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ARTIGO ARTICLE
O papel profissional do enfermeiro no Sistema Único de Saúde:
da saúde comunitária à estratégia de saúde da família

The role of the nurse in the Brazilian Unified Heath System:


from community health to the family health strategy

Dirce Stein Backes 1


Marli Stein Backes 2
Alacoque Lorenzini Erdmann 2
Andreas Büscher 3

Abstract The scope of this paper is to take a ret- Resumo Objetiva-se, com este trabalho, possibi-
rospective look at the professional role of the nurse litar um olhar retrospectivo do papel profissional
in the Brazilian Unified Health System and un- do enfermeiro no Sistema Único de Saúde brasi-
derstand the meaning of their social practice in leiro, bem como compreender o significado de sua
this field of discussions and theoretical-practical prática social neste campo de discussões e signifi-
meanings. The Grounded Theory was used as a cações teórico-práticas. Utilizou-se como referen-
methodological reference and interviews were the cial metodológico a Grounded Theory e como téc-
technique for data collection, conducted between nica de coleta de dados a entrevista, realizada en-
May and December of 2007, with 35 health pro- tre maio a dezembro de 2007, com 35 profissionais
fessionals and others. The codification and data da saúde e outros. A codificação e análise dos dados
analysis revealed that the Unified Health System evidenciaram que o Sistema Único de Saúde e, de
and especially the Family Health Strategy, should modo especial a Estratégia Saúde da Família, po-
be considered facilitating and stimulating strate- dem/devem ser considerados estratégias facilita-
gies of the process of expansion and consolidation doras e estimuladoras do processo de ampliação e
of nursing care as a social entrepreneurial prac- consolidação do cuidado de enfermagem como prá-
tice, since they pave the way to a new approach tica social empreendedora, à medida que sinali-
in community intervention, through seeing the zam para uma nova abordagem de intervenção
human being as a multi-dimensional and singu- comunitária, pela valorização do ser humano
lar being, inserted in a real and concrete context. como um ser singular e multidimensional, inseri-
Key words Nurse’s role, Community health nurs- do em seu contexto real e concreto.
ing, Public health, Unified Health System, Fam- Palavras-chave Papel do enfermeiro, Enferma-
ily Health Program gem em Saúde Comunitária, Saúde coletiva, Sis-
1
Conselho de Áreas, Centro
tema Único de Saúde, Programa Saúde da Família
Universitário Franciscano.
Rua Duque de Caxias 938,
Centro. 97010-200 Santa
Maria RS.
backesdirce@ig.com.br
2
Universidade Federal de
Pelotas
3
Hochschule Osnabrück.
Fakultät Wirtschafts-und
Sozialwissenschaften,
Germany
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Backes DS et al.

Introdução cionalizada6-10. É preciso levar em conta, no en-


tanto, que a enfermagem como prática comuni-
A enfermagem vem ampliando, a cada dia, o seu tária se cunhou de novos significados conceitu-
espaço na área da saúde, tanto no contexto nacio- ais, possibilitados pela concepção de saúde cole-
nal quanto no cenário internacional. O enfermei- tiva, campo ainda em constituição e que, cres-
ro assume um papel cada vez mais decisivo e pró- centemente, vem assumindo diversas formas e
ativo no que se refere à identificação das necessi- abordagens.
dades de cuidado da população, bem como na O termo saúde coletiva surgiu, mais especifi-
promoção e proteção da saúde dos indivíduos camente, no fim da década de 70, em um mo-
em suas diferentes dimensões. O cuidado de en- mento de reordenamento de um conjunto de prá-
fermagem é, portanto, um componente fun- ticas assistenciais, diante da necessidade de am-
damental no sistema de saúde local, que apre- pliar a compreensão do processo saúde-doença
senta os seus reflexos a nível regional e nacional dos indivíduos e comunidades, pela inserção e
e, por isso, também motivo de crescentes deba- valorização dos diferentes saberes profissionais e
tes e novas significações. a integração com os diferentes setores sociais. A
Mesmo que interligada e complementada por compreensão do coletivo significa, a partir de en-
outros saberes profissionais, a enfermagem pode tão, a apreensão do individual em seu contexto
ser amplamente definida como a ciência do cui- estruturado de práticas sociais. Significa reconhe-
dado integral e integrador em saúde, tanto no cer o indivíduo – ser individual - como um ser
sentido de assistir e coordenar as práticas de cui- social, em constante interação com os outros in-
dado, quanto no sentido de promover e prote- divíduos e com o seu entorno, ou seja, o indiví-
ger a saúde dos indivíduos, famílias e comunida- duo se transforma e é transformado continua-
des. Nessa direção, o cuidado de enfermagem mente, por meio das relações e interações, tor-
configura-se como prática social empreendedo- nando-se protagonista e autor do processo saú-
ra, pela inserção ativa e pró-ativa nos diferentes de-doença em seu contexto real e concreto11.
espaços de atuação profissional e, principalmen- A mudança conceitual do termo - saúde pú-
te, pelas possibilidades interativas e associativas blica para saúde coletiva - é reflexo de um inten-
com os diferentes setores e contextos sociais1. so engajamento dos movimentos sociais na luta
Evidências internacionais acenam para a im- pela democratização do país, além da centralida-
portância do papel profissional do enfermeiro de assumida pela Assembléia Nacional Consti-
na saúde coletiva, tanto no espaço domiciliar tuinte, em 1977. Emergida como parte dessa luta
quanto no espaço comunitário ou nos centros pela democracia, a Reforma Sanitária, no Brasil,
de saúde comunitários. A enfermagem tem a alcançou a garantia constitucional do direito uni-
possibilidade de operar, de forma criativa e au- versal à saúde e a construção institucional do
tônoma, nos diferentes níveis de atenção à saú- Sistema Único de Saúde (SUS), aprovado na
de, seja através da educação em saúde, seja na Constituição Federal de 198812,13.
promoção ou na reabilitação da saúde dos indi-
víduos. Esse processo se dá, particularmente, no O Sistema Único de Saúde –
esforço pelo levantamento de situações críticas e possibilidades profissionais
a intervenção sistematizada de um plano de cui-
dados, capaz de superar as fragmentações e as- O SUS foi criado, nessa perspectiva, a partir
segurar a continuidade e a resolutividade do cui- das manifestações de um conjunto de necessidades
dado em saúde2-4. Nesse campo de discussões, o sociais de saúde, as quais imprimem um caráter
papel profissional do enfermeiro é ampliado pela ético-moral que a defende como direito de todo
estratégia da Organização Mundial da Saúde cidadão. Enquanto conquista das lutas participa-
“Saúde 21”, saúde para todos no século 21 e pri- tivas e democráticas, o SUS se desenvolve com base
oridade número um para a região européia, a nos princípios de acesso, universalidade, equidade
qual se concentra em alcançar níveis cada vez mais e integralidade, e com base nas diretrizes organiza-
amplos de saúde e, desse modo, favorecer ao ser tivas de descentralização, regionalização, hierarqui-
humano uma vida social e economicamente pro- zação e participação da comunidade14.
dutiva e com mais qualidade5. Como estratégia de reformulação do mode-
No Brasil, vários estudiosos se empenham lo brasileiro de atenção à saúde e o fortalecimen-
em dar visibilidade ao papel profissional do en- to dos princípios e diretrizes do SUS, o Ministé-
fermeiro, seja como prática social comunitária, rio da Saúde criou, em 1994, a Estratégia Saúde
autônoma, ou como prática assistencial institu- da Família (ESF), inicialmente denominada Pro-
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grama de Saúde da Família. A estratégia nasceu Metodologia
na tentativa de repensar os padrões de pensa-
mento e comportamento dos profissionais e ci- Trata-se de um estudo de abordagem qualitati-
dadãos brasileiros, até então vigentes. Sistemati- va-exploratória, orientado pelo método Groun-
zada e orientada por equipes de saúde da família ded Theory.
que envolve médicos, enfermeiros, técnicos de A Grounded Theory é um método que per-
enfermagem, odontólogos e Agentes Comunitá- mite explorar os dados de forma criativa, abran-
rios de Saúde (ACS), a ESF busca discutir e am- gente e interativa, por levar em conta que muitas
pliar o tradicional modelo sanitário médico-cu- coisas podem ser consideradas dados de pesqui-
rativista, para a compreensão de uma aborda- sa. Constituiu-se num processo em que os da-
gem coletiva, multi e interprofissional, centrada dos coletados, codificados e comparados de for-
na família e na comunidade, inserida em seu con- ma simultânea e sistemática, possibilitam explo-
texto real e concreto8,9. rar os significados e hipóteses, nesse caso, do
Sendo a ESF uma estratégia de fomento à papel do enfermeiro, sob diferentes ângulos e
participação da população, esta deve, crescente- espaços 15,16.
mente, promover uma nova relação entre os su- A amostra teórica foi constituída por 35 (trin-
jeitos, onde tanto o profissional quanto o usuá- ta e cinco) participantes, distribuídos em 04 (qua-
rio podem/devem ser produtores e construtores tro) grupos amostrais de 08 (oito) ou 09 (nove)
de um viver mais saudável. Este envolvimento, componentes, inseridos nos mais diferentes ce-
no entanto, só é possível mediante um processo nários da saúde da Grande Florianópolis/SC,
dialógico entre os diferentes saberes, no qual cada Brasil.
um contribui com o seu conhecimento peculiar e O primeiro grupo foi selecionado pelos pes-
juntos possibilitam uma interação efetiva pela quisadores de forma intencional. Já o segundo,
valorização das diferentes experiências e expecta- foi indicado pelos componentes do primeiro gru-
tivas de vida9. po e, assim, sucessivamente, considerando sem-
É neste contexto de discussões, conquistas e pre as hipóteses emergentes de cada entrevista
desafios que o enfermeiro precisa delinear cada analisada e codificada. Dentre os entrevistados,
vez mais e melhor o seu campo de atuação pro- encontram-se: enfermeiros, médicos, odontólo-
fissional e desenvolver o seu projeto político-le- gos, nutricionistas, farmacêuticos, psicólogos,
gal, coerente com os princípios e diretrizes do teólogos, pedagogos, gestores e usuários da saú-
SUS, bem como com as diretivas da ESF. Um de, que após serem orientados acerca dos objeti-
projeto profissional, portanto, que necessita con- vos da pesquisa, assinaram o termo de consenti-
siderar o ser humano – ser individual e coletivo – mento livre e esclarecido.
como sujeito e ator social. Nessa direção, questi- O processo de coleta e análise dos dados, re-
ona-se: Qual o significado do papel profissional alizado concomitantemente entre os meses de
do enfermeiro no Sistema Único de Saúde brasi- maio a dezembro de 2007, conforme os pressu-
leiro e qual o significado de sua prática social postos da Grounded Theory, possibilitou, além
neste campo de discussões e significações teóri- da construção de hipóteses, gerar conhecimen-
co-práticas? tos que permitiram ampliar a compreensão do
Pretende-se, a partir do exposto, situar a en- papel do enfermeiro no SUS e na ESF, bem como
fermagem frente às práticas em saúde coletiva, vislumbrar novas possibilidades empreendedo-
mais especificamente no SUS, para compreender ras na enfermagem.
como esta vem se constituindo enquanto uma O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética
das disciplinas que contribui de forma decisiva em Pesquisa da Universidade Federal de Santa
para a consolidação dos princípios e diretrizes Catarina - UFSC. Para manter o sigilo das infor-
do SUS. Objetiva-se, assim, possibilitar um olhar mações, os participantes da pesquisa foram iden-
retrospectivo sobre o papel profissional do en- tificados, ao longo do texto, pela letra “E” (entre-
fermeiro no Sistema Único de Saúde brasileiro, vistado), seguida do número correspondente à
bem como compreender o significado de sua prá- ordem de realização das entrevistas (p1, p2, p3...
tica social neste campo de discussões e significa- p35).
ções teórico-práticas.
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Backes DS et al.

Resultados compreender o indivíduo – ser singular e multi-


dimensional - em seu contexto real e concreto.
O SUS é reconhecido e ressaltado pelos entrevis- Os entrevistados envidenciaram que, com a
tados como um dos maiores sistemas de mobili- criação do SUS, os profissionais da saúde, mais
zação social, pelo acesso, cobertura e garantia da especificamente o profissional enfermeiro, am-
continuidade pela integração com os diversos pliou a sua atuação e inserção no campo comu-
setores e às diversas políticas sociais. É reconhe- nitário e social. Esta prática foi ampliada ainda
cido igualmente como um sistema empreende- mais, com as oportunidades oferecidas pela ESF,
dor, por promover a participação da comunida- a qual proporcionou maior visibilidade e se apre-
de nas discussões que dizem respeito à saúde, senta como um espaço aberto, sensível e flexível
conforme expresso na fala a seguir: para a emancipação e a transformação social,
O sistema de saúde do país, talvez seja um dos como bem evidencia a fala, a seguir:
maiores setores de mobilização social. Se conside- A ESF deu maior visibilidade para o papel pro-
rarmos empreendedorismo como transformação, fissional do enfermeiro, principalmente no campo
mobilização, isto existe, porque produzimos gran- da saúde coletiva. O enfermeiro na saúde coletiva
des resultados, principalmente na saúde... Os pró- sempre existiu... mas hoje está tendo uma maior
prios conselhos de saúde que mobilizam a partici- visibilidade. A ESF se apresenta como um espaço
pação da população e o controle social devem ser aberto e sensível para atuar nas famílias, comuni-
considerados empreendedores... na lógica do social, dades, associação de moradores, nas escolas, nos
os princípios do SUS possuem a definição para o sindicatos, nas políticas públicas e outros. Então,
sucesso (E9). hoje, o enfermeiro tem um espaço aberto na socie-
Por meio dos princípios da universalidade, dade para trabalhar a questão da cidadania, das
integralidade, equidade, trouxe implícito um novo políticas públicas, da educação em saúde (E27).
modelo de intervenção e participação social, es-
pecialmente com a criação da Estratégia Saúde SUS – Novo modo de pensar e agir
da Família, conforme refletem as falas a seguir:
Precisamos reconhecer que o SUS trouxe no- Com a criação do SUS, e especialmente a ESF,
vas oportunidades de mobilização e participação o enfermeiro tem o seu espaço de atuação garan-
social, principalmente pelo programa estratégia tido, mesmo que para alguns profissionais a
saúde da família (E3). emergência do novo modo de pensar e agir ainda
O SUS representa para o enfermeiro e demais represente certo desconforto e insegurança pela
profissionais da saúde uma grande conquista, pela necessidade de inserção ativa e responsável na
ampliação das oportunidades de atuação, princi- vida das comunidades, como reflete a fala:
palmente na educação e promoção da saúde (E7). Mesmo sem a coragem de mudar, o enfermeiro
e os outros profissionais são levados (provocados)
SUS – Ampliação da intervenção pelo sistema de saúde a mudarem os seus compor-
comunitário-coletiva tamentos e o modo de pensar (E9).
Nessa direção, os entrevistados trazem à tona
Para os entrevistados, o SUS também passou que independente da vontade pessoal/profissio-
a dar um novo sentido à saúde como bem-soci- nal, os enfermeiros, como os demais profissio-
al, com foco na promoção e intervenção comu- nais da saúde são impulsionados pelo sistema a
nitário-coletiva, com vistas a superar a fragmen- adotarem uma nova postura de intervenção nos
tação do modelo biomédico e hospitalocêntrico, diferentes cenários da saúde:
conforme salientam as falas: Anos atrás, o hospi- Mesmo que este profissional não ouse por con-
tal era mais importante porque tinha 70% de tra- ta própria, ele está sendo colocado num espaço que
balhadores empregados... isto mudou. A lógica hoje está cheio de oportunidades e desafios que preci-
é a saúde coletiva (E13). sam ser considerados (E31).
A ênfase a partir do SUS é a promoção da saú- Esse novo modo de pensar e agir, constatado
de, a atenção básica, a saúde da família (E16). tanto pelos profissionais quanto pelos usuários
[...] temos uma amplitude de sistema que ne- da saúde, que impregnados pela lógica fragmen-
nhum outro país tem (E17). tada, dicotômica e pouco resolutiva, demonstra-
O SUS possibilitou um olhar mais ampliado ram, inicialmente, insegurança e desconforto di-
sobre o processo saúde-doença, pela valorização ante do novo, como evidencia a fala de uma das
dos diferentes saberes profissionais. Possibilitou enfermeiras entrevistadas:
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O usuário da saúde ainda está muito acostu- saúde da família. No entender dos entrevistados,
mado a ser atendido em partes, então no início ele o enfermeiro se aproxima, identifica e procura
estranha muito [...]. Ficou bastante visível nas criar uma relação de empatia com o usuário, in-
primeiras visitas que o paciente e a família estão dependentemente das suas condições sociais. O
desacreditados (E7). enfermeiro é aquele que encaminha e otimiza as
O espaço social, caracterizado como espaço intervenções de cuidado em saúde de modo que
familiar e comunitário, possibilita um aprendi- integre e contemple tanto os saberes profissio-
zado instigador e contínuo, além de uma intensa nais quanto os saberes dos usuários.
troca de experiências, tanto para enfermeiros e Os resultados evidenciam, em suma, que os
outros profissionais como para os usuários da profissionais de saúde se encontram, por meio
saúde. Possibilita, também, a realização e bem- do SUS e mais especificamente através da ESF,
estar profissional, pela conquista da autonomia diante de um novo modelo assistencial, no qual
e reconhecimento por parte dos usuários da saú- o impacto do desconhecido e a insegurança di-
de, conforme refletem as falas: ante do novo são inevitáveis, mas motivadores e
Eu preciso encontrar espaços onde eu possa for- animadores para o crescimento profissional e o
talecer a autonomia, e a comunidade me propor- desenvolvimento social integrado e integrador.
ciona isto... (E6). Desse modo, tanto o SUS quanto a ESF podem/
Na família, a gente precisa levar em conta a devem ser considerados estratégias facilitadoras
autonomia do usuário... tem a possibilidade de tro- e estimuladoras do processo de ampliação e con-
ca, de eu também aprender. Então existe toda uma solidação do cuidado de enfermagem como prá-
interação, o usuário passa a ser ator do processo tica social empreendedora, comprometida com
(E13). o desenvolvimento humano e a transformação
Pelo fato de ser um curso que tem uma for- social.
mação universitária generalista, a enfermagem
está qualificada, no entender dos entrevistados,
para integrar e fomentar ativamente os princípi- Discussão
os do sistema de saúde vigente, sobretudo, nas
atividades interativas e gerenciais, as quais re- As discussões em torno da atuação dos profissi-
querem maior envolvimento, sistematização e onais da saúde no SUS, convergem para o reco-
comprometimento com as reais necessidades de nhecimento de que o enfermeiro é o interlocutor
saúde da população. e o principal agente catalisador das políticas e
programas voltados para a saúde coletiva, em
SUS – Ampliação das interações especial para a ESF que requer um envolvimento
e associações profissionais efetivo com as reais necessidades de saúde das
famílias e comunidades6.
A partir da lógica do SUS, o cuidado de enfer- Esse pensar é corroborado por profissionais
magem é visibilizado como prática interativa, da área, ao argumentarem que o enfermeiro, cuja
multidimensional e interdisciplinar, ou seja, como essência e especificidade é o cuidado do ser hu-
prática social que integra uma rede de relações e mano em todas as suas dimensões, individual
associações comunitárias. Nessa direção, os par- ou coletivamente, de forma integral e holística, é
ticipantes entendem que é preciso ocorrer uma formado para atuar nos diferentes espaços soci-
articulação crescente com os diferentes profissi- ais, tais como: na atenção, na gestão, no ensino,
onais que atuam no sistema de saúde para que a na pesquisa, no controle social, bem como no
pessoa humana, em seu contexto singular e cole- fomento de ações educativas e de promoção da
tivo, seja compreendida como um ser integral - saúde dos indivíduos, famílias e comunidades.
protagonista do seu processo saúde-doença. Nessa direção, a autonomia e o protagonismo
O enfermeiro é reconhecido, nessa perspecti- social do enfermeiro são construídos por con-
va, pela habilidade interativa e associativa, por quistas técnico-científicas, legais e políticas pelo
compreender o ser humano como um todo, pela desenvolvimento de práticas cidadãs comprome-
integralidade da assistência à saúde, pela capaci- tidas com o bem-estar social17,18,8.
dade de acolher e identificar-se com as necessi- O Ministério da Saúde brasileiro, por meio
dades e expectativas dos indivíduos, pela capaci- do Departamento de Gestão da Educação na Saú-
dade de interagir diretamente com o usuário e a de, vem atuando, crescentemente, no sentido de
comunidade, bem como pela capacidade de pro- reorientar e ampliar a formação dos profissio-
mover o diálogo entre os usuários e a equipe de nais da saúde, de modo geral, para a área da
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Atenção Primária, com o intuito de fortalecer a no entanto, que o processo de trabalho ainda é
cobertura da ESF e aumentar a resolutividade da marcado por diversos interesses, conflitos e ne-
atenção à saúde no SUS. A referida formação cessidades, ou seja, por tensões e confrontos, nos
também faz parte da Política Nacional de Educa- quais, de um lado, se encontram os interesses
ção em Saúde, que traz à tona aspectos como o políticos e, de outro lado, os interesses dos tra-
conceito ampliado de saúde; a utilização de me- balhadores em geral, que nem sempre são equa-
todologias ativas de ensino-aprendizagem, que cionados de forma a atender aos anseios de am-
considerem o trabalho como eixo estruturante bas as partes envolvidas.
das atividades; o trabalho em equipe multipro- A partir do exposto, o enfermeiro não se apre-
fissional e transdisciplinar; a integração entre o senta neutro, como também não atua somente
ensino e os serviços de saúde; o aperfeiçoamento com saberes e práticas técnicas, ainda que neces-
da atenção integral à saúde, a qualificação da ges- site destas para constituir-se como prática social
tão, dentre outros19. nos diferentes cenários da saúde. O espaço do
A partir destas iniciativas do Ministério da enfermeiro, mais especificamente a partir do SUS
Saúde e da Educação, o enfermeiro tem voltado, e da ESF, se apresenta como um campo aberto e
crescentemente, o seu foco de atenção para a edu- sensível às necessidades sociais emergentes. É evi-
cação, promoção e proteção da saúde. Nessa di- dente, porém, que esses esforços ainda são coro-
reção, os gestores, os usuários e os demais pro- ados por um êxito apenas modesto, consideran-
fissionais da saúde visualizam a atuação da en- do a necessidade de ampliar as discussões em
fermagem como algo considerado imprescindí- torno do modelo de saúde, ainda hegemônico
vel, e que nos serviços há melhor desempenho nos seus serviços e práticas, da formação de pro-
quando estes são coordenados por enfermeiros. fissionais qualificados e comprometidos para o
Para alguns autores, no entanto, o potencial do SUS e a ESF e, principalmente, da ampliação do
enfermeiro precisa ainda ser evidenciado, para debate acerca da enfermagem como prática soci-
um melhor aproveitamento da sua força de tra- al empreendedora.
balho, podendo assim refletir na melhoria da
qualidade da assistência prestada por esses pro-
fissionais junto aos serviços de saúde6. Considerações finais
No campo assistencial comunitário ou na
ESF, o enfermeiro lança mão tanto de uma série Um olhar retrospectivo sobre o papel do profissi-
de tecnologias que incluem os equipamentos e o onal enfermeiro no Sistema Único de Saúde bra-
instrumental necessários ao desenvolvimento do sileiro – 20 anos de SUS, permite argumentar que
trabalho – como, por exemplo, os aparelhos, a este e, de modo especial, a ESF, podem ser consi-
estrutura física, os procedimentos técnicos, os derados estratégias facilitadoras e estimuladoras
folhetos educativos, os conhecimentos estrutu- do processo de mobilização social, da ampliação
rados acerca da epidemiologia, o planejamento da intervenção comunitário-coletiva, de um novo
em saúde e outros –, quanto de tecnologias que modo de pensar e agir, bem como pelas novas
envolvem as relações, as interações e as associa- possibilidades interativas e associativas, à medida
ções entre os usuários e as famílias, que dizem que sinalizam para uma nova abordagem de in-
respeito ao vínculo, ao acolhimento, às relações tervenção social, não mais focada nos reducio-
humanizadas, dentre outros20. Nesse sentido, a nismos do saber médico-curativista, mas centra-
atuação do enfermeiro vai além da dimensão téc- da na educação, promoção e proteção da saúde.
nico-assistencialista ou da aplicação imediata e Em outras palavras, à medida que, para superar
direta dos conhecimentos técnico-científicos e se o enfoque reducionista, os enfermeiros buscam
concentra em saberes que levam em considera- adotar perspectivas integradoras de variáveis
ção as inter-relações e a dinâmica coletivo-social múltiplas, para captar amplamente a complexi-
de todos os envolvidos no processo. dade do processo saúde-doença.
No campo gerencial, o qual envolve o pro- Sendo uma profissão fundamental no siste-
cesso de trabalho da enfermagem na saúde cole- ma de saúde, a enfermagem se destaca e diferen-
tiva, destacam-se as possibilidades de inserção cia pelo desenvolvimento de práticas interativas
na agenda municipal por meio das políticas pú- e integradoras de cuidado, às quais vêm adqui-
blicas, as quais visam crescentemente atender tan- rindo uma repercussão cada vez maior, tanto na
to às necessidades de saúde da população, quan- educação e promoção da saúde, quanto no fo-
to considerar os níveis de satisfação profissional mento de políticas voltadas para o bem-estar
e pessoal dos trabalhadores. Deve-se considerar, social das famílias e comunidades. Nessa dire-
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ção, a enfermagem se configura, crescentemente, diversos setores sociais e, dessa forma, possibili-
como a profissão do futuro, pela possibilidade tar estratégias mais eficazes e resolutivas de cui-
de compreender o indivíduo não como um ser dado em saúde.
doente, mas como um ser singular e complexo, O papel do enfermeiro é reconhecido, em
capaz de continuamente auto-organizar-se e pro- suma, pela capacidade e habilidade de compreen-
jetar-se como autor do processo saúde-doença. der o ser humano como um todo, pela integrali-
Basta, no entanto, que a enfermagem invista em dade da assistência à saúde, pela capacidade de
atitudes pró-ativas, capazes de promover e eman- acolher e identificar-se com as necessidades e ex-
cipar o indivíduo e a família como protagonistas pectativas dos indivíduos e famílias, pela capaci-
da sua própria história. dade de acolher e compreender as diferenças soci-
Tendo o cuidado ao ser humano, em todas as ais, bem como, pela capacidade de promover a
suas dimensões, como essência e especificidade interação e a associação entre os usuários, a equi-
da profissão, a enfermagem tem a possibilidade pe de saúde da família e a comunidade. A enfer-
de transitar pelos diferentes campos de conheci- magem se aproxima, se identifica e procura criar
mento, bem como pelas diferentes realidades uma relação efetiva com o usuário, independente-
sociais. Tendo como foco a pessoa humana, a mente das suas condições econômicas, culturais
família e a comunidade, a enfermagem apresen- ou sociais, ou seja, busca otimizar as intervenções
ta grande possibilidade de contribuir para a cons- de cuidado em saúde de modo que integre e con-
trução de um saber interdisciplinar, além de es- temple tanto os saberes profissionais quanto os
tabelecer canais efetivos de comunicação com os saberes dos usuários e da comunidade.

Colaboradores

DS Backes trabalhou na concepção, delineamen-


to e interpretação dos dados, MS Backes traba-
lhou na redação do artigo e interpretação dos
dados, AL Erdmann trabalhou na pesquisa e pro-
vação da versão a ser publicada e A Buscher tra-
balhou na concepção, análise e revisão crítica do
artigo.
230
Backes DS et al.

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