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Uma esquina nos confins da América:

encontros e desencontros nos processos de


povoamento e ocupação do território
do atual Mato Grosso do Sul
Paulo Roberto Cimó Queiroz

Introdução33 a instauração, no Brasil, do regime republica-


no federativo (1889), foi, por sua vez, altera-
O território que hoje constitui Mato Gros- da para estado. Nessa época, o então estado
so do Sul (MS), habitado por grupos humanos de Mato Grosso englobava os atuais estados
desde cerca de 12 mil anos antes do presen- de Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do
te (MARTINS; KASHIMOTO, 2012, p. 104), Sul. Seus limites externos, com a Bolívia e o
situava-se, na época da conquista europeia, Paraguai, foram definidos ao longo do sécu-
no hemisfério espanhol, nos termos do trata- lo XIX, mediante tratados assinados em 1867
do de Tordesilhas. Passou, depois, ao domí- (com a Bolívia) e em 1872 (com o Paraguai,
nio lusitano, inicialmente como integrante da logo após o término da Guerra da Tríplice
Capitania de São Paulo e, mais tarde, como Aliança). Do antigo estado foram subtraídas,
parte da Capitania de Mato Grosso (criada em em 1943, uma porção que passou a consti-
1748). Vale notar que a porção sul dessa ca- tuir o Território Federal do Guaporé (corres-
pitania, correspondente ao atual Mato Grosso pondente à atual Rondônia) e outra, no ex-
do Sul, manteve-se, nessa época, de certa for- tremo sul, que constituiu o Território Federal
ma, à margem dos processos históricos que de Ponta Porã – o qual, todavia, foi extinto já
determinaram a própria incorporação de toda em 1946. Em 1977, enfim, a porção meridio-
a região aos domínios portugueses, isto é, a nal do velho estado passou a constituir Mato
descoberta de jazidas auríferas, fato ocorrido Grosso do Sul, oficialmente instalado em ja-
em terras do atual estado de Mato Grosso.34 neiro de 1979.35
Com a declaração de independência do Situado no interior da América do Sul e de-
Brasil (1822), a antiga capitania passou a ser limitado, a leste e a oeste, por dois volumosos
chamada de província – designação que, após caudais (os rios Paraguai e Paraná), o territó-
rio hoje sul-mato-grossense apresenta-se, em
33
Manifesto aqui meus agradecimentos às organizado- termos físicos, repartido em duas formações
ras deste livro pela atenta leitura dos originais de meu
capítulo e pelas valiosas observações e sugestões – principais: o planalto (parte do planalto sedi-
ressalvando, contudo, que continuo, por certo, o úni- mentar da bacia do Paraná) e a baixada (o vale
co responsável pelos eventuais equívocos e omissões
do texto. Para facilitar a redação e, ao mesmo tempo, evitar o
35
34
Todo este território – correspondente, grosso modo, anacronismo, a porção territorial que viria a consti-
ao atual Mato Grosso do Sul e à parte meridional do tuir Mato Grosso do Sul é referida, neste trabalho,
atual Mato Grosso – foi designado por Sérgio Buar- como “antigo sul de Mato Grosso”,“sul do antigo
que de Holanda como Extremo Oeste. Mato Grosso” ou simplesmente “SMT”.

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do rio Paraguai) (Ilust. 66). Os rebordos do pla- das terras altas (o altiplano andino) e aqueles
nalto, orientados no sentido norte-sul, consti- das terras baixas, situadas a leste do altiplano.
tuem uma linha de escarpas (cuestas), as quais Nesse contexto situa-se, por exemplo, o céle-
cortam a região quase ao meio e recebem a bre Peabiru – caminho terrestre que, segundo
denominação de “serras”, a saber, a serra de diversos estudiosos, ligava diversos pontos do
São Jerônimo, ao norte, e a serra de Maraca- litoral hoje brasileiro, entre os estados de San-
ju, ao sul (IBGE, 1979, p. 11 et seq.). A mes- ta Catarina e São Paulo, com as margens do
ma linha de escarpas, agora com o nome de rio depois chamado Paraguai, prosseguindo
serra de Amambai, marca também a fronteira daí para oeste, em direção aos domínios do
entre Mato Grosso do Sul e a República do Pa- Império Inca (cf. COMBÈS, 2011). A esse con-
raguai, desde as cabeceiras do rio Apa até as texto, liga-se um interessante movimento de
proximidades das cidades gêmeas de Paranhos circulação de informações e mesmo de artefa-
e Ypé-Jhú; desse local em diante, no sentido tos, movimento pelo qual chegavam ao litoral
oeste-leste, até a margem direita do rio Paraná, atlântico notícias e objetos provenientes das
a fronteira é marcada por outra linha de cues- terras altas. Isso é o que explica a presença de
tas, igualmente chamada (e, neste caso, desde artigos de metal precioso na desembocadura
a época colonial) serra de Maracaju. que seria justamente chamada “Rio da Prata”
Entre os principais rios do SMT incluem-se, – artigos, aliás, corretamente associados pelos
na bacia do Paraguai, o Taquari, o Miranda indígenas do litoral, ainda que num registro
(com seu formador Aquidauana) e o Apa (que mítico, a suas deslumbrantes fontes situadas
marca também a fronteira com a República no impreciso interior do vasto continente.
do Paraguai); e, na bacia do Paraná, os rios
Paranaíba, Sucuriú, Verde, Pardo, Ivinhema
(com seus formadores Brilhante e Vacaria), Da conquista europeia à descoberta do
Amambai e Iguatemi. ouro de Cuiabá
O planalto apresentava-se, originalmente,
recoberto, na maior parte, pelo cerrado, ex- Para se compreender a conquista, por parte
ceto no extremo sul (sobretudo ao sul do rio dos europeus, desta região tão interior, é preci-
Ivinhema), onde predominava a mata tropi- so considerar a peculiar conformação dos ca-
cal (continuação da Mata Atlântica). Campos minhos, sobretudo fluviais, que ligavam ao li-
limpos, em manchas mais ou menos extensas, toral atlântico o espaço mencionado (Ilust. 67).
apareciam em todo o planalto. A baixada, por Situado a várias centenas de quilômetros
sua vez, compreende tanto o conhecido Pan- dos litorais oceânicos, é este um território
tanal (com sua variada vegetação, aí incluí- marcado pela continentalidade – caráter que
dos os campos) quanto maciços montanhosos parece ainda mais acentuado pelo fato de
como Urucum e a Bodoquena, onde ocorre suas ligações com o Atlântico, no sentido dos
também a mata tropical. paralelos (leste-oeste), terem se caracteriza-
O território aqui considerado foi, muito do, historicamente, pelas dificuldades opos-
cedo, envolvido na história da conquista eu- tas pelo meio físico. Entretanto, essa mesma
ropeia da América do Sul. A esse respeito, é continentalidade mostra-se, por assim dizer,
conveniente lembrar que, ao contrário do que “atenuada” pelo fato de que o litoral atlântico
se tende muitas vezes a supor, muito antes da pode ser igualmente atingido, a partir dessa
conquista existiam contatos, mais ou menos região, mediante o trânsito pelo sistema flu-
intensos, entre os grupos humanos que habi- vial Paraguai-Paraná, orientado no sentido dos
tavam o litoral atlântico da América do Sul e meridianos (norte-sul). Se o percurso por essa
aqueles estabelecidos no interior do continen- via apresenta-se muito mais longo que aque-
te – aí incluídos os contatos entre os habitantes les efetuados na direção leste-oeste, ele histo-

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ILUSTRAÇÃO 67 - VIAS DE COMUNICAÇÃO NA BACIA PLATINA (LOS RÍOS NOS UNEN, 1998; ADAPTADO)

ricamente se caracterizou, por outro lado, por conhecida como Pantanal (VALVERDE, 1972,
ser mais rápido e muito mais cômodo, bene- p. 101-102).36
ficiando-se de condições de navegação que,
do médio Paraguai até o estuário do Prata, 36
De acordo com Costa (1999, p. 18-19), foram os
variam de regulares a excelentes – condições luso-brasileiros, em meados do século XVIII, quem
essas tão vantajosas que um geógrafo brasilei- introduziu o uso do termo pantanal para designar a
vasta planície inundável do rio Paraguai – a qual,
ro chegou a considerar essa via fluvial como antes disso, costumava ser designada pelos espa-
a porta verdadeira para a região que ficaria nhóis como laguna de Xarayes.

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As facilidades oferecidas por essa porta ver- Assunção, havia degenerado em simples do-
dadeira foram bem cedo reconhecidas, de modo mínio dos europeus sobre os indígenas, por
que, desde a primeira metade do século XVI, meio, sobretudo, do instituto da encomienda.
registra-se no território aqui considerado a pre- Assim, segundo a mesma Gadelha, Xerez aca-
sença de conquistadores espanhóis que, a partir bou por configurar-se apenas como um “pos-
do estuário platino, dirigiam-se ao interior do to avançado” dos encomenderos de Assunção
continente. De fato, a partir da década de 1530, (1980, p. 81).
em seguida à fundação de Assunção (1537), tais Entretanto, ainda nessa primeira metade
conquistadores sobem obstinadamente o médio do século XVII os grupos indígenas situados
e o alto Paraguai no afã de encontrar o caminho nos domínios dos assuncenhos passaram a ser
para sua mítica Serra de Prata. alvo de incursões escravizadoras provenien-
Desse processo, contudo, nada restou no tes dos domínios lusitanos, efetuadas pelos
território hoje sul-mato-grossense, exceto habitantes da capitania de São Vicente – mais
um ou outro ponto assinalado nas crônicas especificamente, no caso, os moradores do
da conquista, como, por exemplo, o Puerto chamado planalto paulista, isto é, a região de
de los Reyes, local aparentemente situado às serra acima onde se havia fundado, em 1554,
margens da Lagoa Gaíba, atingido em 1543 a povoação de São Paulo (personagens cos-
pelo espanhol Domingo Martínez de Irala (cf. tumeiramente referidos pelas designações de
AZARA, 1943 [1847], p. 284). paulistas, mamelucos de São Paulo, bandei-
Desse modo, marcas mais duradouras da rantes ou mesmo vicentinos).38
presença espanhola começariam a ser constru- Assim, a própria existência das referidas re-
ídas apenas na segunda metade do século XVI duções do Itatim, iniciadas entre 1631 e 1632,
– depois que, desenganados37 da esperança de relaciona-se às incursões bandeirantes – as
poderem desfrutar das riquezas do Peru, os con- quais, em fins da década de 1620, forçaram
quistadores anteriormente mencionados decidi- os jesuítas a abandonarem, com seus neófitos,
ram concentrar-se em sua própria sobrevivência a região do Guairá (correspondente, grosso
na região. Assim, Assunção logo se converteu modo, ao noroeste do atual estado brasileiro
em um centro de fixação de “colonos” dedi- do Paraná), para irem estabelecer-se em outras
cados a atividades agropecuárias mediante a partes, isto é, a atual região de Misiones (Ar-
exploração do trabalho indígena. Em seguida gentina), além do próprio Itatim. Tal presença
(entre o final do século XVI e o início do século espanhola, contudo, teria uma existência mui-
seguinte), foi também integrada a esse contexto to breve. Já em 1632, Xerez foi abandonada
a porção meridional do atual Mato Grosso do por seus moradores e, entre 1647 e 1648, foi a
Sul, onde os assuncenhos estabeleceram o nú- vez de os jesuítas, novamente acossados pelos
cleo chamado Santiago de Xerez e jesuítas da bandeirantes, abandonarem o Itatim.39
província do Paraguai fundaram as reduções do Vale notar que, a esse respeito, desenvolveu-se
Itatim (cf. GADELHA, 1980). – principalmente entre hispano-americanos,
À cidade de Santiago de Xerez, conforme mas até mesmo entre luso-brasileiros – uma
assinala Holanda, ligavam-se róseas perspec- poderosa narrativa nacionalista, a qual atribui
tivas – as quais, no entanto, foram todas frus- aos portugueses, por meio de seus súditos ame-
tradas (HOLANDA, 1986). Já então, como as-
sinala Gadelha, a aliança entre os espanhóis
38
Como se sabe, os escravos índios eram conduzidos
ao trabalho no planalto paulista – onde, ao longo do
e os índios guarani-falantes denominados século XVII, a força de trabalho indígena constituiu,
Cário, que havia possibilitado a fundação de por exemplo, a base de prósperas lavouras de trigo
(MONTEIRO, 2000b).
39
Sobre esses assuntos ver, neste livro, o capítulo escri-
Desengano que data de 1548, quando os assunce-
37
to por Graciela Chamorro, Isabelle Combès e André
nhos descobrem que sua Serra de Prata nada mais era Freitas bem como o de Ana Cláudia Marques Pache-
que o Peru, já conquistado por outros espanhóis. co e Manuel Pacheco.

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ricanos, uma deliberada política de ocupação da Companhia de Jesus, que lhes tolhiam o
de territórios situados na demarcação espanho- acesso à força de trabalho indígena de que
la. Por essa narrativa, os dirigentes lusos, desde necessitavam (HOLANDA, 1986, p. 96-97).
pelo menos a primeira metade do século XVII, Os espanhóis de Assunção continuariam,
teriam “guiado” as incursões dos bandeiran- certamente, até o final do período colonial, a
tes em direção ao Oeste, “fabricando”, desse efetuar “patrulhas” nas porções mais meridio-
modo, com mais de um século de antecedên- nais do atual Mato Grosso do Sul, com vistas
cia, os argumentos para a futura incorporação a tentar obstar a passagem ou a permanên-
dessas regiões, sacramentada pelo Tratado de cia de seus congêneres luso-brasileiros (cf.
Madri (1750), com base no conhecido princípio CORRÊA FILHO, 1969). Isso, contudo, não
do uti possidetis (HOLANDA, 1986).40 impediu que, ao longo de toda a segunda me-
Para Holanda, contudo, todo esse proces- tade do século XVII, paulistas continuassem
so foi muito mais prosaico, isto é, despido de a perseguir e escravizar os indígenas dessa re-
maiores conotações políticas e impulsionado gião, nela mantendo até mesmo um “núcleo
apenas pelas condições concretas em que se fortificado” (o qual teria existido nos campos
situavam, de um lado, as povoações laicas chamados “da Vacaria”, HOLANDA, 1990, p.
hispano-americanas, e, de outro, os luso- 265). Muito menos impediu que, mais tarde
-brasileiros estabelecidos no planalto paulista (1718), fossem paulistas os descobridores das
desde meados do século XVI. Assim, escreve ricas jazidas auríferas situadas em locais cor-
Holanda, se os bandeirantes paulistas, na pri- respondentes à atual cidade de Cuiabá.
meira metade do século XVII, puderam esten- Convém, enfim, assinalar que, ao longo
der sua ação até os territórios antes ocupados do século XVII, a ação despovoadora dos
pelos hispano-americanos, no noroeste do paulistas no SMT, associada à atividade dos
atual Paraná e sul do atual Mato Grosso do Sul, jesuítas inicialmente estabelecidos no Itatim,
isto se deu porque estes últimos, com exceção foi responsável por uma notável alteração
dos jesuítas, a isso não se opuseram seriamen- demográfica nessa região. De fato, a saída
te. Holanda identifica, aí, o que ele denomina dos grupos Guarani (escravizados pelos ban-
refluxo assuncenho: aos assuncenhos, escre- deirantes ou deslocados pelos jesuítas mais
ve ele, já lhes custava muito o sustentar-se para o sul) abriu espaço para a entrada de
na própria Assunção, de modo que logo lhes grupos de indígenas chaquenhos, isto é, os
veio a faltar a energia e, sobretudo, o interesse Mbayá-Guaikuru e os Chané-Guaná.42
necessário para manter seus estabelecimentos
mais distantes.41 Nesse contexto, no proces-
so pelo qual os bandeirantes impiedosamen- Do ouro de Cuiabá ao início da efetiva
te atacaram as missões jesuíticas do Guairá e, ocupação não indígena do antigo sul de
mais tarde, do Itatim, os “colonos” assuncenhos Mato Grosso
tenderam, antes, a confraternizar com os paulis-
tas que combatê-los – tendo em vista que am- A descoberta de ouro no rio Coxipó,
bos tinham como verdadeiros inimigos, tanto afluente do Cuiabá, entre 1718 e 1719, mar-
em S. Paulo como no Paraguai, os religiosos ca uma notável inflexão na história da região
aqui considerada. Até então, de fato, as auto-
40
No âmbito do direito internacional, tal princípio ridades metropolitanas portuguesas não mani-
significava o “reconhecimento da soberania de um
Estado sobre as terras por ele ocupadas, até onde
se estendia a ocupação efetiva na atualidade de sua Tais movimentos de povos, no que concerne tanto
42
aplicação” (ALMEIDA, 1951, p. 72). aos grupos chaquenhos quanto aos Guarani, tiveram,
41
Além de Xerez, ligou-se à iniciativa dos assuncenhos também, por certo, várias outras motivações (ver a
a fundação de outras povoações situadas em territó- esse respeito, neste livro, o capítulo escrito por Isa-
rio hoje brasileiro (especialmente a Vila Rica do Espí- belle Combès e Nicolás Richard, bem como aquele
rito Santo, em terras do atual estado do Paraná). escrito por Roberto Tomichá).

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festavam qualquer interesse pela posse desta esse território. Assim, foi logo estendida até
específica porção do território sul-americano estas minas a jurisdição do capitão-general e
– tanto que, como observa Holanda (1986, p. governador da Capitania de São Paulo – quem,
29), a Coroa lusa preferia antes admoestar que em seguida, dirigiu-se pessoalmente ao arraial
galardoar os seus súditos que eventualmente de Cuiabá para elevá-lo à categoria de vila
adentrassem tais territórios de oeste. real, sob a invocação do Senhor Bom Jesus (ja-
Os achados auríferos, contudo, logo atraí- neiro de 1727). Além disso, ao mesmo tempo
ram um espontâneo fluxo de mineiros, comer- em que tomavam posse de fato deste Extremo
ciantes e outros interessados em lucrar com as Oeste, os portugueses buscavam negociar com
atividades de exploração mineral. O primeiro a Espanha novos limites, que lhes pudessem
resultado mais notável do referido fluxo foi o garantir também a posse de direito – o que foi
surgimento do complexo fenômeno das mon- obtido, como já mencionado, pelo Tratado de
ções, isto é, os comboios de canoas que, par- Madri (1750). Mesmo antes disso, no entanto,
tindo das imediações da atual cidade paulista havia sido criada a Capitania de Mato Grosso,
de Porto Feliz (local então chamado Araritagua- desmembrada de São Paulo (1748), e nomea-
ba), no rio Tietê, seguiam caminhos fluviais em do seu primeiro governador – quem, aliás, em
direção às minas cuiabanas (Ilust. 68). Nessa seguida fundou, para capital da capitania, uma
nova fase histórica, ocorreu, também, a intro- nova povoação: a Vila Bela da Santíssima Trin-
dução de escravos africanos, utilizados, princi- dade (1752), estabelecida junto a jazidas aurí-
palmente, nos trabalhos de extração do ouro. feras que haviam sido encontradas em 1734 a
A descoberta do metal precioso atraiu deci- noroeste de Cuiabá, às margens do rio Guapo-
sivamente a atenção das autoridades lusas para ré (já, portanto, na bacia amazônica).

ILUSTRAÇÃO 68 - A ROTA DAS MONÇÕES E OUTROS CAMINHOS PARA O EXTREMO OESTE (HOLANDA, 1990, P. 145)

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As descobertas de metal precioso, como já de ocupação e povoamento não indígena. Tal,
foi dito, limitaram-se à parte setentrional do entretanto, não sucedeu – o que se deveu, con-
Extremo Oeste, pertencente ao atual estado de forme procurei argumentar em outro trabalho,
Mato Grosso. Em outras palavras, nada foi en- à relativa fraqueza do fluxo comercial associa-
contrado, nessa época, na porção meridional, do às monções (QUEIROZ, 2009). No SMT, os
correspondente ao atual estado de Mato Gros- comboios monçoeiros atravessavam territórios
so do Sul. Desse modo, esta porção limitou-se dominados pelos indígenas Kayapó, Guaikuru
então, segundo a expressão de Valmir Corrêa, e Payaguá. Assim, a manutenção dos sítios an-
a uma área de passagem – dado que, de fato, teriormente mencionados implicaria um gran-
cerca de 2/3 do percurso das monções cum- de e dispendioso esforço no sentido de vencer
pria-se em território hoje sul-mato-grossense.43 a resistência dos referidos indígenas – o que,
É certo que o trânsito monçoeiro chegou por sua vez, somente poderia justificar-se em
a produzir “uma primeira tentativa, por par- caso de um intenso trânsito monçoeiro, capaz
te de luso-brasileiros, de uma efetiva ocupa- de remunerar adequadamente os proprietários
ção produtiva do SMT”, na medida em que, dos sítios. Entretanto, o vigor da corrente co-
ainda na década de 1720, vários particulares mercial entre São Paulo e Cuiabá foi severa-
estabeleceram-se com sítios de produção de mente limitado pelo fato de que,
alimentos à margem dos rios percorridos:
[...] sendo o ouro de aluvião, as jazidas des-
O viajante Cabral Camello, por exemplo, que cobertas esgotavam-se rapidamente: elas “só
seguiu para Cuiabá em 1727, refere nada me- eram opulentas na superfície”, nota Holanda,
nos que 10 roças, em pelo menos meia dúzia “e nada se fizera para melhorar os processos
de locais diferentes às margens dos rios Para- empregados em sua exploração” (1990, p. 52).
ná, Pardo e Taquari. Dentre esses estabeleci- O ouro continuaria, certamente, a ser extraído
mentos, destacava-se aquele situado no va- na região, graças a contínuas descobertas de
radouro de Camapuã, isto é, o local onde se novas jazidas, mas a tendência dessa extração
apresentava mais curto o trecho terrestre que é declinante (cf. CANAVARROS, 2004, p. 181-
as expedições precisavam inevitavelmente va- 210). (QUEIROZ, 2008a, p. 18).
rar, em seu trânsito entre as bacias dos rios Pa-
raná e Paraguai. Trata-se, no caso, da chamada Além disso, logo surgiram caminhos al-
fazenda de Camapuã, iniciada já no início da
década de 1720 e cujas instalações seriam em
ternativos às monções, a saber, “um cami-
seguida melhoradas e ampliadas. (QUEIROZ, nho terrestre, aberto em 1736-1737, ligando
2008a, p. 18). Cuiabá às minas de Goiás (descobertas em
1725) e daí a Minas Gerais, São Paulo e o Rio
Tais sítios constituíram, nas palavras de de Janeiro” (Ilust. 68), e até mesmo outra via
Sérgio Buarque de Holanda, um “esforço in- fluvial, “configurada a partir de fins da déca-
cipiente de ocupação de um território que, da de 1740 e que, partindo de Vila Bela [da
povoado e bem cultivado, seguramente be- Santíssima Trindade], seguia pelos rios Gua-
neficiaria as frotas e os moradores das lavras poré, Mamoré, Madeira e Amazonas a sair no
minerais” (1986, p. 73) – com o que, aliás, o litoral atlântico em Belém – eram as monções
SMT poderia deixar de ser uma simples área de do Grão-Pará, ou do norte”. Assim se compre-
passagem para converter-se em um outro polo ende que, “com a única exceção da fazenda
43
Pela rota “clássica” das monções, estabelecida já na
de Camapuã, os sítios acima referidos, diante
década de 1720, as expedições seguiam pelos rios da forte resistência oposta já em 1730 pelos
Tietê, Paraná e Pardo, sendo esse último navegado Kayapó e Guaykuru, sucumbiram tão rapida-
até suas cabeceiras, no ribeirão chamado Sangues-
suga; transpunha-se aí um breve “varadouro” por mente quanto haviam surgido, e não mais fo-
terra e, em seguida, lançavam-se n’água novamente ram reconstruídos” (QUEIROZ, 2008a, p. 18).
as canoas, já agora na bacia do Paraguai: o ribeirão
Camapuã e, na sequência, os rios Coxim, Taquari, Pa- Por outro lado, é preciso enfatizar que a
raguai, São Lourenço e, finalmente, o rio Cuiabá. posse do território do SMT, ainda como “sim-

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ples” área de passagem, apresentava uma im- A porção sul da capitania de Mato
portância crucial para os interesses metropoli- Grosso do início do desenvolvimento
tanos portugueses, com vistas à segurança do da pecuária à abertura do rio Paraguai à
domínio sobre as zonas auríferas. Ademais, os navegação brasileira
caminhos concorrentes, acima mencionados,
se de fato reduziram a um mínimo a importân- Tendo em vista o exposto no item anterior,
cia comercial das monções clássicas, jamais as pode-se dizer que o efetivo início de um pro-
substituíram totalmente: os comboios de cano- cesso “sustentado” de ocupação não indígena
as entre São Paulo e Cuiabá continuaram, até do SMT data somente da quarta década do
pelo menos a primeira metade do século XIX, século XIX – já, portanto, no período imperial.
como o principal meio de transporte de cargas Em minha opinião, tal processo pode ser
pesadas e volumosas, insuscetíveis de serem pensado nos termos do conceito de frente de
conduzidas no lombo das mulas que percor- expansão – conceito tomado aqui tal como
riam o caminho terrestre por Goiás – cargas ele é exposto, em estreita correlação com o
essas, aliás, constituídas principalmente por conceito de frente pioneira, por José de Souza
“remessas do governo”, vale dizer, apetrechos Martins. Para esse autor, existem, concomi-
bélicos. Assim se compreende que, tantemente, no Brasil, duas “fronteiras”: a de-
mográfica e a econômica (MARTINS, 1975, p.
[...] nesse espaço [SMT], são desde então as 45). Em outras palavras, é preciso “distinguir,
ações estatais que passam a adquirir especial no interior das fronteiras políticas do país, a
significado, numa estratégia sobretudo defen- fronteira demográfica e a fronteira econômi-
siva: em face da presença indígena e da vizi-
ca, esta nem sempre coincidindo com aquela,
nhança com os espanhóis (no caso, sobretudo
a província do Paraguai), afigurava-se aos por- geralmente aquém dela”:
tugueses imperativo garantir a posse do territó-
rio e, com ela, a segurança do tráfego monço- Isto é, a linha de povoamento avança antes da
eiro. (QUEIROZ, 2009, p. 208-209). linha de efetiva ocupação econômica do terri-
tório. Quando os geógrafos falam de frente pio-
A esse contexto pertence a fundação no neira, estão falando dessa fronteira econômica.
Quando os antropólogos falam de frente de ex-
SMT, no último quartel do século XVIII, do
pansão, estão geralmente falando da fronteira
Forte Coimbra (1775), da povoação de Co- demográfica. Isso nos põe, portanto, diante de
rumbá (inicialmente chamada Albuquerque, uma primeira distinção essencial: entre a fron-
1778) e do fortim de Miranda (1797) – assim teira demográfica e a fronteira econômica há
como, no extremo sul da capitania, o estabe- uma zona de ocupação pelos agentes da “civi-
lecimento, em 1767, do chamado Forte do lização”, que não são ainda os agentes carac-
terísticos da produção capitalista, do moderno,
Iguatemi, à margem esquerda desse afluente
da inovação, do racional, do urbano, das insti-
sul-mato-grossense do rio Paraná. tuições políticas e jurídicas etc.
Com a exceção do forte do Iguatemi (toma-
do e destruído pelos espanhóis já em 1777), [...] adiante da fronteira demográfica, da
os demais estabelecimentos anteriormente fronteira da “civilização”, estão as popula-
referidos lograram sobreviver ao contexto ini- ções indígenas, sobre cujos territórios avan-
cial de sua fundação. Nenhum deles, contu- ça a frente de expansão. Entre a fronteira
demográfica e a fronteira econômica está a
do, chegou a atuar como um efetivo polo de
frente de expansão, isto é, a frente da popu-
ocupação e povoamento não indígena. Em lação não incluída na fronteira econômica.
outras palavras, nunca passaram, pelo menos Atrás da linha da fronteira econômica está
durante o período colonial, de simples postos a frente pioneira, dominada não só pelos
fronteiriços, frequentemente incapazes de su- agentes da civilização, mas, nela, pelos
prir até mesmo suas próprias necessidades de agentes da modernização, sobretudo econô-
mica, agentes da economia capitalista (mais
gêneros alimentícios básicos.

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do que simplesmente agentes da economia denominada precisamente Vacaria,45 de um
de mercado), da mentalidade inovadora, ur- numeroso rebanho bovino tornado selvagem,
bana e empreendedora. (MARTINS, 2009, p. originado do gado abandonado pelos espa-
137-138).44
nhóis na primeira metade do século XVII. Para
Conforme um entendimento já consa- a prática dessa atividade, os novos povoado-
grado na historiografia sobre o antigo Mato res tinham à sua disposição grandes extensões
Grosso (cf. p. ex. CORRÊA FILHO, 1926, de pastagens nativas, constituídas pelos cam-
1955; CORRÊA, 1999, p. 91-92), o proces- pos limpos que, como já foi mencionado, po-
so de ocupação não indígena do SMT, já re- diam ser encontrados em toda parte, tanto no
ferido, deu-se a partir de duas direções, ou Pantanal como no planalto.
seja, verificaram-se, ao mesmo tempo, duas Tais correntes, sobretudo aquela vinda do
frentes de expansão, ambas convergindo Sudeste, relacionavam-se claramente às no-
para o território atualmente sul-mato-gros- vas realidades do centro-sul do Brasil, sur-
sense. A primeira foi constituída por povo- gidas depois da vinda da corte portuguesa
adores vindos do Sudeste brasileiro, isto é, para o Rio de Janeiro. De fato, como se sabe,
a região nordeste da província de São Paulo o aumento das necessidades de abasteci-
(tendo como referência a vila de Franca) e mento dessa cidade, bem como a expansão
a região depois chamada Triângulo Mineiro, da monocultura cafeeira no vale do Paraíba
pertencente à província de Minas Gerais e repercutiram sobre todo o interior da então
tendo como referência a vila de Uberaba. colônia, “empurrando” a atividade de cria-
A segunda frente foi constituída por antigos ção de gado bovino em direção ao Oeste e,
moradores da porção norte do Pantanal, isto ao mesmo tempo, tornando tal atividade mi-
é, a região designada na historiografia como nimamente viável, em termos econômicos,
os “entornos de Cuiabá” (CORRÊA, 1999, p. em territórios relativamente distantes dos
91-92). Ainda segundo Corrêa Filho, a cor- principais centros consumidores. Tratou-se,
rente povoadora oriunda do Norte, isto é, da em ambos os casos, de processos essencial-
região de Cuiabá, foi “menos densa”, sendo mente espontâneos, ainda que, em certos
a outra, vinda de Minas e São Paulo, “mais momentos, eles possam haver sido estimula-
volumosa” (1969, p. 536). dos pelas autoridades da agora província de
Essas duas correntes de povoamento apre- Mato Grosso.
sentavam, como principal atividade econô- A frente vinda dos entornos de Cuiabá está
mica, a pecuária bovina, ainda que outras diretamente relacionada às consequências
atividades tenham sido também desenvolvi- da violenta luta social e política denominada
das durante períodos mais ou menos longos Rusga, ocorrida em 1834.46 Segundo a histo-
– sendo que a referida pecuária foi favorecida 45
Nos séculos XVII e XVIII, segundo Esselin (2011, p.
pela existência, na porção sul-mato-grossense 24), o nome Vacaria designava a porção sul do Panta-
44
É fundamental salientar que Martins recusa certa nal, correspondente à região “que os espanhóis cha-
tendência a se superestimar a dimensão espacial na mavam de Província Jesuítica do Itatim ou Campos
caracterização de tais “frentes”. Para ele, a distinção de Xerez”. Posteriormente, entretanto, e até os dias
entre essas duas frentes “é, na melhor das hipóteses, atuais, o nome campos de Vacaria passou a ser apli-
um instrumento auxiliar na descrição e compreensão cado a uma extensa área de campos limpos existente
dos fatos e acontecimentos da fronteira [...], um ins- no planalto, isto é, uma área que, com largura variá-
trumento útil quando as duas concepções são traba- vel, acompanha a cuesta de Maracaju desde as cabe-
lhadas na sua unidade”, isto é, quando, destacando ceiras do Apa até as proximidades da atual cidade de
“a temporalidade própria da situação de cada grupo Campo Grande.
social da fronteira”, a referida distinção permite o 46
Trata-se aqui de um movimento insurrecional inicia-
estudo da diversidade histórica desses grupos “não do em Cuiabá, em fins de maio de 1834, mas que
só como diversidade estrutural de categorias sociais, teve repercussões também em outras partes da en-
mas também como diversidade social relativa aos tão província. Conforme assinalou Valmir Corrêa,
diferentes modos e tempos de sua participação na esse movimento situou-se no âmbito de um contexto
história” (2009, p.139; grifos meus). maior, isto é, aquele do período regencial, “marcado

Paulo Roberto Cimó Queiroz 111


riografia, os rebeldes, uma vez derrotados, “se “planalto de Amambai”, desde o rio Pardo até
exilaram espontaneamente” de Cuiabá e suas as nascentes do rio Apa, o povoamento “se
vizinhanças, vindo a estabelecer-se na porção processou por interferência e esforços dos Lo-
sul do Pantanal, isto é, “no vale do Taboco, do pes” (ALMEIDA, 1951, p. 233). De fato, Cor-
Rio Negro, e além” (CORRÊA FILHO, 1926, rêa Filho assinala que, na década de 1840, os
p. 21-22; v. tb. CORRÊA FILHO, 1955; AL- novos povoadores avançaram para o sul “se-
MEIDA, 1951, p. 227-230).47 guindo as pegadas de Antônio Barbosa e seu
A chegada da frente vinda do Sudeste, genro Gabriel Lopes, que se afazendou em
por sua vez, parece ter ocorrido alguns anos Passa Tempo”, na Vacaria, e em seguida, “por
antes, isto é, em fins da década de 1820. volta de 1846”, estabeleceu-se no vale do
Tendo-se iniciado pelas imediações do rio córrego Monjolinho, afluente do Apa (1969,
Paranaíba (um dos formadores do Paraná), p. 536).48
esse povoamento irradiou-se, na década de Vale notar que a frente vinda do Norte ten-
1840, para Oeste e Sul, em direção à Vaca- deu a ocupar, principalmente, o Pantanal, en-
ria e ao vale do rio Apa (cf. ALMEIDA, 1951; quanto aquela vinda do Sudeste estendeu-se, parti-
CORRÊA FILHO, 1969; LUCÍDIO, 1993). A cularmente, pelo planalto sul-mato-grossense. No
historiografia costuma realçar, nesse proces- entanto, tal “especialização” não foi absoluta: ao
so, a iniciativa do mineiro José Garcia Leal, o contrário, as duas ondas chegaram a interpene-
“principal pioneiro”, “secundado por paren- trar-se, haja vista que povoadores originários
tes e auxiliares convocados” – dentre os quais de Minas e de São Paulo, depois de fazerem
se destacavam, por sua vez, os conhecidos uma “escala” no sertão dos Garcia, espalha-
irmãos Lopes: José Francisco, Gabriel Fran- ram-se pelos vales dos rios Miranda e Aqui-
cisco e, sobretudo, Joaquim Francisco Lopes dauana, no Pantanal sul; assim, a sudeste do
(ALMEIDA, 1951, p. 231; 233). Segundo Al- povoado de Miranda teria se verificado, “por
meida, à ação de José Garcia Leal e seus pa- volta de 1844, o contato das duas correntes”
rentes relaciona-se o povoamento das “glebas (ALMEIDA, 1951, p. 230; v. tb. CORRÊA FI-
do Paranaíba”, isto é, a região que ficaria co- LHO, 1926, p. 23).
nhecida como sertão dos Garcia, bem como No interior do próprio planalto, por sua
a área situada entre os rios Aporé, Paraná e vez, vieram a se distinguir dois “polos de
Verde. Já nas glebas situadas mais ao sul, no atração”, isto é, o sertão dos Garcia e a Va-
caria – os quais, mesmo sendo parte do mes-
por manifestações revolucionárias em quase todas as
províncias brasileiras”. A Rusga (que o referido autor
mo processo e adotando as mesmas técnicas
prefere chamar de Rebelião Cuiabana), embora te- pecuárias, “apresentavam algumas caracterís-
nha durado apenas uns poucos meses, “resultou de ticas peculiares”, que os distinguiam (LUCÍ-
maneira efetiva na tomada de poder por parte dos
nativistas locais e na desarticulação das forças tradi- DIO, 1993, p. 180).
cionais de controle político e econômico da região” Quase nem seria preciso dizer que, nos
(CORRÊA, 2000, p. 68; grifos do autor). Sobre esse
assunto, v. também CORRÊA FILHO, 1969, p. 485 et registros memorialistas, bem como na his-
seq.; NEVES, 1988, p. 76. toriografia mais tradicional, esse processo é
47
De acordo com Esselin (2011, p. 178-179), esses po- descrito como uma ocupação de áreas “de-
voadores formaram seus novos estabelecimentos com
o gado bravio (“alçado”) que, como foi dito acima,
sertas”, num processo de “desbravamento”.
já existia na região desde o século XVII. Embora a Tais concepções, contudo, foram já devida-
historiografia registre que tais “pioneiros” chegavam mente repelidas pela historiografia acadêmi-
“conduzindo boiadas”, nota Esselin, “não há qualquer
documentação que possa comprovar tal afirmação”.
Esse autor enfatiza, ao contrário, que “as notícias do 48
Cabe notar, a propósito, que também essa corrente
gado alçado nas regiões do Pantanal eram de domí- parece haver sido influenciada por questões políti-
nio público”, e que “os primeiros colonos não fize- cas: segundo um memorialista, foi a conhecida “re-
ram qualquer referência à entrada de bovinos”. Desse volução” liberal de 1842 que “fez afluir grande nú-
modo, tais novos povoadores teriam trazido consigo, mero de emigrantes mineiros e paulistas para o sertão
no máximo, alguns poucos animais de tiro e sela. dos Garcias” (FLEURY, 1925, p.33).

112 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


ca. Para Lúcia S. Corrêa, por exemplo, o pro- outras palavras, dentre os diversos bens pro-
cesso aqui referido teve “um nítido caráter de duzidos no SMT, apenas o gado o era a um
conquista e expropriação das comunidades custo baixo o suficiente para torná-lo apto a
indígenas, há muito estabelecidas na região” suportar as grandes distâncias até o mercado
(CORRÊA, 1999, p. 92). Na verdade, os rela- em condições de proporcionar ao fazendei-
tos dos próprios memorialistas que se ocupa- ro um mínimo retorno financeiro. E mesmo
ram desse tema estão repletos de referências isso, convém dizer, parece ter demorado certo
ao constante confronto entre os chamados tempo para ocorrer.
“pioneiros” e os povos indígenas que habita- Conforme já argumentei em outro trabalho
vam esse espaço (cf. p. ex. BARBOSA, 1961, (QUEIROZ, 2008a), pelo que se deduz das re-
1963). Sabe-se, além disso, que a força de tra- ferências contidas nos relatórios dos presiden-
balho das fazendas era constituída em grande tes da província de Mato Grosso, as remessas
parte, especialmente no Pantanal, pelos pró- de gado do SMT para o Sudeste não parecem
prios indígenas, expropriados de suas terras verificar-se, com maior regularidade, senão a
e reduzidos a uma condição de servidão (cf. partir de fins da década de 1840 – tornando-se,
ESSELIN, 2011, p. 191-192; LEITE, 2003, p. na verdade, especialmente visíveis apenas a
61; VASCONCELOS, 1999).49 partir do início da década de 1850,51 que assi-
É importante dizer que, na economia pe- nala precisamente “o início de uma pecuária
cuária então estabelecida, considerando-se o moderna no centro-sul do Brasil” (WILCOX,
conjunto do SMT (planalto e Pantanal), a úni- 1992, p. 101-102).52 Para Wilcox, de fato, foi
ca mercadoria efetivamente “exportável”, isto “a explosão da demanda no Rio e em outros
é, apta a ser vendida para fora da região, era o lugares [do Sudeste], nos anos 1850”, quem
chamado gado magro: animais que eram en- abriu aos criadores de gado mato-grossenses
caminhados a pé, em morosas boiadas, das a oportunidade de concorrer, nos mercados
fazendas sul-mato-grossenses para as inverna- do Leste, com seus competidores melhor situ-
das mineiras, onde eram engordados antes de ados, isto é, aqueles estabelecidos em Minas
serem encaminhados aos centros consumido- e São Paulo e, portanto, mais próximos dos
res (basicamente, ao longo do século XIX, a mercados consumidores (1992, p. 101).
cidade do Rio de Janeiro). Devido às grandes Resumindo, pode-se dizer que, em razão
distâncias (mais que à costumeira precarieda- dos processos aqui mencionados, o SMT dei-
de dos caminhos), não era viável exportar gê- xou a antiga feição de simples área de passagem
neros derivados do gado, como por exemplo, para vincular-se, ainda que de modo tênue e
o charque, ou produtos da agricultura.50 Em periférico, ao universo econômico centrado no
Sudeste brasileiro – iniciando, portanto, sua in-
49
Isso, todavia, não significa que não tenha existido, em
tais empreendimentos, a escravidão negra – que este- 51
A década de 1850 foi, como se sabe, um período de
ve, ao contrário, significativamente presente no antigo muitas e importantes transformações econômicas no
sul de Mato Grosso, conforme assinala Zilda Moura Brasil, ligadas ao fim do tráfico de escravos. Entre ou-
(2008). Por outro lado, no interior da população nãoes- tras coisas, a cessação desse tráfico levou ao aumen-
crava, notava-se, também, uma grande diversidade; a to dos preços da mão de obra escrava e impulsionou
esse respeito, cabe mencionar os “pobres livres” a que a lavoura cafeeira, visto que “o café passava a ser
se refere Cássia Queiroz da Silva – entre os quais, aliás, dos poucos produtos que compensavam um trabalho
incluíam-se indígenas Kayapó (cf. SILVA, 2014). cada vez mais caro”; com isso, verificou-se, na eco-
50
Com relação a isso, contudo, é preciso registrar a nomia cafeeira do Vale do Paraíba, uma “especializa-
exceção constituída pela região de Paranaíba, que, ção crescente”, ao mesmo tempo em que era estimu-
devido precisamente à sua maior proximidade com lada a “monetização das relações econômicas, seja
os mercados do Sudeste (em comparação com a Va- nas regiões fornecedoras de escravos para a cafeicul-
caria e principalmente com o Pantanal), chegou a tura do Vale do Paraíba, seja nas regiões fornecedoras
exportar, em “monções” pelos rios Paranaíba, Paraná de gêneros de primeira necessidade” (DOMINGOS
e Tietê, “milhares de rolos de algodão branco [...], GARCIA, 2001, p. 19).
algodão em ramas, queijo em grande quantidade, 52
A fim de facilitar a leitura, preferi, neste trabalho,
muito toucinho” (FLEURY, 1925, p. 36; mais detalhes passar para o idioma português os trechos extraídos
em QUEIROZ, 2008a). da obra de Wilcox.

Paulo Roberto Cimó Queiroz 113


tegração ao mercado nacional brasileiro, então território do atual estado do Paraná,55 o barão
em processo de formação. buscou atrair, em direção a seus domínios, o
Os processos de ocupação não indígena aqui fluxo do comércio dirigido a Cuiabá – buscan-
referidos tiveram, no SMT, repercussões as mais do, para tanto, uma via fluvial que utilizasse,
diversas. A frente vinda do Sudeste levou, por ao invés do Tietê, os rios Tibagi e Paranapane-
exemplo, ao surgimento de um novo núcleo ur- ma, do lado paulista, e, pelo lado do SMT, o
bano: Santana do Paranaíba (atualmente apenas rio Ivinhema. Por este lado, seu plano consistia
Paranaíba), reconhecido como freguesia já em em subir, até onde fosse possível, o Ivinhema
1838.53 A corrente vinda do Norte, por sua vez, e algum de seus formadores e estabelecer, por
pôde utilizar, como referências urbanas, os anti- terra, um “varadouro” até o ponto onde fosse
gos povoados de Corumbá e Miranda. possível começar a navegar um rio da bacia do
Além disso, a partir de Paranaíba, foram Paraguai (cf. WISSENBACH, 1995).
estabelecidas novas vias terrestres de comuni- Vale destacar aqui a figura de um persona-
cação com o Sudeste, seja via Uberaba, seja gem que faz a ponte, por assim dizer, entre as
diretamente com a província de São Paulo iniciativas do barão e a já referida migração
(neste caso, cruzando-se o rio Paraná no Porto mineira e paulista para o SMT. Trata-se do co-
Taboado). Entre Paranaíba e Piracicaba (SP), nhecido Joaquim Francisco Lopes, que, com
foi também utilizada, durante certo tempo, seus irmãos João e Gabriel, havia participado,
uma via fluvial pelos rios Paranaíba, Paraná e desde os primeiros momentos, daquela mi-
Tietê. Enfim, uma estrada terrestre foi também gração. Joaquim, aliás, aparece, já na década
aberta entre Paranaíba e Cuiabá (a chamada de 1830, relacionado às interessantes ten-
estrada do Piquiri), além de várias outras di- tativas de abertura de um caminho terrestre
rigidas à Vacaria e ao Pantanal (sobre esses entre Cuiabá e São Paulo via Porto Taboado,
assuntos, v. QUEIROZ, 2008a). conforme mencionado anteriormente. Desse
Os mesmos processos levaram também à modo, por seu conhecimento direto do terri-
apropriação de imensas extensões de terras e tório mato-grossense e por suas vinculações
à formação de clãs oligárquicos cuja presença igualmente diretas com os novos povoadores,
é ainda hoje registrada em território sul-mato- sua ajuda devia ser, para os propósitos do ba-
-grossense: caso, por exemplo, dos Alves Ribei- rão, de grande valia.
ro, no Pantanal sul, dos Barbosa, na Vacaria, e Depois de várias explorações preliminares
dos Garcia e Leal, na região de Paranaíba. ainda em território hoje paranaense, uma pri-
No extremo sul da província,54 por outro meira expedição para Mato Grosso, compos-
lado, significativas novidades surgiram em ta por Joaquim Francisco Lopes, J. F. Elliott e
função das tentativas de abertura de uma nova “três camaradas”, partiu, em junho de 1847,
via de comunicação entre Mato Grosso e São do rio Tibagi (ELLIOTT, 1870 [1848], p. 160).
Paulo, na década de 1840, por determinação Em 1849, depois de outras expedições, a nova
do célebre Barão de Antonina (João da Silva rota foi finalmente definida. Partindo do rio Ti-
Machado, um fazendeiro, empresário e políti- bagi, navegava-se este rio e o Paranapanema
co paulista). Tendo seus negócios centrados em até atingir o rio Paraná. Em seguida, tratava-
se de subir o Ivinhema e, depois, o Brilhan-
53
Cf. Relatório de Joaquim José de Oliveira (1850 [1849], te até sua confluência com o ribeirão então
p. 3). Vale notar que a entrada desses novos povoado-
res parece haver sido, em seus inícios, estimulada pelo
denominado Santo Antonio. Aí tinha início o
governo provincial, visto que, segundo se informa, os varadouro por terra, que terminava, já na ba-
habitantes da freguesia de Paranaíba foram isentos do cia do rio Paraguai, na confluência do córre-
dízimo e outros impostos provinciais pelo prazo de 20
anos, a contar de 1835 (LEVERGER, 1852 [1851], p. 50). go Urumbeva com o rio Nioaque, afluente do
54
Trata-se aqui dos espaços onde predominava, como já
foi dito, a mata tropical, e que por esse motivo se man- 55
Cabe lembrar que a província do Paraná foi cria-
tiveram um tanto à margem do processo de expansão da, por desmembramento de São Paulo, apenas em
pastoril que vem sendo aqui referido. 1853.

114 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


Miranda – por onde a navegação prosseguiria povoou para engrandecimento de Entre Rios
até o rio Paraguai e, daí em diante, por rios já (BARBOSA, 1965, p. 106-107).
conhecidos, até Cuiabá (LOPES 1872 [1850],
É importante assinalar que o processo de
p. 325 et seq.).
ocupação do sul do antigo Mato Grosso por
As iniciativas de Antonina ligavam-se, dire-
meio das frentes de expansão – iniciado, como
ta ou indiretamente, às intenções do governo
foi visto, ainda na primeira metade do século
imperial com relação à fronteira sul da pro-
XIX – prosseguiu durante todo o restante desse
víncia de Mato Grosso, nessa época em que
século e até o início do século XX. Ao longo
era relativamente intensa a discussão de limi-
desse período, contudo, tal processo passou
tes com a República do Paraguai e em que
por transformações em função de dois eventos
o Império providenciou, numa estratégia de
de largas consequências para a região: a aber-
defesa e ocupação dos espaços, a criação de
tura do rio Paraguai à navegação brasileira,
uma extensa rede de colônias militares.
ocorrida entre 1856 e 1858, e a guerra da Trí-
Pode-se dizer que a nova rota, aberta por
plice Aliança contra o Paraguai (1864-1870).
Lopes e Elliott, obteve relativo sucesso. Em-
bora não tenha suplantado suas competidoras
no comércio com Cuiabá, ela serviu aos pro-
Da abertura do rio Paraguai às vésperas
pósitos defensivos do Império na região e, ao
da construção da Estrada de Ferro
mesmo tempo, propiciou a entrada de novos
Noroeste do Brasil
migrantes. No início da década de 1850, foi
estabelecida, no ponto inicial do roteiro, às No contexto das disputas territoriais com
margens do rio Tibagi, a Colônia Militar do os hispano-americanos no Extremo Oeste, du-
Jataí; na mesma época, agora no SMT, outro rante o período colonial, os luso-brasileiros
destacamento militar foi colocado em uma das obtiveram o domínio do Alto Paraguai apenas
pontas do varadouro, no caso, a confluência até a altura do Forte Coimbra. É certo que, nos
do Nioaque com o Urumbeva – o que consti- termos do Tratado de Madri, a fronteira sul da
tui, aliás, a origem da atual cidade de Nioaque. capitania de Mato Grosso chegou a ser oficial-
Enfim, tanto antes como depois da guer- mente demarcada pelos rios Iguatemi (afluente
ra com o Paraguai registra-se um significativo do rio Paraná) e Ipané-Guaçu (afluente do rio
tráfego na rota fluvial do Jataí para a região Paraguai). Entretanto, como se sabe, o referi-
da Vacaria, conforme é abundantemente re- do tratado foi anulado em 1761 (Convênio do
ferido, entre outros, pelo memorialista Emílio Pardo), e o novo acordo que o veio substituir
Garcia Barbosa (1965). Esse autor relaciona, (o Tratado de S. Ildefonso, de 1777), embo-
por exemplo, aos migrantes de Jataí o desen- ra mantivesse, no tocante a essa fronteira, as
volvimento, na virada do século XIX para o mesmas disposições do anterior, não chegou
XX, do povoado de Entre Rios (atual cidade a ser demarcado. Assim se entende que, nes-
de Rio Brilhante): se tenso e confuso contexto pós-1761, tanto
Entre Rios, o povinho levantado à beira do ar-
hispano-americanos como luso-brasileiros te-
roio Arara, águas do rio Brilhante, pelo arroja- nham buscado consolidar, do melhor modo
do paulista Chico Cardoso, casado na tradicio- possível, as posições que lhes pareciam mais
nal família Diniz [...], oriunda do Jataí, da roxa convenientes. Os luso-brasileiros trataram de
terra do norte do Paraná. Em 1900, ali ergueu garantir o controle de parte do Alto Paraguai
Cardoso a sua morada [...]. Oferecia ele local por meio da criação dos já citados estabeleci-
a escolher aos poucos (raros) transeuntes que
por ali cruzavam, mas que, no entretanto, vi-
mentos de Coimbra (1775) e Corumbá (1778),
nham do Paraná, subiam pelo Ivinheima [sic] fundados na margem direita do rio Paraguai (a
todos os homens válidos da decadente Jataí, qual, segundo os tratados, deveria pertencer
atraídos pela fama desta canaã. Lá se des- à Espanha). Os hispano-americanos, por seu

Paulo Roberto Cimó Queiroz 115


lado, trataram de ocupar o território ao norte comerciais estabelecidas na província resumiu-
do rio Ipané-Guaçu, por meio da fundação da -se, em grande medida, ao comércio de impor-
missão de Belém (ainda na década de 1760) e tação, sustentado pelos gastos, relativamente
da vila real de Concepción (1773), e buscaram vultosos, realizados pelo Império em Mato Gros-
igualmente o domínio do Alto Paraguai ao sul so, especialmente em Corumbá, após o final da
de Coimbra – com a fundação, em 1792, do guerra (trata-se, no caso, de investimentos princi-
Forte Bourbon, à margem direita do citado rio. palmente no aparelhamento militar da fronteira,
Em resumo, ao final do período colonial, o com o aquartelamento de tropas e a construção
domínio do Alto Paraguai, por parte dos bra- do arsenal da Marinha). Ainda nessa época, de
sileiros, não ia além de Coimbra. Não obs- fato, as grandes distâncias somente permitiam a
tante, muito antes da Independência (isto é, exportação, pela via fluvial, em termos minima-
em plena virada do século XVIII para o XIX), mente compensadores, de couros e outros sub-
já circulava no Brasil a ideia de que, para as produtos do abate do gado (como chifres, ossos,
comunicações e o comércio de Mato Grosso, sebo etc.).56 Foi somente mais para o final do sé-
a melhor alternativa consistia na utilização do culo XIX, em função, sobretudo, das mudanças
sistema Paraguai-Paraná, via estuário do Prata ocorridas no mercado platino, que adquiriram
(QUEIROZ, 2008a, p. 35). maior desenvolvimento em Mato Grosso a pro-
Após a derrubada de Rosas (1852), o go- dução e a exportação de charque.
verno brasileiro obteve da Confederação Ar- A Guerra com o Paraguai, por sua vez,
gentina o direito de navegar pelo estuário do teve sobre a região aqui considerada efeitos
Prata e pelo Baixo Paraná. A liberação do tre- contraditórios. Inicialmente, convém lembrar
cho paraguaio do rio Paraguai, por sua vez, foi que, no que concerne ao antigo Mato Grosso,
obtida pelo Império, vis a vis à República do as operações bélicas tiveram dois momentos
Paraguai, entre 1856 e 1858, após um com- principais: 1) a ocupação paraguaia, efetuada
plexo processo de negociações e pressões (cf. entre dezembro de 1864 e inícios de 1865; 2)
DORATIOTO, 1998, p. 195; CORRÊA, 1999). as tentativas, por parte do Império, de desalo-
Tal navegação, embora temporariamente sus- jar os ocupantes, levadas a cabo entre 1865 e
pensa durante os anos da guerra, produziu 1867 e que incluem o conhecido episódio da
Retirada da Laguna. Vale notar que a ocupa-
importantíssimos efeitos, não só sobre o SMT
ção paraguaia abrangeu quase todo o territó-
como sobre o conjunto da província de Mato
rio do atual Mato Grosso do Sul, excetuando
Grosso. Ela permitiu que Corumbá, antes um
apenas o chamado sertão dos Garcia, onde
pobre povoado fronteiriço, se transformasse,
se situava Paranaíba. Foram ocupadas as vilas
em sua nova condição de ponto final da li-
de Nioaque, Miranda e Corumbá, o Núcleo
vre navegação internacional do rio Paraguai,
Colonial do Taquari (origem da atual cidade
em um importante polo comercial, capaz de
de Coxim), o forte Coimbra e as várias colô-
rivalizar em importância econômica e políti-
nias militares que haviam sido previamente
ca com a velha capital provincial, Cuiabá (cf.
instaladas pelo governo imperial (entre elas,
CORRÊA, 1980). Além disso, a disponibilida-
a conhecida Colônia Militar dos Dourados,
de dessa nova via de transporte favoreceu o
situada nas proximidades da atual cidade sul-
aproveitamento de fontes de riqueza existen-
mato-grossense de Antônio João).
tes na região, como os ervais nativos e o nu-
meroso rebanho bovino.
Tais resultados, contudo, não surgiram de
Uma importante exceção, neste quadro, era a exportação
56

imediato. Conforme já tive oportunidade de ar- de caldo e extrato de carne, produzidos em um estabele-
gumentar em outros trabalhos (QUEIROZ, 2007, cimento situado em Descalvados (município de Cáceres):
devido a seu alto valor agregado, ao que se pode deduzir,
2008b), durante muitos anos, após o final da tais produtos logravam suportar os custos de uma longa
guerra com o Paraguai, o movimento das casas viagem fluvial e marítima até seus mercados na Europa.

116 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


Assim, por um lado, a guerra causou gran- am uma expressiva corrente de imigração de
des perdas em termos humanos e materiais, além-mar, representada por portugueses, ita-
com o aprisionamento, a fuga ou a morte dos lianos, árabes, espanhóis etc. Na mesma épo-
habitantes, tanto das zonas rurais como dos ca, no planalto, prosseguia, como já foi dito,
poucos núcleos urbanos, a destruição ou o a frente de expansão pela qual continuavam
saque de edificações e outros bens materiais, a chegar migrantes provenientes das provín-
enfim, a paralisação ou a desorganização da cias (depois estados) de São Paulo, Paraná e
produção e do comércio.57 Minas Gerais.59 Na década de 1890, enfim,
O fim da guerra, por outro lado, teve tam- intensifica-se bruscamente a migração de po-
bém como efeitos notáveis a definição precisa voadores vindos do Rio Grande do Sul, então
dos limites entre os dois países e a consolidação conflagrado em violentas lutas civis (a Revo-
da abertura do rio Paraguai, visto ter sido esse lução Federalista).
rio declarado agora como de livre navegação Foi nesse amplo contexto – definição de
internacional. Além disso, ainda maior destrui- limites, disponibilidade de navegação pelo
ção havia sofrido a República do Paraguai, de rio Paraguai, existência de força de trabalho
tal modo que essa república foi, por muitas dé- – que teve efetivo início e veio a florescer, no
cadas, após o final da guerra, um seguro mer- sul do antigo Mato Grosso, a importante in-
cado para o gado bovino levado do SMT – o dústria da extração de erva-mate nativa.
que favoreceu, portanto, a retomada e a conti- O extremo sul do antigo Mato Grosso
nuidade do processo de ocupação não indígena fazia parte da extensa área, corresponden-
dessa região. Do mesmo modo, o antigo sul de te à porção central da bacia platina, onde
Mato Grosso beneficiou-se também de um sig- era nativa a árvore da erva-mate (Ilex para-
nificativo fluxo migratório (ainda que em parte guayensis). O hábito de usar as folhas dessa
sazonal), pelo qual muitos cidadãos paraguaios árvore em uma bebida, como uma espécie
fugiam de seu devastado país para buscarem de complemento alimentar, remonta, como
novas oportunidades além-fronteiras. Tal contin- se sabe, aos antigos habitantes dessa região,
gente, como notou Wilcox (2008), teve grande principalmente os Guarani. Uma vez que
importância no lento processo de desenvolvi- esse hábito veio a ser adotado pelos con-
quistadores europeus e seus descendentes,
mento econômico do SMT.58
formou-se na América ibérica um amplo
Nesse contexto, a vila de Corumbá, sobre-
mercado consumidor, abrangendo princi-
tudo entre fins do século XIX e inícios do sé-
palmente a Argentina e o Uruguai, além
culo XX, situa-se como um significativo polo
do próprio Paraguai e do sul do Brasil. Os
de atração de imigrantes, por sua vinculação
mercados argentino e uruguaio eram ini-
aos grandes centros situados na região plati-
cialmente abastecidos pela produção do
na, no litoral brasileiro e em outras partes do
Paraguai e, mais tarde, já a partir do século
mundo. Assim, no Pantanal, foi expressiva,
XIX, também pela produção brasileira (neste
desde o final do século XIX, a presença de
caso, inicialmente a produção das três pro-
imigrantes bolivianos e paraguaios como tra-
víncias sulinas: Paraná, Santa Catarina e Rio
balhadores nas fazendas de criação de gado
Grande do Sul).60
ou nos centros urbanos da área; além disso, as
atividades comerciais, principalmente, atraí-
57
Na verdade, nem sequer Cuiabá, a capital da provín- 59
A própria fundação de Campo Grande, por exemplo,
cia, escapou dos nefastos efeitos da guerra, visto que costuma ser associada à chegada de migrantes
sua população foi dizimada pela varíola trazida pelos mineiros, no ano de 1872.
soldados imperiais que haviam participado de uma 60
É importante frisar que o maior desses mercados era
efêmera retomada de Corumbá, em 1867. a Argentina – que, todavia, não possuía em seu terri-
58
No extremo sul da região, registrava-se, também, a tório senão uma pequena extensão de ervais nativos,
presença de migrantes correntinos, isto é, provenien- e até pelo menos a década de 1920 dependeu quase
tes da província argentina de Corrientes. totalmente da importação.

Paulo Roberto Cimó Queiroz 117


No SMT, os ervais eram especialmente de exploração dos ervais nativos da provín-
abundantes no quadrilátero grosso modo cia.62 Segundo as referências disponíveis, La-
delimitado a oeste pela serra de Amambai, ranjeira estabeleceu um eficiente esquema de
ao norte pelo rio Ivinhema, a leste pelo rio transportes, por meio do qual a erva extraída
Paraná e ao sul pela serra de Maracaju. Sua no SMT era conduzida ao porto paraguaio de
exploração torna-se mais consistente após o Concepción e daí encaminhada ao mercado
final da Guerra da Tríplice Aliança (1870), da cidade de Buenos Aires; no mesmo porto,
favorecida pela ligação relativamente fácil, eram também recebidos os gêneros de con-
via rios Paraguai e Paraná, com a Argentina sumo destinados aos trabalhadores dos ervais
(que foi, historicamente, o principal e qua- (ROSA, 1962, p. 29-30).
se único mercado consumidor da erva-mate O empreendimento individual de Laranjei-
sul-mato-grossense). ra foi sucedido, no início da década de 1890,
Na época, o processo de extração e ela- pela Companhia Mate Laranjeira (CML), uma
boração da erva seguia ainda, apenas com sociedade anônima fundada no Rio de Janeiro
poucos aperfeiçoamentos, os métodos an- em setembro de 1891 sob o controle de uma
cestrais, cujas origens remontavam aos an- empresa maior: o Banco Rio e Mato Grosso,
tigos processos indígenas e jesuíticos. Após fundado, também no Rio de Janeiro, em ja-
a coleta, as folhas passavam, ainda na mata neiro de 1891 e ao qual se ligavam importan-
(nos chamados ranchos), por um processo de tes membros da elite política mato-grossense,
preparação relativamente simples (o chamado com destaque para a família Murtinho.63
cancheamento), após o qual a erva era condu- Ainda na década de 1890, a empresa na-
zida até os mercados de consumo (onde pas- cionalizou (pelo menos em parte) sua rota co-
saria, aliás, por um segundo beneficiamento, mercial, mediante o estabelecimento de um
quando a erva cancheada era moída e acon- novo porto de exportação: o porto Murtinho
dicionada em embalagens apropriadas para (ainda no rio Paraguai, mas agora em território
a distribuição aos consumidores). A maioria sul-mato-grossense). Mais tarde, já ao findar
dos trabalhadores era constituída pelos cha- a primeira década do século XX, a empresa
mados mineros, isto é, aqueles empregados novamente alteraria sua rota de exportação e
importação, trocando o rio Paraguai pelo rio
na coleta da erva, executada no interior das
Paraná. A produção do SMT era agora levada
matas61 – contingente formado por indígenas
ao porto de Guaíra (situado à margem esquer-
e principalmente por paraguaios, que migra-
da do Alto Paraná, logo acima do Salto das
vam para o SMT ou eram recrutados direta-
Sete Quedas) e, daí, mediante comunicações
mente no interior do Paraguai (cf. ARRUDA,
terrestres estabelecidas em território parana-
1997; FERREIRA, 2007).
ense, conduzida até o chamado Porto Men-
No SMT, destacou-se na exploração erva-
teira o empresário Tomás Laranjeira, que vi-
nha atuando nesse ramo desde a década de
1870 e, graças a suas vinculações com os po- 62
Os ervais estavam situados em terras devolutas, isto
deres públicos brasileiros, logrou obter, a par- é, públicas, de modo que sua exploração dependia
tir de 1882, um virtual monopólio do direito de concessões específicas por parte dos poderes pú-
blicos, a saber, o governo central e, mais tarde (após
a instauração do regime republicano, em 1889), o
Cabe notar que, segundo os relatos disponíveis, o
61 governo estadual de Mato Grosso.
trabalho dos mineros era extremamente penoso e 63
Durante o curto período de existência do Banco, sua
desenvolvido em condições análogas à escravidão, presidência foi exercida primeiro por Joaquim Mur-
uma vez que o trabalhador, além de ser engajado tinho (que viria a ser depois Ministro da Fazenda) e,
mediante um adiantamento, ficava obrigado a abas- em seguida, por seu irmão Francisco (que era tam-
tecer-se nos armazéns do próprio empregador e não bém o presidente da CML). Vale notar que um ter-
podia deixar o trabalho enquanto não saldasse inte- ceiro irmão, Manuel, ocupou, nessa mesma época, a
gralmente seus débitos (cf. p. ex. GUILLEN, 2007). presidência do estado de Mato Grosso (1891-1895).

118 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


des, abaixo das Sete Quedas, a partir do qual respectivos terrenos, de tal modo que, entre
o rio Paraná voltava a ser navegável.64 1919 e 1924, o estado expediu cerca de 350
É sabido que, nesse extremo sul do anti- títulos de propriedade de lotes situados nessa
go Mato Grosso, a Companhia Mate Laran- região (CORRÊA FILHO, 1925, p. 83-86; 91).
jeira exerceu uma grande influência, devido Embora o poderio da empresa ainda conti-
à grande amplitude de suas concessões er- nuasse muito grande, ficava, desse modo,
vateiras e ao domínio de importantes meios legalizada a atividade dos produtores erva-
de transporte e de milhares de trabalhado- teiros independentes, os quais, desde então,
res. Mesmo assim, é preciso assinalar que a puderam também encaminhar sua produção
realidade socioeconômica dessa região não ao mercado argentino.
pode ser reduzida à atuação, ainda que pre- Como se pode observar, esse processo de
dominante, da referida empresa. A esse res- ocupação não indígena do SMT vinculava-se
peito, cabe destacar a constante presença de fortemente a fluxos econômicos orientados
elaboradores de erva-mate independentes da em direção ao rio Paraguai. No período aqui
Companhia, presença essa assinalada desde o abordado, quase todos os principais núcleos
início das atividades de Laranjeira (CORRÊA urbanos e comerciais que serviam à popula-
FILHO, 1925, p. 17). Assim, a história desses ção sul-mato-grossense situavam-se sobre o
ervais, ao longo de várias décadas, foi tam- referido rio ou seus afluentes. Esse era o caso,
bém a história dos conflitos entre a empresa sobretudo, de Corumbá, centro ao qual se
e aqueles a quem ela qualificava de “ladrões ligavam, como subpolos comerciais, as po-
de erva” e contra os quais lançava mão de seu voações de Miranda e Aquidauana (sobre os
poder político ou mesmo da violência pura e rios homônimos), além de Coxim (sobre o rio
simples (ARRUDA, 1997).65 Taquari).66 E era o caso, também, do porto pa-
O fato é que, no período posterior à guer- raguaio de Concepción, que funcionou, du-
ra com o Paraguai, como já foi observado, o rante várias décadas, como entreposto comer-
SMT continuou a receber numerosos novos cial das populações do extremo sul da região.
povoadores, tanto paraguaios como brasilei- Contudo, a excessiva dependência da via
ros. Tais migrantes dedicavam-se, como seus fluvial do Paraguai não era vista com bons
antecessores, à agricultura de subsistência e olhos pelos dirigentes do Estado brasileiro. A
à pecuária bovina, sendo que, na região er- crescente vinculação com o Prata, ao mesmo
vateira, muitos se dedicavam também à ela- tempo em que abria para Mato Grosso inte-
boração de erva-mate, tanto para consumo ressantes perspectivas de dinamização eco-
próprio como para comércio. Assim, sob a nômica, trazia também um indesejado “efeito
pressão desses migrantes e de parcela da eli- colateral”, do ponto de vista dos referidos di-
te dirigente mato-grossense, começou a des- rigentes: tratava-se, no caso, dos riscos à ma-
gastar-se, desde princípios do século XX, o nutenção da soberania brasileira sobre essa
virtual monopólio exercido pela Companhia província do oeste. Em outras palavras, num
Mate. Um importante marco nesse processo quadro de constantes tensões entre Brasil e
foi a lei estadual que, em 1915, veio garan- Argentina, parecia demasiado arriscado que o
tir aos posseiros estabelecidos na região dos comércio e as comunicações de Mato Grosso
ervais a “preferência para aquisição” dos
A fundação de Aquidauana, em 1892, respondeu,
66

entre outros propósitos, àquele de constituir uma es-


64
A administração regional da empresa foi também cala do comércio que, irradiado de Corumbá pelas
transferida, inicialmente, para a localidade de Nhu- vias fluviais, prosseguia por vias terrestres com vistas
verá (atual Coronel Sapucaia) e depois para Campa- ao abastecimento das populações situadas no centro
nário, nas proximidades da atual cidade de Caarapó. do planalto sul-mato-grossense. Processo semelhante
65
Para uma análise da presença dos “produtores inde- já ocorria com relação ao povoado de Coxim, que
pendentes” na economia ervateira do SMT, v. JESUS, abastecia até mesmo as populações da região de San-
2004. tana do Paranaíba e do sul de Goiás.

Paulo Roberto Cimó Queiroz 119


dependessem da passagem pelo estuário do ramente nos esforços, mais notáveis a partir
Prata, que poderia ser facilmente bloqueado da última década do século XIX, voltados à
pela Argentina em caso de um conflito. abertura de novas ligações entre Mato Grosso
Ao mesmo tempo, deve-se registrar que e São Paulo. Até então, a única estrada boia-
as antigas vinculações entre o SMT e o Su- deira entre os dois estados era aquela que pas-
deste brasileiro, anteriores à abertura do rio sava por Santana do Paranaíba, o que obrigava
Paraguai (relacionadas principalmente ao co- o gado da região da Vacaria, no SMT, a efetu-
mércio de gado magro), não só não haviam ar uma “imensa volta” (COSTA, 1896, p. 27).
desaparecido (notadamente no que se refere Tratava-se, agora, de abrir uma ligação mais
às porções mais orientais do planalto, fisica- direta, sendo que, pelo lado de Mato Grosso,
mente mais próximas do Sudeste) como até o projeto consistia na “abertura de uma estra-
mesmo se iam intensificando, à medida que da de rodagem de Campo Grande ao porto 15
se aproximava o final do século XIX. Ademais, de Novembro, no rio Paraná” (COSTA, 1896,
já no início do século XX, as atividades eco- p. 26). Tal estrada, de fato, depois de uma ten-
nômicas e as relações comerciais do SMT se- tativa fracassada ainda na década de 1890, foi
riam grandemente afetadas pela irrupção da entregue ao tráfego em 1905.67
Primeira Guerra Mundial. Essas tendências ao estreitamento das rela-
De todo esse contexto, iriam emergir im- ções entre São Paulo e o sul do antigo Mato
portantes mudanças nas relações entre o SMT Grosso receberam, já no início do século XX,
e o restante do mundo – assunto que constitui um reforço até certo ponto inesperado, visto
o objeto do tópico seguinte. que tal “reforço” era proveniente de consi-
derações de cunho muito mais político que
propriamente econômico, em sentido estrito:
O reforço da ligação com o Sudeste trata-se, no caso, da E. F. Noroeste do Brasil
brasileiro e as novas dinâmicas do (NOB). Essa estrada começou a ser constru-
processo de ocupação nãoindígena do ída em Bauru, em 1905, com o propósito de
SMT até a década de 1960 atingir Cuiabá, a capital do estado de Mato
Grosso; contudo, logo esse objetivo foi alte-
Ao longo da segunda metade do século rado, sendo definido um novo ponto final: a
XIX, ocorreu um constante e firme incremento cidade de Corumbá, no SMT.68 Assim, já em
dos mercados consumidores do Sudeste, prin- 1908, a construção foi iniciada também pela
cipalmente o mercado paulista, em função da extremidade sul-mato-grossense – não, entre-
grande expansão de sua economia cafeeira e, tanto, a partir de Corumbá, mas, sim, do local
logo, industrial – ambas refletidas no rápido denominado Porto Esperança (também situa-
crescimento da cidade de São Paulo. Assim, do às margens do rio Paraguai, porém muito
já nas décadas de 1880 e 1890 teria ocorrido a jusante de Corumbá). O trecho Bauru-Porto
a mudança do destino principal do gado do Esperança foi dado por concluído em setem-
SMT, do Rio de Janeiro para São Paulo: “Trans- bro de 1914 (QUEIROZ, 1997, 2004a).69
formações no mercado nacional da carne, por 67
Mensagem de BARROS, Antônio Paes de, 1905, p.
volta dos anos 1880 e 1890 (quando o Rio de 46-47.
Janeiro passou a produzir internamente maior 68
Deve ser lembrado que a cidade de Bauru já então
quantidade de carne bovina [...]), acarretaram estava ligada, por via ferroviária, à cidade de São
Paulo e ao porto de Santos. Assim, a Noroeste era
uma mudança do mercado para São Paulo, vista como parte de uma futura ferrovia transconti-
que se tornava rapidamente o dínamo econô- nental, que ligaria Santos ao porto de Arica ou ao de
mico do país” (WILCOX, 1992, p. 452). Antofagasta, no litoral do Pacífico.
A atração exercida por esse mercado sobre
69
A ferrovia, contudo, só foi integralmente concluída no
período compreendido entre fins da década de 1930
a economia pastoril do SMT manifestou-se cla- e princípios da década de 1950, com a construção do

120 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


Conforme julgo haver demonstrado em tra- Abstenho-me, no presente texto, de abordar
balhos anteriores, a construção dessa ferrovia mais longamente os efeitos práticos da NOB
não se explica por interesses econômicos ime- sobre o SMT. Observo apenas que, a partir de
diatos, isto é, interesses ligados exclusivamente análises empreendidas em outro local (QUEI-
à movimentação de mercadorias entre São Pau- ROZ, 2004a), pude concluir que são merece-
lo e Mato Grosso. Tal movimentação, embora doras de reparos as apreciações segundo as
pudesse ser significativa em face dos modestos quais a ferrovia teria “assassinado” o rio, isto
números da economia sul-mato-grossense, não é, teria aniquilado a navegação pelo sistema
era suficiente, de modo algum, para justifi- Paraguai-Paraná, tendo ademais causado a
car um investimento tão custoso como o era “decadência” de Corumbá. É claro que – aten-
uma ferrovia de mais de mil quilômetros de dendo a seu objetivo estratégico principal – a
extensão. Desse modo, os eventuais efeitos NOB efetivamente capturou, quase que total-
econômicos da ferrovia apareciam, na épo- mente, o fluxo do comércio mato-grossense/
ca, claramente subordinados a interesses po- sul-mato-grossense antes realizado via estuá-
lítico-estratégicos do Estado brasileiro: o que rio do Prata.72 Entretanto, o importante papel
se buscava era, essencialmente, uma ligação desempenhado pelo porto de Corumbá, no
direta e eficiente entre a fronteira sul-mato- abastecimento de vastas porções não só do
grossense e o litoral atlântico brasileiro, de SMT como de todo o estado de Mato Grosso,
modo a se poder dispensar a via platina – a foi, em boa parte, mantido – embora ele agora
qual, como já foi observado, poderia vir a ser se vinculasse, de preferência, não aos circuitos
novamente negada aos brasileiros em caso de platinos mas à via ferroviária, pela qual che-
um conflito armado no Prata.70 gavam ao rio Paraguai, em Porto Esperança, os
Contudo, é certo que a ferrovia atuou de gêneros manufaturados e outros, nacionais ou
modo poderoso no enfraquecimento do co- importados, destinados ao consumo da região.
mércio pela via platina – o que constituía, Cabe dizer também que os “efeitos positi-
na verdade, seu objetivo precípuo. Em outras vos” usualmente associados à construção de
palavras, o próprio sentido político-estratégi- uma ferrovia (aumento populacional, cresci-
co da estrada deveria traduzir-se em termos mento da produção agrícola, fragmentação
econômicos: ela atuaria como um “dreno” do das grandes propriedades fundiárias etc.)não
comércio efetuado pela calha do rio Paraguai, se distribuíram uniformemente por todo o es-
de modo a desviar tal comércio no rumo dire- paço atravessado pela NOB no sul do antigo
to do Sudeste do Brasil.71 Mato Grosso – tendendo, ao contrário, a con-
centrar-se em grande medida no então municí-
ramal de Indubrasil a Ponta Porã e do trecho entre Porto
Esperança e Corumbá (onde, ademais, a NOB conec-
pio de Campo Grande (cf. QUEIROZ, 2004a).
tou-se com a estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de De todo modo, a NOB facilitou a fixação, no
La Sierra, construída na mesma época). SMT, de novos contingentes populacionais,
70
Além disso, com seu traçado diretamente dirigido
para a fronteira boliviana, a NOB prestou-se, desde o balho” como um simples fornecedor de gado para
início, a outro objetivo da diplomacia brasileira, em os frigoríficos estabelecidos em São Paulo (cf. ALVES,
face das constantes tensões Brasil-Argentina: a busca 1984). Assim, Alves situa a NOB como um simples
de aliados entre os vizinhos, isto é, particularmente a “tentáculo” do “polo imperialista” situado no sudeste
Bolívia, país que, desprovido de litoral marítimo, es- brasileiro, destinado a deslocar o “polo” concorrente
taria interessado em ligar-se ao Atlântico por meio da estabelecido no Prata (o qual supostamente dava sen-
transcontinental brasileira (QUEIROZ, 1997, 2004a). tido à economia centrada na navegação fluvial). Para
71
Essa crescente vinculação com a economia paulista uma crítica dessas concepções, v. QUEIROZ, 2007.
chegou a ser considerada como o resultado de um 72
A esse respeito, contudo, deve-se lembrar que a ação
autêntico “complô”, pelo qual o “polo imperialista” da ferrovia somou-se àquela exercida pela Primeira
estabelecido em São Paulo teria agido no sentido Grande Guerra, iniciada igualmente em 1914, visto
de retirar Mato Grosso da “órbita do Prata” – com que os danosos efeitos da guerra sobre os fluxos in-
o que esse último estado teria perdido a chance de ternacionais de mercadorias e capitais contribuíram
desenvolver uma “diversificação produtiva” para, grandemente para a desarticulação do comércio flu-
ao contrário, inserir-se na “divisão regional do tra- vial na bacia platina (cf. CORRÊA, 1999, p. 159).

Paulo Roberto Cimó Queiroz 121


tanto nacionais quanto estrangeiros (portugue- território, a partir da década de 1940, confi-
ses, espanhóis, árabes e também japoneses), e gurando um cenário marcado por uma notá-
levou ao surgimento de pelo menos um novo vel intensificação do afluxo populacional, por
núcleo urbano de importância: a cidade de Três um processo de febril apropriação de terras e
Lagoas, originada de um acampamento de tra- por uma diversificação da produção regional,
balhadores da época da construção da ferrovia. com grande destaque para o desenvolvimento
Enfim, para além dos efeitos da NOB, a da agricultura – abrangendo o café, gêneros
vinculação entre o SMT e o Sudeste brasileiro alimentícios (arroz, feijão, milho etc.) e ma-
continuou a ser potencializada por forças que térias-primas industriais (como o algodão e o
se mostram ainda mais poderosas a partir da amendoim).
década de 1930. De fato, à medida que se de- Tal processo relacionou-se, também, em
senvolve no Sudeste, sobretudo em São Paulo, grande medida, com as políticas da referida
a fase da industrialização acelerada, aquela “Marcha para Oeste”, lançada pelo ditador
vinculação ingressa em um novo patamar, re- Getúlio Vargas em 1938 e que se desdobrou,
presentado pelo transbordamento para o ter- entre outras coisas, num esforço de “nacio-
ritório sul-mato-grossense, a partir da década nalização” das extensas fronteiras sul-mato-
de 1940, das chamadas frentes pioneiras (cf. -grossenses com a Bolívia e, sobretudo, com
WAIBEL, 1979). Além disso, aos estímulos eco- o Paraguai. No caso da fronteira boliviana,
nômicos juntaram-se também os políticos, isto foram nacionalizados alguns gigantescos
é, as ações governamentais comumente englo- latifúndios até então pertencentes a compa-
badas sob o slogan da “Marcha para Oeste” (cf. nhias estrangeiras. No tocante às fronteiras
LENHARO, 1986a; OLIVEIRA, 1999). com o Paraguai, principalmente no extremo
Depois de 1930, o processo de indus- sul do SMT, as preocupações dos dirigentes
trialização, baseado no desenvolvimento do pareciam mais agudas, haja vista a grande
mercado interno, deu início a uma espécie presença, no seio da economia ervateira, de
de círculo virtuoso, do ponto de vista da acu- cidadãos paraguaios e seus descendentes –
mulação capitalista: a industrialização, ao in- de tal modo que, nessa região, era intensa a
duzir a urbanização, provocou um aumento influência cultural paraguaia, inclusive com
da demanda por alimentos e a consequente uma larga disseminação do idioma guarani.
expansão da agricultura comercial – a qual, Além disso, importantes setores do Estado
por sua vez, ao ampliar a renda no meio ru- Novo varguista identificavam, na forte pre-
ral, ampliou o mercado para os produtos da sença da Companhia Mate Laranjeira (que
indústria, com o que se realimentava todo o mantinha, ademais, fortes vínculos com a
processo (SINGER 1984, p. 218; 220). economia argentina), um empecilho ao in-
Como observa Leo Waibel (1979, p. 297), cremento do povoamento da região por con-
os estímulos provindos do polo industrial do tingentes nacionais.
Sudeste, sob a forma da demanda por gêne- Assim se compreendem, portanto, diversas
ros alimentícios e matérias-primas,73 fizeram- medidas estadonovistas no sentido de desa-
se sentir sobre uma vasta área, que abrangia lojar a referida Companhia, como, por exem-
grande parte do SMT. Assim, frentes pionei- plo, a recusa em renovar suas vastas conces-
ras74 emergiram em diversas porções desse sões ervateiras, a imposição de taxas sobre
a erva cancheada e o apoio aos produtores
73
Ao mesmo tempo, deve-se lembrar que, a despeito do
grande choque sofrido em 1929, a produção cafeeira ervateiros independentes da empresa, com a
continuou a desempenhar um importante papel na criação do Instituto Nacional do Mate e de
economia nacional, mantendo um grande potencial
de estímulo à ocupação de novas áreas agrícolas.
cooperativas de produtores. Em 1943, enfim,
74
Para uma discussão sobre o conceito de frente pionei- o governo chegou a transformar em territórios
ra, ver MARTINS 2009. federais as áreas de atuação da Companhia,

122 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


no SMT e no oeste do estado do Paraná – res- O grupo Bata, da Companhia Viação São
pectivamente, os Territórios Federais de Ponta Paulo-Mato Grosso, fundou, na década de
Porã e de Iguaçu. 1950 os núcleos coloniais de Bataguaçu e Ba-
Por parte do governo federal, a principal tayporã; na mesma década, o grupo Moura
iniciativa consistiu na criação, em fins de Andrade fundou Nova Andradina, enquanto
1943, da Colônia Agrícola Nacional de Dou- a SOMECO, segundo Figueiredo, “iniciou os
rados (CAND), localizada em área até então trabalhos em Ivinhema em 1961”. O mesmo
adjudicada à Companhia Mate Laranjeira. É autor conclui: “Todas essas iniciativas de colo-
certo que, em face das tensões então existentes nização marcam uma fase de ocupação inten-
em diversas áreas rurais brasileiras, a política siva, sob o domínio da agricultura – sem abo-
de colonização do Estado Novo apresentava lir, naturalmente, a pecuária”76 (1968, p. 246,
também contornos de uma “contrarreforma nota; v. também ZILIANI, 2010; CARLI, 2008).
agrária” – o que se nota claramente pelo fato Todo esse processo foi contemporâneo dos
de que à CAND foram encaminhados, prin- rápidos progressos verificados nos transportes
cipalmente, camponeses pobres do Nordes- rodoviários, os quais jogaram um decisivo pa-
te (cf. LENHARO, 1986a; OLIVEIRA, 1999). pel na “abertura” dessas “regiões semi-isola-
Seja como for, a implantação da CAND, que das” (segundo a expressão de Paul Singer) e
adquire maior efetividade a partir de fins da sua integração ao mercado nacional – embora
década de 1940, contribuiu decisivamente no seja certo que as ferrovias não deixaram de
sentido de atrair para a região consideráveis também desempenhar um importante papel.
contingentes populacionais.75 A iniciativa do No caso específico do SMT, a presença do
governo federal foi logo secundada pelo go- transporte ferroviário foi, aliás, ampliada, nes-
verno estadual, por companhias particulares sa fase das frentes pioneiras, com a constru-
e até mesmo por governos municipais, e as- ção do já citado ramal da NOB, que chegou a
sim, ao longo das décadas de 1950 e 1960, Ponta Porã em 1953. Nesse ramal, foi inaugu-
multiplicam-se no SMT as colônias agrícolas rada, em 1944, a estação de Maracaju e, em
– multiplicando-se, no mesmo passo, a pro- 1949, a de Itahum, situada a cerca de 60 km
dução dos gêneros há pouco mencionados. da cidade de Dourados.
Essa situação é resumida por Figueiredo, que, Segundo as informações disponíveis, esse
embora se referindo mais especificamente ao ramal, com a estação de Maracaju e depois a
extremo sul dessa região, escreve: de Itahum, teve importante papel tanto no en-
caminhamento de migrantes como no trans-
O esgotamento da frente paulista e parana- porte de sua produção (cf. OLIVEIRA, 1999;
ense, além de sua maior valorização terri- SOUZA, 2003; SANTOS; QUEIROZ, 2006).
torial, forçou a procura crescente das terras
Mesmo nessa região, contudo, parecem ha-
mato-grossenses. Além de uma penetração
constante e espontânea, alguns capitais parti- ver adquirido maior importância as conexões
culares e a iniciativa governamental comanda- diretas com o oeste paulista, principalmente
riam a ocupação em determinadas áreas. Foi com a zona servida pela E. F. Sorocabana –
assim que surgiram a experiência colonizadora conexões que seriam providas, sobretudo, por
oficial da Colônia Agrícola Nacional de Dou- estradas de rodagem. É certo que, durante al-
rados e os grandes loteamentos formados pela gum tempo, até mesmo a navegação do rio
Companhia Viação São Paulo-Mato Grosso, por
Moura Andrade e pela Sociedade Melhoramen-
Paraná e seus afluentes sul-mato-grossenses
tos e Colonização (SOMECO). (FIGUEIREDO, continuou a desempenhar certo papel na vin-
1968, p. 242].
De fato, é conveniente assinalar que tampouco esse
76

novo movimento de colonização, embora relativa-


mente intenso, logrou senão atenuar o velho padrão
75
Sobre a CAND, v. também NAGLIS, 2007; SANTOS, latifundiário de apropriação das terras no SMT (cf.
2007; MENEZES, 2012; FERNANDES, 2012. VASCONCELOS, 1997; LENHARO, 1986b).

Paulo Roberto Cimó Queiroz 123


culação entre o extremo sul do SMT e o oeste De fato, já nessa época a produção interna havia
paulista, mediante o contato com a Soroca- conduzido a República Argentina praticamente
bana em Presidente Epitácio (cf. QUEIROZ, a uma situação de autossuficiência e, desde
2004b). Contudo, a partir, pelo menos, da então, suas importações de mate do SMT “res-
segunda metade da década de 1950, o trans- tringiram-se ao mínimo necessário à forma-
porte rodoviário passa a desempenhar o papel ção de produtos tradicionais, de paladar mais
principal, em função do constante melhora- acentuado, proporcionado pelo mate mato-
mento das estradas de rodagem – as quais pa- -grossense” (FIGUEIREDO, 1968, p. 251). Tais
recem ter sido decisivas, por exemplo, para a exigências do consumo argentino, entretanto,
efetiva “decolagem” da economia agrícola da foram tornando-se cada vez menores.
região de Dourados, em ligação direta com o Esse contexto de encolhimento do merca-
mercado paulista pelas rodovias federais atu- do argentino, aliado às medidas cerceadoras
almente denominadas BR-163 e BR-267 (cf. adotadas pelo governo federal durante o Es-
FOWERAKER, 1982, p. 75). tado Novo, parece haver levado finalmente
Isto posto, pode-se dizer que, no que se a Companhia Mate Laranjeira, entre fins da
refere à região conhecida como “grande Dou- década de 1940 e inícios da década seguin-
rados”, é a partir do processo aqui referido te, a praticamente retirar-se do ramo ervatei-
que começa a delinear-se o panorama que, ro, passando a dedicar-se (como faz, aliás,
em linhas gerais, é perceptível ainda nos dias até os dias atuais) às atividades agropecuá-
atuais. Esse processo de incremento popula- rias. Entretanto, concomitantemente à retra-
cional e de expansão da fronteira agrícola se ção da Companhia, verificou-se, por outro
fez de fato, em parte, sobre territórios indíge- lado, um aumento da presença de outros
nas, o que deu origem a agudos e persistentes produtores – aliás, fortalecidos, como já foi
conflitos, muitos dos quais se estendem até dito, pela política do Estado Novo. Assim,
os dias atuais (cf. BRAND, 1993, 1997; PE- surgiram quatro importantes cooperativas de
REIRA, 2007, 2010; EREMITES DE OLIVEIRA; produtores nas cidades de Ponta Porã, Dou-
PEREIRA, 2009). Por outro lado, em função do rados, e Iguatemi – as quais se juntaram em
mesmo processo, originou-se, em boa parte, a seguida em uma Federação. Desse modo,
atual rede urbana sul-mato-grossense, com o mantendo ainda algumas de suas caracte-
surgimento, a partir dos diversos núcleos co- rísticas tradicionais (a saber, a produção de
loniais, de vários novos municípios. erva apenas cancheada, destinada ao mer-
Para concluir esta parte, cabem ainda algumas cado externo), a economia ervateira pôde
referências ao destino que teve, na época aqui manter-se, embora em declínio, até meados
abordada, o mundo ervateiro sul-mato-grossense. da década de 1960. Foi apenas nessa época,
A partir da década de 1930, essa economia ten- de fato, que o mercado argentino, que ain-
deu a um progressivo declínio, não apenas rela- da a sustentava, cerrou-se definitivamente:
tivo, mas até mesmo absoluto, diretamente rela- “Com o aumento da produção na Argenti-
cionado com a redução das compras argentinas.77 na e a pressão que de há muito vinham os
produtores fazendo contra a importação de
Com vistas precisamente a eliminar a dependência
77

em relação à erva importada, o governo argentino mate brasileiro”, escreve um autor, o gover-
passara a incentivar, desde o inicio do século XX, a no argentino foi “obrigado, em princípios de
formação, em seu território, de ervais plantados, os
quais começaram a entrar em produção em fins da 1966, a cortar em caráter definitivo a impor-
década de 1920. tação” (SALDANHA, 1986, p. 504).

124 UMA ESQUINA NOS CONFINS DA AMÉRICA


Considerações finais sentamentos rurais, bem como à identificação
de numerosas áreas indígenas antes ocupadas
Nas décadas de 1970 e 1980, assistiu-se, por não índios. Acrescente-se, também que,
nesse espaço já agora designado como Mato mais recentemente (isto é, desde a década de
Grosso do Sul, a um notável processo de mo- 1980), a fronteira agrícola sul-mato-grossense
dernização das atividades agrárias, marcado tem assistido a uma crescente presença da
pelo uso cada vez mais intensivo de maqui- agroindústria canavieira, representada pela
naria e técnicas modernas, dando origem ao instalação de inúmeras usinas produtoras de
que hoje se costuma designar “agronegócio”. açúcar e álcool – as quais, como se sabe, têm,
Tal processo relacionou-se, em grande me- sistematicamente, engajado muitos indígenas
dida, à chegada de expressivos contingentes no rude trabalho do corte da cana.
de populações oriundas do Sul do país (Rio A título, enfim, de conclusão, parece-me
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), liga- possível dizer que o território hoje sul-ma-
dos, sobretudo, à agricultura e, em especial, to-grossense tem-se configurado, desde há
à monocultura da soja. Tratou-se aí, contudo, muitos séculos, como uma autêntica “en-
de uma modernização conservadora, marca- cruzilhada” histórica, isto é, uma área de in-
da pela expulsão da força de trabalho rural tensos movimentos de povos – sejam popu-
e pela concentração da propriedade da terra, lações indígenas oriundas da Amazônia, do
com o que se produziu um notável êxodo ru- Chaco, da costa atlântica e de outras partes,
ral78 e muitos conflitos fundiários, envolvendo sejam grupos de europeus e seus descenden-
tanto as populações indígenas quanto nume- tes, procedentes das mais variadas direções
rosos camponeses sem terra (cf. QUEIROZ, em que, na América do Sul, se processou a
1998; FARIAS, 2006). Conquista (e, mais tarde, a ocupação dos “re-
Nesse contexto, emergiram novos e notá- motos sertões” do interior), ou sejam, ainda,
veis movimentos sociais, ligados, em grande populações de origem africana compulso-
parte, à atuação de entidades como, por um riamente engajadas nesse processo de ocu-
lado, o Movimento Sem Terra (MST), a Comis- pação. Delineiam-se aí, portanto, fronteiras
são Pastoral da Terra (da Igreja Católica) e a na mais ampla acepção, isto é, não simples
Federação dos Trabalhadores Rurais (FETA- linhas demarcatórias de limites, mas antes
GRI) e, por outro lado, o Conselho Indigenista zonas, ou faixas, as quais, enquanto confins
Missionário (CIMI/MS)79 e outras instituições geográficos de diferentes nações ou povos,
de apoio às causas indígenas – cabendo tam- são essencialmente lugares de encontro e
bém enfatizar que, desde o final da década conflito de alteridades; e fronteiras, também,
de 1970, os próprios indígenas começaram a por certo, na acepção mais restrita de “es-
organizar-se, do que resultaram, por exemplo, paços virgens a serem ocupados”, fronteiras
nos anos 80, as assembleias gerais denomina- econômicas e demográficas – vistas, ain-
das Aty Guasu. Esse processo, ainda em curso, da hoje, como uma “terra da promissão”, a
tem levado à criação de inúmeros novos as- atrair contingentes os mais diversos.80
78
Tal êxodo, ademais de ter sido responsável pelo
crescimento (e, sob certos aspectos, o “inchaço”) de
cidades como Campo Grande e Dourados, transfor-
mou também o agora Mato Grosso do Sul em um
centro de dispersão de migrantes, os quais se diri- Neste último parágrafo utilizo, com algumas altera-
80
giram, sobretudo, para os estados situados mais ao ções, partes de textos que escrevi originalmente em
Norte do Brasil (desde Mato Grosso até Roraima). 2010, a título de fundamentação da proposta de cria-
79
A esse respeito, ver, neste livro, o capítulo escrito por ção do curso de doutorado, no âmbito do Programa
Meire Adriana da Silva. de Pós-Graduação em História da UFGD.

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