundos
e ondula
Alto como a presença verdadeira
dos namorados descendo a falésia
este rio trazido à torre de Saint Jacques
punhal cravado para cima sobre um chão que fica
à espera de chegar ao outro mundo de noite
já que de dia não vem não vem (Deus como os mais)
este rio deitado construído ensonado
trazido aqui por Descartes daqui levado por Stendhal
não vai dar nem sequer para uma groselha comigo
quanto mais para o encontro com Deus que é católico
com mais fome nos dentes do que a baleia nas tripas

No entanto disse alto e verdadeiro amor

É que isto ainda dá horas ainda é tempo de querer


ainda é meia-noite as árvores ainda
não destruíram tudo o que a este dia respeita
barco ébrio de tanta torre bebida
escuna medrosa em cada vigia ao longe
barco homem que avança pelos telhados e se ri à hipótese
de haver chão lá em baixo
e risca lentamente o ar com o braço
numa hipótese de música de concerto
Nunca estive tão só diz o meu corpo e eu rio-me
lembra-me alguém que se atardava sempre
diante de uma montra da rua da palma
a olhar para uma camisa que seria sua
assim que o ordenado lho pedisse
porque era aberta branca lisa de praia!

Seis e meia sete horas


saltava da vedeta vinda do Alfeite
e era como um gato
ia com os pés para a frente daquela montra
só para ver só para olhar sem ser reparado
só enquanto não fecham estas lojas
Esse, ou o António, que gostava de homens
E não só isso como o declarava
dois e dois quatro a quem bem queria ouvi-lo
porque, dizia, ajustando o corpete,
homem sou eu dentro da minha farda

Nunca estive tão só diz o meu corpo e eu rio-me


porque o corpo é o corpo
não tem nada a fazer não tem para onde ir
não lembra não se lembra quer estar sempre agarrado
suprimido
apertado
e se é belo é pior
vive num amarrote permanente

Sim decerto matéria atrai matéria


a boca faz-se sangue o sangue faz-se esperma
a urina espera a custo que o esperma se faça
para vir de novo à superfície do ar
Quando o total atinge a sua forma ejectável
preme-se noutro corpo noutros lábios idênticos
mas do lado de lá como num espelho
sua fiel imagem convertida

Isso o meu corpo quer — o corpo — noite e dia


ele julga que eu tenho a idade dele
que ainda só sei do homem pelo que transporta
a meia-nau sobre o alto das pernas
— o quadrado das ânsias respirando abertas —
— a diagonal dos braços formando-se em centro —
mas o meu centro de aeração mudou-se
o meu relógio de mar parou em cima da mesa
o espelho meu foi puxado para trás
e foca — admirado — a magnificência liberta
Tantos pintores

A realidade comovida agradece


mas fica no mesmo sítio
(daqui ninguém me tira)
chamado paisagem

Tantos escritores

A realidade comovida agradece


E continua a fazer o seu frio
Sobre bairros inteiros, na cidade, e algures

Tantos mortos no rio

A realidade comovida agradece


porque sabe que foi por ela o sacrifício
mas não agradece muito

Ela sabe que os pintores


os escritores
e quem morre
não gosta da realidade
querem-na para um bocado
não se lhe chegam muito pode sufocar

Só o velho moinho do acordeon da esquina


rodado a manivela de trabuqueta
sem mesura sem fim e sem verdade
dá voltas à solidão da realidade
O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta


que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta


de deitar-se com ele

Os armadores não amam


a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade


nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada


nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura


o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca


reflectem os objectos)

E quando um deles ála


e o corpo sobe os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga


(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo
DIÁRIO DA COMPOSIÇÃO
PARIS, 1964

Maio, 27

Há dois meses que fujo a S. Germain e passeio com frequência nos boulevards da margem
direita, sobretudo por Réaumur-Sébastopol, que me leva à Praça da República e aos cinemas de
S. Martin. Neste dia, 27 de Maio, encontro finalmente uma esplanada que parece à medida da
minha necessidade: está sem ninguém, fronteira a um jardim gradeado onde passeiam crianças e
árvores altas escondem até mais de meio uma torre magnífica. Nos meus passeios, de dia, de
noite, esta memória faustosamente medieval já me tinha chamado a atenção: é como se o chão da
praça quadrangular sobre que assenta fosse o telhado que não tem sob ela. Assim cravada na
terra, leva a pensar no topo de uma construção soterrada, ou subterrânea, que continuasse no
subsolo as galerias de uma arquitectura herética como ela.
Vagamente interessado na tradução de alguns poetas de língua espanhola trago comigo um
livro de Borges, Inquisiciones, onde um pequeno ensaio sobre Beckford, lido na noite anterior,
me faz desejar a leitura total da obra. Como é meu hábito, intercalo no livro um caderno de
apontamentos.
A tarde está muito quente. Sento-me e começo o balbuceio de um poema primeiramente
imbuído da proximidade do rio que corre perto, a uma esquina de vista. Há muito tempo que não
escrevo versos e há alguns anos que os não escrevo assim, isto é: não facilmente — como pode
fazer-se seguindo uma mnemónica literária, infelizmente vinda da experiência literária — mas
enredado num estado de labirinto, numa solicitação violenta que não sabe o que quer e exige
tudo: um rio e uma torre, eu fascinado nela.
Escrevo os primeiros versos do poema. A forma definitiva da 1.ª estrofe, mesmo simples, ou
truculenta, que é, levou-me três dias a fixar. Os 1.º e 2.º versos da versão que se publica foram
apostos, existiam antes, vindos não sei de onde, talvez dos montes de Almada.
Na noite deste dia, depois de um cinema abandonado a tempo, volto à esplanada e ao poema.
É pouco menos de meia-noite. Na «passagem a limpo», tantas vezes equivalente a novas
facturas, substituo, no oitavo verso, a citação de Pascal pela de Stendhal (faz mais jeito à
sonância, vício velho, e retira a um rio civil o odioso de se ver esquadrado entre a «razão» e a
«fé», dois estados de espírito bastante de temer. Também pensei ser bonito insinuar a Itália).
Escrevo depois o começo do «Nunca estive tão só…». Em seguida, abandono a esplanada e dou
uma volta pelo gradeamento do jardim, agora fechado. Sob a baixíssima cúpula interior da torre
há uma estátua impressionante que resolvo decifrar no dia seguinte. Pergunto a um transeunte o
nome daquela torre. Responde: La Tour de Saint Jacques. Por um lapso de relação, ou distracção
aparente, não estabeleço a devida relação com a Torre de Saint Jacques, de que se contam vários
sortilégios («aparecem lá velhos» diz-me há pouco uma judia francesa muito de longe atingida
por um relato de Breton, em Arcane 17, ou em La Lampe dans L’Horloge, não estou certo mas
vai dar ao mesmo). Para mim, neste momento, a Torre de Saint Jacques existe, mas jacente na
campa prestigiosa das leituras feitas há muitos anos. Há também uma publicação com este nome.
E é tudo. Em todo o caso, no poema, a torre singulariza-se: passa a ser a Torre de Saint Jacques.
Em casa, peço à Isabel (Meyrelles) segunda informação. «É onde queimavam as bruxas»,
responde-me. Começa o meu exercício de relação. Consulto o Larousse Ilustrado. De Saint
Jacques, sou remetido para Santiago de Compostela. Passo a uma História da Magia. Aí,
encontro: é realmente a torre erguida por Flamel no século XIV e ornada de símbolos da «ciência
oculta».
Já deitado, trabalho. Quando surge o poema «Nunca estive tão só…» a luz do dia entra pela
janela. Mas em Paris amanhece muito cedo, às quatro horas, em Maio, já não há noite nas ruas.

Maio, 31

No dia 28, voltei à esplanada mas tinha gente a mais. Procuro outro café, outra esplanada
próxima: não consigo escrever. No interior do jardim, dou uma lenta meia-volta à Torre. Nem
meia-volta é porque a grade que delimita o parque passa rente a uma das faces da construção —
exactamente aquela desde a qual poderia ver, de frente, o homem de bronze no seu pedestal. Até
onde a descubro, a Torre está vedada, interdita, não é possível entrar.
No dia 31, esplanada sem ninguém. Escrevo a 2.ª e a 3.ª estrofes do poema do «lado de lá do
espelho», desta vez em plena comunicação. O livro de Borges continua por ler, à minha frente.

Junho, 1

Na margem direita, toda a deambulação me leva à Torre, vista de longe ou de perto. Na


minha primeira noite «boémia» de Paris, enquanto atravessava ruas desconhecidas, vi nascer o
dia sobre o anjo e os bichos fabulosos que lhe ornam o píncaro, e soube deles que não estava
perdido, que o caminho de casa estava perto. Noutra noite, vindo de um lado oposto, surgiu-me
iluminada no céu escuro, e dirigi-lhe um agradecimento, não pelo caminho, que sabia, mas por
me ter devolvido ao país da poesia.
Na tarde deste dia, alargo as minhas investigações. Dou uma volta, tanto quanto possível
completa à Torre de Saint Jacques de la Boucherie. Do lado oposto ao que eu já tinha visto,
continua a grade impeditiva do acesso mas uma secção que gira sobre gonzos está aberta! À
esquerda, porém, e nítido em francês, inglês, alemão, italiano, russo, espanhol, o aviso:
«Proibido ao Público». Sob a impressionante arquitectura — nestes versos, quereria ter podido
sugerir a ideia de uma torre farpada, como se diz de um arame que é farpado — o homem de
bronze, cerrado numa capa, fita o chão à sua frente. É desse chão que preciso encará-lo, pois, na
posição em que está, só lhe vejo o perfil iludindo a minha curiosidade. Há que entrar e ler, se
existe, a inscrição no pedestal — um sábio, um orador, um doutor doutras eras? Bem firmado na
parte inferior do corpo, a cabeça ligeiramente baixa, é como se o enclausurasse, o fechasse por
fora, tivesse nela a sua coluna de ar, a mole de pedra que lhe pesa em cima.
Procuro desesperado o guarda do jardim. Não há, ou não aparece. Aliás, chove com certa
abundância. E a grade aberta, e as proibições, exactamente como numa prova! Sou tomado de
certo frenesim, de angústia, mesmo. O meu permis turístico está a terminar, não me convém nada
infracções em seis línguas. Procuro o guarda, de novo sem resultado. Volto à grade — que está
sempre fechada, dizem-me no próprio dia em que entrei na torre. Em extremidade de causa penso
ironicamente que entre os avisos afixados não há nenhum em português. Olho ainda em volta.
Entro. Tenho diante de mim Blaise Pascal. Em baixo, o nome e as datas: 1623-1662.

Quando abandono a torre surge o guarda, que me passa uma descompostura em regra. Sem
literatura: é uma perfeita encarnação do diabo, um autêntico pimento vermelho, com, vestido, um
casaco de couro preto. Explico que o procurei demoradamente, o que é verdade, e que sentia
absoluta necessidade de saber por quem era aquela estátua ali. Peço desculpa. Responde-me que
a não tenho. Aponta rubicundo os seis avisos. Ouve-me imperturbável. Toma o ar de quem passa
a procedimento. E quando já espero ser conduzido a qualquer posto incómodo, percebo que vai
abrandar. Teria estado a espiar-me, a antegozar a sua entrada em cena? Ter-me-ia tomado por um
bombista retardado e visava-me, carabina, revólver, através da folhagem? Ataco e pergunto-lhe
em tom amigável qual o motivo, afinal, de tanta proibição. «É um posto metereológico, explica,
não se pode ali entrar. Se tem tanta vontade de o fazer, seja gentil (traduzo do francês) e peça
autorização». Dito o que, retira-se às arrecuas, com toda a sua corte de diabos invisíveis, tendo
causado em mim, depois da emocionada agitação que me fez atravessar um interdito, a solução
de um complexo de culpa grandemente desenvolvido durante a estadia na torre.

À noite, esqueço os poemas e começo a ler Borges. Abro o livro ao acaso, no metropolitano.
Detenho-me no ensaio «O Espelho dos Enigmas». Um itálico chama-me a atenção: Videmus
nunc per speculum in aenigmate: Tunc autem facie ad faciem. Nun cognosco ex parte: Tunc
autem cognoscom sicut et cognitus sum. E a tradução abaixo (a que prefiro, de Cipriano de
Valera): «Agora, vemos num espelho, obscuramente; mas então veremos face a face. Agora
conheço parcialmente; então, conhecerei tal como sou conhecido»1. Apesar do meu latim
nenhum, posso fazer melhor:

Vemos como num espelho, por enigma


É a segunda estrofe do meu poema! No seu intacto sentido:
……………………………………………
premimos outro corpo outros lábios idênticos
mas do lado de lá como num espelho
sua fiel imagem convertida

e não só; na igual propriedade das palavras e na direcção que tomam, na última parte do
versículo como no final do meu poema que, depois de denunciar o encontro meramente casual,
carnal, do corpo com os corpos2, escolhe o conhecimento que é amor por ligação aos mais
remotos rostos do universo. Para além da passagem ininteligente das coisas (agora, conheço
parcialmente), os esponsais da lucidez e do desejo (então, conhecerei tal como sou conhecido):
………………………………………………
………………………………………………
isso o meu corpo quer — o corpo — dia e noite
ele julga que eu tenho a idade dele
……………………………………………….
……………………………………………….
mas o meu centro de aeração mudou-se
o meu relógio de mar parou em cima da mesa
o espelho meu foi puxado para trás
e foca — admirado — a magnificência liberta
Parece-me inútil frisar, mas à cautela friso, que estes versos e a narrativa do seu
acontecimento não intercedem por qualquer «humanização do divino» ou crédito de vida como a
sonham os católicos. Eles apenas continuam numa forma inesperada porque conclusiva de uma
nova, nova para mim, situação do poeta em relação ao mundo — ao seu mundo amoroso — que
lhe surge pela primeira vez não através, ou não só através, do corpo amado, como instrumento de
gozo, de imaginação e de posse, mas tocando em seu todo o mundo das formas, a própria
imaginação do universo.
Este, é um universo mágico, e a acção do poeta nele, labiríntica. Dois mitos diversos —
hebraico o primeiro, grego o segundo — que já na análise tentada à pintura de Vieira da Silva se
me juntam diante dos olhos.
Perturbador, porque se o mundo hebraico forjou as leis morais do Ocidente e, com elas, a
parte mais inabitável do planeta, forjou também a Kabala, articulada sobre a inteligência das
coisas. Perturbador, porque se Teseu no labirinto é a própria Poesia passando através da Lei é
também o que mais pode deter-se na efusão estática à aproximação do ser amado — modelo um,
e facilmente horrível, da extrapolação católica.
Que têm de ligado a epístola aos coríntios, a chamada a Platão, Borges, estes versos, e a
Torre? Pois nada, senão que constituímos durante cinco dias matéria comum aos primeiros
cabalistas3 e a todo o subsequente arsenal mágico, mais tarde herético, de que a própria Torre é o
símbolo cravado por Flamel no coração da cidade. Olhando em mim, olhando em volta (um
pouco) não tenho a pretensão de ter recebido uma mensagem, mas a certeza de ter encontrado
uma.

Junho, 15

Em Londres, encontro numa rua de Chelsea abandonado no chão de um passeio, o «meu


relógio de mar» (nunca o tivera antes): uma pequena bússola indica nervosamente o norte
magnético incrustada num leme e fixa a uma espécie de pulseira sem marca de contraste nem
dono reconhecível. Tempo depois, deixada em cima de uma mesa, a bússola deixou de funcionar.
Mostrada a Helena Vieira da Silva e a Arpad Szenes ouço estas palavras: deve ter pertencido a
um cão.

Junho, 26

Quatro dias depois do regresso a Paris faço uma visita de cortesia à Torre. Reencontro um
argelino que me asseverara, três semanas antes — no alvorecer da noite em que me perdi — que
preferia mil vezes dançar sozinho, ou com um camarada, do que voltar a procurar mulher.
Mulheres, bah… Iria para Marselha, onde tinha um colega. Entretanto, mostrava a carteira
carregada de retratos de fêmeas, uma delas repetida em diferentes clichés que reapareciam como
uma obsessão. Fini, fini les femmes. Estávamos num café perto da Torre e eu fitara-o talvez
demasiado. Achei-o — e era — parecido com o Alexandre O’Neill, mas mais jovem (sem ser
questão de idade) e belo, mais livre — também mais preto — com a realeza da fronte e dos
gestos que as raças árabes passeiam pela Europa. Pergunta-me se tenho carta de condução, se
não quero ir com ele para Marselha. Não quero eu outra coisa mas não vou. Aliás, não tenho
carta de condução. Ele ouve as minhas razões e encerra o assunto dizendo que a melhor hora de
ir ao banho (turco, suponho) é essa agora ali. Não o acompanhei.
Vejo-o agora sentado, muito direito, num banco do parque. Fala-lhe um rapaz branco, feio
como as cobras. Acena-me. Reconheço-o, saúdo-o, mas de longe, passo-lhe de lado, eu, a grande
Europa! E subitamente a meu lado, do lado do coração, o que eu ainda não vira, ou olhara sem
ver dias a fio: uma discreta, quase oculta homenagem a Gérard de Nerval. O amante traído por
todos os rostos de Aurélia, o visionário das Viagens no Oriente! Ele, ou o seu perfil de Gérard
Labrunie, talhado no medalhão que tem acompanhado tantos dos seus livros.

E o meu príncipe árabe? Desapareceu. Deste duplo encontro, ou reencontro, fantasma, restam
sobre uma pedra, cercados de musgo, os versos admiráveis:

Je suis le ténébreux, le veuf, l’inconsolé,


Le Prince d’Aquitaine à la Tour Abolie…

Julho, 11

«Cada homem gerado é todo o céu, ou todo o inferno, em todas as suas partes infinitas». Isto,
que leio agora em Swedenborg, pode ter várias réplicas. A primeira (a Ocidente) de Blake.
Última, a que apontei, vejo que sabiamente, no poema do «reino de Pràtazul, a linha de água»:

que suporta e separa


e contém os dois mundos
e ondula

Ainda neste poema, dois versos cortados, por, entre outras coisas, fazerem supor uma crítica,
que não são, ou uma identificação, que não têm, com a filosofia de Platão:

… (depois de tantos amos tantas fábricas tantos


arquitectos do amor fitando o espaço)
para que uma Estrela os considere filhos
e os enforque na ideia de uma gávea

Ora: é por holocausto à sua estrela, filha dos mistérios de Ísis e Elêusis, que Nerval se
enforca na R. da Velha Lanterna, em 25 de Janeiro de 1855. «Bastava-lhe estender os pés para
tocar no solo».

1 A tradução de Torres Amat, também referida por Borges, intercala a palavra Deus para dar o seguinte: «Presentemente apenas
vemos Deus como num espelho e em obscuros reflexos; mas então vê-lo-emos face a face.»
2 Ler no Phedro de Platão.
3 Intérpretes orais da Tradição.
PARIS, 14-2-1970

Desapareceu a velha grade alta que defendia em quadrado coberto de arbustos todo o jardim
Saint Jacques e a própria visão da Torre. Canteiros de altura não superior a trinta centímetros
passaram a formar, a toda a volta do quadrado, um anteparo irrisório, e, se possível, ainda mais
feio do que os bancos agora postos em modernizado. (Devido, dizem-me, a Maio de 68, depois
do que grande parte dos jardins de Paris foram rapados das suas cercaduras de ferro em lança,
possível ferramenta de motins).
A Árvore Que Dá Gatos, como eu chamava ao passo ajardinado que ladeava a também ex-
estação fluvial do Cais do Sodré em Lisboa, não sofreu maior devastação! A perspectiva, como a
luz, passou a rasante, e a Torre, despojada de toda a vetustez, raspada pelos serviços camarários,
é um bolo amarelo de alvuras indecisas. (Antes, semelhava ferro em combustão interior). Vem
do chão como se ergue a dos muslins que rapam à navalha o cabelo do sexo. Amarela, também, a
estátua de Pascal ganhou o aspecto mindinho de quem pode ser conduzido a passeio por qualquer
vento fraco variável, e a colunata dedicada a Nerval, antes assoberbada de verdura, vê-se de todo
o lado, termina em bico, como a tampa do telefone para a polícia. A casa do guarda também
desapareceu: deixou de haver seja o que for para guardar.
PRIMAVERA AUTÓNOMA
DAS ESTRADAS
Os jornais são já livros feitos em comum. O «escrever em
comum» é um sintoma curioso que faz prever um grande
aperfeiçoamento na arte da escrita. Talvez cheguemos a poder
escrever, pensar, agir em comum. Comunidades inteiras, e
mesmo nações poderão empreender uma obra.
Novalis
ENCONTRADO PERDIDO
LES HOMMAGES EXCESSIVES
À ANDRÉ BRETON

juste avant de s’endormir


il se lève et reste debout
on dirait que paléozoïque
ou bien que très helicoptère
mais qui parle à quoi bon répondre
dare dare il est à surboire
À VICTOR BRAUNER

tiens c’est le chat illégal


quoi qu’absolument visible
il allume un feu tout blanc
il vient de jeter de l’eau aux virgules
père mère poire poète
attention le nain vous respire
fuez ses gants coupez vite le sable
on va être morts sous la table
À MOI-MÊME

pour louise soleil-devinette


je double v un moment
pour les amis qui sont morts
je pourrais pleurer ci-devant
mais pour tous ceux qui ont tort
je vais t’arracher les dents
À MOI-MÊME

il se promène sous écorce d’arbre


il parle aux femmes de ce qu’on apelle minoir
il a acheté un porte-bonheur très souple
il couche avec quand il va tout seul
À ALEXANDRE O’NEILL

si donc j’ai raison dans mon hypothèse


on verra bientôt au grand soleil anti-rat
la surmachine à coudre non dans l’air
mais sur les bouches genre bal de nuit
mais qui ont beau parler de Lénine
car c’est avec ce petit p de piaf
aussi bien fait que le p de papa
que tra-la-la de scorpion se dérobe

entends-tu le tan-tan qui en a marre


qui en a farre et qui en a barre
parce qu’il a le Sarre?
arre
passe-moi un peu hedy lamarre
comment peut-on parlare
avec ses propres à rien
ces têtes à tambour
ces moules en mal de retour
si personne n’en veut du tra-lá-lá?
À

Si donc j’ai raison dans mon hypothèse


À FERNANDO DE AZEVEDO

comment
devenir
cor(p)beau?
À JOÃO MONIZ PEREIRA

je t’ai envoyé à la merde et ce n’est pas trop dire


je t’ai envoyé à la merde et ce n’est pas encore trop bien dit
coûte qui coûte je t’ai envoyé à la merde
en 1947 à Paris

une ville tellement pour dire merde!


à Lisbonne ce serait impossible
à Lisbonne on dit toujours merda
et ça change le langage et tue l’amitié

puis à Lisbonne tu m’as dit:


lit-tracteur musicien surréaliste foutu

tu sais?
à Paris
tu ne dirais tu ne dirais pas ça
A Paris
il y a
la grandeur
et puis
le métro
et puis
c’est pas mal d’être mort à Paris
À ANTÓNIO PEDRO

Il est si grand il est si petit


je l’ai connu aux temps des grands rapaces
dans ce temps-lá il n’avait pas de corps
il etait plutôt une machine à vent
picqué de phares immobiles
pour mieux balayer les navires
il souflait il grondait comme la mouche voyante
de ce temps-lá ne restent que ses mains la peur du feu
À VESPEIRA

N’est pas si simple la respiration


n’est pas si simple l’eau diamantifère
n’est pas si simple le désir
n’est pas si simple que toi

Tu as arreté la main parachutiste


sur des épouvantables chevrolets
elle chantait avec son dos
et toute à fait par consequence

N’est pas si simple l’eau des robinets


n’est pas si simple que toi
À JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA

thèse
hypothèse
thérèse
je suis prêt tu peuves sortir
À ANTÓNIO DOMINGUES

Eu tlim ciências
tu tlim matemáticas
ele tlim trabalhos manuais
nós tlim recreio
vós tlim senhora
eles tlim castigo
À ALFRED JARRY

à l’Ozenfant de la Poupiii-e
le jus de gloire est tari V.
montre-nous de la Tyranie
l’étang d’art sans glande élevé!
ADOZITES
REBELIÃO

a — uma delegação de cidadãos composta de cinco membros descerá de dois táxis palhinha e
atravessará o rossio em estado de nudez. após a prisão grandes manifestações de regozijo
podendo haver lapidações em série.

b — professor catedrático, preferência escritor, é empurrado nu para dentro de um eléctrico.


alocução à província. dispersão.

c — choque de um aeróstato monstro com os dois elevadores de santa justa previamente


dispostos na passerelle. uma senhora jovem. dispersão.

d — duas delegações de cidadãos no total de dez membros descerão de dois táxis palhinha para
atravessar o rossio em estado de nudez. após a prisão abertura de um parque de rebolagem. mais
lapidações.

e — às cinco da manhã: ruptura de todas as negociações e preparação automática de novos


cortejos.
A ANTINOMIA EM 1947

o bem: o menino antónio dá sopinhas de leite ao gato


o mal: o menino antónio pisa o rabo do gato
resolução da antinomia: rabón gómez de la serna

o bem: o estar preso


o mal: não estar preso
resolução da antinomia: mandar prender

o bem: os dignos professores do estado


o mal: os professores dignos do estado
resolução da antinomia: o professorado
ADOZITES

com tempo seco que maravilha


podestepôr em cima da ausenda
que descobre a virilha
mesmo que não esteja à venda

vem a meu peito


que eu vou gritar
serás eleito
no ultramar e ar

carapaus fri tus tus tus tus calotes


soma um minuto e pronto bofetadas
uma ideia vestida de escadotes
sobre o cavalo a trote e a galopes
são horas de dormir bem mastigadas

para além dos teus olhos


cinco dedos alvos
e presos aos molhos
objectos calvos

um neo-realista diz que sim


mas tuas lantejoulas dizem não
alacremente como um sonoro trrim
no fundo do púcaro de alcatrão

bem dizes ai
com pulmõezites
ó chirivai
tocando apites
ai caravelas pelo mar fundo
tragam uivos de areia aos pirilampos
cabazes de olhos de moribundo
e sumos de uva nos relampos

ventoinhas que tendes vós?


soluçozinhos de terciopelo
já o mesmo dizia a minha avós
hás-de-me cortar o cabelo

e se tudo isto não te puder ver


faz um buraco e conta-lhe o resto
se for muitíssimo indigesto
verificarás que está a chover

de mim para ti
de ti para mim
ófeguiderzin
OS ANOS FELIZES

eu tlim ciências
tu tlim matemáticas
ele tlim trabalhos manuais
nós tlim recreio
vós tlim senhora
eles tlim castigo
ESPELHOS

o que é o crocodilo?
o grande responsável
o que é o elefante?
o grande irresponsável
que pode nascer deles dois?
a flor

quem era soulier?


uma criança
onde vivia?
num monte
como se diz em português?
ladrilho

para que serve o corvo?


para apalpar com desgosto
para que serve a mosca?
para beijar na boca
para que serve a viúva do opróbrio?
para um harpejo
SALVADOS DO INCÊNDIO DO CASTELO
DO ALMIRANTE WOLF

um chapéu de coral atado a uma medalha de cobre


uma cómoda estilo primas lagarto
um piano de cauda com uma cabeleira de índio
um garfo sem sombra
uma imitação do olho esquerdo de napoleão III tirada no momento em que ele assinava a lei de
meios das primas lagarto
um carneiro de purpurina
o ferro forjado que serviu a lord nelson
uma fotografia a sépia das primas lagarto no campo tamanho natural
o triciclo que pertenceu a kropotkine
o trikine que pertenceu a kropotciclo
a gravata hidrométrica inhásse paderevski
um exemplar original de vida e obra de gânglia vermouth com lindas águas-fortes de mestre
inácia coreto assinadas pepita lamartine
uma perna de carneiro assado
um lençol com sinais de vómito italiano
uma cadeira de rodas ainda com o corpo
uma lágrima de stálin

e diversos de: primas lagarto lao-tsé goethe hedy lamarr nicolau II etc etc etc
CONTO DE UM SÁBADO DE ALELUIA

Uma sala onde funciona uma sessão de espiritismo em que tomam parte cinco personagens. Há
muito que se descobrira, ao fundo da porta, ajudada por dois cães ovais de grandes proporções, a
tarefa extraordinária de uma multiplicação sem fim através dos quartos da casa, de resto
iluminadíssima. Ao fundo, uma cortina de pássaros azuis no sentido vertical reverberava luzes
mecânicas, entre o rolar de dois seixos enormes. E, efectivamente, quando a porta se abriu,
apareceu uma ravina profundíssima.
As encostas do abismo estavam cobertas de plantas gordas que deitavam uma aguadilha pegajosa
onde se iam prender as moscas que saíam daquela casa. As flores de cada um tombaram no
silêncio da noite catastrófica, esquecida para lá da cortina. Nada parecia extravasar daquela
ausência de burburinho e os pingos de água, soltos como rimas do poema premeditado e sem
origem, retiniam na planície, em baixo, vazia de outras imagens.
O primeiro espírita era um grande coxo de olhos fitos e sem pálpebras comendo
permanentemente azeitonas e cuspindo os caroços para distâncias incalculáveis. Era de resto
sujeito a vertigens e costumava aconchegar-se cuidadosamente para o seu acto habitual. O
segundo era uma pulga-do-mar omnipotente e carnívora, que apreciava esconder-se numa nesga
do retrato do dono da casa. Este, o mais velho, tinha cosido o braço direito na balbúrdia das
dobras da túnica verde que usava para simplificar uma nudez exaustiva e porca. Havia também
uma rapariga e um homem magro vestido de preto que passava as mãos sobre um osso muito
branco e limpo colocado num estojo de veludo à sua frente.
As cinco personagens não estiveram muito tempo naquela conjuntura sem que cada uma por si se
recordasse da infância. A rapariga encaminhou-se para a porta, afastando os pássaros azuis da
cortina com um passo cadenciado e sonolento. Na ravina, em baixo, dormiam duas mulheres
atravessadas uma por cima da outra. Ao vê-las, escorregou nos caroços do coxo e foi estatelar os
olhos no osso do coleccionador. Longa, laboriosa e secreta conversação se entabulou entre os
dois.
Não era a primeira vez que, depois de inúmeros e esfalfantes apelos, os espíritos se recusavam a
converter-se em imagem, seguindo-se então colóquios intermináveis, frases minúsculas e breves,
entre os assistentes. Por exemplo, a pulga-do-mar omnipotente e carnívora já se havia instalado
no capilo-mensor do dono da casa, esperando prudentemente que o fumo saísse do estranho
maquinismo. Quem te avisa meu amigo é. O dono da casa, realmente, não podia permitir, por
causa da moralidade, aquela visão cuidadosa. Assim, o primeiro personagem, ante a
possibilidade de avaliar a sangue-frio a trajectória do primeiro caroço, expelido pela manhã,
volteou sobre si mesmo duas vezes e especou-se de olhos fechados.

A paisagem estendia-se sem interrupção até às ruínas do castelo do marquês de Sade. De casa a
casa, do pátio misterioso e sem janelas fechadas ao histórico castelo, tudo era como se a distância
não fosse. Estranhos cavalos-marinhos, com seios de mulher, impediam o acesso às ruínas, e,
então, Catarina, pegando no osso do coleccionador, arremessou-o naquela direcção.
Entre o dono da casa e a rapariga nada havia que os aproximasse, salvo um gesto dele que a
amedrontava sempre, gesto recôndito, premeditado desde a infância e sempre suspenso, em que
desdobrava os dedos como numa panóplia.
Mas ninguém estava ali por acaso. Falhada a invocação de alguns espíritos de reconhecido
interesse, quatro das personagens, seguindo o olhar espantado do coxo, tiveram que sair. E
imediatamente, avançando com a irregularidade de um insecto, surgiu na paisagem, através de
uma grande porta em arco, um automóvel negro muito lento com o aspecto das bestas do dilúvio.
Dele saíram, sucessivamente, uma tesoura branca, dois pares de formigas excessivamente
ingénuas (a ponto de trazerem os laços debaixo do sovaco) e um cão que tinha de extraordinário
a cabeça de um homem morto durante o Directório.
Eis que chegam os espíritos! exclamou o dono da casa.
Na verdade, tratava-se apenas de polícia que a municipalidade enviara para arruinar o intento,
aos naturais suspeitos, daquelas reuniões sucessivas e prolongadas. Catarina lançou-se num vai-
e-vem de corpo livre. O homem magro mostrou-lhe a meia balaustrada que trazia escondida e
dobradinha em quatro voltas sobrepostas, depondo-lha aos pés. Com um acesso de despedida, ela
içou-se sem esforço e, transformando-se em águia, voou para as ruínas ante o pasmo dos
companheiros e da polícia. Quando regressou, trazia os seios apartados por um pedaço de lua e
resplandecia da cintura para cima.
Não havia nada a fazer. Com terrível angústia, o cão de cara humana expressou-se nestes termos:
senhores, eu nunca me teria aproximado desta casa pestífera, se não estivesse há muito
mergulhado na mais total vertigem. Não teria dito às minhas patas que avançassem, obedientes
às provas de tortura em que a região é fértil, se esta vossa casa fantasmática não abrigasse nela a
memória das noivas que eu possuí em jovem.
O choque foi tremendo. Nada do que podia suportar-se eterno e respeitável correu jamais o risco
de uma desintoxicação tão completa. Ao contrário do cão, os agentes da autoridade usavam
gestos expressivos de combate, e os espíritas, sedentos de outro mundo, nem cuidavam de
arregaçar a sombra, na confusão do atropelo. Andava assim trocada a mancha de cada um. Só o
coxo, impretérito, cuspinhava caroços na confusão das imagens.
Quem vem lá?
No vale amedrontado as irmãs sobrepostas aceleraram o ritmo da respiração. E, como eco do seu
alvoroço inconsciente, retiniam quase em surdina todos os instrumentos de tortura espalhados
pelo campo.
Ouviu-se então, e sabe-se lá de onde vinha, uma canção de embalar:

dorme dorme meu menino


dorme no mar dos sargaços
que mais vale o mar a pino
que a serpente dos meus braços

E então a paisagem alongou-se extraordinariamente, enquanto os cavalos-marinhos acenavam


com grandes lenços vermelhos.
QUE CONCLUIR?

De uma grande trompeta saiu a mosca — a mosca do pântano onde as cabras lavam as roupas de
baixo e os grilos tratam dos ouvidos uns dos outros. A mosca saiu velozmente e pousou na mão
que a esperava à saída. Deslizou pela mão, subiu pelo braço e foi dar ao interior de uma víscera
extraordinariamente roxa e laboriosa. Aí, tirou as lunetas de vidros fumados, limpou a testa com
um lenço quase tão grande como um lençol e começou então, só então, a cantar a ária Os Filhos
Perdidos, grande ópera italiana de Mosquito Mosqueteiro, agora entrevado entre quatro rimas de
«libretos»

Por essa altura usavam-se muito umas sapatilhas cor-de-rosa apertadas em volta do tornozelo e o
meu maior prazer era sentar-me à janela esperando de olhos fechados a aproximação do seu
ruído característico. Esperava, bebendo um vinho de Espanha que sempre excitou a minha
imaginação, e não poucas vezes consegui aquele estado de espírito em que a recordação dos
ódios familiares, a desagradável presença de uma tesoura sobre a fragilidade da minha paciência,
se desvaneciam sem deixar qualquer baba. Comecei assim a percorrer os livreiros à procura de
todos os livros que traziam, bem desenhados, os órgãos genitais femininos. Consegui juntar 400
gravuras representando esses órgãos e dispô-las de tal maneira que acabaram por criar um ser
estranho e quadri-dimensional. Esse ser começou a beber água a 27 de Abril de 1937 e, desde aí,
só por momentos deixa de o fazer. Arrasta-se, às vezes, até à janela, para vomitar sobre os
transeuntes uma nuvem de cabelos brancos velozes como borboletas. Depois retira-se e vai ver,
no espelho, uma dentadura poderosa, quase brutal.
Observar os seus enervamentos, ser o cúmplice activo das suas antenas, quase sempre
crepusculares — eis todo o meu trabalho desse tempo, mas, também, a sua contínua e
perigosíssima suspeição. Dir-se-ia que eu, não ele, era o campo de cultura de um observador
pertinaz e sempre insatisfeito. Sempre insatisfeito, até com… «a viração que lhe trazia o cheiro
dos chapéus de senhora escondidos no armário preto da grande sala-de-estar da Duquesa Elisa,
grande coleccionadora de faianças que as crianças iam, por seu turno, partindo, com um grande
regozijo nocturno. O guizo não se aguentava no coturno que o Duque teimosamente deixava ao
relento, todas as noites, enquanto ia dar açoites ao pachorrento guarda-nocturno que
pacientemente esperava as prometidas bodas».
«Os chapéus cheiravam enquanto chegavam os réus ladeados por todas as prometidas, chorando
lentamente. O armário preto era afinal o esqueleto do pardal monstruoso e hebdomadário com o
abdómen comido pela mãe que se ria num gozo que bradava aos céus!»
Comuniquei estas e outras experiências a um homem magro que aparece por aí e disse-lhe que se
eu desaparecesse, desejava que fossem aos Açores (dei as indicações necessárias) e numa ilha,
que nomeei, escavassem a rocha, depondo nela a última prova de laboratório: um negativo em
que, por detrás das asas, figura um objecto de solidão.
LÓGICA DO CAFÉ ROYAL
LÓGICA DO CAFÉ ROYAL

O inferno é o real absoluto. Quanto mais infernal mais verdadeiro. Por enquanto.

Horus filho de Osíris e de Nephtis.

O pavoroso e o vaporoso incluem-se.

Uma nuvem escarlate sai da tua boca em direcção ao rio. Talvez te hajas devorado a ti mesmo,
primeiro só um braço, depois só o outro. Talvez a imagem de uma cidade em chamas onde o
excesso de circulação de revoltos, na zona dos quartéis, atira para o céu todos os pesos médios.

Amor dos elefantes. Ao Cruzeiro Seixas.

Se tu não viste tudo que viste tu?

As coisas inanimadas animaram-se: quando dormes há um prédio que te adora.

O lirismo é um epigonismo da prisão de ventre. Se alguma vez fui lírico — mas dizem-me que
sim — é porque estava com essa prisão.

Os que se matam parece que se atam.

Colo louco.

Apesar do outro que diz, duvida que o anão aos ombros do gigante veja mais que o gigante. Na
verdade não vê: não é da sua contextura. A visão do gigante é peculiar, formam-na os seus
tamanhos, o seu passo, o seu conhecimento da floresta. Aos ombros do gigante, se chegou aí, o
anão vê anão o seu universo anão.

Ensaia sem rancor a formiga obediente.


Sai-se para a literatura quando é da literatura que é preciso sair. Os maias prescreviam toda a
forma escrita, considerada atentatória do funcionamento do mundo. Nós expelimos literatura de
vibração.

Encontrar a verdade em corpo e em alma é o único fim da boca humana, o único trabalho que
deve prosseguir.
O TEATRO DA CRUELDADE: ANTONIN ARTAUD

«Haverá coisa mais ultrajosamente fecal


do que a história de Deus
e do seu ser: SATAN
a membrana do coração
a reca ignominiosa
que nas suas tetas escumantes
nunca nos escondeu
senão o vácuo?
Perante esta ideia de um universo pré-estabelecido nunca (até hoje) o homem conseguiu
estabelecer a sua superioridade sobre os impérios da possibilidade
Pois se não há nada
não há nada
senão esta ideia excremencial
de um ser que teria feito por exemplo as bestas
E de onde vêm as bestas
neste caso?
De que o mundo das percepções corporais
não está no plano que lhe é próprio
nem no facto
de que existe uma vida psíquica
e nenhuma vida orgânica verdadeira
de que a simples ideia de uma vida orgânica pura
não pode colocar-se
de que uma distinção
foi estabelecida entre
a vida orgânica embrionária pura
e a vida passional
e concreta e integral do corpo humano

O corpo humano é uma pilha eléctrica


cujas cargas foram reprimidas e castradas

Tendo-lhe sido conduzidas para a vida sexual


as capacidades e os modos
quando afinal ele é
feito para absorver
pelos seus deslocamentos voltaicos
todas as disponibilidades errantes
do infinito do vácuo
dos buracos do vácuo
cada vez mais incomensuráveis
duma possibilidade orgânica jamais cumprida

O corpo humano tem necessidade de comida


mas quem experimentou jamais fora do plano da vida sexual as capacidades
incomensuráveis dos apetites?
Fazei dançar a anatomia humana

de cima para baixo e de baixo para cima


de trás para diante e
de diante para trás
mas muito mais de trás para trás
que de trás para diante
e o problema da rarefacção
dos géneros alimentícios
não terá de ser resolvido
até porque deixará de ter lugar
para pôr-se

Fizeram o corpo humano comer


fizeram-no beber
para evitar
que dançasse.
Fizeram-no fornicar o oculto
para que se dispensasse de espremer
e supliciar a vida oculta
Pois nada tem
tanta necessidade de suplício
como a chamada vida oculta

É nela que Deus e o seu ser


pensaram fugir do homem demente
aí, nesse plano cada vez mais ausente da vida oculta
onde Deus quis fazer crer ao homem
que as coisas podiam ser vistas e tomadas em espírito
quando afinal nada há de existente e de real
senão a vida física exterior
e tudo o que foge dela e a rodeia
não é mais do que o limbo do mundo dos demónios

E Deus quis que o homem acreditasse nessa realidade do mundo dos demónios
mas o mundo dos demónios está ausente.
Nunca alcançará a evidência.

A melhor maneira de nos curarmos dele


e de o destruirmos
é acabar de construir a realidade.
Porque a realidade não está acabada
não está ainda construída.
Do seu acabamento dependerá
no mundo da vida eterna
o retorno de uma eterna saúde.

O Teatro da Crueldade
não é o símbolo de uma vida ausente,
de uma espantosa capacidade de realizar a sua vida de homem
É a afirmação
duma terrível
e de resto inelutável necessidade.

Nas colinas nunca visitadas


do Cáucaso
dos Cárpatos
do Himalaia
dos Apeninos
todos os dias
noite e dia têm lugar
há anos e anos sem conta
espantosos ritos corporais
onde a vida negra
a vida nunca controlada e negra
se dá espantosos e imundos repastos.
Aí, os membros e os órgãos abjectos
porque
perpetuamente abjectados
reprimidos lançados
para fora das capacidades da vida lírica exterior
são utilizados no total delírio de um erotismo que não conhece freio
entre o defluir
sempre mais fascinante
e virgem
dum licor
cuja natureza pôde nunca ser classificada
porque existe cada vez mais incriada e desinteressada
(não se trata especialmente do sexo ou do ânus
que são para cortar e liquidar,
mas do alto das coxas,
das ancas,
das costas,
do ventre total e sem sexo
e do umbigo)»
AUTOCOROAÇÃO

«Nós Rotcivus Renuarb


Grão-Mestre do Exílio Permanente
Único Comendador do Espaço Catapultado
Primeiro Xerife Hemisférico
Grande Militante da Psicopatologia
Primeiro Inventor da Inspecção Pictográfica
Vovóide da Balística Negra
Príncipe da Infra-Noite
Após inumeráveis mergulhos na realidade, mundo exterior raciocinado e arranjado pelos
homens, como bem lhes parece, como paraíso terrestre a chegar; após maduras reflexões
resultantes de uma longa experiência, colectiva e individual,
pela natureza-naturante, vontade mágica que admite o ignoto como o mais leal reflexo das
leis naturais da liberdade no seu devir, por este acto solene, vindo das profundezas mais vastas,
mais impenetráveis e incompreensíveis do Grande Eu,
pelo mais incomensurável desespero da impotência de olhar desde o exterior para poder
conhecer,
pelo Nosso nariz, pára-raios autêntico do desejo-destino em permanente luta indissolúvel,
pelo Nosso leque poético, símbolo universal de todas as estruturas do desenvolvimento da
natureza,
pelo Nosso fluido vivificante, chama do estímulo, da imaginação, da inspiração, fagulha da
brasa visível, da força latente e contínua da visão do mundo,
e como Nós o dizemos e repetimos com força renovada Nós Nos coroamos com a Ordem da
Grande Relatividade Egocêntrica sem justificações como signo do Nosso Poder
e Nós nos declaramos furiosamente nesta célebre data dos dois R do Racionalismo Racional
caído

IMPERADOR DO REINO DO MITO PESSOAL

Nossos poderes são absolutos e confusos, ferozes e melancólicos.


Feito por Nós-Mesmo em Nossa Presença e rodeado das mais ilustres associações de ideias e
de grandezas poéticas
A sete de Março de mil novecentos e quarenta e sete no Nosso célebre Castelo da
Imaginação.»
ANDRÉ BRETON

(a Antonin Artaud)

«Noite suja, noite de flores, noite de estertores, noite capitosa, noite surda cuja mão é um
papagaio de papel abjecto por todos os lados retido, preso a fios negros, fios vergonhosos!
Planície de ossos brancos e vermelhos, que fizeste da tua fidelidade que era uma bolsa de pérolas
unidas com flores, inscrições disto e daquilo, significados para tudo? E tu meu bandido, bandido,
liquidas-me, bandido da água que desfolhas punhais nos meus olhos, de nada te amerceias, água
cintilante, querida água lustral! As minhas imprecações hão-de seguir-vos durante muito tempo,
como uma criança assustadoramente bela agitando na vossa direcção a sua vassoura de giestas.
Em cada haste uma estrela e não é muito, não, chicória da Virgem! Já não quero ver-vos, quero
crivar de chumbos as vossas aves que já nem folhas são, correr-vos da minha porta, corações de
pepino, cerebelo de amores. Basta de crocodilos no telhado, basta de dentes de crocodilo em
couraças de samurais, basta de jactos de tinta e renegados por todos os lados, colarinho
vermelho, olho de groselha, pêlo de galinha! Acabou-se, não mais esconderei a minha vergonha,
ninguém mais me acalmará, por nada, por menos do que nada. Se as máquinas voantes estão
grandes como casas, como havemos de festejar-nos, alimentar o que nos vai roendo, erguer as
mãos sobre os lábios das cascas que falam sem fim (estas cascas, quem as calará de vez?) Basta
de segredos, basta de sangue, basta de alma — mãos para amassar o ar, doirar uma só vez o pão
do ar, fazer estalar a goma das bandeiras que dormem, mãos solares enfim, mãos geladas!»
A IMACULADA CONCEIÇÃO

Devo dizer que anoitecia. Os eléctricos começavam a subir pelo espaço com uma obrigatória
sensação de enjoo. Quando as casas se desmoronam é observável um brevíssimo movimento-luz
na pálpebra do último a desfalecer (desde que desfaleça esmagado). As várias interpretações que
o fenómeno tem sofrido parecem-me bastante longe da verosimilhança. Pelo menos, da
verosimilhança obrigatória. Além de ser pouco acessível a crença nos fenómenos desta natureza,
há sempre um pequeno desvio oscilatório entre o fenómeno em si e uma pequena pedra que se
situa muito ignoradamente no pé levante esquerdo do túmulo de Napoleão Bonaparte. A coisa é
difícil de estabelecer porque no seu movimento de suspeitíssima ascensão os elevadores actuam
colectivamente.

Na minha meninice tive muita facilidade em verificá-lo mas como a transmissão directa de certas
revelações é praticamente nula, além de ser vergonhosa, aconselho a leitura ao ar livre dos livros
pornográficos que pelo menos uma vez na vida nos aparecem de chofre. Não é no desejo de
impulsionar — impulsionar é uma palavra estranha — que a este propósito vos falo da aranha
pessoal, incrivelmente ténue, que a certas horas do dia pode ver-se na mão das pessoas que
caminham como sonâmbulos entre um automóvel que soe escangalhar-se e a parede da rua
perfeitamente ocasional. Foi uma dessas mãos aranhadas (falo sem preconceito) que em tempos
remotos, através um amigo de infância, me deu a ler A Torre de Nesle. Será talvez inútil atender
ao facto de não ser este livro diferente dos demais — diferente num sentido pornográfico —
senão pelas ligeiras inclinações que preexistem no canto superior direito de cada uma das suas
folhas. Bardamerda se afinal as gravuras traem sempre o verdadeiro espírito das obras em
questão e é de lamentar que o homem não possa realmente incandescer-se e crescer segundo os
seus desejos. Outros livros há no entanto que parecem provocar o justo contrário e todo o carro
de pastores tem direito a parar de quando em quando no sentido poético, isto é, demoradamente.
Se um passeio tem sempre os seus perigos, como desistir então de achar formosa a paranóia
auricular de certos vegetais afrodisíacos? O justo dispensável parece ser não o cerimonial interno
(do ponto de vista da traição biológica), mas um conjunto, quase sempre apressado, de fórmulas
hieráticas que — justamente! — pendem de uma das patas da aranha manual. É claro que será
sempre difícil averiguar da autenticidade de certas manipulações ora vergonhosas — sentido
solar — ora apocalípticas — sentido lunar ou antimuro. A necessidade de tempo age, eu diria
que sempre, de maneira volátil, e entre o fonógrafo e a capicua o socrático escolhe sempre outra.
Penso fazer passar por ela um cortejo tal que os próprios cinemas estalarão de cio. Nada de
determinado sobre a natureza do cortejo, mas prevejo cabras, heliotrópios, esponjas, um braço
feminino no sentido amoroso. Duas largas pernas em ângulo recto, uma lareira de cobre, o meu
cabelo.
Não me parece que venha a engordar.
A PAISAGEM DO RELÓGIO BRANCO

a paisagem do relógio branco talvez dentro do palco talvez fora dele — penso numa janela que
dá para certo jardim de três dedos janela que só abre quando faço um sinal de assentimento aos
outros pés do imóvel — passo bastante veloz entre almofadas custosas de digerir, água de seltz.
Fui dar à grande gruta onde todo o maquinismo respira brutalmente de encontro a um animal que
de curioso só tem os olhos — uns olhos de curiosidade. Outra estranha figura gira continuamente
em torno de uma grande mão percorrida por inúmeros insectos de madeira. O maquinismo
começou a dar horas — pancadas unilaterais muito sensíveis na minha perna direita que retraiu
por momentos. Um grito lindíssimo nasceu na parte superior da concavidade calcária e uma
rapariga graciosa apesar do cancro que lhe roera o nariz e parte do ventre atou-se vagarosamente
ao poste e começou a girar também. A explosão não tardou a dar-se nas minhas próprias
cadeiras. Uma grande angústia tomou conta de mim e subindo em balão encontrei uma casa de
caridade pública cheia de brilhos com olhos numa série de damas sentadas numa caixa de vidro
cortical.
És tu? disse a segunda.
Terrivelmente rápido transformei-me em mosca dos pântanos instalando-me no pescoço da
prostituta. Não será preciso acrescentar que a breve trecho ela estava morta. Um senhor que
aparecia a ler um romance antigo desfez-se no mesmo momento em que uma das minhas patas se
levantava daquela carne dorida.
Tudo leva a crer que se tratava de incesto e voei para cima da cómoda habitando hoje o dentinho
— o primeiro que lhe caiu — da menina que dorme irregularmente na praça luís de camões
quando o polícia do lugar fita distraidamente o último automóvel da madrugada e os insectos
começam a murar as suas habitações invisíveis aos olhos dos trabalhadores que se levantam com
o tesão do mijo.

(paranóia fonética do texto anterior)

as aias agem por elogio sob a viuvez do talco, centro de uma vela branca como um dorso, larga
como um farol de vastos estremecimentos. Acusados de aspirar o ar puro dos montes, expiram os
maquinistas. Há-os a pé e a cavalo, há-os com passo de subúrbio, há-os já sem vida, sobre as
fogueiras. Um homem ergue lentamente um braço, deixa-o cair em cima da cabeça. O cataclismo
sai-lhe pelas esporas.
Embrulhadas demais, duas palavras irreversíveis quebram-me o aparo, pouco habituado a estes
seres. O ar gira uma chave ao desdobrar a mão que lhe aponta o país que aparta os movimentos.
«Ungarito, digo eu, vê com que arte o amor retoma o brilho das cidades cantábricas!»
Instalado à lareira do refeitório um pichel de ale quente sorvia lentamente um homem. As razões
porque o chamavam ignoradas eram absolutamente capitão. Por fim juntou-se roseamente ao
poste e soluçou a pensar na mãe. Surgido do ar, leve como um a-fresco, um leão boiava na
porta…
Pendurada de uma janela de feltro com um ponto moral de quatro vóltios, a garganta-milhafre
presa pela espinha invoca o vidro ardente das cremalheiras. À cega imunda consegui gritar que
me transfusionassem um pouco o osso do meu pé caído na luta. Do chão brotou, a arrastar-se, a
minha roupa primeira — meu amor, que no nome te pareces comigo… Do eu me ver que se
tratava do cesto e, puxando uma rima, caí em estado de coma. Mas a ave que debica o vento,
primo dos mensageiros do céu, veio dar-me a sumptuosidade volumétrica de um olhar que certa
fístula, traída pelo ultimato autómato das madres ungarettianas, intercessiona ao largo das ilhas
sandwich na tentativa de murar gazuas e titilações aos olhos das torneiras tradicionais que
levitam o barrete frígio na mão.
ESTADOS

O antigo dono de uma hospedaria chamou três companheiros de um filho e fizeram um pacto:
que tudo o que se visse nas florestas do Ocidente fosse fabricado pela mão do homem!
Meu dito meu feito. Compraram uma casa, disseram adeus às mulheres e ninguém mais os viu
durante um ano. A voz corrente era que se embebedavam. Como, porém, nunca saíam, nada se
podia assegurar. Começava a temer-se pelas suas vidas quando o estrangeiro apareceu, pediu
silêncio, meteu os quatro homens numa caixa e os levou para a nau.
Os tipos de crânio e de esqueleto correspondiam, anotou o estrangeiro no livro de bordo. Os
outros, seguiriam para entulho.
Sussurrando alto, o que é uma excelente maneira de proporcionar uma respiração satisfatória, o
antigo dono disse para os companheiros:
— A nossa voz é monótona em vez de vibrante. Vamos morrer todos nesta caixa.
Este estado durou vinte e seis horas.
No estado seguinte, a mola mestra dessa preparação espantosamente rápida que é um rapaz de
vinte e dois anos, entrou na ponta dos pés, sentou-se ofegante e disse:
— Vocês chamam a isto nadar?
Era uma voz de alarme. Efectivamente, fora da cidade, quantos saberiam da situação dos quatro
amigos? Começaram a colher informações nas páginas dos jornais. Em movimento, não
pareciam estar feridos. Sentados, o sangue escorria, tentando a eliminação de substâncias
prejudiciais. A posição dos joelhos, sobretudo, era incómoda.
Este estado durou dezassete horas.

Findas as quais o estrangeiro desceu, abriu com afabilidade e convidou os quatro amigos para o
deck dizendo-lhes que comessem e bebessem porque os tempos não iam para outra coisa.

No estado seguinte as nações livres do mundo estavam progredindo e as obras dos serviços de
utilidade pública multiplicavam os progressos das nações livres — o corpo humano deixara de
aspirar ao sono — as mulheres arrumavam os quartos dos maridos com adoráveis mãos que
sabiam escolher.
Emagrecer repousando foi, neste estado, a única preocupação dos quatro amigos. Aliás, a
situação a bordo era excelente, com bastantes vistas para o mar. Paco Bill, o urbanista armador, e
os homens da equipagem, os admira dores, os solicita dores, os canalisa dores, os trabalha dores,
os avia dores, os computa dores, os opera dores, os prega dores, os pesca dores, os alumia dores,
os anuncia dores, os salva dores, além dos oficiais de serviço, o monta dores, o chupa dores, o
canta dores, o limpa dores, o beija a dor, e o de serviço em baixo, o restaura dores, haviam
tratado de tudo, não permitindo que se lhes adiantassem em imaginação, tacto e disciplina. Já em
laboratórios produziam homens em miniatura, agora em exercício na cabra da nau. A única
deficiência consistia numa dificuldade em classificar tais objectos.
Os quatro amigos prestaram-se de bom grado à obtenção do material necessário: uma madeira
leve, resistente, insusceptível de fadiga ou ardor.

O estado seguinte é apoteótico. Os 150 motetes e as 93 missas de Palestrina tinham feito ressoar
o grande órgão de Leipzig. Pois bem: o antigo dono dos companheiros de um filho não
desmereceria de tal responsabilidade. Já a região da Champagne se tornara famosa por obra de
Don Pedro Perignon. Ele, poria o telegrama seguinte:

limito-me a dizer objectivamente o que penso


chegámos ao extremo limite do perigo

Neste estado chegaram a procópio’s town, entrando como uma flecha em mosca’s basílica, por
còcácos tower.
O AUTOMÓVEL VERDE

nesta ilusão iludi-me


a hora da vida já
soltou uma gargalhada
e saiu pela janela

……
o automóvel verde
vestido de lilás
……

fiz da vida ida


fiz da morte volta
gága, gága, gága
fiz de pedra tudo
ENVOÛTEMENT

quem lê na infância está perdido


quem não lê na infância está salvo
andar de automóvel é um acto suspeito
não andar de automóvel não é um acto suspeito
o lisboa não anda de automóvel
o fernando não anda de automóvel
o henrique não anda de automóvel
o carlos não anda de automóvel
o carlos lê na infância
o pedro oom não anda de automóvel

há um lago de brilhantes na minha boca


a minha boca é uma passadeira branca
as bocas dos meus amigos são passadeiras brancas
a boca da maria josé é uma passadeira branca
o mário henrique é uma passadeira branca
o joão artur é uma passadeira branca

ler na infância é um mal


não ler na infância é um mal
um automóvel não é um automóvel
um automóvel é a mosca dos pântanos
todos os meus amigos são a mosca dos pântanos
nenhum dos meus amigos é a mosca dos pântanos
o lisboa não é a mosca dos pântanos
o henrique não é a mosca dos pântanos
o fernando não é a mosca dos pântanos
catarina não é a mosca dos pântanos
catarina é um lago de brilhantes
o tomás não é a mosca dos pântanos
o tomás é e não é a mosca dos pântanos
o seixas lê na infância
o seixas não é a mosca dos pântanos

NINGUÉM TEM PASSADEIRAS BRANCAS

diamante líquido sobre-solar


CADAME

a vida é bela . comecemos


primeiro : o maior descanso
segundo : a maior liberdade
terceiro : o tratar-se dos pés
quarto : queimar

vejamos : a lua no quarto crescente cinge o macaco. Separará sem dúvida o quente do frio, como
uma aterrissagem do génio expelindo o melhor, le plus beaux que auferimos de tanta felicidade

partiremos de noite como dois operários. Assim eu venho para a grande fractura frente ao
palácio. A princesa repousa da sua casa, trago-lhe o direito ao abandono nela. É encarregado da
obra e da palavra, amigo da bondade e da beleza, o meu cão.

olhar é desaparecer

abre a janela e passa orgulhoso


sob o aqueduto
o avião o
silêncio

além de tudo o novo cisne de Rhodes teu pai, pai de si-mesmo e de quantos o habitam, ele que
tanto lembra o seu esplêndido vácuo e fala claramente, separado do mundo.

quanto a Fausto, é de ver que se trata de gente doida com aparência de sábios, gente que sabe,
que sabe muito, gente para fuzilar.

le vieux couple.

cadame.
le soleil.
O LORINHÃO ESCORREITO
SONETO

nada sobre esta mão nada na outra


dum lado o pé do outro a maresia
para os lados do rim a luz é pouca
e uma vez sem exemplo é que eu queria

josé sebag em hong-kong toca


um psaltério roído pela traça
dá as mãos amarelas a uma foca
que evoca uma descida até à graça

dos dois elevadores lança-se a louca


paço por paço constrói-se o tapume
deita-se o sexo à beira da tua boca

o cardeal tardini vai ao lume


o teu cabelo sobe pela praça
anunciam-se braços de garoupa
SONETO 2

não nenhum fim em vista justifica


esta hora de carne de compêndio
de tudo o que sonhei o grito fica
em bailundos que atacam o incêndio

um homem impassível verifica


ponto por ponto o nível da cascata
que foi de quartzo feldespato e mica
agora espanto pénis pus e pata

nem um rato que fosse nem um verme


nem um no hemiciclo sopra e geme
aqui ou no rossio ou na avenida de berne

quem não deve não teme


devoremos o cherne
com dvorjak ao creme
REDONDEL DO ALENTEJO

No plaino o vento suão


Na varanda o alguidar
Na tasca mestre João
Vai jantar.

Falam de revolução
Com o novel editor.
Mexem muito a mão
No horror.

Lisboa espera indecisa


A conta deste semestre.
Par ou pernão? Mona Lisa.
Estátua equestre.

O herói vai para o trabalho


Com as searas a ondear
À sombra dum carvalho
Sem parar.

O herói vem do trabalho


Cai de cama tem um quisto.
Farinheira açorda de alho.
O que é isto?

Resultado: está no banco


Mesmo ao pé do «Tivoli».
Muito franco.
Nunca vi.
Passa horas esquecidas
A cantar a Tia Anica.
São vidas.
Bica.

E tanta cortiça
Para se aparar.
Toma esta nabiça.
Vai buscar.

Naquela casa de esquina


Mora o Antunes da Silva.
Sua avó uma menina
Ilda.

A guarda republicana
Passa ao longe a cavalgar.
O sacana.
Estar.

Esta vida são dois dias


E o escritor há-de-se vir
Em cima das gelosias
Emir.

Para os lados da Frangalha


Passa de novo o Antunes.
Vai convidar a Nalha.
Costumes.

Aqui que ninguém nos ouve


De Moura até Aljustrel
Vai uma couve
Com ele.

Vai devagarinho
Vai e não vai só
Leva a borracha do vinho.
Oh.

No meio do olival
Já perto da oliveira
Não parece mal.
Estrangeira.

Pela estrada fora


Vai o rancho a cantar.
Fernando Namora.
Parar.
O LORINHÃO ESCORREITO

O que é o suplício de Tântalo?


É uma luz muito íntima que me aquece à noite.

O que é o suicídio?
É descer lentamente com o vagar de quem sobe.

O que é o amor?
É uma rua muito sossegada onde só se passou uma vez.

O que é a muita fome?


É um tinteiro de prata cheio de sangue.

O que é a nobreza?
É o vento vindo dos bosques.

O que é o sonho?
É o simulacro da melancolia.

O que é a coragem?
É uma igreja dentro duma noz.

O que é um Galo?
É uma dilatação na parte posterior da cabeça.

O que é a razão?
É uma carta vinda de longe.

O que é a noite?
É um texto muito antigo entoado por uma multidão de sapos.
O que é o destino?
É o amor a todo o comprimento.

O que é a infância?
É uma ilha que emerge rapidamente.

O que é a Pintura?
É um banho turco prolongado.

O que é a monarquia?
É um saco cheio de pedras a pedir que o carreguem.

Quem é a tua mãe?


É um mendigo que espera pela noite para rir.

Que somos nós?


Os olhos do pássaro morto em viagem.

Que esperamos?
A tua esperança.
Que fazemos?
O dia.

Quem era António Maria Lisboa?


Um oráculo distraído que nunca disse a verdade.
Onde vivia?
Ao colo de uma estátua de farinha.
Porque vivia?
Porque houve sempre quem o quisesse matar.

O que é o nervoso?
É a lamparina de aço.

O que é a paciência?
É um alicate em dia de trovoada.

Que és tu?
Um fio que ato à volta da cabeça.

Depois de assentado o piso


o filho desobediente
ficou muito mais alto.
Que se passa?

A cerimónia do leite e do mel.

Dois claros olhos de homem


e as justas sobrancelhas
aparecem por baixo do boné.
Que se passa?

O enriquecimento do vocabulário.

Não creio que haja muitos espectáculos, todas as manhãs, diz a história dos zepelins.

Que se passa?

A conspiração dos bispos.


VIDA DE KANDINSKY

No ângulo da Rua Augusta com a Rua Nova da Trindade estava um indivíduo coberto de trapos
ensanguentados sentado no passeio. Os transeuntes afastavam-se dele com repugnância, alguns,
dando pequenas corridas nervosas, ferravam-lhe caneladas e cachações. No passeio oposto, um
homem baixo e atarracado, de sobretudo, dizia repetidamente, fixando a vitrine da Sociedade
Pancada & Morais: Olá!
Não, não e não! — disse o gafanhoto preso pela cinta muito velha mas útil que o ligava sempre
ao seu partido. Insinuara-se no degrau da escada e começou a desenrolar o papiro onde trazia
escritos o nome do pai, da mãe, do amigo e do inimigo mais próximos. É assim, comutou ele:
«Casa cantante, caracol na cabeça, bom telefonema para as Índias Orientais, assim heis-de
prestar contas do sucedido.»
A mulher gostava? A mulher não gostava. Abrira o ventre a trancadas de cavalo, eram quase seis
horas. Isso não impedia que o lituano fosse uma língua arcaica. Era essa pelo menos a opinião do
ilustre arqueólogo. Para se lançar nesse sublime caminho repleto de afirmações baseava-se ele
em três elementos, a saber: o facto de a libélula ter asas em rede de aço; a convicção universal
segundo a qual fogo em japonês antigo corresponde à palavra grega que actualmente significa
raiva ou pequena má disposição; terceiro: o facto, gravíssimo aliás, de ter sido encontrada no
ventre de uma libélula uma colecção completa de lápis de cor. Depois de tudo isto, como o
congresso não fora ainda dissolvido pelos grandes activistas, procedeu-se entusiasticamente à
mineralização do osso do guerreiro.
No entanto, a escuridão era total. Agarrada ao manuscrito, a personagem murmurava
incongruências sobre actores e carne picada. Fazia-se tarde. Na sua cabeça, pequenas picadas
nervosas constituíam um aviso premente, sinal da saída da tiragem da tarde dos jornais da cidade
que, de há uns tempos a essa parte, se tinha enchido de acções malévolas praticadas pelos
componentes da organização «Frete Ilustrado».
Como sempre, a identificação organizada do osso do guerreiro complicava-se. Dois gramas de
álcool sobre as minhas feridas e a tese horrível de Dostoievski conseguiram alfim o primeiro
raport: tratava-se do jornalista medieval Osnam obrigado a ir para a guerra sempre que era
preciso, isto é, sempre que tocava a corneta (e tocava sempre!) no acampamento de Osram. Por
outro lado ligado à princesa, o homem era velho apreciador de imagens, tinha uma.
Isto aborreceu toda a gente. Quarenta, oitenta, cem. Digamos mesmo duzentas plumas; com elas
o mexicano arcaico, nariz em pedra cinzenta, grandes orelhas em lava solidificada, sexo roxo,
coroou a cabeça oblíqua. Cantaram os pássaros, enegreceram as piteiras pontiagudas. Como o
céu era amarelo as catedrais volveram-se areia. Uma paz inquieta ondulou, um sangue
solidificado cristalizou. Tudo era o ventre da serpente.
Confuso, o editor só fazia asneiras. Forçado a alimentar-se demasiado pelos intriguistas do jornal
Agora a fim de poder comparecer às reuniões da Casa do Pombo, ia dando sinais mais que
evidentes de obscurantismo primário. Sua mulher perseguia-o e dizia a quem a queria ouvir:
«Noutros tempos, era tudo uma língua, um ouvido, uma convulsão. Dançávamos sobre o sangue
da coruja, possuíamos as pedras negras caídas da lua, oscilávamos ao ritmo das explosões
solares. Os nossos corpos eram coral e vento, belos como a raiva, resplandecentes como os
cornos vermelhos do macho de uma fêmea que se desagregou em espuma e nada. Grandes
templos em aço e duralumínio coroavam a planta dos nossos pés. Marchávamos sobre a própria
estrutura do planeta. Nossos olhos crateras de lama negra. Éramos fortes. Morríamos cedo».
CARTA DE FIM DE ANO

Fazemos amanhã
o que podemos fazer hoje
O pecado de Onan
cor de burro quando foge

Quando foge ao que agita


e esgana o que esmeril
Esgarça e esfola o catita
no sarro do barril

Esfola que esfola


pato camurço
Edita o estarola
Não sejas urso

Engole Angola
até ao osso
Mede a bitola
no fundo do poço

Dá-me energia
Deus dos Otários
e a maresia
dos òrinários

Filhos dos filhos


dos filhos da puta
trata dos milhos
e luta
Sr. doutor
eu não estou boa
Este bolor
Que me atordoa!

Esta cidade
Não tem capacho
Ai que saudade
Do Cartaxo!

Aqui metido
Não sei que faça
estou invertido
No meio da praça

Um afrodisíaco
partiu o artelho
e o osso ilíaco
e o aparelho

Pinta que pinta


torna a pintar
faz-lhe uma finta
e uma fístula de ar

os brancos Carrondos
os negros Mesquitas
os verdes redondos
Hititas

E os Pratas da Cunha
vendiam cartões
na ponta da unha
das monstruações

O meu monstruário
vem dos Orientes
em papéis de cenário
bem quentes

Ao fundo da rua
do Corregedor
a fase da lua
fazia horror

O homem é livre
Estamos tramados
le bateau ivre
forrados!

Da janela à rua
ingeriu por engano
uma velha nua
a tocar piano

Nascida para o ano


da libertação
coberta com o pano
da monstruação

com a filha ao lado


no vol que se vaguem
bastante atrasado.
Que o esmaguem!
ALGUNS ANOS DEPOIS
COMEMORANDO A EDIÇÃO PORTUGUESA DE
ALICE NO OUTRO LADO DO ESPELHO,
DE LEWIS CARROL

o âng’lo secção — corruptela de ângulo de saxão


o anglo sèxónico — diz-se do anglo-saxão
o anglôbo — ano inglês do lobo
o ânguelo miguel — miguel ângulo
a tree-anglo-manglo — árvore do tranglo-manglo
a anglucose — família real inglesa
o anglicanismo — diz-se do amor que todos os ingleses têm pela natureza, pelos ângulos e pelos
cães

o ângulo lord, ou anglulordcheap byron — diz-se da vida anglosa de lord byron


SALVADOR DALÍ / VIEIRA DA SILVA

Dalí é o retrato de Lady Mountbatten que ganhou a guerra


e o retrato de Helena Rubinstein a perfumosa que ganhou a guerra
e o retrato de Lénin dividido em 50 pinturas abstractas formando um tigre real
com pela única vez na visão daliniana
bigodes de tigre real isto é de gato ganhador de guerras
é também o retratista monumental de Mae West
e do Farmacêutico de Figueras que Não Anda à Procura de Coisa Nenhuma
decerto porque não ganhou nem perdeu qualquer guerra
De todas estas cores a que eu decididamente não gosto
é a Lady Mountbatten com árvore na cabeça
mais do que qualquer outro este quadro deve ter sido pintado na ânsia de fazer chic e ganhar
muito dinheiro
mas aqui devo dizer não me parece tão mal
como o quadro do corpo de Max Ernst casando com Peggy Guggenheim
para safar os surrealistas exilados na América
mal por mal antes vender pincel e meio do que vender meio corpo
a uma monstra como Peggy cujo livro de memórias é bem aquilo que é: memórias da monstra

A este respeito é bom que também se diga


Dalí é a inocência e a pureza lunares
nunca abandonou Gala
não o fez quando
ela ia para as ruas de Paris com os desenhos debaixo do braço frio
para ver se alguém os queria a dez francos o par
nem o fez depois quando a Port-Lligat
chegou o Renascimento isto é o muito dinheiro
nunca abandonou Gala embora (também suspeito)
nunca tenha estado verdadeiramente com ela

Dalí é a desrazão que dá


pintura em pó
à tosse convulsa do chamado auditório visual moderno
da chamada pintura moderna
e da ensaística moderna dela.
Sobre a já célebre «falta de qualidade pictórica» dos quadros de Dalí
ainda não se falou suficientemente
mas eu não me pronunciarei
pois a não ser na ilusão necessária ao complexo industrial vendedor
ou ao imaginoso exercício de uma oceanografia que ainda hoje dá pelo nome de estética
nunca ninguém soube e ninguém vai saber o que é ou deva ser a pintura
além de imagem feita à mão e a cor em superfícies mais ou menos rugosas

Algo que Dalí não é vou eu dizer agora


não é filho do Deus que está no livro bíblico e
nas leis civis dos católicos ateus
que enxameiam as terras do ocidente como um segundo dilúvio
a este não poderia dizer-se: dá-me o teu filho
sagra-o com a tua espada e sobre a pira ardente
imola-o em Meu Nome
não dava resultado
em primeiro lugar porque não tem
não tem filho
em segundo lugar porque não tem
não tem filho
e em terceiro lugar porque não o dava
e isto eu o digo a sério ao auditório visual moderno
e ao guardanapo do Papa:
lembra-te dos idos de Março!
este é a serpente no teu calcanhar
o Mal — que tu não dispensas — para a efectivação do teu apostolado
lembra-te que em 1954
em plena euforia do ecumenismo
Dalí reescreveu (na intenção de as escrever ao contrário)
As 120 Jornadas de Sodoma do Marquês de Sade.

A paranóia crítica de Dalí é um ar que lhe dá


quando chega ao planeta a paranóia régia de Vieira da Silva
RAÚL PEREZ

A PRINCESA — Deixam-me neste letargo…

O FILÓSOFO — O Arco de Olhos Moles já disparou três vezes.

A PRINCESA — Evaporo-me.

O BOUDOIR AMBULANTE — Logo que saia o Físico levam o saco para baixo.

A PORTA DO TRIUNFO — O saco e a torre e a tesoura do sangue.

A CIDADE DOS DEDOS — Apesar de tudo está-se bem. O quantum de dedos é enorme e aumenta
na proporção do exílio das mãos. Para o ano atingiremos o bilhão, sempre sem perturbarmos o
espaço aéreo envolvido pelos dedos petrificado, espiralado e perdido.

OS NEGÓCIOS DO REINO — O chauffeur do Lagarto Aos Quadrados bateu no Cisterna de Ferro.


Diz que vai morrer.

A CIDADE DOS DEDOS — Preparamos também o dedo gelado. Vamos a ver.

O FILÓSOFO — Estes montes que cercam a cidade que vigia os montes deixarão algum dia de
chupar-me a cabeça?

O FORNO ALQUÍMICO — Não sei. Das mãos que me fizeram à gente em que caí vai um ganir que
excede a ordem do fogo. Esta luz em que ardo é-me exterior, vem dos confins de um universo
frio, e a minha calote, outrora trabalhada para conter a Grande Obra, é quartel-mestre e adega de
ratos, serpes e escaravelhos.

A PAISAGEM COM TRONCO ESCAVADO E PLANETAS PARTIDOS AO MEIO — In vino ratibus.

A TORRE DE MONTAIGNE — Sonho que alguém me sonha, que me deslocam e retiram altura, que
me devolvem aos atributos humanos que eu transformei em lambris de lavabos e em espelhos de
bibliotecas. Mas ainda sou o homem que ilustra viagens fúteis e joga, às tardes, com a própria
sombra.

A PRIMEIRA VISÃO DO CASTELO — Morreu ontem espatarrado por um berlinde o menino


Estêvam*.

A CIDADE DA VULGARIDADE — Muito bonito.

O AUTODIDACTA — Se pusemos os óculos não há novidade, se há novidade nunca fomos nós.

A SEGUNDA VISÃO DO CASTELO (canta) — :

champs et merveilles
démons et marées
au loin l’auteur s’est déjà retiré

(fim do canto). É muito bom ser-se apanhado por uma força que vem igualmente de cima, de
baixo, e dos lados. Fica-se quadro para sempre, nesse lugar.

A RUA COM ROSTO NO HORIZONTE — Se o lugar tem cara não pesa mais por isso. Pesa tanto como
um balão.

O CARRO DOS TIRANOS — Estúpida.

A RUA COM CONFESSIONÁRIO — Se fosse tudo mais depressa, um pouco? Pode ser que ainda haja
primeiro balcão.

FIO DE ESCÓCIA — Telegrama! Mercado Lunar Chimpózés declara guerra a Planeta Vermelho.
Empresas Filipêndulas Oi pulverizam galinhas do campo. Cobalto Titàúcha lançado no jogo do
bilhar. Morrer tudo quem não foge. Obrigada nós.

FORTALEZA COM POLVO A JOGAR AO BILHAR — A mim não me fazem eles isto! Alô alô planeta
partido ao meio preparar cama com buracos. Chega amanhã.

PRINCESA, PORTA DO TRIUNFO, PRIMEIRA VISÃO DO CASTELO — Fujamos!


TODOS — Fujamos!

(Pandemónio geral, seguido de geral acalmia. Com excepção de Filósofo, que foi pôr a
cabeça a prémio e regressou num ápice, ninguém se moveu do seu lugar. Pequeno coral
de ratos, serpes e escaravelhos.)

A PRINCESA — Evaporo-me…

FORTALEZA COM POLVO A JOGAR AO BILHAR — Já estava com saudades da minha casinha.
POEMA PINTURA COLAGEM COLAGEM

a Anne Ethuin
e ao poeta
Stéphane Mallarmé

em homenagem aos operadores de dissuassão


os agiotas tinham decidido modificar o som dos sinos
tarefa vultosa
que requereu não só a revisão de todo o possível
mas ainda o cálculo de todas as bulas papais
procedeu-se também à eliminação em massa dos pequenos álibis
e todas as vias de recurso ao cristal
foram destruídas

agora já só faltam vinte e dois minutos


para reconciliar a armadura e a máscara
lisonjear os instintos perversos
elucidar o mistério
da confusão das paralelas
a floresta escondeu-se atrás do pássaro
o sol pôs um ovo de ouro no horizonte e abre asas de águia sobre o mar

e entre a terra e o céu gira um cometa

é a lua frita como um ovo estrelado

entretanto cruzamos as lanças gato a gato


à deriva
este hábito de dar pérolas a papagaios
à deriva
minúsculas entidades postas de perfil para resistir mais tempo ao vento da eternidade
à deriva
o carteirista operando em prol dos jogos olímpicos
para que as estrelas não ataquem os barcos
à deriva
mandarins com botões de bússola doida
tentam fugir às leis da gravidade
enquanto o mastodonte falando ao colibri acha mui longo o dia
friso de renda ao peito dum jovem senhor

as pedras têm orelhas para comer a hora exacta


e tu tens um amigo no vampiro embora penses o contrário

só porque a borboleta anuncia o bom tempo ao céu das lavandarias


não há que confiar no cavaleiro de palha
as aves verdes tocam atabales
mas a aventura pende como diamante
em colo inimigo
nesse dia os áugures tinham bebido
e ao ritmo do bronze tu cometa raivoso
tu a gravitação dos epigramas TU
le sonneur effleuré par l’oiseau qu’il éclaire
jogas a atirar as cartas pela janela
PETER WEISS

Comecei por estudar o Giotto. Este ia todas as manhãs


postar-se diante da oficina de Cimabue e via trabalhar o mestre
até que este o recebeu como aprendiz. Nas descrições que nos chegaram, Giotto era roliço de
corpo
e a cara tinha uma expressão que Dante, quando se conheceram, achou licenciosa. Giotto
desconfiava de tudo o que não é palpável
ou não se deixa delinear com firmeza. Foi alheio a toda a espécie de ilusão
e introduziu o objectivo na sua arte. O que ele pinta existe em si-mesmo
no espaço limitado da superfície do quadro. Os ícones deixaram de olhar-nos desde a parede
como medusas donas dos olhos do espectador. As suas figuras passaram
a deslocar-se no espaço, deu-lhes vida própria
e mundo próprio, apenas submetido
às leis do quadro. Foram-se as Madonnas
bizantinas, foram-se os pesados
carmelitas e negros de submissão e oração que Cimabue
ainda acatava. As cores tornaram-se luminosas
os rostos e os corpos que pintou deixaram de pertencer
a figuras meditativas: pintou seres vivos, colocados numa atmosfera boa para a respiração, sobre
chão firme, em movimentos que ostentam absoluta realidade.
Inteirei-me do seu trabalho nos andaimes de Assis e de como preparava
o aparelho das suas pinturas. Fazia-o assim:
duas partes de areia e uma de cal, agregando água
obtinha a argamassa que aplicava em capa espessa sobre o muro.
Aplicava depois sobre a capa já seca a rede quadriculada
que serviria de esqueleto ao desenho. A giz vermelho e a carvão
passava-se da quadrícula à parede
e cobria-se parcialmente com um delgado reboco.
Nas manchas ainda húmidas aplicava-se a base
seguindo as linhas que se vislumbravam, modelava-se com
branco e terra verde veroneso e misturava-se à cor
gema de ovo e leite clareado
a que se agregara leite de figo.
O Giotto pintou em Pádua a capela dos Scrovegni e permitiu
que o seu trabalho fosse pago com dinheiro roubado. Giotto, o pintor,
pintou para Enrique Scrovegni o quadro em que este aparece
como um protector das artes. Em honra da Madonna erigiu-se a capela da Praça de Arena, e o
seu fundador
quis aparecer no quadro para desde ali
dominar a cidade. Baptizada em 6 de Março de 1306, a capela
está hoje na populosa cidade de Pádua não muito longe da estação.
As paredes cobertas com os frescos de Giotto podemos lê-las da esquerda para a direita
em quatro filas que vão do pé do muro até céu raso nalguns sítios danificados pela humidade,
aqui e ali gretadas
pela pressão causada pelo explodir das bombas
mas conservando o senhorio pleno das suas cores, o domínio
da nitidez sempre nova que impera em cada traço
em cada linha das figuras representadas. Um dia, com esta pintura
o servo encheu o seu senhor de orgulho e de bravura. Deu-lhe ainda
confiança no poder das suas finanças, tal como a pintura nossa contemporânea
santifica o dinheiro dos seus possuidores
(…)
ASGER JORN

A PINTURA DESVIADA

Dirige-se ao grande público. Lê-se sem esforço.

Coleccionadores, Museus:
Sejam modernos!
Se têm pinturas antigas,
não desesperem.
Conservem essas recordações
mas desviem-nas
para que elas possam corresponder
à vossa época.
Para quê rejeitar o antigo
se podemos modernizá-lo
com algumas pinceladas?
Lancem à actualidade
a nossa velha cultura.
Ponham-se em dia e
ao mesmo tempo
em rara distinção.
A pintura
acabou-se.
Melhor é dar-lhe o golpe de misericórdia.
Desviem.
Viva a pintura.
O NORTE DA EUROPA

O Pai Natal coberto de lantejoulas ia subindo a ladeira com um ar circunstancial. O cumprimento


que me dirigiu, corrigido por um gesto de perfeita cortesia, era tão naturalmente rico de proteínas
que se comia à mão, em fato de baile.
Os dias iam correndo pela mão daquela cujo nome se vai ocultar na Península da Gata, a norte do
Carvoeiro.
«É assim que cumpres?», perguntou Júlia Bahamas. Respondi que não era ainda tempo de colher
maçãs e que também as uvas estavam por amadurecer. E acrescentei, exclamativamente:
«Ó Estações!»
Mas aí já ninguém ouvia ninguém, o círculo apertava-se coberto de espuma.

II

Estava tudo tão tremido ao longo do mar e a gente sentia que o sol nos tocava com força. Levei
nos braços alguma terra verde. Lá havia muito sal. No seio daquela estátua mutilada no ventre
pela cruz vermelha do asco mais inocente.
Teve de vestir a bata branca, mesmo sabendo que o anestésico não chegava para o bolo que te
pediram e que eu comi durante três dias a mergulhar num monte de areia triste, lá onde a vaga
me comia. «Não implores», disse, e curvei a cabeça até lhe beijar os pés que outros haviam já
beijado outrora, à saída dos teatros que dão para a Grande Perspectiva Nevsky. Distribuídos os
gorros aos transeuntes, regressavam a casa, quando não voavam atrás da troika da Condessa
Nemus, num grande ladrar de cães com manguitos atrás das orelhas e muitas bocas abertas a ver.
Mas que grande porra, disse o velho, e ele sabia que era isso assim tal e qual e que não havia
mais nada para dizer nunca mais. E porque tudo me era indiferente desatei os sapatos e corri de
pés nus pela areia dentro a bater palmas e a uivar como um lobo.

III
Era principalmente música o que nos chamava pois ninguém tinha posto de radiofonia naquela
zona que era a mesma mas repetida de tal forma que a noite nos surpreendeu com uma cor
ligeiramente azulada nos tornozelos. Chamado o médico e retiradas as grades começámos a
subir. A primeira nuvem, ligeiramente descaída na ponta, não nos deu o necessário informe, mas
já a segunda, muito bem pintada, indicava o norte, o sul, o número do telefone, a certidão de
idade e o Grande Beijo, praticado de pernas para o ar e em estado de nobreza absoluta.
Um círculo vicioso. Estavam lá as cores todas. E gritámos. E ainda corria alguém — vago — à
frente dos nossos gritos-gemidos. Rosa — eu sei que havia uma cor-de-rosa. Como no tecto da
casa passavam aves e arneses, no fim do verão, quando as chuvas começam. O mesmo
fenómeno, afinal.
CARTA DA GUERRA DE ÁFRICA

Quando apareceu a vara de metal de Óbidos ficámos mais animados. A quantidade de archo que
ela traz é tanta que quase não podíamos carregá-la, não se avançando do sopé para a base dez
metros por talude.

À chegada, foi preciso tirar o alfinete, que rolou pela encosta com um ruído medonho.
Estávamos exaustos, sem papilas, e à contagem faltaram três: o Mudo, o Quasetudo e o Avilez.
Escrevemos às famílias, a comunicar.

Há um esquilo por dia e uma árvore frenética, excessivamente inclinada nas pontas. Mandei o
Otílio guardar.

O que casou em Anha e veio logo para baixo, sem sequer se despedir dos cães, está a ficar anarca
da cabeça. Já depois do pedido de dois dias para ir a Norfolk, disse ao Tudo, ao Quasemudo e ao
Chimpòzé que é um arrablo e ninguém lhe faz o ninho. Os outros bem.

A passagem de um piano Rusch-Tlinc-Masch deixou-nos bastante admirados. Tinham-nos dito


que só lá para Dezembro.

Veio aí um da Pide. Foi-se embora.

Grito, precisa-se, depois de limpo.


BREYTEN BREYTENBACH

Quinhentos anos de opressão tirânica


quinhentos anos de imbecilidade despótica
findam hoje para ti povo de Angola finalmente liberto
quinhentos anos de carnificina
de estupidez
de desprezo
de armaduras de ferro de grades de ferro de olhos e bocas de ferro prò «pensamento cristão»
da gatunagem da Europa reis presidentes duques generais
tudo rãs deste charco que ainda hoje vibra na proliferação do inútil
do insultante
do pobre

Não falo do povo vítima


do povo de forçados que morreu aos milhares nas idas e tornas de África
enquanto não houve escravos para os substituir no trabalho
falo desses demónios que em nome de um deus que não eram perpetraram essa coisa vil e
violenta que foi a «civilização» dos gentios
que andavam nus coitados
e não repletos de pulgas baratas e percevejos nos interstícios dos gibões dourados e amarelos de
sarna e podres do «mal de França» nos intervalos das calças de veludo mosqueado
para não falar nas cabeleiras postiças
mais concorridas de piolhos a escorrer para os olhos
que de areias tem o fundo do mar
falo dos de chicote e de tortura
dos toma lá dois pregos e uma pinha no prato
em troca do teu peso em sangue e pedraria
dos toma lá a morte de cabeça para baixo se não andas lesto
pois já tivemos um santo que também morreu assim
e pensando melhor dá cá o prato e os meus pregos católicos
e vai-te nu para o mato que muita sorte tens tu
Hoje aqui tantos séculos volvidos em tragédia nossa
neste 11 de Novembro do século XX
(do calendário cristão que felizmente há outros
como o árabe, que vai no seu século XIV
com recusa formal de entrar na dança do doido
que é o que a Europa dança desde a investigação das pátrias)
hoje aqui nesta noite de angustiosa alegria
em que a rádio de Angola transmite para todo o mundo os cantos as palavras os gritos de
regozijo de um imenso povo enfim liberto da coleira e do cárcere
o meu pensamento, Breytenbach, vai para ti
para ti que há dois meses e pico caíste na armadilha de deixar o exílio
e os amigos de Paris e de Amsterdam e Londres
para regressares à África do Sul
e logo foste preso como terrorista
à ordem do falso governo de Pretória

Breyten Breytenbach
meu doce e generoso poeta posto a ferros
neste momento em que por toda Angola apeiam das suas bases de obscurantismo e de
intolerância pretensiosa
estátuas talhadas como a mais espúria «arte artística»
a começar pela estátua do Cão
«que foi o primeiro a chegar ao rio Zaire»
como se o rio Zaire não estivesse ali há montes de anos para o ver chegar a ele
e à sua estatura de português funesto
(audaz — pois com certeza!
valoroso — oh quanto!)
com nas pernas de herói navegador a tenaz indecente que havia de apertar todo o povo negro

Breyten Breytenbach
não sei se na enxovia podes falar com alguém
se no teu cárcere há uma janela
de onde ao menos se veja o azul do céu ou um ramo de árvore alta
as notícias que temos contradizem tal hipótese
deves ter sido lançado no escuro irrespirável que é o que mais vai às cabeças dos teus juízes
mas pela fresta donde sopra o vento
nos olhos do insecto vindo da imensidão livre até às mãos do recluso
tenho um recado para ti
uma história para rires e depois cuspires de nojo
no primeiro que te aparecer a falar de justiça

Há aqui em Lisboa era de esperar


uma embaixada da África do Sul
e um serviço da África do Sul
montado como é óbvio durante os bons velhos tempos de Salazar
eles fazem e imprimem uma revista
que mandam às pessoas pelo correio
para a propaganda branca
da merda electrificada branca do governo da África do Sul

Escuta o que eles dizem:


número nove do oito 75 página 3: «DIA DA MARINHA»
«O número mais extraordinário que estes cães são capazes de executar é denominado “A
Oração dos Cães”; enquanto a Oração é dada ao som do hino Amazing Grace estes cães
erguem-se sobre as patas traseiras e tapam os olhos com as patas da frente.»

pág. 44: «MAGIA MODERNA»

«… nem todos podem dar-se ao luxo de ter piscinas de mosaico com torneiras de ouro.
Mas todos podem absorver ideias…»

Quanto a «ARTE E ARTISTAS NA ÁFRICA DO SUL», o esplendor da autêntica arte


banto é dizimado em esculturas cretinas de talha inválida enquanto o pobre mate do autor
mate conversa animadamente com o Ministro-Adjunto para a Administração e
Desenvolvimento Bantos. A cara do Adjunto grav. pág. 19 é de fazer estremecer de terror
qualquer detido de delito comum.

É isto o que eles escrevem Breytenbach


com isto nos assaltam a casa
fazendo-me o intolerável insulto de continuar a enviar-me estas palavras e imagens
quando por mais de uma vez devolvi ao remetente — e o mesmo fizeram amigos meus —
esta última mostra de bestialidade nazi mascarada de lindo jardim relvado

A esses que querem julgar-te porque és um poeta


um ser que engendra a vida e não a disparidade infecciosa
um sol que se desloca à velocidade do sangue
e não um cão que ergue as patas para a hóstia

da exploração do homem pelo homem


diz-lhes, Breytenbach
que em breve serão milhares e milhares de milhares
a expulsar para sempre dos seus espaldares de juízes
os dedos blenorrágicos dos teus detractores
GÓNGORA POR KABALA FONÉTICA

De la brevedad engañosa de la vida

Menos solicitó veloz saeta


destinada señal, que mordió aguda;
agonal carro por la arena muda
no coronó con más silencio meta

que presurosa corre, que secreta


a su fin nuestra idad. A quien lo duda,
fiera que sea de razón desnuda,
cada sol repetido es un cometa.

¿Confiésalo Cartago, y tú lo ignoras?


Peligro corres, Licio, si porfias
en seguir sombras y abrazar engaños.

Mal te perdonarán a ti las horas;


las horas que limando están los dias,
los dias que royendo están los años.

LUIS DE GÓNGORA
The breathing geese of the eyes

The velocity of sparrows


means premature aging for the horizon,
ah, shortening times;
diagonal carrots in the muddy arena
cannot prevent the silence of massive heart attacks.

With correct pressure, secretions


can issue from curtains. A mild meal,
of dancing cheques in precious water,
more cool petitions from the sunniest comet.

The horse is chanting beneficent chants,


his lemons stand yellowing on a pedestal,
the royal days are blowing through is holes.

PETER FOSTER MARR


Brasa de giz

Ó cidade veloz da inseparação,


mim prematuro, adágio fora da hora que soa,
dá-me um dia no carro das Eríneas
como canoa privada — a que sai lenta do óvulo —
assim quero esse dia essa missiva esse táxi

E ide correndo depressa, se se queixam


o cão irado, a carpa, o humilde míldeo.
Dar-te-ão o chequezinho precioso na Ota.
Morre de cu pequeno, que o gusano come-te!

Orço a barca do canto, e este chão


logo me pede leme, estai, esqua-
lo que é boi de diarreia entre os «olés!»

Conferes, móbil caro e burel estúpido.


E se é pró (por ali) incesto, diz:
À minha fé se li o que hei na brasa de giz!

MÁRIO CESARINY
Cise z blednouciho ráje

City jsou nerozlucné jako nakdy lidé


Jsou i predcasné… at jde o jakyvol iv cas
A jejich dny — tak drahé pro Erinia —
Jsou jako lodka jez zvolna pluje vsude tam
Kam ji kdo zavolá

Pohlcují depresi a vyprhal ost v ústech


V jejich vláze se zivot probouzi
A drahocennosti tohoto daru
Slévají more na místa drah komet

Jejich bárku poznamenal chaos


A tím se také mozna stalo
Ze pohasly zlatem ve svém nachu

Jen city privádi ke stupním


A pak s hlavou sklonenou a nekdy na kolenou
Se norí do cise z blednoucího ráje

ARNOŠT BUDIK
The whore of gizeh

City, inseparable from speed,


Mime a premature adagio for the fertile whore,
Waste not a day nor a care desiring ears.
He comes in his own canoe — he to whom the sings so la ti do —
Ask him where is the day gone, where the letter, where the taxi.

He hides heartrending grief, and quaking


before the furious cow, complains of humiliating mildew.
Dare you take a precious cheque without thanks?
Greed such as yours brings death at the hand of the pay-clerk.

Gasp and bark your song. O Easter fare;


dragging my lame lame foot I wait, I weep
while the boy with a diary buries old bones.

Quick car and stupid mule, confer:


Is she a lying whore from seven to ten?
In my eyes, no harlot mocks the hay she lies on.

JOHN LYLE
Scherpe verblindende stralen

De stad der nieuwlichters valt zonder licht


Over het weideland… En iedereen, of niemand, is er thuis
Op ieder uur — men spint de draad voor de Erynieen;
Je valt er met loden voeten op de operatietafel neer.

Terneergeslagen als een poolhond vlucht je weg


Van oost naar west, en elke stap geeft je bewijzen
Via draadloze gedichten dat de toekomst
Door een zijden draad verbonden is met een komeet.

Op ieder schip vind je de chaos terug,


Bijtijds laat je je verleiden door een zeemeerwin
Want anders had je nachten moeten zwemmen.

In deze stad word je voor domheid niet gespaard:


Kleding is er van glas eu licht en zwarte kool gemaakt,
En scherpe verblindende stralen brengen de dood.

LAURENS VANCREVEL
Góngora re-traducido 6 veces

Do está el bulto que enciende luces nuevas


Sobre la veleidad de cada nadie
El tris da cada hora — espina huera —
Ya vale el lodo fuerte de la calle

Temer que halago, emporio de veredas


A oeste ni este en el entronque varie
Vía versos de pluma, el totem ceda
Dude al céfiro, llama fértil halle

O cada nave del caos telúrico


Vigía lata, dolor de trampolín
Vagando en la noche, el mosto púdico

Impregne, esplendor dormido, no músico


Clave, cristal de luz, suave e frio fín
A pulcros resplandores, muerto único

JOSÉ-FRANCISCO ARANDA
Dos à l’est, la boule…

Dos à l’Est, la boule, toque ancienne, loue ces nues


Sur la vieille vallé du Canada nié,
Electrise chaque heure, épie les Erynnies,
Avale son lot d’eau avec du lait caillé.

Tes méres qu’allegro empoignent les vers d’as


Avouent et testent l’aile des éons variés.
Vie à l’envers, les plumes tôt aiment et cèdent
Douces dès le zéphyr que l’âme fertile hâle.

O Canada d’aile, chaos, loups tels, lyriques,


Vire et rie l’athanor trempé, trempé au lin
Vagant sans anicroche, en riposte pudique.

Un peigne, ex-splendeur d’or, nie l’eau de la musique,


Enclave, cristal de luxe, sueur d’abbé, effraie
Le sépulcre resté à l’heure, tohu mou, bohu tique.

JEAN-CLARENCE LAMBERT
Braises de Jésus
(traduction tout à fait paranoiaque et vaguement rousselienne
du sonnet de góngora, via cesariny
de vasconcelos, dans le style ancien)

Donne-moi, de robe en rire, avec la soie lente


A se trousser, trop lente, ô cité de plis lourds
Au milieu de ses lacs, de ses nids, de ses tours,
Rouge, ô voulve, une sève à jamais violente.

Presse-moi donc le sexe humide, que j’évente


ces innombrables caps, ces bras, plut haut toujours,
Plus vite, arrache-toi, barque irritée, accours,
Que je morde le cul, lève-toi, que je plante.

Un cantique, un plu d’or goutte à goutte, une larme.


La langue darde aussi: je broirai dans leurs eaux
le con mobile au goût de hure et puis les os,

Squale et chatte à la fois, je boirai jusqu’à l’âme.


Et toi, proue désormais, la pute ou la fée, plus
Aimante hors du lit des braises de Jésus

PIERRE DHAINAUT
Saddling the dragon

Should the lightning-rod fail, try another.


Things overheat. All this maidenhair,
all this fuzz — knitting by the guillotines.
Many go up, but few by the elevator.

And if the tail wags the dog, it’s the same thing.
Hardluck Street is no place to come to —
the door’s open, you go in, you’re expected.

A gob of cheese is the duck’s trade wind,


a milk splat’s the rat’s summer morning,
this gander swims in his own sauce.

Better a bald head than a ringing spittoon;


waving the unlit lamp’s a cold fart’s work;
you saddle your dragon, I mine.

KEN SMITH
A IRMÃZINHA DO PAPA

as borbulhas na testa azul da irmãzinha do Papa — que era o Chefe da Polícia para a árvore do
rato cego — expeliram subitamente guarda-chuvas muito semelhantes na aparência à Reforma
Protestante, exceptuando o perfil que, carregado de pregos e com a voz de Niccolò Machiavelli,
se assemelhava mais no conteúdo e na forma aos calendários impressos com o sangue dos
mártires cristãos da Nova Zelândia, do Norte.
Desejo de olhos de lince, êxtase da querena, não comeces a morrer, é tarde, olé, olé, olé, olé!
As estrelas entregam as mãos à rega do pomar do casamento do piano sintético. Visto que o leito
da revelação se transformou em cama de deboche e finalmente em ocasião onírica, quantas
risadas de cidra pesada e quantos capacetes macios serão necessários à tua defesa aqui?
Tremores de terra, natas para o pequeno-almoço, e eis-nos a caminho: trata-se do regresso do
caracol, e os corvos estão seguros de ganhar, se a lua resiste à tentação de ser torcida durante a
batalha. Através dos olhos da mesa onde deitas o teu coração, a asa da lua leva-te ao cantar do
galo para o tempo sem fim dos teus sentidos, para o pirata que abre com chave gigante, presa ao
cinto, os portais escondidos do negro cativeiro. Entramos pelo bico do pássaro mas dificilmente
se atinge a sala principal. Já pouca luz se vê na cabeça do monstro, já não é a hora de receber, o
palácio desaparece, lentamente, por absorção centrípeta. O bolo de queijo continua à espera.
Do armário oxigenado sai o prazer que penetra o hermetismo da remissão culinária do cadáver-
esquisito. Que está realmente esquisito e essa a razão porque Santa Teresa costumava dizer que
gostava de camionetes e não de elefantes, pois tão imensamente educada que era não queria ir
sozinha ao cinema, sem levar as tias e tios e os pais e o bispo e os outros, tão educada que era e
sem saber música, e só um pouco mais tarde tomou a decisão de ir correr mundo e todos os
continentes — os continentes do mundo — e todos os parentes — os parentes dela — e eis
porque em 15 de Junho de 1966 Santa Teresa em pessoa continuava a sonhar um sonho singular
em que catadupas de moscas desabavam sobre os Filósofos Alemães com cornetas de música nas
mãos a cantar azul bordado no lado de dentro das camisas podres.
SÁBADO MEIA-LUA

O vento varre o tédio através das árvores do ódio, deixa para trás todos os pássaros. O hálito
morno dos lobos lambe a entrada do barco do sol e além disso que posso transportar na serrilha
dourada duma esponja, buraco espremido de crostas de luz roubada a espelhos possessos de luz
ardente? O rumor da lua, ouvem-no os cavalos-marinhos que serão lançados em tendas polares à
luz de rubis de ovas de peixe fundidas uma a uma enquanto o turbilhão da mala-posta passa
como fósforo aceso ante os olhos de um cego, como onda que se abre para libertar a libélula
tirânica crepitante no vácuo causado pela rapidez de uma seta lançada através de uma selva de
ideias eventualmente surpreendendo o olhar da justiça.
ANTÓNIO AREAL

como alquimista trabalhaste o informe


«para que todas as coisas diferentemente
produzissem inumeráveis frutos
que em nenhum tempo podem perecer
nem morte alguma consegue matar»

o contacto contigo era o difícil


contacto da agulha com a lã
ouvir-te era quase insuportável

a ti mesmo mordias sanguinário


em ti as duas aves a vermelha e a branca
devorando-se uma à outra por inteiro

formas no espaço a Oitava Figura


disseste-me uma vez:
«não nos é dada a síntese
não
nos é dada
a síntese»

e outra vez ainda/voz gelada


«nunca escreveste nada/sobre mim»

da inteira rotação
tal sei o que não tive
sei o que te faltou
quando o pólo mudou
agulha e turbilhão
ascensão e declive
e tu vara da mão
da manhã que colhemos!

sobre a aiola tri-reme


vai encontrar-te-ão
e encontrar-te-emos.
SEGISMUNDO

O esperma é o substanto primordial. Fusos de esperma, litros de substanto. Sobre eles


trabalharemos. Dos seus fios inócuos, in-significantes, tiraremos os semas, os sinais-intervalos,
as retenções qualitativas texturais. Quando não houver mais nada para tirar ainda os sentaremos
na cadeira eléctrica, finalmente ligados ao colimador.
Este o final da aula de Segismundo. Todos os estudantes dispersaram, em direcção à encosta das
flores. À noite, o esperma levantou-se e bateu-lhe. Estava verdadeiramente irado. Encostas-te
demais!, gritava. A cara de Segismundo começou a ficar cheia de esperma. E a sua cabeça, pelo
túnel da nuca, tomava o comboio para a viagem do sim, do não e do nunca.

A morte é o começo. Somos perante ela como a porta fechada do palácio aberto do rei.
Estas sábias palavras de Segismundo fecharam o seminário. Os estudantes andaram em direcção
ao mar onde um grupo, numeroso, foi visto desaparecer. À noite a morte entrou no quarto de
Segismundo e bateu-lhe. Não morreste bastante, nem bastante bem!, gritava.
Dos olhos de Segismundo incrivelmente abertos saíam dois redondos inomináveis com ventres
aspiósperos que ora se repeliam ora se entrelaçavam. Quando o monte de ventres atingiu o tecto,
Segismundo, de olhos esburacados, abriu a porta do palácio fechado do rei.

Ai que prazer! gritava Segismundo correndo na praia depois da exposição de pintura. Que prazer
ter um livro para ler!…
… E não o fazer!, atalhou Cobalto II, cortando ali mesmo a carótida ao velho.
Nesse dia, a andorinha azul do palácio do rei não escreveu no céu a sombra de Segismundo. E
abriu-se um livro, como um alcarnoz, no horizonte cerrado.
XÁCARA DAS 10 MENINAS

Era hua vez dez meninas


de hua aldeya muito probe.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão nove.
Era hua vez nove meninas
que só comeam biscoito.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão oito.
Era hua vez oito meninas
em terras de dom Espàguete.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão sete.
Era hua vez sete meninas
lindas como outras não veis.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão seis.
Era hua vez seis meninas
em landas de Charles Quinto.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão cinco.
Era hua vez cinco meninas
em um trianglo equilatro.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão quatro.
Era hua vez quatro meninas
qu’avondavam só ao mês.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão três.
Era hua vez três meninas
em o paço de dom Fuas.
Deu o tranglomanglo nelas
não ficaram senão duas.
Era hua vez duas meninas
ante hu home todo espuma.
Deu o tranglomanglo nelas
transformaram-se em só hua.
Era hua vez hua menina
terrada em coval muy fundo.
Deu o tranglomanglo nela
voltaram as dez ao mundo.
ANTERO

se conseguires meter 3 balas na cabeça


encontrarás a síntese que procuras
«O Amigo de Antero» (inédito)

a primeira bala na cabeça: a Tese


a segunda na garganta: a Antítese
a terrível determinação de extermínio
não conseguiu inteira a cessação imediata da vida

fero só contra a Ideia, e Voz que a moldava


agonizou realmente como um Santo
(ganhando o que era, aos poucos)
enquanto a Caixa de Pensar saía

de mistura com a Lógica e um pêlo de poeta


que caiu no parterre e encaracolou
liberto de Proudhon Hegel e Kant

«Deixá-la VIR, a Vida…»


NATÁLIA CORREIA

navio guerra pero vaz faria


corpo da terra da melancolia
dezembris 24 A natal ia
sobre o beque de mar
da poesia

ia e voltou
à boca do ar
com a boca a brilhar
de alegria

plo quarto de madorna


e à hora de prima
assina
o mar e o cesariny
ou o cesariny mário
da correia onde fico
o lais e o bico
(e o múrmuro mármáreo!)
do altaçor que aluna
na coluna
do Pico
DÁDIVAS PARA…

CHARLIE CHAPLIN — A janela do Convento de Tomar com a colagem que lhe fez António
Dacosta em 1942. Sob a janela, uma cama em osso de cavalo provida de telescópio e copo de
sangue.

MARILYN MONROE — Um navio de guerra adaptado a ferro de engomar.

FRED ASTAIRE — Uma dúzia de lagartos muito frescos.

BUGS BUNNY — Uma prova de corta-mato no primeiro andar do Art Institute of Chicago.

BESSIE SMITH — O quadro Mona Lisa de Leonardo da Vinci com sistema eléctrico dois-pés-
duas-pernas que o façam andar por toda a casa e mesmo subir escadas.

HARPO MARX — O papel de Iago na ópera Otelo de Verdi.

JACK LONDON — Um pequeno cemitério de aldeia.

KRAZY KAT — Uma árvore japonesa que, dando-se-lhe um charuto, apresenta um telefone
anos 30. Na linha, um padre jugoslavo informa continuamente sobre as experiências do
Frankenstein de Utrecht.

MAE WEST — Uma almofada com a forma da cara da senhora Golda Meir.

T-BONE SLIM — Um esquilo marca «Lincoln».

JERRY LEWIS — A Torre da Água, de Chicago, mas um pouco mais alta e cortada em fatias
longitudinais de onze centímetros cada.

BUSTER KEATON — Um avião pilotado por uma girafa. Fins de semana: só a girafa.
O VIRGEM NEGRA

Fernando Pessoa explicado


às criancinhas naturais
e estrangeiras
por
M.C.V.
O homem está doente de amor.
Sublinhado de Pessoa
num livro de William Blake.

Brilho ante todos como um sol, eu que sou


púrpura como o poente.
Christina Georgina Rossetti.
I
PRÓTESE

Co’a breca da antinomia


Em desuso há seis mil anos
Fabriquei a cartesia
Dos heterónimos manos.

Desvestidos de seus nus,


De pernas muito afastadas,
Duas medidas de mus
(Duas formas co-irmãs)
Masturbam homens de as-
Pecto decente nos
Vãos de escadas.

Antinomia é que é fon,


A é A nunca tem B,
Branco não pode ser preto,
Fica escuro, não se vê
O cavaleiro secreto.

Bom.
O que eu queria era ser um benito
Desses entregues ao fogo
Atados até à nuca
Para nas chamas torrado
Gozar como uma maluca.

Depois de bem antinómico


Fui ao Platão dos Diálogos
E apanhei-lhe os análogos
Diálogos anatómicos.
Platão, Platão é que é bom
Pegado a Descartes frito
Cerca à cabine do som
Em praia de muito apito.

— Y quien más más que Platon


En portuguez o español?
Pués el beleño Aristol-
Teles: On ai me on.

En Sartre, version francesa


De Heidegger, el buen nazi
Tambien verás la belleza
Que vino de Grécia aqui.

On ai me on por delante
On ai me on por detrás.
La noche se puzo fria
On ai me on. Que será?

Ni tu ni yo. Solo aquel


De la Bestia Ladradora
Tirado como hidromiel
En la Tumba de Eleonora

Inflado con un adobo*


Que no se puede tragar
A menos que venga el lobo
Del desierto americano
Con su bolsita de mano
Y su botelha de mar.

— «Vicente! Vicente!»
É o mais que diz o corvo lusitano
Quando o provoca gente que passa,
Passa, não maça
Nem pretende ir morrer a Baltimore
Cum «um grave e nobre corvo dos bons tempos ancestrais»
(Dos bons tempos ancestrais!)
«Num alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais»
E a borracha do álcool e dos sais
«No veludo onde a luz tem vagas sombras desiguais»
Já sem pinga de soro para o jorro sonoro
Do «amanhã também te vais»,
Quando verdade é que em esse bar sujo daquele bairro sabujo mais próprio de marujo que de
escritor
— Salvo o patrão que mancava e ao balcão se agarrava, dali lançando, sempre manquejando, o
apelo famoso, de macho defeituoso
Que urdia pastoso quando o relógio adrede, um pêndulo de parede que mais parecia ferro de
mafamede,
Batia com afoite as 11 da noite:
«On time! That’s enough my lords, score no more! I’m
Accursed enough and from afar with such a crew into my only mine Eleonora’s Bar em
Baltimore!
E vou lançar o cão sem o açaime
If you don’t take your mate and go ashore
And ashes and coffins no more!» —
Difícil era ver qual o mais bêbedo
E com mais medo de cair ao chão
Ainda que natural que fosse o, de falsete, corvo, velho grumete,
Dada a posição que ocupava
E não ser a primeira vez que rasgava
O «ar denso como cheio de incenso» até ao tapete
Sem que ninguém ajudasse, sequer por topete,
Ao repor na cantilena
Do peta do ave preta sobre a cabeça da Atena
Também ela mais bêbeda, muito mais, do que já estava
Antes de ir para os Estados Unidos,
Nação cuja fundação ergue a Memória
Da maior bebedeira da História. —

Homero, não, nunca quis,


Leva tudo a braço forte
Y a mi no me quiere la muerte
Pois também nunca lhe quis.

Eurípedes, Sófocles, Esquilo


Tampouco me fazem uso
Todo o trágico recuso
Davam-me cabo do grilo
Que me aperta o parafuso.

Nem do fantomas bretão


A isabelina peça
Co’aquele «Ser ou não ser…»
(O morrer ou não morrer!)
Creio que seja dever
Nem vejo que seja questão.
Nem cristão.

Aos diálogos do grego


Dei forma individual
Sem nunca perder o rego
Da cartesia geral.

Este todo o meu enlevo


E todo o meu enxoval
Ir logo de manhã cedo
Para o heterónimal.

De Lógicos e Sofistas
Fiquei todo a abanar
As vezes falta-me o ar.
E sinto coisas sinistras.

Bocas roxas de vinho


Mãos penetrando cousas
Brancas como arminho
Sujas como lousas.

E como Platão expulsou


Os poetas da cidade
Mandando que nela só
Falasse a vulgaridade

Eu anónimo e avulso
Aldeão do mundo a haver
Eu o mim de mim expulso
O mim que se vá lamber.

Ninguém na vasta selva


Do mundo inumerável
O veja ou reconheça,
Nem ao nível da relva

O basto chão arável,


Nem o céu imutável,
Tenham sua cabeça.

E do anel cabalista
E outras dobras de medo
Que a marujada ensaísta
Me anda a tirar do dedo,

Aqui os digo e confesso,


Aqui os confesso e nego:
Dei muita leitura à vista
E muitas voltas à pista
Mas para bom alquimista
Nunca passei do nigredo.

Ísis… Osíris… Que lado


Do céu para me fartar?
A quem nasceu desastrado
Que podem os astros dar?

Desvestidos de seus nus,


De pernas muito afastadas,
Duas medidas de mus
(Duas formas co-irmãs)
Masturbam homens de as-
Pecto decente nos
Vãos de escadas.
EU, SEMPRE…

Eu sempre a Platão assisto.


Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.
ALHEIO…

Alheio ao céu e à luz


De Seth e de Rimbaud
No Antinoo depus
O homem que sou

E no Epithalamium fiz
Que pudessem saber
Que feliz ou infeliz
O sou como mulher

As costas do meu ser


Deixei em inglês
Porque isso em português
Não o podia escrever

Não tendo Shakespeares


Nem Marlowes no coro
É tudo um ir e vir
Ali que não me demoro

O luso aqui sistema


Desde o primeiro cacho
É rebentar a fêmea
Co’ ímpeto do macho.

Na literatura, ou isso,
Que tudo o mais é conforme
O lado para que dorme
O rapaz de serviço.
E para homossexual
Não sou o António Botto
Nem o Raul Leal.
O Botto para mim é pouco
E o Raul é de mais.

Talvez um pouco assim


À Mário de Sá-Carneiro
Carregasse eu em mim
Cavalo e cavaleiro?

Coisa que poucos divos


Intentam penetrar:
O Antinoo o Epithalamium os Sonetos Ingleses e a Mensagem
Foram os únicos livros
Que me interessou publicar.

Além de obras de aspecto


Do Ave Bem Educada e do Paracleto.

Por isso que, eu já um tanto grogue


De Shakespeare e de Marlowe
Mas também (ainda não disse) de Donne
De Milton, de Mcpherson, de Coleridge,
De Chatterton, de Carlyle, de Wordsworth, de Browning,
De Byron, de Shelley, de Yeats, de Keats, de Tennyson, de Poe,
Dos três Rossettis e de Swedenborg,
Fui metido vestido de fato comprido no navio «Herzog»
Rumo a Lisboa, de meias pretas, para a Faculdade de Letras
Onde o letargo era tal que nem sinetas
Nem ponteiro acordavam aqueles professores do ódio mortal
Quase sexual, de tão grosseiro,
A Portugal, em que esta universidade se viu
Desde que sobre ela caiu D. João III
E, aos bocados,
As armas e os varões assinalados.
De João o III não digo mais, vão-se brunir,
Mas aos planta genetas locais não é de mais repetir:
Camões é italiano
Põe no andar português o corpo romano.
Aliás desde o XVI que isso aqui acontece
A quem o bicho de escrever aparece,
Excepto ao Pascoaes, parece,
Por isso — ledice! — o Esfinge Gorda disse
Que ele sofria de pouca arte
Toscana, Juliana e António Duarte
Além de pouca poça cartesiana
Que é onde agora almoça a fossa romana.

Verdade que me enganei rudemente quando


No Ultimatum que fiz o Outro assinar não fosse meu o engano
Dei ordem de expulsão à revelia
Ao pobre Bourget que hoje ninguém lê
E que se ouvisse também já ninguém nessa altura lia,
E ao igualmente inexistente Barrès
Esse sim sim talvez noventa por cento francês (da Camarga),
Boi de capa e de faca de alguidar
De quem também mais ninguém ouviu falar.
E enfim para o Anatole que basta ouvir-lhe o nome para se saber o que é.
A francesia de maior cariz
Não a pronunciei. Não conhecia. Ou não quis.
Talvez a não houvesse na biblioteca de Durban
Onde em pequeno ia fazer-me gran
De de mais para os outros e para mim,
Pois Bourget, Barrès, Anatole não está-se mesmo a ver
Onde se apanha disto para comer?
Também expedi o Loti o Renan o Rostand
O Bergson o Rodin e o Flaubert
Mas assim mais de lado, co’a colher.
Vá que o Charles Maurras não esqueci
Tão ele andava pelos écrans a comunicar
A Pucelle d’Orleans e do Salazar.

E porque raio me fizeste Campos andar a assear os salões da Europa?


Para termos todos de ir outra vez para a tropa?
Não é O Salão que está podre. É o chão
De Leste a Oeste, do Sul ao Setentrião.
O Palácio, não existe. Nunca passou de cacos
De projectos de príncipes macacos
De si-mesmos e de quantos saimões de religiões de nações
Andaram a esparvoar
Os cem anos que a «Europa moderna» levou a formar
(Do XVI ao XVII — e ao XVIII se não é muito contar —)
Essa perna moderna de corpo abtorto que aliás os portugueses, graças mil vezes, não quiseram
usar
—Digo: não quiseram e não: não souberam, estás a perfilar?
Tão má morte e mau porte dava ao andar.
E o Campos a falar de cirurgiar
Quando o que era preciso era atirar com a Europa toda ao mar
Para que afundasse de vez deixasse de chatear
A América a Ásia a África a Oceania
Que eram gente de bem antes de levarem com a Tia
Da Europa a os obrigar a vestir a calçar a despir a tapar a heterossexoar e a urinar
Escondido porque podem olhar.

Não escreveste melhor, em melhor hora:


«Não é o capitalismo nem a burguesia nem nenhuma dessas fórmulas vazias que está morrendo;
é a civilização actual — a civilização greco-romana e cristã»?
Pois escreve-o agora.

— A-ã-ã-ã…
— O vento, lá fora…

E não queriam vocês


Que eu escrevesse em inglês,
Me desse à Inglaterra
Que nunca foi Europa, que é uma terra
Entre o direito e o torta
Para antes da Europa e para depois da Europa!
Não queriam, não quiseram, e puderam!
Os anos que levei a os escrever, re-escrever, editar, re-editar,
Os meus versos ingleses!… Lá se foderam
(1904-1921) dezassete anos,
Quantos já tinha de floresta de enganos
Quando meteram no um só cano «Herzog»
The litle thing that I was
O pequeno lord que eu era (e continuei a ser)
Até mais não poder (até morrer).

E estes ora teatros e toda a gente ausente ainda atrás dos trapos de Gil Vicente,
O dos sainetes e pivetes de urso!!
Nosso Pai Rosenkrütz conhece e cala. Ou consente.
Mas não tira os sapatos
De um mais nobre discurso mais para fora
Do um mais um mais um igual a um
Que de olho esmo averso ao precipício
Repete o mesmo verso do do início:

Um pouco mais de sol — eu era brasa


(Ainda asa que tem pouco sol em casa)
Um pouco mais de azul — eu era além
(Com o azul japonês que o Sky português tem)
Para atingir, faltou-me um golpe de asa.
Se ao menos eu permanecesse aquém… (mais perto de casa).

Ou então:
Sedia-m’eu n’Ermida de S. Semeão,
Veio o velido ao meu balcão.
Veio, velido, ao meu sentido.
Mãe! Dou-lho ou não?

Ah, e aquele: «A ti, ai, a ti só os meus sentidos


Todos num confundidos!…»
Que vergonha, E que aperto!
Então era para isso o romantismo português?

Bem sei que há o Antero de Quental


Que, à séria, matou-se
(O Mário não se matou, evaporou-se
Ou estilhaçou, tipo vitral).
O Antero seria especial
Não fora o
Entre filosofal e sensorial (oriental ocidental)
Que ele não resolveu
Porque o resolvi eu.

E maior do que todos, a rodos, de todos os modos,


O Bernardim! Eh, Bernardim
Que não vieste contra mim!
Que quando a ti vim, Bernardim,
Já só pude o Livro do Desassossego
E de Bernardim fiz Bernardo
Que é outra cara de parvo.

Menina e moça me levaram de casa de meus pais para longes terras… Que causa fosse então
daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.

Foi quando veio à terra portuguesa


A ítala medida pituitária
O dolce stil nuovo
Com as fogueiras acesas
Para quem saísse da área.

Oh, e a história eufória do Francisco d’Ollanda


Que era, e é, um pintor primitivo,
Mandado ir aprender o Renascimento
Com o Micäel o Rafael e a Colona maluca
Sob pena de ser esfolado vivo
Ou de lhe irem à cuca?

Assim mereceu duas mortes:


Nem primitivo nem nada.
Esqueceu a fazer fortes
E obras de fachada.

Mas eis que sobre o muro


Das falsas potestades
Atravessa o futuro
O Livro das Idades…

E isso por estar em Espanha (o original)


Que se ficara cá
Levava co’a castanha
Do «soncas», do «pàrdéus» e do «ièramá».

Quatrocentos e trinta e oito anos à espera


De poder ser impresso
Não é um bom sucesso
De história de Portugal?
Que a mim o Ollanda não deu mar nem porto
Ao que pensando sinto.
Só imagens… E eu já morto e remorto
Em 1935…
O MÁRIO SACRAMENTO…

O Mário Sacramento é que há um ano disse


Uma palavra de desengano felice.
Que eu era um anti-génio, disse o rapaz
Em livro eugénio e invulgarmente lilás.

Outro nenhum pegou no artefacto


Que este venceu. Porque, de facto,
Ou sou um genes, eu, e, por extensão,
Cinco milhões de portugueses o são,
Ou sou anti, e então
Cinco milhões de machões para o trapo!

Genes, eu? (O que eu disse foi: Super.


Super Camões.) Era bom
Pelo odor a terra portuguesa
Pelo tropel
Pelo anel
E pela qualidade — e quantidade — do som.
Mas de mim, depois de… e de…
Muito me temo fique só o cheiro
De um poeta navegável, vagamente industrial
Para levar para a C. E. E. e para o Senegal
[Variante da estrofe anterior:

Vazo o andar de cima diferido


Da minha residência oficial
De baú mongolóide promovido
A andróide asteróide de Portugal,
Muito me temo fique só o vidro
De um chão ocluso, vagamente industrial
Com portas de parafuso absortas de uso e áscoas
De bolhas lérias de folhas de férias ásperas
Para levar para a C. E. E., e para o Senegal]
Cujo Presidente
Poeta negro católico permanente
Gosta muito, muito, de Portugal
Por ser, diz el’, em Portugal que sente
Mais verde e rubra a soma
Do império romano do Ocidente
E da igreja de Roma.

Esqueceu a de Braga.
Mas em Dakar não haverá muita abra
Nem bastante oração
Para tanto pormenor e tanto cabrão.

Mas voltando ao escritório


Do Mário Sacramento,
Este belo parlório
Sito à casa de banho
Saberá que para se ser um antigénio
Tem de se ter muitíssimo talento?

Que aliás também tenho.


Percebem os senhores
A força do enchumaço
Interior ao espaço
Da pressão exterior?…
EU SOU O NOIVADO
DO TRIÂNGULO DA ESFERA E DO QUADRADO.
Anti ou não anti
«Se não perderes o Nome»,
«O Thelema, o Pai de Todas As Coisas Está Aqui.»

Porém o nome que em mim puseram esqueci.


Pus em banho Maria, na pedra dos expostos, aquela ortonomia
Que de meu nada tinha, na prática ou na teoria,
Se não a sensação de ser só a minha espinha
Pelas costas dos outros abaixo até ao nexo deles
Tão felizes e compostos em dar nome e mando
Ao que do nada vinha e sem mover-se
Para o mesmo nada começava a erguer-se.
E ao raiar do dia da alquimia, eu, torpe, face ao céu,
Três vezes fiz rodar o nome meu
Sem que Destino ou Sorte concedesse
Trono ou ralé, demónio ou drago de olhos doces,
Mas tal qual fui, não sendo nada, eu fosse!

Noto, diviso em três, exposto à negrura


Que do Athanor vem,
Do rei em onda, em bando, em lura,
Vi sair nomes para todos os gostos
Menos para o meu, de minha própria endura
O único refém.
Por isso ao Infante D. Fernando chamei
Rei do onde sem quando.
No mesmo chão innome se fechou
O corpo só que sou.

Lúcido, sim. Lúcido até às fezes.


Até às alças dos atilhos das calças
Até me pôr a olhar para mim a andar
A parar para melhor observar
Como entrava e saía do Jardim da Estrela
Quando ia para debaixo da janela da Ofélia
Para ela ver que eu ia, que não faltava,
E eu era ela que me olhava cabisbaixo
No cimo da janela dela em baixo…

Lúcido! Sim! Ou medonho. Ou bisonho.


Tirado do natural.
«Auto-cêntrico mudo»
É o melhor diagnóstico sisudo
Para boletim de morto no hospital.
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada… Lembram-se?
Então estendam-se ao sol, abdigam e entendam-se
Uns com os outros, uns dentro dos outros
Mas sem filósofos homónimos sem músicos heterónimos sem moinhos da Helada
E antes de mais tirem de mim os Jerónimos
Que é clausura de mais para um homem só
E se tal não puderem (souberem, quiserem, temerem)
Digam lá ao escultor venha tirar a mó
Da merda da coluna que me pôs em cima a fingir que estou dentro
Dela a fazer janela do convento de Cristo. Abafo
Co’este ferro cravado no chaço
Do estômago que já tinha de pouca saúde
Quando o Palma-Ferreira me abriu o ataúde
E viu o que nunca devia ter visto.
INTRODUÇÃO AO VOLUME

Quanto o cérebro descia


Até o meio da espinha
A ver o que sucedia
Em região tão daninha

O coração lhe subia


Té meio de um pensamento
Que em pegando luz ardia
E regredia para dentro

Não da cabeça já fita


No sangue do coração
Como Santa Benedita
Nos azeites do Islão

Nem para dentro do ego


Peito que batia agora
Vestido à lógico grego
Com uma mama de fora

Mas para dentro do dentro


Que é o centro de nenhures
Esplanada próxima a algures
De nenhum estabelecimento

Que é como fazer sem cu


O que se faz sem cabeça
Ou ao que o sentir começa
Tirar o eu e o tu.
Mil escribas portugueses,
Galos, ítalos, ligures,
Estão já clamando a chineses
E a principais hindueses
Esta invenção do nenhures

Mas se, extracto do seio


Dos grego-romas tiróidas,
O supósito meneio
Em não finda nem começa
For um Zen com hemorróidas
Na cabeça?

Mais genetas, os ói-óis


Da superna europesia
Queimam hindus e mongóis
E metem pelos lençóis
Da civilização em dia

De prumo muito areado


Como quer o mestre primo
Puxam-lhe pelo calçado
A ver s’aquilo tem cimo

U seria D. Fernando
Saxe Coburgo Caraças
De La Serna y Punta y Bando
De Ratones De Las Casas

Ou seria o anti-génio
Rebuçado de anti-cristo,
Proémio doutro proémio
Que tem nada a ver com isto

Sentam outros que ele é dez


Mais do que a esprital Trindade
E que no cada que fez
É todo variedade

Outros que não, que ele é um


E que do uno não passa
Como conserva de atum
……………………………

Outros, ’inda, que fingir


É que olicorna a concreta
Sensação de estar a ir
Pelo bico da caneta

E até um Prestes José


De muita Filosomia
Ponta que aquilo é que é
Foder de noite e de dia

Toda parte e todo todo


Todo não e todo sim
Quando não fodo é que fodo
E quando fodo é a mim

Mas quanto a cabeça baixa


À caixa do coração
E do coração o faixa
Tira a caixa da ignição

E quando ao cérebro vago


Sobe uma perna de aborto
Jazendo terno e aziago
Em sweater de desporto

Ninguém vai toucar tal galho


Nem prover nem dimanar
Tanto passear o talho
Para não poder gentar.
NOTA À INTRODUÇÃO

Pinar só co’a cabeça


É protérrima noção
Ca Literatura começa
Ter em muita aceitação.

Entrada a tola entra tudo: taco


Tórax e veio.
Se não couber no buraco
Racha-se o buraco ao meio.

— Nem rachar será preciso:


Só rasgar um bocadinho.
Como na árvore, inciso,
O nome do passarinho.
II
Dorme que eu velo
Sedutora imagem
Terna miragem
…………………

Nada em mim é risonho


Ou anseia viagem.
Quero-te para sonho
Não para gozo e dor.

Tua carne psalma


Fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços
Nem quero ter nos braços
……………………………

Dorme, filha, dorme,


Vaga em teu sorrir.
Sonho-te tão bem
Que o corpo me vem
E me venho sem ir.
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De varas trespassado
— Duas, de cada lado —
Jaz exposto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue


Da quádrupla função.
Nórdico mouro exangue
Fita com olhar langue
O que ainda tem na mão.

Que varonil quimera!


Agora, que vara tem?
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome, e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.

De outra algibeira, alada


Espuma de porto covo,
A brancura manchada
De um lenço… Foi a criada
Quando ele era mais novo.
Lá longe — na Casa do Conto — há prece:
«Que morra cedo, e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.
Os sebastiaças trombos não deixaram partir
Portugal para o Brasil.
Vagos ficamos da amurada aos tombos
Para a largada rombos
Do corpo de Portugal.

Mas a Hora deixada ao sono vil


Dos que provendo tudo podem nada
Mais que o fogo senil
Do Império Final,
Cintila na amurada:
Não há Portugal e Brasil.
Brasil é Portugal.
ELA CANTA…

Ela canta, pobre ceifeira,


Julgando-se feliz, talvez.
Canta, e roussa. E a sua voz, cheia
De alegre e anónima liquidez

É branca como um grito de ave


Num ferro de Alcácer-Kibir,
E há réstias de luz e de adarve
No som que ela faz a se vir.

Ouvi-la, alegra e aborrece.


Na sua voz há recidiva.
E roussa como se tivesse
Mais fodas a dar do que a vida.

Ah! Poder ser tu sendo eu!


Ter a tua alegre limalha
E todo o ouro dela! Ó céu
Ó campo, ó canção,

O homem pesa tanto e a matriz é tão leve!


Entrai por mim dentro! Tornai
Meu ânus o vosso almocreve!
Depois, levando-me, passai.
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa sacode.
Não sei se fodo tudo
Ou se tudo me fode.

A brisa é o lago a ir
A uma ideia de mar.
Não sei se me ate a rir
Ou desate a chorar.

Trémulos vincos medonhos


Cercando a água toda,
Porque fiz eu dos sonhos
A minha única nódoa?
Põe-me as mãos no sexo,
Beija-me na coxa,
Abre-me no plexo,
Uma ferida roxa.

Eu não sei porquê,


Meu dês d’onde venho,
Sou o ser que vê
Só o seu tamanho.

Põe a tua mão


Num laço sem fim,
E chega ao desvão,
Abre-o para mim.
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu corpo sem beijar a tua poma
E beijando-o me unisse pela soma
Aos quatro sexos meus e te enterrasse

Tão fundo o meu caralho que gravasse


Em soberba medalha de cristãos
Ajoelhando amigos e irmãos
Quando, processional, o entregasse

À forma que submete e que extasia,


A forma inteira, igual da luz do dia,
E tu por baixo, árdua, entre os varais.

Caverna em estalactites, minha sina.


Não poder eu descê-la, descer mais
Que vê-la e que perdê-la na retina!
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor! —


Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.
Dizem que sou um chão
De rodas de veículos,
Dizem que é assim mas não,
Eu simplesmente são
Com a imaginação.
Nunca uso testículos.

Tudo o que para que tendo


— O que me sobe, exacta,
A roda do infinito —
É como um grande membro
Que n’ata nem desata
E o próprio sopro mata
Ao guarda de plantão
E isso é que eu acho bonito

Para meter em verso


E em psiquiatria
A trouxa do universo
E da sua gentia,
À qual não sou adverso,
Nem converso, dizia.

Por isso conto o meio


Do que não teve pé.
Livre de jaça ou esteio,
Cheio do que não é.
Não são pombo-correio.
Colhões tenha quem lê.
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A Nini Bebezinho
Do Ibi
Dá Ofeli
Bjinho?

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio,


Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio.
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é,
A glória concede e nega, não tem verdades a fé.

Não há quem saiba se gosto de ti ou não.

Por isso na orla morena da praia calada e só


Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó.
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Querida Bebezinho:
Ainda fazes muita troça do Nininho? (A. de C.)

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,


Não quero nada do acaso senão a brisa na face
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Ex.a Snr.ª (…)
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa
Meu particular amigo, encarrega-me de lhe comunicar que
Está V. Ex.a proibida de:

1) Pesar menos gramas


2) Comer pouco
3) Não dormir nada
4) Ter febre
5) Pensar no indivíduo em questão

Cumprimenta V. Ex.a

Álvaro de Campos
eng. naval

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar


Quero dormir sossegado, sem nada que desejar.
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado pelo ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

O teu Nininho, Bebé Fera,


É o maior bjinho
De noite ser, e primavera,
E eu estar de olhos fechados.
Onan dos outros! Ó deus que dás confiança
Só a quem já confia!
E não à morrente ou garça mão que se ansa
Varonil e vazia.

O Virgem Negra, tal me descobriram


Cinquenta anos depois,
Em minha infusão estou. Tombam, deliram
Em vão quantos seguiram

Minha viagem ao nunca ser dois.


No seu andor de luto e de desgraça
O Virgem Negra passa
Maior que todos os sois.
O Álvaro gosta muito de levar no cu
O Alberto nem por isso
O Ricardo dá-lhe mais para ir
O Fernando emociona-se e não consegue acabar.

O Campos
Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia.
Ficavam-lhe os olhos brancos
E não falava, mordia. O Alberto
É mais por causa da fotografia
Das árvores altas nos montes perto
Quando passam rapazes
O que nem sempre sucedia.

O Fernando o seu maior desejo desde adulto


(Mas já na tenra idade lhe provia)
Era ver os heteros a foder uns com os outros
Pela seguinte ordem e teoria:
O Ricardo no chão, debaixo de todos (era molengão
Em não se tratando de anacreônticas) introduzia-
-Se no Alberto até à base
E com algum incómodo o Alberto erguia
Nos pulsos a ordem da Kabalia
Tentando passá-la ao Álvaro
Que enroscado no Search mordia mordia
E a mais não dava atenção.
O Search tentava
Apanhar o membro do Bernardo

Que crescia sem parança direcção espaço


E era o que mais avultava na dança
Das pernas do maço da heteronomia
A que aliás o Search era um pouco emprestado
Como de ajuda externa (de janela do lado)
Àquela endemonia
Hoje em dia moderna e caso arrumado.
Formado o quadrado

Era quando o Aleister Crowley aparecia.


«Iô Pan! Iô Pã!», dizia,
E era felatio para todos
e pão-de-ló molhado em malvasia.

Então os heterónimos tornados


Sinceros e sentados
Escutavam o texto que o Aleister trazia:

Apanhado o sapo, logo o guardareis numa arca ou numa caixa; como está escrito: «Não tereis em
horror a matriz da Virgem». E logo o sapo começará aos saltos no interior da caixa, e isso é
excelente presságio. Vinda a manhã, levar-lhe-eis uma oferenda de ouro e, se possível, de
incenso macho e de mirra. Soltai então o sapo com muitas mostras de respeito e homenagem,
deixando-o em liberdade aparente. Pode, por exemplo, ser colocado sobre um edredon, ou numa
colcha de muitas cores, guardado por uma rede.

Disporeis um recipiente cheio de água, ireis ao sapo e direis: «Em nome do Pai † e do Filho † e
do Espírito Santo (aqui, aspergir a cabeça do sapo), eu te baptizo, criatura dos sapos, com o
nome de Jesus de Nazaré».

Neste dia, assisti-lo-eis sempre que vos seja possível e cómodo, adorando-o e prestando-lhe
verdadeiro culto — como se ele realmente fosse Jesus de Nazaré. Pedir-lhe-eis ainda vários e
distintos milagres, cuja natureza escolhereis de acordo com a vossa Verdadeira Vontade. Na
mesma forma prometereis ao sapo elevá-lo vantajosamente para ele no reino da criação; mas
entretanto esculpireis secretamente a cruz do seu suplício.

Nascida a noite, prendereis o sapo, acusando-o de blasfémia, sedição, etc., com estas palavras:
Faz o Que Queiras é Toda a Lei. Eis-te caído na minha cilada, Jesus de Nazaré. Durante toda a
minha vida me ofendeste e torturaste. Em teu nome — e em nome de todas as almas livres da
cristandade — foi torturada a minha infância; toda a delícia me foi proibida; o que tinha de meu
foi-me tirado e o que me era devido não foi pago — em teu nome. Mas eis-te nas minhas mãos; o
Deus dos escravos caído nas mãos do Senhor da Liberdade. A tua hora chegou; vou apagar-te da
superfície da Terra tão seguramente como passa o eclipse; e a Luz, a Vida, o Amor e a Liberdade
serão uma vez mais a Lei da Terra. Dá-me lugar, o teu éon passou; a Idade de Hórus sobreviveu
através da Magia do Mestre da Besta que é um Homem; e o seu número é 666. O amor é a lei, o
amor submetido à vontade.

(Pausa)

Eu, Tot Megatérion, condeno-te, Jesus de Nazaré, a ser escarnecido, coberto de escarros,
flagelado e por fim crucificado.

A sentença é executada. Depois de mofas e insultos lançados à cruz, direis: Faz o Que Queiras é
Toda a Lei. Eu, a Grande Besta, assassino-te, Jesus de Nazaré, deus de escravos, na forma desta
criatura dos sapos, que abençoo em nome do † Pai e do † Filho e do † Espírito Santo. E assumo
em mim e tomo ao meu serviço o espírito elementar deste sapo. Que esteja sempre a meu lado
como espírito de mentira. Que percorra a Terra, guarda meu da minha Obra para o homem; para
que os homens possam falar da minha piedade e da minha doçura, e de outras virtudes ainda, e
me amem, me sirvam e me valham em qualquer questão material, seja qual for. E tal será a sua
recompensa, ficar sempre a meu lado, escutar a verdade que eu digo, a mentira que abaterá os
homens. O Amor é a Lei, o Amor submetido à Vontade. Então apunhalareis o sapo no coração,
com o Estilete Mágico, e dizendo: nas minhas mãos recebo o teu espírito.

Descereis então o sapo da cruz e dividi-lo-eis em duas partes; cozinhareis e consumireis as coxas
como sacramento confirmando o pacto feito com o sapo; o resto do seu corpo será
completamente consumido pelo fogo, para que com ele se consuma o éon do deus maldito.
Assim seja.
É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar


Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d’ir urinar.

Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé:


«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).
………………………………………………………………………
Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu sendo eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co’a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.
O Raul Leal era
O único verdadeiro doido do Orpheu.
Ninguém lhe invejasse aquela luxúria de fera?
Invejava-a eu.

Três fortunas gastou, outras três deu


Ao que da vida não se espera
E à que na morte recebeu.
O Raul Leal era
O único não-heterónimo meu.

Eu nos Jerónimos ele na vala comum


Que lhe vestiu o nome e o disfarce
(Dizem que está em Benfica) ambos somos um
Dos extremos do mal a continuar-se.

Não deixou versos? Deixei-os eu,


Infelizmente, a quem mos deu.
O Almada? O Santa-Rita? O Amadeo?
Tretas da arte e da era. O Raul era
Orpheu.
Dícen?
Olvidan.
No dícen?
Envídian.

Hacen?
Fatal.
No hacen?
Igual.

Para que
’Sforzar?
Todo es
Hurgar.
Vem, Vulva antiquíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Olho franjado de infinito.

Vem mortamente
Vem pesadamente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas,
Ao teu lado, vem
E traz as camas longínquas para o pé das ureteras próximas
Faz da montanha um bloco só do teu corpo
Funde na regra tua todas as águas que vejo
Todos os nervos com que és escura por dentro
Todas as luzes brancas como noivo e noiva
E deixa só um mu, e outro mu, e outro
Na distância imprecisa e subitamente perturbadora
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão
E que doem por sabermos que só assim as teremos,
No espelho baço do aposento não nosso,
Madre do Deus das terras infelizes
Mater Dolorosa das angústias dos tímidos
Sancta Virgo Virginum das pernas dos prisioneiros
Turris Eburnea dos olhos dos paneleiros
Sancta Dei Generectrix dos filhos das meretrizes
Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade


Onde vicejo,
Apanha-me do meu pénis, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte
Onde estão as cidades que eu tanto amei,
Outra folha de mim lança para o Sul
Onde estão os mares que os Navegadores abriram,
Outra folha de mim atira ao Ocidente
Onde o demónio da acção cobriu tudo
Sem deixar sombra onde eu nasça
Ou possa, sequer, descansar
Reclinando a cabeça em minha própria nação,
E o resto, o resto de mim atira ao Oriente,
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Çiva-Parvati talvez realmente viva,
Onde Ardhanarishwar talvez exista realmente e mandando tudo…
Quando, em boa estação,
Camões, o Cavalgante Castelhano,
Ler a minha Mensagem
Vai ficar todo o ano
A repensar a imagem
Do galaico-português
Que ele desfez
E eu não.
«Na sombra do Monte Abiegno
Repousei de meditar.
Vi no alto o alto Castelo
Onde sonhei de chegar.»

«Quanto fora amor ou vida


Atrás de mim o deixei,
Quando fora desejá-los
Porque esqueci não lembrei.»

«Talvez um dia, mais forte


Da força ou da abdicação,
Tentarei o alto caminho
Por onde ao Castelo vão.»

«Quem pode sentir descanso


Com o Castelo a chamar?
Está no alto, sem caminho
Se não o que há por achar.»

«Mas por ora estou dormindo


Porque é sono o não saber.
Olho o Castelo de longe
Mas não olho o meu querer.»

Cavaleiro de armas brancas,


Dá fim ao meu querelar:
Da sombra do Monte Abiegno
Quem me virá despertar?
Três voltas dei ao castelo
sem achar por dond’antrar.
Cavaleiro de armas brancas
viste-lo por ’qui passar?
Eu vi-o morto na areia
com a cabeça no juncal.
Três feridas tinha no corpo
todas três eram mortal;
por uma lh’entrava o sol
pela outra o luar.
P’la mais pequena de todas
um gavião a voar
com as asas muito abertas
sem nas ensanguentar.
Três voltas dei ao castelo
Sem achar por dond’antrar.
III
Meu querido amigo

Recebi a sua interessantíssima carta postal que muito agradeço e um pouco extensamente
quero responder espalhando também a minha alma pela sua.
E bem triste tem sido nos últimos tempos a minha alma, bem triste, bem lúgubre… Chegaria
a invejar a sua febre exaltadamente extática se através dela não descobrisse uma dissolução
inquietadora que em mim explode em torrentes de pus! Na sua há o pressentimento lívido do que
me despedaça…
Mas, ao menos, em seu espírito ainda existem «galinhas de cristal azul» enquanto que o meu
enche-se d’outras, esquálidas, ressequidas a alimentarem-se de esterco! Só me preocupam
obsessões ridículas de endemoninhado. Disse-me uma vez uma espírita que, por comunicação
recebida, sabia que os piores elementais me devastavam a carne e o espírito. Não é bem assim;
quando me educava para médium numa casa fatal, que antes, sem que eu o soubesse, tinha sido
habitação de prostitutas onde portanto abundavam espíritos inferiores, estes atacaram-me
realmente mas a partir de então não foram eles os mais dominadores não tendo conseguido
desalojar por completo os fantasmas de eleição que em mim têm sempre até hoje terrivelmente
lutado com os novos invasores. Sou pois, o campo desolador duma batalha astral… Foi isso o
que me comunicaram. Uma vez, depois de cair em transe, tal como os endemoninhados
medievais, desatei a dar saltos simiescos acompanhados de uivos terríveis e cómicos. Mas bem
depressa as conjurações dos assistentes e sobretudo os meus incansáveis Protectores de Além
conseguiram acalmar-me os nervos expelindo o diabólico fantasma que tão grande dano me
estava causando. Entretanto até hoje a Grande Luta tem prosseguido sempre… E Ela extenua-
me, vai-me esgotando lentamente. Preferia mil vezes que a imaginação se me enchesse de
abismos sangrentos de trevas… Mas só ridículas emanações de elementais a percorrem
constantemente. Nos pequenos exercícios de Alta Magia que executo todas as noites e às vezes
durante o dia, sinto entrelaçarem-se nas minhas Concepções Gloriosas desoladoras obsessões de
piolhos, escarros, esterco do nariz, tudo que há de mais ignóbil na Matéria. Quando vim para
Hespanha, quer você saber a ânsia aflitiva que eu tive? De me apear numa aldeia estupidíssima
do Alentejo e ali passar o tempo que queria passar em Sevilha… Felizmente, numa reacção
violenta, contive-me, no caso contrário acabaria de me despedaçar num deserto, sem poder dali
sair por falta de recursos. E essa aldeia atraía-me exactamente porque era horrivelmente feia e
porque eu sabia que a sua fealdade e insipidez me faria sofrer muito. Eu que procurei sempre
evitar a Decadência procurando sempre o Génio da Força, do Espírito, desci ao estado d’alma
inquietador das citações de Poe…
E a guerra abominável que devasta a Europa acompanhando lugubremente a que se trava em
mim ainda mais mal me faz. O Ideal Prussiano é o mais terrível inimigo da Vertigem. A
Anarquia de Espíritos que toda a minha alma Transforma em Ânsia nada tem que ver decerto
com a rigidez metálica do Génio de Wagner. Quero a Força mas a Força Livre duma Vertigem
Astral, que nos arrebate em Vácuo! Detesto o Defenido Esquemático duma Matemática Pura!
Nesta há só Opressão, as malhas da Alma contorcem-se em agonia escrava. Também há Agonia
no Espírito mas a Agonia Livre da Ânsia, do Infinito… A Morte é Supremo Infinito de Vácuo
Espiritual é Vertigem, é Liberdade Pura!… Num Vácuo de Espírito se suspende realmente o
próprio Vácuo que a forma: Vertigem… Vertigem…!
E não é assim o esquematismo germânico. Este é um abismo mas como o das estreitas
crévasses abertas no Gelo! Tudo limites, só estreiteza, só Opressão… Por isso detesto a Força
Imperialista que desconhece o Infinito!
O Kaiser é o meu pior inimigo! Se Ele triunfa o Vertiginismo sofrerá um golpe horrível de
que muito dificilmente se erguerá. Não quero dizer com isso que a vitória dos aliados seja
imediatamente a Vitória do Meu Espírito, a bem pouco se reduziria Ele se só carecesse disso,
não, a vitória dos aliados, da democracia, do plebeísmo, não terá realmente expressão alguma
mas por isso mesmo não oporá resistência ao Triunfo do Vertiginismo. Mas o Espírito
Imperialista que inundará profundamente as Almas com a Vitória da Prússia, Esse sim, Esse tem
uma expressão horrível sendo um Castelo Infernal que o Génio Vertígico muito dificilmente
desmoronará. Que me importa que a vitória dos aliados não contenha em si beleza alguma? a
Beleza virá depois com o meu Espírito e mais ampla, mais formidável do que a Beleza
Prussiana!…
Em todas as particularidades da minha vida actual surge a oposição horrível existente entre
mim e o Kaiser. Quando os Exércitos Prussianos triunfam sou Eu que me debato então numa
agonia lúgubre, quando alguns reveses Eles sofrem a Minha Alma, Toda a Minha Vida se anima.
E, é claro, isto dá-se antes de eu conhecer pelos jornais o resultado das operações, precisamente
quando elas se desenrolam. Há uns dias ando um pouco mais calmo, mais calmo não, vivo como
que numa expectativa esperançosa e isto coincide com o que se está passando: por um lado os
russos vitoriosos mas sem triunfos decisivos, triunfos apenas, prometedores, por outro lado a
derrota dos povos balcânicos também pouco significativa ainda para o resultado final da Grande
Guerra. A Alemanha deve sentir-se esgotada, isto é intuitivo, não é preciso que os aliados o di-
gam, e esse esgotamento coloca-nos também numa expectativa feliz. E assim o estado actual da
Guerra é o estado da minha alma senão ainda da minha vida.
E digo que não é o da minha vida pois cheguei até, do mesmo modo que os povos balcânicos,
ao auge da detrésse material; mais uns dias assim e abrem-se-me as portas de ferro da Fome,
contudo, nem sei porquê, isto nada me inquieta. E fui sempre assim; quando em Biarritz e em
Paris tinha dinheiro o futuro apavorava-me terrivelmente, quando me encontrava perdido o
espírito enchia-se-me de confiança. E com razão. Assim, tinha decidido sair de Biarritz a pé para
Paris (devia quase um mês no Hotel) quando, na própria véspera em que devia assim proceder,
recebo um telegrama de Lisboa anunciando-me a realização dum negócio com que eu já não
contava nada e donde me viriam uns contos de réis. No dia seguinte parti opulentamente para
Paris…
Mas pondo de parte a minha situação d’alma de momento e atendendo apenas à sua situação
geral devo reconhecer que é detestável e porque profundamente dissolvente. Para outro que não
eu isto não teria talvez uma grande importância mas para mim que procurei sempre ser um
voluntarista, que fui sempre um Espírito Forte, esse estado d’alma apavora. Uma vez, em
Coimbra, não calcula a revolta angustiosa de que me enchi contra mim mesmo só por uma
insignificante quebra de vontade, nem isso mesmo, uma pequena imprevidência. Havia um ano
que eu era sifilítico; todas as recomendações do médico eu executava com o maior rigor e
impondo-me eles o tratamento estúpido das fricções de pomada mercurial, durante três anos
consecutivos eu, em espaços de dez dias intervalados por outros dez de descanso, fazia
heroicamente as abomináveis fricções que duravam sempre vinte minutos! Um verdadeiro
horror! Mas era necessário e submetia-me portanto. Seria longo e aborrecidíssimo eu dar provas
totais da minha vontade e da minha coragem — a que eu tive por exemplo, em duas operações
horríveis, feitas a sangue-frio, sem ser anestesiado — e por isso escolhi uma apenas, ao acaso.
Ora, uma das recomendações dos médicos era sem dúvida a de não apanhar humidade que muito
me poderia prejudicar e procurei sempre cumprir essa exigência clínica. Mas um dia de inverno,
um ano depois de adquirir a sífilis decidi-me fazer com outros rapazes uma excursão à Serra da
Lousã. Escusado é dizer que me molhei bastante e não calcula depois, em que estado a minha
alma se pôs. De noite, tive um pesadelo horrível, montanhas de gelo desabavam oceanicamente
sobre mim, eu queria fugir, evitar a ferocidade infernal da torrente mas perdido de forças, Eu, o
Dominador, era enfim esmagado pela Natureza Bruta! No meu livro, Prince de La Mort,
Confessions d’Ahlali eu descreverei a Revolta e a Aflição de que me enchi nesse momento
perante o que eu julgava ser em mim o desmoronamento da Força, da Vontade… Nunca me pude
perdoar uma insignificante prova de fraqueza. Para os outros fui sempre indulgente, para Mim
jamais!
Pode pois imaginar facilmente como devo sofrer com o meu actual estado de dissolução
mental em que me esfarrapo ao capricho do Acaso. Às vezes, quando atinjo o auge da depressão
ainda consigo reagir violentamente, e a isso devo o trabalho mais ou menos constante que tenho
conseguido sempre executar a despeito de tudo, mas na maior parte dos casos embriago-me
ignobilmente de Dissolução, de Acaso… Não bebendo quase vinho pareço realmente um
alcoólico: quando me irrito, a minha irritabilidade é sempre dissolvente, já não é um furacão, é
um despedaçamento atordoador através de que todos os meus nervos estonteados parecem estalar
pela acção esfrangalhadora duma vivíssima corrente eléctrica; e quando me espalho pelas ruas
ando como os cães ziguezagueando para afocinhar em todas as insignificâncias que se me
deparam nas montras e no caminho. Eu mal as vejo e contudo sinto por elas uma atracção
irresistível. Sim, é que, à mercê do Exterior, por ele sou decomposto, esfrangalhado, em lugar de
o arrebatar todo na Minha Alma Gloriosa…
Está-se repetindo agora o que me sucedeu em Paris. Sofrendo horrivelmente com a
necessidade de me alimentar na Taberna, como um Idiota agarrava-me, em Paris, a todos os
doces dourados que encontrava a cada passo nas confeitarias que electricamente me atraíam, me
subjugavam. Muitas vezes não podia almoçar nem jantar por ter gasto tudo em insignificâncias
que não me alimentavam mas que eu não podia evitar. Não era o dinheiro gasto estupidamente
que pavorosamente me angustiava mas a significação horrível dos meus actos idiotas. A que
dissolução eu tinha chegado…
Pois agora, se a atracção dos doces dourados não é tão imperiosa, se eu a poderia dominar e
se às vezes consigo já dominá-la, contudo a obsessão dum determinado bolo não me deixa
enquanto não me decido, então voluntariamente, a comê-lo. Já não é aflitivamente que me sinto
atraído, é por espírito de reacção, de revolta contra as formidáveis peias económicas que me
envolvem. É assim que, correndo, às vezes, uma ou numa noite todas as confeitarias de Sevilha,
encho-me de doces, mais mesmo que os meus sentidos pediriam. Resultam disso princípios de
disenteria que mais ainda me deprimem e ignobilizam… Não me iludo, esses acessos de revolta
são apenas um sofisma para encobrir uma fraqueza real. E por isso contra eles preciso também
reagir. Além de que como se explica a não ser por um estado d’alma profundamente dissolvente
a obsessão deste ou daquele doce determinado que vejo numa determinada confeitaria?…
Também ultimamente em Lisboa sofri uma atracção eléctrica semelhante à de Paris seguida
de outra já então cheia de revolta, de reacção contra a detrésse, mas num campo mais
interessante posto que ainda mais ignóbil, a atracção estupenda dos urinóis públicos! Era naquela
atmosfera animalizadora de urina que eu precisava realizar as minhas perversões. E então corria
espavorido pelas Avenidas e Aterro em busca de porras que me explodiam nas mãos para eu
depois as lamber numa nervosidade estonteante de alcoólico…
É pavoroso!…
E tudo isto é causado por uma detrésse material que progressivamente galopa e pela Ambição
Formidável de me tornar Rei! Estou lendo agora o Alcorão; nele se descrevem os brocados e
sedas chamejantes de que no Paraíso Árabe os Bem-aventurados se envolvem arrastando-se em
jardins infinitos de Éter e Luz! Pode você imaginar como esses quadros indignam e me afligem
profundamente porque não são a realização da minha vida… Em lugar de licores luminosos que
em torrentes se espalham pelos jardins edénicos tenho como bebida imensurável, fatal, o Pão da
Gehena!
Não quero dizer com isto que não me cubra ainda de sedas e de brocados mas estes só são um
sarcasmo lançado perversamente à minha Existência Real! E esse sarcasmo que eu próprio
lubricamente desperto, faz-me dolorosamente gozar. É assim que todas as noites, numa volúpia
angustiosa, por sobre a minha cama miserável estendo o meu robe-de-chambre de cetim azul. E
na mesma ansiedade voluptuosa olho-me de manhã quando coberto de malhas duma seda
caríssima. Encho de pasmo e quase Ternura os donos das casas de penhores e só um, uma vez,
franziu o sobrolho quando ao lado de ceroulas e camisolas de seda lhe apresentei uma grosseira
chandail de apache!
E esse Destino que todas as minhas cousas vão tomando, prova bem como é ilusória a minha
opulência restante. É um desmoronamento… Já nem posso cuidar as minhas unhas pois o meu
belo onglier de marfim jaz depositado numa dessas casas de penhores!… Além disso, a seda
finíssima que vou ainda trajando, perdeu já o brilho duma vida luminosa para adquirir um outro,
lívido e morto! O Diamante tornou-se Vidro, o Sol degenerou em Luar… Os meus lenços, dum
brilho acetinado e transparente, que eu, em tempos, comprei no Charvel, surgem hoje
esfarrapados e é assim que os posso usar ainda…! Que decadência, que mil horrores!!… Em
breve, andrajosamente me cobrirei de farrapos sangrentos de seda e ouro…
E não calcula a revolta odiosa que me estrangula e congestiona quando diante dos meus olhos
surgem em altivez principesca os mais magníficos autos. Em frente da montra duma agência de
viagens todos os dias me extasio e julgo-me então soberanamente transportado pelo mundo fora
em grandes expressos europeus e nos mais luxuosos, nos mais opulentos transatlânticos
modernos. Mas vendo, depois, que só em sonhos efémeros se desenrola essa vida magnífica, os
dentes rangem-se-me, a pele contrai-se-me e sinto ânsias de dinamitar o mundo!!… Você, às
vezes, sonha-se Príncipe mas sentindo o contraste dos seus sonhos e da existência real mal sofre
e jamais se enche de Rancor e de Revolta… Não é que o Sonho não seja a Vida Inteira mas é que
a maior parte dos sonhos que sonhamos não tem consistência, força, perdem-se efemeramente
porque integralmente os não podemos Viver. E a estes se opõem então outros, a Vida, que sendo
então bem vividos, são-no como desenrolamento desolador dum espírito apodrecido… E são
estes, é a vida que eu vivo que eu quero expulsar da minha alma, não quero mais sonhar o sonho
da Fome, da Dissolução e intensificando profundamente os meus devaneios efémeros quero dar-
lhes enfim a Força, a Viabilidade de Vida! Não quero que a Beleza perpasse fugitivamente por
mim em débil Onanismo, a Beleza quero sentir integralmente, em absoluto a Quero Viver!…
É essa Ânsia que enche Toda a minha Vida Interior, a Única Vida…, essa ambição
estonteante de arrebatar divinamente o Universo, de me sentir Tudo, de me Sentir Deus, essa
Ânsia, essa Ambição você jamais sofreu e mal poderá pois avaliar a grandeza da Minha Dor!…
Porque Eu não quero viver-Me em Ouro, em Luz, só pelo Ouro, só pela Luz, Esta é o símbolo do
Poder, o Símbolo apenas, e então se a quero é que através d’Ela desejo encontrar a Essência
Puríssima do Infinito para que eu possa Tornar enfim a Minha Alma… Não desejo viver-me só
banalmente como mundano, se pelo mundo Me quero arrastar como Dominador e para que o
Mundo se Engrandeça em Mim! Vivendo-Me em Salões de Majestade de modo algum desejo
viver-Me Exterior como que comunicando-Me com os outros que não estejam em Mim; mais do
que um Rei Oriental isolado materialmente de todos como Ídolo jamais profanado pelo Exterior
para que só o espírito de todos arrebate em Si através da Adoração, mais ainda Eu quero ser, se
os homens se prosternam perante os Ídolos que só as suas almas podem atingir e jamais a Vista e
a Palavra que a Eles oporiam um Exterior Real, Absoluto, é que Este, posto que vagamente,
ainda existe, ainda se impõe… Os homens sentem-se dissolver no Ídolo mas não ainda a ponto
de, sentindo-se absolutamente perdidos na sua individualidade, brutalmente reagirem ou,
espavoridos, aterrados, fugirem d’Ele como do Mal, da Fatalidade! Da hipnose dissolvente ainda
não têm consciência plena e porque ela ainda não se lhes impôs absolutamente… Eu não quero
pois atravessar o Mundo lentamente absorvido por Mim, como simples Ídolo inatingível, quero
mais, quero em fulminações sangrentas de morte com violência arrebatar em Mim as almas,
numa Angústia e num Terror de Vácuo. Só então, julgado […]1 atordoamento Universal, sentirei
bem a dissolução do Mundo, a morte do Universo em mim, em Mim, Deus e Satan!…
E elevando o Infinito à Morte Me elevarei enfim, tudo que me surge Concrét, da Minha Alma
Transcendida se evolará, num grande Vácuo de Espírito Eu Me Transfigurarei, serei mais do que
Absoluto, realidade concreta, definida, determinada, para em Abstracção Pura, Abstracção em Si,
viver a essência verdadeira do Infinito que não tendo determinação possível não só nos seus
limites como ainda na sua natureza essencial, e só Indefenido, só Morte, só Vertigem…! O
precursor do Divino Paracleto, a Vertigem, que no nosso século se espera, sou Eu, uma grande
vitória alcançarei sobre a Águia Prussiana, Génio do Anticristo, Génio do Absoluto, do Limite
que assim se dissipará e erguendo enfim o Mundo ao Deus que ele lhe envia, o Próprio Deus
enfim, Me Tornarei!!…
Da dissipação da minha vida actual preciso sair e não é em Exterior que a Vida se me
Transformará, a Vontade restabelecida, arrastando-me de novo, é que interiormente transfigurará
a Vida num Sonho Alucinatório de Força Extática! Primeiro arranjarei o que já sinto como Alma
e depois, ocultamente e espontaneamente, o que ainda sinto como Exterior será transfigurado em
Mim… De abismo em abismo espiritual cada vez me entranharei mais em Mim que Me
erguendo à Pura Harmonia, à Condensação Pura de Força, à Condensação em Si, Força em Si,
todo finalmente Me Transcenderei… E assim, a pouco e pouco a Minha Grande Ambição se
realizará!
Dizia-me o Santa Rita com quem tive de cortar relações para evitar impertinências e
grosserias, que Eu, sempre apático, sempre sonâmbulo, não vivia, era um Cadáver… Ele é que
sabe lá o que é Viver e o que é Ambição!… Apenas pretende ser cuidadosamente amimado como
homem enquanto que Eu não Quero adulações dissolventes, não Quero ser Homem porque
Aspiro antes, erguer-me a Deus…! Toda a minha apatia perante as ofensas materiais, a ausência
de paixão em Mim só provém do Meu excessivo Orgulho, da Minha Grandeza Inco-
mensurável!…

Desculpe-me, meu querido amigo esta Enormidade Imperdoável e que ela apenas sirva para
lhe inspirar um novo livro de novelas. Que a Minha Vida possui milhares de trechos
inspiradores… Totalmente a escreverei numa Obra em mil volumes.
Abraça-o o seu muito amigo e admirador

Raul Leal

1 Palavra ilegível.
Dezembro de 1916

Meu querido amigo

É numa grande inquietação, num desassossego enorme que eu lhe escrevo. Como
naturalmente já devia ter previsto pelo meu horóscopo a minha vida tem pesado muitíssimo.
Sabe do meu projecto de me ir alistar como voluntário no exército francês; depois de grandes
dificuldades que me aborreceram muito acabei por desistir. E foi esse um triunfo sombrio que
alcancei sobre a minha alma! A guerra, nas circunstâncias em que me encontro seria quase uma
libertação contudo através de muitas lutas íntimas convenci-me a pouco e pouco que o meu
dever era antes sacrificar-me absolutamente ao estudo, fossem quais fossem as provações por
que eu teria de passar. A perspectiva do futuro era cada vez mais pavorosa mas deixá-lo, eu tinha
que resistir. Outro procedimento seria de um egoísmo acanhado, a tal libertação que satisfaria
em parte os meus interesses materiais prejudicaria muito a minha vida de Espírito. E não calcula
como foi gigantesca a criação estonteante do meu Espírito durante os meses de Agosto e
Setembro contra a depressão enorme em que a miséria galopante me queria prostrar. Ele cada
vez mais resplandeceu por sobre as Trevas apodrecidas da minha existência material! E à medida
que Ele ilumina mais e mais a alma a minha vida se enterra cada vez mais num charco duma
podridão ignominiosa…
O dinheiro que recebo de Lisboa vem consideravelmente diminuído e essa gente mostra
tendências claras de me abandonar por completo. As minhas cartas de revolta e aflição para nada
têm servido. São uns cães…
Em Setembro para fugir ao despedaçamento Angustioso em que me lançava um meio
profundamente depressivo deixei Madrid mas evitei a Depressão para cair num abismo de
Opressão cem vezes mais tenebroso. Não pode imaginar a sublimidade lúgubre de Toledo. É
uma fortaleza infernal de Morte. Parece que milhões de espectros nos subjugam e nos
comprimem astralmente sob uma hipnose sombria. Aqui tornamo-nos duendes abismicamente
petrificantes. O Génio requintadamente lúgubre da Inquisição envolve-nos ainda num manto
negro de nuvens sinistras tal como os panos que cobrem os caixões… No dia de defuntos fui ao
Cemitério. Saí apavorado porque tudo em Toledo apavora, petrifica! Estava um dia de sol mas
Toledo possui o poder mágico de tornar o Sol em Trevas…
Foi pois num abismo de Vácuo que me precipitei e todos os sintomas horríveis duma
tragédia formidável eu tenho sentido já. Logo que cheguei sofri três dias seguidos de fome
absoluta precedidos de seis dum jejum rigorosíssimo. Não dava já um passo que não
cambaleasse estonteado e resolvi pedir então à dona da pensão em que estou que me desse de
comer até me vir dinheiro. Como ela é boa mulher acedeu ao meu pedido. Eu tinha alugado
apenas um quarto com tenção de comer nas Tabernas mas visto não me chegar o dinheiro que eu
esperava, fui forçado a comer na pensão. Quarto e cozinha custam-me três pesetas diárias mais
do que eu tencionava gastar, d’outra forma porém, não teria que comer. Contudo o dinheiro que
vem agora de Lisboa não chega para essa despesa e o resultado é eu dever sempre imenso. Agora
por exemplo a minha dívida sobe a mais de um mês. Como poderei aguentar isso? Em breve a
mulher corre comigo e terei de sofrer além da fome todos os horrores do frio e da neve que tem
já sido abundante. Porque eu não tenho agasalho algum, a camisola é de seda, é pois finíssima, o
fato não é muito forte e os meus sobretudos há muito que os perdi! Ando todo esfarrapado a
ponto de a lavadeira dizer que não pode coser mais as minhas camisas já transformadas em
trapos apodrecidos (…) e como sou forçado a mudar de roupa só de oito em oito dias visto
possuir apenas duas peças de cada uma, tiro-a todos os domingos num estado miserável de
porcaria tanto mais que tendo constantemente no corpo furúnculos e feridas sifilíticas estas
enchem de pus e de sangue tudo que está em contacto com elas. O Espírito cada vez brilha mais
mas através duma crescente decomposição de matéria e de vida. É porque as quer destruir por
completo? É porque quer dominar por si só como Astro resplandecente de Além?… Talvez mas
então… é a Morte!
………………………………………………………
Depois, por muito grandes que tenham sido os meus sofrimentos ainda não correspondem à
grandeza Lúgubre de Toledo. É uma Tragédia Formidável que eu tenho de viver ainda. Isto é
lógico, é terrivelmente lógico! Para este inverno pressinto coisas espantosas. Será a Sífilis que
acabará de vez com a Carne? Tenho sentido já sintomas sombriamente estonteantes de Loucura
que o Poder do meu Espírito tem conseguido dominar; em Loucura agonizarei? Ou perdido no
Gelo e na Fome, suportarei um delírio cem vezes mais horrível?… Seja como for só vejo Trevas
e Trevas de Vácuo…
Promete-me o Fernando Pessoa um Triunfo Glorioso para daqui a nove anos. Sim, mas isso é
se eu viver. O meu horóscopo não indicará agora uma época possível de crise que poderá ser
mortal? Podem-se reunir agora os mais pavorosos aspectos astrológicos que só no caso de não
indicarem morte, o que talvez não seja fácil de averiguar, possam então ser seguidos de outros
que pressagiem Luz, que pressagiem Glória! E que estou atravessando um grande perigo há dois
factos que o provam bem. O Fernando Pessoa só quis falar-me de Julho e foi realmente a partir
de Agosto que a minha vida se afundou muitíssimo. Além disso, aconselhando-me com toda a
alma a não partir para a guerra você disse-me que eu não devia de modo algum «tentar o
Destino». Ora se o meu horóscopo não marcasse um aspecto Terrível havia necessidade de você
falar-me assim, procurando ansiosamente evitar-me um perigo excessivamente iminente?… Seja
como for, por tudo lhe peço, meu querido Fernando Pessoa, que me tire dessa incerteza. Quer me
diga coisas horríveis quer acalme os meus Tenebrosos pressentimentos, diga-me com toda a
sinceridade, sem evasivas algumas, o que posso esperar, essa incerteza em que estou é que é para
mim apavorante. E olhe que espero tudo cheio de audácia, quase com volúpia. Não quero despe-
daçar-me em Vácuo, quero tornar-me o Vácuo, mas como pressinto que à Prova Máxima só
agora o meu Espírito se irá submeter e como apesar de tudo confio ainda na Vitória é com
volúpia que quase a desejo para que a Minha Grandeza se imponha em Infinito!… Muitas vezes
senti, em tempos, terrores convulsionantes de Astral, tudo era espectros em volta para me
oprimirem mas tanto tanto me tocavam a Alma que enfim era Ela que os absorvia num gesto
violento de Morte! A atracção hipnótica crescia tanto, tanto que o Vácuo-Fantasma e eu
tornávamo-nos um só Eu! E então não era mais despedaçado pelas trevas porque tornava-me as
próprias Trevas. Elas tanto me queriam esmagar que, entranhando-se em mim, me transmitiam
todo o seu Génio divino, todo o seu Poder Incomensurável em que todo Me Transfigurava.
Trocavam-me tão de perto para me despedaçarem que se tornavam Eu. E assim, por momentos,
de vítima de Deus eu tornava-me Deus! Era a sua acção excessiva que ele Divinizava. Não será
esse o Presságio Glorioso do que hoje se passará? De vítima sangrenta da Morte não me tornarei
a própria Morte dominando a Vida?… Sim, o embruxado se tornará Mago! Nisso confio e
portanto não temo a Prova Máxima que mais Engrandecerá o Meu Espírito, Infinitizando-o…
Adeus, meu querido Fernando Pessoa, abraça-o
seu muito amigo e constante admirador

Raul Leal

2. Plaza de S. Gines
Toledo
Meu Querido João Gaspar Simões

Não teve deveras muita sorte, o Aleister Crowley, no meio circular (intelectual) português. O
meu querido amigo, como forma de esclarecimento para leitor incauto, avisa que se trata de um
«charlatão-mago inglês», figura que não existe nem na teoria nem na prática. Se à sua probidade
intelectual — à conformação dela — repugna o Ocultismo, seria em todo o caso mais ponderado
chamar-lhe charlatão e mago, sem hífen, já que o rosto da luz deve formá-lo a sombra e não
existe água sem terra por onde corra. Responde por isso a quase verdade de um corpo humano
esfolado vivo, e a quase mentira do corpo vivo não esfolado, como na pintura de O Julgamento
de Cambyse, do Hospital de S. João de Bruges. Viu-a? Melhor não ver. Eu daqui, vejo-a, com
horrível nitidez. E é logo na carta onde tento «apresentar-lhe» o Crowley, em termos que julguei
audíveis para si e para mim possíveis, que o meu amigo lança aquela Nota de pé de página!
Concordará comigo, ou não, que ela é um apelo à consciência burguesa (ia dizer: idiota) do leitor
assim advertido? Eu, a si, dizia-lhe, apenas: «O Mestre Therion não é heterónimo meu; é
simplesmente o «nome supremo» do poeta, mago, astrólogo e «mistério» inglês que em vulgar se
chama (ou chamava) Aleister Crowley, que também se designava por «A Besta 666». O emprego
reiterado do pretérito leva-me a crer que, à data, eu continuava motivado pelo episódio da morte
do «poeta, mago e astrólogo» (insisto, perdoa-me?) na Boca do Inferno, em Cascais, episódio
inteiramente montado por ele e coadjuvado por mim e pelo Augusto Ferreira Gomes, que
tampouco é, ou era, um mero redactor de jornais, como o supõe o herdeiro dos papéis de
Crowley, John Symonds.
Na ignorância sensitiva que vi instalar-se na inteligência portuguesa julgo que o Casais
(Adolfo Casais Monteiro), fez melhor, mais limpo (sem ironia o digo): errou por conta própria e
não afligiu ninguém, quando, como aviso de recepção da minha, e única, tradução portuguesa do
«Himno a Pan» do Crowley, escreveu: «Dado por Fernando Pessoa como tradução de um
original que ele atribui a um autor inexistente.»
Elevar-me a um Chatterton da era do Futurismo é obra que eu já reservara para um dos meus
cúmulos de insinceridade mais Campos, se se lembra daquele meu «Diário» de pouco página
(Maio-Junho 1906), onde apontei: «Nada de importante. Li Chatterton», e, com o mesmo passo,
eliminar da existência mundi um poeta, mago e astrólogo, e mistério inglês, com mais de uma
centena de obras publicadas — as Confessions of Aleister Crowley, que espero ainda estejam nas
minhas estantes, são a septuagésima nona publicação dele, e o Magick, que ele pessoalmente me
enviou, a nonagésima sexta. Não faz alguma pena a extraordinária qualidade de investigação
exacta da Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que eu visivelmente não li, ou o Teixeira Rêgo da
Nova Teoria do Sacrifício, e mesmo do O Encoberto e de Os Cavaleiros do Amor, do Sampaio
Bruno?
Mas vejo que divago, derivo, saio do essencial para o supérfluo, e do que quero realmente
dizer-lhe ainda não veio palavra. Sem orgulho, ou vaidade, que é disposição de ânimo ainda mais
ridícula, creio que pouca gente teve por quinhão uma capacidade de discurso mental, equiparável
ao meu. Não me refiro a verdades, que é coisa que todos têm (como se tem um sexo, não?) mas
ao exercício para o centro delas, que exactamente não existe, para o tiro ao alvo sem alvo, que é
já coisa de poucos. Pois esse rigor na exposição e no método, que eu alicerçava na regra de três
simples, está-me a sair do bolso, onde o vejo apetecer o polígono, a espiral, a hipérbole…
Fez-me mal à cabeça aquela ida dos Prazeres para os Jerónimos. Com o abrir da urna caiu-
me, desfeito em pó, muito cabelo, e o meu fato, até aí incólume, entrou em corrupção acelerada.
A névoa que cultivei à minha volta, nas rodas de amigos — a tal tão invocada afabilidade pra-
zenteira minha — procura-me agora para seu interior. Há muito que não durmo e falta-me a
máquina de escrever, o tablado onde fazia evoluir os meus actores ante os quais eu só era uma
espécie de encarregado do órgão de luzes que manejava a velocidades incríveis, com o
virtuosismo do pianista, a absoluta insciência da nota seguinte a ferir e o total imprescindível
olvido das notas já dedilhadas. O relâmpago contínuo que não deixava lugar ao trovão.
Há que rever a minha teoria da libertação da mente pela paragem do corpo e atravessar de
vez toda a zona de sombra do Monte Abiegno; escalar-lhe a saída para a luz, que não é só do
Christian Rosenkreutz.
Pois o que eu quero dizer-lhe e espero saia agora sem mais arredores, é que o principal e
talvez único responsável do desconhecimento entre nós da vida e obra do Aleister Crowley, sou
eu, o Fernando Pessoa. Em parte, sim, porque sabendo eu bastante mais que o bastante para não
levar os outros, sobretudo se amigos, a cair em ligeirezas como a sua, ou em dislates como o do
Casais, tampouco estava eu na posse inteira do que com o Crowley se passava ou havia passado
já. Que ele era um mago, ou todo um extraordinário esforço para o ser sobejavam, para que o
soubesse eu, os livros que dele tenho. Que ele era um poeta de espécie até então desconhecida,
soube-o não só do «Himno a Pan», prova e marca de talento geralmente reconhecida mas mui
provavelmente só passível de entendimento por quem na posse do Princípio que o rege e do fim
a que se destina. Soube-o de poemas como o «The Sevenfold Sacrament», grito de um desespero
e de um horror tão intenso pela condição humana que não vejo nada que se lhe compare.
Para ascender a Mago, Crowley criou a sua própria Ordem, a Ordem da Estrela de Prata, mal
pôde obter de McGreggor Matters, sucessivamente, os graus de Neófito, Zelador, Teórico e
Prático, que o levam a ser confirmado no grau de Adepto Menor de uma Ordem Segunda,
adstrita à Golden Dawn, mas a única que dava acesso ao Poder e à Prática da Magia.
Para ascender a Poeta, Crowley publica, como primícias, Aceldama e White Stains. O título
da primeira significa campo de sangue, lugar de carnificina, e o texto, entre outras abomináveis
coisas, dá página à prática da coprofagia. Quanto às White Stains, foram consideradas por Peter
Fhyer, «autoridade britânica em matéria de erotismo», «a obra mais obscena jamais publicada em
língua inglesa». No entanto, Crowley, nas Confissões afirma que elas «são a prova da minha
inocência, mais além do humano». Impressas em Amsterdam, foram destruídas na quase
totalidade pelas autoridades aduaneiras inglesas.
E em parte, sim, porque o mais que bastante que eu sabia não era facilmente comunicável,
fosse a si, João Gaspar Simões, fosse ao Casais Monteiro. Provam-no as minhas reticências
quanto à revelação da génese do meu poema «O Último Sortilégio» — reticências que hoje
considero fúteis, já que tal génese pode ser soletrada em qualquer sofrível compêndio da espécie
— e mais o provam as disposições contraditórias em que o Gaspar Simões me viu cair quanto à
publicação ou não do «Himno a Pan» — primeiro, «só para você ler» («e o não mostrar a muita
gente»), depois, para publicar mas só sob caução de autorização do autor — que aliás eu não
sabia onde estava — e, enfim, votos e ânsia de vê-lo impresso, suponho que mesmo antes de
recebida carta do Mago perguntando-me pela publicação.
Mas culpo-me, isso sim, de ter fechado, para sempre, qualquer referência minha, fosse à obra,
fosse à pessoa do Crowley, com aquele algo degradante a fazer irónico: «O Crowley, que depois
de se suicidar passou a residir na Alemanha…» Como me culpo, sim, de, após ter-lhe negado tão
peremptoriamente o acesso à génese de «O Último Sortilégio» lhe ter posto nas mãos o «Himno
a Pan», produto bem mais temível da cabeça do Mago, com o qual lhe fazia, a si, não ver «o que
é um poema realmente mágico», palavras, estas, também bastante côncavas, posto que, se
poema, eliminava o princípio mágico e se «realmente mágico» nunca seria apenas um poema.
Mas agora que, por assim dizer, já estamos ambos… e nada pode alterar o que foi bem ou
mal na evasiva com que mais de uma vez correspondi à estima sem limites e à atenção
incansável com que o Gaspar Simões sempre quis abeirar-se de mim, lutando depois (como
ninguém mais, que eu veja) por salvar do esquecimento, se não da destruição, a quase totalidade
da minha obra, quero, por todas as vezes em que o não fiz, ou fiz só distraidamente, dar-lhe
prova, a mais alta, da minha gratidão, que eu queria fosse também o meu extirpar-me do pecado
original em que incorri com o Crowley — o silêncio, a mentira por omissão, que acabou por
atingi-lo a si. O que o Casais Monteiro disse, ou disse que eu disse, é irrelevante. Fumisterie
minha em tarde de calor, café a mais ou a menos à mesa do «Montanha», deixemo-la a fumegar.
O Casais era — é — um poeta a quem só o real apetece, sobrando-lhe pouco para o imaginário.
Assim, pelo «Himno a Pan»:
O «Himno a Pan» foi escrito por Aleister Crowley em 1913, em Moscovo, e pela primeira
vez publicado em Nova Iorque, quatro anos depois, em folha única de papel dobrado em quatro e
impresso dos dois lados. Que não vi. Possível é que já nessa altura o Mago tivesse cruzado
Lisboa, pois é no paquete norte-americano «Lusitânia» que ruma aos Estados Unidos no intento
de fazer construir uma arca que sobrevivesse ao Eon de que ele se dizia o Anunciador, o Eon de
Horus-Thoth. Nas suas próprias palavras, uma Arca «que pudesse preservar o Phalus Sagrado de
forma a que, ainda que destruída a Tradição, e com ela as mentes que hoje são seu garante, seja
dado aos vindouros recobrar a Palavra Perdida».
Como direi melhor agora, o «Himno» não é, em absoluto, um poema, no âmbito daquilo que
os poetas recebem e prosseguem, por tradição sua, literária, mas sim um texto litúrgico, servindo
uma tradição muito outra que pode ser buscada nos primeiros livros Proféticos — o Crowley
tinha como um dos seus guias o Livro, ou os Livros, de Enoch — mas também na Índia
multimilenar, no suposto Zoroastro e no suposto Hermes. (Não estou a dizer-lhe que o «Himno a
Pã» contenha, em si-mesmo, tanta coisa — a que aliás faltariam, então, muitas outras, — mas
sim que é resultante delas.)
O Thelema em que Crowley se individualiza e de que faz regra principal, é o já hoje
conhecido em toda a parte de que Portugal não faz parte: «Faz o que queiras será toda a Lei. O
Amor, segundo A Vontade». Com o que, destrói a fronteira existente, pelo menos na
modernidade, entre Magia Branca e Magia Negra, entre o Deus-Princípio de Luz Imaculada, que
há que invocar e adorar, e o Deus-Princípio Negro, o Senhor das Trevas, que é preciso abater e
denegar. Na verdade, invoca o Caos primitivo, pré-existente à Criação, servindo-se dos Nomes-
Potestades simbólicos, deuses, anjos, demónios, que a Criação suscitou. É neste sentido que pode
afirmar (como aliás ainda hoje o Sufismo) que Deus não existe ou existe apenas no que dele resta
no mais profundo interior da consciência, ou subconsciência, do homem, em companhia do que
Ele-Mesmo, Ele-Os--Deuses, criou. De onde que: «Todo o Homem e toda a Mulher é uma
Estrela, desde que possa e saiba encontrar a sua mais sua Entidade».
Negando e execrando os vinte séculos de Cristianismo, é com a invocação do Nome-Deus-
Pan que Crowley quase sempre inicia os seus ritos, onde o «Himno», a sua declamação pelo
Mago, acompanhado pelos oficiantes paramentados segundo o rito escolhido e projectados por
ingestão de láudano, servia sobretudo para a auto-dissolução da consciência e conseguinte
abandono de toda moral, uso e costume impostos, bem como dos instintos de conservação ou de
auto-defesa da espécie. A recitação era marcada, como nas velhas Sagas, pela percussão de
tambores e outros instrumentos primitivos.
Se reparar bem, na primeira parte do «Himno» invoca-se o deus ausente. Na segunda, é já o
próprio Pan, presente, que fala. «Eu sou Pan!», proclama o Mago. Segue-se — e isto, sim, seria
boa provisão para o leitor incauto, arrebatado pela beleza do «poema» — a prática orgiástica
sagrada, a cópula por detrás, como o centauro a praticava, sendo indiferente a natureza,
masculina ou feminina, do vaso receptor. Porque só a concentração máxima de energia de que o
ser humano é capaz —: o momento mesmo da ejecção do esperma — pode aproximar «a carne
dos teus ossos, a flor da tua vara»; a energia absoluta, sobrenatural: Pan.
Quanto ao Chefe Secreto que devia iluminar os caminhos do Mago e conceder-lhe o mais
alto Poder, sabemos que Crowley o procurou com afinco e não estava seguro de tê-lo
encontrado. Em terreno tão íntimo — segredo maior da Ordem Rosacruciana — debito-lhe as
palavras de MacGregor Mathers:
«Quanto aos chefes Secretos da Ordem a que faço alusão e da qual recebi a Sabedoria do
Segundo Grau, nada posso dizer a seu respeito. Não conheço, sequer, os seus nomes Terrestres.
Conheço-os somente por certos hierónimos secretos, e escassas vezes os vi na sua espécie física;
nessas raras ocasiões concediam-me encontro astral comigo, em carne e osso, e em hora e lugar
previamente fixados. Quanto a mim, creio que sejam humanos e que vivem sobre a Terra; e que
possuem poderes terríveis e sobrenaturais.
Quando um desses encontros tinha lugar em sítios muito frequentados, nada havia na sua
aparência pessoal, ou nas suas vestes, que os distinguisse da gente comum, a não ser um aspecto
e um halo de saúde e de vitalidade transcendental, fosse de jovem ou de idoso o semblante; essa,
a sua característica invariável; por outras palavras: tinham a aparência física que a posse do
Elixir da Vida, segundo tradicionalmente cremos, pode conceder.
Quando o encontro era em lugar isolado de todo o Mundo Exterior, vinham revestidos das
insígnias e dos trajos simbólicos.
Mas o meu contacto pessoal com eles, nessas raras ocasiões, provou-me como era difícil para
um Mortal, por muito avançado que esteja no Ocultismo, suportar a presença física de um
Adepto. Não quero dizer que nesses encontros materiais tenha sentido o intenso esgotamento
físico que sucede a uma forte carga magnética: pelo contrário, tinha a sensação de estar em
contacto com uma força tão terrível que só a posso comparar ao efeito prolongado do que
momentaneamente sente alguém quando, perto de si, cai um raio, durante uma violenta
tempestade; a essa impressão juntava-se uma dificuldade de respirar análoga à sensação de
sufocamento do eterizado; e se era tal o resultado produzido sobre alguém tão experimentado
como eu na Obra Oculta, não posso imaginar que um iniciado menos avançado possa suportar tal
tensão, mesmo por cinco minutos, sem que desfaleça e morra.»
Sobre o Crowley-e-o-seu-Mundo-Mágico e o que dele eu possa ter recebido, permanece
válido o que asseverei em carta do meu punho mas escrita a pedido do Raul Leal, que não sabia
inglês e bem mais do que eu ansiava adentrar-se pelo que se passava na cabeça do Mago:
«Não tenho nada que ver com isso como não tenho nada que ver com coisa nenhuma.» (4-12-
29).
Sobre Ocultismo, Crowley nada me revelou que eu não soubesse já. Sobre a Magick, sim, e
até talvez de mais, no espectro que abordei, embora a muito galope: a fusão ritual do Sagrado e
do Profano, do Espírito e da Matéria, sem, de permeio, nenhum Deus, hebraico, romano,
muçulmano ou persa, tal não se vira antes, tão estentoricamente proclamado, desde o isabelino
John Dee, intérprete-seguidor das Cartas de Enoch, até à assumpção absoluta do Grande Deus
Pan, simultaneamente «a verdadeira natureza do homem», segundo o Ipsíssimo (o Crowley), (e
os gregos também).
Era fatal que tal cisma causasse a maior repelência entre os convictos da Magia Tradicional
Rosacruciana, inclusive da Golden Dawn, que o cobriu de mofas e lhe lançou o anátema do
descrédito por tudo o que era sítio. E que a própria «Besta 666» algumas vezes perguntasse a si-
mesma se não estaria possessa do Demónio (não do diabo apostólico romano, mas de um muito
mais recuado no tempo, cujo nome rotundo não recordo agora) e o fizesse com a mesma aflição
(segundo uns) ou com o mesmo à-vontade (segundo outros) com que declarava:
«Tenho a absoluta certeza de que estive sempre doido, durante toda a minha vida.»
Este, meu querido Gaspar Simões, o processo de dissemelhança do senhor Crowley, Mago, e
do senhor Pessoa, Poeta, «que não tem nada que ver com coisa nenhuma» e não tem a certeza
absoluta de nada, sequer se esteve ou não doido toda a sua vida ou só em partes alíquotas dela.
Mas, tal como os opostos mutuamente se obrigam e por vezes se cruzam, há coincidências
singulares, caminhos de cruz que a mim mesmo perturbam e ainda não pude exorcismar.
No meu poema que começa «Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar…», que eu datei
19-8-1930, ano em que travo correspondência com o Mago, em que me envia os seus livros e,
em Setembro, vem a Lisboa conhecer-me e montar a farsa do desaparecimento na Boca do
Inferno em Cascais; esse poema, digo-lhe, tem quatro abjurgatórias (sobre «a vida», «o amor»,
«a glória», «a fé») que vêm expressas, quase pela mesma ordem, em The Sevenfold Sacrament.
Se eu li ou não li este texto, antes de ter escrito o meu, não sei em verdade dizer — o que não
torna menos inquietante a questão, de importância nula se só literariamente encarada. Maior
relevância, para quem lhe der na moina puxar por ela, terá a questão dos meus heterónimos
observados ao espelho das inumeráveis encarnações que o Mago sofreu, ou gozou (não só em
espírito, entende-se). Aqui, uma linha de fronteira pode ser traçada: a que separa o termo
evocação do termo invocação. Embora isso, serei o primeiro a admitir que os (meus) heteró-
nimos possam ser considerados primos lunares das personalidades que Crowley abundantemente
encarnou, viveu, escreveu, falou, comeu e vestiu, em todos os seus anos de existência terrestre.
E é que, meu Querido Amigo, quando Você veio, com o seu Freud debaixo dos olhos, lançar
os olhos sobre a minha pessoa, já eu os tinha passado sobre infinito de textos como este:
«(Para a concessão do Grau da Travessia do Portal) o Aspirante deve fazer a introspecção e
tomar consciência da evolução que formou o seu espírito tal como agora se lhe apresenta e
funciona. A meditação conduzi-lo-á a deixar de considerar-se a si-mesmo unicamente como um
ser consciente; atingirá sair de si-mesmo como personalidade, como máscara, e, então se esforça
por perceber de que maneira a sua própria máscara surge a outrém; vê-se na consciência de
outrém como um indivíduo que se critica e observa. Meditará sobre as palavras e sobre o poder
das palavras. Surpreender-se-á a enlaçá-las, a jogar com o seu significado, e a mistificar desta
forma os outros e a si-mesmo.» Se quiser dar-se a pena de considerar esta «Travessia» na
finalidade para que tende, e a ausência de um limite nas consequências dela, considerará
também, sem grande esforço, não apenas que andam inúmeras gentes, desde diversos tempos e
lugares, a minar por cima os éditos do seu Freud, mas igualmente devia supor que o Fernando
Pessoa, de «fingidor» (de «aldrabão» como você lançou à cara do Crowley), talvez tivesse
pouquíssimo, embora lhe agradasse ser considerado (por si, sobretudo) como tal. E que noutra
ordem do conhecimento (a ordem a que pertenço), e não também por acaso para além do bem e
do mal, já o Nietzsche pedia para a cara dele «outro disfarce, outra máscara.»
Posso achar graça à ideia de que atrás do meu órgão olfactivo subsiste um pénis assistido
pelos globos oculares direito e esquerdo, mas não é coisa que eu leve para casa. Mais facilmente
creio que me crescem as orelhas até ao tecto quando, no Swinburne, leio que só quando chegar-
mos ao Inferno, se existe, «só então saberemos se o Inferno não é o Paraíso».
Um «charlatão», mesmo «mágico», não seria capaz de escrever isto:
«Fisicamente, sou um cobarde, mas expus-me a todas as formas da doença, do perigo e da
violência; sou de natureza naturalmente delicada, mas obriguei-me a perversões repugnantes, a
comer excrementos e carne humana. Neste momento, desafio o poder da droga a turvar o meu
destino e a distanciar o meu corpo do seu natural. Sou um débil mental e moral, cuja educação
em menino foi coisa tão horrível que transformou toda a minha vontade num ódio sem limites a
esse tempo em que a minha humanidade, não exercitada, estava a converter a minha mente e a
minha alma animal a algo semelhante a um elefante no cio a destruir a paliçada1. E se subjuguei
cada uma das particularidades da minha mente, e construí para mim-mesmo uma moral mais
severa do que qualquer outra existente no mundo, fi-lo apenas para benefício de uma liberdade
absoluta frente a todo o código moral imposto.»
O Ritual 671 da Ordem da Estrela de Prata acolhe palavras de Gauguin. Cito as do Ritual:

«… Não sei quem sou!


Não sei de onde venho!
Não sei para onde vou!…»

Apaixonara-se pela figura moral do grande pintor francês, («o homem mais solitário do
mundo, como eu»), ao ponto de imaginar-se transmisso nele. Pôs-se a pintar, freneticamente, dia
e noite, quando soube que Gauguin pintava nas paredes da «casa» dele, no Tahiti; e, na Abadia-
Thelema do «Faz o que queiras será toda a Lei», dedica-lhe um ritual onde o investe na
dignidade de «um dos maiores Santos da missa gnóstica».
Crowley morreu em 1947 e foi cremado no cemitério de Brighton enquanto alguns dos seus
mais fiéis seguidores entoavam o «Himno a Pã», o que causou distúrbios e algum pavor na
edilidade local.
Enfim, para terminar esta carta e prometer-lhe outra ainda mais excessiva (em tudo), dou-lhe
esta palavra do Irmão Perdurabo ainda não Mago, ainda só escolar do Trinity College em
Cambridge:

«Nunca faças nada que se pareça contigo.»

Seu, muito
Fernando Pessoa

1 «Uma Infância no Inferno» é o prefácio autobiográfico que Crowley escreve para o seu livro A Tragédia do Mundo publicado
em Paris em 1910, com proibição de envio de exemplares para Inglaterra e para os Estados Unidos. Tem, então, 25 anos de idade.
Snr. dr. João Gaspar Simões

Assisti sempre, de lado, e na clausura de um silêncio total, quer aos seus encontros no Café
Montanha com o meu irmão, quer ao epistolário com que ambos honraram a literatura
portuguesa, desde os seus bastidores, por tempo não inferior a cinco anos, e devo-me dizer-lhe
que bastante me impressionou o facto de, quer nas cartas enviadas pelos correios, quer nos
conúbios do Café Montanha, o snr. dr. nunca ter percebido que eu também lá estava, a olhar
muito para si e a fruir o estatuto de voyeur ignorado.
Assim, é no total e geral conhecimento do processo (percebe?) que por esta lhe digo que o
meu irmão não vai escrever-lhe a prometida carta «mais excessiva (em tudo,) do que» etc. Ele
toma por excesso o que é franqueza, por indelicadeza o que é verdade passível de incomodar, por
perda de espaço e tempo o que, pelo contrário, pode ser recuperação de gasto mal empregado.
Essa carta, que o horror a incómodos (seus ou dele) o inibe de escrever, escrevo-lha eu, na
posse de todos os etc. com que vergastei e comi aquela criançada toda em idade de ir para a
marinha de guerra, inglesa, como depois se viu na chatíssima ópera do Benjamin Britten, Billy
Budd, o gago, do conto de Melville, que é bom.
Não deve o snr. dr. poder lembrar-se do trom que por alguns segundos alarmou a assistência,
até aí imersa no encanto de ouvi-lo pronunciar a conferência, nos idos de 1977 crismada
«Fernando Pessoa e a Revista Presença», no intuito de comemorar o quadragésimo aniversário
do aparecimento dessa Revista, mas na verdade apenas e só dedicada à exaltação maluca do
papel nadador-salvador que ela — a «sua» Revista — teria desempenhado no metro e meio de
água onde encontrou os nautas do Orpheu. Não fora, dizia, o snr. dr., o aparelho crítico da
Presença, a consciência crítica da Presença, a atenção crítica da Presença, a imposição crítica da
Presença, e a nau-capitânea do Orpheu — isto é, o meu irmão o leme, o Sá-Carneiro a flâmula, o
Raul Leal, o convés e o Almada a proa — teria tocado o fundo do mar tenebroso e ali ficado
décadas, centúrias, esquecida pelos porcos dos portugueses.
Digo-o porque o não senti perturbado pelo trom que ainda assim foi bastante e fez erguer
quantidade de gente, enquanto o snr. dr. prosseguia incólume, como em discurso gravado, a sua
lauda. Admito possa ter tomado aquele desastre por uma entusiasta salva de palmas e assim nem
haja erguido olhos jubilosos para o merecido laurel. Ponto a seu favor. Mas a verdade é que tudo
foi causa da minha cadeira que abruptamente se desconjuntou e partiu, tão podre estava por
dentro e envernizada por fora, no momento em que o snr. dr. revelava à assistência que o Fernan-
do Pessoa era da seita do Crowley, o bruxo. Isto, ou isso, mais de quarenta anos depois de o meu
irmão lhe ter explicado ao tim-tim não ser correligionário de coisa nenhuma, sequer dele-
mesmo.
Movido pelo que ouvia, soergui-me nas duas pernas, guinei as costas para trás, e foi aí que o
monstro abateu, largando muito pó de bicho e espetando as tiras do vime estragado em forma de
coroa de espinhos, o que, estupidamente, por assim dizer, me fez lembrar a quantidade de Cristos
que o também co-fundador da Presença, o poeta José Régio, coleccionava ao pacote, à centena,
ao milhar, Cristos baratos, INRIS de artesanato, de cem a duzentos escudos o par. E anjinhos
também, de igual portagem. E nem me atrevi a pensar no que podia suceder-nos a todos se este
coleccionador fosse rico. Cristos do Luxemburgo e da América Mormon, INRIS da Ilha de Elba
e do Zebú. Por um transfert que o criador de Éloi ou Romance numa Cabeça decerto
compreenderá, deixei de ouvir as suas palavras para transportar-me àquela tarde antiga em que o
snr. dr. levou pelo bico, para o Café Montanha, o poeta de As Encruzilhadas de Deus, para o
apresentar ao meu irmão. Digo «pelo bico», porque mal entrou na casa me pareceu um pinguim
recuperado da Antártida, e, quando se sentou, o colarinho dele mal aflorava o mármore. Mesas
altas, é verdade, e não é meu costume criticar trabalhadores do espírito pela altura a que chegam
com o corpo. Soube porém, mais tarde — por informação sua, snr. dr. — que o autor do Jogo da
Cabra Cega, vivendo nos termos da província, odiava tudo o que poeta nado ou criado em
Lisboa. O que, se não é justificativa minha, podia servir de nota de pé de página para os Amigos
Sinceros, uma das obras do snr. dr. mais representativas da Presença em prosa.
Quando pude recuperar-me, estava V. a dizer que o Fernando Pessoa era melhor poeta do que
crítico. Foi isto o que o auditório efectivamente colheu, embora a seta viesse temperada em mais
subtis venenos. Estes: «Aquele que é o maior poeta português de hoje mostra não ser tão
admirável crítico literário».
Muito de passagem para outros cais creio eu que de maior tonelagem, gostava de pôr à vista
do snr. dr. que figuras como essa de «o maior poeta português de hoje», figuras que, hoje, se
passaram para outras não menos palermas, como a de «fulano, o maior poeta português vivo»,
são letras muito perigosas e passíveis de muita ondulação, pois, uma vez ultrapassado o «hoje», e
enterrado o «vivo», este fica pronto para passar à fase de «menor poeta morto». Palavras tais
significam, em língua portuguesa, coisa nenhuma e dignificam, exactamente, ninguém.
Mas tive de ouvir ainda que aquelas suas palavras não eram metáfora sua. Inteligência ou
prudência, não fosse o diabo merendá-las, eram retiradas do reportório crítico do dr. Adolfo
Casais Monteiro que se sentiu muito quando o meu irmão fez e deixou publicar um prefácio para
um livro de versos de um tal Luís Pedro. Que o livro (e o prefácio) não eram peças de museu
logo eu o disse ao Fernando, que riu, ciciou, sem as deixar sair da boca, umas palavras tipo latim
bárbaro, e, em suma, não deu resposta. No emaranhado, pareceu-me que dizia para si-mesmo
poemas dele, como aquele em que afirma… «nunca encontrei parceiro», ou daquele outro,
incompleto, que dedicou à morte do Sá-Carneiro: «Hoje, falho de ti, sou dois a sós.» Que eu,
pelo contrário, acho admirável que o homem que escreveu a «Ode Marítima», e tem o
inacreditável auto-da-fé de atribuí-la a outro, aceda a apresentar o livro de um burro. Se é de
burro, porque, à excepção do dr. Casais Monteiro, não sei de mais ninguém que lhe tenha posto a
vista em cima. E muito me erotiza, exalta, e enaltece, que o tal prefácio não fosse para o Dante.
Com sensibilidade de garça — que a tem — e memória de elefante — que o não deslustra —
tinha o snr. dr. de chamar à colação a menoridade crítica, literária, do meu irmão. Mas igual
sensibilidade e memória tenho eu, em alto grado, e posso assegurar-lhe que vi o Fernando muito
aflito quando V. lhe pediu o parecer crítico dele para o livro Temas, que V. acabava de publicar,
ano 1929.
Não é verdade, como ele a outro propósito lhe escreveu, «Que eu saiba ou repare, só a falta
de dinheiro (no próprio momento) ou em tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me
deprimir.» Ou será verdade mas só no sentido de ele ter reparado que vinha aí um tempo de
trovoada. Pouco lhe importava, evidentemente, malquistar um crítico, mas afligia-o magoar um
amigo. E, de promessa em promessa, de evasiva em evasiva, vêmo-lo deixar passar 2 anos (dois)
sem que escreva, ou lhe envie, a almejada crítica.
Com o que, o snr. dr. volta à carga, enviando-lhe o seu interessante livro O Mistério da
Poesia, que sai em Novembro de 1931 e reimprime o estudo, ou ensaio, ou artigo, já aparecido
nos Temas, sobre o meu irmão. Aí, ele sente já não ser possível protelar por mais tempo («não é
decente, nem bonito») a factura, «qualquer ela seja», que lhe deve, e o que nela terá de dizer-lhe.
E ainda assim vai de salamaleque a carta-aviso-de-recepção do Mistério:
«… Prefiro, pois, desde já e simplesmente lho agradecer, deixando para depois da tal leitura
mais atenta, os comentários, quaisquer que sejam». (3-12-31). Insere, no entanto, (vai começar a
borrasca!), uns prolegómenos menos agradáveis:
«[…] Faço, mas sob reserva de emenda possível, uma reserva: no relance, pareceu-me que V.
(tende) para explicar de mais. Na carta que daqui a dias lhe escreverei, esclarecerei esta frase, se
a não tiver que retirar.»
Se a não tiver que retirar! O meu irmão, snr. dr. Gaspar Simões, era um Santo! Que de
cautelas, quanta finura, que de antecipadas desculpas pelo que sabe ter de escrever a seguir! E o
que escreve a seguir é uma tapona mestra no aparelho crítico da Presença, na consciência crítica
da Presença, na atenção crítica da Presença, na imposição crítica da Presença, e nos seus livros
Temas e O Mistério da Poesia. Diz-lhe coisas horríveis, devastadoras, continuamente adversas,
tirante o elogio que faz de conta e que faz de ponte.
E é por isso e, infelizmente e unicamente por isso, que V. tinha de ir às terras do Casais
Monteiro procurar a menoridade crítica, literária, do meu irmão, extravasando o assunto para o
Luís Pedro, ajudante de guarda-livros cujos poemas o Fernando Pessoa passava à máquina para o
levar à Revista Descobrimento, o que acho admirável, já disse, e de pouca cópia entre toda a
ilustrandade poética portuguesa.
Mas, advirto-me agora, com inenarrável angústia — e por informe seu, snr. dr. — que ao
Casais Monteiro importava uma ova que o Anacrónicos do L.P. fosse bom ou mau livro, melhor,
pior, ou igual a muita copla à data publicada por pinhas de vates. O que franziu a testa do C.M.
até ao pentagrama foi, no inditoso prefácio, a referência a uma tal ou qual poesia moderna que
mais não seria do que «prosa com pausas artificiais», no que ele viu barrete para os poemas dele.
Ouvi ainda, do snr. dr., que o meu irmão viciava a data de feitura dos seus poemas, quando o
achava útil e necessário. Ponto cuja importância, e o facto de havê-la posto, nem o snr. dr.
certamente imagina. Mas mais interessante será dar alguma atenção ao facto de V. também não
ter percebido que aquele reparo do Pessoa ao poema que começa: «O sino da minha aldeia…» é,
verdadeiramente, um lamento, e não uma introspecção de ironias ou verve de fingidor. O poeta
deplora que o sino da sua aldeia seja o da Igreja dos Mártires, no Chiado, e não um ermo perdido
do mundo, entre serranias. O meu irmão, dr. Gaspar Simões, foi sempre um aldeão. Pior que
aldeão: um saloio remediado, como algumas vezes, com muito amor, lhe chamei. Pois não é
desgastante que numa cidade tão imperial como Lisboa, com tanta e tão diversa concentração
urbana, tanta esplanada, tanto café, tanto quiosque, tanta rua, tanto elevador, tanto carro
eléctrico, tanto side-car, tanto cinema, tanto teatro, tantas avenidas, tanta loja, tantos armazéns,
tanto escritório, tanta luz acesa toda a noite e tanta polícia, o meu irmão só veja o céu, o vento, a
onda, o rio, o monte, a estrada, a fonte, o luar, «o entardecer da terra, sopro do longo outono»,
o lago, a folha, a árvore, rebanhos, pastores perdidos, a montanha, «o trigal» sobre o qual
repousa «um sol parado», a floresta, o moinho, a quinta (onde secaram todas as fontes), o sol na
eira, a «luz no tojo e no brejo» e por aí fora? E que até o poema onde ele tenta fixar a lume
esperto o que ele quer que acreditemos ser «o cerne da sua filosofia» seja dirigido a uma ceifeira
que ele nunca viu nem ouviu em toda a sua vida?
Tenho para mim que o rocinante que assina M.C.V. e lhe chamou «aldeão do mundo a
haver», nisso, acertou, retirado o «mundo», e o «a haver», que bem se vê serem jeito da
redondilha. E que este senhor Aldeia (Hamlet, se quisermos ser magnânimos) é a vingança do
Pascoaes metido na cabeça do meu irmão e a rir-se dele, a bandeiras desfraldadas, por toda a
eternidade! Que ele tenha descarregado sobre mim todo o seu cosmopolitismo, todo o seu
internacionalismo, todo o seu sado-masoquismo, sobre mim, que sou de Tavira que é tudo menos
uma aldeia (vá lá ver), não tira uma vírgula ao período. Saloio ainda quando taxa de obscenos o
Antinous e o «Epithalamium». Que tem aquilo de obsceno, dir-me-á o snr. dr.? Obsceno, talvez o
tremor que o tomou quando, uma vez, como o Dante Gabriel Rossetti fez com o Swinburne, lhe
levei ao quarto uma mulher da vida. Ele saiu disparado para a rua e nessa noite foi dormir ao
Hotel Frankfurt com o Chevalier de Pas, por acaso inaudito encontrado no mesmo hotel, e a
quem ele, ainda menino, tanto escrevera. Significa que tenham feito «coisas» um ou outro ou
ambos a par? Nada disso. Significa o que significa, verdadeiramente, O Mistério da Poesia.

Trully yours
Álvaro de Campos

P.S. — Elevado ao cuidado de ler antes de enviar, fere-me o receio de que o snr. dr. possa
considerar-me como mais um nas hostes dos seus inimigos. Não faça isso, snr. dr.! Eu quero-lhe
muito, como lhe quer o Fernando, o Alberto e o Ricardo. O que todos à uma lhe devemos, a si e
ao Luís de Montalvor primeiro, depois a si e a si só, não tem paga possível na terra, no céu ou no
mar. E para seu consolo, comunico-lhe que saiu não há muito exportada para o Brasil, uma série
de 292 (duzentos e noventa e dois) inéditos, dos quais para sermos benévolos, cento e oitenta e
quatro são para pôr na retrete e puxar o autoclismo, energicamente. Quer ver?:

«Vento que passas


Nos pinheirais
Quantas desgraças
Lembram teus ais.

Quanta tristeza
Sem o perdão
De chorar, pesa
No teu coração.

E ó vento vago
Das solidões
Traz um afago
Aos corações.

À dor que ignoras


Presta os teus ais,
Vento que choras
Nos pinheirais.»

Gostou? Veja outro:

«Flor que não dura


Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.
……………………………………

Papéis do Luís Pedro? Meninas ao piano a esganiçar in pecto Soares dos Passos? Não. São
mesmo do meu irmão e de, respectivamente, 1921 e 1924. Implacavelmente arrancados ao baú
de onde nunca deviam ter saído. E de então para cá chove inédito, verso e prosa, que dá medo
sair à rua. Completos, inacabados, truncados — não escapa rato!

P.S. 2 — Dá-me um grande intervalo sempre que penso que o dr. Casais também censurou ao
«Prezado Camarada» a publicação da Mensagem. E que publicou com pompa e circunstância
uma «Tábua Bibliográfica» do punho do meu irmão, escrita na intenção de limpar com ela o rabo
mal fosse à casa de banho. Em vez disso, deu-a às casas de banho da revista «Presença», onde o
Casais a apanhou já usada, reimprimindo dela a parte mais etc., se não francamente de colapso
mental parietal matinal.

Seu, sempre,
A. de Campos

— A fechar, tropecei naquela do «Para além de outro Oceano», que o C. Pacheco publicou na
Revista Centauro, em 1916, ser «obra surrealista». Muito exquis, deveras. O parecer é seu, tem o
seu cunho, e, seguindo a lusa tradição actual no todo e neste pormenor, também não vou discutir.
Mas o que a mim me entra é que sendo esse texto um dos muito chatos que o Fernando António
não baixou ao bidé, e não sabendo você nem os seus etcs. como levá-lo a despacho ao Diário de
Notícias, de Lisboa, lembrou-lhe essa elegância de dar o Pessoa como precursor de alguma coisa,
mesmo de coisa tão mínima «e inimiga do modo de ser lírico português», como o Surrealismo, e
assim o arma em ante dos Aragons, dos Éluards e dos Pérets, surrealistas franceses. Mas o
Fernando, quando me leu «O Marinheiro» — «Drama Extático» e me viu de olhos a chorar de
sono e de conjuntivite nervosa, disse-me, com a maior placidez de espírito e de rosto:
«O meu melhor instrumento de sopro é, em verso e prosa, não ser precursor de ninguém.»
OUTROS POEMAS
A ESTRELA

O copo nupcial.
O carro.
A casa.

O beijo universal de Arcturus e As-


tralis, um a noite sem estrela, o outro
a estrela sem noite.

10 + 3, 10 + 7. Lua em alemão.
O BERLINDE BERG

Oposição Forma-Conteúdo muito usada pela crítica.


Escat.ia:
A forma: o berlinde.
O conteúdo: o Lindberg.

Resolução da antinomia:
O BERLINDBERG
LEVE

Leve
o roupão que foste
e o horror de sê-lo

Leve
o traço vermelho
no cabelo

Leve
o em forma de velho
rosto aflito

Leve
o jasmim e a neve
sobre o rito
Arrumaram-se à luz de um candeeiro
a recolher esmolas.
Mas quem passa, passa. Nem sempre há dinheiro.
É assim mesmo!… — Bolas!

Não fazem pena. Não fazem coisa alguma.


Estão ali.
Ela, tem a boca cheia de espuma
e ele, cego, sorri.
POEMA-SEMÁFORO

Graças a altas cumplicidades


Deus
escapa-se

Curiosa atitude da Imprensa


Não estou a pensar num record
diz
match-estrela
mas quero
a margem esquerda
do seu regresso

A marcha
a fome
as mãos vagas

não resistiram
e já a Ásia (margem direita)
procede a golpes
de inverno ciclone

O que foi vendido


há 20 000 anos
é bem o corpo
de um marselhês
silencioso
e tímido

E
eis
o Gás
UR
o homem
ao vosso gosto

Campos
olhos
vendas
cortejo
querem dançar
o Circo Casamento

Não vês? NOÉ abre as suas portas

É PRECISO
QUEBRAR
O ARSÉNICO
PASSAGEM DE CRUZEIRO SEIXAS EM ÁFRICA

Este é o segredo
para todos os usos

Rapto desobediência exaltação e morte


INVESTIGAÇÃO SEMÂNTICA

Eu mastrucharco
tu mastrucharcas
ele mastrucharca
nós mastrurcharcamos
vós mastrucharcais
eles mastrucharcam

Eu charcomastrava
tu charcomastravas
ele charcomastrava
nós charcomastrávamos
vós charcomastráveis
eles charcomastravam

Eu mastrucharquei-te
tu mastrucharcaste-me
ele mastrucharcou-se
nós mastrucharcámos
vós mastrucharcastes
eles mastrucharcaram-se

Eu charcomastrarei
tu charcomastrarás
ele charcomastrará
nós charcomastraremos
vós charcomastrareis
eles charcomastrarão

Eu mastrucharcaria
tu mastrucharcarias
ele mastrucharcaria
nós mastrucharcar-nos-emos
vós mastrucharcar-vos-eis
eles mastrucharcar-nos-ão

Se eu te mastrucharcasse
se tu me charcomastrasses
se ele se mastrucharcasse
se nós nos charcomastrássemos
se vós vos mastrucharcásseis
se eles se charcomastrassem…

Eu desço
tu sobes
ele sua
nós sabemos
vós colheis
eles salgam

Eu vi
tu viste
ele Victor
nós vimos
vós vistes
ele Victor

Eu vendi
tu vendeste
ele vendeu
nós vendámos
vós vendestes
ele Victor

Eu ventretenho
tu ventretens
ele ventretem
nós ventretemos
vós ventretendes
eles ventretêm

Eu ventretinha
tu ventretinhas
ele ventretinha
nós ventretínhamos
vós ventretínheis
eles ventretinham

Eu ventretive-te
tu ventretiveste-te
ele ventreteve-se
nós ventretivemos-te
vós ventretiveste-vos
eles ventretiveram-te

Eu ventreter-te-ei
tu ventreter-me-ás
ele ventreter-se-á
nós ventre-ternos-emos
vós ventre-ternos-eis
eles ventreter-se-ão

Se eu ventretivesse…
LITERATURA FRANCESA

… Et pourtant, cher monsieur, il faut croire aux cadavres.


Les cadavres existent. Ils sont substantiels. Ils sont la nourriture folle de la vie, de cette vie que
vous ne vivez plus.

… On a vu cadavres aller au cinema.


CARTA DOS ADOLESCENTES NO FORNO

Sem pulmões é mais belo do que a vida


sem pernas é mais perto e mais comprido
sem pénis é mais puro e está traduzido
sem cara é mais barato e fica maior

sem faca corta mais e não assusta


sem barcos é mais amplo sobre o mar
sem martelo és mais tu fica mais tempo
sem verdade é melhor do que sem par
EXPOSIÇÃO

sala 1

o roman — o
o roman — á
o roman — aus
o roman — cebo
o roman — ce
o roman — tismo
o roman — rolland
o roman — cefálico
o roman — do antigo
o roman — iconográfico
o roman — off side
o roman — of course
o roman — da-mo
o roman — comunado
o roman — to de luces
o roman — zatzigana
o pobre — romanco
o feliz — romano a mano
o roman — chado de espuma
o roman — ray
o roman — uel

sala 2

urromano irmão natural da úrria


urromaná filme de Ingmar Bergman
urromanaus emigrante
urromancebo pessoa que está na tropa
urromantismo expressão andaluza, fim de verbena
urromanrroland dente tirado a bordo no alto-mar
urromaniconográfico suetónio+pérez galdós
urromanoff side lado mau da revolução russa
urromanof course corrida de Longchamp nos anos 20
urromanda-mo telegrama chegado da província
urromanzatzigana mobília desenhada por victor hugo
urromanchadodespuma urro manchado de espuma
PASSAGEM DOS SONHOS

Inclinada ou deitada sobre o braço esquerdo


é uma mulher-montanha ou uma montanha-mulher
da cintura para cima vê-se o corpo nu
no seio do lado direito há uma ferida-cratera violácea
ela diz: aqui é luz
depois movendo a mão direita
assinala outro sítio que não é bem o seio esquerdo
julgo que é ainda o seio direito
e diz: aqui é sombra
(não é bem sombra o que ela diz
seria antes o lugar de uma cor
que não sei porquê se opõe à luz)
depois desce lentamente com um dedo espalmado
na direcção do sexo
a unha ao deslizar abre um sulco-ranhura
semelhante a uma fenda aberta na terra
já não se vê carne mas uma planície
com no meio a fenda separadora
descendo mais a mão desaparece entre sedas
que revelam-ocultam outro corpo montanha

Atravesso o Boulevard Jourdain, fronteiro à Cidade Universitária, de Paris. (Estive ali em


1947.) Pela larga avenida que vem de Danfert-Rochereau surge um jovem. Pára quase a meu
lado, diante de um prédio baixo, envidraçado, presumivelmente um atelier. Chama alguém. À
janela do prédio surge outro rapaz. Chego a uma encruzilhada como a de S. Michel-S. Germain,
mais deserta, porém. Passa escarranchada numa moto a Isabel Meyrelles. Bato palmas, não um
aplauso, mas como pode chamar-se um guarda-nocturno. A moto detém-se um pouco adiante.
Espero. A moto põe-se de novo em marcha.

Entro numa casa onde parece que vivo. Falo com o meu companheiro de quarto. A vida é um
longo hábito de ruas em liberdade.
Surge um guarda sobriamente vestido, sem sinais que o aparentem às polícias que há, apenas,
no boné, umas letras a branco, indecifráveis. Deixou na rua uma motocicleta enorme, e convida-
nos a acompanhá-lo. Subo para a moto tomando o guiador. O meu companheiro instala-se atrás
de mim, e, atrás dele, o guarda. Há confusão por causa da colocação dos pés. Entramos numa
capelista onde, além de outras velhas bisonhas, está uma mulher de aspecto simples, vestida de
preto, atrás do balcão. O guarda avança, finca o cotovelo no balcão e a mão na cara, e diz: a
senhora é amante de Isidore Ducasse? A velhota reflecte um ar confuso, mas divertido, agradado.
Se não a amante, continua o guarda, uma das suas amantes? A velha desapareceu. Todo o décor
toma um ar de ameaça, de local implicando perigo de vida e desencadeia-se grande perseguição.
Nem eu nem o meu companheiro sabemos quem são os que nos perseguem, nem porque o
fazem, mas vemos que estão armados e implacavelmente decididos a abater-nos. Subimos e
tomamos pelo interior de um túnel que atravessa uma fábrica de panificação. Lá dentro,
corremos. À nossa passagem, tudo adquire um tom de extrema violência. Chegados ao telhado
mais alto da fábrica, estamos numa pequena povoação marítima. Ar despaísado, de pequena
praia no inverno. Há um hotel e carros eléctricos passando junto ao mar, vindos do alto de uma
rampa muito íngreme, pela qual descemos a pé. À nossa direita arde em chamas miúdas um
edifício que parece «descender» da fábrica cujos telhados atravessámos.
Eles deitaram fogo ao hotel, oiço dizer, ou dizerem-nos. Ganhamos a grandes passadas o fim
da rampa. No cimo desta, surge a grande velocidade um carro eléctrico e desencadeia-se um
tiroteio cerrado entre atiradores escondidos. É como num acaso que estamos envolvidos naquela
refrega, talvez ela não seja contra nós mas sucedida assim ao nosso lado. Estendo-me no chão da
calçada junto de outros corpos que já ali encontramos, mortos. Defendo-me das balas puxando
contra mim um desses corpos. Ligeira sensação de que esse corpo vive e de que estou
assassinando alguém. Findo o tiroteio, levanto-me e começo a subir a ladeira sozinho. No alto da
rampa surge velozmente o cartro eléctrico — não outro, o mesmo, o de há bocado, como num
filme projectado segunda vez e que repetirá no todo e no pormenor a cena há momentos vivida.
Agora, porém, estou só. Corto por uma rua à minha esquerda e vou dar a um jardim de areia lisa
e longos canteiros verdes. Em baixo, o mar como que decifra remotamente a posição das casas
que orlam o jardim e a sua arquitectura de deserto.
Num paredão que avança pelo mar, um pequeno pavilhão hexagonal. «O casino de inverno»,
penso eu. Entro. É um aposento único, circular, paredes de tijolo e escassos metros de raio.
Percorro até ao seu centro o chão descarnado. Numa das mesas encostadas à parede, um criado
sonolento. Mas lá fora, em terraço sobranceiro ao mar, há outras mesas, murmúrio de vozes,
certa agitação. Um grupo de pessoas aponta para o mar em baixo. No fundo da água, um afogado
de olhos escuros e abertos, a face pálida, o corpo dobrado em dois. A seu lado, com a lentidão
dos corpos submersos e agindo convencionalmente, um médico procura reanimá-lo, põe-lhe
tubos de borracha sob a camisa aberta. Os olhos do afogado fitos em mim são o final deste
sonho.

Tive sonhos de voo durante muitos anos, todas as noites, desde rapaz. Narrá-los a todos ou
em quantidade resultaria inútil porque não transmite e porque a única coisa maravilhosa,
fantasticamente acontecida, era o próprio voo. Uma vez, sonhei que acordava no alto da
escadaria que dá acesso ao Ateneu Comercial de Lisboa (frequentei em menino o ginásio do
Ateneu). «Acordado», precipitei-me de novo no espaço. Não era suicídio, era desafio certo de
ganhar: em vez de estatelar-me no solo, que eu julgava ser já o do chão real, segui rumo ao
espaço exterior.
Em criança, sonhava com um recanto escuro da oficina do meu pai onde havia um fole
accionado a pedal, e, numa velha armação de madeira, um grande pote de barro para onde
escorriam as decantações ácidas da prata e do ouro fundidos, o total ladeando uma chaminé que
dificilmente expelia o cheiro dos resíduos um ano conservados em água suja. Nessa chaminé, o
meu pesadelo criava uma aranha, ou algo que a escuridão revelava assim, poderia ser também
uma presença humana, para a qual eu era irresistivelmente atraído. Mas o horror, aqui, era o
preço da curiosidade, desfeita, sempre, pelo meu acordar antes de atingida a zona maléfica.
Outro é o pesadelo que pode matar, como tive pouco depois da morte de António Maria Lisboa:
uma escada subterrânea, branca, entre paredes de azulejo branco. Um cheio a desinfectante,
como num urinol, ou de hospital votado às mais cruéis doenças. No fim da escada, um aposento
em forma de rectângulo, fechado, não muito espaçoso, de azulejo branco também as paredes,
talvez o tecto. Utensílios grosseiros, como um bacio colocado no fim da escada, aumentam a
brancura de casa mortuária ou de enfermaria sem esperança. Naquele ambiente cruelmente
esquematizado pelos humores do meu cérebro, pairava, digo bem pairava porque podia deslocar-
se no espaço, sem peso, como um (… impossível escrever a palavra adequada!) olhava-me
medonhamente decomposto, descarnado, podre, erguendo os braços na minha direcção,
esperando que eu descesse, fosse ter com ele, atravessasse o último degrau, o «cadáver»
vermelho negro e branco do António Maria Lisboa. Ao acordar, o coração batia-me tão forte, o
descontrole era tal, que percebi com o próprio corpo que se tivesse descido o último degrau,
aceite em mim a visão pavorosa, decerto não teria regressado.

Sonho um barco em naufrágio e um mar tão fundo que a descida ao abismo é lentidão sem
fim. Os afogados, no castelo da proa, ou subidos aos mastros, interrogam sem resultado aquele
novo horizonte. Alguns, mais animosos, experimentam lançar-se, desde o mastro grande, para o
caos sereno e azul que envolve tudo. Mas o gesto é inútil: permanecem pairando, o corpo em
cruz, até que voltam ao ponto de partida. Outros, propõem remar. E entretanto descem
lentamente o abismo.
Recomeço a voar, lançando-me do alto da Rua Barata Salgueiro. Digo: «recomeço» porque
no meu sonho há lembrança nítida de incursões semelhantes, iniciadas sempre nesta rua. Entro
no espaço abstracto, sem imagens, que será para o homem o voo puro. Os meus braços abertos
são os reguladores da direcção.
Desço, quase a rasar o solo, sobre a Avenida da República, em direcção ao Saldanha, que
oferece o aspecto habitual de um fim de tarde de verão. Do lado da Avenida Fontes Pereira de
Melo, voando baixo como eu, uma mulher magnífica, solene, vestindo um longo traje de renda
negra cujo ondear a continua no espaço. Reunimo-nos sem trocar palavra, fitando-nos apenas, e,
sem desvio na direcção comum, traçamos lentamente dois círculos concêntricos à estátua de
bronze em baixo, afligida de grande circulação automóvel.
ROMANCE

O antigo dono de uma hospedaria chamou três antigos companheiros de um filho e fizeram
um pacto: que tudo o que se visse nas florestas do Ocidente fosse fabricado pela mão do homem!
Meu dito meu feito. Compraram uma casa, disseram adeus às mulheres e ninguém mais os
viu durante um ano. A voz corrente era que se embebedavam. Como, porém, nunca saíam, nada
se podia assegurar. Começava a temer-se pelas suas vidas quando o estrangeiro pediu silêncio,
meteu os quatro homens numa caixa e os levou para a nau.
Os tipos de crânio e de esqueleto correspondiam, anotou o estrangeiro no livro de bordo. Os
outros, seguiriam para entulho.
Sussurrando alto, o que é uma excelente maneira de proporcionar uma respiração satisfatória,
o antigo dono disse para os companheiros:
A nossa voz é monótona em vez de vibrante. Vamos morrer todos nesta caixa.
Este estado durou vinte e seis horas.
No estado seguinte, a mola mestra dessa preparação espantosamente rápida que é um rapaz
de vinte e cinco anos, entrou na ponta dos pés, sentou-se ofegante e disse:
— Vocês chamam a isto nadar?
Era uma voz de alarme. Efectivamente, fora da cidade, quantos saberiam da situação dos
quatro amigos? Começaram a colher informação nos tomos dos jornais. Em movimento, não
pareciam estar feridos. Sentados, o sangue escorria, tentando a eliminação de substâncias
prejudiciais. A posição dos joelhos, sobretudo, era incómoda.
Este estado durou dezassete horas findas as quais o estrangeiro apareceu, abriu com
afabilidade, e convidou os passageiros para o deck, dizendo-lhes que comessem e bebessem
porque os tempos não iam para outra coisa.
No estado seguinte as nações livres do mundo estavam progredindo e as obras dos serviços
de utilidade pública multiplicavam os progressos das nações livres — o corpo humano deixara de
aspirar ao sono — as mulheres arrumavam os quartos dos maridos com adoráveis mãos que
sabiam escolher.
Emagrecer repousando foi, neste estado, a única preocupação dos quatro amigos. Aliás, a
situação no barco era excelente, com bastantes vistas para o mar. Paco Bill, o urbanista-armador
e os homens de equipagem, os admira-dores, os solicita-dores, os canaliza-dores, os trabalha-
dores, os avia-dores, os computa-dores, os opera-dores, os prega-dores, os pesca-dores, os
alumia-dores, os anuncia-dores, os salva-dores, além dos oficiais de serviço, o monta-dores, o
chupa-dores, o canta-dores, o limpa-dores, o beija-dor, e o de serviço em baixo, restaura-dores,
Paco Bill, dizia-se, tratara de tudo, não permitindo que se lhe adiantassem em imaginação, tacto e
disciplina. Já em laboratórios produzira homens em miniatura, agora em exercício na cabra da
nau. A única deficiência consistia numa dificuldade em classificar tais objectos.
Os quatro amigos prestaram-se de bom grado à obtenção do material necessário: uma
madeira leve, resistente, insusceptível de fadiga ou ardor.
O estado seguinte é apoteótico. Os 150 motetes e as 93 missas de Palestrina faziam ressoar o
grande orgão de Leipzig. Pois bem: o antigo dono dos companheiros de um filho não
desmereceria de tal responsabilidade. Já a região de Champagne se tornara famosa por obra de
Dom Pedro Perignon; ele, poria o telegrama seguinte:

LIMITO-ME A DIZER OBJECTIVAMENTE


O QUE PENSO
CHEGÁMOS AO EXTREMO-LIMITE DO PERIGO

Neste estado chegaram a Procopio’s Town, entrando como uma flecha em Mosca’s Basílica
por Còcácos Tower.
CONTO

Filho de boa família: desta vez era um marinheiro que estava sempre com tanto sono que
nunca fazia a continência.
mandaram-no então para santa clara a ver se teria remédio.
o remédio foi que assim que lá chegou pegou em todas as camas da camarata, pôs umas por
cima das outras em forma de couraçado, meteu-se dentro e desatou a dormir. Ainda por cima,
colocou nas portas daquela enfermaria uma invenção campainha-maquinismo-vassoura que batia
nas pessoas que tentavam entrar. Os enfermeiros porém entraram pelas janelas e foram lá saber o
que era aquilo.
não mo pergunteis, disse o marujo. E virou-se para o outro lado.
muito excitados, os enfermeiros foram comunicar aos superiores, que foram contar aos
amigos, que foram dizer às irmãs. Estas resolveram aparecer de repente.
quando o carro eléctrico foi embora formavam uma grande bicha à porta do hospital.
Entradas na enfermaria — o maquinismo não batia em irmãs — deram duas voltas à praça, a ver
como era dentro. Era exactamente como se supunha que fosse, visto de fora. Para tentar outra
coisa resolveram saltar à corda, ao avião, à estrela e acamaradar. Fizeram de índios, de polícias,
de cantoras, de tudo enfim que lhes veio à cabeça. O entremês findou com a execução a várias
vozes terríveis, do improviso seguinte:

marinheiro marinheiro
diga-nos lá o que tem
as barbas do enfermeiro
por aquela porta vem

por aquela porta vem


pela outra sairão
vamos já fazer também
um maquinismo-invenção

semearam campainhas-maquinismos-vassouras por todos os cantos e, como viesse a noite,


deitaram-se a dormir.
no dia seguinte o jardim que envolvia aquele pavilhão estava juncado de dentes de
enfermeiros. Quando os homens da limpeza telefonaram a mandar vir mais uns carrinhos extra as
irmãs riram muito e disseram adeus da janela. Depois, foram tratar do marinheiro.
este já tinha acordado e distraía-se com os dedos da mão, da seguinte maneira:
primeiro levantava um depois o outro depois o que faltava levantar. Quando estavam os cinco
bem espalmados encolhia de novo e tornava a fazer.
então a mais sabida de todas as irmãs, uma que até já usara um lindo vestido roxo numa festa
de mães, resolveu fazê-lo render pelas fomes.
marinheiro, diz ela, nós queremos a tua cura e connosco a nação. Mas hás-de nos dizer
porque tens tanto sono e o que estás aí a fazer. Se não dizes depressa não almoças hoje.
a resposta era o menos, pensava esta irmã. O que era preciso era fazê-lo actuar.
mas a resposta foi: um horroroso silêncio. A irmã fez beicinho e começou a chorar,
revoltando tudo e todas. Adiantou-se outra irmã:
parece mentira, marinheiro, não te importares com as lágrimas de uma irmã tão bonita. Que
vergonha para ti e para a nação. Diz ao menos como te chamas que é para não estarmos aqui com
um desconhecido.
aqui o marinheiro pareceu comover-se. Soergueu um pouco o busto, olhou e disse mansinho:
Jacaré.
ouvindo isto, as irmãs foram logo, já todas excitadas, consultar o arquivo a ver se conseguiam
uma informação. Mas o único jacaré que encontraram (António Ferreira da Jacaré) tinha saído da
marinha há dois anos e não era nada parecido com este.
tristes e despenteadas sentaram-se no largo a ver entardecer quando eis senão quando
atravessa um lagarto.
que fazem vocês aqui? perguntou o lagarto, que nunca vira tantas irmãs juntas.
ah, nós!… exclamaram elas desalentadamente.
então não sejam parvas, venham cá, disse o lagarto. E meteu-se para dentro de um buraco.
as irmãs foram e eis o que aconteceu:
irmãs disse o lagarto enquanto tirava o casaco, esse rapaz que ali está é meu filho, o melhor
dos meus filhos. Tenho outro, serralheiro, mas esse não interessa. E cuspinhou para o lado.
seu filho? espantaram-se as irmãs. Mas ele é marinheiro o senhor é lagarto e não condizem os
nomes. Um lagarto não é um jacaré…
tenho muitos inimigos, revelou o lagarto. Mas estou disposto a vender caro a vida
NOVELA

A paisagem do relógio branco talvez dentro do palco talvez fora dele — penso numa janela
que dá para certo jardim de três dedos janela por abrir quando faço um sinal de assentimento aos
outros pés do móvel — passo bastante veloz entre almofadas custosas de digerir, água de seltz.
Fui dar à grande gruta onde todo o maquinismo respira brutalmente de encontro a um animal que
de curioso só tem os olhos — uns olhos de curiosidade. Outra estranha figura gira continuamente
em torno de uma grande mão percorrida por inúmeros insectos de madeira.
O maquinismo começou a dar horas — pancadas unilaterais muito sensíveis na minha perna
direita que se retraiu por momentos. Um grito lindíssimo nasceu na parte superior da
concavidade calcária e uma rapariga graciosa, graciosa apesar do cancro que lhe roera o nariz e
parte do ventre, atou-se vagarosamente ao poste e começou a girar também. A explosão não
tardou a dar-se nas minhas próprias cadeiras. Uma grande angústia tomou conta de mim e,
subindo em balão, encontrei uma casa de caridade pública cheia de brilhos que subiam dos olhos
de uma série de damas sentadas numa caixa de vidro cortical.
És tu? disse a segunda.
Terrivelmente rápido transformei-me em mosca dos pântanos instalando-me no pescoço da
prostituta. Não será preciso acrescentar que a breve trecho ela estava morta. Um senhor que
aparecia a ler um romance antigo desfez-se no mesmo momento em que uma das minhas patas se
levantava daquela carne dorida.
Tudo leva a crer que se tratava de incesto e voei para cima da cómoda habitando hoje o
dentinho — o primeiro que lhe caiu — da menina que dorme irregularmente na Praça Luís de
Camões quando o polícia do lugar fita distraidamente o último automóvel da madrugada e os
insectos começam a murar as suas habitações invisíveis aos olhos dos trabalhadores que se
levantam com o t. do m.
CABALA FONÉTICA

As aias agem por elogio sob a viuvez do talco, centro de uma vela branca como um dorso,
larga como um farol de vastos estremecimentos. Acusados de aspirar o ar puro dos montes,
expiram os maquinistas. Há-os a pé e a cavalo, há-os com passo de subúrbio, há-os já sem vida,
sobre as fogueiras. Um homem ergue lentamente o braço, deixa-o cair em cima da cabeça. Está
nisso desde a infância, uma organização comercial leva-o às feiras de Maio, semi-nu. O
cataclismo sai-lhe pelas esporas.

Embrulhadas demais, duas palavras irreversíveis quebram-me o aparo, pouco habituado a


estes seres. O ar gira uma chave ao desdobrar a mão que lhe aponta o país que aparta os
movimentos.
«Ungarito, digo eu, vê com que arte o amor retoma o brilho das cidades cantábricas!»
Instalado à lareira do refeitório um pichel de ale quente sorvia lentamente um homem. As
razões porque o chamavam ignoradas eram absolutamente capitão. Por fim juntou-se roseamente
ao poste e soluçou a pensar na mãe. Surgindo do ar, leve como um ar-fresco um leão boiava na
porta…
Pendurada de uma janela de feltro com um ponto moral de quatro vóltios a garganta-milhafre
presa pela espinha invoca o vidro ardente das cremalheiras. À cega imunda consegui gritar que
me transfusionassem um pouco o osso do meu pé caído na luta. Do chão brotou a arrastar-se a
minha roupa primeira — meu amor, que no nome te pareces comigo…
Do eu me ver que me cortavam o texto e puxando uma rima caí em estado de coma. Mas a
ave que debica o vento, primo dos mensageiros do céu, veio dar-me a sumptuosidade
volumétrica de um olhar que certa fístula, traída pelo ultimato automático das madres
ungarettianas, intercecciona ao largo das ilhas sandwich na tentativa de murar gazuas e titilações
aos olhos das torneiras tradicionais que levitam o barrete frígio na mão.
INFORMÁTICA

À claridade sóbria
insistente e velada
o cargueiro desliza.
E o nada
do pequenino ponto
que vai ser
pontilha a face lisa
da enseada

Em fim de tarde e luz


demanda o céu escurento.
Uma forte nostálgica
— mas benéfica! — vela
pelo seu movimento

E ela
a água que tem
o seu correr
abre-lhe o seio suave
de mãe fria, de mãe
que o não pode saber
Segue o veleiro rumos bem seguros.
A vela é branca e alta de comando.
Do outro lado do mar há um prolongamento
Que guarda qualquer coisa da brancura
E da serenidade clara e firme.
Há mesmo olhos cerrados que aguardam
E uma réstia de cais que está vazia.

Então uma gaivota quase mais branca


Fica a boiar na água e é só ela.
Aqui a festa dos mortos

um chão sempre agitado

Salas de Permanência

Homens que experimentaram tudo

mesmo o corte à navalha

Nenhum mistério

sentada perto do fogo

a mão trabalha

(teu motor mordente, activo)

e também a doutrina

que um dia de festa calma

desenhou em todo o movimento

«MONTANHAS ALADAS» «PÊLO ANIMAL»

Uma cama de alarme antes da eternidade


O Homem
abandona A Aventura
e torna-se
Um Negócio

Na Cidade
estrépito contra estrépito
Raimundo observará

O cavalo
Halifaz

Um soldado de segunda classe


morto en pleine jeunesse

Um delírio que começa como um jogo

Os pés na terra
o menos possível
Oferecei-vos
o
in-com-pa-rá-vel

A lenta asfixia da cidade

Uma árvore

Cavalos também, mas só


para as reprises

levareis muito tempo para virar


o dorso

de flores que amam

de tal modo

o mar
Do Amor
Cor
de Muralha

Todo o homem
é capaz

Aqui tens as palavras


e as rosas

Faz uma maquette


DOIS POEMAS DE ANDRÉ BRETON

O Juízo final fora seguido duma primeira classificação


Seguiu-se outra em que tomavam parte os ventos e as marés
E os montes e vales
E os que tinham vencido montes e vales
Contra vento e marés
Formavam à frente da tropa uma árvore meio desenraizada
Que lancetava o céu como um barco em naufrágio
Eram quatro da tarde aproximadamente
O aparelho do tempo continuava a girar mais ou menos
O que muito afligia as mergulhadoras
Mulheres mortas de amor
Que escalafriam a piscina do céu
Quatro horas apenas quatro horas
E há muito que eu fora condenado
Condenado a subir por uma escada desfeita
Como haveria eu de fazer isso
As arribas do céu estavam guardadas por gatos ululantes
No primeiro degrau sentara-se um mendigo ao lado de um pavão
A febre estabelecera os seus leques mecânicos muito acima do que eu podia imaginar
Só me acudiam bocados de discursos de distribuição de prémios
Tratando vitoriosamente o tema do Olvido
Olvido não me lembro
Olvido chamem-me o Olvido à lembrança
As crianças alteavam plumas e balões
Recebidas por um grande explorador cercado de cães brancos
É aqui gritavam é atrás do campo de arroz
É para as bandas da esplanada das estrelas
Também vi uma ofensa numa venda de flores
As flores eram enormes
Como a ofensa
O que mais me intrigava era o pedreiro
Que óculos tão brilhantes onde é que eu já o vira
Como as pedras fugiam quando ele se aproximava
Como as horas passavam em chusma
As cornijas abriam alas ao cintilar das camadas de gelo
Um gelo que sabia resistir ao sol
Os primeiros tinham-se azado os últimos estavam asados
A música aumentava
Para os lados da barricada e das sebes
Pássaros-mosca aves-flores
Só as virgens tinham aparecido nuas
A carne brilhava como deve brilhar o diamante
O seu remorso ainda dava alguma pena
Juízes cujo manto era feito de todos os arminhos
Não conseguiam desviar os olhos do estranho Busto em transformação constante
O Busto fora todo o mundo e eu próprio
Agora era um entrecruzar de ramos na floresta
Sobre um deles um ninho
Mas nesse ninho ai eram sempre quatro horas
Já vos disse que eu fora condenado
Mas quê chegaram as dez da manhã
Foi preciso juntar de novo os guias
Os cavalos estavam cheios de fome
Uma viatura sem freio devorava a rampa
As aves debandavam pela portinhola
Parece que uma mulher ia adormecida no estribo
Sou o que não sabe quem vive e quem morre
E que arde porque não sabe
E que por demais sabe que arde e sabe
Abismos multidão de auroras que não tenho
Pérolas enormes
Abismos indistintos os únicos que amo
Cruzo as mãos é verdade põem-me as algemas sempre que penso em vocês
E no entanto sou livre de perder-me convosco
De ter vosso o comércio mais estéril
O Juízo final é um achado mas não tão belo como a minha vertigem
Raparigas de gargantas azuis
Deixai-me passar
Deixai-me passar

II

Gostaria de nunca ter começado


E de investigar a vida
Como outrora um rei fazia justiça debaixo dum carvalho
A terra seria um alvo
O balanço da vida iria parar longe
Como cabelos que eu não era obrigado a ouvir
Embora cheios de pequenos estilhaços de vidro
A bandeira do invisível flutuaria nos telhados das casas que habitei
E sobre a minha vida como casa de que só o exterior foi acabado
Bandeira de todas as cores estralarias tão rápida
E eu com cara de quem não se lembra
De já ter descido à mina
Eu a olhar em volta sem ver nada
Como caçador esperto numa terra de escombros
Esperava esperava-te
Eu que com os olhos já podia ter feito um tapete de esperas
Como ainda não tinha começado
Experimentaria ao largo das salinas a paz ignorada das metamorfoses
Veria o gamo em vez de ver o ramo
O nunca assaz gabado sextante do sexo
Tempo adorável do futuro anterior
Do céu cairia a verdade em forma de coruja
De olhos arregalados por todas as rixas
Em que tomei parte
Em que podia ter tomado parte
Interrogaria a vida como mil sábios arrastando capas de mendigos
Pelos desfiladeiros do Tibet
Mil mortos na verdura estilhaçada de flores
INFORMAÇÃO CANCIONAL
AO SEU POEMA, NEMÉSIO

«O Graça, engenho harmónico-dissonante,/ Vero Emaús à pedra tumular de “Serpa e


Moura” mélicos;/ O Graça, todo fusas do fogo na alta pinha,/ Colcheia-caracóis, as
semifusas bélicas/ No Chiado, à Sá-da-Costa, deu-me suas razões./ Zangado, sustenido.
Abequadrei-o./ Nem já sabia bem que lenha à fogueira da sua ira,/ Mas que me ia
escrever: honra de Graça./ — “Homem”, — lhe disse eu — / À vontadinha! Expanda-se,/
Wagnerianamente ou “smorso”! Que tolice!/ Calúnias não sei quê/ Afinal, “Manifesto”
Natália-Cesariny,/ Vim depois a saber, na boa-fé do dia./ Lera,/ mas esquecera,
assobiando Rossini/ Se bem me lembro, mnémica Poesia!/ Cesariny é acídulo-color,/
Natália sagitária (pena de flecha é doce)./ Enfim, fosse lá como fosse./ Disseram ambos
verdades/ Como punhos PS — e barbaridades, barbaridades/ Immusicais: por exemplo, a
Graça, a Freitas Branco/ E a Rebello, que também por fás já se zangara/
Jurifonicamente, a um salmo que a David-Menos eufórico escapara/ E que eu, encaixe-
ouro do crédito da lide,/ Postalmente pagara./ — “Estas coisas da porcaria da política
em que andamos todos metidos” —/ chega o Graça a dizer-me, no Chiado: E separámo-
nos condoídos/ Intimamente um do outro,/ Ele talvez sobre-estante, e eu pentagramado.//
Hoje, afinal, recebo/ (É um modo de dizer) os caracóis do Graça. Foi ver, com os seus
belos, esbugalhados olhos, ao jornal,/ Que afronta a “coisa” era, cuja/ Achou ainda
mais “suja”/ Do que alguém lho dissera./ Então Graça propôs-me que passássemos/ De
ora avante indiferentes,/ Como se não nos gramássemos,/ Pelo meio das gentes./ “Et
Voilà”/ O que se pode chamar, de mi para lá,/ Um fabordão./ Nossa harmonia, Graça,
era velha e era grave/ No nosso coração:/ Pseudo-superiormente, agora, finge passar
por alto/ Quarenta ou cinquenta anos de ilusão./ Tudo isto, quiçá, “rumo a uma
sociedade sem classes”/ Nem claves./ De que talvez nem Álvaro Cunhal tenha as chaves./
Como não»
(Vitorino Nemésio: «Poema a Fernando Lopes Graça»,
datado 7-1-1976 e publicado no jornal O Dia).

Do que eu primeiro gostei no seu poema, Nemésio, foi poder lê-lo sem gralhas.
Ao invés do meu texto, saído a 3 de Janeiro também com Natália,
o poema Nemésio vai como gato aos olhos do leitor
(sem penas de gralhas nas unhas)
enquanto para mim é gralha de meia-noite e sol e sombra.

A segunda coisa que também gostei


além do poema belamente escrito numa linguagem cheia de mãozinhas a meter vento novo na
vogal prometida
foi saber que você encontra o Graça com uma certa frequência
e o faz (e o fazem) com uma certa elegância.
Quanto à terceira, quarta e quinta coisas
serão o Guido d’Arezzo desta informação cancional.

ALLEGRO BARBARO:

Não sei como está o punho da Natália


(não tenho olhado ultimamente)
os meus não são PS
são só meus (e imagine com que tristeza o digo
pois PPDPCPCDSMRPPBR e outrens também não são)
são uns punhos que andam para aqui sem botões
e tanto sofrem a abrir como a fechar

Dó ré mi fá
mi ré dó
MODERATO

(que é o tempo
com que Fernando musicou versos meus no tempo da ilusão menina e moça — 1946):
o meu ex-mestre Graça escreveu mesmo:
— uma carta!
chegada ontem pelo correio à noitinha
Pois muito bem (VELOCE FURIOSO)
eu, essa carta, não a abri, nem abro.
Eu, dominei a custo uma grande gana
de pôr noutro envelope e devolver intacto ao remetente.
Eu penso sinto e creio
que já não é o tempo
da carta particular ao particular
eu apenas disse o que penso dos mutis
não mandei carta alguma ao meu ex-mestre Graça
produzi um texto público que ou tem resposta pública
ou então deixem estar não se incomodem

POCO ANIMATO:

tudo continua a ser


só até ao joelho.
A máxima a longa
prepotência militar.
Breve:
pequena e médias empresas.
Semibreve:
ai muito me tarda
a minha identidade nacional na Guarda.
Mínima:
décimo nono mês.
Semínima:
a inevitabilidade da mudança.
Colcheia:
o rabo da criança.
Semicolcheia.
exposição de pintura da criança.

(TEMA PER CONTROSOGGETO ED A LA FRANCESE:

fato à maruja do Jorginho exilado)

Fusa e semifusa
(Vale de Zebro);
transformada em almôndega a criança recebe o prémio slot-machines criança trabalhadora contra
criança facho.
ALLEGRO JUSTO:

Genésico Nemésio: sub-arqueados


por esta estranha procissão de bequadros
que são o desfeito do nada
contra os sustenidos
que são quem dá alguma coisa aos ouvidos
mesmo que em voz sumida (como soava)
e de gamba encolhida (como soía)
logo se vê que a música actual
do reino de Portugal
ainda vai no Junqueiro regicida
e na Florbela assada.
POEMA

O professor Agostinho da Silva, opado e coadjuvado pelo Gato:

O Reino do Pai
O Reino do Filho
O Reino do Espírito Santo…

A Rainha Santa Isabel, descendo em Marvão:

Tudo

Homens.
Já cansa a cona, caramba.
Out. 89
NOTAS

BIOGRAFIA
NOTAS

MANUAL DE PRESTIDIGITAÇÃO

BURLESCAS, TEÓRICAS E SENTIMENTAIS


Com o mesmo título deste conjunto foi editada uma antologia em 1972, com a seguinte nota do Autor:
«Extraído dos livros: Corpo Visível, 1950, Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, 1952, Louvor e Simplificação
de Álvaro de Campos, 1953, Pena Capital, 1957, Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo
Autor, 1958, Nobilíssima Visão, 1959, Poesia 1944-1955, 1961, Planisfério e Outros Poemas, 1961, A Cidade Queimada,
1965, 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, 1971, esclarecendo-se, nesta Antologia, a
ordem cronológica da feitura dos poemas, a qual, até à presente publicação, raramente coincidiu com a do aparecimento em
volume e menos ainda com as datas marcadas pelas edições.
O poema “Vinte Quadras para Um Dadá” é aqui dado na sua primeira versão, e alguns títulos (como alguns outros poemas)
inéditos reflectem a exposição cronológica preferida, nada se lhes tendo aposto ou corrigido desde a data da feitura.» [N. do
E.]

Este Fresco Jardim


Não aparece na 1.ª ed. [N. do E.]

PENA CAPITAL

PENA CAPITAL
A 1.ª ed. de Pena Capital tinha a seguinte dedicatória: [N. do E.]
A MINHA MÃE
MERCEDES CESARINY ROSSI
ESCALONA DE VASCONCELOS
MÃE DE POESIA

You Are Welcome to Elsinore


Sobre o final imperativo «o nosso dever» falámos muito Mário e eu nos seus últimos anos de presença física entre nós, e ele
dizia-me que não acabava de gostar desse «dever» e que talvez fosse melhor substituí-lo por um muito mais livre «querer»
que sublinhasse a afirmação da vontade individual face às imposições do meio. Pensava ele que era «neo-realista» de mais, e
eu respondia que esse «dever» era um imperativo íntimo, profundo, moral, que nada tinha a ver com imposições externas e
obediências devidas. Dialogando amigavelmente, como teóricos académicos ou políticos sem perspectiva de poder, chegámos
a uma solução de compromisso pela via da ampliação e assim ficou inter nos o final do poema:

Entre nós e as palavras, os emparedados


E entre nós e as palavras, o nosso dever falar
E entre nós e as palavras, o nosso querer falar

Afinal, entre a dúvida razoável e a brincadeira não menos razoável, Mário umas vezes recitava — e assim foi reproduzido —
o poema com o «querer» e outras com o «dever». Aqui decidi escolher a segunda, que foi a primeira e por muito tempo a
única. [N. do E.]

Autoractor
Não aparece na 1.ª ed. [N. do E.]

ESTADO SEGUNDO
A primeira versão deste conjunto é publicada na 1.ª ed. de Pena Capital, com o título «Pequeno Diário de Um Piloto de
Guerra» dedicado «a Antoine de Saint-Exupéry». [N. do E.]

PLANISFÉRIO
Dedicado na 1.ª edição «À Maria Helena e ao Arpad» [N. do E.]

Alegoria do Mundo na Passagem de Arnaldo de Villanova


Arnau de Vilanova (ou Arnaldo de Vilanova ou Villanueva em espanhol), foi um reconhecido médico e político medieval,
autor de várias obras e a quem foram atribuídas sem grande fundamento muitas outras, sobretudo quando a sua biografia foi
progressivamente transformando-se em lenda onde acabaria por aparecer como misterioso sábio alquimista com perfis
fáusticos. [N. do E.]

POEMAS DE LONDRES
Visto a esta luz (Walton st.); Outra Coisa (Walton st.); Olho o Côncavo Azul (Walton st.); Piccadilly Circus (Walton st.);
Being Beauteous (Walton st.); Shaftesbury Avenue (Walton st.); Ode a Outros e a Maria Helena Vieira da Silva (Walton st.);
Poema (Fullan Road); O Inquérito (Edith Grove); Atelier (Sidney st.). [N. do E.]

Being Beauteous
Dedicado na 1.ª edição ao «Luiz Pacheco, poeta da cama». Lembre-se aqui a dedicatória de Luiz Pacheco na 1.ª edição de
Comunidade na Contraponto: «Ao Mário Cesariny de Vasconcelos. Poeta do corpo». [N. do E.]

Nomenclatura para depois do Último Katun


O poema está dedicado a Emilio Adolfo Westphalen, poeta surrealista que, com o seu amigo César Moro, organizou em 1935
a primeira exposição surrealista em Lima, e que foi adido cultural em Lisboa de 1980 a 1981. [N. do E.]

Los Siete Niños de Écija


Nem eram sete nem todos eram da cidade de Écija (próxima a Sevilha). Mas no imaginário popular e na literatura de raiz
romântica, passaram a ser assim conhecidos estes bandidos (bandoleros) dos inícios do século XIX. A figura do bandolero
não só passou à literatura como personagem marginal representativo da afirmação individualista romântica — como o bardo,
o pirata, o carrasco, o eremita, etc. — mas passou também a ser uma figura admirada e até protegida pelo povo, que cantava
(com ou sem fundamento) a sua coragem, a sua oposição aos poderosos e a sua generosidade com os mais desfavorecidos.
Pode servir de exemplo esta «copla» (quadra, cantiga) dedicada a outro bandolero, Diego Corrientes: «Allá va Diego
Corrientes/el rey de la serranía/el que a los ricos robaba/y a los pobres socorría». [N. do E.]

Meditación de Leonor de Aquitánia ante un Cuadro de Enrique Carlón


Enrique Carlón é um poeta e artista multidisciplinar, nascido em Leão mas residente desde muito novo nas Astúrias
(Espanha). Ali, na cidade de Gijón, fundou o Círculo Surrealista de Gijón, tem colaborado em revistas surrealistas como Kula,
Orfebre, Luz Negra ou Salamandra, e realizado exposições individuais e colectivas de pinturas e objectos surrealistas. Amigo
pessoal de Mário Cesariny, realizou alguns quadros com ele e os dois trocaram uma correspondência que está hoje no espólio
de Mário Cesariny na Fundação Cupertino de Miranda de Famalicão, por doação do próprio autor. [N. do E.]

NOBILÍSSIMA VISÃO

NOBILÍSSIMA VISÃO
A 1.ª edição está dedicada «A FERNANDO LOPES GRAÇA / meu primeiro mestre», e leva anteposta aos poemas a seguinte
citação de Georg-Christoph Lichtenberg: «Na mesa de jogo encontrava-se uma mulher muito alta e magra, que fazia tricot.
Perguntei-lhe o que se podia ganhar. Ela disse: nada! E quando lhe perguntei se se podia perder alguma coisa, ela disse: não!
— Este jogo pareceu-me muito importante». [N. do E.]

LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS (fragmento)


Na segunda edição do poema, o Autor acrescentou no final da apresentação prévia o seguinte fragmento:
«Por último: Autor e Editor dedicam de braço dado esta 2.ª edição do Poema aos simpáticos trabalhadores-sapateiros da
capital, e bem assim a todos os gatos brancos que em pleno azul vão escapando às garras camarárias do bolo e da carroça. —
Vai começar o fragmento!»

Na mesma edição, e a seguir ao poema, o Editor incluiu esta resenha de António Ramos Rosa, publicada em Ler, n.º 12:
«Chamo provocação a toda a séria tentativa surrealista de denúncia da realidade através duma coerência total com o próprio
grito. Neste sentido — e sobretudo depois de Baudelaire — toda a grande poesia é surrealista. A de hoje, porém, ousa não só
afirmar um plano super-real da realidade como a possibilidade de todos os homens acederem a ele, transformando
completamente, realmente, a surrealidade em realidade, ou vice-versa. Pode dizer-ser que o surrealismo continua, pois, sob
uma forma ou outra, com este ou outro rórulo: é essa a grande tarefa do homem de hoje. A transformação, recuperação e
conquista de estruturas mentais que permitam uma integração total no mundo, sem sacrifício de nenhuma das possibilidades
humanas, é tarefa tanto de filósofos como de surrealistas, tanto de pedagogos como de sociólogos, tanto de psicólogos como
de políticos, tanto de artistas como de cientistas; e cada um, a título de homem, pode e deve cooperar nessa tarefa.
Cesariny, que nos prometera a reabilitação do real quotidiano, cumpriu-o efectivamente. O quotidiano, o quotidiano lisboeta
da hora matinal em que se vai para o trabalho, tem neste Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos o seu grande poema.
Não receio chamar-lhe grande poema, como não receio chamar desde já a atenção (embora não tenha a pretensão de haver
descoberto Cesariny) para alguém que tão necessariamente está a perturbar e indisciplinar o panorama da poesia portuguesa.
Não é certamente indiferente o signo de Álvaro de Campos, ou seja, Fernando Pessoa, esse mestre da indisciplina, como Jorge
de Sena lhe chama, e cujo martirológio começou com a restritiva consagração antológica e oficial e prossegue com a
descascagem a que o estão submetendo os novos justiceiros da poesia. Só um extraordinário poeta pode impunemente
empregar com tanta certeira naturalidade o verso livre usado magistralmente pelo heterónimo de Pessoa e dar-lhe esse
movimento aparentemente prosaico, mas no fundo intensamente poético, que é agreste e contudo fluente, e falar em
“crocodilos”, “caixeiros”, “partes pretas de lã carneira”, etc., integrando tais palavras num ritmo perfeito, num estilo
descolorido mas vivo e oral, um estilo que imita e recria a neutralidade, a indiferença e a alegre brutalidade do próprio
quotidiano, (gente jovial a acompanhar um enterro — um tiro nos miolos e muito obrigado sempre às ordens!). Admiremos
ainda esse crocodilo a rir em corredores bancários / apesar de as mulheres terem varrido muito bem o chão. Tais crocodilos,
em vez de serem uma arbitrária intromissão do insólito no quotidiano e na contextura desta reportagem (mas não tenham
dúvidas que o é), são, na verdade, uma iluminação desse quotidiano, uma iluminação feroz e crua, mas verdadeira,
profundamente verdadeira. O autor destas linhas, que como empregado comercial tem entrado várias vezes em bancos, ao ler
estes versos, recordou-se imediatamente de já ter visto os ditos crocodilos. São um facto. Mas o ponto de maior altitude neste
poema é a estrofe que principia pelo verso Paro um pouco para enrolar o meu cigarro (chove), onde o humor negro de
Cesariny atinge a sua mais expressiva e deliciosa graça. É o desdém máximo, o nojo total, a revolta absoluta, dados sem o
menor patético, com a máxima naturalidade artística, com um chiste e um desprendimento que é já por si poesia e que nem
por se identificar com o melhor de Álvaro de Campos é menos Cesariny. (Não a probabilidade do dinheiro ainda não
estragou inteiramente o gato / mas de gato para cima — nem pensar nisso é bom!)
Valeu a pena Cesariny ter dado tal passeio matinal para ver “esse gato branco à janela de um prédio bastante alto”, pois não
encontro desde Fernando Pessoa para cá alguma coisa tão viva, tão provocante como esse gato branco. Cesariny criou uma
nova obsessão. Esse gato branco não sei como nós o poderemos esquecer. Já aquele “homem das pensões e das hospedarias
que levanta a fronte de cratera molhada” que ele viu nesta Lisboa é difícil de esquecer; vemo-lo todos os dias. E já repararam
que um poeta vale pela força de certas imagens, pelo seu poder mágico e perturbador? Falta saber se neste aspecto não são os
poetas rivais da realidade em certos momentos… e se o surrealismo, pelo menos certo surrealismo, não é, como a palavra
contém, um novo realismo que, em vez de fotografar as aparências da realidade, as concentra, aproximando os seus aspectos
mais distantes e antagónicos, condensando-os para nos dar uma visão da realidade que ao menos nos faça suspeitar do que é a
realidade quando um poeta a catalisa num dado momento e ousa desafiar o destino humano com um gato branco. Eu, pelo
menos, já há muito tempo não respirava um clima tão acre, tão realista, e que me dá vontade de ir a Lisboa, ao menos para me
desiludir. É afinal um surrealista — vejam lá! — que por intermédio de Álvaro de Campos e sem o parecer logo, vem
encontrar-se com Cesário Verde.» [N. do E.]

A CIDADE QUEIMADA
A CIDADE QUEIMADA
Consultando as edições da poesia de Mário Cesariny, encontramos várias versões de A Cidade Queimada. Algumas com os
poemas-colagem (todos com os textos em francês), e outras com a forma do poema tradicional e em português (como a
reproduzida no capítulo final «Outros Poemas» desta edição). Mas no espólio da Fundação Cupertino de Miranda de Vila
Nova de Famalicão encontra-se uma versão de um livro da Assírio & Alvim em primeiras provas que tem na primeira folha,
com corpo de letra de título geral do livro, A CIDADE QUEIMADA, e, na página seguinte, com o mesmo corpo e também a
representar um título geral, O NAVIO DE ESPELHOS. Depois, o livro divide-se em duas partes: O NAVIO DE ESPELHOS
(que inclui o poema do mesmo título) e A CIDADE QUEIMADA. O livro, assim estruturado, nunca se publicou. [N. do E.]

PRIMAVERA AUTÓNOMA DAS ESTRADAS

[lait d’un dieu!]


Paris, 1947.

[sur la mort…]
Paris, 1947. Publicado na monografia Mário Cesariny editada pela Secretaria de Estado da Cultura, Lisboa, 1977.

[le vide…]
Paris, 1947.

[grâce à de hautes complicités…]


Paris, 1947. Publicada a tradução portuguesa no livro Planisfério e Outros Poemas, Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

LES HOMMAGES EXCESSIVES


Uma noite, nos tempos em que começava a preparação da exposição que acabaria por se chamar Surrealismo em Portugal
1934-1952, Mário Cesariny ofereceu-me uma fotocópia de um caderno segundo ele definitivamente perdido com a versão
manuscrita original e rigorosamente numerada do conjunto de poemas (onze) a que tinha dado o nome de Les Hommages
Excessives. Desses poemas, alguns seriam publicados no livro Primavera Autónoma das Estradas (Lisboa: Assírio & Alvim,
1980, pp. 25-35). Os onze poemas do caderno apareciam dedicados a (ou feitos com) «André Breton» (1), «Victor Brauner»
(2) «Alexandre O’Neill» (3), «Fernando de Azevedo» (4), «António Pedro» (5), «Vespeira» (6), «À Moi-Même» (7), «João
Moniz Pereira» (8), «Avec António Domingues» (9), «Alfred Jarry» (10; na edição da Assírio & Alvim, no índice final,
aparece a informação: «Paris, 1947. Publicado na revista surrealista inglesa dirigida por John Lyle, TRANSFORMACTION,
1973») e «Avec António Dacosta» (11). Note-se que os poemas 9 e 11 não aparecem como homenagem «à» mas sim como
feitos «com», o que tanto pode querer referir-se a colaboração como a simples companhia (real ou imaginária) na elaboração
do poema, e que dois deles aparecem datados: o dedicado a Jarry em Lx. 1947-1948 e o feito com (ou «na companhia de»)
António Dacosta — o único poema em português e onde, aliás, parece faltar o termo «tempo» na frase «… que não era ainda,
de colher maçãs…» — em Cabanas de Tavira, 1975. As diferenças, para além da mudança de maiúsculas e minúsculas e de
alguma mudança menor como «vous manger» por «être morts» no último verso do poema «À Victor Brauner» ou a alteração
de lugar do poema «À Moi-Même» que começa com «pour louise soleil-devinette», seriam a ausência no caderno de um
outro poema titulado «À Moi-Même» e que começa «il se promène sous écorce d’arbre», a desaparição no livro dos poemas
«À António Pedro» e «À Vespeira», a mudança de título no poema que no caderno se intitula «À João Moniz Pereira» e que,
no livro, omite o nome ficando o título simplesmente como «À…», a ausência no caderno do poema do livro «À Toi», a
desaparição no conjunto de poemas do livro do poema «Avec António Domingues (que aparece no mesmo livro mas na
secção «Adozites», pág. 43, com o título «Os Anos Felizes», com a indicação no índice final «Com António Domingues»,
1947. Publicado em 19 Projectos do Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres) e a desaparição no livro do
poema final «Avec António Dacosta». [N. do E.]

À Alfred Jarry
Paris, 1947. Publicado na revista surrealista inglesa dirigida por John Lyle, TRANSFORMACTION, 1973.

Rebelião
1947. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
Publicado inicialmente no n.º 4 da revista Cronos com algumas variantes, entre elas o título, «Projecto de Rebelião». [N. do
E.]

A Antinomia Em 1947
Com Alexandre O’Neill. Idem.

Adozites
Com António Domingues, Alexandre O’Neill e Fernando de Azevedo, 1947. Parcialmente publicado na Antologia Surrealista
do Cadáver Esquisito, Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

Os Anos Felizes
Com António Domingues, 1947. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres,
Lisboa: Quadrante, 1971.

Espelhos
Com Alexandre O’Neill, 1947. Publicado na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, Lisboa: Quadrante, 1971.

Salvados do Incêndio do Castelo do Almirante Wolf


Idem.

Conto de um Sábado de Aleluia


Com Alexandre O’Neill, António Pedro, Fernando de Azevedo e João Moniz Pereira, 1948. Publicado na Antologia
Surrealista do Cadáver Esquisito.

Que Concluir?
Com Alexandre O’Neill, 1948. Idem.

Lógica do Café Royal


1954. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.

André Breton
1949. Traduzido de Antonin Artaud, Victor Brauner e André Breton. Lido na Noite dos Poetas efectuada com António Maria
Lisboa nas salas da I Exposição dos Surrealistas, Lisboa, Julho, 1949. Publicado em A Intervenção Surrealista, Lisboa:
Editora Ulisseia, 1966.

A Imaculada Conceição
1948. Escrito na intenção de continuar a experiência tentada por Breton e Éluard em L’Immaculée Conception, de 1930:
mania aguda, paralisia geral, demência precoce, etc. Lido pelo autor na sessão que intitulámos de O Surrealismo e o Seu
Público em 1949, Casa do Alentejo, Lisboa, 6-5-49. Publicado em A Intervenção Surrealista, Lisboa: Editora Ulisseia, 1966.

A Paisagem do Relógio Branco


Texto automático, 1948. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa:
Quadrante, 1971.

Estados
Cerca de 1950. Texto por colagens. Idem.

O Automóvel Verde
Com Alexandre O’Neill, António Maria Lisboa, Pedro Oom e Mário de Sá-Carneiro invocado. Mesa pé-de-galo, 1950. Publi-
cado na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito.

Cadame
Com António Maria Lisboa. Hospital de S. Luís, Lisboa, 1953. Publicado em Poesia de António Maria Lisboa, Lisboa:
Assírio & Alvim, 1977.

Soneto
Com João Rodrigues, 1958. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa:
Quadrante, 1971.

Soneto 2
Com João Rodrigues, 1958.

Redondel do Alentejo
Com João Rodrigues, 1958. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa:
Quadrante, 1971.

O Lorinhão Escorreito
Com João Rodrigues, 1958-1959. Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres,
Lisboa: Quadrante, 1971.

Vida de Kandinsky
Com Gonçalo Duarte e Ernesto Sampaio, 1960. Publicado na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, Lisboa: Guimarães
Editores, 1961.

Carta de Fim de Ano


Com João Rodrigues e Ernesto Sampaio, 1961. Publicado no catálogo da exposição O Cadáver esquisito, sua Exaltação
Seguida de Pinturas Colectivas, Lisboa: Galeria Ottolini — Jornal do Gato, 1975.

Canção
(Paris, 1964, Publicado na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Natália Correia, edição Fernando Ribeiro de
Mello, Lisboa, Dez. 1966. Apreendida, e julgada em Tribunal Plenário como «ofensiva do pudor geral, da decência e da
moralidade pública e dos bons costumes» 4 anos depois. Embora «reconhecendo o mérito literário da obra» (com excepção
para os textos de Mário Cesariny, cujo mérito literário foi considerado nulo), os julgadores ordenaram a destruição dos
exemplares mandados roubar das livrarias, e condenaram:
Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello em 90 dias de prisão correccional, cada um, substituíveis por igual tempo de
multa a 50 escudos por dia e mais 15 dias de multa à mesma taxa; Mário Cesariny, em 45 dias de prisão correccional,
substituíveis por igual tempo de multa a 30 escudos por dia e mais 7 dias de multa à mesma taxa; José Carlos Ary dos Santos,
idem a 40 escudos diários; E. de Mello e Castro, idem, a 50 escudos diários; Campista Escritor, idem a 25 escudos diários.
Exceptuando Campista Escritor e Fernando Ribeiro de Mello, todos os mais tiveram penas suspensas por três anos.
O imposto de justiça e o de procuradoria foram arrecadados como segue: Natália Correia, Mello e Castro e Fernando Ribeiro
de Mello, 2000 escudos cada; Mário Cesariny e José Carlos Ary dos Santos, 1500 escudos idem; Campista Escritor, 880
escudos.
Dos jornais Diário de Notícias e Primeiro de Janeiro, de 22-3-1970)

Praeludium
Paris, 1964. Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1966.

Praeludium Penado
1979. Sobre fotocópia do original.

Papásca
1979. Versão definitiva, sobre fotocópia do original na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica.

Erik Satie
Londres, 1968.

Comemorando a Edição Portuguesa de Alice no Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll.


Jornal A Capital, 27-10-1971.

Raúl Perez
Catálogo da exposição Dezasseis Imagens do Meu Diário Onírico, de Raúl Perez, Galeria S. Mamede, Lisboa, Out. 1972. «A
Princesa», «O Filósofo», «A Fortaleza Com Polvo A Jogar Ao Bilhar», etc., são títulos do pintor para os quadros expostos.

Poema Pintura Colagem Colagem


Catálogo da Exposição Colagens Revestidas, de Anne Ethuin, Galeria S. Mamede, Fev. 1974.
O poema é constituído pela tradução dos títulos dados pelo pintor às suas «Colagens Revestidas», títulos colhidos em versos
de Édouard Jaguer, André Breton, Jean-Louis Roure, Paul Neuhuys, Lautréamont, Hans Arp, Octavio Paz, Mário Cesariny,
Marcel Havrenne, Paul Éluard, Benjamin Péret, Michel Leiris, Guillaume Apolinaire, Ilmar Laaban, Karel Hinek e Stéphane
Mallarmé, a que foram juntos 18 versos dos poemas «Callibrage» e «De Face et de Profil», de Anne Ethuin. O verso colhido
em francês é de Stéphane Mallarmé.

Peter Weiss
Tradução do início do Esboço para um Drama sobre a Divina Comédia, de Peter Weiss. Catálogo da Exposição de Edmundo
na Galeria Ottolini, Fev. 1974.

Asger Jorn
Tradução. Catálogo da mesma Exposição.

O Norte da Europa
I. Com António Dacosta, 1975. Publicado em versão inglesa de Miriam Rewald no catálogo da Exposição Surrealista
Mundial de Chicago, U.S.A., Maio de 1976.
II. Com António Dacosta e Graça Lobo, 1975.
III. Idem, ibidem.

Carta da Guerra de África


1975.

Breyten Breytenbach
Jornal A Luta, 17-11-1975.

Góngora por Kabala Fonética


1973-1976. Peter Foster Marr inicia vertendo para inglês, sem recurso ao dicionário, pelo sistema de kabala, ou paranóia,
fonética, o soneto de Góngora. Mário Cesariny, pelo sistema que se continuará, põe em português o traslado de P.F. Marr.
Arnost Budik verte para checoslovaco a versão de Mário Cesariny. John Lyle reverte para inglês a versão de M.C. Laurens
Vancrevel verte para neerlandês a tradução de Arnost Budik. J.-F. Aranda põe em espanhol a versão de Laurens Vancrevel.
Jean-Clarence Lambert põe em francês a versão de J.-F. Aranda, enquanto Pierre Dhainaut versa, «em estilo antigo», a luso
tradução de M.C., e Kent Smith retroverte para inglês a versão neerlandesa de Laurens Vancrevel. Com excepção da tradução
de Jean-Clarence Lambert, até agora inédita, foi publicado na revista surrealista inglesa. TRANSFORMAcTION, números 6,
de 1973, e seguintes). Work-in-progress: versions in languages not represented will be welcomed — send to
TRANSFORMAcTION, Harpford, Sidmouth, Devon EX10 ONH England.

A Irmãzinha do Papa
Com Franklin Rosemont, Nancy Joyce Peters, Amparo Granell, Penélope Rosemont, Paul Garon, Roman Rao, Lawrence
Weisberg, Philip Lamantia, E.F. Granell, Graça Lobo. Chicago, Maio, 1976, inédito. Tradução de Mário Cesariny.

Sábado Meia-Lua
Tradução. Original inédito de Paul Garon, Jean-Jacques, Jack Dauben, Franklin Rosemont, Penélope Rosemont, Jocelyn
Koslofsky, Janine Rothwell, Brooke Rothwell, Ronald L. Papp. Chicago, 1975.

António Areal
Uma primeira versão publicada no Jornal Novo, 28-8-1978. Afixado ilustrado na Exposição de Mário Cesariny na Galeria
Tempo, Fev. 1979.

Segismundo
Catálogo da Exposição de Francisco Relógio na Galeria Tempo, Fev. 1979.

Xácara das 10 Meninas


Revista Colóquio, Julho de 1979.

Antero
1979.

Natália Correia
1979.

Rubens e Breughel de Veluwe


1979.

Dádivas para…
Publicado em versão inglesa de M.S. Lourenço, em «Surrealism & Its Popular Accomplices», textos reunidos por Franklin
Rosemont na revista Cultural Correspondence, Providence, Rhode Island, U.S.A., 1979

O VIRGEM NEGRA

Alheio…
2 Alude a Seth e a Hórus, filhos de Ísis e Osíris.
20 Referência directa, parece, à «cantiga de maldizer» atribuída a Afonso Eanes de Coton, recolhida por Rodrigues Lapa e
actualizada por Natália Correia in «Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica»: Marinha, o teu folgar / tenho eu por
desacertado / e ando maravilhado / de te não ver rebentar; / pois tapo com esta minha / boca, a tua boca, Marinha; / e com
este nariz meu / tapo eu, Marinha, o teu; / com as mãos te tapo as orelhas, / os olhos e as sobrancelhas, / tapo-te ao primeiro
sono / com a minha piça o teu cono, / e como o não faz nenhum / com os colhões te tapo o cu. / E não rebentas, Marinha?
40 António Botto e Raul Leal.

47 Gabriel Rossetti, Dante Gabriel Rossetti e Christina Georgina Rossetti.


122 Segue-se, rasurado, o verso: (Como a Ibéria, de resto, é manifesto).
174 «Tinha motivo de chorar, o nosso Sá de Miranda, como tinham motivo de se entristecerem os seus ilustres congéneres. É
que eles pressentiam todos uma coisa sinistra: o abortamento da Renascença. Àquela imensa aurora sucedia, quase sem
transição, o crepúsculo nocturno; e eles, os videntes, divisavam naquele crepúsculo inquietador os movimentos, de formas
estranhas e sombrias, como de monstros desconhecidos, e ouviam passar vozes mais assustadoras ainda, vozes que cresciam
formidáveis de todos os pontos do horizonte, sem se ver quem as soltava.
«Aí por 1550 o abortamento da Renascença era já visível, aos olhos dos que ainda restavam daquelas duas incomparáveis
gerações dos promotores dela. O Concílio de Trento entrara já na sua sexta sessão, e era agora irremediável a cisão do mundo
latino com a Reforma germânica. Começaram as guerras de religião, que iam durar, numa fúria crescente, perto de cem anos,
destruindo nações inteiras. Os Jesuítas abriam os seus colégios, onde o espírito da Renascença, sofismado, amesquinhado,
pervertido, servia de capa à reacção. O Humanismo alado transformava-se em erudição plúmbea, inerte. A arte caía da criação
no amaneiramento. Um furor indescritível, furor de disputas, furor de matanças, apossava-se da Europa; e o pensamento livre,
os sentimentos largos e humanos, a alta cultura, pareciam prestes a desaparecer da face da terra.
«Tudo isto viam ou previam aqueles grandes espíritos. Tinham sonhado salvar o mundo pela razão, e a razão perecera impo-
tente, e o mundo desesperado apelava definitivamente para a sem-razão.» Antero de Quental, in Agostinho de Campos, Pala-
dinos da Linguagem, Lx., 1922.

O Mário Sacramento…
21 Segue, algo paradoxal, a nota titulada «Nota Supérflua»:
«Aos a quem sempre cansa a rima dobrada devemos consentir que tenham razão. Todavia, a aliteração reiterada num só verso
é usada na Europa nor-ocidental desde o século VIII pelos que desconheciam a rima mas usavam a quantidade, digo
qualidade de percussão do tambor, a cadência deste, acentuando por ecolalia forte os prefixos étimos de três vocábulos
constitutivos do mesmo verso.
«Se o poema aqui, como tantos outros na modernidade, pode ao ouvido ter e ao sentido cobrar o menos de uma arte do verso,
é também ou é mais porque se transferiu para sufixo cantabile a impulsão ctónica inicial.
«No (meu) poema, que começa: “Na sombra do Monte Abiegno…” deixo ouvir a cadência desse tambor.»

Introdução ao Volume
40 Para Thomas de Quincey, civilação é a pronúncia adequada ao vocábulo civilização depois de um bom jantar.
84 Arcaísmo.

[No plaino abandonado…]


3 Variante rasurada: De membros trespassado / — Dois, para cada lado —,
9 Em outra folha, dactilografada, escreve: «Fita com olhar dangue» (do francês dingue).
27 Antecipação bem extraordinária da palavra de ordem enviada por Salazar, três décadas depois, aos últimos soldados portu-
guêses na Índia.

Ela Canta…
1 O nome ceifeira traz no seu interior a imagem simbólica da morte. Sem razões para o suicídio, o poeta prefere o assassinato.
Não serve — não deve servir — a interpretação das propensões sexuais, ou meramente eróticas, do poeta, o que seria irrele-
vante no todo e no pormenor. Servirá antes para desvelar essa outra máscara — a mais incipiente — e levar ao seu sítio verda-
deiro: as antimonias-pseudo de que demasiadas vezes dá exemplo o discurso fernandino («Poder ser tu sendo eu»), («Penso,
logo não sinto») (Etc.). Já Oliveira Martins, no prefácio aos Sonetos de Antero, dá cabo desse jogo, hoje de uma piresa
(filosofância) devastadora, num poeta de tão alta estirpe.

[Dizem que sou um chão…]


4 Arcaísmo, embora não no caso de Fernando Pessoa.
13 O «guarda de plantão» que não se presume qual seja se não o próprio poeta, é iluminado pelas seguintes variantes
preteridas: «O próprio sopro tapa / À cova de Platão», referência à alegoria da caverna; «A própria vida mata / A quem lhe
estende a mão», esta talvez a mais conforme ao dizer do poema.

[Aqui na orla da praia…]


Reproduz por extenso: o poema datado 10-8-1929 na antologia organizada por Adolfo Casais Monteiro para a Editorial
Confluência, Lisboa, 1945, e datado 19-8-1930 na antologia organizada por João Gaspar Simões para as Edições Ática,
Lisboa, 1943. E reproduz em parte ou em pastiche expressões ou frases de F.P. no livro Cartas de Amor de Fernando Pessoa,
Lisboa: Edições Ática, 1978.

[Onan dos outros!…]


6 Na feliz circunstância do primeiro cinquentenário da morte, como na de fazer remover os tão esperados ossos, a Direcção
do Património abriu e viu corpo incorrupto, vestuário intacto, pele da cara e das mãos completamente negras. O poeta não
entregava os ossos e estava preto! Esta resposta do corpo à diáspora psíquica intentada, não foi ouvida pelas autoridades
culturais que levaram ao limite do ridículo a incapacidade de resposta a tal falta de cooperação.

[O Álvaro gosta muito…]


42 Aleister Crowley: «Ritual para banir o crucificado».

[Dícen]
12 Esta incursão na língua de Cervantes em poema datado 8-11-1935 — antecedendo, pois, de apenas duas semanas a entrada
no Hospital de S. Luiz — pode indiciar um intento de fuga aos modos e aos mulas da Era Vitoriana que de Durban aos Praze-
res pesaram sobre o poeta como laje de túmulo. O «’Sforzar», com ser elisão habitual em Pessoa, gerida de esforçar, será pas-
sagem irónica pelo nome da família Sforza, do medievo italiano.

[Vem, vulva…]
50 Divindade sintoísta.
51 O mesmo, sob outro nome e noutra conjugação.

[Quando, em boa estação…]


2 Deve referir Guido Cavalcanti, um dos primeiros cultores do soneto. Mas muitos outros ítalos o cultivaram antes de que Sá
de Miranda desse por ela: Cino Da Pistoia, Guido Orlandi, Angiolieri Da Siena, Giovanni Quirino, etc. A escolha de Caval-
canti será transbordo para Cavalgante, próximo do pejorativo cavalar.
Quanto ao «Castelhano» — um Camões castelhano… —, se não é lapso de escrita, pode pensar-se que o português literário
geminado com o castelhano e como este tornado língua imperial, é obra do Renascimento e do próprio Camões, a que de
muito perto hão-de seguir-se Alcácer-Kibir, a ocupação filipina e o castelhanismo luso-seiscentista.

[Três voltas dei ao castelo…]


16 «Romanceiro Português», Leite de Vasconcelos. Versão de Valpaços.

Cartas de Raul Leal (Henoch) a Mário de Sá-Carneiro e ao heterónimo


I: Datada 27 e 28 Janeiro 1916, em papel timbrado «Café de “La Perla”» / Granada, 6 y Tetuan, 41 / Francisco Bernabeu /
Sevilha.
II: Datada Dezembro 1916, Plaza de S. Gines, 2, Toledo.

«Uma carta de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões»

«Uma Carta de Álvaro de Campos a João Gaspar Simões»

OUTROS POEMAS

A Estrela
Publicado em Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor, Lisboa, colecção A
Antologia em 1958. [N. do E.]

O Berlinde Berg
Publicado em Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor, Lisboa, colecção A
Antologia em 1958. [N. do E.]

Leve
Publicado em «Nicolau Cansado Escritor», «Os Poemas», Poesia (1944-1955), Lisboa, Delfos, 1961. [N. do E.]

[Arrumaram-se à luz de um candeeiro]


Publicado em «Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano», XX, Poesia (1944-1955), Lisboa, Delfos, 1961. [N. do E.]

Poema-Semáforo
Publicado em Planisfério e Outros Poemas, Lisboa: Guimarães Editores, 1961. [N. do E.]

Passagem de Cruzeiro Seixas em África


Publicado em Planisfério e Outros Poemas, Lisboa: Guimarães Editores, 1961. O poema foi retirado em edições posteriores.
Mais tarde, em 1970, foi transformado em picto-poema e aparece recolhido em De Mário Cesariny para Artur Manuel do
Cruzeiro Seixas, ed. de Perfecto E. Cuadrado, posfácio de Ernesto Sampaio, Vila Nova de Famalicão/Lisboa: Fundação
Cupertino de Miranda/Assírio & Alvim, 2009. [N. do E.]

Investigação Semântica
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]

Literatura Francesa
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]

Carta dos Adolescentes no Forno


Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]

Exposição
Sala 1 / Sala 2. 1967. O primeiro foi publicado no catálogo da exposição Mário Cesariny na Galeria Buchholz, Lisboa 1967, e
ambos em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]

Passagem dos Sonhos


Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]

Romance
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
O texto corresponde ao de «Estados», Primavera Autónoma das Estradas, p. 514. [N. do E.]

Conto
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
Faz parte de Titânia. [N. do E.]

Novela
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
O texto corresponde ao de «A Paisagem do Relógio Branco», Primavera Autónoma das Estradas, p. 512. [N. do E.]

Cabala Fonética
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971.
O texto corresponde ao de «Paranóia Fonética do Texto Anterior» em Primavera Autónoma das Estradas, p. 513. [N. do E.]

Informática
Publicado em 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres, Lisboa: Quadrante, 1971. [N. do E.]

[Segue o veleiro rumos bem seguros.]


«Loas a Um Rio» II. Publicado em Burlescas, Teóricas e Sentimentais (Antologia de Poemas), Lisboa: Editorial Presença,
1972. [N. do E.]

[Aqui a festa dos mortos]


Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]

[O Homem]
Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]

[Oferecei-vos]
Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]

[Do Amor]
Publicado em Titânia e a Cidade Queimada, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977. [N. do E.]

Dois Poemas de André Breton


Publicado em Pena Capital, Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. [N. do E.]

Informação Cancional ao Seu Poema, Nemésio


Publicado em Pena Capital, Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. [N. do E.]

Poema
Publicado em As Escadas não Têm Degraus, 3, Lisboa: Livros Cotovia, 1990. [N. do E.]
BIOGRAFIA

António Soares

1923
Nasce em Lisboa a 9 de Agosto.

1934-1944
Frequenta o Liceu Gil Vicente e a Escola António Arroio.
Estuda música com o compositor e musicólogo Fernando Lopes Graça.
A partir de 1942 produz as primeiras pinturas, desenhos e poemas.
Escreve A Poesia Civil e Burlescas, Teóricas e Sentimentais.
Mário Cesariny, António Domingues, Cruzeiro Seixas, Fernando de Azevedo, Fernando José Francisco, José Leonel Martins,
Júlio Pomar, Pedro Oom, Marcelino Vespeira, alunos da Escola António Arroio e alguns dos jovens artistas que
desencadeariam o movimento surrealista, reúnem-se em tertúlia de características dadá no Café Herminius, em Lisboa.

1945
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, e até 1946, adere ao neo-realismo e à actividade política correspondente.
Apresenta a conferência «A Arte em Crise» para os operários da Companhia União Fabril, no Barreiro. Publica artigos no
jornal A Tarde e nas revistas literárias Seara Nova e Aqui e Além.
Escreve os poemas do livro Nobilíssima Visão.

1946
Escreve o poema Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, despedida da teorética neo-realista.
Produz a primeira colagem surrealista, com fotografia do general De Gaulle.

1947
Viagem a Paris onde encontra os membros do grupo surrealista francês, André Breton, Victor Brauner e Henri Pastoureau.
Pinta O Operário e Homenagem a Victor Brauner e uma série de Figuras de Sopro e de Sismofiguras onde introduz técnicas
que lhe permitem explorar processos abstractos de carácter automático, como a escorrência e a dispersão de tintas.
Participa na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa do qual fazem parte Alexandre O’Neill, António Domingues, António
Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Marcelino Vespeira.

1948
Escreve poemas do Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano e de Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores
Propostos à Circulação pelo Autor.
Abandona o Grupo Surrealista de Lisboa. É formado o grupo Os Surrealistas composto por Mário Cesariny, António Maria
Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Cruzeiro Seixas, Fernando Alves dos Santos, Fernando José Francisco, Henrique Risques
Pereira, Pedro Oom.

1949
Texto cadáver-esquisito do manifesto colectivo A Afixação Proibida com António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira e
Pedro Oom.
Primeira sessão de «O Surrealismo e o seu público em 1949» no Jardim Universitário de Belas-Artes (Casa do Alentejo), em
Lisboa.
Primeira Exposição dos Surrealistas, em Lisboa, na Sala de Projecções da Pathé-Baby (18 de Junho a 2 de Julho).

1950
Publica o poema Corpo Visível (edição de autor).
II Exposição dos Surrealistas. Lisboa, Galeria de «A Bibliófila», 1 a 10 de Junho.

1951
Primeira exposição individual em casa de Herberto de Aguiar, no Porto.
Edita os panfletos Para Bem Esclarecer As Gentes Que Ainda Estão À Espera, Os Signatários Vêm Informar Que: com
Mário-Henrique Leiria e Do Capítulo da Probidade com António Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Cruzeiro Seixas,
Fernando Alves dos Santos, Henrique Risques Pereira e Mário-Henrique Leiria.
Visita o poeta Teixeira de Pascoaes que se tornará referência na sua obra, em S. João de Gatão.

1952
Publica Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (Ed. Contraponto) e escreve A Bruxa, o Papagaio e a Solteira.
Conhece José-Francisco Aranda e o casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes.

1953
Publica Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (Ed. Contaponto).
Edição do manifesto A Afixação Proibida (Ed. Contraponto).
Escreve Titânia, História Hermética em Três Religiões e Um Só Deus Verdadeiro, com Vistas a Mais Luz Como Goethe
Queria.

1956
Publica Manual de Prestidigitação (Ed. Contraponto).
Exposição de Capas-Poemas-Objectos para o livro A Verticalidade e a Chave de António Maria Lisboa. Lisboa, Livraria
António Maria Pereira, 3 a 15 de Dezembro.

1957
Publica Pena Capital (Ed. Contraponto).

1958
Iniciam-se as reuniões no Café Gelo, que prosseguirão até 1963, no âmbito das quais é publicada a colecção A Antologia em
1958 e que inclui Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores de Mário Cesariny.
Manifesto Autoridade e Liberdade São Uma e a Mesma Coisa (folheto editado pelo autor).
Pintura de Mário Cesariny Vasconcelos. Lisboa, Galeria Diário de Notícias, 11 a 17 de Abril.

1959
Publica Nobilíssima Visão (Guimarães Editores).
Pintura e Poesia. Porto, Galeria Divulgação, 2 a 10 de Maio.

1960
Traduz e prefacia Une Saison en Enfer de Jean-Arthur Rimbaud (Portugália Editora).

1961
Publica Poesia 1944-1955 (Editora Delfos), Planisfério e Outros Poemas (Guimarães Editores) e Antologia Surrealista do
Cadáver-Esquisito (Guimarães Editores).
Organiza os livros Poesia e Erro Próprio de António Maria Lisboa (Guimarães Editores).
1963
Organiza e publica a antologia SURREAL-ABJECCION(ismo) (Editorial Minotauro).
Mário Cesariny — Tábuas, Pinturas e Objectos. Lisboa, Galeria Carlos Bataglia, 10 a 24 de Dezembro.

1964-1965
Publica Um Auto para Jerusalém (Editorial Minotauro).
Estada em Paris, Lausana e em Londres como bolseiro da Fundação Gulbenkian.

1966
Publica o poema A Cidade Queimada com ilustrações de Cruzeiro Seixas (Editorial Ulisseia).
Publica A Intervenção Surrealista (Editorial Ulisseia).

1967
Na comemoração do 20.º aniversário do surrealismo em português, expõe na Galeria Buchholz, em Lisboa, onde lê versões
suas de textos e poemas de Luis Cernuda, Luis Buñuel, Octavio Paz, Francis Picabia, Arrabal, Henri Michaux, Hans Arp,
Kurt Schwitters, Raul Hausmann, Marcel Duchamp, André Breton, Benjamin Péret, John Cage.
Publica Do Surrealismo e da Pintura em 1967: Cruzeiro Seixas (Ed. Lux).
Pintura Surrealista, Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas. Porto, Galeria Divulgação, 12 a 21 de Junho.
XIII Exposição Internacional do Surrealismo. S. Paulo, Maio.
Salão de Verão. Lisboa, SNBA.

1969
Exposição Internacional Surrealista. Haia.
Cesariny. Lisboa, Galeria S. Mamede, Maio.

1970
Edita o panfleto Para Bem Esclarecer As Gentes Que Continuaram À Espera, Os Signatários Vêm Informar Que: com
Cruzeiro Seixas e Mário-Henrique Leiria. Organiza o catálogo da exposição de Vieira da Silva na Galeria S. Mamede.
Conhece Édouard Roditti.
Exposição Novos Sintomas na Pintura Portuguesa. Lisboa, Galeria Judite Dacruz, Junho.

1971
Organiza e edita, com Cruzeiro Seixas, o volume Reimpressos Cinco Textos de Surrealistas em Português e publica 19
Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres (Ed. Livraria Quadrante).
30 Pinturas de Mário Cesariny. Lisboa, Galeria de S. Mamede, Janeiro.
Algumas Obras de Pintura Contemporânea das Colecções da Secretaria de Estado da Informação e Turismo e da Fundação
Calouste Gulbenkian. Lisboa, Galeria de Exposições Temporárias da FCG, Julho/Agosto.

1972
Publica a recolha antológica Burlescas Teóricas e Sentimentais (Editorial Presença), As Mãos na Água a Cabeça no Mar (ed.
de autor) e a tradução portuguesa de Iluminações e de Uma Cerveja no Inferno de Jean-Arthur Rimbaud (Ed. Estúdios Cor).
Organiza e edita, com Cruzeiro Seixas, o caderno Aforismos de Teixeira de Pascoaes.
Organiza o volume antológico Poesia de Teixeira de Pascoaes (Ed. Estúdios Cor).
Os Lusíadas que fomos, Os Lusíadas que somos. Lisboa, Galeria Diário de Notícias.
Mário Cesariny. Porto, Galeria Alvarez, Março.
10 Artistas da Galeria S. Mamede. Lisboa, Galeria S. Mamede, Maio.

1973
11 Crucificações em Detalhe / 3 Afeições de Zaratustra/ Retrato de Jean Genet. Lisboa, Galeria S. Mamede, 15 de Fevereiro
a 10 de Março.
Pintura Portuguesa de Hoje — Abstractos e Neofigurativos. Barcelona, Palácio de la Virreina, Abril/Maio. Salamanca,
Universidade de Salamanca, Maio/Junho. Lisboa, SNBA, Julho.
Phases — Homenaje a César Moro. Lima, Casa Taller Delfin, Outubro/Novembro.
Phases. Lyon, Galerie Le Passe-Muraille, Novembro.

1974
Organiza e com Cruzeiro Seixas edita o caderno Contribuição ao Registo de Nascimento Existência e Extinção do Grupo
Surrealista de Lisboa no 50.º aniversário do Primeiro Manifesto do Surrealismo em França.
Publica Jornal do Gato (Ed. de Raúl Vitorino Rodrigues).
Traduz e prefacia Os Poemas de Luís Buñuel de José-Francisco Aranda (Ed. Arcádia). Prefacia Imagem Devolvida de Mário-
Henrique Leiria (Plátano Editora).
Organiza e integra a Exposição Maias Para o 25 de Abril. Lisboa, Galeria S. Mamede, Junho.
Expo AICA. Lisboa, SNBA.
Diálogo 74. Lisboa, Galeria S. Francisco, Junho.
Exposição do Movimento Phases. Bruxelas, Museu D’Ixelles, 9 de Outubro a 17 de Novembro.

1975
Inicia a publicação das folhas volantes Bureau Surrealista (1975-1988)
Figuração-Hoje?. Lisboa, SNBA, Janeiro.
O Cadáver Esquisito Sua Exaltação Seguida de Pinturas Colectivas. Lisboa, Galeria Ottolini, Fevereiro.

1976
Inicia a série de pinturas As Linhas de Água.
Segunda edição de Nobilíssima Visão (Guimarães Editores).
Visita Octavio Paz, no México, e Eugénio Granell, em Nova Iorque.
Organiza a representação portuguesa na Exposição World Surrealist Exhibition. Chicago, Galeria Black Swan.

1977
Pinta uma série de Cinco Memorizações do México e alguns trabalhos (pintura e elementos gráficos) sobre a geração do
Orpheu, à qual pertenceram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros.
Publicação de Titânia e A Cidade Queimada (Publicações Dom Quixote) e de Textos de Afirmação e de Combate do
Movimento Surrealista Mundial (1924-1976) (Ed. Perspectivas & Realidades). Segunda edição da tradução de Os Poemas de
Luís Buñuel de J.F. Aranda (Ed. Arcádia).
Organiza e prefacia o volume Poesia de António Maria Lisboa (Ed. Assírio & Alvim).
A Fotografia na Arte Moderna Portuguesa. Centro de Arte Contemporânea, Março/Abril.
1.ª Exposição «Phases» em Portugal. Estoril, Galeria da Junta de Turismo da Costa do Sol, Novembro.
Mário Cesariny, Exposição de Obras Inéditas (1947 a 1977). Lisboa, Galeria Tempo, Dezembro.

1978
Surrealism Unlimited 1968-1978. Londres, Camden Arts Centre, 17 de Janeiro a 5 de Março.
Surrealism in 1978 — 100th Anniversary of Hysteria. Cedarburg, Ouzaukee Art Center, 5 de Março a 9 de Abril.
A António Maria Lisboa 1928-1953. Estoril, Junta de Turismo da Costa do Sol, Maio.
Claridade Dada pelo Tempo — Homenagem a Mário-Henrique Leiria. Estoril, Junta de Turismo da Costa do Sol, Agosto.

1979
Prefacia e traduz Enquanto Houver Água na Água e Outros Poemas, de Breyten Breytenbach (Publicações Dom Quixote).
Cesariny. Lisboa, Galeria Tempo, Fevereiro de 1979, Porto, Galeria Alvarez-Dois, Março de 1979.
Presencia Viva de Wolfgang Paalen. Cidade do México, Instituto Nacional de Belas Artes, Julho.
Arte Moderna Portuguesa. Lisboa, SNBA, Setembro.

1980
Publica Primavera Autónoma das Estradas (Ed. Assírio & Alvim).
Fondo de Arte. Santa Cruz de Tenerife, Sala de Arte e Cultura La Laguna, 24 de Novembro a 10 de Dezembro, Sala de Arte e
Cultura Puerto de La Cruz, 12 de Dezembro a 24 de Dezembro.

1981
Publicação de Manual de Prestidigitação (Ed. Assírio & Alvim).
Organiza o catálogo e a exposição Três Poetas do Surrealismo — António Maria Lisboa, Pedro Oom e Mário-Henrique
Leiria, na Biblioteca Nacional.
Organiza um número da revista Mele — Carta Internacional de Poesia dedicado aos poetas surrealistas portugueses.
Papeles Invertidos. Santa Cruz de Tenerife, Aula Cultural — Caja Insular de Ahorros, 3 a 13 de Fevereiro.
Mário Cesariny. Lisboa, Galeria S. Mamede, Março.
Permanence du Regard Surréaliste. Lyon, Espace Lyonnais d’Art Contemporain, 30 de Junho a 22 de Setembro.
Antevisão do Centro de Arte Moderna. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Julho/Setembro.
Mário Cesariny. Viseu, Galeria 22, Dezembro.

1982
Tradução de Heliogabalo ou o Anarquista Coroado de Antonin Artaud (Ed. Assírio & Alvim).
Publicação de Pena Capital (Ed. Assírio & Alvim).
Mário Cesariny. Amarante, Museu Municipal, Janeiro.
Os Anos 40 na Arte Portuguesa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 30 de Março a 17 de Maio.

1983
Publica a antologia Horta de Literatura de Cordel (Ed. Assírio & Alvim) e o poema Sombra de Almagre, com serigrafia do
autor (Ed. de Isaac Holly).
Le Surréalisme Portugais. Montreal, Galerie UQAM, 16 de Setembro a 9 de Outubro.
Harvest of Evil — Group Surrealist Exhibition. Columbus, Ti Rojo Studio, 29 de Outubro a 12 de Novembro.

1984
Publica Vieira da Silva, Arpad Szenes ou o Castelo Surrealista (Ed. Assírio & Alvim).
Os Novos Primitivos: os grandes plásticos. Porto, Cooperativa Árvore, Janeiro.
Exposição Internacional: Surrealismo e Pintura Fantástica. Lisboa, Teatro Ibérico, Dezembro. SNBA, Janeiro de 1985.

1985
Reedição (aumentada) de As Mãos na Água a Cabeça no Mar (Ed. Assírio & Alvim).
Um Rosto para Fernando Pessoa. Lisboa, FCG/CAM, Julho.
Pintura Portuguesa: obras destinadas ao Museu de Arte Moderna do Porto. Lisboa, Galeria Almada Negreiros, 17 de
Setembro a 3 de Outubro.

1986
Traduz uma selecção de Fragmentos, de Novalis (Ed. Assírio & Alvim).
Colectiva de Pintura. Lisboa, Galeria Isaac Holly.
O Fantástico na Arte Contemporânea. Lisboa, FCG/CAM, Fevereiro/Março.
56 Artistas da António Arroio. Lisboa, SNBA, de 20 de Maio a 8 de Junho.
Mário Cesariny: 11 acrílicos comemorativos do nascimento da primeira linha de água. Lisboa, Livraria Assírio & Alvim,
Dezembro.

1987
III Bienal Nacional de Desenho. Porto, Cooperativa Árvore — Mercado Ferreira Borges, 4 a 27 de Julho.
Anos 40 a 60. Macau, Galeria do Leal Senado, 22 de Fevereiro a 4 de Março.
VIII Salão de Outono. Estoril, Galeria de Arte do Casino do Estoril, 13 de Novembro a 1 de Dezembro.
Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, 21 de Novembro a 20 de Dezembro.
III Exposição: Pintura, Desenho, Cerâmica. Constância, Galeria de Constância, 28 de Novembro a 19 de Dezembro.
1988
Reedição de A Cidade Queimada (Ed. Assírio & Alvim).
Exposição Internacional L’Experience Continue Phases 1952-1988. Le Havre, Museu de Belas Artes André Malraux.
A Galeria D’Arte de Vilamoura e a Colecção de Cruzeiro Seixas. Vilamoura, Galeria D’Arte de Vilamoura.
Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, Fevereiro.
O Mar-i-o Cesariny: o navio de espelhos. Lisboa, Galeria EMI-Valentim de Carvalho, Maio.
Exposição Phases 1952-1988. Le Havre, Museu de Belas Artes André Malraux, Maio.
Oitenta Anos de Arte Portuguesa. Lisboa, Galeria de São Bento, Maio/Junho.
14 + 1 Pintores Contemporâneos, Torres Novas, Galeria Neupergama, Junho.
IX Salão de Outono. Estoril, Galeria de Arte do Casino Estoril, 1988.
9 + 3 Pintores Contemporâneos. Torres Novas, Galeria Neupergama, Novembro/Dezembro.
Exposição Outono/88 — Inverno/89. Constância, Galeria de Constância, 8 de Dezembro a 15 de Janeiro de 1989.

1989
Publica O Virgem Negra (Ed. Assírio & Alvim).
Reedição da Antologia do Cadáver Esquisito (Ed. Assírio & Alvim).
15 + 3 Pintores Contemporâneos. Torres Novas, Galeria Neupergama.
Exposição Colectiva. Lisboa, Galeria Holly, 4 de Maio a 4 de Junho.
13 Pintores Portugueses. Torres Novas, Galeria Neupergama, Maio/Junho.
2.º Fórum de Arte Comtemporânea. Lisboa, Fórum Picoas, Junho.
Exposição de Pintura e Escultura do Património da Caixa Geral de Depósitos. Porto, Casa de Serralves, Julho/Agosto.
12 + 2 Pintores Portugueses. Torres Novas, Galeria Neupergama, 5 de Outubro a 7 de Novembro.
X Salão de Outono, Descobrimentos Portugueses. Estoril, Galeria de Arte do Casino Estoril, 18 de Novembro a 10 de
Dezembro.

1990
Colectiva de Pintura. Lisboa, Galeria Nartis, Maio.
Surrealismo E-Não-Só. Torres Novas, Galeria Neupergama, Outubro/Novembro.
20 Pintores no Décimo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 24 de Novembro a 15 de Janeiro de
1991.

1991
Reedição de Nobilíssima Visão (1945-1946) (Ed. Assírio & Alvim).
Cesariny: A Ilha Misteriosa. Costa da Caparica, Galeria Almadarte, de 22 de Junho a 28 de Julho.
Jardim do Tabaco: exposição de pintura e escultura. Lisboa, Pavilhão AB do Jardim do Tabaco.
3.ª Bienal de Arte dos Açores e Atlântico. Horta, Outubro/Novembro.
17 + 2 Pintores no Décimo Primeiro Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 14 de Dezembro a 20 de
Janeiro de 1992.

1992
17 Pintores no Décimo Segundo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama.
Automatismos. Las Palmas de Gran Canaria, Centro Atlántico de Arte Moderna, 11 de Fevereiro a 29 de Março.
Homenagem a D’Assumpção. Portalegre, Galeria Municipal de Portalegre, 7 a 17 de Outubro.
Exposicion Surrealista. Madrid, Estudio Ancora, 13 de Novembro a 11 de Dezembro.
Arte Portuguesa nos Anos 50. Beja, Biblioteca Municipal, Outubro/Novembro. Lisboa, SNBA, Janeiro/Fevereiro 1993.

1993
Verão 93 – 14 Pintores Portugueses. Torres Novas, Galeria Neupergama.
Mário Cesariny, 47 Anos de Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, 23 de Outubro a 5 de Dezembro.
18 Pintores Contemporâneos no 13. º Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, Dezembro a Janeiro de
1994.
1994
Reedição de Titânia História Hermética em Três Religiões e um Só Deus Verdadeiro com Vistas a Mais Luz como Goethe
Queria (Ed. Assírio & Alvim).
Phases — 87 images, 71 artistes, 23 pays de la planisphére. Galerias de Arte de Plemet Ploeuc / Lié et Quintin, 26 de Maio a
28 de Junho.
Primeira Exposição do Surrealismo ou Não. Lisboa, Galeria S. Mamede, Julho a Outubro.
Surrealismo (e não) — Obras da Colecção Doada pelo Eng. João Meireles. Vila Nova de Famalicão, Novembro.
Colecção Manuel de Brito: Imagens da Arte Portuguesa do Século XX. Lisboa, Museu do Chiado, 16 de Novembro a 31 de
Dezembro.
Vinte Pintores no Décimo Quarto Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 10 de Dezembro a 22 de
Janeiro de 1995.

1995
Publica Uma Combinação Perfeita (Edições Prates).
Mário Cesariny e Álvaro Lapa. Torres Novas, Galeria Neupergama, 18 de Fevereiro a 2 de Abril.
Plural. Torres Novas, Galeria Neupergama, 17 de Junho a 6 de Agosto.
Imargem 95. Almada, Câmara Municipal de Almada, Dezembro.
Vinte e Dois Artistas no Décimo Quinto Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 16 de Dezembro a 28 de
Janeiro de 1996.

1996
Reedição de Corpo Visível com 15 ilustrações, capa e retrato do autor por Pedro Oom (Edições Prates) e publicação de
António António (Ed. da Secretaria Regional da Educação e Cultura, Região Autónoma dos Açores). Segunda edição (revista
e aumentada) de O Virgem Negra (Ed. Assírio & Alvim). Reedição da tradução de Os Poemas de Luís Buñuel de J.F. Aranda.
Colecção Mário Soares. Lisboa, Museu do Chiado, 22 de Fevereiro a 21 de Abril.
António Areal, Mário Cesariny, Álvaro Lapa. Torres Novas, Galeria Neupergama, 30 de Março a 12 de Maio.
El Juego de los Espejos — Colección Fundación Eugenio Granell. Instituto Leonés de Cultura, Sala Província, 3 de Maio a
22 de Junho.
Associação Académica de S. Mamede — 50 Anos / 50 Artistas. S. Mamede de Infesta, Galeria Municipal Arménio Losa, 24
de Maio a 30 de Junho.
Pluralidades. Torres Novas, Galeria Neupergama, 1 de Junho a 28 de Julho.
Mário Cesariny: Regresso a 1947. Torres Novas, Galeria Neupergama, 5 de Outubro a 30 de Novembro.
Feira de Arte Contemporânea — FAC 96 / Fórum Atlântico de Arte Contemporânea — Fórum 96. Matosinhos, Exponor, de 5
a 10 de Dezembro.
Vinte Artistas no Décimo Sexto Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 7 de Dezembro a 25 de Janeiro
de 1997.

1997
Reedição de A Intervenção Surrealista (Ed. Assírio & Alvim).
4 Pintores Portugueses — Cesariny, Charrua, Álvaro Lapa, Julião Sarmento. Torres Novas, Galeria Neupergama, 15 de
Março a 27 de Abril.
Colecção José-Augusto França. Lisboa, Museu do Chiado, 20 de Março a 29 de Junho.
Gravura Moderna — Exposição Comemorativa do X Aniversário, Costa de Caparica, Almadarte Galeria, 10 de Maio a 17 de
Agosto.
A Arte, o Artista e o Outro. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda.
Vinte e Dois Artistas no Décimo Sétimo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 29 de Novembro a 18 de
Janeiro de 1998.

1998
23 Artistas Contemporâneos. Torres Novas, Galeria Neupergama, 10 de Junho a 19 de Julho.
O que há de Português na Arte Moderna Portuguesa. Lisboa, Palácio Foz, Junho/Setembro.
Mário Cesariny, Pintura Surrealista Monocromática e Outra. Torres Novas, Galeria Neupergama, 10 de Outubro a 6 de
Dezembro.
Dez Artistas no Décimo Oitavo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 12 de Dezembro a 7 de
Fevereiro de 1999.

1999
Segunda edição de Pena Capital (Ed. Assírio & Alvim).
Desenhos dos Surrealistas em Portugal 1940-1966. Porto, Museu Nacional de Soares dos Reis.
Natália: Arte e Poesia. Lisboa, Palácio Galveias. Porto, Fundação Eng. António de Almeida.
Linhas de Sombra. Lisboa, FCG/CAM, de 29 de Janeiro a 18 de Abril.
Surrealismo. Torres Novas, Galeria Neupergama, 27 de Março a 16 de Maio.
Doações Recentes. Lisboa, Museu do Chiado, 28 de Outubro a 15 de Novembro.
Agriculturas. Lisboa, Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos, 29 de Novembro a 7 de Dezembro.
Doze Artistas no Décimo Nono Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 4 de Dezembro a 30 de Janeiro
de 2000.

2000
Publica Tem Dor e Tem Puta (Ed. de Ernesto Martins) e traduz Hamlet, tragédia cómica por Luís Buñuel (Ed. Assírio &
Alvim).
Nova edição de A Cidade Queimada (Ed. Assírio & Alvim).
Caminha nos Caminhos do Surrealismo — Mário Cesariny: Uma Antologia. Caminha, Câmara Municipal de Caminha, 12 de
Maio a 12 de Junho.
Feira de Arte Contemporânea — FAC 2000. Lisboa, FIL — Parque das Nações, 23 a 28 de Novembro.
Dezasseis Artistas no Vigésimo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 2 de Dezembro a 21 de Janeiro
de 2001.

2001
Mário Cesariny, Enrique Carlón, J.F. Aranda. Torres Novas, Galeria Neupergama, 24 de Fevereiro a 22 de Abril.
Surrealismo em Portugal 1934-1952. Badajoz, Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, 16 de Março a
13 de Maio. Lisboa, Museu do Chiado, 24 de Maio a 23 de Setembro. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de
Miranda, 27 de Outubro a 31 de Dezembro.
Catorze Artistas no Vigésimo Primeiro Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 8 de Dezembro a 31 de
Janeiro de 2002.

2002
Recebe o «Grande Prémio EDP» de artes plásticas.
Versão portuguesa de História do Soldado em duas partes de C.F. Ramuz (Ed. Assírio & Alvim).
Surrealismo em Portugal 1934-1952. Círculo de Belas Artes, Madrid.
1940/1960 — Figuração e Abstracção nas Colecções do Museu do Chiado. Castelo Branco, Museu de Francisco Tavares
Proença Júnior.
Mário Cesariny — Pintura. Torres Novas, Galeria Neupergama, 9 de Março a 5 de Maio.
Territórios Singulares na Colecção Berardo. Sintra, Museu de Arte Moderna, 26 de Outubro a 28 de Fevereiro de 2003.
Quinze Artistas no Vigésimo Segundo Aniversário da Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, 5 de Dezembro a 20 de
Fevereiro de 2003.

2003
Acervo 03. Lisboa, Perve Galeria, Junho.
O Surrealismo na Colecção Berardo. Tavira, Palácio da Galeria, 12 de Julho a 14 de Setembro.
Vigésimo Terceiro Aniversário — Quinze Artistas. Torres Novas, Galeria Neupergama, 6 de Dezembro a 31 de Janeiro de
2004.
Uma Colecção. Montijo, Galeria Municipal do Montijo, 6 de Dezembro a 7 de Fevereiro de 2004.
2004
Reedição de Jornal do Gato e de Horta de Literatura de Cordel (Ed. Assírio & Alvim). Terceira edição (aumentada) de Pena
Capital (Ed. Assírio & Alvim).
Da Convergência dos Rios / Exposição de Arte Contemporânea de Moçambique e Portugal. Lisboa, Perve Galeria, 21 de
Março a 24 de Abril.
O Surrealismo Abrangente — Colecção Particular de Cruzeiro Seixas. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de
Miranda, 24 de Abril a 30 de Maio.
Revisitar Obras do Anos 60-70-80-90. Torres Novas, Galeria Neupergama, 15 de Maio a 12 de Junho.
Acervo 03 / Razões de Existir. Lisboa, Perve Galeria, 7 de Novembro a 18 de Dezembro.
Mário Cesariny — Exposição Grande Prémio EDP 2002. Lisboa, Museu da Cidade, 2 de Dezembro a 13 de Fevereiro de
2005, Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda, 5 de Março de 2005 a 30 de Abril de 2005.

2005
Recebe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e o Prémio «Vida Literária» da Associação Portuguesa de Escritores.
Segunda edição (revista) de Manual de Prestidigitação (Ed. Assírio & Alvim).
O Surrealismo Abrangente — Colecção Particular de Cruzeiro Seixas. Lisboa, 11 de Janeiro a 12 de Fevereiro, Lagoa,
Convento de S. José, 1 de Julho a 8 de Setembro.
Iluminações. Torres Novas, Galeria Neupergama, Março/Abril.
Arte Lisboa 2005 — Feira de Arte Contemporânea. Lisboa, Feira Internacional de Lisboa, 24 a 28 de Novembro.
O Contrato Social. Lisboa, Museu Bordalo Pinheiro, 4 de Outubro a 8 de Janeiro de 2006.
Fernando Lemos e o Surrealismo. Sintra, Museu de Arte Moderna, 26 de Novembro a 30 de Abril de 2006.
5.º Aniversário da Perve Galeria. Lisboa, Convento do Beato, 8 de Dezembro a 14 de Janeiro de 2006.

2006
Morre em Lisboa a 26 de Novembro.
25 Anos da Galeria Neupergama. Torres Novas, Galeria Neupergama, Janeiro/Fevereiro.
II Exposição de Artes Plásticas — Arte na Planície. Montemor-o-Novo, 8 de Abril a 30 de Maio.
Feira de Arte do Estoril. Estoril, Centro de Congressos do Estoril, 14 a 18 de Abril.
20 Anos — 20 Nomes Portugueses. Porto, Galeria Nasoni, Abril/Maio.
Artistas na Galeria. Torres Novas, Galeria Neupergama, Maio/Junho.
Mário Cesariny: Navío de Espejos. Madrid, Círculo de Belas Artes, de 20 de Setembro a 19 de Novembro.

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