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Sérgio Neiva Ribeiro

Universidade do Minho - Professor Auxiliar


sergio-ribeiro@eeg.uminho.pt

“O Mercado Institucional Comunitário como elemento essencial de integração


sociopolítica”.

Resumo:
O desígnio fundamental da comunicação consiste em projetar uma
descodificação sociopolítica da regulação institucional do mercado comunitário
na perspetiva normativa de uma “comunidade de meios”, que se inspira da
inteleção liberal hayekiana e da visão foucaldiana do “poder disciplinador”. A
proposição assenta na hipótese da construção de um “mercado institucional”,
com consequências sócio-normativas perceptíveis.

Introdução
A integração europeia tem sido determinada pelo pressuposto de uma
operacionalidade política de caráter eminentemente tecnocrático e regulador.
Para lá do debate acerca da natureza democrática pouco ortodoxa que lhe
subjaz, a questão muito simples que colocamos é a de saber se tal figurino pode
ser objeto de uma descodificação sociopolítica relevante. A hipótese aventada
consiste em estabelecer um nexo entre a “morfologia” operativa do poder
comunitário e uma integração de carácter eminentemente disciplinador na
esteira dos contributos seminais de Michel Foucault. Trata-se de tentar perceber
como operam os mecanismos de controlo social baseados no esquema político
regulador do mercado comunitário e quais as consequências normativas desses
mecanismos.
Cinco pontos elementares articulam esta inteleção:
I – Primeiro ponto refere-se a uma breve nota de enquadramento acerca
da escolha do mercado como objeto primordial para um estudo sócio-normativo
da construção europeia.
II – O segundo pretende descodificar à luz dos processos políticos da
integração a noção de “poder disciplinador” enunciada por Foucault. Trata-se
de clarificar o nexo entre o que o autor chamava a “governamentabilidade” e os
seus efeitos institucionalizados de “controlo social”. No contexto comunitário, a
pergunta que sobressai como evidente é a seguinte: onde se situa a máquina do
poder exercido? Nas autoridades ou no mercado?
III – O terceiro busca introduzir a fórmula analítica do “mercado
institucional” como hipótese estruturante desta governamentalidade. A lógica
institucional que lhe é imputada apela a um uso do valor teórico da Nova
Economia Institucionalista (NEI), em particular dos contributos de Douglas
North e de John Searle. Pretendemos demonstrar que o ponto comum entre o
“mercado institucional” e a NEI se situa numa fecunda combinação entre o
individualismo metodológico e a importância acordada às instituições como
assento normativo da racionalidade dos atores.
IV – O quarto ponto questiona o significado sócio-normativo que pode
ser outorgado ao mercado institucional. Buscamos no olhar liberal de F. Hayek
sobre a relação entre o Direito e a economia, os elementos que nos permitem
avançar a fórmula de uma “comunidade de meios” como resposta.
V – Finalmente, no quinto ponto, de índole mais conclusiva, cruzamos a
noção de comunidade meios com o modelo regulatório comunitário no sentido
de revelar a expressão de um conteúdo sócio-normativo de caráter
eminentemente integrador.
I
O mercado: objeto primordial de integração?
Este esforço de racionalização do processo de integração europeia não é
neutro. Implica uma clarificação heurística da escolha que passa por uma
exigência de enquadramento. Porquê reduzir o espaço de análise à problemática
do "mercado" num contexto de integração em que opera uma moeda única e o
discurso jurídico dos tratados interpõe a prevalência de uma união económica e
monetária?
Sieberson teria respondido que “o mercado interno não é apenas essencial
para a União Europeia; é realização da assinatura da União Europeia. Nem a
Constituição, nem o Tratado de Lisboa propôs alterações significativas nesta
área” (Sieberson, 2008: o.cit. pg. ). A afirmação de Sieberson é significativa
porque a leitura de um outro contributo do autor permite concluir que o que
separa o Tratado de Roma do Tratado de Lisboa é bem mais do que do que um
tempo ou uma história. É uma evolução radical do agenciamento e da dimensão
do espaço normativo colocado sob a responsabilidade das comunidades
(Ibidem, 2008a) .
Ainda assim, para lá das considerações autorizadas de Sieberson, definimos
três razões que justificam escolha:
- O mercado comunitário é uma realidade inequívoca da integração
Europeia porque desde a declaração Schuman se constituiu como um
método de ação política;
- Na perspectiva do mercado, a moeda representa uma objectivação
fiduciária das transações, ou seja, no contexto europeu a moeda única não
representa um elemento estranho ao conceito de mercado organizado ou
institucionalizado;
- Finalmente, apesar da existência de uma moeda, o processo de integração
desde o tratado UE desmente categoricamente a existência de uma união
económica suficientemente objetiva que perpasse a noção simples de
integração pelo mercado.
II
A “governamentalidade” na União Europeia
Como opera o poder disciplinador? Foucault sublinhou em diversos
momentos que todos os seus contributos não pretendiam encetar uma análise
teórica do fenómeno do poder nem mesmo refletir sobre os seus fundamentos
(Michel Foucault , 1976 : pg. 109 ; 1995 : pp. 231-232). Ainda assim, o tema do
poder ecoa de forma constante e com efeito estrondoso em toda a obra do autor.
A explicação do paradoxo é simples: o tema do poder interessava Foucault
unicamente do ponto de vista epistemológico, ou seja, como instrumento
metodológico para compreender a objetivação do sujeito contemporâneo
(ibidem, 1995). Ausência, portanto, de uma teorização prolífera do poder como
a que os seis livros da república de Bodin tinham engendrado sob a valorização
da fórmula abstrata da “soberania”. Ausência, também, da perspectiva binária
hobbesiana entre o poder único identificável e omnisciente e a sua relação com
o indivíduo, lastro e destinatário racional dessa omnisciência identificada ou,
segundo os dizeres do próprio Foucault, entre dominador e dominado numa
lógica descendente (Ibidem: 1976).
O resultado é a pretensão foulcaldiana à uma “analítica” do poder que
tenta albergar um estudo tão completo quanto possível da sua “anatomia”
disciplinar: na linguagem do autor, “a “disciplina” não pode ser identificada
nem com uma instituição nem com um aparelho; trata-se de um tipo de poder,
de uma modalidade do seu exercício, integrando todo um conjunto de
instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos;
apela a uma “física” ou a uma “anatomia” do poder, a uma tecnologia” (Ibidem,
1975: o.cit, pg. 217). O estudo de Foucault é pois de natureza quase visceral.
Implica uma compreensão arqueológica da realidade histórica que informa a
objetivação do sujeito individual através da análise das relações de força que
esse sujeito mantém no espaço normativo do qual depende, do qual faz parte, no
qual participa e, enfim, no qual inscreve a sua individualidade. A análise do
micro poderes que resultam destas relações de força permite a Foucault
justificar o argumento da eclosão de um saber pertinente que, no final, acaba
por condicionar cada sujeito. Curiosamente, a sequência indica que ao se
assumir como instrumento desse saber, o sujeito influencia as relações de força
que se seguem. Este saber não é o apanágio exclusivo de um qualquer poder
institucional que o possa impor num curto período de domínio. Trata-se, antes,
do resultado de uma construção histórica (ibidem, pg. 219) à qual os poderes
político-jurídicos não são, naturalmente, estranhos. Este saber ultrapassa pois as
instituições políticas porque se enraíza na profundidade da edificação temporal
da verdade das ciências, ela mesma resultante de relações de forças
historicamente identificáveis e conceptualmente ilustradas na noção de
paradigma.
A anatomia do poder é analiticamente capturada como um processo
disciplinar do qual emerge uma institucionalização formal que gere a vida
(ibidem, 1976 : O.cit. pg. 177 et 179). O poder, tal como Foucault o pressente
neste sentido muito entrelaçado, assenta num método de organização espacial e
material que reflete sua estrutura e a sua operacionalização. Nesta perspetiva, é
“maquinal”, tornando assim insignificante saber quem o faz funcionar; e é
“indireto”, já que o seu desígnio operativo consiste em organizar e espaço onde
os indivíduos se dedicam aos seus afazeres não sancionando propriamente dito
os indivíduos. Em bom rigor, este poder estrutura e organiza o espaço
normativo onde se propaga a ação individual e por isso mesmo interessa pouco
saber quem comanda esta organização estrutural. É a organização estrutural que
revela a anatomia do poder, revestindo-se do objetivo de uma composição
equilibrada das “multiplicidades individuais” em função das verdades
científicas e normativas do momento. Dito de outro modo, o poder consiste num
desenho normativo institucionalmente formalizado que o sujeito conhece e
interioriza como as condições sob as quais poderá ativar a sua individualidade.
O argumento que realça o poder comunitário como uma fórmula de poder
disciplinador não é uma novidade absoluta. Desde há alguns anos faz parte do
enquadramento analítico de Lobo-Fernandes que nos tem explicado a
transformação operada pelo processo de integração europeia, sobretudo a partir
do projeto político do mercado interno (Lobo-Fernandes, 2011). Para este autor,
o mercado interno serviu o objetivo dos Estados de procederem a uma
reconfiguração dos seus sistemas de controlo político face à necessidade
conjuntural de desmantelar progressivamente o modelo keynesiano: a
privatização da economia, o desígnio comunitário de eliminar os obstáculos à
liberdade de circulação – aquilo que se tem chamado a regulation for
competition – e a evidência da racionalização comunitária desta liberdade – a
chamada regulation of competition (Jordana & Levi-Faur, 2004) – não resultou
para Lobo-Fernandes num jogo de soma nula com uma manifesta perda de
poder dos Estados, mas significou, antes, uma transferência política para a
esfera privada de responsabilidades públicas, sem que isso significasse um
abandono total por parte do Estados dos seus objetivos políticos de controlo. O
método é que se alterou com os modelos regulatórios: o controlo direto de cariz
mais republicano e intervencionista foi voluntariamente substituído por uma
lógica transnacional de gestão política através do mercado (Ferreira & Morais
2009). Ao poder formal-legal direto substitui-se o poder disciplinador do
mercado, cuja definição e operacionalização política reenvia pois para uma
prática indireta da autoridade. Este é o ponto fulcral da racionalização analítica
do poder comunitário enunciada por Lobo-Fernandes: “a atividade reguladora
da União é sobretudo uma forma indireta de poder dos Estados” (Lobo-
Fernandes, 2004: pg. 81).
A complexidade do modelo regulador comunitário é um dado irrefutável,
desde logo por causa do seu enquadramento numa lógica pluridimensional de
governação multinível (Hatzopoulos, 2012). Ao mesmo tempo, a sua riqueza
conceptual e operativa transformou-o num referencial teórico e institucional
incontestável da integração europeia (Majone, 1997; Comissão Europeia, 2005).
É este paradoxo que levou alguma literatura autorizada a reivindicar uma certa
instabilidade teórica à imagem política da regulação (Morgan & Yeung, 2007;
Baldwin & all, 2010). Onde pode ser averiguado o locus da
“governamentalidade” do modelo regulador? Morgan & Yeung apresentam o
que chamam de “perspetiva legal” do modelo regulador. Dois elementos deste
modelo pronunciam a sua utilidade objetiva para o escopo da nossa abordagem:
um deles tem a ver com uma caracterização instrumental dos meios legais
usados e a explicitação do seu papel facilitador na orientação do comportamento
social; outro refere-se a uma caracterização mais substancial destes meios
legais, configurados como a expressão de valores comuns. A visão da
regulação de M&Y é “instrumental” e, por isso mesmo, permite uma leitura
mais foucaldina da ação política comunitária na medida em que a governação
não é pensada a partir de uma fundamentação filosófica sobre a sua
legitimidade, mas é antes capturada a partir do que alguns autores tem
sublinhado serem os seus “efeitos materiais” (Lascoumes & Gallès 2004).

III
O mercado institucional
Jean Monnet pôde referir nas suas memórias que a primeira experiência
de integração europeia tinha sido pensada como um espaço sem entraves
aduaneiros, sem discriminação, mas regulamentado na perspectiva do interesse
geral. Dizia ainda que, concebido desse modo, o conjunto oferecia uma
impressão de forte organização e de uma finalidade liberal ao mesmo tempo
(Monnet, 1976: pg. 353). A mensagem de Monnet era clara: tratava-se, pois, de
construir um novo mercado que não era um mercado nacional, propriamente
dito, mas também não correspondia às características tendencialmente
anárquicas de um mercado internacional.
Na linha de Monnet, mas com uma objetivação de caráter mais
académico, o economista Jacques Rueff introduziu, de modo seminal, na noção
de mercado “institucional”. Segundo Rueff, O mercado institucional distingue-
se do mercado manchesteriano porque, se se trata de uma zona de “laisser-
passer”, não se trata de uma zona de “laisser-faire”. Mais importante ainda O
que faz do mercado comum um instrumento completamente inovador, não é o
objetivo que pretende atingir, mas as vias através das quais o pretende atingir (J.
Rueff, 1958: pg. 07 e 02). A mensagem de Rueff também é clara: o que dava
significado à construção europeia não era o objetivo do mercado enquanto tal,
mas eram os instrumentos que a construção desse mercado pressupunha.
Monnet e Rueff projetavam o seu ideal operativo da construção europeia não na
lógica primária do desenvolvimento de um centro poder alternativo ao poder do
Estados, mas na lógica da imagem muito lúcida de Pierre Pescatore da
tecelagem de uma trama (Pierre Pescatore 2002). Como é possível tornar
inteligível a noção de “mercado institucional” diante da construção material
projetada por Monnet e aclarada por Rueff, e sobretudo como estabelecer o
nexo com o efeito de “poder disciplinar” de Foucault?
O pensamento expresso pelas achegas da Nova Economia
Institucionalista (NEI) fornece-nos ferramentas preciosas para produzir um
argumento. O que a NEI trouxe de mais saliente em relação às abordagens
clássicas e neoclássicas da economia (Douglass C. North, 1994: pg. 359) foi
uma opção de pesquisa assumida como válida acerca da influência das
instituições sobre a economia, inspirada dos contributos do institucionalismo
económico de Commons e T. Veblen (J. Reis, 1998). Para lá das considerações
de indiretas de Monnet e diretas Rueff acerca da dimensão institucional do
mercado, cabe perguntar se é analiticamente viável pensar o mercado numa
perspetiva institucional. As justificações, não sendo nunca definitivas e
irrefutáveis, ajudam ao conforto da análise. Citamos, pois, por conveniência o
título de um relatório do Banco Mundial de 2002 acerca do desenvolvimento no
mundo: “Building institutions for markets”. Este relatório inscreve uma clara
opção teleológica pela ideia segundo a qual “instituições capazes podem
contribuir de maneira decisiva ao sucesso de reformas visando libertar as forças
dos mercado”. Também ao nível do mercado, as instituições não são elementos
displicentes.
Douglas North pode definir as instituições como as regras do jogo numa
sociedade onde elementos formais permitem instruir as condições das interações
humanas (Douglass North, 1990 : o.cit. pg. 03). Tendo consciência que a
amplitude analítica da NEI se situa num patamar muito mais complexo do que a
inteleção do mercado institucional, o que nos interessa nesta definição de North
é aquilo que em química se chama o “princípio ativo”. O fundamento crítico
veiculado pela NEI é a constatação da incompletude analítica do neoclássicos
enquanto defensores da teoria da “escolha racional” como postulado do
funcionamento da economia e do equilíbrio do mercado (Ibidem, pg. 19 – 20).
O que a NEI rejeita é a ideia de uma cooperação entre os indivíduos como
consequência de uma racionalidade espontânea. Para a NEI, a cooperação
económica é certamente o resultado de um egoísmo racional e utilitarista, mas
condicionado pelas circunstâncias institucionais. Nesta ótica, as instituições têm
a função de estabelecer uma mediação entre o egoísmo humano e a
consequência da sua racionalidade comportamental. Evacuar a importância das
instituições seria o equivalente de um “estado de natureza” das relações
económicas e, consequentemente, o equivalente à ausência averbada de um
mínimo de previsibilidade, não obstante essencial, à estabilização de qualquer
regime de acumulação (D. North, 1993). A partir deste “princípio ativo”, North
conseguiu indicar que as regras do jogo societal são constituídas por
constrangimentos formais como as regras políticas e judiciais, as regras
económicas, os regimes legais do contratos, e por constrangimentos informais
corporizados na tradição e nas heranças culturais. Ménard descreve de um modo
muito explícito as instituições como “ (...) um conjunto de regras duráveis,
estáveis, abstratas e impessoais, cristalizadas nas leis, nas tradições ou nos
costumes que implantam e implementam, por consentimento ou por
constrangimento, modos de organização das transações” (Claude Ménard, 2003:
o.cit., pg.106).
Qual é o objetivo operativo das regras? Na linguagem da NEI consiste em
permitir uma diminuição dos custos de transação de modo a optimizar o
dinamismo do mercado nos regimes de acumulação capitalista. De um ponto de
vista mais ontológico, as regras são adotadas quando o ratio do investimento
que implicam lhes for favorável face à hipótese da sua não adoção. O quadro é
sumário. No entanto, permite dilucidar o nexo entre a estabilização do mercado
para lá de um certo “estado de natureza” e a importância das regras que
enquadram as transações. Ainda assim, estas regras sofrem de uma
incompletude quase genética diante da dinâmica histórica do mercado, diante da
sua dinâmica qualitativa e diante das externalidade negativas que lhe estão
associadas. Deste modo, as instituições do mercado só podem ser
percepcionadas de um ponto de vista dinâmico. Esquematicamente, este
processo descreve-se do seguinte modo:
- Toda as transações mercantis implicam uma objetivação legal e material
dos objetos de troca;
- No quadro de uma mercado complexo, as regras criadas permitem uma
diminuição dos custos ligados a esta objetivação na medida em que
estabelecem um referencial comum que facilita a atividade contratual;
- Consequentemente, a racionalidade económicas dos indivíduos é afetada
por estas regras;
- Diante da dinâmica qualitativa e histórica do mercado, as regras são, por
definição, imperfeitas porque resultam de juízos circunstanciais e análises
informacionalmente limitadas.
- A imperfeição das regras no mercado decorre também da sua
incapacidade em prever todas as externalidade negativas do processo
produtivo.
- Consequentemente, a dinâmica formal verifica-se à través do surgimento
constante de regras mais precisas que substituem ou complementam as
anteriores.
Neste esquema descritivo simplificado há, pelo menos, dois “patamares”
institucionais. Usando a terminologia de Jonh Searle, o primeiro define-se como
uma uma abstração “constitutiva” da objetivação das transações mercantis e o
segundo define-se como uma abstração “regulativa” da objetivação das
transações mercantis (John R. Searle, 2005: pg. 09). A expressão qualificativa
das regras “constitutivas” e regras “regulativas” de Searle é muito útil para o
nosso argumento porque permite a atribuir um sentido normativo muito preciso
às regras de objetivação mercantil. Numa linguagem normativa, as regras
“constitutivas” são as que criam as regras do jogo definindo por isso a sua
própria existência. No caso comunitário poderíamos associá-las à fórmula já
citada da “regulation for competition”. As regras regulativas são de uma
natureza diferente. Referem-se às regras que exigem a conformação dos
comportamentos individuais entre si quando interagem num contexto dinâmico
implementado pelas regras constitutivas. Assumem, pois, uma função de
garante de um certo equilíbrio operacional entre as diversas interações
individuais sem ter um caráter essencial na construção do agora dessas
interações. Ao nível comunitário podemos associar estas regras à “regulation of
competition”. Ainda que a sua formulação não tenha a mesma amplitude teórica
e heurística que a NEI, no essencial, a conceptualização do “mercado
institucional” retoma as proposições desta corrente de pensamento. Na esteira
da NEI, as regras regulativas e constitutivas do mercado atingem a
racionalidade individual na medida em que a generalidade dos indivíduos acaba
por estar em situação de ser afetado pelo mercado.

IV
O nexo teórico entre o mercado institucional a fórmula de uma
“comunidade de meios”
A integração europeia abriu um espaço de governamentalidade original
na medida em que recriou um espaço jurídico-político suis generis fixado pelo
objetivo de construir um novo mercado à escala europeia. Nesta perspetiva, o
mercado institucional é uma realidade histórica artificial, contrastando assim
com a realidade histórica e mais natural do mercado internacional europeu. O
aspeto artificial do mercado institucional torna-se evidente se forem observados
dois aspetos interdependentes:
Primeiro, a estrutura jurídica que o sustenta é órfã do grande leviatão. O
mercado institucional exprime um direito sem Estado, ainda que primado na
hierarquia das normas e o efeito direto de que goza lhe confira uma força
soberana. As implicações práticas são conhecidas: a validação do trabalho
político foi predominantemente feita numa lógica de outputs ou como pode
enunciar F. Scharpf numa lógica do governo para o povo (Scharpf 2000). Só a
noção de eficácia, cara aos desígnios operacionais da burocracia tecnocrática,
serve de pêndulo para aferir a validade política da referida estrutura jurídica.
Segundo, o mercado institucional tinham a pretensão de caucionar o
conceito inovador de “espaço transnacional de trocas” ao revés da tradição
multisecular das políticas comerciais de prefiguração mercantilista fixadas pelo
advento do sistema vestefaliano. A criação do grande mercado comum
implicava um plano de ação distinto dos planos de ação internacionais e / ou
nacionais. Havia, portanto, margem para uma montagem jurídica original que
permitisse organizar de maneira alternativa o conceito de troca no mercado.
Na ótica jurídico-política estes dois aspetos exprimem a ideia de que as
competências comunitárias eram materialmente limitadas mas completamente
livres na sua capacidade de ação substantiva para recriar um agora de mercado
com especificidades próprias. Sendo a ação tecnocrática comunitária
materialmente limitada mas operando num terreno praticamente virgem, coloca-
se a questão de saber quais são essas especificidades.
A nossa hipótese consiste em avançar a ideia da eficácia política do
mercado como dispositivo técnico de governamentalidade. Quais foram as vias
– no sentido rueffiano do termo – para concretizar este projeto?
Desde logo, a criação de mecanismos jurídicos pragmáticos e
estruturantes que permitissem assegurar uma certa ordem catalítica no sentido
hayekiano do termo (Friedrich Hayek, 1976 : pg. 131). A ideia principal desta
ordem é a existência de um mercado que permita o ajustamento mútuo de
“numerosas economias individuais”, sendo a cataláxia a ordem espontânea que
daí emerge através da ação de indivíduos que observam as regras jurídicas da
propriedade, da responsabilização individual e dos contratos (ibidem). Na
expressão de Jean Petitot, a existência desta ordem remete para a importância de
um mercado que permite aos agentes interagir sem forçosamente partilhar os
mesmos valores, ou seja, sem que haja uma “comunidade de valores” mas
somente uma “comunidade de meios”, garante da cooperação, não obstante, a
diversidade de interesses e a concorrência de fins (Jean Petitot, 2000).
Numa achega primária, a eficácia política do projeto comunitário
consiste, pois, na implementação sociológica de uma “comunidade” integrada
ao nível da partilha de “meios” técnico-políticos que permitam a sua dinâmica
interna. Como se pode verificar no conceito de ordem catalítica, tal proposta
não tem implicações ao nível da diversidade de interesses e, como bem explica
Philippe Nemo, Hayek insiste no facto de que, nas grandes sociedades, o
conhecimento do quadro abstrato das regras de conduta justa é precisamente o
único conhecimento que é comum. Trata-se de uma forma paradoxalmente
pobre de comunicação porque não abarca uma grande parte dos laços sociais,
mas, ao mesmo tempo, graças a esta singular pobreza, consegue assumir-se
como denominador comum numa escala exponencialmente mais vasta do que o
pequeno círculo comunitário onde é possível estabelecer relações diretas e
substanciais com terceiros. Ainda dilucidando o propósito hayekiano, Nemo
refere que se só é possível conhecer em concreto um indivíduo por
aproximação, é no entanto possível prever uma interação racional com um
indivíduo desconhecido se existe uma partilha mútua das regras que informam
essa interação (Philippe Nemo, 2006: pg.1078).
V
Conclusão:
Um mercado institucional com significado sócio-normativo?
A questão particular que se interpõe ao nexo entre a formula conceptual
do “mercado institucional” e a ideia de “comunidade de meios” comunitária é a
de saber se o seu significado político é neutro quanto aos efeitos. A questão tem
particular relevância se observarmos que mesmo na ordem catalítica se recriam
um conglomerado de significantes expressos como referencial das interações.
Ao cruzarmos a natureza do modelo regulatório comunitário com a
proposta da “comunidade de meios” verificamos uma perceptível colonização
do social pela “disciplina do mercado” através de objetivos que perpassam o
quadro mais estrito da sua própria eficácia económica. O modelo regulador
comunitário inscreve uma plêiade de valores cuja natureza não é forçosamente
mercantil: a segurança do consumidor, a ecologia, a saúde pública, a segurança
e higiene no trabalho, a não discriminação laboral, o desenvolvimento
sustentável são um conjunto de áreas com expressão ao nível da construção
comunitária das exigências do mercado.
Um exemplo paradigmático é a marcação CE exigida a uma parte do
produtos que são colocados no mercado comunitário. A marcação CE envolve
um conjunto de exigências de ordem legal para aferir a conformidade de
categorias alargadas de produtos com as exigências do mercado comunitário,
sobretudo ao nível da segurança e da higiene. Independentemente da
complexidade formal dos procedimentos, o que deve ser salientado é que se, por
um lado, estas exigências condicionam as interações dos agentes durante a
produção e comercialização dos produtos, também servem, por outro lado,
como um referencial de racionalização do repertório de oportunidades. Os
próprios consumidores são convidados a verificar o critério de autenticidade
legal dos produtos através da marcação CE.
A descrição sumária deste exemplo demonstra que a progressiva
construção de uma “comunidade de meios” através da força normativa de um
mercado institucional tem um significado sócio-normativo visível. Demonstra
também que as exigências do mercado institucional europeu integram um
conjunto de fórmulas profícuas a esta osmose entre o mercantil e o social e, por
conseguinte à especificação de uma racionalização coletiva de signos
socialmente válidos para lá dos signos ligados à eficácia económica.

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