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O FILHO DA MORTE

A procissão festejava em meio às alegorias fúnebres, incensos, cânticos e


música. Maquiagem, flores e velas votivas pintavam a multidão nas ruas. O
cheiro de comida vindo das tendas nas calçadas era um convite irrecusável.
Tudo para comemorar o dia de Santa Morte. O dia em que a morte levava as
almas para passear.

Chicoteavam a Santa de pano pedindo intervenção e milagre. Embora


quisesse espiar lá fora, Margarida, preparava a janta para seu marido que
logo chegaria do trabalho. Estava atrasada, pois a barriga prenha a limitava.
Não aguentava ficar muito em pé. Colocou pimenta na carne, acrescentou
mais água e foi para sala se sentar.

A casa toda era iluminada por velas. Havia fotos no altar da parede. A de seu
primeiro filho que nascera morto. Tios, sobrinhos, desconhecidos e pais. As
sombras das velas faziam fundo para a luz: um crânio chorando. A vela de
sete cores apagou num sopro fantasmagórico. Vrush! Sua base adornada por
dentaduras assumiam a culpa. A Santa julgava como se dissesse: — Você
será minha. E a criança que está esperando também. Tremeu e engoliu em
seco. Antes de descansar resolveu rezar.

Pegou o isqueiro no bolso e acendeu aquela que tinha apagado. Súplicas


feitas. Pediu paz. Não, implorou. Sim, isso. Implorou por um dia de paz.
Quando chegou ao sofá a porta da sala abriu num estrondo. Juan arrancou
para dentro e bateu a porta. Pá! Seu jeito delicado sempre assustava
Margarida. Jogou o quepe policial onde ela sentaria e passou direto para a
cozinha. — Mas não é possível, mulher! De novo? Todo dia é isso agora?
Juan, ou Juanito para os íntimos, costumava mudar de humor por comida.
A mulher estremeceu. Arrumou forças e foi à cozinha. Antes que chegasse ao
fogão tomou um tapa na cara que a arremessou contra a geladeira. Tentou
abraçá-la. Bateu a cabeça no puxador e foi ao chão. Seus joelhos acertaram
o piso primeiro. Baita batida contundente — Pou! Em cheio. Deve ter doído
para um cacete com todo aquele peso extra. Chapou a barriga no chão de
pedra. E para acabar, socou o nariz no balcão.
Finalmente, conseguiu sentar. Tinha perdido a noção de quanto tempo era
refém, de quanto tempo mais aguentaria antes de morrer. O estômago
embrulhou. Tonta, notou um papel em sua mão. Santinho da Ossuda —
apelido da Santa. O sangue desceu pela testa, formou gota na ponta do nariz
inchado, caiu no olho da imagem e escorreu. Inaudível amaldiçoou: — Quero
que a senhora entregue Juan Carlos aos meus pés. Para que apodreça,
agonize e morra. Nauseante, vomitou-se toda.

As luzes apagaram como se a casa fosse invadida por uma ventania. Juan
esbravejou: — Que inferno é isso agora?! A cabeça da moça pulsava, a
bochecha fervendo tocava uma sinfonia desafinada. — Monstro! — gritou.
Apoiou no balcão, tateou o cabo da faca e levantou-se grunhindo. Escondeu
a arma no avental. — Chego morrendo de fome e você rezando? Vi tudo pela
janela. Pensa que me engana? Eu trabalho para quê nessa porra? Hein!
Fala! A essa altura os olhos estavam adaptados à escuridão. Ameaçou bater
nela de novo. Margarida virou o rosto e protegeu com o braço à frente. O
golpe não veio. Pensou se teria coragem de enfiar a faca no bucho dele.
Sentiu algo quente escorrer entre as pernas. Veio à mente que estava
urinando. Juan segurou seu braço, abaixou à força e aproximou-se: — Você
é nojenta! Toda vomitada. Agora mijando na roupa. Cuspiu e acertou o
pescoço. Sacou a arma do coldre, agachou e encostou o cano na fuça dela.
Além da desolação e horror, quis matá-lo. Imaginou-se enfiando a faca no
pescoço dele. Tantas vezes. Mas, tantas e tantas que foi acordada desse
delírio. Porque aquilo não parecia urina. A bolsa estourou. — Vou ter o bebê
— foi o que saiu. — O quê? Sei que não quer morrer — confirmou Juan. — A
bolsa estourou! — gritou em plenos pulmões. Juanito se tocou que a poça de
urina estava grande demais. Guardou o revólver. — Nós vamos ter um bebê,
meu amor — envolvendo o rosto dela com as mãos.

Assim como se apagaram... As velas estavam injetadas com algum


combustível. Porque as chamas eram jalapenhos incandescentes. — O que
está acontecendo com essas coisas? — perguntou receoso. Margarida
agarrou em seu braço e disse vidrada: — É a Ossuda. Ela veio. Ela está aqui.
Eu sinto sua presença. Juanito desvencilhou-se, passou o braço em sua
volta e carregou para o sofá. Puxou a calçola violentamente. Ajoelhou-se
para fazer o parto. — Você vai dar o que eu quero?! — Margarida perguntou
para o vazio. As chamas oscilavam como a multidão que cantava em festa.

Margarida vivia um pesadelo. A cantoria das ruas transformava-se em vozes


rogando o mal. — Está vindo! Ai! Ai! Ai! Está vindo! Ai! Aaaai! — rimava. A
barriga de Margarida explodiu. O sobrenatural é algo realmente interessante.
Prou! Estouro placentário, misturado com carne e pele. Voou sangue para
todo lado. Quando Juan percebeu era tarde demais. O bebê não tinha o lábio
superior. O sorriso medonho grudava na pele morta. Olhos fundos, caídos e
leitosos. Segurava o avental vomitado de Margarida, ou o que sobrou dele.
Juan, paralisado, não entendeu nada. O pano estava ensopado.

Margarida espumava pela boca. O fim amargo dava-lhe a mão. Debateu-se


até perder os movimentos. Não acreditava que morreria afogada. Deu uma
última espiada. Um rombo onde antes carregava vida. As costas da
criaturinha horripilante. O cordão umbilical ainda os conectava. Sentiu o
abraço duro e gelado da Ossuda.

Juan levou facadas no pescoço, peito e abdômen. Esguichava sangue,


principalmente no altar. Antes que chegasse sua hora a criatura proferiu
diabolicamente: — Apodreça, agonize e morra! A pele de Juanito começou a
murchar e ficou como casca de abacate de cem anos. O barulho dos ossos
quebrando e se desfazendo seria a canção preferida de Margarida. O homem
rasgou a garganta de tanto berrar. Seu corpo virou vômito espatifado no
chão.

A porta foi destruída com a força do pensamento. Estilhaços fincaram no


pescoço, olho, virilha, do povo comemorando. Os mais próximos entraram
em pânico. Enquanto os demais continuavam a beber e dançar. Juan
fantasmagórico flutuava ao lado de seu dono. A criatura tocou no joelho de
Margarida. A moça cadavérica levantou. O bebê a levou pelo cordão. Juanito
num toque sombrio amaldiçoou o folião. O mesmo que aconteceu com ele,
aconteceu com o coitado esparramado.
As almas festejavam em meio às alegorias nefastas, incensos e cadáveres.
Flores e velas votivas despedaçadas nas ruas. O cheiro de vida exalava um
convite irrecusável. Tudo para comemorar o dia em que a morte levava as
almas para passear.

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