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Entre as faculdades que se observam nos sonâmbulos

muito lúcidos, há uma que se pode chamar previsão ou pres-


sentimento orgânico.
Esses sonâmbulos veem com efeito, espontaneamente, o
estado em que sua doença os colocará, numa época ainda mui-
to distante. Não há magnetizadores que não tenham encontra-
do desses fatos de previsão.
Exemplo, tirado do relatório do Sr. Husson, que fazia
parte da comissão encarregada em 1826, pela Academia de
Medicina, de examinar o magnetismo:
“A comissão se reuniu no gabinete do Sr. Bourdois, em
6 de outubro, ao meio dia, hora em que Cazot aí chegou. O Sr.
Foissac fora convidado a vir ter aí ao meio dia e meia; ele per-
maneceu na sala, sem o conhecimento de Cazot, sem nenhuma
comunicação conosco. Foram entretanto dizer-lhe, por uma
porta falsa, que Cazot estava sentado num sofá afastado dez pés
de uma porta fechada, e que a comissão desejava que ele o a-
dormecesse e o despertasse a essa distância, permanecendo ele
na sala, e Cazot no gabinete.
“Ao meio dia e trinta e sete minutos, enquanto Cazot es-
tá ocupado com a conversa que mantemos, ou examina os qua-
dros que enfeitam o gabinete, o Sr. Foissac, colocado na peça
vizinha, começa a magnetizá-lo; notamos que ao fim de quatro
minutos Cazot pisca levemente os olhos, que tem um ar inquie-
to, e que enfim adormece em nove minutos. O Sr. Guersent,
que cuidara dele no hospital de crianças, por seus ataques de
epilepsia, lhe pergunta se ele o reconhece. Resposta afirmativa.
O Sr. Itard pergunta-lhe quando ele terá um acesso. Ele res-
ponde que será dali a quatro semanas, em 3 de novembro, às
quatro horas e cinco minutos da tarde. Pergunta-se-lhe em se-
guida quando terá outro. Ele responde, depois de se ter reco-
lhido e hesitado, que será cinco semanas depois daquele que
acaba de indicar, em 9 de dezembro, às nove e meia da manhã.

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Tendo a ata dessa sessão sido lida na presença do Sr. Foissac,
para que ele a assinasse conosco, havíamos querido induzi-lo
em erro, e lendo-a para ele antes de fazê-la assinar pelos mem-
bros da comissão, o relator leu que o primeiro acesso de Cazot
ocorreria no domingo 4 de novembro, ao passo que o doente
fixara o sábado 3. Enganou-o igualmente sobre o segundo, e o
Sr. Foissac tomou nota dessas falsas indicações como se fossem
exatas; mas tendo, alguns dias depois, posto Cazot em sonam-
bulismo, assim como tinha o costume de fazer para dissipar
suas dores de cabeça, soube dele que era no dia 3 e não no 4
que ele devia ter seu acesso, e advertiu o Sr. Itard em 10 de no-
vembro, crendo que houvera erro na ata, cuja pretensa veraci-
dade, porém, o Sr. Itard sustentou.
“A comissão tomou de novo todas as precauções conve-
nientes para observar o acesso de 3 de novembro; foi às quatro
horas a casa do Sr. Georges 13; soube dele, de sua mulher, e de
um dos trabalhadores, que Cazot trabalhara a manhã toda até
as duas horas, e almoçando sentira dor de cabeça; que entretan-
to descera para recomeçar seu trabalho, mas que aumentando a
dor de cabeça, e tendo tido uma tontura, voltara a subir ao seu
quarto, deitara-se e adormecera. Então, os srs. Bourdois, Fou-
quier e o relator subiram, precedidos pelo Sr. Georges, para o
quarto de Cazot; o Sr. Georges entrou aí sozinho e encontrou-o
profundamente adormecido, o que nos fez observar pela porta
que estava entreaberta para a escada. O Sr. Georges falou alto
com ele, sacudiu-o pelo braço, sem conseguir acordá-lo; e às
quatro horas e seis minutos, em meio às tentativas feitas pelo
Sr. Georges para acordá-lo, Cazot foi tomado pelos principais
sintomas que caracterizam um acesso de epilepsia, e semelhan-
tes em tudo ao que observáramos nele anteriormente.

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Chapeleiro para quem Cazot trabalhava.

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“O segundo acesso anunciado para 9 de dezembro, ou
seja, dois meses antes, ocorreu às nove e meia, e foi caracteri-
zado pelos mesmos fenômenos precursores e pelos mesmos
sintomas que aqueles de 7 de setembro, 10 de outubro e 3 de
novembro.
“Enfim, no dia 11 de fevereiro, Cazot marcou a época de
um novo acesso no próximo dia 22 de abril, ao meio-dia e cin-
co minutos, e esse anúncio verificou-se como os anteriores,
com uma aproximação de cinco minutos. Este acesso, notável
pela violência, pela espécie de furor com que Cazot mordeu a
mão e o antebraço, pelos abalos bruscos e repetidos que o sa-
cudiam, durava há trinta e cinco minutos, quando o Sr. Foissac,
que estava presente, o magnetizou. Em pouco tempo o estado
convulsivo cessou para dar lugar ao estado de sonambulismo
magnético, durante o qual Cazot se levantou, colocou-se numa
cadeira e disse que estava muito cansado; que teria ainda dois
acessos, um dentro de nove semanas a contar do dia seguinte,
às seis horas e três minutos (25 de junho). Não quer pensar no
segundo acesso, porque é preciso pensar no que acontecerá
antes, e acrescenta que aproximadamente três semanas depois
do acesso de 25 de junho ele enlouquecerá; que sua loucura
durará três dias durante os quais será tão malvado que brigará
com todo mundo; que maltratará até a mulher e o filho; que
não se deverá deixá-lo com eles, e que ele não sabe se não ma-
tará uma pessoa que não designa. Será preciso então sangrá-lo
imediatamente nos dois pés. Por fim, acrescenta ele, ficarei cu-
rado para o mês de agosto, e uma vez curado, a doença não me
atingirá mais, aconteça o que acontecer.
“É no dia 22 de abril que todas essas previsões nos são
anunciadas, e dois dias depois, no dia 24, Cazot, querendo de-
ter um cavalo fogoso que tomara o freio nos dentes, foi precipi-
tado contra a roda de um cabriolé que lhe quebrou a arcada

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orbital esquerda e o machucou horrivelmente. Levado para o
hospital, morreu no dia 15 de maio.
“Vemos, nesta observação, um homem sujeito há dez
anos a acessos de epilepsia. O magnetismo age sobre ele embo-
ra ele ignore completamente o que lhe é feito. Torna-se so-
nâmbulo; os sintomas de sua doença melhoram, os acessos di-
minuem de frequência, as dores de cabeça e a opressão desapa-
recem sob a influência do magnetismo; ele prescreve a si mes-
mo um tratamento apropriado à natureza do seu mal, e prome-
te ficar curado. Magnetizado sem o saber e de longe, cai em
sonambulismo e é dele retirado com a mesma prontidão do
que quando era magnetizado de perto. Enfim indica, com rara
precisão, um ou dois meses antes, o dia e a hora em que deve
ter um acesso epiléptico. No entanto, capaz dessa previsão para
acessos tão afastados, ainda mais, para acessos que jamais ocor-
rerão, não prevê que dentro de dois dias será vítima de um aci-
dente mortal.
“Sem procurar conciliar tudo o que semelhante observa-
ção pode, à primeira vista, oferecer de contraditório, a comis-
são vos fará notar que as previsões de Cazot são relativas apenas
a seus acessos; que elas se restringem à consciência das modifi-
cações orgânicas que se preparam, e chegam a ele como o re-
sultado necessário das funções internas; que essas previsões,
embora mais extensas, são absolutamente semelhantes às de
certos epilépticos que reconhecem mediante diversos sintomas
precursores, como a cefaléia, as vertigens, a morosidade, a aura
epiléptica, que terão um acesso em breve. Seria espantoso que
os sonâmbulos, cujas sensações, como vistes, são extremamente
vívidas, pudessem prever seus acessos com muita antecedência,
segundo alguns sintomas ou impressões internas que escapam
ao homem desperto? É desta maneira que se poderia entender
a previsão atestada por Arétée, em duas passagens de suas o-
bras imortais, por Sauvages que relata um exemplo e por Caba-

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nis. Acrescentemos que a previsão de Cazot não é rigorosa,
absoluta, que ela é condicional, visto que ao predizer um acesso
ele anuncia que ele não ocorrerá se o magnetizarem, e efetiva-
mente ele não ocorre; ela é toda orgânica, toda interna. Assim,
concebemos porque ele não previu um acontecimento comple-
tamente externo: saber que o acaso lhe faria encontrar um cava-
lo fogoso, que ele teria a imprudência de querer detê-lo, e que
receberia uma ferida mortal. Ele pôde portanto prever um a-
cesso que nunca veio a ocorrer. É a agulha de um relógio que,
num determinado tempo, deve percorrer certa porção do círcu-
lo de um mostrador, e que não o descreve porque o relógio é
quebrado.”
Outras vezes, um sonâmbulo prediz, a um prazo mais ou
menos longo, uma doença que ele determina e da qual ele pa-
rece não ter nenhum germe, e essa previsão se realiza pontual-
mente.
Viram-se sonâmbulos, e encontramos alguns, que deter-
minavam o dia da própria morte, sem acreditar possível evitar
esse acontecimento. No dia predito, ocorria efetivamente uma
crise terrível na doença, tudo parecia desesperado, e acreditava-
se ter a prova funesta da fatal previsão, quando, no meio de sua
agonia, o doente, posto em sonambulismo por um resto de es-
perança, anunciava que ia viver. Era uma síncope, uma crise
assustadora que ele confundira com a morte, não podendo a-
preciar o auxílio que o devotamento de seu magnetizador devia
trazer.
Em semelhantes circunstâncias, não se deve desanimar, é
preciso lutar até o fim, porque é possível que o sonâmbulo te-
nha tomado uma suspensão momentânea da atividade dos ór-
gãos pela cessação completa da vida. Os autores não constata-
ram fato bem autêntico em que uma previsão de morte se tenha
realizado; e de nossa parte, as que ouvimos não se realizaram.

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