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Red stack attack!

Algoritmos,
capital e a automação do comum
Posted on November 12, 2014
(Tradução minha, autorizada pela autora. Original:
https://www.academia.edu/8430149/Red_Stack_Attack_Algorithms_Capital_and_the_Au
tomation_of_the_Common)

Red stack attack! Algoritmos, capital e a automação do comum

Tiziana Terranova

Algoritmos, capital e automação

Olhando para os algoritmos sob a perspectiva da construção de uma nova racionalidade


política em torno do conceito de “comum” significa ocupar-se das maneiras como os
algoritmos estão profundamente implicados nas mudanças profundas dos processos de
automação. A automação é descrita por Marx como um processo de absorção pela
máquina das “forças produtivas gerais do cérebro social, tais como o saber e as
habilidades” (Marx 1973, 694), as quais, assim, aparecem como um atributo do capital,
em vez de produtor do trabalho social. Observando a história da implicação entre capital
e tecnologia, fica clara a forma como a automação evoluir para além do modelo
termodinâmico das primeiras linhas de montagem, rumo ao modelo das redes
eletro-computacioniais do capitalismo contemporâneo. É possível, portanto,
compreender os algoritmos como parte de uma linha genealógica que, como coloca
Marx no “Fragmento sobres as máquinas”, começando com a adoção da tecnologia
pelo capitalismo como capital fixo, empurra-a através de inúmeras metamorfoses “cuja
das quais a última é a máquina ou, melhor dizendo, um sistema automático da
maquinaria (…) posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se
movimenta por si mesma” (Marx). O autômato industrial era claramente termodinâmico
e deu lugar a um sistema “consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais,
de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros
conscientes dele” (Marx). O autômato digital, contudo, é eletro-computacional, coloca a
“alma para trabalhar” e envolve primariamente o sistema nervoso e o cérebro,
abrangendo possibilidades de virtualidade, simulação, abstração, feedback e processos
autônomos” (Fueller, 2008: 4; Berardi). O autômato digital se desdobra em redes que
consistem em conexões eletrônicas e nervosas, de modo que os próprios usuários são
colocados como relays semi-automáticos de um fluxo incessante de informação. É
nessa assemblage maior, portanto, que os algoritmos precisam ser localizados quando
discutimos os novos modos de automação.
Citando um livro didático de ciência da computação, Andrew Goffey descreve o
algoritmo como “o conceito unificador para todas as atividades nas quais se envolvem
os cientistas da computação… e a entidade fundamental com as quais estes operam”
(Goffey, 2008: 15). Um algoritmo pode ser provisoriamente definido como a “descrição
do método pelo qual uma tarefa pode ser realizada…” através de sequências de passos
ou instruções, conjuntos de passos ordenados, que operam sobre dados e estruturas
computacionais. Dessa forma, um algoritmo é uma abstração, “e tem uma existência
independente daquilo que cientistas da computação gostam de chamar de “detalhes de
implementação”, ou seja, sua materialização em uma linguagem de programação
particular para uma arquitetura maquínica/computacional” “Goffey, 2008: 15). Podem
estender-se em complexidade desde o mais simples conjunto de regras capazes de
serem descritas em linguagem natural (como aquelas usadas para gerar padrões
coordenados de movimento em ‘smart mobs’) às formulas matemáticas mais
complexas, envolvendo todo tipo de variável (como o famoso algoritmo Monte Carlo,
usado para resolver problemas de física nuclear e posteriormente também aplicado
para o mercado financeiro e, hoje, ao estudo de processos tecnológicos não-lineares de
difusão). Ao mesmo tempo, para funcionar, algoritmos precisam fazer parte de
agenciamentos que incluem hardware, dados, estruturas de dados (como listas,
databases, memoria etc), comportamentos e ações dos corpos. Para que o algoritmo se
torne software social, de fato, “ele precisa obter seu poder como artefato e processo
social ou cultural através de uma acomodação cada vez maior aos comportamentos e
corpos que acontecem e estão do lado de fora” (Fuller, 2008: 5).

Além do mais, uma vez que algoritmos contemporâneos tem sido mais e mais expostos
a conjuntos de dados cada vez maiores (e, em geral, a uma entropia crescente no fluxo
de dados, também conhecida como Big Data), ele têm também se tornado, de acordo
com Luciana Parisi, algo além de meras sequências de instruções a serem seguidas:
um volume infinito de informação interfere e reprograma procedimentos algorítmicos… e
os dados produzem regras estranhas” (Parisi 2013, X). Fica claro a partir deste resumo
que os algoritmos não são um conjunto homogêneo de técnicas ou que garantem “a
execução infalível e automatizada da ordem e do controle” (Parisi, 2013, IX).

Do ponto de vista do capitalismo, contudo, algoritmos são sobretudo uma forma de


“capital fixo”, ou seja, apenas um meio de produção. Eles codificam uma certa
quantidade de saber social (abstraído daquele elaborado por matemáticos,
programadores, mas também pela atividade dos usuários), mas não tem valor em si. Na
atual economia, eles tem valor apenas enquanto possibilitarem a conversão desse
saber em valor de troca (monetização) e sua (exponencialmente crescente) acumulação
(o quase-monopólios titânicos da Internet social). Enquanto constituem capital fixo,
algoritmos como o Page Rank, do Google e o Edgerank, do Facebook, se mostram
“como um pressuposto diante do qual o poder valorizador da capacidade de trabalho
individual desaparece como algo infinitamente pequeno” (Marx) e é por isso que
demandas por retribuição individual pelo “trabalho grátis” dos usuários não cabem. Fica
claro que, para Marx, o que precisa ser compensado não é o trabalho individual do
usuário, mas um poder muito maior de cooperação social assim desencadeado e que
essa compensação implica uma transformação profunda sobre a posse que esta
relação social a que chamamos economia capitalista tem sobre a sociedade.

Do ponto de vista do capital, portanto, algoritmos são apenas capital fixo, ou seja, meios
de produção com a finalidade de conseguir retorno econômico, mas isso, como no caso
de todas as técnicas e tecnologias, é tudo o que são. Marx explicitamente afirma que,
mesmo quando o capital apropria a tecnologia como a forma mais eficiente de
subsunção do trabalho, isso não é tudo o que se pode dizer sobre ela. Sua existência
como maquinaria, ele insiste, não é “idêntica à sua existência como capital e, assim,
não se segue de maneira nenhuma que a subsunção à relação social do capital seja a
melhor e mais adequada relação social de produção para a aplicação da maquinaria”
(Marx). É essencial lembrar que o valor instrumental que os algoritmos têm para o
capital não exaurem o “valor” da tecnologia em geral ou de algoritmos em particular, ou
seja, sua capacidade de expressão não apenas “valor de uso”, nas palavras de Marx,
mas também valores estéticos, existenciais, sociais e éticos. Não foi esse embate entre
a necessidade do capital de reduzir o desenvolvimento de software ao valor de troca,
marginalizando, assim, os valores estéticos e éticos da criação, o que empurrou Richard
Stallman e incontáveis hackers e engenheiros para o movimento do Software Livre? O
entusiasmo que anima os encontros e espaços hackers não vem da energia liberada do
constrangimento de ter que “trabalhar” para uma empresa para se manter fiel à sua
própria estética e ética da codificação?

Ao contrário de algumas variantes do marxismo, que tendem a identificar a tecnologia


completamente com “trabalho morto”, “capital fixo” ou “racionalidade instrumental” e,
portanto, com controle e captura, é importante lembrar o quanto, para Marx, a evolução
da maquinaria também indexa um nível de desenvolvimento produtivo que é
desencadeado, mas nunca totalmente contido pela economia capitalista. O que
interessa a Marx (e o que torna seu trabalho ainda relevante àqueles que buscam um
modo de existência pós-capitalista) é a maneira como ele afirma que a tendência do
capital de investir na tecnologia para automatizar e, portanto, reduzir o custo do trabalho
ao mínimo possível potencialmente liberta um “excedente” de tempo e energia
(trabalho) ou um excedente de capacidade produtiva com relação ao básico, importante
e necessário trabalho de reprodução (uma economia global, por exemplo, deveria
produzir antes de tudo riqueza suficiente para alimentar, vestir, curar e dar abrigo a
todos os membros da população planetária). Contudo, o que caracteriza uma economia
capitalista é o fato de que esse excedente de tempo e energia não é simplesmente
lançado, mas deve ser constantemente reabsorvido no ciclo de produção de valor de
troca, que leva à crescente acumulação de riqueza pelos poucos (o capitalista coletivo)
às custas dos muitos (as multidões).

A automação, portanto, quando vista sob o ponto de vista do capital, deve sempre ser
equilibrada com novas maneiras de controle, ou seja, deve absorver e exaurir o tempo e
a energia por ela liberados. Deve necessariamente produzir pobreza e stress onde
deveria haver riqueza e lazer. Deve fazer do trabalho direto a medida de valor, mesmo
quando estiver claro que são a ciência, a tecnologia e a cooperação social o que
constitui a fonte de produção de riqueza. Leva inevitavelmente, portanto, à destruição
periódica e generalizada da acumulação de riquezas, na forma de esgotamento
psíquico ou da destruição física da riqueza criada, e à catástrofe ambiental. Cria fome
onde deveria haver saciedade, coloca lado a lado o banco de alimentação e a opulência
dos super-ricos. É por isso que a noção de um modo de existência pós-capitalista
precisa se tornar verossímil, ou seja, precisa se tornar o que Maurizio Lazzarato
descreveu como um foco autônomo e duradouro de subjetivação. O que um comunismo
pós-capitalista pode assim almejar é, não apenas a melhor distribuição as riquezas,
comparada à que temos hoje, que é insustentável, mas também a reinvindicação do
“tempo livre”, ou seja, de que esse tempo e energia liberados pelo trabalho
[automatizado] sejam empregados no desenvolvimento e na problematização da noção
mesma do que é “necessário”.

A história do capitalismo mostrou que a automação em si não reduziu nem a


quantidade, nem a intensidade do trabalho requerida pelos patrões e capitalistas. Ao
contrário, na medida em que a tecnologia é apenas um meio de produção para o
capital, nos lugares em que pôde usar outros meios, ele não inovou. Por exemplo, não
parece que as tecnologias de automação industrial usadas nas fabricas tenha vivido
mudanças significativas recentemente. A maior parte do trabalho industrial ainda hoje é
essencialmente manual, automatizado apenas no sentido de estar ligado à velocidade
das redes eletrônicas de prototipagem, marketing e distribuição e é economicamente
sustentável apenas através de meios políticos, ou seja, através da exploração das
diferenças geopolíticas e econômicas (arbitragem) numa escala global e pelo controle
de fluxos migratórios através de novas tecnologias de fronteira. O estado das coisas na
maior parte das indústrias hoje em dia é de exploração intensificada, o qual produz um
modo empobrecido de produção de massa e de consumo, que é danoso para o corpo, a
subjetividade, as relações sociais e o meio ambiente. Como Marx colocou, o tempo
excedente liberado pela automação deveria permitir uma mudança na definição mesma
do que é ‘humano’, de modo que à nova subjetividade seja permitido voltar ao trabalho
requerido para redefinir o que é necessário e o que é preciso. Portanto, não é
simplesmente o caso de se defender um “retorno” a tempos mais simples, mas, ao
contrário, de reconhecer que plantar alimentos e alimentar populações, construir abrigos
e moradias adequados, ensinar e pesquisar, cuidar das crianças, dos doentes e dos
velhos requer a mobilização de invenção e cooperação social. O processo todo
transforma-se, assim, da produção dos muitos para os poucos, impregnado de pobreza
e stress, num processo em que os muitos redefinem o sentido do que é necessário e
valioso, enquanto inventam maneiras de consegui-lo. Isso corresponde, em certo
sentido, à noção de ‘commonfare’, da forma como foi recentemente elaborada por
Andrea Fumagalli e Carlo Vercellone, implicado, nas palavras deste último, “a
socialização dos investimentos, do dinheiro e da questão de modos de gerenciamento e
organização, que permitam uma reapropriação autêntica e democrática das instituições
do Welfare (…) e da reconstrução ecológica de nosso sistema de produção”
(Vercellone, no prelo, Fumagalli, 2014). Devemos perguntar, portanto, não apenas como
a automação algorítmica opera hoje (sobretudo em termos de controle e monetização,
alimentando a economia do debito), mas também que tipo de tempo e energia ela
subsome e como elas podem ser colocadas para trabalhar em favor de agenciamentos
sociais e políticos diversos – autônomos, não subsumidos ou sujeitos à pulsão
capitalista pela acumulação e a exploração.

Red Stack: dinheiro virtual, redes sociais e bio-hipermídia

Numa intervenção recente, o teórico de mídias digitais e cientista político Benjamin H.


Bratton afirmou que estamos testemunhando a emergência de um novo nomos na terra,
na qual velhas divisões geopolíticas atreladas à soberanias territoriais se intersectam ao
novo nomos da Internet e a novas formas de soberania que se estendem no espaço
eletrônico (Bratton, 2012). Esse novo nomos heterogêneo envolve a sobreposição de
governos nacionais (China, EUA, Uniao Europeia, Brasil, Egito e afins), organismos
transnacionais (o FIM, a OMC, os bancos europeus e ONGs de diversos tipos) e
corporações como Google, Facebook, Apple, Amazon etc, produzindo padrões diversos
de acomodação mútua, marcados por momentos de conflito. A partir da estrutura
organizacional das redes de computadores “ou do modelo OSI, no qual o stack TCP/IP
e a própria internet se baseiam diretamente”, Bratton criou o conceito e/ou protótipo da
“pilha” (stack) para definir a característica do potencialmente novo nomos da terra,
ligando tecnologia, natureza e o humano (Bratton, 2012). A pilha/stack suporta e modula
um tipo de ‘cibernetica social’ capaz de compor “tanto equilíbrio quanto emergência”.
Como “megaestrutura”, a pilha/stack implica a “confluência de um sistema de sistemas
interoperáveis … (confluence of interoperable standards-based complex
material-information system of systems), organizados a partir de uma seção vertical de
um modelo topográfico de camadas e procolos… composto igualmente de camadas
sociais, humanas e “analógicas” (fontes de energia ctônica, gestos, afetos,
usuários-actantes, interfaces, cidades e ruas, cômodos e apartamentos, invólucros
orgânicos e inorgânicos) e camadas informacionais, não-humanas, computacionais e
digitais (múltiplos cabos de fibra óptica, datacenters, databases, protocolos e padrões
de dados, redes de escala urbana, sistemas integrados, tabelas de endereçamento
universais)” (Bratton, 2012).

Nesta seção, a partir do protótipo político de Bratton, gostaria de propor o conceito de


“Red Stack” (“pilha vermelha”???), ou seja, um novo nomos para o comum
pós-capitalista. Materializar o “red stack” implica envolvimento com (pelo menos) três
níveis de inovação sócio-técnica: dinheiro virtual, redes sociais e bio-hipermídia.
Deve-se compreender que esses três níveis, conquanto “empilhados”, interagem
transversalmente e de forma não linear. Constituem uma forma possível de pensar a
infraestrutura de autonomização que liga tecnologia e subjetivação.

Dinheiro virtual

A economia contemporânea, como afirmam Christian Marazzi e outros, é fundada numa


forma de dinheiro transformado numa série de signos, sem nenhum referente fixo no
qual se ancorar (como o ouro), dependente explicitamente da automação computacional
de modelos de simulação, telas com exibição automatizada de dados (índices, gráficos
etc) e transações algorítmicas/“algo-trading” (transações bot-to-bot) como seu modo
emergente de automação (Marazzi). Como também coloca Toni Negri, “o dinheiro, hoje
– como maquina abstrata – adotou a função peculiar de medida suprema dos valores
extraídos da sociedade na subsunção real desta sob o capital” (Negri, 2014b). Uma vez
que a propriedade e o controle de dinheiro-capital (diferente, como nos lembra Maurizio
Lazzarato, do dinheiro-salário por sua capacidade de ser usado não apenas como meio
de troca, mas como meio de investimento, empoderando certos futuros em lugar de
outros) são cruciais para a manutenção das população sob à atual relação de poder,
como podemos transformar dinheiro financeiro em dinheiro do comum? Um
experimento como o Bitcoin demonstra que, de certa forma, “o tabu sobre o dinheiro foi
quebrado” (Jaromil 2013) e que, para além dos limites dessa experiência, bifurcações já
estão se desenvolvendo em direções diversas. Que tipo de relações podem ser
estabelecidas entre algoritmos de criação monetária e uma “prática constituinte que
afirma outros critérios para a medição de riqueza, valorizando necessidades coletivas
novas e velhas, fora da lógica financeira?” (Lucarelli 2014). As atuais tentativas de
criação de novos tipos de criptomoedas devem ser julgadas, avaliadas e repensadas a
partir de uma questão simples colocada por Andrea Fumagalli: a moeda criada está
limitada a ser um meio de troca ou pode também afetar todo o ciclo de criação
monetária – das finanças à troca? (Fumagalli, 2014). Encoraja a especulação e o
acúmulo ou promove o investimento em projetos pós-capitalistas e facilita a libertação
da exploração, a autonomia, a organização etc? Está cada vez mais claro que os
algoritmos são uma parte essencial do processo de criação da moeda do comum, mas
que eles também têm uma política (quais são as politicas de gênero da “mineração”
individual de Bitcoins, por exemplo, ou do complexo saber tecnológico e da maquinaria
implícita nessa “mineração”?).

Além do mais, o ímpeto da completa automação da produção monetária em busca de


se escapar às falácias dos fatores subjetivos e das relações sociais pode causar a volta
dessas relações na forma de negociação especulativa. Da mesma forma que o capital
financeiro está ligado a um certo tipo de subjetividade (o predador financeiro narrado
por Hollywood), uma forma autônoma de dinheiro deve ao mesmo tempo estar fincada e
produzir um novo tipo de subjetividade, que não esteja não limitada ao universo hacker
em si, mas orientada não à monetização e ao acúmulo e sim ao empoderamento da
cooperação social. Outras questões que devem pautar o design da criação de uma
moeda do comum são: é possível basear-se na atual financialização da Internet por
corporações como o Google (e seus programas Adsense/Adword) para subtrair dinheiro
do circuito de acumulação capitalista e transforma-lo em dinheiro capaz de financiar
novas formas de “commonfare” (educação, pesquisa, saúde, meio ambiente etc.)? Que
lições devem ser aprendidas a partir dos modelos de crowfunding e suas limitações no
que diz respeito a novas formas de se financiar projetos autônomos de cooperação
social? Como podemos aperfeiçoar e estender experimentos como aqueles levados
adiante pelo movimento InterOccupy durante o furacão Katrina, ao transformar redes
sociais em redes de financiamento coletivo, as quais podem servir para compartilhar
não apenas informação, mas bens físicos (Common Ground Collective, 2012)?
Redes Sociais

Ao longo dos últimos dez anos, as mídias digitais tornaram-se sociais, o que introduziu
uma inovação genuína em relação às formas previas de software social (listas de email,
fóruns, domínios multiusuário etc.). Se as listas de email, por exemplo, baseavam-se
nas na linguagem comunicacional de enviar e receber, as redes sociais e a difusão de
plug-ins sociais (proprietários) transformaram as relações sociais em si no conteúdo de
novos procedimentos computacionais. Ao enviar e receber uma mensagem, podemos
dizer que os algoritmos operam foram da relação social em si e, sim, no espaço de
transmissão e distribuição de mensagens; já as redes sociais operam diretamente
dentro dela. De fato, tecnologias digitais e redes sociais atravessam as relações sociais
em si, ou seja, eles as transformam em objeto discreto e introduzem relações
suplementares (Stiegler 2013). Se compreendermos, com Gabriel Tarde e Michel
Foucault, a relação social como algo assimétrico e que envolve pelo menos dois polos
(um, ativo e o outro, receptivo) e caracterizada por um certo grau de liberdade,
podemos compreender ações como curtir e ser curtido, postar e ler, ver e ser visto,
marcar e ser marcado e mesmo comprar e vender como tipos de condutos que
transindividuam o social (eles induzem passagens do pré-individual, através do
individual, até o coletivo).

Nos sites de redes sociais e nos plug-ins sociais, essas ações tornam-se objetos
técnicos distintos (botões, caixas de comentários, tags etc.), os quais se ligam a
estruturas de dados subjacentes (por exemplo, o Social Graph, do Facebook) e ficam
sujeitos ao poder de classificação dos algoritmos. Isso produz a modalidade
espaço-temporal característica da sociabilidade digital hoje: o feed, um fluxo de
opiniões, crenças, afirmações, desejos, customizado algoritmicamente, expresso em
palavras, imagens, sons, etc. Muito recriminados na teoria crítica contemporânea por
seu efeito supostamente homogeneizante, essas novas tecnologias do social, contudo,
também abrem a possibilidade de experimentação com a interação muitos-para-muitos
e, assim, com o próprio processo de individuação. Experimentos políticos (os vários
partidos baseados na internet, como o Movimento 5 Estrelas, o Partido Pirata e o
Partido X) partem dos poderes dessas novas estruturas sócio-técnicas para produzir
processos massivos de participação e deliberação, mas, assim como o Bitcoin, também
demonstram as limitações dos processos que ligam a subjetivação política à automação
algorítmica. Eles funcionam, contudo, porque utilizam uma variedade de novos saberes
e habilidades socializados (como construir um perfil, como cultivar um público, como
publicizar eventos) e “soft skills” (competências transversais) de expressão e
relacionamento (humor, argumentação, discussão), as quais não são boas ou ruins em
si, mas apresentam uma série de affordances ou graus de liberdade de expressão para
a ação politica que não podem ser deixadas nas mãos de monopólios capitalistas, mas
podem migrar para novas plataformas e serviços. Uma vez que algoritmos, como
dissemos, não podem ser separados de agenciamentos sociais maiores, sua
materialização dentro do red stack envolve o sequestro das tecnologias de redes
sociais, a invenção de novos tipos de plug-ins e a construção de novas plataformas a
partir da bricolagem inventiva de tecnologias existentes, a performance de novas
subjetividades através de um deslocamento (detournement) do letramento generalizado
nas mídias sociais.

Bio-hipermídia

O termo bio-hipermídia, criado por Giorgio Griziotti, identifica a relação cada vez mais
íntima entre corpos e dispositivos digitais que faz parte da difusão de smartphones,
tablets e da computação ubíqua. Enquanto as redes digitais se movem da centralidade
do desktop ou mesmo do laptop rumo a dispositivos cada vez menores e mais portáteis,
uma nova paisagem sócio-técnica emerge ao redor dos “apps” e da “nuvem”, a qual
diretamente “interfere na nossa forma de sentir, perceber e compreender o mundo” [a
bio-semiótica chama isso de “expansão do Umwelt humano c.f. Jorge Albuquerque
Vieira] (Griziotti 2014, Portanova 2013). Bratton define esses “apps” para plataformas
como Android e Apple como interfaces ou membranas que ligam dispositivos individuais
a uma database maior, armazenada na “nuvem” (centros de processamento de dados e
armazenamento gigantescos que pertencem a grandes corporações) (Bratton, 2013).
Essa continuidade topológica permitiu a difusão de aplicativos baixáveis – ou apps –
que modulam cada vez mais a relação entre corpos e espaço. Tais tecnologias não
apenas “grudam na pele e respondem ao toque” (como já colocou Bruce Sterling uma
vez), mas criam novas “zonas” ao redor dos corpos, que agora se movem através de
“espaços codificados”, sobrepostos de informação, capaz de localizar corpos e lugares
dentro de mapas interativos, informacionais e visuais. Novos ecossistemas espaciais
emergentes do cruzamento entre o “natural” e o artificial permitem a ativaçãoo de um
processo de co-criação caosmótica da vida urbana (Iaconesi e Persico, n.d.). Aqui,
novamente, é possível ver como apps são para o capital apenas uma forma de
“monetizar” e “acumular” dados sobre o movimentos dos corpos, enquanto os
subsomem ainda mais rigidamente em redes de consumo e vigilância. Contudo, essa
subsunção do corpo móvel sob o capital não implica que seja este necessariamente o
único uso dessas novas affordances tecnológicas. Transformar a bio-hipermídia em
componentes do “red stack” (o modo de reapropriação do capital fixo na era do social
em rede) implica aproximar atuais experimentos com hardware (tecnologias shenzei de
hackear celulares, maker movements etc) aptos a dar suporte a uma nova espécie de
“apps imaginários” (pensemos, por exemplo, nos apps criados pelo coletivo artístico
Electronic Disturbance Theatre, que permitem a imigrantes enganar controles de
fronteira ou apps que localizam a origem de commodities, seus graus de exploração
etc.)

Conclusão

Este pequeno ensaio, a síntese de uma pesquisa mais abrangente, pretende propor
uma nova estratégia para a construção da infraestrutura maquínica do comum. A ideia
fundamental é a de que as tecnologias da informação, que têm algoritmos como seu
componente central, não constituem apenas uma ferramenta para o capital, mas
constroem simultaneamente novas potencialidades para os modos neoliberais de
governo e para os modos pós-capitalistas de produção. A questão aqui é abrir possíveis
linhas de contaminação junto aos grandes movimentos de programadores, hackers e
makers (fazedores) envolvidos num processo de recodificação da arquitetura das redes
e das tecnologias da informação baseadas em outros valores, que não a troca e a
acumulação, mas também levando em consideração o processo generalizado de
letramento sócio-técnico que tem afetado grande parte da população mundial. É uma
questão, portanto, de produzir uma convergência capaz de estender o problema da
reprogramação da Internet para além das tendências recentes de corporatização e
monetização, às custas da liberdade e pelo controle dos usuários. Uma convergência
que ligue a comunicação bio-informacional a assuntos como a produção de um dinheiro
do comum, capaz de socializar a riqueza, contra tendências correntes rumo à
privatização, acumulação e concentração, afirmando que as redes sociais e as
competências comunicacionais difusas podem funcionar como uma maneira de
organizar a cooperação e produzir novos saberes e valores. Significa buscar uma nova
síntese política que nos leve para longe do paradigma neoliberal do débito, da
austeridade e da acumulação. Isto não é uma utopia, mas um programa para a
invenção dos algoritmos sociais constituintes do comum.

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