Você está na página 1de 7

CANGIANI, Michele.

A teoria institucional de Karl Polanyi: a sociedade de


mercado e sua economia "desenraizada". In.: Karl Polanyi, A subsistência do homem e
ensaios correlatos. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012. P. 11 – 41.

Polanyi interessa-se por uma teoria dos traços gerais da sociedade capitalista
moderna que a acompanham ao longo de toda a sua história, continuam presentes e a
distinguem de qualquer outra sociedade. (p. 11).

Tanto essa abordagem neoinstitucional quanto a sociologia econômica vão além


das categorias e deduções abstratas da economia neoclássica; ambas consideram as
escolhas e relações econômicas fenômenos complexos, condicionados por fatores
culturais, sociológicos, políticos e psicológicos. Como o termo "enraizada" tem sido
cada vez mais usado erroneamente, uma correspondência com a distinção de Polanyi
entre enraizado e desenraizado, que só faz sentido em sua ampla análise comparativa
dos sistemas econômicos. Esse mal-entendido tende a obscurecer suas principais
realizações teóricas e metodológicas. Na verdade, como procurei mostrar, há uma
lacuna entre as formulações recentes da economia neoinstitucional e a abordagem que
Polanyi compartilha com a economia institucional mais antiga, radical e da corrente
dominante - que Gruchy (1947) chama de "economia holística". (p. 12 – 13).

Análise comparativa de sistemas econômicos

Diversas formas de organização social da economia são possíveis. Uma delas, o


sistema de mercado, caracteriza-se pelo fato de que, tornando-se a troca a "forma de
integração" prevalente, o mercado se transforma na instituição específica pela qual a
economia se organiza socialmente. (p. 13).

O trabalho e a terra - os "seres humanos" e "o meio natural" em que existe


sociedade - não são "produzidos para a venda"; não são mercadorias, escreve Polanyi
(2001, p. 75). Entretanto, na sociedade de mercado, foram "organizados em mercados",
algo que nunca havia acontecido. Dada a "importância vital! da atividade econômica,
observa Polanyi, seu controle pelo mercado "significa nada menos que a direção da
sociedade como um acessório de mercado. Em vez de a economia estar enraizada das
relações sociais, as relações sociais estão enraizadas no sistema econômico" (p. 60).
A ruptura - "uma ruptura violenta" (Polanyi, 1977, p. 10) - com as sociedade pré-
modernas aparece como uma verdadeira inversão. A maneira como a economia se
estabelece a torna autônoma, e sua autonomia lhe confere uma posição dominante na
sociedade. Assim, "a agregação humana emergente foi uma sociedade 'econômica' num
grau do qual, anteriormente, nunca houvera sequer aproximação" (Polanyi, 1974, p.
111). (p. 13 – 14).

"[...] para eles [historiadores e sociólogos da longue durée] o estabelecimento de


um sistema de mercado não representa uma diferença que envolva a organização social
como um todo, mas apenas uma diferença no grau de expansão do mercado como
fenômeno universal. Isso explica, por exemplo, por que Ferdinand Braudel refutou o
conceito polanyiano do sistema de mercado, considerando-o decorrente de "uma
predileção teológica por definições ", e não da evidência histórica (Braudel, 1979, p.
195 - 196). (p. 14 – 15 – grifo meu).

Uma sociedade econômica

O conceito marxista de organização social [Gesellschaftsform] da econômica


pode ser considerado a origem do método institucional. Marx o elabora ao analisar a
"forma do valor", no primeiro capítulo de O capital, no qual "o mundo das mercadorias"
e "decifrado", ou seja, explicado como uma organização social específica. O
desenvolvimento teórico ulterior de O capital e a crítica das teorias econômicas
fundamentam-se nessa análise. Para que o modo de produção capitalista seja
plenamente definido e para que a crítica seja implementada, a teoria das "formas'' da
moeda e do capital também é necessária. Todavia, é no nível inicial e mais abstrato da
análise, o da "circulação simples" das mercadorias, que o novo paradigma
"Institucional" é adotado e explicitamente enunciado; ali, Marx demonstra a natureza
"puramente social" do valor de troca, numa sociedade em que, na verdade, "a relação
dos seres humanos entre si como proprietários das mercadorias é a relação social
dominante" (Marx, 1995, p. 273 - 274). A análise da "forma do valor" é o ponto de
partida da explicação do modo de produção capitalista como "um tipo específico de
produção social" (Marx, [1987] 1979, p. 95, nota 32; ver também 1955), ou, nas
palavras de Polanyi, como uma organziação socail historicamente dada, na qual os
mercados formadores de preços são a instituição dominante, ou, a rigor, típica. (p. 17)

Na sociedade de mercadorias, o "vínculo social" que liga o trabalho de


diferentes pessoas - isto é, o reconhecimento social de seu trabalho e o valor de seus
produtos - consiste, de acordo com Marx, no trabalho humano em geral ("trabalho
abstrato"). Essa é uma característica peculiar da estrutura institucional "cuja
substância é o 'elo do dinheiro'", no dizer de Polanyi. Marx e Polanyi contrastam
esse tipo de sociedade com os precedentes, no quais o reconhecimento e o valor
sociais de qualquer ato de trabalho não eram determinados por seu caráter
abstrato, mas por serem concretamente predefinidos nas culturas que estipulavam
regularmente e em detalhe o que tinha de ser feito, por quem, como e por quê. (p.
17 – 18).

No nível dessa distinção, e com referência a ela, deve-se encontrar o sentido da


distinção de Polanyi entre todos os sistemas anteriores, nos quais a economia estava
"enraizada" em relações sociais, políticas e religiosas, e o sistema de mercado, no qual
ela fica "desenraizada". Na sociedade capitalista de mercado, a economia é diferenciada
e pode ser definida como tal porque tende a ser autônoma. (p. 18).

A instituição do mercado de trabalho implica "o despedaçamento das estruturas


sociais, a fim de extrais delas o elemento do trabalho" (p. 172) e usá-lo como um fator
em uma atividade econômica desenraizada. (p. 20).

Continuidade e transformações na sociedade de mercado

Dois níveis de abstração conceitual entrelaçam-se em A grande transformação


[...] Um nível menos geral concerne à transformação da sociedade capitalista; nele, o
conceito de sistema de mercado deve ser compreendido em seu sentido mais estrito,
denotando o "mecanismo institucional" do capitalismo liberal, que Polanyi também
chama de capitalismo "oitocentista" ou "vitoriano". (p. 21).

Na primeira página do seu livro, Polanyi aponta as quatro instituições


fundamentais desse "mecanismos": o "sistema de equilíbrio de poder" entre nações
europeias, "o padrão-ouro internacional", "o mercado autorregulador" e o "Estado
liberal" (p. 3)." (p. 23).

Na opinião de Polanyi, a eficiência social de qualquer organização - uma fábrica


ou um partido, ou o sistema econômico como um todo - é proporcional ao seu grau de
"democracia viva" (Polanyi, [1925] 2005, p. 124). (p. 23).

Liberdade em uma sociedade complexa

A teoria polanyiana da transformação mostra que a concepção da economia


capitalista de mercado como "desenraizada" pode ser relevante para se compreender a
evolução institucional da sociedade de mercado. Esse resultado é possível,
precisamente, porque tal concepção é elaborada no nível mais abstrato, no qual se
definem os traços mais gerais da sociedade de mercado. Nesse nível conceitual, a
condição de desenraizamento significa que o sistema econômico, fundamentado nas
instituições do mercado e da produção capitalista, é "economicamente" organizado. Por
conseguinte, o sistema econômico tende a ser autoreflexivo, ou seja, aberto a
informações provenientes de seu meio unificante se puder reconhecê-las e laborá-las de
acordo com os aspectos mais gerais de sua próprias organização, no intuito de preservá-
los. (p. 29).

Também é importante nos atermos a esse sentido geral da distinção


enraizado/desenraizado porque ele está relacionado com outras características gerais do
desenvolvimento moderno da sociedade, tais como a racionalização weberiana e o
processo pelo qual os sujeitos sociais tornam-se indivíduos. Além disso, esse significado
esclarece a peculiaridade do moderno "lugar" da economia, não só no sentido de ela se
tornar autônoma e dominante, mas também em relação à articulação complexa das
diferentes funções e dinâmicas sociais. Tipicamente, na sociedade moderna, a estrutura
fundamentalmente "econômica" e a dinâmica da organização social não determinam
todos os aspectos da vida social e sua evolução, mas os restringem, deixando-lhes uma
liberdade relativa. (p. 29 – 30).

Na teoria weberiana de sociedade capitalista moderna, o processo de


"racionalização" e diferenciação dos diversos aspectos e funções sociais consiste,
primordialmente, na racionalização e diferenciação da economia. Esse processo é a base
do moderno problema de dar "sentido" a um mundo "desencantado". Weber, assim
como Richard Tawney, sem dúvida, influenciou Polanyi, que, por sua vez, discorre
sobre a necessidade moderna de levantar explicitamente o problema da economia e da
própria sociedade. É o que ele chama de "a descoberta da sociedade". Entretanto, numa
sociedade que viria a ser caracterizada por uma economia desenraizada, essa descoberta
assumiu sobretudo a forma da descoberta da "sociedade econômica", a qual,
paradoxalmente, parecia "sujeita a leis que não eram humanas" (Polanyi, 2001, p. 131).
(p. 30).

Neste pondo podemos captar melhor o sentido da insistência de Polanyi na


"ruptura" radical representada pela moderna "sociedade de mercado". Na opinião dele, a
irreversibilidade desse limiar histórico implica que a economia deveria voltar a ser
controlada pela sociedade, mas numa forma moderna: não dentro de uma totalidade
cultural tradicional, mas com base na vida social moderna, racional, diferenciada, aberta
e dinâmica, e, primordialmente, por meio de instituições políticas que permitam a
liberdade dos indivíduos, na medida em que sejam democraticamente instituídas. (p.
31).

Em conclusão, nos escritos de Polanyi há provas de que sua teoria geral


comparativa e sua análise da "transformação" implicam a impossibilidade de reenraizar
a economia enquanto ela mantiver sua organização capitalista de mercado, que é capaz
de se reproduzir por meio de uma renovação contínua de suas instituições econômicas,
políticas e culturais. (p. 33).

A falácia sociologista

Mark Granovetter (1985), [introduziu a ideia] do "enraizamento" da ação


econômica. (p. 35 – grifo meu).

Se é correta a minha interpretação polanyiana, tal como exposta nas seções


anteriores, deve estar claro que sua concepção de "enraizamento" tem um significado
diferente do encontrado na sociologia econômica contemporânea e na economia
neoinstitucional, ou em como quer que a economia seja revisada. (p. 35).

Para evitar confusões uma premissa óbvia é que o conceito de "economia


desenraizada" não coincide com "economia pura" dos modelos neoclássicos abstratos.
Ser "desenraizada" constitui um aspecto geral e permanente da economia de mercado.
Isso não se choca com o fato de que um mercado perfeitamente autorregulador e
perfeitamente competitivo nunca existiu nem poderia existir. Polanyi explica que a
tendência para influir propositalmente no funcionalismo do mercado pode ser
identificada desde o começo, principalmente graças (1) à necessidade de "proteção" e ao
"contramovimento" que ala originou, e (2) à dinâmica do capitalismo, que envolve
mudanças na estrutura do mercado e condiciona a evolução de todas as instituições
sociais. É precisamente a característica geral de a economia ser desenraizada que, por
um lado, torna inevitáveis a regulação e a intervenção social do Estado, e, por outro, dá
ao sistema social seu dinamismo e sua complexidade típicos. De qualquer modo, apesar
do controle limitado que a sociedade é capaz de exercer, o trabalho, a terra e o dinheiro
continuam a ser tratados como mercadorias; aliás, o conhecimento foi acrescentado a
eles como uma quarta "mercadoria fictícia". (p. 36).
Há um ligar para os sociólogos no estudo da vida econômica", escreve
Granovetter (1984, p. 507), concluindo sua ilustração da "abordagem do enraizamento".
Ele considera o comportamento econômico pelo prisma de "uma formulação mais
ampla da escolha racional" (p. 505), capaz de levar em conta não apenas objetivos
estritamente econômicos, mas também motivações morais e sociais (como aprovação
social ou o poder). Os indivíduos não são átomos utilitaristas nem meros atores que
desempenham um papel culturalmente predeterminado. Em vez disso, sua conduta pode
ser explicada mediante a análise de "sistemas concretos e contínuos de relações sociais",
de "relações pessoais e estruturas (ou 'redes')" em que ela está enraizada (p. 487, 490).
Por exemplo, confiança ou a violação de normas nas transações de mercado e "a
eficácia do poder hierárquico" nas organizações (p. 499) são influenciadas por esse
"enraizamento". (p. 38 – 39).

Contornar e/ou eliminar esse tipo de questão, nesse nível de abstração


conceitual, parece ser uma grande preocupação das ciências sociais contemporâneas.
Um baluarte dessa tendência é a tentativa de solapar a teoria de Polanyi, por parte dos
cientistas sociais e historiadores que afirmam que a economia sempre foi e continua
enraizada. Essa tentativa costuma seguir uma de três vias, que também podem superpor-
se parcialmente. (p. 40).

A primeira via consiste em confundir dois conjuntos de naturezas diferentes - o


das economias enraizadas e o das economias estabelecidas, que inclui o primeiro. O
interessante artigo de Kutulus Gemici sobre "as antinomias do enraizamento",, por
exemplo, começa pela afirmação de que '[t]odas as economias são enraizadas, uma vez
que a vida econômica é um processo socialmente estabelecido e organizado’ (Gemeci,
2008, p. 9). Polanyi, ao contrário, faz uma clara distinção entre enraizado e
estabelecido. A sociedade de mercado é estabelecida como desenraizada. (p. 40).

A segunda via consiste, simplesmente, em evitar a análise do sistema social


como tal. Bernard Barber critica com acerto, nesse sentido, os sociólogos - em particular
os "novos" sociólogos econômicos - que se restringem "a temas especiais" e "não são
receptivos à análise do sistema social" (Barber, 1995, p. 405 - 406). O trabalho deles,
continua Barber (407), "limita-se a fragmentos soltos do sistema econômico vigente".
(p. 40).
O próprio Barber é um bom exemplo da terceira via. "Todas as economias se
enraízam em sistemas sociais complexos e maiores", escreve (Barber, 1995, p. 408),
numa clara referência à teoria de Talcott Parsons. O comportamento mercantil tambpem
só existe no contexto de "um conjunto definido de arranjos estruturais e culturais do
sistema social" (p. 399). (p. 40).

Procurei mostrar que a distinção enraizado/desenraizado, tal como estabelecida


por Polanyi, é inerente à sua explicação comparativa dos traços históricos gerais do
sistema (capitalista) de mercado; que é um elemento fundamental de uma teoria que
permite compreender melhor esse sistema, ao mesmo tempo que continua fundamentada
em dados e perfeitamente refutável (no sentido popperiano). (p. 41).

Vimos que a "falácia economicista" consiste na falsa generalização de categorias


econômicas extraídas do funcionamento da economia de mercado. Assim, torna-se
difícil compreender as características específicas que diferenciam os sistemas
econômicos entre si. Em particular, desaparece a própria concepção de "sociedade de
mercado" como arranjo histórico institucional singular. O mesmo resultado é obtido
pela "falácia sociologista", que consiste na tese da "economia sempre enraizada". Com
isso, mas uma vez, a "diferença específica" que caracteriza os sistemas de mercado - e,
portanto, os traços institucionais mais gerais de nossa sociedade e sua dinâmica - tende
a ser excluída do horizonte que essa atitude esquiva, assim como o mal entendido acerca
das realizações teóricas de Polanyi, foi um aspecto revelador da nossa era de conssenso
neoliberal? (p. 41).

Você também pode gostar