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Sérgio

Ribeiro
UMINHO


Política Internacional 2021-2022

TEXTO PEDAGÓGICO I


A GLOBALIZAÇÃO E AS CONTRADIÇÕES INERENTES À EXTERNALIZAÇÃO DO PODER


O termo globalização não é unívoco. Como explicitou Moraes Godoy, trata-se de
uma "metáfora" cuja função é a de exprimir um condição económica e cultural (Ver Texto
Godoy BB). A condição económica global enquadra-se no desenvolvimento do modelo
liberal ou neoliberal à escala mundial. A condição cultural integra um processo de
transformação geográfica do conceito: às culturas individuais, locais, regionais e
nacionais, sobrepõe-se a cultura global e um conjunto de novos valores com expressão
nítida em inéditos fluxos uniformizados de ideologias de modas e até de hábitos. Os
direitos humanos, as questões da sustentabilidade, a ecologia fazem parte destes novos
fluxos ideológicos. O sucesso dos grandes centros de difusão estética como Paris, Nova
York, Milão, comprovam a avidez global pelo estatuto de "conectado(a)" às tendências. A
proliferação mundial da linguagem semiescrita dos telefones, independentemente do
lugar e da distância, assim como a preponderância da língua inglesa, comprovam uma
nítida alteração dos modos de comunicar e a erosão das diferenciações ao nível dos meios
técnicos e da língua.

Os nossos dicionários indicam-nos que o termo "externalização" se define de
forma primária como a atribuição de uma tarefa ou um serviço a uma entidade externa.
Alguns autores referem o termo como o efeito de um processo cujo alcance perpassa o
próprio processo, com incidências objetivas no ou nos contextos envolvente e adjacentes.
(Majone – 1997). No quadro da análise das relações internacionais, a externalização pode
ser refere-se aos efeitos consumados de decisões políticas. Estes efeitos são perceptíveis
em áreas fora do alcance direto do poder que os gerou, fora do alcance do poder dos
Estados.

Ø A dinâmica de globalização que tem caracterizado a evolução do sistema
Westfaliano provoca um tensão eminente entre, por um lado, as unidades
preponderantes do sistema, os Estados soberanos, e, por outro, a progressiva
externalização das suas prerrogativas soberanas.
Esta tensão tem-se manifestado de dois modos:
- Primeiro, através da progressiva "deslocalização" dos modos de
operacionalização do poder externo mas também interno, para esferas extra
nacionais. O manifesto mais preciso do fenómeno é, por um lado, a crescente
burocratização do sistema internacional e, por outro, a normalização da vida
internacional através de meios jurídicos internacionais de alcance global.
Neste quadro, os Estados veem-se confrontados com o florescimento de uma
multiplicidade de regras internacionais, cuja penetração também envolve as esferas
internas da soberania. O que se passou a denominar, de forma aberta, por "respeito
dos compromissos internacionais" e de forma bem mais subtil por "regulação
internacional" inscreve-se como uma imposição de obrigatoriedade "outside-in" nos
deveres da operacionalização interna do poder. As exigências fixam-se sobretudo ao
nível de uma adaptação forçada do sistema económico, do sistema redistributivo e,
em alguns casos, do sistema político a fórmulas mais coincidentes com as
necessidades vitais do modelo global.
- Segundo, e subsequentemente, a interdependência gerada com a progressiva
afirmação normativa e política do modelo global, não resulta de uma evolução
racionalizada através de consensos também eles globais, mas resulta, antes, da
afirmação política de um modelo socioeconómico e sociopolítico, com uma
preponderância sem equivalente no sistema internacional.
O valor explicativo desta afirmação situa-se nos efeitos colaterais do fim da Guerra
Fria. De facto, do ponto de vista dos grandes desenhos normativos que contribuíram
para a configuração do sistema internacional contemporâneo, o ano de 1989 não
significou nada mais do que a falência técnica, política e económica de um deles – o
coletivo ou coletivista – desenvolvido e experimentado na experiência política do
bloco de leste. Significou ainda um rude golpe num outro – misto – assente nos
pressupostos republicanos da tradição europeia que buscavam valorizar um modelo
político-económico sustentado na redistribuição e na justiça social. Significou
finalmente, a afirmação sem equívocos do desenho alternativo – neoliberal – em bom
rigor menos exigente politicamente apesar de integrar custos sociais mais
significativos. A suas premissas radicam na formulação britânica da liberdade
expressa numa autonomia material do indivíduo que foi plenamente assumida como
modelo normativo da grande nação norte americana.
A estabilização do sistema internacional, promovida pelo modelo global, carrega
consigo a perversão de impor determinantes normativos coincidentes com os da
hiperpotência americana. A perversão não reside na expansão do modelo, até porque o
seu desenho tinha sido estrategicamente esboçado durante a guerra fria e acabou por se
impor por falta de alternativa. A perversão advém dos seu contornos, designadamente,
do modo como, de forma indireta, promove um controlo das soberanias ao nível global.
Trata-se de facto de uma perversão na medida em que contorna, de forma singular, a
fórmula clássica de afirmação anárquica das soberanias mais fortes e as subsequentes
tentativas de controlo estratégico das soberanias menos capacitadas através do músculo,
para redundar num resultado idêntico. Dito de outro modo, através do modelo global
neoliberal institucionalmente expresso no sistema burocrático e regulador internacional,
evacua-se o confronto direto entre soberanias, evacuando, ao mesmo tempo, os custos
políticos, humanos e estratégicos que lhe estão associados, mas não se evacuam as lógicas
de controlo político e estratégico do sistema internacional.
Curiosamente, não se pode dizer que tenha havido ou que haja "dolo" da parte do
Estado ou dos Estados que esboçaram o modelo. Como foi referido, esta foi uma forma do
mundo ocidental e, em particular, dos Estados Unidos de reagir e interagir face à ameaça
coletivista e face ao seu desígnio assumido de expandir a justiça do comunismo. O
Paradigma institucionalista e, em particular, o institucionalismo histórico tem-nos
ensinado que as consequências das decisões políticas tomadas com base em avaliações
determinadas por um contexto histórico específico se perenizam para lá da alteração das
circunstâncias que lhe deram origem. Os EUA ganharam a guerra fria. O seu troféu não
foram territórios. Foi, antes, a imposição e expansão natural do seu modelo por
capitulação total ou parcial dos outros. Este facto é suficientemente claro, ainda que,
acontecimentos como o Consenso de Washington revelem uma clara vontade dos
interesses norte americanos em desenvolver uma lógica de perfuração económica das
soberanias, consolidando um processo inexorável de abertura ao nível planetário. Como
sabemos, a tecnologia fez o resto.

As causas políticas da globalização criaram um efeito de externalização do poder
para o terceiro nível ou nível sistémico porque forçou os Estados a adotar um modelo
liberal aberto "desterritorializado". O surgimento do Estado moderno é concomitante a
um processo de territorialização do poder com uma centralidade mais ou menos
pronunciada. Enquanto entidades soberanas, os Estados, dirigidos por essa centralidade
mais ou menos pronunciada, dominavam de forma organizada o sistema internacional
num desiderato constante de estabilização e segurança. A partir do momento em que as
regras do chamado Consenso de Washington forçaram uma diminuição crescente da
influência dos Estados na organização dos sistemas económicos internos e forçaram-nos
a abrir esses sistemas ao controlo de entidades externas que não eram outros Estados
mas corporações anónimas de caráter internacional , então deu-se uma inelutável
desterritorialização do poder dos Estados para o nível internacional. É neste sentido quer
se deve falar em externalização do poder para o terceiro nível onde curiosamente não
existe um enforcement consensualmente aceite para tomar conta desse poder. Criou-se
então uma "no man's land" em ralação ao qual os processos de controlo político clássicos
são anacrónicos na medida em que são feitos numa lógica de organização internacional
sustentada numa territorialização do poder. Neste "no man's land" proliferam múltiplos
fluxos de capitalismo económico e capitalismo financeiro cujo controlo escapa de
sobremaneira aos Estados territorializados. Os recentes debates técnico-jurídicos entre
as autoridades europeias e os chamados GAFA ou GAMA 1 (só para citar estes) são
ilustrativos da incapacidade dos modelos de poder territorializados para impor um
enforcement efetivo quando se trata de controlar fiscalmente (economicamente e, ainda,
ecologicamente) as atividades lucrativas destes atores globais em alguma àrea específica
do globo.

Resulta deste breve enunciado que os sistemas de organização política territorializados,
assentes nas unidades preponderantes do sistema que são os Estados, se tornam
ineficazes, tanto ao nível da força burocrática que conseguem externalizar, como
também, e sobretudo, ao nível interno, locus de promessas políticas repetidamente não
cumpridas por impossibilidade política de as cumprir, consequência de uma


1 - Google, Amazon, Facebook, Apple ou Google, Amazon, Meta, Apple.
incapacidade de controlar as dinâmicas económicas e financeiras que operam nos
diversos territórios.

Fica o desafio para as ciências sociais de explicar e vulgarizar muito bem esta temática
para que, além de promover desenvolvimentos académicos eventualmente
aproveitáveis, explicitar algumas das razões da proliferação dos populismos e
radicalismos discursivos e políticos.

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