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CINEMA

Os Signos Crescem
em Malpertuis
“Não há nada mais terrível que um
labirinto sem centro”
Jorge Luís Borges

Por Valdir Baptista*

"Os signos estão crescendo", afirma Lúcia Santaella em um dos entretítulos de seu
livro A Assinatura das Coisas1. Após discorrer sobre a aplicabilidade da Semiótica aos diversos
campos do conhecimento, Santaella conclui que "essa tendência expansiva das investigações
semióticas só pode estar enraizada na tendência de crescimento que se manifesta no próprio
mundo dos signos. Não são apenas o olho e a mente semioticamente informados e treinados
que nos fazem enxergar redes semióticas tantos nos reinos microscópicos quanto mais ma-
croscópicos. Está também havendo uma tendência ininterrupta e cada vez mais acelerada de
crescimento dos próprios signos no universo. Pensemos no refinamento das técnicas copia-
doras e na grande quantidade de novos sistemas de signos criados a partir do advento da
revolução industrial. Pensemos nas possibilidades inimagináveis de se criar e romper códigos
que surgiram com o aparecimento dos computadores. Pensemos ainda no desenvolvimento
de linguagens, códigos e inteligências artificiais que as novas máquinas estão tornando
possível"2.
Santaella sintetiza a questão, citando a si mesma: "O aspecto que o mundo apresenta
sob uma inspeção semiótica parece estar caminhando numa direção que confirma a doutrina
peirceana do sinequismo. Essa doutrina propõe que "assim como os signos e as idéias
tendem a se espalhar continuamente(CP 6.104), a mente também se espalha continuamente,
e todas as mente se misturam umas às outras"(CP 1.170). Essa noção está baseada na hipó-
tese de que o universo da mente coincide com o universo da matéria, não no sentido da ima-
gem especular ou paralelismo cérebro-mente, mas no sentido da matéria existir como uma
forma mental de tipo especial.(Santaella 1991b: 153)" 3.
Com base nestes pressupostos, procuraremos demonstrar este movimento de
progressão e regressão dos signos no universo da mente, através de uma análise do filme
"Malpertuis", dirigido pelo belga Harry Kumel que é, em si, quase que um exemplo literal e
didático deste conceito.
Oscilando entre fábula e sonho, que ganham credibilidade pelo ritmo equilibrado
imposto pela direção e a convicção com que os atores encarnam seus personagens, "Malper-
tuis" é uma soma de signos que, desviados de seus locais de origem, assumem novos sig-
nificados. Mitologia grega, religiões, a pintura (especialmente a dos Países Baixos) e mesmo
um sistema de mitos mais recente, o do cinema, são mesclados de um modo tão arbitrário
quanto original.
Os letreiros de abertura da fita já antecipam o que virá em seguida: "La Memoire", tela 1 - SANTAELLA. Lúcia. A Assinatura das
do pintor surrealista belga René Magritte, é percorrida em detalhes pela câmera, e o próprio Coisas, Peirce e a Literatura. Rio de Janeiro,
título do filme aparece escrito em vermelho, escorrido como a mancha de sangue na fronte da Imago, 1992. Pág. 43.
2 - IDEM, Págs. 45-46.
cabeça de mulher pintada no quadro. Ao fundo, lateral a uma cortina vermelha, o mar e um 3 - IDEM. Pág. 46.

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céu cheio de nuvens simulam o infinito e,
sobre este cenário, surge uma citação do
também sangrento "Macbeth", de
Shakespeare: "it is a tale told by an idiot, full
of sound and fury, signifyng nothing" ("esta
é uma história narrada por um tolo, cheia de
som e fúria, sem nenhum significado").
Então, o filme começa: Yann, um mari-
nheiro, desce de seu barco e é seguido por
“La Memoire”, pintura de Magritte
dois indivíduos (Dideloo e Mathias Crook)
numa cidade belga, no início do século. Ele
procura sua casa e fica sabendo que ela desa-
bou, seus pais morreram e Nancy, sua irmã,
se foi. Súbito, vê uma mulher que parece sua
irmã e segue-a, até chegar a um bordel e, ao
abordá-la, descobrir que seguia uma pros-
tituta. Entra numa briga engendrada por
Dideloo e recebe um golpe na testa. Sangra e
desfalece, só acordando em um quarto exatamente igual ao que possuía na casa que
desmoronou e que lembra os aposentos de um navio. Nancy, a irmã querida, trata-o com um
carinho quase que incestuoso e informa-lhe que seu navio zarpou enquanto ele dormia e que
agora ele está em Malpertuis (embora aquele quarto fosse exatamente igual ao seu), na casa
do tio Cassavious.
Daí, segue-se a apresentação dos personagens: na cozinha, estão Elodie, Philatére e
um padre glutão. Ouve-se uma voz que ecoa pela casa: " - Tenho fome!". É Cassavious
exigindo sua refeição.
O espectador vai, então, quase que exclusivamente pelos olhos de Yann, tomando
contato com a trama: Cassavious está para morrer e todos ali ambicionam sua herança. Mas
há mais segredos em Malpertuis, que se vão revelando um a um: a fortuna anunciada por
Cassavious quando da leitura de seu testamento por Eisengott, um personagem com aspecto
de judeu ortodoxo; as revelações feitas pelo padre nas ruínas do mosteiro que há no jardim de
Malpertuis e onde existe uma velha canoa com o nome Anankè (último resquício de uma
embarcação comandada por Cassavious enquanto jovem) as portas labirínticas que, munido
de um molho de chaves (metáfora e sentido literal, objeto e significação confundem-se),
Yann abre uma a uma em busca dos segredos de Malpertuis; a revelação final de que aqueles
habitantes de Malpertuis eram na realidade deuses gregos que Cassavious encontrara em uma
ilha do Mar Jônico e recolhera para sua escuna, aprisionando-os naquele espaço fora do
tempo (e tempo fora do espaço), sendo que Lampernisse era Prometeu, Dideloo era Hermes,
Elodie era Hécate, Euryale era Medusa, as irmãs Cormélon eram as três Fúrias, Mathias
Crook era Apolo etc.
Finalmente, o filme resolve-se, aparentemente, com Yann acordando de seu
pesadelo, no tempo presente (no caso, aproximadamente 1972, data de produção da
película). Um médico, que nada mais é que Eisengott (o testamenteiro judeu ortodoxo de
Cassavious) barbeado, dá-lhe alta - Yann seria um especialista em computadores que sofrera
um stress. Devolve-lhe, de passagem, o diário que escrevera enquanto internado e que
narrava sua estadia em Malpertuis. O médico, inclusive, elogia sua "criatividade e humor"
existentes na idéia de alguém "raptar alguns deuses gregos e torná-los simples burgueses". Ao
sair do hospital, Yann vai avistando enfermeiras e pacientes que nada mais são que sósias dos
personagens do seu 'sonho'. A última imagem do filme é de Yann encerrado em Malpertuis,
com uma parede de tijolos impedindo o caminho de volta: para ele não haverá mais retorno.
Após este resumo necessário do filme, vamos ao ponto: embora se tratando de uma
espécie de Alice no País das Maravilhas para adultos, e por sua condição de obra aberta por
excelência, Malpertuis permite inúmeras reflexões que independem do fato de serem
alucinações de um esquizofrênico em surto, um simples pesadelo ou mesmo uma realidade
maldita a que Yann estaria condenado. A própria existência dos mitos está condicionada a um
plano separado, estão exilados em um lugar - Malpertuis - fora do tempo e do espaço.
Quando os deuses entram em agonia, o padre diz a Yann que "eles estão ali porque você
acredita neles. O dia em que esquecer eles serão destruídos". Antes, Lampernisse-Prometeu

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já havia advertido Yann, que "aqui (em
Malpertuis), ou há esquecimento ou
lembrança. Não sei o que é pior". A idéia, no
caso, é de que os deuses ou os mitos só
vivem enquanto estão presentes na memória
e na crença dos homens. Mnemosyne, a
Memória (escancaradamente citada no
quadro de Magritte), deusa titã, é a mãe das
musas e preside a função poética na Mitolo-
gia grega. Antes da escrita, inclusive, dada a
necessidade da tradição oral, lembra Jean-
Pierre Vernant em seu "Mito e Pensamento
entre os Gregos", Mnemosyne era uma deusa
mais cultuada, ela que canta "tudo o que foi,
4
tudo o que é, tudo o que será".
Joseph Campbell, aliás, numa das
entrevistas que originaram o livro "O Poder do
Mito", afirmou que "o mito é o sonho públi- O cineasta Orson Welles atuando no filme “Malpertuis”/Reprodução
5
co e o sonho é o mito privado" . Falando em sonho público, o cinema é referencial obrigató-
rio e Campbell, no mesmo livro, notou que "existe algo de mágico nos filmes. A pessoa que
você vê está ao mesmo tempo em outro lugar. Esse é um atributo de Deus”6. Harry Kumel,
cineasta, não poderia deixar passar despercebido esse universo mítico que o cinema criou.
Logo, o seu Cassavious é interpretado por Orson Welles. Welles...O ator em si mesmo já traz
toda uma carga de significados, uma presença marcante e emblemática que remete a outros
filmes e mesmo a própria história do cinema. Moribundo em uma cama, Cassavious-Welles
lembra o advogado por ele encarnado em "O Processo" ou o egoísmo megalomaníaco de
Charles Forster Kane. Aliás, a fortaleza de Malpertuis lembra em muito o castelo de Xanadu,
delírio do magnata que nele encerrou "coleções de obras de arte suficientes para encher dez
museus, um casal de cada animal existente no mundo, um monumento destinado a ser sua
sepultura como as pirâmides dos faraós, o mais caro construído por um homem para sua
satisfação pessoal (da fala do narrador na abertura de "Cidadão Kane")."
Mas não terminam aí as semelhanças entre "Cidadão Kane" e "Malpertuis". Uma crítica
publicada por Jorge Luis Borges na revista Sur no 83, de agosto de 1941, sobre o primeiro
filme, traz um longo trecho que poderia, apenas com a troca do nome Kane para Cassavious,
aplicar-se ao segundo: "...um palácio, que é também um museu, com um quebra-cabeças
enorme. No fim, compreendemos que os fragmentos não estão orientados por uma secreta
unidade: o odiado Charles Forster Kane é um simulacro, um caos de aparências. Num dos
contos de Chesterton - "The Head of Caesar", creio - o herói observa que não há nada mais
terrível que um labirinto sem centro. Este filme é exatamente este labirinto"7.
Há mais: se Kane, ao morrer, suplica por seu trenó da infância, a pista para decifrar o
enigma de Cassavious é justamente uma canoa onde há a inscrição Anankè, a palavra grega
para necessidade. Anankè, diga-se de passagem, também é anagrama de Kane. Há mais,
ainda: Cassavious, em aramaico, significa o inoportuno, o que caotiza a ordem (e, logo,
estabelece uma nova ordem). Em "Nova Mitologia", de Commelin, "o estado primordial,
primitivo do mundo é o Caos. Era, segundo os poetas, uma matéria que existia desde tempos
imemoriais, sob uma forma vaga, indefinível, indescritível, na qual se confundiam os
princípios de todos os seres particulares. Caos era, ao mesmo tempo, uma divindade, por
assim dizer, rudimentar, capaz, porém, de fecundar. Gerou primeiro a Noite, depois o 4 - VERNANT, Jean-Pierre. Mito e
Érebo."8 pensamento Entre os Gregos. São Paulo,
Difel/Edusp, 1973, pág. 73, baseado em
Outras citações vêm através da pintura: Malpertuis, assim como a Xanadu de Kane, citações da Ilíada de Homero e da Teogonia
é um museu. As paredes dos corredores intermináveis estão repletas de quadros de Wiertz e de Hesíodo.
outros pintores belgas. Yann abre uma porta e encontra, no interior do quarto, o quadro "Le 5 - CAMPBELL, Joseph e MOYERS, Bill.
O Poder do Mito. São Paulo, Palas Athena,
Modéle Rouge", de René Magritte, onde há um par de botas que simulam pés humanos. Há 1991.
ainda um carnaval de rua, no momento em que Yann ousa sair de Malpertuis, onde 6 - IDEM, pág. 16.
7 - BORGES, Jorge Luis, e
prostitutas usam máscaras que lembram os seres deformados das telas do também belga COZARINSKY, Edgardo. Do Cinema.
James Ensor. Também há um quadro (e, neste, o diretor fixa um close após o término da ação à Lisboa, Livros Horizonte, 1983. Págs. 58-
qual ele servia de pano de fundo), que retrata Pierre-Louis Moreau, Senhor de Maupertuis, 59. 8 - COMMELIN, P. Nova Mitologia. Rio de
amigo de Voltaire, introdutor das teorias de Newton na França, fundador da Academia de Janeiro, F. Briguiet & Cia, 1953. Pág. 11.

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Ciências de Berlim e autor de textos originais sobre biologia, ética, teologia, física etc. Entre
suas obras, destaca-se A Ordem Verosímil do Cosmos, uma teoria cosmológica que certamente
foi o motivo do autor "homenageá-lo" com a fortaleza do filme, alterando apenas o "u" para
"l".
Obviamente, o universo de citações contido no filme não será captado pela maioria
dos espectadores, o que não o invalida, ao contrário, torna-o uma fonte de novas leituras
cada vez que é assistido. O cineasta Jean-Luc Godard, por exemplo, costuma citar à exaustão
em seus filmes, e isso não os torna necessariamente inacessíveis. Um exemplo: em
"Alphaville", o detetive futurista Lemmy Caution ao ser perguntado pela robô-recepcionista
de hotel sobre o que iria fazer então, respondeu: "dormir, talvez sonhar". Claro, é uma citação
básica do Hamlet, de Shakespeare, mas o fato do espectador desconhecê-la não impede que
ele compreenda a fita.
A progressão e a regressão infinitas dos signos ocorrem através dos mitos que são
alterados ao longo do tempo, no caso de "Malpertuis", os deuses gregos que, esquecidos pelos
homens, perecem como a Grécia da época dos oráculos que sobrevive apenas em ruínas.
Portanto, assim como a tradição oral foi substituída pela escrita e, mais
recentemente, reforçada pelo audiovisual, também os mitos foram transformando-se através
dos tempos e cada um os interpreta de acordo com os seus referenciais. Há aí a "irremediável
mediação" da qual nos fala Peirce, e sua evolução segue o dito popular que diz "que quem
conta um conto, aumenta um ponto". Então, dá-se a passagem do mito à literatura: do Ulisses
oral nasceu a Odisséia de Homero e dela o Ulisses de Joyce; da lenda do Fausto vieram as obras
de Marlowe, Goethe, Pessoa, Thomas Mann, Paul Valéry etc. A respeito disso, Jorge Luis
Borges opinou que "nós, os escritores, possuímos algo secreto, algo que se chama, na
tradição homérica, musa; na tradição helênica, espírito ou infinito, e que, segundo a mitologia
moderna, é o inconsciente, e o que, segundo o poeta irlandês William Berkeley, é a grande
memória. A imaginação e os sonhos são uma arte combinada que joga as imagens da
memória individual e coletiva"9.
Paul Valéry escreveu, segundo Elie Weisel, que "os mitos estão ligados à linguagem e
10
só existem pela linguagem" . Italo Calvino, em ensaio publicado na coletânea Atualidade do
Mito, exprime uma posição diferente da de Valéry: "O mito vive da palavra mas também do
silêncio; um mito faz sentir sua presença na narrativa profana, nas palavras cotidianas; é um
vácuo de linguagem que aspira as palavras no seu turbilhão e dá forma à fábula. Mas o que é o
vácuo de linguagem senão o traço de um tabu, de uma interdição de falar de alguma coisa, de
pronunciar certas palavras; o traço de uma interdição atual ou antiga? A literatura segue
itinerários que costeiam ou transpõem as barreiras das interdições, que levam a dizer o que
não podia ser dito; inventar em literatura, é redescobrir palavras e histórias deixadas de lado
pela memória coletiva e individual. Por isso o mito age sobre a fábula como uma força
repetitiva; ele a obriga a retornar sobre seus passos mesmo quando ela se perde em caminhos
que parecem conduzi-la para regiões inteiramente diferentes”.
O inconsciente é o mar do não-dizível, do que foi expulso da linguagem, abando-
nado depois de antigas proibições; o inconsciente fala - nos lapsos, nos sonhos, nas associa-
ções espontâneas - através das palavras emprestadas, dos símbolos roubados, dos contra-
bandos linguísticos, até que a literatura resgate estes territórios e anexe-os à linguagem da
11
véspera" .
A questão fundamental que envolve Malpertuis é essa atmosfera que cerca o mito:
como um ser vivo aspira a imortalidade, também o mito pretende sobreviver na memória dos
homens, ambiciona a eternidade que há na crença. O próprio Paul Valéry, comentando o
tema, escreveu que "Tenho talvez o meu Deus...E meu Deus não me julga, porque a função
de juiz está abaixo da inteligência. Nada criou porque criar implica desejar alguma coisa que
9 - Citado por STORTINI, Carlos
Roberto em Dicionário de Borges, Bertrand falta. O que é perfeito não cria...Parece-me chocante que um verdadeiro Deus precise de uma
12
Brasil, 1990. Pág. 71. crença, isto é, uma forma passiva, uma restrição da autoconsciência." Já Peirce, no texto "A
10 - WEISEL, Elie. Sinais do Êxodo. Rio de
Janeiro, Imago, 1988. Pág. 20.
Fixação das Crenças", afirma que "tanto a dúvida como a crença têm sobre nós efeitos
11 - CALVINO, Italo e outros. Atualidade positivos, embora muito diversos. A crença não nos leva a agir de imediato, mas nos coloca
do Mito. São Paulo, Duas Cidades, 1977. em situação tal que, chegada a ocasião, nos comportaremos de determinada maneira. A
Pág. 77.
12 - Citado em MAUROIS, André. De dúvida não têm, absolutamente, este efeito ativo, mas estimula-nos a indagar até vê-la
Aragon a Montherlant. Rio de Janeiro, Nova destruída”. 13
Fronteira, sem data. Pág. 39.
13 - PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Esta batalha surda entre crença e dúvida, memória e esquecimento, é um duelo
Filosofia. São Paulo, Cultrix, 1984. Pág. 77. interior que cada ser resolve como pode. E o conflito, um dado de ampliação dos limites, uma

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vez que Peirce postula que "o universo está em expansão, onde mais ele poderia crescer senão
na cabeça dos homens?"14 e ainda que "o mundo real não pode ser distingüido do mundo da
15
imaginação por nenhuma descrição" (CP 3.363) . A transformação pode ser uma estratégia
do signo para sobreviver, os deuses travestidos em burgueses de Malpertuis encontraram mais
este atalho para continuarem presentes na imaginação dos homens.
A pergunta que resta, agora, é: até quando? Voltamos ao conceito peirceano de que
estando o signo em progressão e regressão infinitas, destrói-se o ideal de um começo e um
fim absolutos. O infinito, no caso, pode ser circular, como o anel de Moebius, e o movimento,
seja qual for o sentido, gera retornos constantes ao mesmo lugar, é a circularidade típica do
labirinto sem centro. Já o ideal de um começo ou fim absolutos naufraga na própria oposição
natural entre real e ideal, até porque o ideal já é, em si mesmo, um mito. O próprio Peirce, no
texto "Classificação do Signos", escreve que "dizendo que a doutrina (dos signos) é "quase
necessária" ou formal, pretendo significar que observamos os caracteres dos signos e, a partir
dessa observação, por processos que não tenho objeções a denominar Abstração, somos
16
levados a enunciados eminentemente falíveis (...)" . E que "se, depois de um pensamento
qualquer, a corrente de idéias flui livremente,

“Le Bouton de Rose”, pintura de Antoine Wiertz


esse fluir segue as leis da associação mental.
Nesse caso, cada um dos pensamentos
anteriores sugere algo ao pensamento que se
segue, i. e., é o signo de algo para este último.
Nossa corrente de pensamento, é verdade,
pode ser interrompida, mas devemos lem-
brar-nos que, além do elemento principal de
pensamento num momento qualquer, há
uma centena de coisas em nossa mente às
quais uma pequena fração de atenção ou
consciência é atribuída"17. A possibilidade de
interrupção de uma corrente de pensamen-
to, cogitada pelo próprio Peirce, parece
indicar um questionamento em relação à
progressão e regressão infinitas dos signos,
isto é, ele mesmo aventa a possibilidade de
que signos existentes numa corrente de pen-
samento, no mundo da imaginação, possam
ser interrompidos.
A melhor saída (haverá saída do
labirinto de Malpertuis? Ou estará o pobre
Yann obrigado a cumprir lá seu destino?)
talvez seja folhear um livro e encontrar outro
trecho de Borges sobre o assunto: "Não
sabemos o que acontece exatamente nos so-
nhos. Durante este período, é possível estar-
mos no céu, ou no inferno; talvez sejamos
alguma coisa (algo equivalente ao que Shakespeare denominou 'the thing I am, "a coisa que
sou"), talvez sejamos nós próprios, talvez sejamos a Divindade. Ao acordar, esquecemos
disso tudo. Dos sonhos, só podemos analisar sua memória, sua pobre memória."
Talvez fosse mais prudente parar por aqui ou, melhor, no parágrafo anterior. Mas
percebo que há uma lacuna imperdoável no texto: a relação dos mitos com a condição
humana, metáforas explícitas de que eles são das forças da natureza e, pior, dos nossos
humores. Abusando um pouquinho mais de Borges, transcrevo outro trecho que talvez ajude
a compreender a estadia de Yann em Malpertuis: "Talvez exista um alguém que sonha, e que é
cada um de nós. Este sonhador - no caso de ser eu - está sonhando os senhores, esta sala e esta 14 - Citado Por SANTAELLA, Lúcia em
O que é Semiótica. São Paulo, Brasiliense,
conferência, no presente momento. Existe um único sonhador; é ele quem sonha todo o 1992. Pág. 25
processo cósmico, toda a história universal anterior e até mesmo sua infância e mocidade. 15 - Citado por SANTAELLA, Lúcia em
A Assinatura das Coisas. Rio de Janeiro,
Tudo isso pode não ter acontecido e só começa a existir, a partir de agora, enquanto sonho. Imago, 1992. Pág. 81.
Esse sonhador é cada um de nós; não 'todos nós' mas 'cada um de nós'. Neste momento estou 16 - PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e
Filosofia. São Paulo, Cultrix, 1984. Pág. 93.
sonhando que faço uma conferência na Rua Charcas, que ando perseguindo os temas - talvez 17 - PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica.
sem encontrá-los - e estou sonhando com os senhores. Mas não é verdade. Cada um dos São Paulo. Perspectiva, 1977. Pág. 269.

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senhores é que está sonhando comigo e com os demais.
Temos então essas duas imaginações: a de que os sonhos são parte da vigília - aquela
esplêndida, a dos poetas - e de que toda vigília é um sonho. Não há diferença entre as duas
matérias. Aí chegamos à idéia de Groussac: não há modificações em nossa atividade mental.
Podemos estar acordados ou podemos dormir e sonhar. Nossa atividade mental é a mesma.
Ele cita exatamente aquela frase de Shakespeare: 'somos feitos da mesma matéria de nossos
18
sonhos'" .
Não por acaso, o tema da conferência acima, incluída no livro "Sete Noites", é "O
Pesadelo". Pode não servir de consolo para Yann, mas a sua condição não é única, outros
vivem situações semelhantes, dentre os quais o próprio Borges (excelente companhia), do
qual selecionamos um último trecho: "Entremos agora no pesadelo, nos pesadelos. Os meus
são sempre os mesmos. Eu diria que tenho dois que podem chegar a confundir-se. Tenho o
pesadelo do labirinto - e esse se deve, até certo ponto, a uma gravura que vi num livro francês,
quando criança. (...) Quando criança, eu achava (ou agora acredito que achava) que, se tivesse
uma lupa suficientemente forte, poderia olhar através de uma das fendas da gravura e ver o
Minotauro, no terrível centro do labirinto.
Outro pesadelo que tenho é o do espelho, que não me parece muito diferente, já que
bastam dois espelhos opostos para construir um labirinto. Lembro de ter visto na casa de
Dora de Alvear, em Belgrano, um cômodo circular cujas paredes e portas eram de espelho.
Assim, quem entrasse no local se via no centro de um labirinto realmente infinito.
Sempre sonho com labirintos ou espelhos. No sonho do espelho, aparece uma outra
visão, outro terror das minhas noites: a idéia das máscaras. As máscaras sempre me deram
medo. De fato, quando criança, eu sentia que se alguém usava uma máscara era porque estava
escondendo algo horrível. Meus pesadelos mais terríveis são aqueles em que me vejo
refletido num espelho - com uma máscara no rosto. Tenho medo de arrancar a máscara
porque temo ver meu rosto verdadeiro, que imagino medonho. Nele pode estar presente a
lepra, o mal ou algo ainda mais terrível do que eu seria capaz de imaginar" 19.
O borgiano sonho-surto de Yann nada mais é que um resumo das inquietações que
20
assolam os homens. "Os mitos", escreveu Camus, "esperam que os encarnemos" e sua
função, observou Barthes, "é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoar incessante, uma
21
hemorragia ou, se se prefere, uma evaporação; em suma, uma ausência sensível" . Em sua
descida ao inferno pessoal, ao seu inconsciente povoado de mitos armazenados quase que
certamente na infância e na adolescência, Yann poderia fazer suas as seguintes palavras do
cineasta Wim Wenders: "Quando era criança, perguntava-me frequentemente se havia
realmente um bom Deus que tudo via. E como é que ele, então, conseguia não se esquecer de
nada: nem os movimentos das nuvens no céu, nem todos os gestos e passos de cada um, os
sonhos de cada pessoa...Eu dizia para comigo: é impossível imaginar-se que haja uma tal
memória, e ainda mais triste e impossível é pensar que ela não existe, que tudo cai no
esquecimento. Esta concepção infantil inquieta-me ainda. Infinitamente grande seria a
história dos fenômenos, infinitamente pequena a das imagens que sobrevivem"22.
E, pensar que Yann é um programador de computadores, torna-se irônico ao
extremo que alguém que lida com uma tecnologia tão avançada, cuja base é a informação, a
armazenagem de dados em uma memória artificial, tenha uma pane em sua própria memória,
confundindo registros de tempos e lugares. O homem que opera com tecnologia de ponta
subitamente retornando aos arquétipos primais, a simultaneidade de tempos culturais
coexistindo, os deslocamentos na cadeia simbólica, a semelhança entre a estrutura do mito e a
estrutura da neurose, as cartas todas fora de lugar, reembaralhando-se sempre. Talvez porque
18 - BORGES, Jorge Luis.Sete Noites. São não exista mais um discurso determinante, uma Verdade absoluta: há a falta de um centro no
Paulo, Max Limonad, sem data. Págs. 51- labirinto, talvez a falta de um Deus que dê as respostas e torne a vida mais simples.
52.
19 - IDEM. Págs. 55-56.
Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, "o labirinto também
20 - CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. conduz o homem ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuário interior e escondido, no
Lisboa, Livros do Brasil, sem data. qual reside o mais misterioso da pessoa humana (...) é ali que se reencontra a unidade perdida
21 - BARTHES, Roland. Mitologia. São
Paulo, Difel, 1978. do ser, que se dispersara na multidão dos desejos"23. De todo modo, Yann jamais será o
22 - WENDERS, Wim. A Lógica das mesmo após essa descida ao labirinto e, mesmo recuperado do stress, as cicatrizes
Imagens. Lisboa, Edições 70, 1990. Págs.
116-117. permanecerão.
23 - CHEVALIER, Jean e O universo está realmente em expansão na cabeça dos homens conforme postula
GHEERBRANT, Alain - Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio Peirce e cabe aqui transcrever um último trecho, este de Octavio Paz, que descreve o processo
Editora, 1988. Pág. 531. que levou à tragédia de Yann: "Na Antigüidade, o universo tinha uma forma e um centro; seu

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movimento estava regido por um ritmo cíclico e essa figura rítmica foi durante séculos o
arquétipo da cidade, das leis e das obras.(...) Depois, a imagem do mundo ampliou-se: o
espaço se fez infinito ou transfinito; o ano platônico transformou-se em sucessão linear,
interminável; e os astros deixaram de ser a imagem da harmonia cósmica. Deslocou-se o
centro do mundo e Deus, as idéias e as essências desvaneceram-se. Ficamos sós. Mudou a
figura do universo e mudou a idéia que o homem fazia de si mesmo: não obstante, os mundos
não deixaram de ser o mundo nem os homens o homem. Tudo era um todo. Agora, o espaço
se desagrega e se expande; o tempo se torna descontínuo; e o mundo, o todo, se faz em
pedaços. Dispersão do homem, errante num espaço que também se dispersa, errante em sua
própria dispersão. Num universo que se desfia e se separa de si, totalidade que deixou de ser
pensável exceto como ausência ou como coleção de fragmentos heterogêneos, o eu também
se desagrega. Não que tenha perdido realidade ou que o consideremos uma ilusão. Ao
contrário, sua própria dispersão multiplica-o e fortalece-o. Perdeu a coesão e deixou de ter
um centro, mas cada partícula se concebe como um eu único, mais fechado e obstinado em si
mesmo que o antigo eu. A dispersão não é pluralidade, mas repetição: sempre o mesmo eu
24
que combate cegamente um outro eu cego. Propagação, multiplicação do idêntico.”

BIBLIOGRAFIA:

BARTHES, Roland - Mitologias, Difel, 1978.


BLANCHOT, Maurice - O Espaço Literário, Ed. Rocco, 1987.
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* Valdir Baptista é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor da universidade Anhembi
Morumbi

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