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A Misteriosa

Morte de
Sam
Cooke

Laura de Moraes 202


"I was born by the river
1. Sam, o menino. In a little tent [...]."

Eu nasci próximo do rio,


Em uma pequena cabana...

É isto que diz a letra da senão mais íntima e ao mesmo tempo mais
popular música de Sam, A Change is Gonna Come, escrita nos
primeiros anos da década de 60 e lançada postumamente, apenas em
1964, a canção nos fala sobre uma mudança iminente; a letra é total
expressão de Samuel Cook, um garoto negro nascido na era da
segregação e do racismo nos EUA.
O Rio Mississipi; 1927.
O quinto filho de oito irmãos, Sam foi criado em
uma família evangélica cujo patriarca era o Rev.
Charles Cook. Desde pequeno ele aprendeu a ir à
igreja, onde teve um vislumbre do que era a música
Gospel, liderada pela negritude da congregação.
O jovem Samuel.
Por causa da perseguição racial que sofriam no sul, a família Cook
resolve se mudar para Chicago, uma metrópole em crescimento. As
oportunidades eram diversas.

Chicago City.
O reverendo Charles logo vê em seus filhos uma centelha de talento;
monta, então, um grupo musical composto pelas crianças, o Singing
Children e se tornam uma atração na igreja, cantando gospel e doo-
wop. Envolto nessa atmosfera compassada e cheia de ritmo, Sam
firma suas bases de carreira: ele é um menino pequeno, mas com um
sonho grandioso...
Com 19 anos, um tenor do The Soul Stirrers, R. H. Harris, acaba se
desvencilhando grupo; nesse interim, audições são feitas, e é claro que
Sam participa. O talento e a voz aveludada do jovem impressionam os
meninos, que de cara o contratam. No novo grupo, ele acende
holofotes; a pouca idade não parece ser um empecilho para aquela
alma cheia de ambição.
The Soul Stirrers; Sam Cooke, à esquerda.
2. Sam, o Homem

Amadurecendo, Sam começa a chamar atenção da negritude em geral,


e logo começa a performar em diversos clubes segregados e pubs. A
primeira gravação dos TSS sob a liderança de Cooke foi a canção
"Jesus Gave Me Water" em 1951.
The Soul Stirrers num concerto; data desconhecida.
Sam num concerto, data desconhecida.
Embora o gospel fosse popular, Cooke percebeu que os fãs se
limitavam principalmente a áreas rurais do país de baixa renda e
procurou diversificar-se. Sam decide adicionar ao seu nome a partícula
"e", ficando muito mais diferenciado das centenas de "Cook" que
existiam em Chicago City. Ele quer um recomeço no pop.
Em 1957 Sam aparece na TV, num programa da ABC. Nesse mesmo ano, ele
assinou com a Keen Records. Seu primeiro sucesso, "You Send Me", passou
seis semanas no primeiro lugar na parada de R&B da Billboard.[
Sam em Los Angeles, segurando seu
primeiro album, ao lado de Gertrude Hall.
Cooke assinou contrato com a gravadora RCA Victor em janeiro de
1960, tendo recebido 100 mil dólares garantidos. A partir daí, a
carreira de Sam começou a ficar cada vez mais exponencial, à medida
que, na mesma época, diversas pautas raciais eram discutidas no país.
A negritude americana está cansada da segregação, e os brancos não
param de desferir violência e mortandade; o povo afrodescendente não
vai mais ficar calado, e é claro que Sam Cooke quer usar seu
reconhecimento para ajudar os irmãos na luta pelos direitos cívis.
MARTIN LUTHER KING JR., um reverendo evangélico, foi um
ilustre homem que lutou contra o racismo e a segregação entre os anos
de 1955-1968. Ele liderou o movimento por todo EUA, e deu voz aos
seus irmãos, que, por medo, estavam silenciados pela esmagadora
maioria branca.
Ele era um pacifista, e defendia a luta não-violenta. Sua filosofia se
assemelha ao trecho bíblico:
"Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a
outra", Lucas 6:29.
À esquerda, o jovem Martin L.K. é preso, em 1958.
MALCOLM X, outro nome de peso nessa luta ativista, Malcolm
Little, mais tarde chamado Al Hajj Malik Al-Shabazz — ele diferia de
seu contemporâneo MLK: Malcolm, crescido na margem da
sociedade, criou a filosofia de "devolver" a violência, e encorajou os
negros a não ficarem calados perante a gratuita falta de humanidade
dos brancos. Extremista, ele mesmo dizia que se um branco lhe
ferisse, você devia mandá-lo para o cemitério.
Malcolm X, além de lidar com o campo social, ascendeu no campo
religioso: durante um período trevoso de sua vida, quando se vê preso,
ele conhece o Islã.
Malcolm se converte ao islamismo e entra para a Nação do Islã, onde
ganha reconhecimento meteórico por suas falas sempre articuladas e
seu jeito irreverente e rebelde. O "X" em seu nome é como um marco
de que o nome escravocrata Little (pequeno), morreu. Ele é um novo
homem, e quer justiça pelo racismo escancarado no país.
Malcolm X no Harlem, 1963. Malcolm X e MLK, 1964.
3. Sam, o ativista

Após seu contrato com a RCA Victor, Sam


Cooke começa a adquirir interesse sobre
pautas sociais. Ele não quer ser só um negro
rico e famoso, mas quer, também, ajudar seu
povo. Com ideais perigosos de auto-gestão e
planos para revolucionar a industria da
música, Sam planeja seu futuro.
Envolto nessa atmosfera revolucionária, Sam conhece um famoso
lutador de boxe: Cassius Clay, que tem ligações com a Nação do Islã.
Influenciado por Clay — que mais tarde chega a mudar seu nome de
Cassius para Muhammad Ali —, Sam fica fascinado pelas
oportunidades que a Nação promete: eles não são apenas muito
religiosos, mas almejam um poder econômico para os negros
empreendedores.
Sam e Cassius. Malcolm X e Cassius, 1964.
Sam e Cassius chegam a gravar
um disco juntos.
Mas antes de continuarmos: o amor! Sam foi
casado duas vezes: a primeira, em 1953, cujo
matrimonio durou até 58. No segundo
casamento, com Barbara Campbell, em 1958,
Sam teve três crianças: Linda, Tracy e
Vincent.

Sam e Tracey, 1960.


Sam e Barbara, 1960.
Sam também foi um empresário em potencial: em 1961, começou sua
própria gravadora, SAR Records, com J. W. Alexander e seu
empresário, Roy Crain. Cooke então criou uma editora e empresa de
gestão chamada Kags. Articulado, ele se concentrou em singles e a
compor; ao todo, ele teve 29 maiores sucessos nas paradas pop e mais
nas paradas de R&B.
Em 1963 Sam sofre uma tragédia familiar: seu filhinho de apenas 2
anos caí na piscina de casa e morre afogado. Por causa disso, Sam
muda; fica soturno, aflito, e culpa principalmente a esposa pelo
ocorrido. Amigos relatam que Sam jamais foi o mesmo depois do que
lhe aconteceu ao peque Vicent.
Ainda, em 1963, Cooke assinou um contrato de
cinco anos com Allen Klein (seu agente) para
gerenciar a Kags Music e a SAR Records e o
nomeou seu empresário. Sam queria criar um
gravadora chamada Tracey Ltd., em homenagem à
filhinha. Porém...

Allen Klein.
O contrato de Allen Klein se mostra falso, uma vez que Sam descobre
que ele não será o presidente da Tracey Ltd, mas sim um funcionário
de Allen Klein, cujo todos os direitos de criação estão subordinados à
ele! Enfurecido, Sam promete "largar aquele desgraçado". Mas ele
jamais passou do fim de semana...
4. O crime
Na quinta-feira, 10 de dezembro de 1964, Sam fala para amigos que
irá para Nova York, com o intuito de fazer mudanças, inclusive
demitir Klein.
Na sexta, Sam, Al Schmitt e sua esposa, Joan, vão para o Martoni's,
uma casa noturna chique em Cuhenga, onde só a elite musical
frequenta; Lá, Sam se embebeda com martinis e tira um maço de
dinheiro do bolso, afirmando coisas como:
"Acabei de voltar de turnê, vejam o que eu tenho...",
Relato de Joan para a Netflix, 2019.
Al então fala:
"Não fique mostrando aqui, guarde no bolso, Sam."
Sam não leva à sério e ri, pois não acredita que algo vá acontecer. Os
amigos decidem deixar o pub, mas no bar Sam conhece uma mulher
intrigante: Elisa Boyer.
Sam e a moça vão para um motel em Los
Angeles, o Hacienda. A partir daí, coisas
estranhas acontecem. Primeiro, Elisa liga
para a polícia e pede socorro; ela afirma que
foi sequestrada por ele.

Elisa Boyer.
Segundo o relato da polícia:
"Cooke correu pela Santa Monica Blvd. e, contra os
protestos dela, ele entrou na rodovia. Mais tarde, ela
disse à polícia que pediu a Cooke para levá-la para
casa novamente, mas ele disse a ela: “Não se
preocupe agora. Eu só quero dar um pequeno
passeio."
Boyer conta que tentou se trancar no banheiro, mas a tranca estava
quebrava. Em segundos, Sam entrou no banheiro e então Elisa saiu e
conseguiu pegar as roupas e a bolsa, incluindo (não sabemos se foi
proposital), as calças dele e todo o dinheiro que ele esbanjou na casa
noturna.
Boyer então correu meio quarteirão, jogou seus pertences no chão e se
vestiu. Ela deixou as coisas de Cooke no chão, encontrou uma cabine
telefônica e fez uma ligação frenética para a polícia, dizendo ao
despachante que ela havia sido sequestrada. Enquanto isso, Cooke
supostamente ficou furioso quando viu que Boyer, suas roupas e seu
dinheiro haviam sumido.
Horas mais tarde, a polícia vai investigar
relatos separados de tiroteios no Watts
(bairro). Chegando no motel, encontram o
corpo de Sam almejado e nu, a não ser por
uma jaqueta e um sapato.

O cadáver de Sam.
O relato é claro: Sam Cooke estava fora de si e teria ido ao escritório
da gerente do motel, Bertha Franklin, e gritado: — Cadê a garota!
A mulher diz que não há ninguém lá a não ser ela, e Sam ficaria
enfurecido, e arrombado a porta. Bertha luta com ele e saca um
revólver calibre 22, e almeja Sam no peito, que, surpreso, fala antes de
morrer: — Senhora, você atirou em mim!
Era o fim.
Bertha Franklin. A arma do crime na palma de um policial.
Um homem negro que trabalhava no departamento de polícia, o qual
cuidou do caso de Sam, Norman Edelen, afirma que o delegado, ao
ouvir o caso, falou:
"Ó, bem, mais um negão que leva um tiro."

A polícia demorou 3 horas para indentificar o corpo de Sam! É claro


que houve pouco caso da parte dos oficiais, já que, na época, as vidas
negras pouco importavam.
A matéria do The Times diz o
seguinte:
"Sam Cooke, um
dos recordes da
Industria e um dos
top talentos por um
tanto de anos, foi
baleado e morto
num motel in Los
Angeles nessa
sexta-feira[...]"
Corpo de Sam sendo retirado.
Cinco dias depois, Boyer e Franklin contaram cada uma de suas
histórias em um processo apressado que mal permitiu que o advogado
de Cooke fizesse uma única pergunta. No momento de sua morte,
Cooke tinha um nível de álcool no sangue de 0,16. Seus cartões de
crédito estavam faltando, mas no bolso de sua jaqueta esportiva havia
um clipe de dinheiro com $108 dólares. Onde estava o resto do
dinheiro que os amigos Al Schmitt e Joan relataram?
Este foi o relato de Elisa no tribunal:
"Ele me arrastou para aquele quarto. Comecei a falar
em voz alta, eu dizia: 'Por favor, me leve para casa.' Ele
trancou a porta e... Ele me jogou na cama, e disse: 'Nós
só vamos conversar.' Eu sabia que ele ia me estuprar.
Enquanto ele estava no banheiro, peguei minhas
roupas, sapatos e bolsa. Abri a porta e saí correndo."
Elisa Boyer no tribunal.
Bertha Franklin no tribunal.
Barbara Cooke no tribunal.
O juiz absolveu Bertha Franklin, e assimilou o caso como um
homicício justificável. A família e amigos de Sam nunca digeriram
isso. O legado de Sam estava praticamente na lama.

Sam Cooke no funeral.


Muhammad Ali (Cassius Clay), no funeral.
5. Teorias

Para os amigos, família e fãs de Cooke, um incidente tão violento e


irracional parecia diferente do cavalheiro que eles conheciam e
amavam. Do jeito que eles vêem, sua morte foi o resultado de uma
armação. O que eles dizem é que Boyer era uma prostituta que
trabalhava em conluio com a gerente do motel para roubar Cooke, que
horas antes no bar, estava esbanjando riqueza.
Afinal, o Hacienda Motel era um centro conhecido de cafetões e
prostitutas, que oferecia taxas de US $ 3 por hora. De acordo com essa
teoria, Boyer o atraiu até lá. Por que outro motivo ele dirigiria tão
longe de seu caminho, passando por motel após motel — os tipos que
eram mais adequados para sua estatura de superstar?
Bertha Franklin tinha ficha criminal, e a verdade sobre Elisa Boyer foi
revelada um mês depois, quando ela foi presa sob acusação de
prostituição em Hollywood. Em 1979, ela foi considerada culpada de
assassinato de segundo grau em outro tiroteio (supostamente a morte
de um namorado).
Há quem diga que quem mandou matar Cooke foi o próprio agente,
Allen Klein. Afinal, Sam já tinha passado seus bens e direitos para o
nome dele, não é?
Fala-se também de uma suposta máfia na industria da música, a qual
Sam teria se envolvido. Ele tinha ideais muito revolucionários, é
verdade. E, ainda, supõe-se que ele foi silenciado. Anos mais tarde,
muitos outros negros ativistas foram executados: Malcolm X, em
1965; MLK, em 1968; todos, inclusive, conhecidos e exemplos para
Sam.
6. Conclusão

Seja o que for, Sam foi um pioneiro: usou sua voz para alcançar
comunidades negras e falou sobre sua verdade. Uma mente fora de seu
tempo, sonhava com uma mudança: o dia em que a segregação e o
racismo fossem abolidos da sociedade. Sam andou para que outros
artistas de cor pudessem correr.
Ficamos com uma reflexão: será que a supremacia branca também
estava de conluio com tudo isso? De fato, o ser humano pode atingir
níveis astronômicos quando se trata de desrespeito e violência. Sam
foi um dos casos de negros assassinados que vieram à tona, mas
quantas outras vidas negras precisaram morrer para que a segregação
fosse abolida?
7. Referências
HUTCHINSON, Lydia. The Mysterious Death of Sam Cooke.
Performing Songwriter, 2016. Disponível em:
https://performingsongwriter.com/mysterious-death-sam-cooke/
Acesso em 21/07, às 12:33.

MALCOLM X. Wikipedia, 2021. Disponível em:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Malcolm_X Acesso em 21/07, às 13:53.

MARTIN Luther King Jr. Wikipedia, 2021. Disponível em:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Luther_King_Jr. Acesso em
22/07, às 14:16.
RITZ, David. Sam Cooke. Britannica. Disponível em:
https://www.britannica.com/biography/Sam-Cooke Acesso em 21/07,
às 12:20.

SAM Cooke. Wikipedia, 2021. Disponível em:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Sam_Cooke Acesso em 21/07, às 12:14.

YAFFE, Alva. What Really Happened to Sam Cooke That Night In


1964. Musicoholics. Disponível em: https://musicoholics.com/first-
look/what-really-happened-to-sam-cooke-that-night-in-1964/ Acesso
em 22/07, às 15:48.

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