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RESUMO
OS CAMINHOS DA GEOGRAFIA CULTURAL SÃO INÚMEROS E DIFERENTES, SENDO POSSÍVEL COMBINAR OBJETOS MUITO DISTINTOS ENTRE
SI, MAS UNIDOS EM TERMOS DE SIGNIFICADO.O PALÁCIO DE VERSALHES APARECE COMO UMA REFERÊNCIA PARA, AO SER COMPARADO
COM OUTROS OBJETOS, POSSIBILITAR ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A VOCAÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL. A AUSÊNCIA DE BANHEIROS
EM VERSALHES E OS APARTAMENTOS DE CLASSE MÉDIA COM DEPENDÊNCIAS PARA EMPREGADA SÃO OBJETOS DE INTERPRETAÇÃO,
REPORTANDO A CULTURAS DISTINTAS QUE O OLHAR GEOGRÁFICO PODE CAPTAR.
PALAVRAS-CHAVE: VERSALHES, BANHEIROS, APARTAMENTOS, DEPENDÊNCIAS DE EMPREGADA.
A oportunidade desse trabalho surgiu simples- da idéia de que, por vezes, a mistura de elementos
mente. Foi, na verdade, construída a partir do en- heteróclitos pode gerar um movimento de compre-
contro imprevisto e da simultaneidade de dois fatos ensão bastante eficiente, sem perder algumas apre-
aparentemente muito diferentes. O primeiro foi um ciadas qualidades da narrativa, ou seja, um pouco
convite para participar de uma mesa-redonda inti- de inesperado, de surpreendente, e muitas imagens
tulada “Geografia Cultural: natureza e perspectivas”, emprestadas de universos aparentemente distintos.
no IV Simpósio Nacional de Geografia e Cultura, no Por isso, propositalmente misturamos aqui castelos
Rio de Janeiro; o segundo foi uma visita ao castelo e apartamentos, banheiros e camelos, turistas e geó-
de Versalhes nos arredores de Paris. É o encontro grafos; tudo isso como parte de um verdadeiro caldo
desses dois fatos e seus desdobramentos que gosta- de cultura, como, aliás, convém aos objetivos de um
ria de apresentar aqui. Em razão disso, o percurso encontro como este.
narrativo é, por vezes, oblíquo, as intenções não são Nosso percurso começa então por uma rápida
continuamente transparentes, mas a finalidade geral visita guiada pelo castelo de Versalhes. Construído
desse exercício é falar de uma vocação intrínseca à sobre antigos domínios de caça de Luís XIII, ele é uma
Geografia Cultural, portanto de algo que acredita- das marcas do apogeu da realeza francesa do grande
mos fazer parte de sua natureza. Ao mesmo tempo, século de Luís XIV. Em 1682, Versalhes se tornou a
é também essa vocação que configura, dá forma e principal residência real. Mais que simplesmente um
contornos às suas possíveis perspectivas. castelo, é um complexo de jardins, reservas florestais
Este percurso narrativo foge também um pouco e edificações, sendo o castelo a sede principal desse
aos cânones estabelecidos como formato recomen- conjunto. Exprime, pelo esforço da construção, pelo
dável aos textos acadêmicos. De fato, partirmos luxo do acabamento e dos equipamentos, pelo esmero
que só aumentará a partir de então na administração no mundo romano (incluindo, portanto, a Gália)
da França. Desde sua ocupação, o castelo se transfor- eram um equipamento urbano quase obrigatório e
mou, assim como sua corte, em modelo para muitas um dos focos centrais da sociabilidade urbana. Nesses
banhos, o conforto era muito grande, com cômodos
outras cortes européias. Todavia, ainda que copiado
dispondo de reservatórios com água corrente em
ou fonte de inspiração para edificações congêneres,
diferentes temperaturas. Igualmente, as latrinas com
todos os outros são sempre menores, mais modestos
água corrente eram bastante utilizadas na Antigüida-
e menos extraordinários que Versalhes. Para que se
de romana, ao menos a partir do século I a.C., e não
tenha uma idéia, esse castelo dispõe, entre outros
exclusivamente pelos altos dignitários, mas também
números eloqüentes, de onze hectares de telhados,
por uma parcela significativa do resto da população,
quase 52.000 m² de pisos, sessenta e sete escadas,
como atestam as ruínas de Pompéia.
2.153 janelas, setecentos cômodos.
A recuperação dos tratados de arquitetura da
Surpreendentemente, no entanto, o castelo não Antigüidade (o de Vitrúvio, por exemplo) constituiu
dispõe de banheiros! uma verdadeira febre a partir do Renascimento.
Um dos aspectos mais formidáveis do conjunto Continham a descrição e os planos detalhados des-
de Versalhes são suas fontes. Justo motivo de enorme ses equipamentos e até justificativas para seu uso e
orgulho do Rei Sol, são uma verdadeira proeza da recomendação1. O estilo francês conhecido como
engenharia hidráulica. Para construí-las e fazê-las Classicismo procurou inspiração abertamente na
funcionar, procedeu-se ao desvio e à canalização de Antigüidade. Associa-se diretamente ao reinado de
vários córregos que formam bacias de alimentação Luís XIV, e os ideais artísticos e culturais da Antigüi-
em diferentes níveis e cotas e dão origem a grandes dade greco-latina foram tomados como modelos das
espelhos d’água. Ao todo são cinqüenta chafarizes academias criadas por ele. A arquitetura não fugia a
com seiscentos e vinte e jatos d’água, um débito essa regra e o Castelo de Versalhes foi concebido
que chega a 3.600 m³/hora, os quais circulam por seguindo a inspiração dos cânones romanos. Entre-
tanto, diferentemente das grandes residências dos
35 km de galerias e tubulações. A genialidade das
nobres romanos, em Versalhes não foram previstas
instalações foi tamanha para a época que até hoje
originalmente instalações para banhos ou latrinas.
o sistema é o original, só demandando os cuidados
Comecei essa descrição evocando uma visita
normais de manutenção. É extraordinário constatar
realizada ao Castelo de Versalhes, devo agora acres-
mais uma vez, todavia, que com todo esse esforço
centar que o interesse maior foi acompanhar um
de engenharia para a concepção e construção de
grupo de turistas brasileiros. Ao saber que o castelo
tantos e tão sofisticados sistemas hidráulicos não
não dispunha de banheiros, muitos no grupo apro-
tenha sido prevista nenhuma instalação sanitária nas
veitaram para fazer vários comentários irônicos sobre
dependências do castelo. esse fato, que tinham como sentido salientar que a
to cultural hoje em crise e em profunda mudança? inéditos recortes e, enfim, tecer relações que antes
Afinal, atualmente são cada vez menos numerosos pareciam completamente despropositadas ou insó-
aqueles geógrafos que não vêem as categorias, como, litas para um geógrafo.