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COLEÇÃO "VIDA E OBRA" NISE DA SILVEIRA

JUNG
VIDA E OBRA

13� edição

ffi
PAZ E TERRA
Este pequeno liuro não tem a pretensão de
resumir a psicologia de C. G. Jung. Nunca eu ten­
taria realizar semelhante tarefa que me parece im­
praticável. E apenas um mapa de bolso, um itine­
rário de estudo. Terá atingido seu objetivo se
for útil, como guia e intérprete, a quem se inte­
resse pela extraordinária riqueza do pensamento
de C. G. Jung, mas que se ache um pouco per�
dido face ao uolume e à densidade de sua obra.
Seguindo o hábito de guias e intérpretes, não
consegui abster-m e de uma ou outra consideração
pessoal no curso do caminho. Espero que o leitor
não me leve a mal p isso.
Na última página dé cada capítulo vem uma
indicação de leituras para aqueles que desejarem
ampliar seus estudos sobre a psicologia jungu ea­
na. As obras indicadas não constituem, neCessa­
riamente, referências relativas ao texto. No final
do livro consta relação das obras de Jung publi­
cadas em português, inglês, francês e espanhol.
Agradeço afetuosam ente a Otávio de Freitas
/unior, o responsável pela idéia deste livro; aos
companheiros do Grupo de Estudos C. G. Jung.
que me animaram a escreuê-lo; a Leo Victor e a
Lia Cavalcanti, por muitas sugestões úteis à cla­
reza do texto; a Ald:omar Conrado, que amavel­
m ente fez a correção ortográfica. Fi c o muito grata
a Lourdes Mascarenhas, que datilografou o ma­
nuscrito com inalterável paciência.

9
C . G, Jung: - Vida e Obra.
Carl Gustav Jung nasceu a 26 de julho de
1875, em Kesswil, aldeia pertencente ao candio
da Turgovia, Suíça. Seu pai, Paul Achilles Jung,
aí exercia as 'funções de pastor protestante. O
menino Carl Gustav tinha quatro anos quando o
pai foi transferido para Klein - Huningen, nos
arredores de Basiléia. Foi em Basiléia onde Jung
fez todos os seus estudos, inclusive o curso mé­
dico. Esta cidade era, na época, um dos mais im­
portantes centros culturais da Europa. Basta lem­
brar que Nietzche deu cursos memoráveis na Uni­
versidade de Basiléia no período 1869-1879 e que
o historiador-filósofo Jacob Burckhardt ocupava;
por estes tempos, uma cátedra nessa mesma Uni­
versidade. Também ecoava ainda naqueles dias a
fama do reformador da Faculdade de ·Medicina
de Basiléia, Carl Gustav Jung, avô paterno do
futuro psicólogo. que recebeu o nome de seu an­
cestral ilustre. I?,umores corriam de que o velho
C . G . Jung fosse filho ilegítimo de Goethe. Nada
ficou provado neste sentido, mas comentava-se
que tànto seus traços fisionômicos, quanto seu jnes­
cedível encanto pessoal o assemelhavam ao autor
do Fausto.
No . seu livro de MEMÓRIAS, Jung não es­
conde as restrições que fazia ao pai. Desde mui-

II
Este trabalho teve por título Psicologia e pa­
-
tomas, ainda os mais absurdos, encerram signifi­
tologia dos fenômenos ditos ocultos. Trata-se do cações, descrevem as frustrações, desejos e espe­
estudo do caso de uma jovem medium espírita. r�nças dos doentes.
Jung, em 1902, interpreta os numerosos espíritos
manifestados, como personificações de aspectos Somente em 1907 Jung entrou em contacto
diferentes e até opostos da própria medium e clas­ pessoal com Freud.· No dia 27 de fevereiro da­
sifica-os em dois grupos: o tipo grave-religioso e quele ano Jung visitou Freud em Viena, e esta
o tipo alegre-libertino. Mas igualmente "elél se primeira visita prolongou-se por treze horas a fio
sonha" num estado superior que ultrapassa os ex­ .de absorvente conversação. Freud logo reconhe-
tremos que a dilaceram. O espírito lvenes, de ca­ ceu o alto valor de Jung e viu no suíço, no não
tegoria mais alta, encarna sua personalidade se­ judeu, o homem adequado para conduzir avante a.
gunda, ainda em processo de desenvolvimento. psicanálise. Mas sobretudo viu nele "um filho mais
No ano de 1905 foi designado primeiro Obe­ velho", um "sucessor e príncipe coroado" (carta
rartz, isto é, assumia o posto imediatamente abai­ de Freud à Jung, datada de 16. 4 . 1909) .
xo de Bleuler na hierarquia do hospital. No mesmo De 1907 à 1912 estabeleceu-se estreita cola­
ano era nomeado Privat-Dozent, iniciando cursos boração entre Freud e Jung. No outono de 1909
de crescente repercussão, na Universidade de Zu­ viajaram juntos aos Estados Unidos, por ocasião
rique. das comemorações do vigésimo aniversário da
No Burgholzli, Jung trabalhou incansavel­ Clark University. Freud ali pronunciou as céle­
mente conio colaborador de Bleuler e como pes­ bres cinco conferências sobre psicanálise e Jung
quisador original. Marcaram época suas expe­ apresentou seus trabalhos relativos às associações
riências sobre as associações verbais. Essas expe­ verbais.
riências, iniciadas com o intento de trazer esda­ Em 19 1O foi fundada a Associação Psicana­
recimentos concernentes à estrutura psicológica da lítica Internacional. Freud usou toda sua influên­
esquizofrenia, em breve transformavam-se, nas cia para que Jung fosse eleito presidente dessa
mãos do jovem pesquisador, num método de ex­ Associação e assim aconteceu. Mas, já em 19 12, o
ploração do inconsciente. Conduziram-no à des­ livro de Jung, METAMORFOSES E SÍMBOLOS DA LI­
coberta dos complexos afetivos. A conceituação BIDO marcava divergências doutrinárias profundas
de complexo, juntamente à técnica para detectá­ que o separaram de Freud. Eram ambos per­
lo, foi a primeira contribuição de Jung à psico­ sonalidades demasiado diferentes para caminha­
logia moderna. rem lado a lado durante muito tempo. Estavam
No ano de 1906 Jung publicou os ESTUDOS destinados a defrontar-se como fenômenos cul­
SOBRE ASSOCIAÇÕES; A PSICOLOGIA DA DEMÊNCIA turais opostos.
PRECOCE, apareceu em 1907 e, a seguir, 1908, O
CoNTEúDo DAS PsicosEs. Os dois últimos traba­ Jung casou-se em 1903 com Emma Raus­
lhos demonstram que nas psicoses todos os sin- chenbach, nascida em 1882. O casal teve cinco

14 15
filhos. Emma era uma companheira devotada, so,. Começava um período de ativação do incons,.
lidária e muito interessada pelos problemas de psi­ ciente, de intensas experiências interiores. De so­
cologia. Dedicou-se durante longos anos a pes­ nhos impressionantes, mesmo de ·visões. Jung de,.,
quisas sobre a legenda do Graal. morrendo, po­ cidiu,.se a aceitar que as imagens do inconsciente
rém, antes de concluir sua obra (1955). Seu li­ emergissem. Pareceu-lhe que a melhor solução se­
vro -INTERPRETAÇÃO PSICOLÓGICA DA LEGENDA ria esforçar-se por decifra-lhes o sentido, man­
oo GRAAL, levado a termo pela Dra. Marie Louise tendo a consciência sempre vigilante e não per­
von Franz, foi publicado em 1.960. dendo o contacto com a realidade exterior.
Desde 1909 até morrer Jung residiu na mes­ Foi através da interpretação de seus sonhos
ma casa. na Seestrasse 228, às margens do lago e experiências internas que Jung chegou à des,.
de Zurique. coberta de um centro profundo no inconsciente,
Jung era um homem alto, bem construído, ro­ centro ordenador da vida psíquica e fonte de
energia.
busto. Tinha um vivo sentimento da natureza.
Atento aos fenômenos que se desdobravam
Amava todos os animais de sangue quente e sen·­
no íntimo de sí próprio, apreendeu o fio e a si�­
tia-se com eles "estreitamente afim". Amava as
nificação do curso que tomavam, verificando que
escaladas das montanhas, porém preferia velejar
outra coisa não acontecia senão a busca da rea,.
sobre o lago de Zurique. Possuía seu barco pró­
lização da personalidade total (processo de indi,.
prio.. Na mocidade passava às vezes vários dias
viduação - ver capítulo VI).
velejando em companhia de amigos, que se reve­
Livre dos preconceitos científicos ainda vi- .
savam no leme e na leitura em .alta voz da Odis­ gentes, nas suas MEMÓRIAS escritas aos 83
séia. Igualmente velejava sozinho e o fêz até ida­ anos, Jung refere,.se às experiências interiores
de bastante avançada. vivenciadas entre dezembro de 1912 e fins de
Aos 38 anos ( 1913) Jung havia cumprido 1918, dizendo: "Levei pràticamente 45 anos para
largamente todas as tarefas da primeira metade destilar dentro do recipiente de meu trabalho cien,.
..
da vida. Tinha constituído família: afirmara-se tífico as coisas que experimentei naqueIe tempo.
no campo profissional. sendo procurado por enor­ Para que o indivíduo não seja tragado pelo
me clientela que acorria de toda a Europa e da inconsciente, adverte Jung, é necessário manter-se
América; conquistara renome científico mundial. firmemente enraizado na realidade externa, ocu,.
par,.se de sua família, de sua profissão. E, sem
Agora ia abrir-se uma nova fase na sua vida.
perder o ânimo, encarar face a face as imagens
Haviam sido rompidos os laços com o grupo psi­
do inconsciente. Certo, a tarefa é difícil. Para Je,.
canalítico. E neste mesmo ano de 1913, Jung re­
vá-la a termo sem nenhuma ajuda, segundo Jung
nunciou ao título de Privat-Dozent (já em 1909 o conseguiu, o requisito prévio será a existência
demitira,.se do cargo de psiquiatra do Burgholzli). de um ego bem estruturado e coeso, pois o pro,.,
abandonando assim a carreira universitária. Co­
cesso inconsciente terá de ser continuamente liga­
meçava um difícil período de solidão. do ao consciente.

16 17
ciente coletivo. Séus trabalhos sobre o conceito Fiel ao seu método de trabalho, Jung apre­
de inconsciente coletivo e os arquétipos foram. na sentou essa nova descoberta numa conferência feita
maioria, primeiro apresentados em forma de con­ no Eranos de 1935 .. Simbolismo dos sonhos
ferências (nas reuniões científicas internacionais e o processo de indivic/.uação, seguida, em 1936, de
denominadas Eranos, realizadas em Ascona ) e só­ uma outra - A idéia de rendenção em alquimia.
publicados em livros anos mais tarde, depois de Essas conferências foram retrabalhadas e enrique­
revistos e amplamente documentados. Por exemplo: cidas de enorme documentação e por fim •publica­
o ensaio A r quétipos do Inconsciente Coletivo (Era­ das num volume, sob o título de PSICOLOGIA E AL­
nos-1934 ) . apareceu em livro, modificado e am­ QUIMIA, em 1944.
pliado, vinte anos depois; o trabalho sobre o Ar­ A obra de Jung é comparável a um organis­
quétipo Mãe. sofreu elaboração quase tão longa. mo vivo que cresce. se desenvolve e se transf6rma
pois nascido no Eranos de 1938 veio a tomar lugar simultaneamente com seu autor.
nas obras de Jung em 1954.
Em 1945 Jung completou 70 anos. E estava
Se a intuição é um relâmpago, se a experiên­ no apogeu da atividade criadora. Prosseguia nas
cia interior é um relâmpago, o trabalho científico pesquisas sobre alquimia. publicando PSICOLOGIA
necessariamente terá de ser construido devagar e DA TRANSFERÊNCIA ( 1946) e MISTERIUM CONIUNC­
com prudência. Jung nunca se embriagou de or­ TIONIS, livro que muitos julgam sua obra máxima,
gulho nem pelo seu gênio nem pelas suas expe­ no qual trabalhou durante dez anos e que foi
riências interiores (experiências que outros fre­ dado à publicidade em 1955, quando o autor atin­
qüentemente interpretam como privilégios sobre­ gia os 80 anos.
naturais ). Se era um homem, outros homens de­ Simultaneamente, escrevia numerosos ensaios.
veriam ter vivido algo semelhante aa que ele es­ dentre os quais apenas citaremos RESPOSTA A JOB
tava vivendo. Pos-se então a buscar prefigurações ( 1952). um de seus livros mais belos e mais
históricas para suas experiências interiores e , nes­ discutidos.
sas pesquisas, fez o surpreendente achado de que
Sempre atento aos acontecimentos contempo­
o processo pelo qual ele próprio passara corres­
râneos, depois dos 80 anos escreveu ainda PRE­
pondia ao processo de transformação alquímica.
SENTE E FUTURO, 1957 e UM MITO MODERNO (os
A "arte" aiquímica seria a projeção sobre a discos voadores ) . 1958. Quando se poderia talvez
matéria de processos em desdobramento no incons­ pensar que ós assuntos da prática médica não
ciente. Vivenciados pelos alquimistas, continua­ mais o interessassem, Jung apresentou, no con­
vam acontecendo no presente, segundo o simbolis­ gresso Internacional de Psiquiatria, Zurique -
mo que os sonhos de hom.ens e mulheres contempo­ 1957, um trabalho sobre a esquizofrenia, que é
raneos deixava entrever. Assim, a psicologia ana­ não somente interpretação teórka dessa doença,
lítica encontrou, na alquimia, sua contraparte mas que também está cheio de indicações utilisá­
histórica. veis pelo psiquiatra clínico no trabalho cotidiano.

20 21
ção do interesse libidinal, na acepção de interesse mos do inconsciente que se revelavam a seus olhos.
erótico? Freud sustentava esta opinião. Jung não E tanto na prática clínica quanto na experimenta..
aceitou que o contacto com a realidade fosse man.. ção psicológica comprovou a existência dos meca ..
tido unicamente através de "afluxos de libido" ou nismos descritos por Freud, mas desde logo suas
seja de interesse erótico. Verificava em seus doen .. interpretações nem sempre coincidiram exatamen..
tes não só perda do interesse sexual mas de todos te com as interpretações do mestre de Viena. Ape.�
os interesses que ligam o homem ao mundo exte.. sar de divergêncicas abertas ou latentes, os anos
rior. Para estar de acordo com Freud seria, por..
de colaboração estreita entre Freud e Jung ( 1 907..
tanto, necessário admitir que toda relação com
1 9 1 2 ) foram, sem dúvida, muito fecundos para a
o mundo era, na essência, uma relação erótica.
Isto pareceu a Jung inflação excessiva do concei .. psicanálise. O desentendimento decisivo, porém,
to de sexualidade. Sua posição , desde o iní.. acabou surgindo. Foi provocado pelo concei­
cio, foi esta. Já no . prefácio do livro PSICOLOGIA to de libido, entendida como energia psíquica
DA DEMÊNCIA PRECOCE, havia escrito : "Fazer de uma maneira global, apresentado por Jung,
justiça a Freud não implica, como muitos temem, em M ETAMORFOSES E SÍMBÓLOS DA LIBIDO. Eis
submissão incondicional a um dogma; pode..se um livro extremamente . denso, porém de leitu­
muito bem manter um julgamento independente. ra apaixonante.. Seu tema é o comentário psi­
Se eu, por exemplo, aceito os mecanismos com.. cológico dos poemas e outros escritos de Miss
plexos dos sonhos e da histeria, isso não signifi­ Miller. um caso fronteiriço de esquizofrenia. Mas
ca que atribua ao trauma sexual infantil a im .. em torno deste núcleo, as idéias borbulham num
portância exclusíva que Freud parece conceder.. verdadeiro festival de atividade . criadora exceden­
lhe. Ainda menos isso significa que eu coloque a do de longe o objetivo primeiro. As imagens poé­
sexualidade tão predominantemente . no primeiro ticas de Miss Miller dão lugar a abundantes pa..
plano ou que lhe atribua a universalidade psico .. ralelos mitológicos e ao aprofundamento de suas
lógica que Freud lhe atrioue, dado o papel enor­ significações, resultando daí uma tal profusão de
me que, decerto, a sexualidade desempenha na
dados que o leitor poderá talvez sentir..se como
psique". Note.. se que este prefácio está datado
alguém perdido numa espessa floresta. Carregan..
de julho de 1 906.
Daí se vê que entre . Freud e Jung não exis .. do tantas inovações, METAMORFOSES E SÍMBOLOS
tiram relações do tipo mestre ..discípulo, segurtdo DA LIBIDO provocou enorme celeuma e não pou­
se repete . tão freqüentemente. A verdade . ó .que cos malentendidos. A fim de esclarecer e desen­
Jung nunca deu sua adesão total a Freud. volver seu conceito de libido, .apresentado neste
Quando leu as primeiras obras de Freud livro junto a várias outras idéias, Jung escreveu
um trabalho à parte denominado sOBRE A EN E R­
·­

A H ISTERIA E A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS,


embora f.s:>sse ainda muito jovem, Jung aper.. GIA PSÍQUICA.
cebeu ..se d� que estava diante de descobertas A energia psíquica ( libido ) "é a intensida- ·
importantíssimas. Ficou fascinado pelos dinamis .. de do processo psíquico, seu valor psicológico" .

42 43
mumente é designado peia oposiçao natureza�es.. a símbolos cadu�os, esvasiados da energia que an�
pírito. Espírito não é entendido aqui como algo tes os animava, que se processa, na sua essência,
transcendente. Para Jung, as forças que se opõem o desenvolvimento da psique do homem.
à instintividade são tão naturais quanto os pró·
prios instintos e, tanto quanto estes, são podero.. Posteriormente, no grande ensaio SOBRE A
sas. "Rigorosamente falando, o princípio espiri-: NATUREZA DA PSIQUE ( 1 954 ) , Jung irá apresen­
tual não entra · em colisão com o instinto. mas com tar outros desenvolvi mentos relativos à energé­
a institntividade cega na qual se manifesta pre..
.,.

tica psíquica, d ecorrentes da supreendente desco­


dominânéia injustificada da natureza instintiva em berta de analogias entre fenômenos psíquicos e
relaÇão ao espiritual. O espiritual também se apre� fenômenos pertencentes ào reino da física atômi­
senta na vida psíquica como um instinto. mesmo ca moderna.
como uma paixão ou, segundo disse NiE�tzche,
"como · um fogo devorador" . Não se deriva de
qualquer outro . instinto, mas é um princípio sui
generis. uma forma específica e necessária da fôr�
ça instintiva". ·
Do jogo entre tensões opostas resulta a li�
beração de relativos excedentes de energia e o
natural estabélecimento de declives por onde se es�
' côe esta energia livre. Com efeito, a história da
humanidade demonstra que já o homem primitiv)
conseguia dispor de cotas de energi a para apli�
cação utilitária no mundo exterior e para opera�
ções transformadoras internas, que se realizavam
por intermédio da formação de símbolos religiosos,
de rituais e de atos mágicos. Não está todavia no
poder do hom em canalisar os excedentes energé· Leituras .
ticos para objetos escolhidos racionalmente. A h·
bido mostra�se recalcitrante às ordens da vontade C . G. Jung SYMBOLS OF TRANSFORMATION,
consciente. Os esforços mais obstina�os não serão col1ected works 5. Há traduções francesa e es�
suficientes se não existir, na mesma direção, um panhola.
declive natural favorável à canalização· da e·ner.. C. G. Jung .- ON PSYCHIC ENERGY, em col..
gia. "A vida somente flue para diante ao longo de lected work� 8. Há também traduções francesa
declive adequado". e espanhola.
g através de transmutações da energia psi.. C. G. Jung .- ON THE NATURE OF · PSYCHE,
quica, da formação de símbolos novos sucedendo em collected works 8. Ensaio de leitura difícil.
48 49
Tipos Psicológicos.
Os trabalhos de exploração do inconsciente
não fizeram Jung perder o interesse pelas rela­
ções do homem com o meio exterior. A comuni­
cação entre as pessoas sempre lhe pareceu pro­
blema da maior importânc-ia. Na vida comum e na
clínica via todos os dia3 que a presença do outro
é um desafio constante. O outro não é tão seme­
lhante a nós conforme desejaríamos. Ao contrário.
ele nos é exasperantemcnte dessemelhante. Não
é raro ouvir o marido irritado, dizer que não en­
tende a esposa e a mãe queixar-se de absolutamen­
te desconhecer a filha. Também nas relações de
ami zade e de trabalho surgem freqüentes desen­
tendimentos. desencontros, que deixam cada per­
sonagem perplexo face às reações do outro# sem
que os separem sensíveis diferenças de idade, de
educação ou de situação soci�l.
Jung deteve-se no exame deste problema e
apresentou sua contribuição a fim de que nos pos­
samos orientar melhor dentro dos quadros de re­
ferência do outro. Modesto como sempre, escre­
veu : "não creio de modo algum que minha classi­
ficação dos tipos seja a única verdadeira ou a
única possível".

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Distinguiu inicialmente aqueles que partem Quando Sartre diz que a existência do outro 0
rápidos e confiantes ao encontro do objeto, da­ atinge em pleno coração, que sua presença lhe traz
queles que hesitam, recuam, como se o contato uma sensação de m�l estar, que por causa do ou­
com o objeto lhes infundisse receio ou fosse uma tro sente-se perpetuamente em perigo, define uma
tarefa demasiado pesada. A primeira forma de ati­ atitude de introversão. Já na pintura de Matisse
tude denominou extroversão e à segunda intro­ acontece o contrário. O objeto é glorificado. .ale
versão. Estes termos que se popularisaram, que o retira da atmosfera que o envolve para dar-lhe
todo mundo repete aplicando-os bem ou mal, fo­ mar_cados contornos e colorido intenso. Uma feliz
.
ram criados e introduzidos em psicologia por Jung e confiante relação estabelece-se entre o hom em ;
O conceito de extroversão e de introversão ba- e o mundo. Naturalmente os psicólogos não es�
- seia-se na maneira como se processa o movimento capam à condição humana e funcionam êles pró�
da libido ( energia psíquica ) em relação ao objeto . prios, tão curiosos da alma alheia, deritro de suas
ao
Na extroversão a libido flue sem embaraços peculiares equações pessoais. Jung estudou-os com
a libid o recu a particular atenção, pois intrigava-o que os mesmos
encontro do objeto. Na introversão
diante do objeto, pois este parece ter sempre em fenômenos psíquicos fossem vistos e compreendi­
o dos tão diferentemente por homens de ciência, cada
si algo de ameaçador que afeta intensamente
indivíduo. Mas, em movimento de compensação
, um de seu lado, honestamente convencido de ha­
uma corrente energética incon scien te retroc ede ver descoberto a verdade única. Exemplo de · es­
para o sujeito na extroversão e, na introversão, um colha é o caso Freud-Adler. Freud valorisa sobre�
tudo o objeto. O homem é um feixe de pulsões
fluxo de energia inconsciente- está constantemente
em busca de objetos amaráveis e sua meta seria,
emprestando energia ao objeto. Portanto, vista em
o, não fosse a repressão imposta pela sociedade, a
seu conjunto, verifica-se na circulação da libid
vers ão naqu e­ expansão livre dos instintos até a obtenção dos
um movimento inconsciente de intro
, objetos desejados, os quais são fontes de prazer
les cuja personalidade consciente é extrovertida em si mesmos, por suas qualidades específicas.
e um movimento inconsciente de extro vers ão na­
i­ Muito diversa é a relação do homem com o obje-"
queles cuja personalidade consciente é introvert to, segundo Adler. Antes de tudo ele buscq se­
da. Ex troversão e introversão são ambas atitudes
·

gurança pessoal e afirmação de sua vontade de


no�mais. Claro que a introversão em grau exag e­ poder. A ênfase recai aqui sobre o sujeito. Quan�
que
rado tornar-se�á patológica, do mesmo modo do ·se sente in feriorisado, o homem adleriano "pro�
a extroversão excessiva será também característi- testa'' . Seu esforço dirigir-se-á no sentido de que�
ca de estado mórbido.
brar os laços com objetos que o cerceiam opressi�
Não só o homem comum pode ser enquadra­ vamente afim de conseguir sobre estes a· supre�
do numa dessas duas atitudes típicas. Igualmente macia anelada.
os filósofos, através de suas concepções do mun-·
Na opinião de J ung as duas concepções são
do. revelam seus tipos psicológicos, bem assim os válidas. Apenàs são unilaterais. A vontade de po­
artistas . através de suas interpretações da vida. der não exclue Eros e reciprocamente. Acontece

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52
vertida, tipo intuição extrovertida : - tipo pensamen­
importância no organismo psíquico. A terapêutica to introvertido, tipo sentimento introvertido, tipo
ocupacional tem aí um rico filão a explorar. sensação introvertida, tipo intuição introvertida.
Essas funções dispõem-se duas a duas, em Comecemos pela descrição dos quatro tipos
oposição. É fácil compreender que se a intuição extrovertidos.
é a função principal, necessariàr.aente a sensação
será a função inferior. Desde que o intuitivo apre­
ende as coisas no seu conjunto e aquilo que o
Tipo pensamento extrovertido.
atrai é o clima onde elas se movem para seus des­
tinos ainda incertos e obscuros, certamente ele não A personal idade consciente é extrovertida e
será perito no exame deta�hado dos objetos nem o pensamento, função principal, está dirigido para
saberá encontrar para si firmes posições de rela­ o exterior. Sua atitude tende constantemente a
cionamento no mundo real, com suas exigências estabelecer ordem lógica, clara, entre coisas con­
concretas e imediatas. O contrário acontece quan­ cretas. O raciocínio abstrato não atrai o tipo ·pen­
do a sensação é a função mais desenvolvida. samento extrovertido. Sle poderá bater-se com en ­
Entre o pensamento e o sentimento ocorre tusiasmo pela liberdade mas , acoçado por alguém
incompatibilidade semelhante. O pensamento tra­ que lhe peça para dizer o que entende por "liber­
b�:tlha para conhecer as coisas, sem maior interes­ dade" , não se interessará por definir-lh e o con­
se pelo seu valor afetivo, valor que decerto viria ceito. Este tipo gosta de fazer prevalecer seus
interferir em julgamentos que pretendem ser neu­ pontos de vista _que coordena de maneira rígida
e impessoal tornando-se muitas vezes autoritár io,
tros. O sentimento faz, antes de tudo, a estimativa
principalmente no círculo de sua família. Sua con.­
do objeto, julga do seu valor intrínseco. Portanto
são funções que se excluem, não podendo ocupar. duta é pautada segundo regras rigorosas, dentro
ao mesmo tempo, o mesmo plano. Se o pensamen­ de seus princípios, os quais ele aplica também aos
outros, sem fazer a estimativa de nuances pes­
to fôr a função principal, o sentimento será a in­
soais.
ferior. e reciprocamente.
Os representantes deste tipo que mais se des.­
Sendo a função principal de cada indivíduo
tacam são hábeis políticos, homem� de negócios,
a arma mais eficiente de que este dispõe para sua
advogados brilhantes, que rápido encontram os fa­
orientàção e adaptação no mundo exterior, ela se
tos básicos das situações que têm em mãos, exce­
torna o seu habitus reacional. É esta função, pois,
lentes organizadores de serviços científicos, - de
que vem dar a marca característica aos tipos psi­ firmas comerciais ou de setores burocráticos.
cológicos. Desde que as quatro funções podem
ser extrovertidas ou introvertidas, resultam oito O ponto fraco deste tipo é o sentimento ( fun ..

tipos psicológscos : tipo pensamento extrovertido, ção inferior ) . Embora capaz de afeições profun­
tipo sentimento extrovertido, tipo se!lsação extro- das, tem grande dificuldade em exp�essá-las. Por

Sô _ 57
isso é sempre mais apreciado no seu meio pro� sonalidade mais que pela originalidade de seu pen�
fissional e social que entre os membros da própria sa� ento : Nos círculos íntimos dá os mais agradá�­
família. A esposa e o.s filhos de uni tipo pensa� vets amt � os e amigas, pois poder�se-á dizer que
mento extrovertido não se acreditam amados tan� .
fot este tipo que inventou a arte da amizade.
to quanto o são na realidade, pois ele nunca sabe Seu calcanhar de Aquiles é o pensamento, so�
encontrar maneiras adequadas de exprimir seus bretudo o raciocínio abstrato. A matemática a
íntimos sentimentos. De outra parte, não são ra� reflexão �ilosófica, são _áreas onde este tipo � ão
ras súbitas e violentas explosões de afeto que até se move a vontade. Prefere a medicina as ciên�
poderão atingir graus perigosamente d estrutivas. cias diretamente ligadas ao homem, a �oesia líri­
Estes fenômenos são decorrentes de uma função ca, a música romântica , enfim as coisas que 0
sentimento indiferenciada e inconsciente. toquem na esfera afetiva.
Essa pessoa tão transbordante de calor hu�
mano surpr�ende muitas vezes seus íntimos quan­
do formula JUlgamentos críticos extremamente du�
Tipo sentimento extrovertido . ros e frios, com o caráter de sanções definitivas.
Se o controle da função superior falha ( desgaste,
Este tipo mantém adequada relação com os
cansaço, doença ) , os pensamentos negativos emer­
objetos exteriores, vivendo nos melhores termos
gem. E. por serem produzidos pela funÇão inferior
com o seu mundo. É acolhedor e afável. Irradia
de um extrovertido, têm as marcas da introversão,
calor comunicativo que torna o indivíduo deste v?ltando�se principalmente contra o próprio indi�
tipo o centro de amigos numerosos. Mas ele sabe v1duo que se vê, sem motivos objetivos, destituído
fazer a correta estimativa desses amigos, facil� de todo valor, incapaz para quaisquer realizações.
mente pesa suas qualidades positivas e negativas, Entenda�se que não se trata aqui de inferio�
e assim não forma ilusões sobre as pessoas com r�da�e da função pensamento num sentido quan­
quem convive. Esta capacidade de segura avalia� titativo, mas de uma função que nao foi afiada
ção afetiva poupa-o das decepções que são as ha� pelo uso, que não se diferenciou suficientemente.
- bituais agruras do tipo pensamento, nem lhe acon ..
tece, como àquele, ser subitamente submerso por
explosões de sentimentos. Permanece, em geral.
fiel aos valores que lhe foram inculcados desde a Tipo sensação extrovenida.
infância. As manifestações de sua afetuosidade
O tipo sensação extrovertida compraz�se na
são exuberantes e, não raro, parecem excessivas
apreciação sensorial das coisas. Se vai a uma reu­
aos olhos de outros tipos. nião social saberá descrever como estavam vesti­
Quando o tipo sentimento extrovertido en-. das as pessoas e imediatamente reconhecerá a
trega�se à vida p ública pode tornar-se um grande qualidade dos móveis, dos tapetes . Ele parece se�
líder, fascinando pelo apelo emocional de sua per� gurar os objetos entre o eixo de seus olhos como

58 59
tes bem medidos, toda manifestação emocional
exuberante lhes desagradando e provocando, de Tipo sensação introvertida.
sua parte� reações de repulsa. Vistos do exterior
parecem frios e indiferentes, quando na realidade Este tipo é extremamente sensível às impres�
ocultam, muitas vezes, grandes paixões. Desde sões provenientes dos objetos. Fixa�os em todos
que · .os objetos são conservados à distância e os os detalhes como se possuísse internamente uma
indivíduos deste tipo esquivam�se a participações pla�a fotográfica. Essas impressões o atingem de
emocionais, as correntes afetivas introvertidas po� maneira profunda, mas não transparecem em rea�
derão vir animar, no inconsciente, representações ções que dêem a medida da repercussão que as
arquetípkas, ideais religiosos ou humanitários, aos qualidades sensoriais dos objetos determinaram.
quais venham a aderir devotada e · apaixonada­ Enquanto o tipo sensação extrovertida age sem�
mente ao ponto extremo de sacrifícios heróicos. pre em perfeita sintonia com · a realidade, dentro
Seus afetos não se desenvolvem sempre na do aqui e agora. o tipo sensação introvertida sur.­
escala do amor e do devotamento, mas também preenderá de súbito por um comportamento que
corresponde à intensidade das experiências inter.­
na do ódio e da crueldade onde poderão atingir
requintes, ta�bém decorrentes da alta . diferencia­ nas nêle suscitadas pelo objeto e não pelo valor
que no mundo real seja de ordinário atribuído a
ção da função superior. Até as duas escalas às esse objeto. Não havendo relação racionalmente
vezes coexistem. A mesma mulher será para o fi�
proporcional entre o objeto e a intensidade das
l ho mãe amantíssima e para o enteado madrasta
.

sensações que possa provocar� resultarão compor­


implacável. tamentos imprevisíveis e fora das medidas comuns.
O pensamento deste tipo psicológico ( sua O colecionador de objetos de arte, por exemplo,
função i:r:tferior ) , é extrovertido. Isso explica por� atingido pelas qualidades estéticas de um vaso de
que dentro de sua . reserva e de seu silencio tome cristal o adquirirá para seu prazer por um preço
vivo interésse por múltiplos fatos em curso no que outros tipos classificariam de absurdo.
mundo exterior. Lê e reune informações sobre os Pertencem a este tipo os indivíduos que põem
assuntos mais variados. Entretanto, se pretende acima de tudo o prazer estético, que com uma re�
tirar deduções do material de que dispõe, seu pen­ quintada sutilesa apreciam formas, cores, perfu�
samento pouco diferenciado não é suficientemente mes. Nas relações amorosas vivem intensamente
plástico para elaborações de ordem teórica. As o aspecto sensual, sem que lhes seja necessária
construções intelectuais resultam pobres e toscas. a presença de verdadeiros sentimentos afetivos �
Pode-se assinalar mesmo uma · certa monomania : Preocupam�se muito com o próprio corpo. Seu afi..
a tendência a explicar todas as coisas por meio namento sensorial não é apurado apenas para as
de um único pensamento diretor. :a freqüente que sensações provenientes do exterior, mas também .
se preocupe com o que pensam os outros e lhes para as sensações internas; o que os torna capazes
atribua, pela projeção de pensamentos negativos. de detectar mínimas reações do próprio organismo.-
julgamentos críticos, rivalidades, intrigas. A função inferior ( intuiÇão ) dest� tipo é si..
milar àquela do tipo s�nsação extrovertida. Mas
64
65
Um belo exemplo de tipo intuição introver­ Parece que em v1soes de longo alcance ele apre­
tida é Spinoza. Ele erigiu a intuição no mais per­ endia o sentido dos processos psíquicos de ma­
feito gênero de conhecimento, o único, no seu con­ neira imediata para depois passar todo o mate­
ceito, capaz de penetrar na essência das coisas. rial assim colhido pelos crivos do pensamento,
A seguir é que o pensamento, sua função auxiliar, trabalha ndo-o refletidamente e documentando-o
estruturava em rígidas formas geométricas as exaustivamente.
idéias apreendidas intuitivamente. Apesar de sua extraordinária capacidade de
Mas sabemos que Spinoza trabalhava com as compreensão, talvez Jung no fim da vida, devido
mãos, polindo lentes de modo esmerado. Aceitou às suas próprias características de intuitivo, não
a ajuda de amigos ricos, porém fêz sempre ques­ pudesse ter escapado inteiramente a um melan­
tão de r_eservar para seu esforço pessoal a com­ cólico sentimento de cansaço, quando media a ar­
plementação do necessário à- própria subsistência. rastada lentidão com que suas descobertas vinham
Este comportamento do filósofo é relatado de or­ sendo assimiladas e quanto eram ainda mal apre­
dinário como coisa secundária, quase nas margens endidas as largas perspectivas que ele abrira para·
da sua biografia. Entretanto o trabalho manual o futuro.
como ajuda para ganhar. o pão será talvez um dos
segredos que contribuíram para aquele homem
"ébrio de Deus", criador de uma filosofia extraor­
dinariamente antecipada, possuir um equilíbrio psí­
quico perfeito e ter realizado de . sua vida e de
sua obra uma harmoniosa totalidade.

O conhecimento da vida e da obra de Jung,


a valorização que ele dá aos fatôres subjetivos,
perrilitem situá-lo do lado dos introvertidos. Mas,
sendo mn homem extraordinariamente bem centra­
do em si mesmo punha em atividade suas quatro
funções. Não er'B um sábio de gabinete. Não des­
·

denhava a vida real. Sabia usar as mãos : lavrava


a terra, rachava lenha, cozinhava, esculpia a pe­
dra. Introduziu a dimensão sentimento na sua obra
científica, dando a importância devida à tonali­ Leituras
dade afetiva que impregna toda experiência vivida .
de verdade. E seu pensamento era decerto pode­ Types Psychologiques - No capítulo 109
roso. Mas a leitura atenta de seus livros, permite deste livro acham-se reunidos os dados funda­
discernir que sua função principal era a intuição. mentais de toda a obra e descrição detalhada dos

68 69
oito tipos da classificação jungueana. O leitor po.­
derá começar por este capítulo para ler depois
os outros, salteadamente, segundo seus interesses.
Em todos, Jung, fiel ao seu método de trabalho,
apresenta enorme documentação confirmadora de
suas içléias, coligida em vários campos da cuJtu ..
ra. É �lUito possível que o problema dos tipos psi.­ Estrutura da Psique
cológicos se afigure fastidioso através das dis.­
cussões escolásticas intermináveis entre os nomi .. Inconsciente Coletivo
nalistas e os realistas ( cap. I ) , mas decerto o lei..
tor apreciará, por exemplo, o cap. III onde irá Poder.-se-á representar a psique como um vas ..
encorttrar a interpretação psicológica da oposição to oceano ( inconsciente ) no qual emerge pequen� -
entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco ilha ( consciente ) .
posta em foco por Nietzche, na arte grega, o� o
cap. VII, que trata das atitudes típicas na estéti.­
CoNSC IENTE ..- Na área do consciente de..
senrolam-se as relações entre conteúdos psíqui .-
ca, tal como foram vistas por W. Worringer na
cos e o ego, que é o centro do consciente. Para
monografia Abstração e Natureza, ponto de par..
tida dos críticos da arte moderna H. Read e M . que qualquer conteúdo psíquico torne.-se conscien..
Brion para a compreensão do antagonismo entre te terá necessariamente de relacionar-se com o
figurativos e abstratos. ego. Os conteúdos, os processos psíquicos que não
O livro contém ainda um glossário que expli.­ entretêm relações com o f!go constituem o domínio
ca os conceitos correspondentes a 58 termos psi.­ imens o do inconsciente. Jung define o ego como um ,
cológicos. Este pequeno dicionário será sempre complexo de elementos numerosos forma ndo, po.­
consultado com proveito por todo estudioso da rém, unidade bastante coesa para transm itir im ..
obra de Jung. pressão de continuidade e de identidade consig o
O volume correspondente, nos Collected mesm a. Dada sua compGsição feita de múltiplos
Works, ( nQ 6 ) , até o presente momento não foi elementos, Jung usa freqüentemente a expressão
publicado. Além da tradução francesa, existem, complexo do ego, em vez de ego, simpl esiilente.
da obra, traduções espanhola e portuguêsa. Bons
"A luz da consciência tem muitos graus de brilho
resümos do tema dos Tipos Psicológicos podem
ser encontrados noutros livros de Jung : e o complexo do ego muitas gradações de força ...
Collected Works 7, 40.-62 INCONSCIENTE - O inconsciente, na psico..
Problêmes de L' Ame Moderne, 1 95.-2 1 6 logia jungueana, compreende inconsciente pessoal
L'homme et ses symboles, 58.-66. e inconsciente coletiv.o.
70
71
Seja qual fôr sua origem, o arquétipo funci�.. nes, marcados nos seus movimentos de expansão
_
na como um . nódulo de concentraçao de energt a . e de declínio por acontecimentos mitológicos sem..
psíquica. Quando esta el!ergia, e � estado po.­ pre idênticos. Ressu rge a idéia com os filósofos
tencial, atualisa..se, toma · forma, entao teremo_s a gregos pré-socráticos Anax imandro e Pitágoras. E
imagem arquetípic a. Não poderemos . �e1lo��n�r Platão estava convicto que as artes e a filosofia
esta imagem de arquétipo, pois o arquebpo e um.. . mumeras vezes já se haviam desenvolvido até
camente uma virtualidade. atingirem seu apogeu para declinarem e esting ui ..
Nunca nos maravilharemos bastante se pen .. rem-se à espera do recomeço de novo ciclo. O
sarmos neste prodigioso fenômeno que é a · for�a.. tema do eterno retorno reaparece na interpretação
ção de imagens interiores. Com_o ela� se conftgu .. da história segundo Vico ( século XVII I ) : a his..
_ tória de todas as nações segue um curso que repe ..
ram às éustas da energia psíqmca, mngue m sabe.
Também não se conhece o como das transforma.. te sempre três fases ..- a idade divina, a idade
ções energéticas das quedas dágua em luz, da luz heróica e a idade humana. Seguem-se inevitáveis
_
·

em calor. Mas a prova da transformaçao de ene�.. crises que conduzem cada nação a ruinas das quais
gia psíquica em imagens nos é dada todas as nm.­ reaparece necessariamente novo ciclo das três
tes nos nossos próprios sonhos, quando persona .. idades.
gens conhecidos ou estranhos surgem das profun.. Diante de N ietzche a visão do eter.no reter..
dezas para desempenhar com�di�s ou dramas cm no apresentou-se terrível. Ele a transportou à
cenário::; mais ou menos fantashcos. existência individual. Todas as percepções, sen ..
timentos, pensamentos, gestos de sua própria vida
A noção de arquétipo, postulando a existên.. estariam inexoravelmente condenado� a repetir-se
cia de uma base psíquica comum a todos os hu .. sem fim. "Qu.e aconteceria, escreveu ele, se um de..
manos permite compreender porque em lugares mônio te dissesse um dia : esta vida, tal como a
e épo�as distantes aparecem temas idênti�os nos vives atualmente será necessário que a revivas
contos de fadas, nos mitos, nos dogmas e ntos das ainda uma vez, e uma quantidade inume rável de
religiões, nas artes, ·na filosofia, nas produções do vezes. É preciso que cada dor e cada alegria , cada
inconsciente de um modo geral - seJa nos sonhos pensamento e cada suspiro voltem a ti, e tudo isso
de pessoas normais, seja em delírios .�e loucos. na mesma seqüência e na mesma ordem e também
Vejamos um exemplo : o tema mtbco do eter.. essa aranha e esse raio de luar por entre as árvo..
no retorno. Vamos encontrá..}o profundame�te en.. res, e também este instante e eu mesmo " . . . A
raizado nas convicções ingênuas de soctedades idéia do eterno retorno apoderot.�;-se do esquizo..
primitivas, seguras de que ocorrerá Auma volta aos frênico Julio, cliente de um hospital psiquiátrico
_
tempos das origens, era de abunda�c � a e de fe.. no Rio de Janeiro. Ele se imagina prisioneiro de
licidade. Vestida em roupagens magntf tcas, a mes .. uma cadeia de fatos e de pensamentos que se re..
ma idéia está incorporada à cosmogonia hindú, produzem e se sucedem sem trégua, regidos pelo
com os seus quatro Yugas ( períodos ) que se des..
que ele chama "movimento de repetição" .
dobram lenta e incessantemente em ciclos pere..
79
78
A anima encerra os atributos fascinantes do "eter­ chos. Ele perderá progressivamente o comando
no feminino" noutras palavras, é o arquétipo do em sua casa.
feminino. A anima apresenta-se personificada, nos so­
O primeiro receptáculo da anima é a mãe, nhos, nos contos de fada, no folclore de todos
e isso faz que aos olhos do filho ela pareça dotada os povos, nos mitos, nas produções artísticas. As
de algo m.ágico. Depois a anima será tran� f�rida formas, belas ou horríveis, de que se reveste são
para a estrela de cinema, a cantora de radio e, numerossíssimas : sereia, mãe-d'água, feiticeira, fa­
sobretudo para a mulher com quem o homem se da, ninfa, animal, súcubo, deusa, mulher. O princí­
relacione �morosamente, provocando os compli­ pio feminino n o homem poderá desenvolver-se,
cados enredamentos do amor e as decepções cau­ diferenciar-se, transpor estágios evolutivos.
sadas pela impossibilidade do objeto real _corres­ Eis um exemplo de anima correspondente à
ponder plenamente à imagem oriunda do Incons­ etapa em que fortes componentes sexuais acham­
ciente. Aliás essa transferência nem sempre se pro­ se . mesclados a elementos românticos e estéticos.
cessa de modo satisfatório. A retirada da ima­ Fala, em linguagem enfática, a jovem tocadora de
gem da anim a de seu primeiro receptácul o �onst�­ cinor pintada na parede de um túmulo pagão·, lu­
tue uma etapa muito importante na evoluçao psi­ gar de refúgio do monge Pafnucio quando se
quica do homem. Se não se realiza, a anim a é debatia no seu doido amor por Thais : "Para onde
transposta, sob a forma da imagem da mãe, para pensas me fugir, insensato? Tu encontrarás a
a namorada, a esposa ou a amante. O home m es­ minha imagem no desabrochar das flôres e no do­
naire das palmeiras, no vôo das pombas, nos sal­
perará que a mulher amada assuma o papel prote­
tos das gazelas, na fuga ondulosa dos regatos,
tor de mãe, o que o leva a modos de comporta­ nas dormentes claridades da lua. E, . se fe.chares
mento e a exigências pueris gravemente pertur­ os olhos, a encontrarás em ti mesmo. ( . . . ) Co­
badoras das relações entre os dois. nheces-me bem, Pafnucio. Por que não me re­
Na primeira metade da vida a anima projet� ­ co11:_heceste? Sou uma das inúmeras encarnações de
se de preferência no exterior, sobre seres reais, Thais. ( . . . ) Decerto ouviste dizer que Thais vi­
estando sempre presente nas problemáticas do veu outrora em Esparta sob o nome de Helena.
amor, suas ilusões e desilusões. Mas, na segunda Em Tebas Hecatompila, ela teve uma outra exis­
metade da existência, quando o jogo dessas pro­ tência. Donde vem tua surpresa? Era certo que,
jeções vai se esgotando é a mulher dentro do ho­ fosses aonde fosses, encontrarias Thais" . ( THAIS
mem, durante anos reprimida ( porque no con­ ·- Anatole France, tradução brasileira de Sodré
senso coletivo um homem nunca deve permitir Viana
. ).
que o sentimento influa na sua conduta �: quem Exemplo de anima representativa de estágio
penetra na sua vida sem ser chamada. O homem evolutivo superior, misteriosa encarnação de espi­
forte" estará então freqüentemente amuado, tor­ ritualidade e sabedoria, é Mona Lisa. Dmitri Me­
nar-se-à hipersusceptível, surgirão intempestivas rejkowski, no livro O ROMANCE DE LEONARDO DA
mudanças de humor, explosões emocionais, capri- VI N C I ( tradução ·brasileira de Breno da Silveira )

94 95
Além da função compensadora, outra função será dado até que sete tempos passem sobre ele.
importante do sonho é a função prospectiva. Des­ Doze meses mais tarde Nabucodonozor enlouque­
de logo fique claro que esta função não assegura cia e era banido de sua cidade. Passou a comer
ao sonho atributos de profecias infalíveis. Jung erva com os bois, seu corpo foi molhado pelo or­
adverte : "seria injustificado qualificá-los de pro­ valho, seus cabelos cresceram como as penas das
féticos ( aos sonhos prospectivas ) , pois, no fun­ águias e suas unhas como as garras de aves ( Da­
do. êles são tão proféticos quanto um prognóstico niel, IV. 1 6-30 ) .
médico ou meteorológico". O que acontece é que No sonho de Nabucodonosor pode-se obser­
longos processos subterrâneos precedem sempre var a função compensadora exercendo-se em re­
a ecl�são das grandes crises. O inconsciente dis­ lação às idéias de grandeza do rei e a função
põe de dados mais abundantes que o consciente : prospectiva revelando que a situação era dema­
impressões subliminares, sensações, sentimentos, siado grave para ser reequilibrada.
pensamentos, ainda não apreendidos pelo cons­ Não só as doenças ps:quicas, mas também as
ciente. E é da conjunção de todos esses elementos doenças somáticas refletem-se nos sonhos. Scher­
que o sonho se estrutura. Assim, não será exa­ ner cita o caso de um doente com pneumonia que
gero admitir que o sonho se acha muitas vezes, sonhou ver uma .. fornalha cheia de chamas sopra­
.. do ponto de vista prognóstico, numa situação bem da por forte ventania. O processo inflamatório é
mais favorável q.!le o consciente" . representado pelo fogo e a respiração pelo vento.
O s antigos sabiam que poderiam encontrar CorpÓ e psique, sendo inextricáveis um do outrot
nos sonhos antecipações do futuro. O �onho de o sonho dirá, na sua linguagem simbólica, quan­
Nabucodonosor, interpretado com extraordinária do a vida estiver em· perigo. Jung narra o caso de
agudeza por Daniel, é um belo exemplo. uma jovem que sonhou com um cavalo que atra­
Nabticodonosor, rei da Babilônia, estava em vessava a galope o apartamento onde . ela residia,
pleno fastígio de sua glória quando viu em sonho num quarto andar, e lançava-se pela janela espa­
uma enorme árvore cuja copa se elevava até o céu : tifando-se no solo. Este sonho. que se seguia a
setis amplos ramos, carregados de frutos, abriga­ outros semelhantes, permitiu a Jung confirmar o
vam pássaros e davam sombra aos animais dos diagnóstico de uma grave doença neurológica.
campos. Então desceu do céu um santo e disse : Pouco tempo depois a jovem morria. A vida ani­
abatei a árvore e' cortai seus ramos, sacudi a fo­ mal, corporal, representada pelo cavalo, galopava
lhagem e d ispersai os frutos; que os animais fujam para a destruição. Também, sem que exista qual­
de sua sombra e os pássaros àbandonem seus ra­ quer doença física imagens referentes ao corpo
mos. Mas deixai na terra o cepo onde se prendem freqüentemente aparecem nos sonhos, traduzindo
as raízes e amarrai-o com cadeias de ferro e de problemas psíquicos em termos somáticos.
bronze por entre a erva dos campos. Que este cep·o Outro tipo de sonho é o son h o reativo. Acon­
seja molhado pelo orvalho do céu e que partilhe da tecimentos traumáticos são . revividos no sonho,
erva da terra com os animais. Seu coração de ho­ tais como viol entos choques de guerra, incêndios.
mem lhe. será retirado e um coração de animal lhe inundações. Essas repetições processam-se d e ma-

108 1 09
imagem do gato preto que não sofre nenhuma me ­ disp õem no cena no do sonh o a expr
essã o do es­
tamorfose. Acresce que o gato preto dorme nos forço insti ntivo do incon scien te para reap
braços da sonhadora. Também dorme o cão, ani­ roxim ar
valo res que se havi am sepa rado dema
mal de Hécate, deusa mãe no seu aspecto noturno is. I n feliz ­
m ente para a sonh ador a este es forço acha
e· sinistro. Isto parece signi ficar que forças instin­ -se lon­
g e de sua m eta. Por isso m esmo trata
-se de um
tivas opostas do mundo feminino subterrâneo ain­ sonh o bast ante repre senta tivo da situa
ção psíq ui­
da não atingiram condições de · se de frontarem .
ca da mulh er conte mpor ânea aind a e m
Vendo o cão, o gato preto poderá mesmo assus­ cami nho
para a comp letaç ão e integ ração de sua
tar-se e fugir, isto é, escapar autônomo ao co�t �o­ perso na­
lidad e.
le da personalidade consciente. A jovem dtvma
embora tenha acariciado o cão, contacto que o
poderia ter despertado, aceita que se a fastem, pois
não chegou ainda o momento do encontro de opos­
tos extremos, próprio das etapas ulteriores do pro­
cesso de individuação. Este processo parece estar
desdobrando-se, na sonhadora, em níveis bastan­
te desiguais : terno encontro com a j ovem divina
de uma parte, e de outra, animais etônicos que
dormem profundamente. A última cena, passan­
do-se numa capela, sublinha o caráter relig ioso
dos fenômenos em curso. Entretanto, a capel a .
embora cristã, aparece sem seus altares e sem
suas imagens. O lugar é cristão, mas a divindade
presente veste a forma pag ã da Koré.
Não seria suficiente assinalar neste sonho a
presenÇa de elementos pagãos e interpretá-los c��o Leituras.
sobrevivências de u� mundo mais ant_igo, especte
de achados arqueol<)gicos. A análise das produ­ C. G. - Jung o HOMEM À DESCOBERTA
.-

ções do inconsciente, pelo método jungue�no, DA SUA ALMA. Grande parte deste livro é dedi­
trouxe a revelação de que os elementos arcatcos cado ao estudo do sonho ( da pág . 287 à pág .
não só permanecem vivos e atuantes, mas que es­ 502 ) .
tão envolvidos num contínuo processo de elabo­
C. G. Jung L ' HOMME ET SES SYMBOLES .
ração através do tempo. Assim, não interpretare­
.-

S. Freud LA INTERPRETACION DE LOS


mos a presença da Koré e dos animais dentr� da
,.

SUENOS.
igreja cristã como meros vestígios do p agamsmo
R. de Becker LES MACHIN ATIONS DE LA
'

inscritos nos estratos p ro fu n dos da psique. Ve­


,_

N UIT - livro de leitura acessív el , que reune vas­


mos nesses s:mbolos e na maneira como eles se
ta docum entaçã o sôbre o sonho .

1 16 1 17
lheres. ( Tudo quanto a mulher ressentida pode Iniciar-se na arte de fiar significaria siinbo­
arquitetar como vingança foi modernamente fo­ lic;amente iniciar-se na vida sexual. A velha feiti­
ceira instruiria a princesa. Mas esta iniciação de­
calizado pelo dramaturgo F. Durrematt nas pe-
. sencadeia o castigo. O conto reflete, portanto,
ças A Visita da Velha Senhora e Os Físicos ) . Ou­
uma condição coletiva onde não só são negados
tra fada atenua a maldição, transformando a mor­ à mulher direitos elementares em relação à sua
te em sono. Sono e Morte ,_ Hypnos e Thana­ vida instintiva, porém mesmo revela conexões en­
tos ,_ eram venerados como deuses irmãos. O tre a sexualidade feminina, o mal e o castigo. bem
sono é uma morte transitória e a morte é o sono características da civilização patriarcal e cristã.
eterno. Na interpretação do conto, a morte seria Esta situação coletiva causa estagnação no desen­
a completa repressão do conteúdo do inconsciente volvimento da psique da mulher e produz reações
representado pela princesa, enquanto o sono du­ agressivas forjadas pela sua componente mascu­
rante um século indica que um longo período de lina, reações que no conto se exprimem pela sebe
repressão decorrerá ainda antes que este conteú­ de espinhos.
do possa atingir a consciência. Que aspecto da Cem anos mais tarde, chega o príncipe c
natureza feminina tem sido mais reprimido na qiante dêle os espinhos abrem caminho. Não é
nossa civilização cristã? Sem dúvida o da sexuali­ necessário sustentar luta contra quaisquer obstá­
dade. Muito mais que sobre o homem, pesam so­ culos. Daí a cem anos, num futuro distante, a si­
bre a mulher as sanções que obrigam a repressão tuação coletiva refletida pelo conto mudará.
do instinto sexual. Note-se que a heroína do con.:. Do pont.o de vista da psicologia masculina o
to �dormece na data em que completa 1 5 anos, conto nos revela que o príncipe, decidindo-se a ir
marco na vida de toda jovem indicativo de que em busca da bela adormecida, apesar dos conse­
ela se tornou apta para a .procriação. lhos contrários, rompe os laços familiares que o
No dia de seu aniversário a princesa desco.. prendiam. Chegou o tempo de libertar a cativa, a
bre a velha fiandeira cuja existência havia sido mulher desconhecida. do sono em que a Mãe Ter­
esquecida ( tal como a 1 31). fada com quem se iden­ rível a· mantinha prisioneira. Assim fazendo êle
tifica ) , motivo porque sua roca não fora destruída está libertando sua própria contra-parte feminina,
segundo as ordens do rei. E àpenas segura o · fuso, o complemento de sua personalidade. Unindo-se à
fere o dedo. O ato de fiar está estreitamente vin­ mulher que êle libertou, o herói cumpre o requi­
culado à feminilidade. g atributo das deusas mães sito necessário para completar sua personalidade
que tecem a trama da vida, o destino, que sem e estabelecer seu próprio reino. ( Na interpreta­
cessar agrupam e organizam os elementos da na­ ção deste conto, baseamo-nos principalmente em
tureza. O fuso, pela sua fo�ma, tem caracter.ís­ notas de conferências da dra. M . L. von Franz,
ticas fálicas evidentes. Está sempre associado à feitas no Instituto C. G. Jung em Zurique ) . Dra .
roca como parte indispensável da atividade femi­ M . L . von Franz depois de- estudar durante vá-
nina de tecer novas vidas, tecer "os tecidos" do . rios anos os contos de fada das mais distantes pro­
corpo ( Neumann ) . veniências, chegou à conclusão de que todos es-

124 125
em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum Como toda função, a religiosidade é suscep ..
curou�se realmente sem recobrar a atitude reli� tível de ser desenvolvida, cultivada e aprofundada,
giosa que lhe fosse própria. Isto, está claro, não e poderá também ser negligenciada, deturpada
depende absolutamente de adesão a um credo ou reprimida.
particular ou de tornar�se membro de uma igreja". Toda função busca sempre maneiras de ex�
Jung usa a palavra religião no sentido de p ressão, encontra a todo preço canais para dar
religio ( re e ligare ) , tornar a ligar. Religar o cons� escoamento a sua carga energética. Assim é que,
ciente com certos poderosos fatores do inconsciente em lugar das imagens divinas antigas, outros q,b�
a fim de que sejam tomados em atenta considera� jetos passaram a ser reverenciados.
ção. Estes fatôres caracterizam�se por suas for� William James fez a observação pertinente de
tissimas cargas energéticas e intenso dinamismo. que os cientistas, embora concedessem importân�
Aqueles que os defrontam falam de uma emoção cia primordial aos fatos objetivos não haviam por
impossível de ser descrita, de um sentimento de isso perdido o sentimento religioso. " Essa impor�
mistério que faz estremecer ( mysterium tremen� tância é em si mesma quase religiosa. Nosso tem..
dum ) . Para designar esta vivência R. Otto criou peramento científico é devoto".
o termo; numinoso, expeTiência do numinoso, ex� O século XX conhece grandes ídolos : raça,
pressões que Jung adotou. sexo, estado, partido, dinheiro, máquina . . .
Todas as religiões originam..se basicamente A partir de Léger a máquina tornou�se um
de encontros. com esses fatôres dinâmicos do in� objeto fascinante para pintores e desenhistas. O
consciente, seja em sonhos, visões ou extases. Es� automóvel, sem dúvida, é um ídolo. "Basta visitar
ses fatôres apresentam�se encarnados em imagens o salão anual do automóvel para reconhecer alí
dos mais diversos aspectos : deuses, demônios, cs� uma manifestação religiosa profundamente ritua�
píritos. lizada. O culto do veículo sagrado tem seus fieis
Jung reconhece "todos os deuses possíveis
·

e seus iniciados" ( A . Greeley ) . No seu famoso


e imagináveis, sob a condição única de que sejam
relatório de 1 956. N. Krouchtcev escreveu que o
ou tenham sido atuantes no psiquismo do homem" . culto da personalidade faz "de tal ou qual dirigente
Não importa que "todas as afirmações reli� um herói, um taumaturgo" . As procissões condu�
giosas sejam impossibilidades físicas". O psicólo� zindo enormes cartazes com retratos de dirigentes
go que estuda os fenômenos religiosos terá, preli� políticos, o culto dos mortos, as mais pomposas ce�
minarmente, de desembaraçar�se "do estranho pre� rimonias fúnebres jamais vistas constituem, nos
conceito que somente considera verdadeiro aquilo esta�os ateus, impressionantes manifestações da
que se apresenta ou se apresentou na forma de fünção religiosa.
um dado físico.'' . . . "o critério de uma verdade Uma série de deuses e deusas vem desfilando
não é apenas seu caráter físico : há também ver� ante nossos olhos. Primeiro as estrelas de cine­
dades psíquicas que, do ponto de vista físico, não ma. "Essas estrelas são quase deuses e deusas e a
podem ser explicadas ou demonstradas, nem tão mais perfeita dentre elas, Greta Garb�. recebeu
pouco recusadas" ( Jung ) . a denominação de divina. Encarnam grandes ar�
1 42 14.3
quétipos elementares : a paixão do amor ( Valenti�
analisados psicologicamente, ele pergunta " s e não
no, Garbo ) , o apelo fatal do sexo ( as vamps. os
seria muito mais perigoso que os símbolos cristãos
belos tenebrosos ) a virgindade da eterna jovem
se tornassem inacessíveis à reflexão, sendo bani­

divina ( Mary Pickford ) ", escreve o diretor d e


dos para uma esfera de sacrossanta ininteligibili,.
pesquisas do CNRS, Edgar Morin. Outros Olím�
dade. Facilmente eles se afastariam tanto de :O ós
picos são os grandes do foot-ball, os Beatles, os
que sua irracionalidade se transformaria em ab�
cantores de rádio. Eles levam ao delírio imensas
surda insensatez. A fé é um. carisma não concedi�
multidões. A carta de um fan ao ídolo francês da
do a todos, mas o homem possui o dom do pensa�
canção Johnny Halliday resume tudo : "Tu és um
m enta que lhe permite lutar em busca das coisas
deus, tu és um demônio. tu és aquele que nós espe�
mais altas " .
rávamos! "
.Seu ponto de partida é a consideração d e que
Uma das mais importantes manifestações da a Trindade . símbolo central do cristianismo , cer�
função religiosa no mundo moderno parece�nos tamente encerra significação psicológica viva. Do
ser o crescente consumo do LSD. O estudo do contrário já teria sido relagado ao esquecimento
assunto permite admitir que aqueles que recor� como um anacronismo.
rem ao LSD o façam mais na tentativa de desco�
A concepção trinitária da divindade não é
brir novas dimensões na realidade do que de sim� peculiar ao cristianismo. Jung mostra que pa rale�
plesmente fugir ao cotidiano. Os relatórios de e xpe
­
los pre-cristãos pod em ser encontrados na Babi­
riências com o LSD estão cheios de descrições de lónia, no Egito, na Grécia, i ndicando que a trini­
vivências muito semelhantes àquelas experimenta� tariedade é um arquétipo que tem evoluído no
das em estados místicos. E o homem moderno pa­ curso dos séculos.
rece faminto dessas experiências. O desenvolvimento da imagem de Deus de
Uma para Três Pessoas, dentro do cristianismo,
A linguagem das religiões é feita de símbolos . é importante segundo Jung para a compreensão
E esses símbolos, ao longo dos- tempos, sem duvi­ do homem ocidental. Este desenvolvimento corres­
da têm atuado profundamente sobre a vida dos ponde a três etapas evolutivas da psique.
homens. Merecem a <l;tenção do psicólogo. Jung O criador. o Pai, representa essencialmente a
interessou-se pelos símbolos de todas as religiões unidade original. Deus. o mundo e o homem for­
da humanidade, tanto do ocidente quanto do orien� mam um todo, intocado por qualquer reflexãp
te. Mas ocupou-se especialmente dos símbolos crítica. É o mundo do homem no seu estado in­
cristãos, pois quer aceitemos ou não o cristianis� -fantil.
mo como religião, a verdade é que há dois mil Pouco a pouco tornam-se perceptíveis à cons­
anos vivemos mergulhados na "civilização cristã" . ciência do homem as contradições, o bem e o mal.
dentro do mundo do Pai . A criação apresenta-se.
Em 1948 Jung publicou um · longo estudo so�
bre o ·símbolo da T rindade Referindo-se àqueles aos olhos do homem, imperfeita. Surge então o
Filho, o salvador. para redimir o mundo do mal.
.

que não admitem que os símbolos cristãos sejam


A coroação da obra do Filho é a revelação ao ho-
144
145
corporal. Santo Agostinho toma a terra como sím..­
mem · do segredo do Espírito Santo ..- atividade bolo da Virgem ( .. A verdade surgiu da terra por..­
viva comum ao Pai e ao Filho. O Espírito Santo que Deus nasceu da Virgem" ) . E nas ladainhas
permanecerá junto aos discípulos e os iluminará. Ela é invocada com as qualificações de hortus con..­
Deus chega para bem perto do homem. A reve..­ clusos e de jardim fechado. Note..se ao mesmo
lação deste terceiro elemento restaura o Um sem tempo que, no cristianismo, a idéia do mal acha..-se
desfazer a Trindade. estreitamente correlacionada à matéria ( terra ) e
"A Trindade é indubitavelmente uma forma à mulher. Na matéria prima dos filósofos da na..­
mais alta do conceito de Deus que a mera unida..­ tureza medievais está presente uma qualidade ve..­
de, pois , corresponde a um nível de reflexão su..­ nenosa que representa o princípio do mal.
perior da consciência do homem" ( Jung ) . · No nível consciente o cristianismo venera na
Fatôres ent atividade num- dado momento do Virgem, a imaculada, a luz puríssima. Ela não
desenvolvimento da psique foram configurados :�em sombra. Entretanto quem examinar a icorio..­
segundo um molde típico - o arquétipo trinitário. grafia mariana ficará surpreendido de encontrar
Entretanto a exploração em profundeza do tantas Virgens negras e tão devotamente honradas.
inconsciente ensina que os simbolos ternários são A padroeira do Brasil N. S. Aparecida, é uma
símbolos incompletos. A totalidade · exprime-se Virgem negra. Poder..-se-à argumentar que no
em símbolos quaternários. Brasil é muito grande a representação da raça ne..­
O que falta para completar a Trindade? gra. Mas o mesmo não se poderá dizer da Suiça
As Três Pessoas Divinas são perfeitas. O onde a bela basílica barroca de Einsiedeln é de..­
mal está excluido do conceito cristão de Deus que dicada a uma Nossa Senhora negra. A polonia tem
é, por definição, o summum bonum; também está sua virgem negra. Nossa Senhora · de Smolensk
.
excluído deste conceito o princípio feminino, po1s ( Rússia ) é negra. Na cripta da catedral de Char..­
a Trindade tem carater exclusivamente masculino. tres, distante poucos kilômetros de Paris, é vene..­
( Jung desenvolve longas considerações sobre este rada Notre Dame du . Pilier, negra. E o mesmo
tema não só no estudo referente à Trindade, mas acontece em muitas cidades da França : Marseille
também no livro AION e em RESPOSTA A JOB ) · ( abadia Saint Victor ) , Le Puy ( catedral Notre
O inconsciente não permanece estático . As­ Dame ) , Chermont - Ferrand ( igreja Notre Da­
piração ·crescente no seio da igreja católica, em me du Port) , Vichy ( igreja Saint Blaise ) , Mou..­
1 950, foi promulgado o dogma da Assunção de lins ( catedral, triptico )
� Mauriac ( igreja Notre
Maria. Segundo Jung este acontecimento signifi­ Dame des Miracles ) , Rocamadour ( capela da
ca satisfação a exigências do arquétipo aa qua..­ Virgem ) . :e como se o inconsciente projetasse so..­
ternidade, muito embora o dogma 'não implique bre essas imagens cor de terra o aspecto telúrico
que a Virgem haja atingido o status de deusa. da Virgem ou seja a sombra do princípio femini..-
Observe-se que enquanto as Três Pessoas no .
Divinas são espíritos, são seres imponderáveis, Cabe aqui sugerir ao leitor que reflita um
a Virgem é freqüentemente associada à terra, ao momento sobre a crescente devoção à Iemanjá no

146 147
A Obra de Arte e o Artista
A . psicologia analítica não pretende nunca
opinar sobre o valor estético das obras de arte
nem explicar o fenômeno arte. Estas áreas per-­
tencem aos crtíicos de arte. Seus pronunciamentos
limitam-se a pesquisas concernentes aos processos
da atividade criadora e ao estudo psicológico da
estrutura da produção artística. Sua contribuição
maior será a decifração das imagens simbólicas
que tomam forma na obra de arte, trazendo luz
sobre as significações que encerram e que exce-­
dem as possibilidades comuns de compreensão da
época em que adquiriram vida.

Na perspectiva da análise psicológica, Jung


distingue dois processos diferentes na criação de
obras literárias : o ·processo psicológico e o visio-­
nário.
a ) As obras resultantes da primeira manei-­
ra de criar são compreend;das por seus leitores
sem maiores dificuldades. Os temas em que se
baseiam nos são conhecidos - as paixões, os so-­
frimentos do homem, seus feitos, as tragédias de
seu destino. Pertencem a este tipo o romance de
amor, o romance soCial, a poesia lírica, a poesia
épica, comédias e tragédias. Poderemos acompa-­
nhar cheios de emoção · as peripécias que se desen--

155
literárias. Herbert Kühn distingue a arte dos sen­
ta teima em perguntar : quem ê Mira - Celi? E tidos e a arte da imaginação. A arte dos sentidos
o poeta : inspira-se na natureza exterior, no mundo que
"Ora pareces marcha nupcial. és, no espan� nos atinge através dos sentidos. A arte da imagi-­
to, elegia Ora és sacerdotisa, musa, louca, pas� nação exprime fantasias, experiências internas do
tôra ou apenas ave". artista, que as apresenta de maneira irrealista,
Mira - Celi é múltipla e esquiva como toda onírica e abstrata.
imagem surgida das profundas regiões do incons�
ciente. Do ponto de vista jungueano a psicologia
No Livro de Sonetos e, muito mais ainda, em pessoal do artista poderá esclarecer certas ca�
Invenção de Orfeu, o mundo do poeta é um mun� racterísticas de sua obra, mas não a explicará. A
do de imagens arquetípicas. Essas imagens não se problemática individual, diz Jung, tem tanta re�
. deixam aprisionar dentro do sistema do pensa­ lação com a obra de arte quanto o solo com a
mento lógico, por isso a linguagem que busca ex­ planta que aí germina. Certas particularidades da
primi-las prescinde muitas vezes de arranjos sin� planta serão evidentemente melhor compreendidas
táxicos. E as palavras; em seus sons próprios, pro� se conhecermos as condições específicas de seu
damam-se independentes, valem por si mesmas. habitat, entretanto ninguém pr-e tende que esses
Os críticos falam em poesia "hermética" . dados sejam suficientes para o conhecimento da
. "Era um cavalo todo feito em chamas I alas­ planta naquilo que há nela de essencial. " A plan­
trado de ínsânias esbraseadas; I pelas tardes sem
ta não é apenas um produto do terreno. É tam­
te�npo êle surgia 1 e lia a mesma página que eu lia. bém um processo fechado, vivo e ·criador cuja
essência nada tem a ver com a natureza do terre­
Depois lambia os signos e assoprava I a luz
no." Jung compara igualmente a obra de arte à
intermitente, destronada, I então a escuridão co­
criança que se desenvolve no seio materno.
bria o rei I Nabucodonosor que eu ressonhei I
Os conflitos pessoais do artista, sua proble­
Bem se sabia que êle não sabia I a lembrança do
mática emoci01'1.al, não são decisivos para o conhe­
sonho subsistido I e transformado em musas su­
cimento de sua obra. Lançarão luz sobre um ou
blevadas.
outro detalhe, sobre a atração para este ou aque­
Bem se sabia : a noite que o cobria / era a
le tema. A autêntica obra de arte, porém, é uma
insânia do rei já transformado / no cavalo de "produção impessoal" . O artista é "um homem
fogo que o seguia." ( Invenção de Orfeu ) . coletivo que exprime a àlma inconsciente e ativa
Para receber esta poesia, o leitor terá de re­ da humanidade" .
nunciar aos conceitos e deixar-se penetrar pelos No mistério do ato criador, o artista mergu­
símbolos. lha até as funduras imensas do inconsciente. Ele
dá forma e traduz na linguagem de seu tempo
No que diz respeito às artes plásticas, o crí­ as intuições primordiais e, assim fazendo, torna
tico contemporâneo Herbert Kühn propõe classi­ acessíveis a todos as fontes profundas da vida.
fiCação paralela à de Jung concernente · às obras
161
1 60
Educação de Jovens
Educação de Adultos
As mais belas páginas que Jung escreveu so­
bre a alma da criança estão nos dois primeiros ca­
pítulos de sua biografia.
Ele recorda suas primeiras tomadas de cons­
ciência das sensações - da luz, dos odores. Seus
deslumbramentos ante a natureza e também suas
angústias imprecisas, que decerto serão semelhan­
tes aos deslumbramentos e às angústi�s de outras
crianças. "Eu percebia cada vez mais a beleza e a
claridade do dia quando a luz dourada do sol
brincava através das folhagens verdes. Mas tinha
o pressentimento da existência de um mundo de
sombras, cheio de interrogações angustiantes, ao
qual eu não poderia escapar... Desse mundo de
sombras lhe veio, entre os três e os quatro anos de
idade, um sonho extraordinário : num subterrâ­
neo, sobre trono de ouro, "erguia-se um objeto,
forma gigantesca que atingia quase o teto ... "Este
objeto era estranhamente constituído : feito de
pele e de carne viva, trazia na parte superior es­
pécie de cabeça de forma cônica, sem face nem
cabelos. Nó alto, um olho único, imóvel, olhava
para cima" . . Jung pensou neste sonho "durante
,
toda a sua vida . e só "dezenas de anos depois''
compreendeu que aquela imagem onírica era um

171
demonstrando que os fenômenos psíquicos incons­ tologia. Seus estudos sobre as associações verbais
cientes, mesmo os mais estravagantes e absurdos, e OS livros PSICOLOGIA DA DEM ÊNCIA PRECOCE E O
estavam sujeitos às leis da causalidade. CONTEÚDO DA S PSICOSES, mostram que, mesmo nos
Fiel ao clima de opinião de sua época, distúrbios psíquicos mais graves, é possível deci­
Freud era um rigoroso determinista. Na INTRO­ frar o sentido de sintomas de aparência descone­
DUÇÃO À PSICANÁLISE, escreve : "quebrar o de­ xa, encontrando-lhes elos causais.
tenninismo, mesmo num só ponto, transtornaria Mas observou também a ocorrência de fenô­
toda a concepção científica do mundo". De fato, menos outros, de curiosos paralelismos, que não
a física moderna bouleversou a concepção do podiam ser encadeados causalmente. ·Seu método
mundo construída pela física clássica, concepção de trabalho, desde as pesquisas sobre associações
que parecià absolutamente i'nabalável até os fips feitas na j uventude ( capítulo 2 ) , sempre foi nun­
do século XIX. O in divi sível átomo revelara-se ca despresar qualquer fato .q:ue acontecesse, ain­
divisível. Abriam-se brechas no determinismo : da aqueles que contradiziam regras estabelecidas
nem sempre os átomos comportavam-se de acordo ou que se afiguravam aos demais desprovidos de
com as leis causais. Certos fenômenos, no campo importância. Pareceu-lhe que seria preciso tomar
da microfísica, passaram a ser estudados à luz em consideração certos fenômenos, inegáveis, que,
de leis estatísticas, ou seja, de leis de probabili­ entretanto, escapavam ao determinismo : a ) coin­
dade. Einstein provou que matéria e energia são cidência de estados psíquicos e de acontecimentos
equivalentes. Verificou-se que a luz apresenta si­ físicos sem relações causais entre si, tais como
multâneamente os caracteres de onda e de cor- sonhos, visões, premonições, que correspondem a
. púsculo. O tempo deixou de ser uma grandeza fatos ocorridos na realidade externa; b ) a ocor­
absoluta, póís quando se tra�a de medir grandes rência de pensamentos, sonhos e estados psíqui­
velocidades o tempo cresce com a velocidade. O cos semelhantes, ao mesmo tempo, em lugares di­
tempo é relativo. Perplexos, retraímo-nos diante ferentes.
desses conceitos que pertúrbam nossa seguran­
Muitos já tiveram experiências desse gêne­
ça. Não queremos ver além das fronteiras do mun­
ro ou as ouviram de pessoas dignas de crédito.
do estável de Galileu e de Newton. Compreende­
se a atitude de recuo : o abalo das próprias bases Mas as deixaram de lado, procurando mesmo es­
que serviam de ponto de apoio às operações do quecê..las, pelo mal estar que lhes causava sua es..
tranheza ou devido aos preconceitos científicos
pensamento provocou deslocaméntos imprevistos a
da época. Nenhum desses obstáculos deteve Jung.
longa distância. Opostos até e·ntão irredutjveis dei­
xavam de ser opostos. Arguméntos lançados du­ "Minha preocupação com a psicologia dos
rante séculos contra determinados alvos não mais processos do inconsciente há muito tempo obri�
os atingiam porque os próprios alvos se tinham gou-me a procurar - ao lado da causalidade -
dissolvido ou mudado completamente de posição. um outro princípio de explicação, porque o prin­
Tanto quanto Freu d J ung investigou a cau­
, cípio de causalidade pareceu..me inadequado para
salidade nos campos da psicologia e da psicopa- explicar certos fenômenos surpreendentes da psi..

184 1 85
cologia do inconsciente. Verifiquei que há parale­ nos de sincronicidade deu a Jung a impressão de
lismos psíquicos que não podem ser relacionados que, rio fundo do inconsciente dessas pessoas, um
uns aos · outros causalmente, mas devem estar em arquétipo se tivesse ativado e se manifestasse si.­
conexão por um outro moç:lo diferente de desdo­ multâneamente através de acontecimentos interio.­
bramento dos acontecimentos." res e exteriores.
Jung criou o termo sincronicidade para de­
signar "a coincidência no tempo de dois ou mais A exploração em profundeza do inccnscien­
acontecimentos não relacionados causalmente, mas te levou ao curioso achado de que os mais uni·.
tendo significação idêntica ou similar, em contras­ versais símbolos do sei[ ( si mesmo ) pertellcem
te com o sincronismo que simplesmente indica a ao mundo mineral. São êles a pedra, - seja a pedra
ocorrência simultânea de dois acontecimentos" . A preciosa ou não preciosa, e o cristal, substância
sincronicidade, portanto, caracteriza-se pela ocor­ de estrutura geométrica exata por excelência. Co.­
rência de coincidências significativas. Vejamos menta M . L . Von Franz : "O fato de que o sím�
um exemplo citado por Jung. Trata-se de uma bolo mais elevado e mais freqüente do self per.­
mulher, jovem e culta, cuja análise não progredia tença à matéria inorgânica abre novo campo à
devido a seu excessivo racionalismo. "Um dia cu investigação e à especulação. Rdiro-me às rela­
estava sentado diante dela, de costas para a ja- ções ainda desconhecidas entre aquilo que cha­
. nela, ouvindo sua habitual torrente de retórica. mamos psique inconsciente e aquilo que chama.­
Ela tivera, na noite anterior, um sonho impres­ mos matéria."
sionante, no qual alguém lhe dava um escarave­ Se o psicólogo, nas suas investigações atra­
lho de ouro, jóia de alto preço . Enquanto narra­ vés das camadas mais profundas da psique, en­
va-me este sonho, ouvi leves batidas no vidro da contra a matéria, por sua ·vez o físico, nas suas
janela. Voltei-me e vi um grande inseto batendo pesquisas mais finas sobre a matéria, encontra a
de encontro à janela, no evidente esforço para psique.
penetrar na sala escura. Isso me pareceu estra­ Físicos como Eddington; J. J eans e outros
nho . Abri a janela e apanhei o inseto no ar. Era grandes aceitam que a matéria esteja impregnada
um besouro das rosas ( cetonia aurata ) cuja cor de um psiquismo elementar. O físico Alfred Her­
verde dourada aproxima-se de perto da cor do es­ rmann diz que a natureza do eléctron parece am­
caravelho dourado. Entreguei o inseto a minha bígua, meio matéria, meio psique. E o pensador
paciente, dizendo : "Aqui está seu escaravelho" . católico Teilhard de Chardin concebe a matéria
Esta experiência abriu a desejada brecha no seu animada interiormente de espiritualidade, o que
racionalismo e quebrou o gelo de sua resistência é tanto mais significativo, pois o cristianismo até
intelectual. O tratamento pôde então continuar então separava de maneira irredutível a matéria
com resultados satisfatórios". do espírito.
A conseqüência extrema da posiçã� de psi­
O estudo dos sonhos ou do estado psíquico cólogos, de físicos e de biologistas, será admitir
de pessoas com as quais haviam ocorrido fenôme- que "a psique e a matéria sejam um mesmo fe-
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