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“VERSALHES NÃO TEM BANHEIROS!”


AS VOCAÇÕES DA GEOGRAFIA CULTURAL
PAULO CÉSAR DA COSTA GOMES – DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA / UFRJ

RESUMO
OS CAMINHOS DA GEOGRAFIA CULTURAL SÃO INÚMEROS E DIFERENTES, SENDO POSSÍVEL COMBINAR OBJETOS MUITO DISTINTOS ENTRE
SI, MAS UNIDOS EM TERMOS DE SIGNIFICADO.O PALÁCIO DE VERSALHES APARECE COMO UMA REFERÊNCIA PARA, AO SER COMPARADO
COM OUTROS OBJETOS, POSSIBILITAR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A VOCAÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL. A AUSÊNCIA DE BANHEIROS
EM VERSALHES E OS APARTAMENTOS DE CLASSE MÉDIA COM DEPENDÊNCIAS PARA EMPREGADA SÃO OBJETOS DE INTERPRETAÇÃO,
REPORTANDO A CULTURAS DISTINTAS QUE O OLHAR GEOGRÁFICO PODE CAPTAR.
PALAVRAS-CHAVE: VERSALHES, BANHEIROS, APARTAMENTOS, DEPENDÊNCIAS DE EMPREGADA.

A oportunidade desse trabalho surgiu simples- da idéia de que, por vezes, a mistura de elementos
mente. Foi, na verdade, construída a partir do en- heteróclitos pode gerar um movimento de compre-
contro imprevisto e da simultaneidade de dois fatos ensão bastante eficiente, sem perder algumas apre-
aparentemente muito diferentes. O primeiro foi um ciadas qualidades da narrativa, ou seja, um pouco
convite para participar de uma mesa-redonda inti- de inesperado, de surpreendente, e muitas imagens
tulada “Geografia Cultural: natureza e perspectivas”, emprestadas de universos aparentemente distintos.
no IV Simpósio Nacional de Geografia e Cultura, no Por isso, propositalmente misturamos aqui castelos
Rio de Janeiro; o segundo foi uma visita ao castelo e apartamentos, banheiros e camelos, turistas e geó-
de Versalhes nos arredores de Paris. É o encontro grafos; tudo isso como parte de um verdadeiro caldo
desses dois fatos e seus desdobramentos que gosta- de cultura, como, aliás, convém aos objetivos de um
ria de apresentar aqui. Em razão disso, o percurso encontro como este.
narrativo é, por vezes, oblíquo, as intenções não são Nosso percurso começa então por uma rápida
continuamente transparentes, mas a finalidade geral visita guiada pelo castelo de Versalhes. Construído
desse exercício é falar de uma vocação intrínseca à sobre antigos domínios de caça de Luís XIII, ele é uma
Geografia Cultural, portanto de algo que acredita- das marcas do apogeu da realeza francesa do grande
mos fazer parte de sua natureza. Ao mesmo tempo, século de Luís XIV. Em 1682, Versalhes se tornou a
é também essa vocação que configura, dá forma e principal residência real. Mais que simplesmente um
contornos às suas possíveis perspectivas. castelo, é um complexo de jardins, reservas florestais
Este percurso narrativo foge também um pouco e edificações, sendo o castelo a sede principal desse
aos cânones estabelecidos como formato recomen- conjunto. Exprime, pelo esforço da construção, pelo
dável aos textos acadêmicos. De fato, partirmos luxo do acabamento e dos equipamentos, pelo esmero

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do projeto, o ápice da força do absolutismo e anun- Para explicar isso não se pode alegar de forma
cia, de certa forma, pela grandeza e magnitude de alguma falta de conhecimento. Desde a Antigüidade
sua concepção, a centralização do Estado Moderno, se produz esse tipo de instalação sanitária. As termas

que só aumentará a partir de então na administração no mundo romano (incluindo, portanto, a Gália)

da França. Desde sua ocupação, o castelo se transfor- eram um equipamento urbano quase obrigatório e

mou, assim como sua corte, em modelo para muitas um dos focos centrais da sociabilidade urbana. Nesses
banhos, o conforto era muito grande, com cômodos
outras cortes européias. Todavia, ainda que copiado
dispondo de reservatórios com água corrente em
ou fonte de inspiração para edificações congêneres,
diferentes temperaturas. Igualmente, as latrinas com
todos os outros são sempre menores, mais modestos
água corrente eram bastante utilizadas na Antigüida-
e menos extraordinários que Versalhes. Para que se
de romana, ao menos a partir do século I a.C., e não
tenha uma idéia, esse castelo dispõe, entre outros
exclusivamente pelos altos dignitários, mas também
números eloqüentes, de onze hectares de telhados,
por uma parcela significativa do resto da população,
quase 52.000 m² de pisos, sessenta e sete escadas,
como atestam as ruínas de Pompéia.
2.153 janelas, setecentos cômodos.
A recuperação dos tratados de arquitetura da
Surpreendentemente, no entanto, o castelo não Antigüidade (o de Vitrúvio, por exemplo) constituiu
dispõe de banheiros! uma verdadeira febre a partir do Renascimento.
Um dos aspectos mais formidáveis do conjunto Continham a descrição e os planos detalhados des-
de Versalhes são suas fontes. Justo motivo de enorme ses equipamentos e até justificativas para seu uso e
orgulho do Rei Sol, são uma verdadeira proeza da recomendação1. O estilo francês conhecido como
engenharia hidráulica. Para construí-las e fazê-las Classicismo procurou inspiração abertamente na
funcionar, procedeu-se ao desvio e à canalização de Antigüidade. Associa-se diretamente ao reinado de
vários córregos que formam bacias de alimentação Luís XIV, e os ideais artísticos e culturais da Antigüi-
em diferentes níveis e cotas e dão origem a grandes dade greco-latina foram tomados como modelos das

espelhos d’água. Ao todo são cinqüenta chafarizes academias criadas por ele. A arquitetura não fugia a

com seiscentos e vinte e jatos d’água, um débito essa regra e o Castelo de Versalhes foi concebido

que chega a 3.600 m³/hora, os quais circulam por seguindo a inspiração dos cânones romanos. Entre-
tanto, diferentemente das grandes residências dos
35 km de galerias e tubulações. A genialidade das
nobres romanos, em Versalhes não foram previstas
instalações foi tamanha para a época que até hoje
originalmente instalações para banhos ou latrinas.
o sistema é o original, só demandando os cuidados
Comecei essa descrição evocando uma visita
normais de manutenção. É extraordinário constatar
realizada ao Castelo de Versalhes, devo agora acres-
mais uma vez, todavia, que com todo esse esforço
centar que o interesse maior foi acompanhar um
de engenharia para a concepção e construção de
grupo de turistas brasileiros. Ao saber que o castelo
tantos e tão sofisticados sistemas hidráulicos não
não dispunha de banheiros, muitos no grupo apro-
tenha sido prevista nenhuma instalação sanitária nas
veitaram para fazer vários comentários irônicos sobre
dependências do castelo. esse fato, que tinham como sentido salientar que a

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ausência de banheiro revelaria a falta de higiene dos Brasil poderia muito bem sugerir a nossos visitantes
franceses no passado tal como no presente. Acredito que a sociedade brasileira, e especialmente a classe
que essa forma de se comportar, rir do outro, consti- média, ainda vive uma certa nostalgia da escravidão.
tui um movimento que dá forma ao encontro com o Nesse caso, os comentários poderiam salientar a
diferente, é uma maneira de lidar com a alteridade. dificuldade de uma convivência respeitosa e demo-
Dessa forma, a constatação da diferença é seguida crática no passado tal como no presente. Tudo isso,
imediatamente por um julgamento sumário que a certamente, nos faria rir um pouco menos.
rejeita em nome de uma pretensa superioridade. As viagens e os deslocamentos podem ter esse
Ora, os franceses também têm o direito de se sentido muito prático de reforçar nossas certezas,
surpreender ao visitar, por exemplo, nossos aparta- ainda que sejam construídas a partir apenas de
mentos de classe média e constatar a organização das preconceitos, lugares comuns, banalidades, etc. A
chamadas “dependências de serviço”, que incluem diferença entre as coisas e os lugares nos remete de
os quartos e banheiros de empregada. Eles são con- volta, com alegria, a nosso conhecido e confortável
tíguos ao resto do apartamento, contêm a idéia de mundo. Muitos sonham em realizar viagens por
que há uma circulação que pode ser exclusivamente lugares que não disponham das mesmas condições
tomada pela empregada2. Além disso, esse tipo de de conforto, lugares mais “genuínos e autênticos”. O
planta ou disposição espacial classifica e separa dois desconforto experimentado nesse tempo de aventura,
grandes tipos de “uso”, o social e o doméstico. Hoje nesse espaço distante do nosso parece nos remeter
muito raramente há domésticas que o ocupem de à valorização do confortável e agradável mundo
fato, mas ainda assim esses espaços continuam a conhecido. A imagem das férias desse tempo da
figurar nos edifícios projetados. Mesmo em pequenos aventura pode ser uma praia distante, um pequeno
apartamentos, muitas vezes de classe média baixa, as lugarejo, uma área rural recuada, etc. Essas imagens
dependências de empregada estão presentes, e há são nossas paisagens que correspondem a esses mo-
argumentos de que sua supressão poderia “desvalo- mentos excepcionais.
rizar” os apartamentos. O mundo de tais momentos está repleto de pito-
A surpresa dos franceses não se daria pelo desco- resco e deve permanecer isolado para não contaminar
nhecimento do que consiste um quarto de emprega- sua espontaneidade. De certa forma, gostaríamos de
da, pois nos prédios inspirados no modelo haussema- condenar as pessoas que ali vivem no imobilismo.
niano também havia esses aposentos, alinhados no Elas seriam parte de uma espécie de parque temático
último andar e alguns prédios nos quarteirões mais de nossa “infância”, que visitamos sistematicamente
nobres também tinham entradas laterais de serviço. para nos agradarmos de nosso mundo. O espaço e
A surpresa viria do fato de que há muitos anos esses suas configurações são para nós a materialidade de
espaços foram abolidos e transformados em moradia nosso conformismo, e toda diferença se transforma
de estudantes ou de outros segmentos sociais menos em estranheza.
afortunados. O mesmo ocorreu com as entradas de Poderíamos comparar essa relação com a alteri-
serviço, reformadas ou requalificadas nos edifícios dade ao um olhar do turista. A denominação é sem
da capital francesa. A manutenção desse padrão no dúvida abusiva, nem todos os turistas são assim e

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nem o turismo tem como destino invariável esse tipo trabalho por encerrado com uma classificação geral
de relação. Essa é uma característica marcante numa sobre banheiros e sua ausência no mundo.
atividade como esta, que há muito se transformou E o olhar geográfico?
em mercadoria e, portanto, entre outras qualidades Embora possamos reconhecer algumas caracte-
vende os lugares comuns e os estereótipos. rísticas do olhar do turista e do viajante dentro da
Muitos foram aqueles que estabeleceram dife- Geografia, sobretudo a do passado, o fato é que o
renças significativas entre o turista e o viajante3. O conhecimento geográfico ao pretender se alçar no
olhar desses dois tipos carregam pois diferenças que patamar da ciência moderna teve que superar algumas
merecem ser examinadas. Segundo uma ótica média, armadilhas e obstáculos.
o viajante valoriza as diferenças e não se contenta em Para ilustrar alguns dos mais importantes obs-
apontá-las, quer examiná-las e mesmo vivê-las. Ao táculos encontrados pela Geografia como ciência
contrário do turista, não remete toda observação da moderna, reproduzimos uma estória contada por
diferença a uma distância entre seu mundo e o dos Luc Ferry sobre três cientistas de diferentes nacio-
outros. Assim, a cultura do viajante não é concebida nalidades, um francês, um inglês e um alemão, aos
como um parâmetro universal, capaz de instrumenta- quais foi encomendado um estudo sobre os camelos4.
lizar comparações e julgamentos de valor. O viajante O francês organiza uma visita ao jardim zoológico,
se compraz da multiplicidade, quanto maior é a gama posta-se diante da jaula do camelo, cutuca-o com uma
de variedade de uma coisa ou fenômeno, melhor. Na bengala e observa-o durante um curto período de
verdade, o viajante é antes de tudo um colecionador tempo. Volta para casa e redige uma tese intitulada “O
de objetos, plantas, animais, costumes, paisagens... que é o camelo”. O inglês se desloca para o deserto,
Tudo deve ser catalogado e as observações devem acompanha os animais, permanece com eles o tempo
ser organizadas em álbuns ou coleções. Quanto todo por um período bastante longo. Volta para casa
maior o número de observações, mais próximo está com milhares de cadernetas, inúmeros croquis, uma
da totalidade. Depois de um grande número de da- infinidade de amostras. Planeja um dia escrever uma
dos coletados, a veleidade maior do viajante é criar grande enciclopédia sobre o camelo, uma espécie
tipologias, morfologias, ou melhor, classificações. de “Tudo o que você queria saber sobre camelos”.
Jardins botânicos, jardins zoológicos, galerias de Finalmente, o alemão leva um camelo para casa e, ao
história natural e museus variados são as instituições fim de um período de coabitação, escreve um ensaio
mais prezadas e associadas a esse tipo de olhar. com o título “Meu profundo eu e o ser camelo”.
Se um viajante se colocasse diante do problema da A fábula coloca ênfase sobre a identificação das
ausência de banheiros em Versalhes, talvez fizesse um escolas nacionais e três grandes armadilhas que pre-
levantamento exaustivo de todas as formas e tipos de cederam o advento do espírito da ciência moderna: o
banheiro, e isso em diversos países e épocas. Também racionalismo excessivo, o empirismo pouco objetivo e
nos daria detalhes sobre as inúmeras formas de equi- a subjetividade erigida em verdade filosófica superior.
pamentos relativos ao sistema de água e saneamento. Sabemos o quanto essas características estiveram pre-
Sem dúvida, construiria uma morfologia segundo sentes na Geografia, mas foi sobretudo o empirismo
algum critério que julgasse mais relevante e daria seu que teve vida longa entre os geógrafos.

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A Geografia, porém, entra na academia jus- contato com outras pessoas. Ao mesmo tempo, para
tamente quando o estoque de terras a descobrir que essa intimidade pudesse ser concebida e vivida,
começou a se esgotar, e as aventuras das viagens e havia a necessidade de um novo desenho do espaço,
a supervalorização do pitoresco, do etnocentrismo que agora consagraria inéditas áreas e nova compar-
e da auto-satisfação narcisista começaram a decli- timentação, as quais exprimiriam esse novo valor e
nar fortemente dentro do discurso científico. Essa essa nova prática social. As ações que transcorrem
pretensão científica dos séculos XVIII e XIX obriga nos banheiros aí se incluem.
a Geografia a se definir como um domínio especu- Da mesma forma, a construção de uma esfera
lativo, é preciso construir explicações e não apenas pública modifica o conceito de higiene coletiva e se
acumular descrições. ampara em uma nova forma de pensar e construir o
Como poderia então esse exemplo da ausência espaço agora público. É esse novo espaço o elemento
de banheiros em Versalhes ser tratado pelo olhar fundamental dessa nova prática, a higiene pública.
geográfico? A seguir nos permitimos fazer um breve Os arranjos espaciais associados a ela demonstram
estudo do que poderia ser esse olhar. um enorme impacto. Foram, concomitantemente,
Uma primeira constatação de nosso geógrafo tanto realizados na esfera do indivíduo e suas re-
seria a de que o conceito de limpeza mudou muito sidências, quanto na esfera do público, através de
na história, variando desde uma posição de exaltação um verdadeiro processo de reconfiguração espacial,
como virtude essencial até uma postura crítica e con- sobretudo nas cidades.
denatória. Essa gama de variações pode também ser Esses processos têm evidentemente relação
vista como padrões culturais que variaram ao longo direta também com os aparatos técnicos ligados a
do tempo e de um lugar para outro. O geógrafo con- um certo controle da água, elemento central nessa
cluiria então que o fundamental não seria estabelecer compreensão, e isto certamente não escaparia da
uma evolução como se as posições relativas à higiene atenção explicativa de nosso geógrafo. Por isso po-
mudassem apenas ao longo do eixo do tempo, mas demos dizer que os equipamentos que se relacionam
que o elemento central que faria as práticas higiênicas à higiene, sua presença, sua localização, o universo
mudarem seria seu contexto cultural. relacional que estabelecem, ou seja, a maneira pela
O segundo ponto fundamental a ser examinado é qual estão relacionados a outros objetos espaciais é
a distinção entre uma prática higiênica que envolve de profunda importância para a compreensão das
os cuidados com o corpo, a higiene pessoal, e aquela dinâmicas sociais.
que diz respeito às normas de convívio, a higiene Antes de Versalhes, alguns velhos castelos da
coletiva. Ao fazer essa distinção, saltaria aos olhos Idade Média dispunham de uma área dita necessária,
o fato de que justamente no momento da construção separada dos aposentos e muitas vezes próxima ao
do castelo de Versalhes, a higiene pessoal iniciava criadouro de porcos. Alguns altos personagens da
um longo percurso que a transformaria em higiene aristocracia utilizavam uma cadeira com um orifício
íntima. Essa transformação se daria paralela à cons- e pouco depois o penico, mas o hábito de utilizar
trução de um novo conceito para a época, de uma a rua era ainda predominante no século XVII e em
esfera de intimidade, que deveria ser resguardada do grande parte do XVIII. O próprio Rei Henrique IV,

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avô de Luiz XIV, é descrito como um grande adepto se multiplicaram (são, por exemplo, 125 em Paris em
dessa prática. Assim, eram comumente utilizados os 1850, e se disseminaram muitos outros nas pequenas
jardins, as chaminés e mesmo os cantos dos aposen- cidades). Também no final do século XIX apareceu o
tos dos castelos. chuveiro, quando se difundiu o costume de ensaboar
Uma relevante mudança ocorreu no século XVIII, os cabelos para conter piolhos e pulgas. A difusão
pois surgiu o personagem do “portador ambulante”, de seu uso acabou sendo responsável pela criação
incumbido da função específica de atender aos definitiva de um espaço exclusivamente dedicado ao
chamados das pessoas necessitadas. Interessante é banho, uma vez que a alimentação da água criava um
perceber que esse portador dispunha de um balde e ponto fixo, o que não era antes o caso da banheira,
de uma grande capa para envolver a pessoa, o que que podia ficar até dentro da cozinha, por exemplo.
demonstra que havia se iniciado uma demanda por Note-se também que a alimentação de água dos edi-
privacidade, inédita nesse período. Esse parece ser fícios gerou uma mudança no arranjo dos cômodos e
o caso dominante no Palácio de Versalhes. Para se nas áreas de uso coletivo (uma torneira era costumei-
ter uma idéia da lentidão dessa demanda, somente ramente disposta entre os andares), mas além disso
em 1770 a privada (o W.C. – Water Closet) foi gerou a construção de castelos d’água nas áreas mais
introduzida na França e com ela a idéia de um novo altas da cidade. Percebe-se pois como um pequeno
compartimento físico dentro das casas inteiramente equipamento disseminado por conta da mudança de
dedicado à função de latrina. Além disso, ainda que uma mentalidade pode ser responsável por grandes
conhecida desde o século XVIII, seu uso só se popu- mudanças na estrutura do espaço.
larizará bem mais tarde, no século seguinte5. Quanto às mudanças no espaço coletivo, são
Em relação aos banhos, a moralidade católica suficientemente conhecidas como reformas urbanas
sempre foi contra a “promiscuidade” dos banhos pú- higienistas e não teríamos condições de descrevê-las
blicos herdados do Império Romano. Alguns poucos aqui. Ressaltaríamos somente o fato de que desde o
sobreviveram, mas tinham má fama do ponto de vista final da Idade Média já começava a despontar uma
moral e, além disso, acreditava-se que eram nocivos, consciência dos problemas trazidos pela insalubrida-
pois causavam a dilatação dos poros, o que permitia de das cidades, mas as decisões das autoridades eram
livre entrada de doenças. Havia assim quase que uma nesse campo muito pouco respeitadas. Foi preciso a
proibição dos banhos. Lava-se só o que aparece, mãos constituição de uma verdadeira esfera pública para
e rosto, com álcool ou água perfumada. O banho só que as grandes mudanças fossem realizadas6. Assim,
reaparecerá no final do século XVIII, quando cai a até o século XVIII, há muita dificuldade na separação
moda da higiene a seco. das águas usadas e das águas limpas. Na maior parte
Normal, pois, que os banheiros só começassem a das cidades européias, o lixo, por exemplo, é jogado
aparecer sob Luiz XVI, mesmo assim poucos, algumas no mesmo rio ou córrego que abastece a cidade. Além
vezes por ano e apenas para os aristocratas. do lixo que se acumulava, os esgotos ficavam a céu
De fato, o banho como prática higiênica na Eu- aberto e as fontes de água potável eram muito raras.
ropa só se estabeleceu a partir do século XIX. Para Com as chuvas, os poços e as fontes eram comumente
isso criaram-se os banhos públicos que rapidamente contaminados pelas infiltrações.

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A limpeza sistemática das ruas só começou em poderem efetivamente se estabelecer, como é o caso
Paris no século XVIII, mas a disponibilidade de água da esfera pública ou do sentimento de privacidade.
limpa ainda é nesse período muito pequena e custosa. Nesse caso, como em inúmeros outros, a explicação
No século XIX, o discurso médico e sanitário começa é tributária do exame da cultura.
a fazer aparição, consolida-se após a epidemia de có- Os banheiros, como objetos da cultura material,
lera na década de 1830 e se transforma no principal podem ser elementos fundamentais, portanto, na
elemento de renovação urbana, sobretudo com as compreensão dos gêneros de vida e das formas di-
descobertas da microbiologia. versas de organização do espaço, revelando-nos ex-
Assim, podemos entender melhor a concepção pressões do sentimento de privacidade, do conceito
do projeto de Versalhes, possivelmente em oposição e exercício do que se considera higiene em diferentes
à cidade de Paris: seus enormes jardins cuidados nos momentos e variados lugares. Nesse sentido, os
mínimos detalhes, suas largas e limpas alamedas, a banheiros são representações de valores culturais,
presença de grandes e suntuosas fontes de água lím- e sua presença física e arranjos espaciais constroem
pida e, finalmente, podemos compreender melhor o as condições para que esses valores possam ser vivi-
que significa a falta de banheiros. dos. Cabe a nós geógrafos, portanto, desenvolver a
O palácio foi projetado num momento em que capacidade de ler esses arranjos e simultaneamente
ainda não tinham se desenvolvido as duas princi- afastar as fáceis e simplistas formas de lidar com as
pais esferas da vida social moderna, a pública e a diferenças apresentadas no espaço.
privada. Estas esferas demandam um novo espaço Assim, entender a forma e o lugar (nos dois sen-
para que possam existir. Por um lado, isso significou tidos da palavra) dos banheiros é entendê-los como
uma pequena revolução na disposição do ambiente parte de um processo cultural e histórico. Vê-los
interior, na organização do espaço das residências em sua espacialidade é tirar da localização e suas
e nos equipamentos e formas dos edifícios. Por associações significados explicativos e (por que não?)
outro, essas novas normas de higiene geraram uma uma Geografia.
enorme demanda de água corrente e saneamento, E o que isso tem a ver com aquela vocação da
que foram seguidos por uma renovação completa Geografia Cultural anunciada antes? Vou tentar
dos equipamentos urbanos, mudança na forma, responder a partir de três questões:
tamanho, desenho e função das ruas, por exemplo.
Enfim, é toda uma nova cidade que nasce a partir I) Não seria a Geografia Cultural um manifesto
desse momento, um novo desenho e uma nova através do qual nós geógrafos pretendemos de-
organização do espaço. monstrar que não pode haver compreensão sobre a
Nessa apresentação percebemos quão impor- organização do espaço se não levarmos em conside-
tante é a cultura na compreensão de uma dada ração o contexto cultural (no sentido etimológico de
disposição dos objetos físicos sobre o espaço. encadeamento de idéias em uma narrativa)?
Compreendemos também que as mudanças de men- II) Não estaríamos pela valorização da cultura
talidade necessitam de um rearranjo espacial para abandonando enfim os resquícios do naturalismo e do

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positivismo que ainda restam na Geografia Humana, Cultural que nos permite olhar temas tão diversos
cuja própria denominação sugere esse tratamento quanto higiene e banheiros e tirarmos daí, ainda que
“natural”, justamente fora do contexto cultural? de forma muito breve, algumas relações interessantes
III) Não seria lícito pensar que o sonho de uma sobre as transformações da composição e do arranjo
Geografia Humana positiva, de categorias gerais, dos espaços. É esta Geografia que permite tratar
pode ser ela mesma vista como parte de um contex- alguns novos temas, outros nem tão novos, mas em

to cultural hoje em crise e em profunda mudança? inéditos recortes e, enfim, tecer relações que antes

Afinal, atualmente são cada vez menos numerosos pareciam completamente despropositadas ou insó-

aqueles geógrafos que não vêem as categorias, como, litas para um geógrafo.

por exemplo, a natureza, como possuidoras de uma


história e tratamentos diversos segundo diferentes NOTAS _________________________________
1 HOMO, Leon. Rome Impériale et l’urbanisme dans
contextos culturais.
l’antiquité. Albin Michel : Paris, 1971.
IV) Paul Claval acredita que a tendência mais 2Clarice Lispector ilustra bem isso em A paixão segundo
atual da Geografia Cultural seja aquela na qual o GH, com a estória da patroa que um dia resolve ir ao
quarto de empregada, imaginando-no escuro, feio e
olhar do geógrafo se debruça sobre o olhar dos outros sujo e ao chegar lá se depara, surpresa, com um am-
para entendê-los.6Poderíamos talvez acrescentar que biente claro e limpo. Ao começar a abrir o armário,
no entanto, descobre, no fundo, uma barata.
esse olhar é também reflexivo e pode se reconhecer
3Lembro aqui ao menos dois filmes que tocam esse tema:
no olhar preconceituoso e banal do turista; no olhar O turista acidental e O céu que nos protege, de
do viajante acometido de uma bulimia obsessiva de Bernardo Bertolucci.
4 FERRY, Luc et RENAUD, Alain. La pensée 68. Essai
inventário e curiosidade; ou ainda na pretensão de
sur l’antihumanisme contemporain. Gallimard: Paris,
uma Geografia Humana de tendência monotemática, 1985.
normativa e construída a partir de categorias univer- 5 Uma grande parte das informações sobre os equipamen-
tos de higiene, sua localização, data etc., provém de
sais, fortemente reprodutora dos cânones positivistas.
CHADYCH, Danielle et LEBORGNE, Dominique.
Quando a Geografia Cultural faz isso, não é mais uma Atlas de Paris. Évolution d’um paysage urbain. Pari-
tendência dentro da Geografia Humana (como, aliás, gramme: Paris, 1999.
6 Só com as reformas de Haussman as ruas de Paris ganham
já nos disse também em outras oportunidades Paul meio-fio e começa a construção de uma enorme rede
Claval), é a própria Geografia, ciência social com um de esgotos, mas o ritmo de ligação da rede com os
edifícios antigos ainda era lenta e bastante precária.
inteiro projeto epistemológico.
A água corrente só era disponível no andar térreo
Qualquer que sejam as respostas, de qualquer e dois terços dos poços estavam completamente
maneira constatamos que é essa nova Geografia contaminados em 1871.

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ABSTRACT
CULTURAL GEOGRAPHY PRESENTS SEVERAL AND DIFFERENT WAYS TO ANALYSE SOCIETY. IT IS POSSIBLE TO COMBINE VERY DISTINT
SUBJECTS, AMONG THEMSELVES, UNITED, HOWEVER, IN TERMS OF MEANING. VERSAILLES IN THIS ESSAY IS A REFERENCE IN A
COMPARISON WITH OTHER SUBJECTS, LEADING TO SOME REFLEXIONS ON THE NATURE OF CULTURAL GEOGRAPHY. ABSCENCE OF W.C.
IN VERSAILLES PALACE AND MIDDLE CLASS APPARTMENT IN RIO DE JANEIRO WITH ROOM AND W.C. FOR DOMESTIC EMPLOYEES ARE
SUBJECTS FOR INTERPRETATIONS.
KEYWORDS: VERSAILLES, W.C., APARTMENTS, MIDDLE-CLASS.

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