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ERNST MAYR

Biologia, ciência única


Re.Fexões sobrea au bonomiade uma
discipl,inacientí$ca

Zradz/ção
Marcelo Leite

PreÊãcío

Drauzio Varella
$4'

OMPANHIA DAS LETRAS


Copyright © 2004 by Ernst Mayr
Publicado originalmente pelaCambridge University Pressem 2004

Título origittat
What makesbiology unique?:
considerationson the autonomy of a scientiâcdiscipline

Capa
Victor Burton

Preparação
LenyCordeiro

Índice remissivo
Miguel SaidVieira

Revisão
Renato Potenza Rodrigues
Ana Mana Barbosa

Dados Internacionais de Catalogaçãona Publicação(CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, sp,Brasil)
Às minhasfithas
Mayr, Ernst CoristaEtisabethMenzet
Biologia, ciência única : reflexões sobre a autonomia de uma disciplina
científica / Ernst Mayr ; prefácio Drauzio Varella ; tradução Marcelo Leite. -- e
São Paulo : Companhia das Letras, 2005.
Susanne MayrHarrison,
Título original : What makesbiologyunique?: considerationson the
utonomyof a scientificdiscipline com amor e gratidão por
Bibliografia
SBN 85-359-0688-6 tudo que me têm dado

1. Biologia-- Filosofia2.Evolução(Biologia)- Filosofia1.Varella,Drauzio.


[l. Títu]o.

05-5548 COD-570.1

índice para catálogo sistemático


1. Biologia: Filosofia 570.

[2005
Todos os direitos desta edição reservadosà
EDITORA SCHWARCZ INDA.

Rua Bandeira Paulista 7oz cj .3z


o453z-ooz São Paulo sp
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Fax (n) 37o7-35oi
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winianas entre 1859 e 2004, descobre-se que nenhuma dessas
mudanças afeta a estrutura básica do paradigma darwiniano. Não
7. Maturação do darwinismo
há justi6lcativa para a alegação de que o paradigma darwiniano foi
refutado e tem de ser substituído por algo novo. Fico impressio-
nado e acho quaseum milagre que Darwin tenha chegado em 1859
tão perto do que seria considerado válido 145 anos depois. E essa
extraordinária estabilidadedo paradigmadarwiniano justinlca
que seja aceitotão amplamentecomo um fundamento legítimo
para a íiloso6ia da biologia e, em particular, como uma basepara a
ética humana.

Embora Darwin tenha apresentado em 1859 com grande de-


talhe,em Origemdasespécies, os princípios do darwinismo,foram
necessáriosoutros oitenta anos para que os biólogos o aceitassem
plenamente.Havia muitas razõespara tanto desacordo na biologia
evolucionista daquele período. Tãvez a razãoprincipal tenha sido
queo próprio conceitodedarwinismo continuou amudar aolongo
do tempo, e diferentes darwinistas endossavam combinações diver-
sasdas cinco teorias de Darwin (ver capítulo 6). Em meu One Zona
czrgumetzffuma longa discussãol ( 1991), descrevi nove usos dife-
rentes do termo "darwinismo'! que se tornaram mais populares ou
menos populares conforme o período. Apenas um tratamento
cronológico pode fazerjustiça à história do conceito de darwinismo.

ESTÁGIOSNA MATURAÇÃO DO DARWINISMO

Hoje já está claro por que havia tanto desacordo na biologia


evolucionista durante os primeiros oitenta anos. De início, dar-

i3z i33
winismo signiâcava simplesmente anticriacionismo. Um evolu adquiridas e íoi seguido por Alfred Russel Wallace e outros dar-
cionista era rotulado como darwinista desdeque adotassepelo winistas. Por meio de suasteorias gerais,Weismann preparou o
menos a teoria de que a mudança evolutiva era devida a causas na- caminho para a redescoberta de Mendel, como assinalou Correns .,
turais, e não à ação divina (Mayr, 1991,1997). Alguém era darwi- acertadamente. RomanesR( 1894)/cunhou.o terln.o "neo4glXi-r""ji,?$1
nista se considerasse a ciência como uma empreitada secular. Con- cismo" para essenovo tipo de darwinismo sem a herança de ca-l f f),
sequentemente, mesmo opositores da seleçãonatural, como T. H. racterísticasadquiridas. Alguns historiadores recentesexor-t l '
Huxley e Charles LyeU, eram chamados de darwinistas. Não espanta bitaram o usodo termo "neodarwinismo': designandocom eleo
que o termo "darwinismo" tivesse tantos significados no século xix. conjunto de teorias que emergiu da síntese evolucionista, mas isso \
foi um erro. Neodarwinismo é a designaçãopara o darwinismo re- \
1859 1882
visado por Weismann (com a exclusão de toda herança de carac-
U
terísticas adquiridas) .
Os primeiros anos após 1859 foram de considerável confusão
na biologia evolucionista. É certo que duas das cinco teorias de 1900 1909
Darwin, um mundo em çyoluçãoeadescendênciacoWpm,foram
de imediato quase universalmente aceitas,mas as outras três não Quando a obra de Gregor Mendel foi redescobertaem 1900,
eram populares.A seleçãonatural, em particular, era uma visão muitos alimentaram a esperança de que a nova ciência da genética,
um tanto minoritária. com suasleis da hereditariedade, viesse a fornecer as respostas para
O transmutacionismo e as duas teorias transformacionistas as grandes controvérsias sobre evolução que grassavamdesdeos
eram tremendamente mais populares que a evolução variacional dias de Darwin.
de Darwin (Mayr, 2001). Darwin havia desistido da especiação e Os mais destacados geneticistas mendelianos interessados
seusamplos esforços para explicar a natureza e a origem da variação em evolução -- Hugo de Vries (um dos "redescobridores" de
coram malsucedidos. .&.j3ç111nça
dç clractgísticas adquiridas tinha Mendel), William Bateson e Wilhelm Johannsen--, porém, infe-
'1l#. aceitação quase universa . e Darwin a adorou simultaneamente à lizmente rejeitavam a seleçãonatural, pedra de toque do pensa-
seleçãb natural. Isso o ajudou a explicar a ubiqüidade de novas va- mento de Darwin. De Vries, com certeza, favorecia em seulugar o
riações e, para ele,não afetavaa primazia da seleçãonatural. Uma saltacionismo. De acordo com ele, uma nova espéciesurge com
grande parcela dos naturalistas aceitava tal combinação de seleção uma grande mutação genética, que num único salto (salta-
natural e herança de características adquiridas (Plate, 19 13). cionismo) dá origem ao novo táxon. Essateoria saltacionista do-
minou a genética evolucionista de 1900 até por volta de 1915.
1883 1899 Como infelizmente essateoria mendeliano-mutacionista da
mudança evolutiva era de larga aceitação entre geneticistas, foi
Em 1883,August Weismann,o maior evolucionista depois de tomada pela maioria dos naturalistas como a teoria genéticada
Darwin, publicou sua refutação da herança de características evolução,sob o nome de Ug11dçlismo,embora não Fosseapoiada

l34 i35
por alguns "mendelianos': Uma vez que os naturalistas como um perimentos com moscas-das-frutas (].)rosophi/ci), essespesqui-
todo acreditavam em evolução gradual e variação populacional, sadores descobriram que a maioria das mutações era pequena o
eles consideraram o mendelismo saltacionista um tanto ina- bastante para permitir uma mudança gradual em populações;
ceitável, e isso criou um fosso pelo visto intransponível entre saltosrepentinos não eram necessários.Logo o saltacionismo dos
evolucionistas. mendelianos foi considerado obsoleto.'Entre 1915 e 1932, os
Desde a época de Darwin, e mesmo antes dela, aqueles que geneticistaspopulacionais matemáticos Fisher ( 1930), Wright
observavam populações de seresvivos perceberam que a origem ( 1931) e Haldane ( 1932) mostraram que genes com somente pe-
de novas espéciesera em geral um processo gradual. Essesnatura- quenas vantagens seletivas podiam ser incorporados, no tempo
listas não tinham nada a ver com mutacionismo e,ao contrário, se devido, no genótipo de populações. A evolução 6ilética podia agora
aterraram ao conceito de evoluçãogradual, o qual havia sido arti- ser explicada nos termos da nova genética. Lamentavelmente, a
culado inicialmente por Jean-BaptisteLamarck, no começo do maioria dos naturalistas não estava ciente dessesdesenvolvimen-
século xix. Como o gradualismo era explicado pelo transforma- tos e ainda combatia o antigradualismo dos primeiros mende
cionismo lam arckista,essesnaturalistas se tornaram lamarckistas. lianos.
Contudo, os mendelianos não eram os únicos geneticistasda De acordo com a teoria mais ou menos uni6lcada de Fisher e
época. Havia outros, entre elesNilsson-Ehle, Baur, Castle, Easte, seuscolegas,a evolução foi definida como mudança nas frequên-
na Rússia, Tchetverikov, que aceitavam a ocorrência de pequenas cias gênicas em populações, mudança essa ocasionada pela seleção
mutações e seleção natural. A existência dessesgeneticistas gra- natural gradual de pequenas mutações aleatórias. Já em 1932, um
dualistas, no entanto, foi ignorada pelos naturalistas, que concen- consensosobre essesachadoshavia sido alcançado entre asvárias
traram seu ataque no saltacionismo de De Vries e seguidores. No escolasde geneticistasem disputa. Foi uma sínteseentre geneticis
geral, a interpretação darwiniana, com sua ênfaseno papel da tas populacionais matemáticos e selecionistasdarwinianos. Tal
seleção natural, teve seu ponto de popularidade mais baixo nesse síntese,que se pode chamar de f!!!!Srlana em reconhecimento a
primeiro período da genética (começo do século xx) e era, na seu maior representante, solucionou um dos dois maiores proble
época, freqüentemente declarada morta.
mas da biologia evolucionista, o da ::ggpli1l;g!. Lamentavelmente,
tal síntese6isherianado final dos anos 1920 tem sido confundida
1910 1932
por muitos historiadores com uma segunda síntese,que envolveu
a biodiversidade.
A nova ciência da genética desenvolveu metodologias ino-
vadoras e um novo quadro teórico, distanciando-se do trans-
mutacionismo dos mendelianos.Por volta de 19 10, no laboratório A EXPLICAÇÃO DA ORIGEM DA BIODIVERSIDADE
de T. H. Morgan na Universidade Columbia (Nova York), uma
nova geração de geneticistas entrou em cena com descobertas que A adaptação é somente metade da história da evolução. A
contradiziam asvisõesdos primeiros mendelianos. Em seusex- biologia evolucionista se refere a dois processos separados:evo-

l36 i37
lução nHética,ao longo do tempo e no interior de uma dada popu- só forma que muda continuamente ao longo do tempo -- foi o
lação, e a origem e a multiplicação de espécies. Fisher, Wright e feito de uma segundasíntese,iniciada em 1937pela obra de
Haldane estavaminteressadosprimordialmente em determinar !2$2bZIBnlijSy
Geneficsand the origín ofspeciesIGenética e a origem
como uma população evolui à medida que o ambiente muda. Esse das espéciesl.
ramo da biologia evolucionista ficou conhecido como o estudo da Na realidade,os naturalistas europeus,por meio de seutra-
gqage?eeg:Os naturalistas, em contraste, estavam mais interessa- balho em taxonomia e história natural, já dispunham nos anos
dos em diversidade e em determinar como novas espéciesse ra- 1920 de uma explicação para a origem da biodiversidade. De
mi6lcam a partir de espécies parentais. Esse estudo da origem da acordo com essesnaturalistas-taxonomistas,a especiaçãoocorre
biodiversidadecostuma serdesignadocomo dqdçlgé!!glg.
Em ou- quando duaspopulaçõesde uma espéciesetornam 6lsicamente
tras palavras, os geneticistas populacionais matemáticos tratavam separadas uma da outra e, durante esseisolamento espacial, se tor-
da dimensão vertical, ou "temporal'l da evolução (mudanças ao nam também reprodutivamente isoladas,sejapor meio de bar-
longo do tempo em meio a uma dada população), enquanto natu- reirasde infertilidade, sejapor incompatibilidades comportamen -
ralistas na maioria das vezesseocupavam da dimensão horizontal, tais (mecanismos de isolamento) . Às vezes a separação geográfica
ou geográfica, da evolução (a produção de novas espécies em um ocorre por causa de uma nova barreira física (uma nova cadeia de
dado momento) . montanhas ou um novo braço de mar) , ou especiação dicop©!jS12?
e às vezes porque uma população fundadora se estabelece além da
1937 1947 área de distribuição anterior da espécie, ou especiação perioátrica.
Sea população geograâcamente isolada contiver o potencial para
Essesegundo grande problema evolucionista -- a multipli- uma divergênciaimportante, uma nova espéciese rami6icaráda
cação de espécies,ou a origem da biodiversidade -- permaneceu espécieparental. Tanto a especiaçãodicopátrica quanto a peri-
sem solução por meio da sínteseâisheriana.Os geneticistas não pátrica são designadas como especiação geográfica.
conseguiam explicar a especiação porque seus métodos os res- Essasidéias sobre especiação permaneceram desconhecidas
tringiam ao estudo,em cadamomento dado,de uma única popu- para os geneticistas de laboratório. Enquanto isso, os naturalistas
lação, de um único acervo de genes. Embora resolvesseo conflito eram igualmente incapazesde chegara um entendimento pleno da
entre genética mendeliana e seleçãonatural, a síntese6isheriana evolução por causa de sua ignorância sobre desenvolvimentos re-
não conseguiu enâ'entar a divergência entre genética matemática centesna genética. Eles ainda atacavam o modelo saltacionista dos
e biodiversidade. Fisher, Haldane e Wright estavam atentos ao primeiros mendelianos, que Fisher e seuscolegasjá haviam re-
problema da origem da biodiversidade e sereferiram vagamente a futado muito antes.Dado que naturalistas como Stresemanne
ele, sobretudo Wright, mas não pareciam perceber o papel desem- Rensch e zoólogos â'ancesesnão podiam aceitar os grandes saltos
penhado pela localização geográfica de populações e por seu isola- genéticos de De Vries e não estavam cientes das pequenas mu-
mento. Fornecer uma explicaçãode como a vida prolifera em tan- tações descobertas por geneticistas mais recentes, eles se voltaram
tas formas diversas a cada momento dado -- por oposição a uma para o lamarckismo para explicar a evolução gradual. Os natura-

X38 i39
listas (inclusive eu) aceitavam a noção lamarckista de que a varia- derávelentre os geneticistase os naturalistas (taxonomistas).A
ção emergia por meio do uso ou desuso de partes existentes do transposição dessafenda foi iniciada em 1937 com a publicação de
corpo e de que essas"características"adquiridas poderiam ser Genefics arzd fhe orígírz oÍ species,de :!Zl112Z111411gJçy.
Por sua for-
transmitidas para a prole. Embora a maioria dos naturalistas mação,ele estavaidealmente qualificado para essatarefa. Natura-
defendesse firmemente a seleção contra os erros dos saltacionistas, lista desde a infância, havia recebido sua educação biológica na
elestambém retinham uma explicação lamarckista ultrapassada Rússia, onde se interessou pela variação individual e geográ6lca e
da variação. Assim, apesar dos grandes avanços obtidos tanto na pela especiaçãoem um grupo de besouros ( Coccírze/Jidae)
. Com a
genética quanto na taxonomia, havia um abismo profundo de idade de 27 anos, foi para os Estados Unidos e entrou para o labo-
incompreensão entre os geneticistasexperimentais e os naturalis ratório de T. H. Morgan, onde adquiriu plena familiaridade com a
tas-taxonomistas. Alguns geneticistasmatemáticos creditam o
moderna genética evolucionista. O resultado feliz dessasduas
"modelo de paisagem" de Wright como uma contribuição para a influências tão diferentes foi seu livro Genefícsarzd fhe origin of
solução da teoria geográfica da especiação, mas uma análise crítica
specíes,publicado em 1937. Esselivro mostrou a geneticistas e na- " '}
da teoria pertinente não ofereceapoio para tal alegação.
turalistas que suasteorias da evolução eram perfeitamente com- l
Í Esseabismo só foi transposto pela "síntese evolucionista" dos
patíveis e que era possível obter uma síntese das duas principais l
anos 1940. Como mencionado, houve uma síntese anterior, aquela
áreas em !!j!!bglR.ÊyglucjpQisja,.p estuSlo dq Sllgllçgo,6H.étic?.ei!!,.. l
entre genética e darwinismo, à qual me referi como síntese 6lshe-
populações (anagênese) .Slplpggm4B.blgdlvçr$i4ade -- esoécigs, .l
riana (origem da genéticapopulacional matemática) . Ela tem sido
. Essa síntese dos dois l
com freqüência confundida com a sínteseposterior de Dobz
camposfoi completada em publicações subsequentesde Mayr,
hansky (origem da biodiversidade), nas histórias escritas por ge-
Sysfemafícs and f/ze origin ofspecies ISistemática e a origem das
peticistas. Essa síntese anterior ("fisheriana") lidava com acervos
espéciesl ( 1942); Huxley, .Evo/zztíon,f/ze modem synfhesís devolu-
genéticos simples, com populações únicas, com variações genéti-
ção, a síntese modernas ( 1942); Simpson, tempo íznd made ifz evo-
case com a origem da adaptação.Não fez contribuição alguma
para a solução do problema da biodiversidade. Permanecia o /ufíon [Ritmo e modo em evolução] (1944); Stebbins, Maríafíon

abismo entre os geneticistas,particularmente interessadosem alzdevo/ufion inp/anis IVariação e evolução em plantasl ( 1950); e,
variação e adaptação, e os taxonomistas, interessados na origem da no continente europeu, por Rensch ( 1947).
biodiversidade. Essasíntese dos anos 1940 tratou primordialmente da origem

Na realidade, não havia mais conflito entre a interpretação e do significado da biodiversidade: como e por que surgem novas
micromutacional da evolução(tal como é aceitahoje por gene- espécies. Toda população tem de estar bem adaptada, em cada
ticistas) e as idéias evolucionistas dos naturalistas. No entanto, os momento, e isso basta para explicar as mudanças que ocorrem
geneticistaslidavam apenascom uma dada população, e o campo numa espécieno curso do tempo Mas a população não precisa
da origem da biodiversidade ficava fora do alcance de sua meto- produzir novas espécies para permanecer adaptada. Os mecanis
dologia. Em conseqüência,havia ainda uma distância consi- mos que produzem novas espéciesrequerem explicações muito

i4o i41
diversas dos mecanismos que mantêm a adaptação estudados por muitos anos depois (Mayr, 1977) . Na realidade, apesar da síntese,
geneticistas. a definição de evolução (seja reducionista, sejaholista) continuou
Outro grande feito da sínteseevolucionista foi estabelecer a ser o ponto principal de desacordo entre os geneticistas e os na-
uma frente comum dosverdadeirosdarwinistas contra três teorias turalistas. Para os naturalistas, a evolução é mais que a mudança
não darwinianas de evolução que ainda eram largamente aceitas nas frequências de genes:é a aquisição e a manutenção de adap-
por volta de 1930:lamarckismo (ainda aceita,então,por muitos tação e a origem de nova biodiversidade.
naturalistas),saltacionismojpromovido por Schindewolf ( 1950)
e por Goldschmidt ( 1940) com seus "monstros esperançosos"l e 1950 2000
ortoaênese (uma crença num gênero de componente teleológico,
orientado por uma meta, em evolução). Após a síntese,essastrês Imediatamente após a síntese veio a revolução molecular, um
teorias não tinham mais função em discussõesevolucionistas episódio de fato revolucionário na história da biologia. Avery
sérias (Mayr, 2001). mostrou em 1944que o material genético consiste não em proteí-
Em 1947,quando evolucionistas se encontraram em Prince- nas, mas em ácidos nucléicos; Watson e Crick descobriram em
ton num simpósio para celebrara síntese,perceberam que de fato 1953a estrutura do ONA,o que permitiu explicar suasatividades.
um consenso fora alcançado, em grande medida, e que as maiores Essadescoberta abriu uma nova e crucial dimensão para a análise
controvérsias dos cinqüenta anos precedentesjá haviam se trans- genética e resolveu inumeráveis questões antes insolúveis. Final-
formado em assunto para historiadores. Restavasomente um mente, em 1960, Jacobe Monod mostraram que havia vários tipos
único desacordosério entre os dois campos, relacionado com o de ONAe,em particular, um ONAregulador especialque controla a
objeto de seleção.Para os naturalistas, assim como havia sido para atividade dos genes estruturais. Essas descobertas produziram
Darwin, era o á!!gi:ijg!!e, enquanto para os geneticistas era o gÊBg uma mudança tão cataclísmica nas idéias dominantes que era
em parte porque issofacilitava a computação. Na realidade, trata- justo esperar um efeito drástico sobre o darwinismo.
se de uma diferença bem importante, porque ilustra a tendência Com efeito, a biologia molecular fez inumeráveis contri-
reducionista dos geneticistas populacionais, ao passo que os prin- buições importantes para nosso entendimento da evolução.Ela
cipais artífices da síntese,sobretudo os naturalistas, tinham visões mostrou que o código genético é essencialmente o mesmo desdeas
marcadamente holistas. Já antes da síntese, eu, como a maioria dos bactérias primitivas até os organismos multicelulares superiores.
naturalistas, era um holista. A evolução,para mim, dizia respeito Isso demonstra que toda a vida hoje existente na Terra descende de
ao organismo todo, e o organismo como um todo era o alvo da uma única origem. A biologia molecular também mostrou que a
seleção. Essa era, obviamente, a tradição darwiniana. Admito que, informação só pode sertransferida de ácidos nucléicos para pro-
durante a síntese,empreguei a fórmula padrão dos geneticistas, teínas, e não de proteínas para ácidos nucléicos. Essa é a razão pela
segundo a qual "a evolução é uma mudança na freqüência dos qual não pode haver herança de características adquiridas.
genes':embora isso fossede fato incompatível com meu pensa
mento holista. Mas não me dei contadessacontradição senão

i4z i43
GENâMICA
como tem sido grande a contribuição dos métodos moleculares
para a solução de problemas da evolução.
O impacto maior da revolução molecular sobre a biologia No entanto, a abordagem centrada no geneda maioria dos
evolucionista viria da genõmica, o estudo com.patlltlvo de s$.ql4ÊB- biólogos moleculares tem levado a algumas discordâncias. A
$liasgên cas Ela mosto:õuqiiFi7ãbiosgenes são muito velhos. Por chamada çl:çl!!!Sãoneutra, por exemplo, é considerada por muitos
exemplo, alguns genesmamíferos podem ser identificados com biólogosmolecularescomo um modo importante de evolução,
genesem silos de não-cordadose até com genesprocariotos. A mas é ignorada por naturalistas, porque genesneutros não são
genõmica permite o estudo do efeito da substituição de pares de visíveis no fenótipo.
basesisolados, o efeito da inserção de ONAnão codificante, o trân- A sequênciade paresde basesno genoma fornece uma quan-
sito de genespor transferênciahorizontal e o efeito de todas as tidade enorme de informação sobre o parentesco e a âilogenia de
num erosas mudanças de genes e de sua posição nos cromossomos. organismos. As características-padrão m oríológicas, usadas desde
A invenção do relógio molecular por Zuckerhandl e Pauling foi o princípio dos estudos filogenéticos, eram por vezesinsu6lcientes
uma enorme contribuição para a metodologia evolucionista. A para chegar a uma filogenia con6iável. Os métodos da biologia
genõmica está em processo de setransformar em um ramo impor- molecular forneceram informação abundante, o que permitiu
tante de genética evolucionista. Não pode ser abrangida com pou- uma reestruturação revolucionária da filogenia de vários grupos
caspalavras, e aqui remeto para a literatura relevante (Campbell e de organismos.
Heyer,2002). '

A revolução molecular é particularmente importante por


duas razões. Ela permitiu reviver várias divisões da biologia clás- A SOLIDEZ DO ATUAL PARADIGMA DARWINIANO
sica, como a biologia do desenvolvimento e todos os aspectosda
fisiologia dos genesque haviam sido negligenciados antes. no O período que vai dos anos 1940 (sínteseevolucionista) até o
século xx. Ao adotar métodos e teorias moleculares, essasáreas presente tem sido de grandes avanços em biologia, incluindo o
experimentaram uma revitalização e uma aproximação com os surgimento e a ascensãoespetacular da biologia molecular. Seria
ramos modernos da biologia. Entre outros avanços,talvez o mais de esperar que isso tivesse ocasionado uma revisão cabal do dar-
mteressan te tenha sido que, por meio da biologia molecular, vários winismo. Contrariamente à expectativa, nada no gênero aconte
físicos e bioquímicos vieram a se interessar por evolução. Isso ceu.O paradigma darwiniano produzido nos anos 1940,durante
resultou em esforço para estreitar a distância entre ramos da a síntese evolucionista, foi capaz de resistir sem uma revisão signi-
biologia que anteriormentetinham pouco conhecimento um do ficativa a todos os ataquescontra ele dos últimos cinqüenta anos.
outro. Foi assimque a biologia molecular deu uma contribuição Isso sugere que se possa acreditar, com cautela, que o paradigma
importante para a uni6lcaçãoda biologia que tevelugar no século darwiniano adotado durante a sínteseevolucionista sejaessencial-
xx. Um exame de quasetodas as edições atuais de .Evo/ufíon,The mente válido. A fórmula;.garWjgBly básiçê.:=.evolução eqlelul-
Áme7ícan Atar ra/jsf ou outros periódicos evolucionistas revelará tado de variação genética e de sua discriminação .p.glm$o de eli-

i44
i45

L
minação e seleção-- é abrangente o bastante para dar conta de história da síntese,com uma discussão dos numerosos erros e
todas as eventualidades naturais. Buscar uma nova teoria (para- imprecisões que assolam os relatos de alguns geneticistas e histo-
digma) evolucionista parecehoje uma empreitada inútil. Nos últi- riadores(1992, 1993, 1997, 1999a, 1999b, 2001). Em particular,
mos cinqüenta anos, ou até mais que isso, a cadaano um novo assinalo que algun shistoriadores confundiram a síntese 6isheriana
artigo ou mesmo um livro era publicado em que sepostulava um dos anos 1920 com a síntese dos anos 1940.
erro ou omissãosériosdo darwinismo. O autor propunha uma Qual nome devemos aplicar à versão do darwinismo desen-
nova teoria, ou novas teorias, que ele ou ela alegava corrigir esse volvida nos anos 1940?Erroneamente, ela foi com freqüência
erro e preencher a lacuna. Infelizmente, nem uma única dessas chamada de neodarwilzísmo, mas tal escolha é um evidente equí-
propostas serevelou construtiva. O já clássicodarwinismo era voco. Neodarwinismo é o termo reservado por Romanos, em 1894,
sempre confirmado, e as supostas melhorias e correções, refu- ao paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve lso# irzheri-
tadas. Isso sugere que o darwinismo está se acercando da maturi- rancel (isto é, sem a crença na herança de características adquiri-
dade plena. Existem ainda, obviamente, numerosos enigmas por das), mas isso vale para todo o darwinismo desde os anos 1920. A
solucionar, como a função de todo o DNAnão codi6lcante, mas não nova teoria evolucionista, produto da síntese das teorias dos estu
consigo ver em que a solução de qualquer um dos enigmas res- diosos da anagênesee da cladogênese, foi chamada de ISol;jg:!in-
tantes possater um efeito perceptívelno paradigma darwiniano téticg:44 evolução. Na realidade, a melhor solução seria chama-la,
básico. simplesmente,
j: ' ' ' de (bela:jpismp.
.-'-"'''"""--.-b.«-aa:UaW Com efeito, trata-se, em essência,
As principais controvérsias em biologia evolucionista, nos da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação
anos recentes,tais como a importância da adaptação, o papel do e sem a hereditariedade leve. Como essaforma de hereditariedade
acaso,o pensamento populacional, o gradualismo da evolução, a foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na
constância das taxas evolutivas etc. se referem a indivíduos e po- retomada do simples termo "darwinismo': porque ele engloba os
pulações, e não a genes.Mesmo a descoberta de Jacobe Monod de aspectosessenciaisdo conceito original de Darwin. Em particular,
que há diferentes tipos de genes,estruturais e reguladores, não afe- refere-seà inter-relação entre variação e seleção,o cernedo para-
tou a teoria darwiniana. As duasprincipais razõesda solidez do digma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao para-
paradigma darwiniano estãoprovavelmente no fracassodo redu- digma evolucionista, após um longo período de maturação, sim-
cionismo e na simplicidade do darwinismo básico. plesmente como darwinismo.

O DARWINISMO DO PRESENTE

Estafoi uma versão extremamente abreviada da história do


darwinismo desde 1859 e, sobretudo, a partir da década de 1920.
Recentementepubliquei várias narrativas mais detalhadas da

t46 i47

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