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São Paulo - SP
2021
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelo carinho, amor e compreensão neste ano difícil e desafiante, a
despeito dos atrasos, adiantamentos, omissões e surpresas.
Aos meus amigos de infância Davi, Enrico, Guilherme, Keveny, Pedro e Vinicius, e
aos meus amigos de graduação Arthur, Bruno, Bruna, Caio, Chang, Guilherme, Henrique,
Francisco, José Henrique, Karen, Laura, Leonardo, Newton, Otávio e Tokio, pelos anos de
amizade, apoio acadêmico e convivência que dão alma às arcadas.
Aos meus professores e professoras de graduação, Celso Fernandes Campilongo,
Diogo R. Coutinho, Eduardo Cesar S. V. Marchi, Elza Boiteux, Eunice Aparecida de Jesus
Prudente, Hélcio Maciel França Madeira, Humberto Bergmann Ávila, José Luiz Gavião de
Almeida, Lucas Fucci Amato, Mara Regina de Oliveira, Maria Paula Dallari Bucci, Mauricio
Stegemann Dieter, Nilton Ken Ota, Orlando Villas Bôas Filho e Ricardo de Barros Leonel,
pelo apoio, ensinamentos e por preencherem um mundo de dogmática com crítica, significado
e reflexão.
Aos meus professores e professoras de línguas, Alain Michel Schoeny, Carmen Lucia
Gavazzi, Fernanda Rangel e Moisés Valdebenito, pela estima, carinho e incentivo ao
aprendizado do estrangeiro, sem o qual este trabalho jamais seria possível.
Aos meus professores e professoras de Ensino Médio, Celso Manocchio, César
Moretti e Cibele Barbosa Silva, pelas lições de vida e por me ensinarem a amar o
conhecimento, a geografia, a história, a sociologia e a filosofia desde o princípio.
À minha terapeuta Elaine Paiva, pela consideração, apoio e direcionamento sem os
quais esta pesquisa não teria tomado as proporções e a complexidade que puderam tomar.
Aos meus supervisores de estágio e amigos Débora e Robert, pela estima, apoio e
incentivo a sempre ir além do mediano.
Ao Sr. Dr. Juiz Sérgio da Costa Leite e Des. Luis Fernando de Barros Vidal, pelo
apoio, ensinamentos e oportunidade de contato próximo com o Direito Civil e Público.
E ao meu orientador, prof. Dr. Ari Marcelo Solon, que me acolheu desde o início da
graduação, fomentando em mim o amor pela filosofia e pela história do Direito e mostrando-
me as longínquas raízes do presente, e também pelo seu carinho e incomparável atenção com
os alunos da graduação.
“O início não é só a metade do todo, é quase o fim” – Políbio, Hist., Livro V, 32.
RESUMO
Pouvoir Constituant is a founding concept in State theory. Since its modern origins by
the ideas of Emmanuel de Sieyès at the beginning of the French Revolution, the concept
comprises a central role on Droit Publique. In spite of these acknowledgments, the
Constituent theory is often neglected as being essentially superfluous or redundant by some
schools of modern Law theory. This paper then aims to showcase the political and juridical
roots of the Constituent Power through the workings of Sieyès, Carl Schmitt and Hannah
Arendt by contrasting them to the usual normativist theory and by juxtaposing and
commenting these authors in relation to one another. As driving paradigms of research there
are the problem of Constituent legitimacy and the ever present foundational paradox, which
questions the feasibility of contractualist and political theories of State by the light of
authorization and foundational organization. In this manner, through Sieyès it is shown the
basic workings of the Constituent Power theory over the 17 th century theoretical context;
through Schmitt it is shown the unitarist concept of the political, his rivalry with Kelsen’s
positivism, his interpretations of classical concepts pertaining to the theory of State and his
denouncing of those concepts as the offspring of absolutism; and, finally, through Arendt, the
other authors’ State theories are contrasted by a realistic republican conceptualization which
condemns sovereignty and replaces it by pluralistic notion of corps politiques following the
roman foundational principle.
RESUMO...................................................................................................................................3
1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................6
2. A TEORIA DE EMMANUEL JOSEPH SIEYÈS EM “O QUE É O TERCEIRO
ESTADO?”................................................................................................................................8
3. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE SEGUNDO O UNITARISMO DE CARL
SCHMITT................................................................................................................................17
3.1. TEOLOGIA POLÍTICA: UMA DENÚNCIA DO SOBERANO ABSOLUTO..........18
3.2. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO – OS SISTEMAS LEGAIS SEGUNDO O
DECISIONISMO SOCIOLÓGICO.....................................................................................34
3.2.1. As Formas constitucionais..................................................................................34
3.2.2. Devir do Poder constituinte Democrático........................................................43
3.2.3. Doutrina democrática........................................................................................44
3.3. KALYVAS: RUMO A UMA TEORIA DE CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO................................................................................................................47
3.4. MARTIN LOUGHLIN: O CONSTITUCIONALISMO ENTRE O NORMATIVISMO
E O DECISIONISMO..........................................................................................................56
4. POLITIZANDO O EXTRAORDINÁRIO: O PLURALISMO DE HANNAH
ARENDT..................................................................................................................................65
4.1. A QUESTÃO SOCIAL: A DESTRUIÇÃO DO POLÍTICO.......................................65
4.2. CONSTITUIÇÃO DA LIBERDADE: O OBJETIVO REVOLUCIONÁRIO.............68
4.3. MEL A. TOPF: ALGUMAS RESSALVAS NECESSÁRIAS.....................................79
4.4. DOMANDO O EXTRAORDINÁRIO: H. ARENDT COMO UMA RESPOSTA À
CARL SCHMITT.................................................................................................................81
CONCLUSÕES.......................................................................................................................84
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................91
1. INTRODUÇÃO
1 Por referência, claramente de forma não exaustiva, cfr. MENDES, 2009. p. 231; e BONAVIDES, 2004.
2 JUNIOR, 2017.
3 BONAVIDES, 2004. Op. cit. p. 149-52.
4 Idem. p. 143.
5 “Pour compléter la théorie de l'organe d'État, il est indispensable d'aborder une dernière question, que certains
auteurs présentent comme le problème capital du droit public (…). C'est la question du pouvoir constituant "
MALBERG, 1922.
6 LOUGHLIN, 2013, p. 1.
7 Idem (2013).
8 SIEYÈS, 2002.
9 SCHMITT, 1982 e 2005.
10 KALYVAS, 2008 e 2020.
11 LOUGHLIN, 2013 e 2020.
12 SOLON, 1997 e 2015.
13 ARENDT, 1977 e 2013.
tema, primeiramente por ser um conceito clássico e histórico, e em segundo lugar por ensejar
reflexões sobre a origem dos sistemas políticos e normativos durante momentos
extraordinários:
“A doutrina jurídica tradicional entende que o povo e o poder constituinte não têm
lugar no direito público, por não serem “categorias jurídicas”. O que se esquece com
esta visão é o simples fato de que as questões constitucionais essenciais são
políticas. Tentar separar o conceito de constituição do conceito de poder constituinte
significa excluir a origem popular da validade da constituição e esta validade é uma
questão política, não exclusivamente jurídica. A doutrina do poder constituinte é,
antes de tudo, um discurso sobre o poder constituinte, exercendo o papel de mito
fundador e legitimador da ordem constitucional. Para utilizar a expressão de Ernst-
Wolfgang Böckenförde, o poder constituinte é um “conceito limite” do direito
constitucional. Não se trata da norma fundamental hipotética de Hans Kelsen ou de
direito natural, mas de uma força política real que fundamenta a normatividade da
constituição, legitimando-a.”14
Para isso, realizamos a exposição da teoria de Sieyès em seu escrito político “O que é
o Terceiro Estado?”, para então passar à Schmitt em suas duas obras, “Teologia Política” e
“Teoria da Constituição”, contextualizando-os com os comentários de Loughlin, Kalyvas e
Solon em suas respectivas publicações. Em seguida, chega-se na teoria de Arendt em On
Revolution, também comentada por Kalyvas; e, ao fim, a contraposição de todas as obras em
conclusão.
Passadas essas linhas gerais, cremos então que é possível então expor os principais
tópicos da teoria original de Sieyès, os capítulos primeiro, segundo e quinto, sem que suas
peculiaridades soem estranhas por alguma falta de contexto.
O primeiro capítulo já se inicia com o apontamento de que o Terceiro Estado é uma
Nação completa, expresso na seguinte colocação: “o que é preciso para que uma Nação
subsista e prospere? São precisos trabalhos particulares e função públicas.”.23 Como exposto,
os trabalhos correspondem à força produtiva e à organização comercial, enquanto que as
funções àquelas instituições que formam o governo, entendido como uma garantia àquelas
condições históricas e não elas como uma decorrência dele, como se tinha anteriormente.
Tal construção de Sieyès é notadamente teleológica na medida em que busca retirar a
nobreza e o alto clero24 da Nação. Seu texto, portanto, é construído como forma de denúncia
aos privilégios insustentáveis dos estamentos superiores, seja pelo argumento moral seja
como consequência de sua definição de Nação:
Quem ousaria assim dizer que o Terceiro estado não tem em si tudo o que é
preciso para formar uma Nação completa? (…) Se se suprimisse as ordens
privilegiadas, isso não diminuiria em nada á Nação; pelo contrário, lhe
acrescentaria. (…) Não basta ter mostrado que os privilegiados, longe de serem
úteis à Nação, só podem enfraquecê-la e prejudicá-la. Vamos provar agora que a
ordem nobre não entra na organização social; que poderá ser uma carga para a
Nação, mas não forma parte dela.25
É com essa determinação que Sieyès define a Nação: “O que é uma Nação? Um corpo
de associados que vivem sob uma mesma lei comum e que são representados pela mesma
legislatura, etc.”26
O segundo capítulo busca realizar uma retrospectiva histórica para demonstrar a
insustentabilidade da situação do Terceiro estado. Trata-se da narrativa de um povo que se diz
37Ibid. p. 55. Grifos nossos. Nesse ponto, Martin Loughlin afirma que Sieyès só coloca a Nação no estado de
natureza pura e simplesmente porque, no simplismo do autor, não haveria nada fora da legalidade positiva senão
tal estado. LOUGHLIN, 2013. p. 4.
na história bonapartista e cesarista que se moldou na forma de políticas publiscitárias e
protopopulistas.38
Não obstante as críticas, a teoria de Sieyès é sem dúvida um marco para teoria política
moderna, sendo em muitos aspectos incorporada na teoria constitucional de Carl Schmitt,
bem como sendo objeto de inspiração para os comentários de Hannah Arendt à história
constitucional francesa e sua comparação com a revolução americana.
39 SCHMITT, 2005.
40 SCHMITT, 1934 e 1982.
vista que tais trabalhos são verdadeiramente conclusões em forma comentada dos textos de
Schmitt.
Schmitt inicia o primeiro capítulo do texto político de 1922 com uma das definições mais
importante de sua teoria: “soberano é aquele que decide na exceção.” 41. Tal axioma é a razão
de ser da teoria decisionista, e torna-se claro pela própria situação de exceção.
Preceitua-se que, em uma situação extrema, não circunscritível pelo ordenamento
legal, aquele que toma as rédeas do poder ou, ao menos, exala uma decisão vinculante e com
eficácia, mostra-se como o Soberano. Tal soberano, porém, após exalar a decisão que funda o
ordenamento legal posterior, torna-se omisso até que precise decidir para manter a unidade
política novamente.
O conceito de soberano em Schmitt é, confessamente, aplicável e somente relevante
para tais casos de exceção. Essa concepção, todavia, não desclassifica a teoria do autor como
descritiva de um nicho teórico. A estranheza conceitual que se tem com a definição de um
soberano omisso na maior parte do tempo decorre, segundo o próprio autor, do estado da
teoria jurídica constitucional desde a Revolução Francesa.
Em linhas gerais, a teoria positivista que segue tal revolução que prevê a Constituição
como corpo legal limitante ao Estado e ao soberano, e o império da lei como autossuficiente
(lembremo-nos da teoria de Sieyès, que chega ao ponto de igualar a Nação ao corpo legal 42),
advém de um movimento histórico burguês que não é uma consequência natural ou
necessária, apesar de portar-se como se fosse, com teorias cientificistas como a de Hans
Kelsen.
A apreensibilidade e a própria crítica de Carl Schmitt à teoria legal de seu tempo
originam-se da negação, portanto, da autossuficiência da norma e, ulteriormente, de seu
embate contra Kelsen em relação à visão de que a norma jamais deriva de um fato.43
41 SCHMITT, 2005, p. 5.
42 “A Nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes dela
e acima dela só existe o direito natural.”. SIEYÈS, 2012. pp. 53-55.
43 KELSEN, 1949, pp. 110-111.
Na cronologia do poder soberano, o autor coloca o liberalismo constitucional como
um verdadeiro veio ideológico que busca neutralizar o soberano, substituindo-o com um
império da lei, “todas as tendências do desenvolvimento constitucional moderno apontam
para a eliminação do soberano nesse sentido.”44 Assim, imperioso para que se entenda a teoria
do autor alemão é o exercício de contextualizá-la contra o panorama positivista e dogmático
habitual que se alastra até hoje.45 A sagacidade de sua obra advém, por fim, do fato de Schmitt
portar-se como um “outsider” contra o estado da teoria jurídica hegemônica.
Schmitt traça as origens desse decisionismo desde Jean Bodin, atribuindo ao francês a
concepção do soberano como expressão do estado de exceção. As reflexões presentes na obra
República de Bodin, no capítulo 10, podem ser reduzidas na questão da vinculação
(limitação) do soberano às leis, e a sua responsabilidade pelos estamentos. Segundo Bodin,
interpretado por Schmitt, o soberano vincula-se pelo direito natural, mas em situações
emergenciais tal vinculação cessa, e o soberano possui discricionariedade para emanar uma
decisão: em um exercício lógico, Bodin pergunta-se se em uma situação de emergência o
príncipe deve consultar o povo ou o senado. Qualquer resposta afirmativa parece-lhe um
absurdo, pois implicaria imergir o soberano em um conflito de interesses, e a soberania
dividir-se-ia entre as partes interessadas. Assim, em tal situação, a decisão deve ser
logicamente una, da mesma forma que o soberano.
A soberania e, logo, o Estado, coerentemente, baseiam-se na decisão que soluciona a
controvérsia. Schmitt enxerga com isso que, como qualquer outra ordem, o ordenamento legal
deriva ulteriormente de uma decisão e não apenas de outra norma, em flagrante contraste com
seu opoente Hans Kelsen.
Para além, portanto, de uma concepção de legitimidade (refletindo-se no sentido
etimológico próprio da palavra, aquilo que deriva das leges), o paradigma do Soberano
residiria, enfim, na questão de quem seria o responsável em uma situação em que não se
antecipa qualquer responsabilidade, tal seja, quem possuiria poder ilimitado para si?46
44 SCHMITT, 2005, p. 7.
45 A própria apreensibilidade de toda a discussão do Poder constituinte pela doutrina hodierna ilustra o ocaso de
Schmitt: ainda que lembrado e incorporado na dogmática por termos de “Poder originário e Poder derivado”, seu
nome e contribuições são esquecidas, e seus conceitos se reduzem a uma tecnicalidade instrumental típica de
uma ciência jurídica positivista.
46 Essa questão compreende o clássico tema da teoria da soberania. Para uma visão panorâmica do conceito de
Soberania na jusfilosofia alemã, cfr. SOLON, 1997, pp. 19-46.
A resposta para essa pergunta claramente não poderia advir de um glossário liberal,
tampouco adviria da jurisprudência usual cotidiana, pois trata-se verdadeiramente de uma
expressão do extraordinário.
A insuficiência do legalismo positivista para Schmitt, portanto, decorre da concepção
de que um sistema jurídico hermeticamente considerado em suas próprias leis ou, no extremo
da teoria kelseniana, na expressão de sua unidade legal, jamais poderia prever a situação de
seu próprio ocaso sem romper com sua autossuficiência.
Essa asserção não implica, porém, uma negação da ordem legal ou da completa
aniquilação de qualquer ordem no extraordinário. Atesta o autor que apesar de parecê-lo, o
estado de exceção não é nada como um estado de anarquia ou caos. Juridicamente a decisão
ainda impera, ainda que o ordenamento legal esteja abolido. Isso porque o Estado, baseando-
se na decisão originária e sendo uma expressão da unidade política de seu constituinte47,
busca sua autopreservação, e liberado em virtude dela consegue desvincular-se da validade da
simples norma legal. No estado de exceção, a decisão tomada liberta-se de quaisquer
confinamentos normativos e torna-se absoluta.
A solução schmittiana pareceria, ao olhar incauto, uma negação da ordem positiva em
troca de um cheque em branco à razões sociológicas. O que o autor alemão destaca, porém, é
que embora a exceção levante o véu de abstração do ordenamento positivo, as suas
consequências políticas manifestam-se em termos jurídicos por meio da decisão que fundará
as novas normas.48
A diminuta apreensibilidade dessa afirmação advém do próprio posicionamento do
autor em relação às teorias vigentes, tal seja, a do positivismo kelseniano e à perspectiva da
ciência jurídica como um meio de previsibilidade. Notadamente, o estado de exceção é por
definição imprevisível em seu início, sendo somente descritível em natureza. A existência
uma ciência jurídica positiva, dotada do intuito de promover previsibilidade, torna-se
impossível frente ao imprevisível desprovido de uma ordem legal: para que uma ordem legal,
e consequentemente sua respectiva ciência, existam, é necessária uma situação normal que
permita proscrições futuras; e durante o extraordinário, tal realidade é impossível até o
momento em que o Soberano decide o seu estabelecimento.
47 O povo, as oligarquias, o Rei, etc. O sujeito do poder soberano/constituinte será aprofundado em seguida.
48 Ibid. p. 13.
A existência deste estado de normalidade (e a constatação do estado oposto), como
coloca Schmitt, não é uma “pressuposição superficial” que um jurista pode ignorar. Esse
estado das coisas é condição da própria validade normativa, necessariamente factual.
Por essa ordem de fatores, portanto, tem-se que o Soberano que decide não precisa de
uma ordem legal para que possa decidir: ele não só decide a despeito dela, mas contra ela,
para criar além dela.
Schmitt aponta que a importância do estado de exceção como origem e sustentação
das teorias políticas era reconhecida por autores como John Locke e outros racionalistas do
século XVIII, mas foi esvaindo-se com o surgir de outras teorias em tempos menos
conturbados no século XIX. Nesse contexto, teorias kantianas e neo-kantianas, como a de
Hans Kelsen, segundo Schmitt, não possuem a mínima ideia de como lidar com o problema
da exceção.
A máxima kelseniana de que uma norma ou ponto origem de imputação, assim, possa
estabelecer a si mesma parece-lhe um absurdo lógico, apesar de denotar a essência do que é o
positivismo legal. Dessa forma, constata-se que da tendência do constitucionalismo liberal de
descrever todas as situações legais em uma acepção de “império da lei” denota uma tentativa
justamente de domar a exceção, a situação em que o Direito pode suspender a si mesmo.
Iniciando o segundo capítulo, é possível vislumbrar outra característica da exceção
como objeto de estudo que ilude a epistemologia positivista usual. Segundo Schmitt o
Soberano é confessamente a instância inapelável de poder, mas ele mesmo é em sua essência
inapreensível. Enquanto que a pura força pode mover os corpos, o Poder não se traduz na
legalidade de forma direta. Assim, o problema fundamental do conceito de soberania para o
Direito é, para Schmitt, a discriminação de sua essência jurídica.49
Esse paradigma fulcral, porém, está longe de ser uma inovação da teoria de Schmitt.
É, em verdade, um ponto de discussão comum da teoria jurídica alemã desde o século XIX,
passando por autores como Gierke, Jellinek e Hugo Krabbe.50
Até em Krabbe, autor mais próximo à Kelsen no tratamento do conceito, dividia-se o
paradigma da soberania pela limitação do soberano ilimitado: o sujeito soberano é ou não
controlado pelas leis que cria? A solução de autores como Jellinek era a de conceber a
distinção sociológica (poder) e jurídica (legalidade) como duas faces da mesma moeda, sem,
no entanto, exaurir o tema. Com Krabbe, todavia, quebra-se tal dualismo ao colocar-se o
49 Schmitt, 2005, p. 17.
50 SOLON, 1997. p. 41-6.
Soberano dentro do Direito: o poder do Estado só se realizaria na confecção de novo direito,
pois a sua realização é mero cumprir do que já foi juridicamente vinculado.
A solução de Kelsen, porém, é o objeto da crítica de central de Schmitt. Para além da
fórmula simples proposta por Krabbe, Kelsen, inspirado na filosofia neo-kantiana, enxerga
problemas no antigo dualismo alemão ao afirmar que a soberania não poderia significar tanto
a ilimitação do poder, “ser”, quanto o significado jurídico de “dever”.51 Kelsen é notadamente
contrário ao embasamento jusnatural do Direito, e portanto não vê solução na soberania senão
a de negá-la como um conceito ultrapassado do absolutismo.
Nesses termos, a teoria kelseniana cinge-se em um positivismo cognoscente, quer
dizer, em um estado de ciência que necessita de um sujeito que pensa: kantianamente, entra-se
em um território epistemológico em que a faceta real ou factual pouco importa; o que vincula
o direito internamente e, ulteriormente, o juízo do jurista (que é a ciência jurídica), é a
normatividade. Em termos não epistemológicos, para Kelsen, Estado é o ordenamento
jurídico, e assim o Estado só é soberano enquanto é a ordem jurídica. Isso porque Kelsen
concebe o Direito como uma ordem coativa (que não se confunde com o ato coercitivo), e
coerentemente vê problemas em considerar o Estado como sujeito de direitos, como um ente
com personalidade (se assim o fosse, o Estado, detentor de direitos e deveres, estaria limitado
ao ordenamento e, portanto, sem soberania). Assim, a acepção de que o Estado é a própria
ordem jurídica é a única forma correta ou possível de se empregar, para o austríaco, o
conceito de soberania.
Indo ainda além, Kelsen traz os benefícios de não se perder em abstrações de
personalidade. Com Estado sendo o próprio ordenamento, vê-se tanto a identidade da norma
como objeto, o sistema de normas objetivas válidas da conduta humana; quanto como sujeito,
o Estado como expressão figurada com o intuito de formar a ordem jurídica como unidade.
Assim sendo, ao mesmo tempo que se pode imputar o estatuto de uma sociedade como sendo
a própria sociedade anônima, imputa-se também a totalidade da ordem jurídica como sendo o
Estado, a imputação ulterior do juízo cognoscente do jurista.52
Com a distinção necessária, para Kelsen, entre o mundo descritivo sociológico e o
jurídico, surge, porém, o problema da validade jurídica. Tal problema persegue Kelsen por
toda a sua vida acadêmica e fora objeto de várias sofisticações pelo autor. Em sua teoria, a
solução manifesta-se na norma fundamental. Concebendo o Estado/ordenamento jurídico
51 Ibid. p. 50-2.
52 Ibid. p. 52-56.
como uma unidade piramidal, tem-se que as normas inferiores retiram validade das suas
superiores, em um juízo imputativo. Chegando ao topo da pirâmide, então, a próxima e última
imputação seria à norma fundamental.
Nos trabalhos iniciais do austríaco, a norma fundamental é meramente uma norma
hipotética do juízo do jurista, um pressuposto necessário para que se dê validade ao resto do
sistema jurídico, mas que de fato não existe como ordem positiva. Posteriormente, porém,
Kelsen clarifica tal juízo ao dizer que a norma fundamental adequa-se ao sistema jurídico
correspondente, ou seja, ela muda conforme o regime político e o teor da constituição positiva
estabelecida.53 A norma fundamental, assim, continua um juízo hipotético e tautológico de
validade que não vincula nada senão a legitimidade do sistema objeto mas, pelo menos, toma
uma forma de adequação.
Sem muita dificuldade, assim, enxerga-se o motivo de tantas críticas à Kelsen e o
incômodo do autor que o faz debater tanto o tema: Kelsen presta-se ao serviço de superar o
jusnaturalismo, mas sua solução, que em verdade fundamenta toda a sua teoria, soa tão
transcendental e tautológica quanto as proposições naturalistas. Assim, o estado da teoria
Kelseniana presente em Teoria Pura do Direito e outros trabalhos, fizeram com que Schmitt
tecesse duras críticas ao autor.
Schmitt condena Kelsen pela criação de uma teoria purista por excelência. Coloca que
a teoria kelseniana busca retirar o sociológico forçosamente do fenômeno jurídico e reduzi-lo
ao jurisprudencial pela distinção kantiana entre ser e dever ser. O resultado de que o Estado
deve ser concebido como algo puramente jurídico, normativamente válido e não algo fora da
realidade legal, é uma consequência natural e previsível. O feito, segundo Schmitt, extrapola
autores como Jellinek mas permanece igualmente tautológico. O reducionismo kelseniano
implica finalmente a questão de que não se deriva uma norma de um fato, que uma norma só
derivaria de outra norma, e que juridicamente, como exposto anteriormente, o Estado é
idêntico a sua constituição.54
O ponto central da teoria kelseniana, segundo Schmitt, é o seu caráter monístico: a
despeito da prévia discussão dualista, a unidade do método epistemológico neokantiano
demanda uma visão unitária do Direito. Mesmo o dualismo proposto entre ser/dever-ser
equaciona-se em uma metafísica monística.
53 Assim, em uma democracia, a norma fundamental é democrática; na ditadura, autoritária, etc. KELSEN,
1949, pp. 116-118.
54 SCHMITT, 2005. p. 17.
A teoria kelseniana, ademais, pretenderia ser objetiva no sentido científico. O
problema, segundo Schmitt, surge quando a pureza de uma análise jurisprudencial positiva é
confrontada com valores dados ao próprio jurista. Necessariamente, para que a análise do
jurista seja coerente ao monismo e à pureza pretendida, o intérprete deverá atuar como uma
superioridade relativa, possivelmente deturpando o seu próprio juízo para que simplesmente
ele permaneça puro em sua análise. Em outras palavras, tudo o que o jurista cognoscente
considera contraditório ao sistema aprioristicamente definido (a ordem jurídica como um todo
coerente), é ignorado como uma impureza de raciocínio. Implicitamente, portanto, quaisquer
valorações consideradas “impuras” pelo intérprete deverão ser deixadas na antessala pré-
jurídica. Faz-se um aceno exagerado a um formalismo, que é confessamente o objetivo da
ciência jurídica proposta por Kelsen, uma ciência pro-forma.
A consequência do pensamento kelseniano para Schmitt é a negação por excelência do
Soberano. Mas enquanto Kelsen o coloca de maneira aparentemente autêntica, o ponto a ser
feito por Carl Schmitt é de que, novamente, o seu pensamento decorre de uma tradição liberal
antiga.
Isso porque, afinal, fora Krabbe quem propusera que soberano não é o Estado, mas o
Direito. Nesses termos, a concepção moderna de Estado substitui a força antiga do rei, das
autoridades, com um poder espiritual: “Nós não vivemos mais sob a autoridade das pessoas,
sejam elas físicas ou jurídicas, mas sob a autoridade das normas, de forças espirituais. Aqui a
essência do Estado moderno é revelada.”.55 Incidentalmente, em Krabbe o Estado ainda é
tolerado como um ente que pode existir, na condição de que o faça por meio do império legal.
Já em Kelsen, a teoria jurídica dispensa quaisquer noções relacionadas a Poder como extra ou
pré-jurídicas.
Em Krabbe, a função do Estado é notoriamente a de legislar. Menos que isso, o Estado
limita-se à constatação do interesse legal conforme a moralidade dos membros da Nação.
Assim, não obstante as similitudes com Kelsen, Krabbe ainda engaja em explicações
sociológicas para o campo jurídico. Um movimento similar e contraditório é cometido por
Kelsen, segundo Schmitt, quando se baseia em uma concepção subjetiva de forma (a
concepção do intérprete) como o ponto original de juízo, tomando a unidade do sistema legal
como um ponto de percepção independente; ao mesmo tempo em que ele demanda uma
55 ““We no longer live under the authority of persons, be they natural or artificial (legal) persons, but under the
authority of norms, of spiritual forces. There the essence of the modern idea of the state is revealed.” H.
KRABBE apud SCHMITT, 2005, p. 22.
objetividade científica. Segundo Schmitt, esse clamor por objetividade não é nada mais que
uma tentativa de evitar-se elementos pessoais e, assim, poder-se traçar a validade do sistema
de forma impessoal.
Até em Max Weber, em sua teoria sociológica do Direito, segundo o autor, é exposta
uma “evolução” da esfera jurídica à requisição de formalizações pelo fenômeno da
racionalização. Demanda-se a tecnicidade e a indiferença (o paralelismo entre a forma e o
conteúdo jurídico) para que se estipule um sistema altamente funcional.
Em verdade, os vários conceitos de soberania desses autores, segundo Schmitt,
requerem que subjetividades sejam eliminadas do conceito de Estado. Em Kelsen, a
concepção de um direito de comando é inerentemente subjetiva e portanto não denota
qualquer normatividade, não sendo objetivamente legal. Em Krabbe, a distinção entre
pessoalidade e impessoalidade estava relacionada à relação entre o concreto e o abstrato, ao
contraste entre a autoridade e a prescrição legal; em outras palavras, o contraste entre um
comando pessoal e a validade impessoal da norma abstrata intrinsecamente relevante ao
liberalismo constitucional do século XIX. Ulteriormente, para o autor holandês, o comando
pessoal era uma relíquia deixada pelo absolutismo monárquico.
Para Carl Schmitt, porém, essas objeções falham em não perceber que a ligação entre
a personalidade e a autoridade formal provém de um interesse jurídico específico, tal seja, da
essência da decisão legal. Schmitt não nega a indiferença inicial do juízo legal, mas reitera
que há elementos da decisão legal que não podem ser derivados diretamente de suas
premissas, especialmente porque o momento da decisão inicial permanece independente. A
decisão legal, ademais, pertence à percepção legal na medida em que o mero juízo é incapaz
de realizar o comando normativo. É uma máxima evidente que a ideia ou o juízo legal não
podem se implementar sozinhos, e isso decorre do fato de que o juízo legal não atribui a
competência de quem deverá aplicá-lo. A autoridade de implementação, auctoritatis
interpositio, não pode ser simplesmente derivada de uma prescrição legal, ela depende de
elementos factuais e concretos. A norma por si só é um enunciado vazio em implementação,
ao ponto que sem pessoalidade, sem uma autoridade pessoal final, qualquer pessoa poderia
alegar certeza do conteúdo normativo de uma lei e estar igualmente correto aos demais.
Essa autoridade final, porém, não advém da norma positiva que a prescreve (não pode
a lei prescrever quem será o soberano): tentar reservar competência por vias formais e
legiferantes é um ato de completa tolice.56
Em relação ao juízo imputativo, cabe dizer que a decisão nasce do nada,
normativamente. A coercitividade legal da decisão é algo completamente diferente do
resultado do juízo jurídico. A imputação não é possibilitada pela existência de uma norma,
mas o contrário: da norma em si não há ponto de subsunção, somente conteúdo normativo. O
que dita a subsunção, portanto, é o caso concreto subsumível ao enunciado legal (e não o
contrário).
O cristal do decisionismo de Schmitt, segundo o próprio autor, está em Hobbes. A
teoria hobbesiana é um da das formas de pensamento legal acerca da percepção de
normatividade na decisão, e ela denota, mais que tudo, a essência jurídica personalíssima da
decisão e a origem de sua coercitividade, em contraste à norma pura de Kelsen. Autoritas non
veritas facit legem é a máxima hobbesiana que enuncia a importância na norma é a autoridade
que a emanou, não o seu conteúdo material.
Hobbes, segundo Schmitt, enuncia um argumento decisivo que mostra a conexão entre
o decisionismo e o personalismo, que rejeita as tentativas de suprimir o Estado da soberania
pelo Estado do ordenamento legal válido, típico do positivismo jurídico 57. O personalismo
mostra-se, ulteriormente, quando se indaga da hierarquia espiritual de poderes, vista de uma
forma abstrata: conceber autoridades abstratas hierarquicamente é um absurdo, pois “sujeição,
comando, Direito e Poder são acidentes, não de Poderes mas de Pessoas.” 58 Assim, a vida
legal depende daquele que decide.59
De tal apelo ao decisionismo pessoal, em conjunto com a questão da competência não-
legítima de quem decide podemos entender no que consiste a própria decisão em Schmitt. A
coercitividade aqui, ao contrário de em Kelsen, não é um atributo inerente à norma legal, mas
ao comando relativo a uma autoridade factual, uma pessoa. Desse modo, tal ordem ou
decisão, deve ser reforçada: “a verdade não se cumpre por si só, mas carece de comandos
56 Novamente, a apreensibilidade desta afirmação nos parece alienígena considerando o meio jurídico atual, em
que a Constituição Federal da República delega todas as competências, como, por exemplo, quando estipula que
o Presidente é o chefe do executivo (art. 76, CRFB/88). Para Schmitt, essa alegação não implica absolutamente
nada. Se o Presidente é o chefe do executivo é porque ele é considerado o chefe do executivo e toma decisões de
um chefe do executivo, não porque uma lei o delegou esta função; a matéria define a forma e não o contrário.
57 SOLON, 1997. p. 83.
58 HOBBES Apud Schmitt, 2005, p. 34.
59 Ibid.
coercíveis. Para realizar isto, é chamada uma potestas directa que, diferentemente da
indirecta, consiste na atuação do comando, obtém obediência e pode defender quem
obedece”.60
Ressalta-se, por fim, que a teoria de Hobbes, tão vangloriada por Schmitt, chega a
constituir um avanço contra o próprio “pai” do conceito de soberania, eis que Jean Bodin
ainda depende de um monarca constituído e venerado, legítimo (no sentido antigo), enquanto
que, para Hobbes, o soberano
“não é competente para decidir com base em um ordenamento já existente, somente
a decisão que, no lugar da desordem e da insegurança do estado de natureza,
instaura a ordem e a segurança do Estado, o transforma em soberano e torna
possível, tudo que se segue, a lei e a ordem”.61
Nisso já enxerga-se a razão, portanto, do lugar central que a decisão na exceção possui
na teoria de Carl Schmitt. É o teor de sua crítica à Kelsen: “O direito só existe onde há
decisão pessoal; quem decide de modo inapelável é o soberano; quando ocorrem decisões do
soberano, há o estado de exceção.”62
O terceiro capítulo do livro traz o tema que dá razão à obra, Teologia política. A tese
principal de Schmitt é apresentada pelo autor logo em seu introito: “todos os conceitos
significantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados, e não só por
conta de seu desenvolvimento histórico, mas porque eles foram transferidos da teologia para a
teoria do Estado.”63
Brilhantemente, Schmitt reconta o desenvolvimento da teoria do Estado denunciando-
a como eminentemente liberal, mas contrapondo-a com aquela que a antecede e com os
elementos que nela permanecem, a despeito da sua evolução por antagonismo. Prega uma tese
segundo a qual a metafísica de um tempo denuncia o “espírito da época” de uma forma
indireta; assim, apesar de a justificativa teológica não constar mais na teoria do Estado, seus
elementos nela persistem.64
O constitucionalismo moderno, nesses termos, convive com o deísmo, um veio
teológico e metafísico que bane o milagre do mundo, e rejeita a inerente transgressão das leis
da natureza implícitas no conceito de milagre (que é uma exceção decorrente de uma
65 Ibid. p. 42.
sobre a aplicação concreta do direito”.66 A primeira, verdadeiramente, é psicológica, e a
segunda, é a da sociologia dos conceitos propriamente.
Psicologicamente, poder-se-ia conceber a sociologia dos conceitos como uma redução
radical segundo a origem. Assim, o raciocínio jurídico dependeria do operador que se está
analisando, seja ele um burocrata, um advogado ou um professor de Direito. Nessa visão, o
sistema hegeliano de filosofia seria caracterizada como sendo a “filosofia de um professor”,
que se dá ao luxo, pelo seu status social, de analisar a história e o mundo de uma forma
puramente contemplativa. Igualmente, olhando-se a teoria kelseniana, a classificação seria a
da ideologia de um advogado-burocrata que opera em circunstâncias políticas instáveis e que
busca sistematizar o corpo de ordens que recebe de autoridades superiores.
Muito diferente essa concepção da sociologia dos conceitos que Schmitt busca aplicar
para o Direito, que sozinha consegue conquistar um resultado científico para um conceito
como o da soberania.67 Schmitt a coloca aparte de uma teoria legal pragmática, discriminando
o seu intento como o de desvelar a estrutura sistemática radical básica e compará-la com a
representação conceitual da sociedade em uma certa época. Nela, o autor não está interessado
na descrição fática ou na correspondência exata de um conceito com uma época, por exemplo,
ao se dizer que o monarquismo absolutista do século XVII era aquele ensejado pelo conceito
cartesiano de Deus, especificamente; é, agora sim, o de comparar as estruturas sociais
monárquicas daquela época com o que se tinha no estado de consciência geral do momento,
correspondendo, ulteriormente, a estrutura jurídica da época com a estrutura metafísica
em voga. Nesses termos, assim, fica claro dizer que àquela época o conceito de Monarquia
era dominante e evidente na consciência do período, assim como a democracia o será
posteriormente.
Asserta, primeiramente, que a sistemática de estudo dos conceitos jurídicos pressupõe
uma ideologia radical (no sentido teológico) e consistente, e que por conta disso tal ideologia
poderia ser confundida por uma filosofia espiritual da filosofia da história ou uma filosofia
materialista. Em verdade, considera que o engajamento em uma discussão dialética entre
materialismo e espiritualismo é inócuo, pois ambos acabam cancelando-se. O estudo
sociológico proposto, assim, é uma concepção radical, teológica e teleológica, e consiste na
constatação de que a imagem metafísica de uma época representa a forma de organização
política dessa época:
66 SOLON, 1997. p. 87
67 SCHMITT, 2005, p. 45.
A imagem metafísica do mundo de uma época específica expressa possui a
mesma estrutura que aquela que é parente àquela época como uma forma de sua
organização política. O estabelecer de tal identidade é a sociologia do conceito da
soberania. Ela prova, realmente, como Edward Caird o disse em seu livro sobre
Auguste Comte, que a metafísica é a forma de expressão mais intensa e clara de
uma época.68
71 Ibid., p. 55.
inofensivo.72 Busca, enfim, fugir da decisão na exceção, que Cortés atribui à ditadura:
antecipa-se o juízo final.73
Conclusivamente, ambos os autores veem, segundo Schmitt, ao contrário de seus
pares restauracionistas, uma via de mão única nos eventos do século XIX. Assim que
depostos os reis, ninguém mais teria a coragem de ser monarca senão pela vontade do povo.
Isso, segundo o autor, traz o decisionismo dos pensadores em uma conclusão; tal seja, eles
demandam a ditadura política.
Podemos conceber, sinteticamente, portanto, a tese central de Teologia Política como
uma exposição dos elementos ocultos do sistema vigente de Direito. Nele, Schmitt aponta as
contradições do sistema legal positivista, que ulteriormente pressupõe uma independência,
seja supostamente “espiritual” ou científica, do sistema legal em relação a fatores morais e
sociológicos.
Em contraste, denuncia a origem da teoria do Estado como sendo notadamente
decisionista, remontando o Direito como uma ciência inevitavelmente sociológica e pessoal.
Aponta, ademais, meios de discriminação da estrutura jurídica vigente por meio da sua
identificação com a teoria metafísica vigente na consciência geral; e, nesses termos,
possibilita-se a constatação da evolução da teoria legal e descrição dos sistemas jurídicas
desde o século XVI até a data de sua obra, da virada absolutista a sua incorporação deística ao
conceito orgânico de povo e de Poder constituinte, denunciando as estruturas teológicas
veladas no liame político e estatal, a despeito das teorias liberais recentes que buscam
reprimir tanto o soberano originário quanto o teístico e, enfim, o deístico do Estado.
Concebe conceitualmente, por fim, a origem dos sistemas jurídicos como decorrentes
de um momento extraordinário em que alguém toma uma decisão para estabilizar o momento
de incerteza e caos. Essa decisão é emitida pela autoridade soberana que cria o sistema legal
futuro e que, para fins deste trabalho e na obra Teoria da Constituição, será tratado como
Poder constituinte.
72 Ibid. p. 60.
73Nesse ínterim descritivo, Schmitt lança um conceito que será trabalhado à exaustão em seu livro mais
conhecido, O Conceito do Político. Embora não explorado neste trabalho de conclusão de curso, cabe
discriminar que Schmitt vê na tendência burguesa o fim da política, a substituição do meio político por um meio
técnico e organizacional com foco estritamente econômico; tendência de mesma sorte que a descrição feita por
Max Weber em relação ao Estado moderno: trata-se de uma grande planta industrial. A banalização da decisão e
seu ocultamento por meio de um sistema autossuficiente positivo, supostamente objetivo e imparcial, bem como
impossibilidades conceituais em relação a forma do Estado e governo, compõe, enfim, o centro da crítica de
Schmitt contra o liberalismo.
3.2. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO – OS SISTEMAS LEGAIS SEGUNDO O
DECISIONISMO SOCIOLÓGICO
74 O original é separado em parágrafos, conforme a tradição alemã, que aqui serão tratados como capítulos.
75 SCHMITT, 1982, p. 30.
76 “[Filosofia] Processo de mudanças efetivas pelas quais todo ser passa; Movimento permanente que atua como
regra, sendo capaz de criar, transformar e modificar tudo o que existe; essa própria mudança.” Disponível em:
https://www.dicio.com.br/devir/ , acesso em: 31 de outubro de 2021.
Da primeira, tira-se que o Estado em Schmitt é a própria Constituição. Ele não possui
uma Constituição “segundo a qual” se forma e funciona a vontade estatal: a Constituição é
uma situação presente do ser do Estado, o status de unidade e de ordem. Da segunda, que a
forma da Constituição do Estado não impõe um dever-ser, como delegações vazias de
competência (vide a teoria positivista), mas é, como preceituavam os autores medievos, uma
forma formarum, que descreve a forma de governo, já constituindo-o faticamente. Da terceira,
por fim, concebe-se o Estado como algo dinâmico, jamais estático.
Uma Constituição também pode ser absoluta quando é pensada como um sistema
normativo supremo, como uma norma fundamental ou norma das normas. Trata-se do
conceito positivista de Constituição, que corresponde ao modelo kelseniano. Schmitt faz
várias críticas a essa visão, assim como em Teologia Política. Traça desde o liberalismo tal
corrente e a coloca como baseada em conceitos de unidade sistêmica e de validade.77
Em verdade, Schmitt vê que uma Constituição é válida somente quando emana de um
poder (força ou autoridade) constituinte e se estabelece pela vontade desse sujeito. Aqui, a
palavra vontade significa, em contraste com simples normas, uma magnitude do Ser como
origem do Dever-ser. Trata-se, enfim, de uma constatação fulcral de Schmitt, que realiza a
ciência jurídica: a soberania deve possuir lastro na realidade concreta.
Nesses termos, uma norma vale porque é justa, derivando-se assim do Direito Natural,
ou porque é motivada por uma vontade já existente: uma norma jamais se estabelece por si
mesma. Assim, dizer que a Constituição vale como norma fundamental é vê-la por suas
qualidades de conteúdo, lógicas, morais e outras concretas.
A despeito de Kelsen e do positivismo, ademais, a unidade do ordenamento reside na
existência política do Estado, e não em leis, regras ou qualquer classe de normatividades.
Pensar a constituição de Weimar, com seus 181 artigos, muitos deles meramente dispositivos
e declaratórios78, como um sistema coeso e com unidade interna, é pura ficção.79
Nesse teor, segundo o autor, as representações da Constituição como um sistema
normativo absoluto com unidade estão presentes desde 1789, em que se instaurara a fé na
figura do législateur bom e infalível, que descreveria toda a situação política e social de
forma escrita e formal. Atualmente [ao tempo de C. Schmitt], encontrar-se-ia a situação
77 Ibid. p. 31.
78 Para Schmitt a Constituição não declara, constitui; qualquer descrição legal formalmente constitucional que
não cria efeitos jurídicos é meramente redundante.
79 Ibid. p. 35.
oposta, de que o texto Constitucional independe da situação política a partir do momento de
sua elaboração. A Constituição, aqui, transforma-se em uma série de distintas leis
constitucionais positivas.80
O conceito relativo de Constituição corresponde simplesmente à distinção entre as
normas materialmente constitucionais e formalmente constitucionais. Schmitt com essa
classificação busca destacar que até mesmo Constituições escritas podem não ter teor
constitucional. Tal teor decorre então da vinculação à vontade soberana, e não à forma que se
dá ao texto. Relata, como exemplo, que no caso americano, a Constituição escrita era somente
uma consequência da vontade da unidade política da Revolução (o que contrasta, como se
verá, do pensamento de H. Arendt).
Em seguida, o conceito positivo de Constituição. Trata-se, sinteticamente, da
Constituição como decisão do conjunto sobre o modo e forma da unidade política.
É o apelo de Schmitt à concepção segundo a qual não se pode conceber uma
Constituição como um código fechado de normas, tampouco como a união de normas
constitucionais ou como derivação delas: a Constituição em sentido positivo surge mediante
um ato do Poder constituinte.
Aqui estende-se grossa parte da teoria constitucional de Schmitt, bem como sua
sociologia política. Schmitt concebe a unidade política como algo sempre anterior ao sistema
legal vigente, ao contrário da teoria positivista que simplesmente a reduz ao pré-jurídico.
O ato constituinte, nesses termos, não é limitado por qualquer ordenamento
normativo. Sua única limitação faz-se da decisão momentânea expedida pela totalidade da
unidade política, considerando-se a particularidade da sua forma existencial. Esse ato
decisório, nesses termos, apenas constitui a forma da unidade política.81
Aqui, como se vê, há um aceno grande a teoria de Sieyès, que concebe o Poder
constituinte como necessariamente ilimitado, sob pena de ser velado ou usurpado. Apesar
disso, em contraste ao francês, Schmitt não busca igualar a criação do constituinte, o
ordenamento legal, com a próprio Nação política. Esta, na teoria do alemão, jamais se
confunde com a mera forma legal como em Sieyès, que traça condições históricas e
econômicas para a constituição da Nação, mas condiciona a sua existência política à
ratificação declaratória legal.
80 Ibid. p. 35-36.
81 Ibid. p.45-46.
Na teoria de Schmitt, ademais, prevê-se dois erros comuns da teoria legal usual. O
primeiro consiste na concepção de que uma nova Constituição deve necessariamente fundar
um novo Estado; o erro decorre da ideia de que a Constituição significa o estabelecimento de
um novo pacto social, o que, na doutrina do Poder constituinte, não é verdade. A fundação do
Estado advém do pacto social. A própria existência do Estado, segundo Schmitt, já pressupõe
o contrato social firmado. Assim, o que dá o status político ao Estado é o pacto social, não a
Constituição. Esta, agora sim, decorre da vontade da unidade política, que existe
anteriormente à Constituição, e só se relaciona ao Estado como condição de existência.82
Outro equívoco apontado é o de igualar a Constituição a um codex exaustivo. Trata-se
de uma pretensão positiva como sempre rechaçada pelo autor. A unidade da Constituição não
reside no seu corpo legal escrito, mas na unidade política que a cria, cuja forma de existência
é que se dá com o ato constituinte.83
Por consequência desses pensamentos, a Constituição em Schmitt não é absoluta, pois
não surge de si mesma, e também não existe em virtude de sua justiça normativa ou por sua
hermeticidade sistemática. A existência política da Constituição, novamente, é determinada
pela unidade política, e essa, materialmente, determina-se por si mesma. 84 Por esse todo,
enfim, a Constituição nada mais é que a expressão formal da soberania de um Estado que é
anterior a ela, que não se funda nela.85
Nesses termos, afirma Schmitt, a distinção entre a Constituição e a lei constitucional
só é possível, ademais, porque a essência da Constituição não está contida em uma lei ou em
uma norma: no limite de toda normatização reside uma decisão política do titular do Poder
constituinte, tal seja, do povo na democracia ou do príncipe (a dinastia) na monarquia.
O conceito de Constituição positiva de Schmitt implica, ademais, uma dissonância
com a doutrina usual que relega informações preambulares nas constituições escritas como
mero capricho da assembleia constituinte. Assim, o preâmbulo constitucional, segundo as
ideias do autor, revela a essência da vontade e da decisão política que funda o respectivo
sistema legal, sendo tão normativa quanto as disposições em si, senão até mais.86
87 Argumento parecido é dado por Kelsen em relação à norma fundamental que dá validade ao sistema. Cfr.
KELSEN, 1949, pp. 116-118.
88 Ibid. p. 58.
89 Ibid. p. 67-68.
Em verdade, por essa explicação, Schmitt nos fornece a própria definição do que é
Estado. Nesse continente europeu (Europa ocidental), o príncipe se faz absoluto por tornar-se
o legibus solutus, tal seja, aquele na posição privilegiada de decidir sozinho sobre questões
intrínsecas ao tecido social da época; e, desse contexto, a palavra “Estado” designa justamente
esta formação política ao fazer a conexão verbal e mental com a palavra status, do latim, pois
desse status amplo da unidade política relativiza e absorve todas as outras relações estatais,
em particular as dos estamentos e as da Igreja. Assim, o Estado, sendo status político,
converte-se no Status em sentido absoluto: o Estado moderno é soberano, e, seu poder,
indivisível. As qualidades que o tornam assim, consequentemente, decorrem de sua unidade
política. O conceito de soberania, sobretudo, teria a função de superar a legitimidade do status
quo feudal.90
Teoricamente, as inovações e a percepção dessa mudança são indicadas em Hobbes e
Bodin, como exposto no último livro. Suas teorias, segundo Schmitt, mostram que o soberano
é aquele que decide na exceção, com poder para quebrar a ordem jurídica atual pelo bem-estar
de todos, pela manutenção da unidade política.
Continua Schmitt, cronologicamente, atestando que em 1789, com a Revolução
Francesa, surge a concepção de Constituição moderna, um misto de elementos liberais e
democráticos. O embasamento teórico da revolução é notadamente a teoria do Poder
constituinte, e com ela, a Teoria do Estado da revolução passa a ser uma fonte capital, não
somente para a dogmática política seguinte, mas também para a construção jurídica do caráter
positivo da Teoria da Constituição contemporânea.91
O Poder constituinte, conforme Schmitt, pressupõe o povo como uma entidade política
existencial. A palavra Nação designa em sentido expressivo um povo capaz de atuar, desperto
à consciência política. Historicamente, novamente, Schmitt atesta que a origem dessa
concepção de unidade política e de nacionalidade vieram como consequência do absolutismo
monárquico precedente.92 Nesses termos, na França, o povo francês constitui-se como o
sujeito do Poder constituinte, fazendo-se consciente de sua capacidade política de agir, e se dá
conta até supostamente de uma Constituição, afirmando assim, a sua própria capacidade
política: ao dar-se constituição o povo francês formar-se-ia em Nação. O que não significa,
porém, que a não houvesse existência política outrora, tampouco que se fundara um Estado
90 Ibid. p. 70.
91Ibid.
92 Ibid. p. 71.
mediante o Poder constituinte revolucionário; como dito antes, o Ser político precede o
momento constituinte: o que não existe politicamente não pode decidir ou fundar qualquer
coisa.93
O ato da fundação por confrontamento ao monarca absoluto, prossegue, coloca a
Nação como um sujeito também absoluto e, apesar dos princípios de limitação e de divisão de
poderes burgueses, a fundamentação e intento revolucionários sempre foram absolutos, pois a
unidade política não se rompe ou se destitui por leis constitucionais.
Aqui, como se verá, traça-se uma das mais importantes teses de H. Arendt em Sobre a
Revolução, e uma consequência do repetido por Schmitt desde T.P, a concepção de que o
liberalismo institui-se das bases do Estado absolutista ou, como diz a autora, o povo calça os
sapatos do príncipe. No mais, importante ressaltar que a distinção necessária entre o ato em
que o povo se dá a Constituição pelo ato da fundação do Estado, como alegada por Schmitt, é
problemática conforme apontam Kalyvas e Loughlin (cfr. itens 3.3 e 3.4).
Schmitt concebe o restante da história constitucional francesa, ademais, como uma
história da supremacia do Poder constituinte do povo, mas do feitio constitucional puramente
formal. Assim, velava-se o intento soberano intrínseco ao constituinte, em troca de um pro
forma liberal.94
Um outro apontamento interessante a ser feito consta de uma crítica de Schmitt a
Gierke, quando se trata da questão do anacronismo. Schmitt considera absurda a concepção
de tratar a concepção de pacto social, ou de qualquer outro termo correlato atrelado à Teoria
do Estado moderna, como sinônimos entre autores de épocas tão diversas, como Rosseau
contra Marsílio de Pádua.95 Com isso, o autor mostra-se estritamente meticuloso com os
termos utilizados e as análises traçadas.
Posteriormente, em tratativa referente ao sujeito do Poder constituinte, Schmitt afirma
que o seu titular é a Nação, tanto como o povo. 96 Verdadeiramente, ambas são categorias
conceituais similares, porém a Nação, pelo meno ao contexto francês é um conceito mais
exato segundo Schmitt. O conceito de povo designa uma coletividade de homens unidos por
questões étnicas e culturais, mas que não são necessariamente políticas, enquanto que a Nação
pressupõe estritamente a vontade e a consciência política. Schmitt traça o conceito em Sieyès,
93 Ibid.
94 Ibid. p. 73.
95 Ibid. p. 85.
96 Ibid. p. 95.
e assevera da mesma forma, que o ato ao qual a Nação se dá uma Constituição pressupõe um
Estado já existente; com o adicional de que para que esse ato seja perfeito, é necessária a ele
uma vontade expressa em uma decisão. Nas palavras de Sieyès, trata-se do “basta que a
Nação o queira.”
Nesse aspecto, pode-se dizer que tanto em Schmitt quanto em Sieyès a fundação do
Estado político permanece um ato vago, ainda que circunscritível. Tal é a constatação de
Loughlin e de Kalyvas, que será, segundo este último, suplantado pela concepção de H.
Arendt, como se verá (item 4)
Em questão ainda à Sieyès, Schmitt faz a acusação de que o francês liga a doutrina
democrática do constituinte com a antidemocrática redução da política à representação da
vontade popular mediante a legislatura. Essa ação, segundo o alemão, é tipicamente
burguesa.97
Nesse constante, Schmitt está reiterando uma de suas críticas a um dos conceitos
liberais que considera uma hipocrisia: a da identificação entre governantes e governados
quando se tem uma legislatura. Neste ponto, Sieyès, como exposto anteriormente, coloca-a
como necessária na evolução da sociedade haja vista a pluralidade de indivíduos em
consideração; apesar disso para Schmitt, em termos deciosionistas, não pode o soberano,
titular do poder constituinte (aqui, o povo), delegar tal poder a representantes e ser,
pragmaticamente, por eles governado. A única forma autêntica, segundo o autor, decorrente
de seus pensamentos em T.P, seria a da ditadura, em que o ditador cumpre ações em nome do
povo por aclamação direta.98 Schmitt chega também a fazer a ressalva à possibilidade de
demagogos e tiranos em geral, que podem capturar tal aclamação com má-fé (tal qual faz
Sieyès no constante à usurpação do P. constituinte por extrapolação da legislatura concedida)
mas não dedica muitas linhas ao tema, o que lhe rende severas críticas dos democratas
Loughlin e Kalyvas.
No tema da atividade do Poder constituinte, Schmitt atesta em semelhança à Sieyès
que “não se pode dar um procedimento regulado ao qual se encontre vinculada a atividade do
poder constituinte.”99 Ou seja, o ordenamento jurídico que segue a decisão originária não
pode nem limitá-lo nem circunscrevê-lo por descrição, como se faz com o princípio
97 Ibid. p. 98.
98 Ibid. p. 100.
99 Ibid. p. 99.
legalidade do estado liberal. Ademais, o autor traça alguns pontos elementais quanto a
atividade100:
Afirma Schmitt que a atividade do Poder constituinte do povo se manifesta mediante
qualquer expressão reconhecível de sua vontade política de conjunto imediata, dirigida por
uma decisão sobre o modo e forma da unidade política. Disso decorrem algumas
peculiaridades.
a) O povo, como titular do P. constituinte, não é uma instância institucionalizada: se o
fosse, o Poder constituinte seria absorvido pela ordem estabelecida, o que contradiz sua
natureza ilimitada axiomática.
b) Disso, a forma natural de manifestação da vontade do povo, como já dito, é pela
aclamação direta. Tal aclamação, em democracias, confunde-se por termos de “opinião
pública”. Ulteriormente, a manifestação de vontade do povo dar-se-ia em forma de “nãos” e
“sims” às questões principais referentes à unidade política.
c) A vontade do povo é imediata. É anterior e superior a todo procedimento de
legislação constitucional comum, ou seja, sua atividade não é circunscritível à legiferação.
Das características expostas de atividade do Poder constituinte, portanto, decorre o
problema já mencionado da usurpação do Poder por demagogos e tiranos por simples
aclamação comum. Ademais, a própria discriminação do “reconhecimento inequívoco da
vontade” é extremamente problemática. Confessa-se, quando se tem formas institucionais de
fazê-lo, como plebiscitos e referendos, a aferição da vontade popular torna-se meramente uma
questão de contagem. Mas isso não implicaria a circunscrição formal do próprio constituinte?
Sem falar, também, das possibilidades decorrentes de usurpação deste Poder por aqueles
demagogos, como se faz nos regimes cesaristas.
Ulteriormente, mesmo supondo-se a existência de um método de aferição que respeite
os elementos da teoria do constituinte originário, anterior e ilimitado de forma não à
posteriori à exceção; é pacífico que tamanha vagueza, quando aliada de uma teoria por
definição totalitária, no sentido de radicalidade e de extremismo – e nesse sentido Schmitt é
tão enfático quanto Sieyès em sua terminologia de “tudo ou nada” - pode ensejar grandes
discricionariedades e insegurança jurídica até nos momentos de paz. Poder-se-ia dizer,
utilizando-se do próprio diagnóstico de Schmitt, que essa é a razão do liberalismo criar tantos
entraves e mecanismos de autorregulação do Poder.
100 Ibid.
Na questão à opinião pública, também, ter-se-ia não só o problema de discriminar o
que é a opinião uníssona, principalmente quando se tem em consideração que em momentos
de exceção e turbulência política o que menos se percebe é o consenso; mas também o
problema teórico da opinião pública como diretriz do espaço político, conforme H. Arendt.101
Endereçando a questão da legitimidade, Schmitt, em decorrência de seu decisionismo,
não empresta ao conceito a tratativa usual da doutrina clássica ou majoritária. Schmitt trata
por legitimidade o significado etimológico da palavra, tal seja, é legítimo aquilo que decorre
da lex, das leges. Assim, é impossível, na teoria do autor, dizer que uma Constituição é
legítima nesse sentido: a Constituição possui como substância a decisão política pautada na
unidade política da Nação, a sua legiferação em ordenamento jurídico é apenas o modo
formal de sua existência, sendo a existência política o modo material. Em outras palavras, não
pode ser legítima a Constituição, só podem ser constitucionais as leges.102
Sobre as formas históricas de legitimidade, Schmitt destaca duas – a dinástica e a
democrática, que correspondem, respectivamente, como sujeitos do Poder constituinte, ao
príncipe e ao povo. Onde prepondera a autoridade do rei, é reconhecido o Poder do monarca;
onde prepondera a maiestas populi, a validade da Constituição decorrerá da vontade
popular.103 A legitimidade dinástica, apoiada na autoridade do monarca, quer dizer que o
titular do Poder constituinte é o monarca abstratamente considerado, tal seja, não o sujeito
individual, Rei Pedro I de Bragança, mas a família dinástica considerada em sucessão
hereditária. De modo inverso, a legitimidade democrática apoia-se na noção de que o Estado é
a unidade política do povo, tal seja, o Estado é o status político do povo.
o livro é de 1928, torna-se flagrante que a Alemanha passaria também a ser um dos exemplos mais emblemáticos
de insidiosos do tema. Ibid. p. 228.
107 Ibid. p. 233.
108 Ibid. p. 237.
109 Ibid.
110 Ibid. p. 240.
criadora do Poder constituinte segundo os desdobramentos contemporâneos desde a
Revolução Francesa.
Desse modo, temos uma teoria constitucional que não reduz o político ao pré-jurídico,
pelo contrário, temos uma teoria constitucional que coloca o jurídico como forma positivada
da existência política, que é anterior e independente. Contrariamente às teorias usuais,
portanto, a validade da Constituição depende da sua vinculação com o poder e a vontade que
a emanou, possuindo então lastro fático.
Desse lastro importa que positivações meramente declaratórias não possuem nenhuma
relevância coercitiva mas, em sentido oposto, descrições preambulares, por exemplo, tem a
capacidade de denotar mais constitutividade jurídica que normatizações não consonantes ao
soberano.
O Poder constituinte contemporâneo, ademais, denota a concepção de povo (ou o
príncipe) como o seu titular. O povo, emanando sua vontade como decisão no momento de
exceção, assim, erige o sistema normativo e é consequentemente externo e inapreensível a
esse ordenamento. O povo é condição existencial do Poder constituinte, e a sua atuação
política configura a Nação.
Essa concepção de constituinte advém, ademais, da Revolução Francesa, e tem como
seu maior proponente a teoria de Sieyès, que, como atesta H. Arendt, foi o maior teórico legal
da Revolução Francesa.111 O povo francês, consciente de sua existência política e fazendo-a
valer, coloca-se no lugar o príncipe absoluto e constitui a Nação em sua inteireza. A
dissonância com Sieyès aqui se dá predominantemente, portanto, em relação à concepção que
o ordenamento legal constitui a Nação “elle même”, denunciando Sieyès como um autor
liberal.
Nesse contexto, afirma Schmitt ser a Revolução francesa a origem do sistema liberal
constitucional, um marco na teoria do estado que vinculará a legiferação e políticas futuras.
Essa acepção, como se verá (item 3.3 a seguir), mostra-se como uma visão peculiar e
idealizada de Schmitt em relação ao liberalismo, contrapondo-se com a visão de Hannah
Arendt acerca da Revolução Francesa.
Em relação ao devir constitucional, ademais, Schmitt enfatiza, por consequência
lógica, os equívocos das teorias constitucionais liberais em equivaler a Constituição escrita
com a material, colocando mecanismo de reformas e de revisão como capazes de alterar esta.
Dessa forma, pode-se dizer que Schmitt chega até a acenar à interpretação da
institucionalização como mostra da vontade popular, mas o faz com inúmeras ressalvas em
relação a apreensibilidade e limitação do poder popular pela ordem legal instituída. Esse deve
ser o cuidado tido com a interpretação de Kalyvas, portanto, pois é sim necessária uma forma
de aferir a vontade popular, e é necessário que se saia do extraordinário à ordem legal,
segundo o próprio Schmitt, mas jamais se negando o soberano constituinte pela instituição do
ordenamento.
125 Ibid.
126 Este é o paradoxo fundacional.
127 SCHMITT, 1982. pp. 99-100. Grifos pessoais.
De fato, o ponto apresentado por Kalyvas concentra-se na necessidade da
normalidade, ao contrário da interpretação equivocada segundo a qual Schmitt seria um
teórico exclusivamente do extraordinário, e disso temos certeza por dizeres do próprio
autor.128
Em relação ao antiliberalismo, Kalyvas aponta Schmitt como um crítico das
democracias aparentes. Segundo ele, o liberalismo, com sua teoria universal de direitos
humanos, seu economicismo, seu legalismo e a respectiva tendência à moralização, bem
como seu individualismo, tanto recusa reconhecer a distinção fundamental entre amigo e
inimigo, quanto renega o poder político original, possuindo então um grande receio frente ao
soberano popular. 129
O triunfo do constitucionalismo schmittiano, nesses termos, está em reconhecer a
necessidade da legalidade e da institucionalização para se chegar à normalidade, enquanto
ainda não se mina o soberano original.
Um dos apontamentos centrais de Kalyvas a Schmitt está na distinção que o autor
grego enxerga nos momentos constitucionais em Schmitt, do constituinte ao constituído. Essa
distinção divide a Constituição schmittiana em dois estratos, o superior, concernente ao
caráter fundamental da Constituição, que trata da forma e regime de governo e do
estabelecimento das instituições principais; e o inferior, que corresponde ao procedimental. O
primeiro, pode-se dizer, contém a essência da existência política da Nação, e o segundo
corresponde à parafernália legal atribuída ao liberalismo.130
O estrato inferior, apesar de ser tratado de forma crítica por Schmitt é, confessamente
pelo autor, imprescindível ao funcionamento do Estado contemporâneo. 131 “O paradigma
enfrentado, então, não é o de abolir um em favor do outro, mas de ver como ambos podem ser
melhor articulados entre si, e qual parte possui prioridade sobre a outra”.132 Nesse aspecto,
certamente o estrato superior vincula o inferior, e jamais o contrário. No mais, tal
posicionamento é o dizer de Schmitt em relação às emendas e possíveis reformas ou revisões
de leis constitucionais: o seu caráter é sempre aditivo ou superficial, jamais essencial. 133 Essa
Martin Loughlin expõe, em seu artigo “The Concept of Constituent Power”147, uma
tese interessante acerca do meio e tema de discussão desta pesquisa. Contrapondo o que
chama de normativismo e decisionismo jurídicos, o autor propõe uma solução sincrética que
permitiria a união do realismo moral decisionista com o aceno à instrumentalidade formal do
normativismo em prol de uma tese democrática, similarmente à Kalyvas.
O autor, como dito, distingue três formas do pensamento jurídico, o normativismo, o
decisionismo e o relacionismo, a ser apresentado como a contraposição dos anteriores. O
normativismo corresponde à corrente de autores como Hans Kelsen, que prezam pela
autonomia do ordenamento, recolocando conceitos como poder em uma categoria exógena e
redundante. O decisionismo, notadamente de Carl Schmitt, funda o Direito como vontade e
concebe o ordenamento por si só como insuficiente para se ter autonomia, sendo necessário o
recurso a um poder soberano, o Poder constituinte.
148 Ibid. p. 5.
149 Ibid p. 6-7.
150 Ibid. p. 12.
Estado e à liderança carismática, que podem desencadear, segundo Loughlin, os governos
totalitários.
Ainda mais, diverge em uma questão central: representação [legislatura]. Em Sieyès,
Loughlin vê a representação como tema central por consequência logística de se manter a
divisão de trabalho na sociedade moderna, e em Schmitt vê uma crítica à representatividade
quando o autor se refere ao princípio da identidade democrático (é difícil que se tenha
representantes iguais ao povo sem que se desemboque em uma aristocracia). Para Loughlin,
nenhum dos autores endereça o centro da questão, que é a concepção de que uma vez
invocado o conceito, o próprio povo deve ser considerado uma representação, pois poder
político só é criado quando “o povo” é diferenciado da realidade concreta da multidão.151
Em Loughlin, o fenômeno da transferência da autoridade do príncipe para o povo,
narrado por Schmitt e por Arendt, implica uma mudança profunda na questão da
representação simbólica: a figura transcendental do soberano divino acaba, mas o espaço
desta soberania permanece. Esse espaço, segundo o autor, é o espaço do político, um domínio
autônomo que, a despeito de suas contingências, expressa uma forma de ser revelada na sua
lógica de ação e na sua singular concepção de poder.
O espaço do político é o que o normativismo, segundo Loughlin, busca remover do
discurso constitucional, seja em sua vertente positivista ao igualar o Estado ao ordenamento
jurídico e definir soberania como bobagem metafísica, seja em sua vertente antipositivista por
conceber o constitucionalismo como uma filosofia moral. Schmitt, realmente, como também
alude Loughlin, aceita a autonomia do político e enxerga o espaço do político advindo da
transição do teístico para o deístico (vide itens 3.1, 3.2.3 e 3.3), mas remedia a lacuna deixada
por essa transição com a concepção de um soberano ditatorial que mantém a unidade política.
Para Loughlin, essa noção de “o povo como um só” 152 só pode desembocar no totalitarismo,
em que qualquer forma de oposição é considerada como “o inimigo”.
A análise relacional parte do momento da fundação. Rousseau, segundo Loughlin, foi
o primeiro a destacar o paradigma paradoxal da fundação pela pergunta: como pode um grupo
de estranhos se encontrarem e, sem se conhecerem ou terem objetivos em comum,
deliberarem para fundar uma Constituição? Como pode o corpo não constituído constituir?
Como poderia o povo, ou categoria similar, pactuar sendo que será esse pacto o próprio
constituinte desse povo? Trata-se, enfim do tema central deste trabalho de conclusão de curso.
151 Ibid. p. 13.
152 “The people-as-one”. Ibid.
Segundo o autor, o normativismo soluciona-o por tratar a fundação como puro ato de
representação, o Poder constituinte é inteiramente absorvido nos poderes constituídos, ele é
uma pressuposição de um juízo jurídico. O decisionismo, por sua vez, resolve o problema por
pressupor uma igualdade substantiva misteriosa do povo (vide Schmitt item 3.2.3).153
O método relacionista, para Loughlin, resolve o problema mais satisfatoriamente que
os demais por adotar a noção de “auto-constituição” 154, que é compreendida pela referência à
identidade reflexiva. Schmitt argumenta que a decisão do soberano é o começo absoluto, que
advém de um nada normativo e de uma desordem concreta 155 o que, relacionalmente, jamais
acontece. Para Loughlin, a fundação e sua forma normativa só podem ser entendidas
virtualmente. A questão é que essa virtualidade choca-se com a realidade, pois o concreto
sempre é problemático. Esse momento de confronto toma forma como um ato de violência, e
a definição territorial de Estado é invariavelmente arbitrária pois nenhuma comunidade
“natural” habita o espaço político. Essas contradições, para o autor, explicam a necessidade
do governo, pois apesar de o espaço do político poder ser visto como o espaço de liberdade (o
“começo absoluto” virtual), sua manutenção requer institucionalizações, e essas, por sua vez,
implicam dominação (uma quebra da identidade de Schmitt).
Em outras palavras, o ponto de partida fundacional é feito sim por um corpo desunido,
mas esse corpo projeta um sistema virtual de unidade (a Nação ou o Estado) e de igualdade; e
essa convenção fundacional necessita ser institucionalizada para que se concretize na
realidade. A institucionalização, porém, implica o governo e dominação de uns (os agentes
das instituições) sobre os outros (as pessoas comuns).
Em Loughlin, o povo é o sujeito do Poder constituinte, mas isso não significa que a
autoridade política está localizada no povo (na multidão, nas pessoas concretas), como
defendem os teóricos do princípio da soberania popular. O Poder constituinte expressa uma
igualdade virtual de cidadãos. Essa igualdade é gerada inter homines (estabelecendo o
princípio da unidade política), mas ela funda uma associação real que se divide entre
governantes e governados, em uma relação de dominação (estabelecendo o princípio da
hierarquia); ela funda a racionalidade constitucional (a normatividade), mas a associação só
153 Aqui excetua-se que o próprio Schmitt adverte para não se confundir o momento de nascimento do Estado, o
pacto social ou contrato social, do momento de nascimento da Constituição, que é o momento da decisão na
exceção. Loughlin os trata como similares, mas sua teoria se compatibiliza com a de Schmitt pela concepção da
fundação virtual e a realidade política, como se verá.
154 “self-constitution” Ibid. p. 14.
155 SCHMITT apud LOUGHLIN. Ibid.
evolui por ação (decisão). A tensão consequente entre soberania (a vontade geral) e o
soberano (o agente com autoridade para impor a decisão no nome daquela vontade geral) faz
com que o Poder constituinte não seja entendido somente como força. Sua evolução envolve,
então, uma dialética entre Direito (droit politique) e o governo real, as instituições que sofrem
uma constante irritação.156
Dessa perspectiva, o paradoxo para Loughlin pode ser abordado de forma diferente.
Começaria a fundação com a constituição de uma unidade política por um ordenamento
jurídico ou com a constituição do ordenamento jurídico por uma unidade política? Hans
Lindahl, segundo o autor, assevera que alguém deve tomar a iniciativa e decidir pelo grupo
segundo os interesses comuns que percebe, discriminando quem pertence a ele, pois a unidade
política surge primeiramente da instituição de uma Constituição. 157 Sob o aspecto relacionista,
a última situação é somente uma questão de legiferação, e a primeira torna-se sobre a
constituição da unidade política pelo droit politique, em vez de pelo ordenamento. Assim,
quando o Poder constituinte é concebido como uma expressão do droit politique, pode-se
dizer que a unidade política não advém da instituição de uma constituição escrita, mas da
forma com que esse droit politique opera dentro da constitucionalização do Estado.
O argumento de Schmitt, visto dessa forma, segundo Loughlin, não parece restar tão
longe do relacionismo: o autor alemão constrói sua análise da distinção entre a Constituição e
a constituição escrita, e dela reconhece que o Estado está em um constante processo de
formação. A despeito disso, o autor nunca chegou completamente a esse método. Loughlin
atesta que teria sido o seu contemporâneo, Herman Heller, que o faria. Segundo Heller, tanto
o normativismo quanto o decisionismo seriam metodologias errôneas, pois assim que se
reconhece a qualidade formadora de Poder do Direito, é impossível que se entenda a
Constituição como a decisão de um poder “desnormatizado” 158. Como Poder e Direito são
mutuamente constitutivos e reciprocamente dependentes, nunca se poderia aceitar o vazio
normativo da decisão inicial.
Para Loughlin, Poder é criado por um ato simbólico em que a multidão reconhece a si
mesma como a formação de uma unidade, um coletivo singular: “nós o povo”159. Esse ato não
pode existir somente na dimensão fictícia, ele deve ter efeitos na realidade, e isso envolverá
156 Ibid. p. 15
157 LINDAHL apud LOUGHLIN, ibid.
158 HELLER apud LOUGHLIN, ibid. p. 16-7.
159 “We the people”. Ibid.
com frequência o uso da força. Esse poder político, todavia, só pode ser mantido e aumentado
por meio de institucionalizações e, nesses termos, o povo realmente ordena e estabelece um
sistema de governo.
A Constituição concede autoridade às autoridades constituídas para legislar, e ao
limitar e definir e formalizar essas competências, a Constituição torna-se ela mesma um
instrumento de criação de poder. Ainda que não se implique o estabelecimento de um “rule of
law”, tem-se, porém, que sempre haverá uma lacuna entre o arranjo constitucional (a
expressão da soberania) e a capacidade decisória das autoridades governantes (a expressão da
autoridade soberana). Poder político, assim, é criado pela representação simbólica da
fundação e da constituição de corpos, e é então aplicado por meio da ação governamental.
Poder, então, não se estabelece nem no “povo” nem nas autoridades constituídas; ele existe na
relação estabelecida entre a imaginação ou arranjo constitucional e a ação governamental.160
Com o relacionismo em mente, Loughlin passa a descrever a significação do Poder
constituinte no pensamento constitucional. Poder constituinte expressa o aspecto criador da
relação de poder político. Contrariamente à tese decisionista, ele não pode ser igualado ao
poder concreto da multidão, pois isso é uma falácia materialista, que reduz o Poder
constituinte a um fato: o Poder constituinte só existe quando aquela multidão pode projetar si
mesma não só como a expressão de uma maioria, mas da totalidade. Sem a dimensão da
representação simbólica, não há Poder constituinte, pois ele, como conceito, simboliza o
aspecto dinâmico do discurso constitucional. O Poder constituinte, porém, como afirmam
Schmitt e Sieyès, não pode ser totalmente absorvido pela ordem constituída e ser assim
igualada a uma norma fundadora: essa é a falácia normativista. A sua realização, segundo
Loughlin, não implicaria o rule of law, um sonho impossível, mas a erradicação da liberdade
política.
Indo além de Schmitt, cujo decisionismo limita-se ao momento fundador, o método
relacionista de Loughlin mostra como o momento de fundação virtual continua a funcionar
em um regime estabelecido como uma expressão do aspecto dinâmico do ordenamento
constitucional, pois ele exibe a relação de tensão entre a soberania e o soberano. O
relacionismo preceitua que o Poder ou o Direito não advém de um nada normativo, pois a
constituição formaliza preceitos de droit politique que expressam a unidade política. Em
Rousseau, Loughlin destaca que a constituição seria eventualmente corrompida pois o povo
O trabalho de Hannah Arendt em “On Revolution”164 nos permite elucidar ainda mais
a questão da realidade contra as categorias jurídicas e políticas da teoria do Estado. Àquilo
que nos concerne para este trabalho, são de especial interesse os capítulos 2, 3, 4 e 5, nos
quais a autora trabalha a separação havida entre o social e o político na modernidade, e
contrasta os experimentos revolucionários americano e francês sob a ótica da fundação e da
constituição.
165 E aqui o destaque não é acidental. Para Arendt, a Política não é uma ciência a ser explicada
contemplativamente em termos filosóficos e teóricos, mas sim em termos teatrais, pois “o teatro é a arte política
por excelência”. Ibid. p. 138.
166 ARENDT, 1977. p. 130-151.
167 ARENDT, 1977. pp. 67-73.
ademais, tem raízes retiradas no conceito de compaixão ao outro e, com essa característica,
adquiriria uma abrangência sem limites durante a Revolução Francesa por figuras como
Robespierre. Esta virtude de compaixão e, ulteriormente, de piedade (que possui para Arendt
um caráter muito mais negativo), escancarariam as portas do político para os “les misérables”
e, com isso, o espaço político torna-se ia realmente o espaço do social.168
Dessa forma, de forma inversa à Schmitt em sua crítica ao “privatismo” liberal,
conflitos que eram para permanecer no privado vieram à praça política; conflitos que
deveriam ser a preocupação de administradores, tornaram-se matéria objeto de persuasão e de
decisão. A necessidade do povo era violenta e pré-política, e somente a violência poderia
satisfazê-la.
Em contrapartida à Revolução Americana, portanto, que buscava fundar a liberdade
(freedom) por meio de instituições duradouras (e por isso não ousava sair do corpo civil); a
Revolução Francesa buscava a libertação da Necessidade, e com isso acabou desembocando
em grandes rios de violência:
O rumo da Revolução Americana continuava comprometido com a fundação da
liberdade e o estabelecimento de instituições duradouras, e aos que atuavam nessa
direção não era permitido nada que estivesse fora do escopo do direito civil. O rumo
da Revolução Francesa, quase desde o início, foi desviado desse curso de fundação
pela imediaticidade do sofrimento; ele foi determinado pelas exigências de
libertação não da tirania, e sim da necessidade, e foi movido pela ilimitada
imensidão tanto da miséria do povo quanto da piedade inspirada por essa miséria 169
(...)
181 ARENDT, 2013. p. 222. “In theory, moreover, both contracts were fictions, the fictitious explanations of
existing relationships between the members of a community called society, or between this society and its
government; and while the history of the theoretical fictions can be traced back deep into the past, there had been
no instance, prior to the colonial enterprise of the British people, when even a remote possibility of testing their
validity in actual fact had presented itself.” ARENDT, 1977. p. 170.
182 What prompted the colonists ‘solemnly and mutually in the Presence of God and one another, [to] covenant
and combine ourselves together into a civil Body Politick; and by virtue hereof [to] enact, constitute, and frame,
such just and equal Laws, Ordinances, Acts, Constitutions, and Offices, from time to time, as shall be thought
most meet and convenient for the general Good of the Colony; unto which we promise all due Submission and
Obedience’ (as the Mayflower Compact has it), were the ‘difficulties and discouragements which in all
probabilities must be forecast upon the execution of this business’. ARENDT, 1977 p. 167.
si, unindo-se no ato de fundação em virtude de fazer e manter promessas, o que, na
esfera da política, é provavelmente a faculdade humana suprema. 183
A conquista americana fora, por fim, o perceber de que, com o rompimento com a
Coroa britânica e a consequente abolição das leis e constituição britânicas, eles precisariam
não de um novo poder, mas de uma nova fonte de autoridade, pois a criação de poder não
lhes era estranha.
Em contraposição a tudo isso, na França, Arendt enxerga que não haviam corpos
políticos constituídos anteriormente à Constituição que pudessem conduzir a revolução para
uma direção razoável, pois os que existiam eram decorrentes de uma realidade estamental.
Assim, a deposição do Rei na França lançou o país verdadeiramente em um estado de
natureza (enquanto que na América a rebelião só privou os americanos de seus direitos como
servos ingleses e de seus governadores).
A prática francesa, aliada à teoria vigente da época, buscou colocar todo o poder no
povo (e a deificação do povo é a consequência de se derivar tanto o Direito quanto o Poder da
mesma fonte), concebendo-o como volonté générale, mas plasmando a efetividade em
violência, que não constitui nada. De forma oposta, nos EUA, o passo necessário de descobrir
a nova fonte de autoridade concretizou-se com a conclusão de que, inversamente ao caso
francês, a fonte de autoridade (ao contrário do poder) vem de cima, não de baixo.
A lei fundamental que concede autoridade ao législateur na teoria de Rousseau é o
grande desafio apresentado ao autor (e corresponde em Arendt, novamente, à questão do
absoluto), que representa verdadeiramente o paradoxo fundacional: como criar a lei
fundamental que dá autoridade para legislar sobre o ordinário, sem que se tenha anteriormente
qualquer autoridade para isso? A solução passa, segundo Arendt, pelo apelo deístico, presente
em ambas as revoluções: para estabelecer-se a validade das leis humanas, “il fraudrait des
dieux”. Assim, o verdadeiro problema da política, nas palavras do francês, é o de fundar um
governo em que as leis estão acima dos homens.
Em contrapartida a todos esses paradigmas, Arendt atesta a experiência grega e a
romana, nas quais não se precisava de um recurso transcendental para legislar. No caso grego,
o legislador estava fora da pólis, e sua influência era pré-política (mas nem por isso ele se
183 ARENDT, 2013, p. 228. “The grammar of action: that action is the only human faculty that demands a
plurality of men; and the syntax of power: that power is the only human attribute which applies solely to the
worldly in-between space by which men are mutually related, combine in the act of foundation by virtue of the
making and the keeping of promises, which, in the realm of politics, may well be the highest human faculty.”
ARENDT, 1977 p. 175.
esquivava das leis que produzia). Já para os romanos, a lex seria algo completamente
mundano, correspondente de forma etimológica à ligação entre uma coisa e outra. Seria feita,
então, somente para regrar problemas banais, ainda que suas concepções de autoridade
passavam pela aprovação divina: a lex existia para dar coesão ao cenário político depois da
incursão romana no Lácio, pois antes disso essas leis não existiam; o ato legislativo romano,
ademais, teria o intuito de espalhar a pax romana, tal seja, o sistema de alianças feitos após a
derrota de um povo pelos romanos, e a sucessiva integração desse povo vencido à societas
romana. Por todos os motivos, a noção de um legislador, como o constituinte moderno, que
legisla e está acima de sua legislação não só era estranha aos antigos, como seria prontamente
atrelada à tirania em Roma.184
Dessas conceituações, Arendt conclui que o recurso à legitimidade das Leis era
necessário somente por conta da tradição absolutista. E ainda nesse contexto, confessa que até
os “founding fathers”, como homens de seu tempo, eram igualmente deístas e concebiam a
necessidade de uma legitimação transcendental em seus textos. Para Arendt, a expressão “we
hold these truths to be self evident” presente na Declaração de Independência possuía um
sentido irracionalista, tão axiomático quanto absolutista.
Nesse ponto, embora a prática vista pelos revolucionários americanos indicassem uma
fuga do paradigma do absoluto e da armadilha de um começo completamente novo, é de se
destacar que as teorias jurídicas e políticas da época, concebidas em termos de direito natural,
possuíam uma origem teocrática na lei divina hebraica, que se transfigura naquele direito
natural: o modelo jurídico ocidental se baseia na autoridade espiritual emanada do criador do
universo, Deus, e que é repassada para seus vicários (com o Papa sendo a maior figura) para
depois, por usurpação, ser repassada aos Reis.185
Consequentemente, não se evita o absoluto na América por falta de uma tradição
política ou histórica, ou pelo fato de se ter corpos já constituídos: o absoluto se faz presente
inerentemente à questão legal pelo fato da tradição Ocidental interpretar a norma como
comando, exigindo uma exegese divina à validade. Por essas razões, os founding fathers
teriam, na concepção de Arendt, plasmado-se nos antigos não por tradição, que usualmente
correspondia à Igreja e que não lhes foi dada no contexto americano, mas por inovação:
precisavam de um paralelo para se inspirar.
191 ARENDT, 1977, p. 199. Arendt aqui cita Cícero em De leges; “Cum potestas in populo auctoritas in senatu
sit” De leg. 3. 28.
192 HAMILTON apud ARENDT, ibid. p. 200. Também em HAMILTON, 2003, p. 74 (O Federalista nº 16).
193 Trata-se de uma simplificação de Arendt. Como pudemos estudar em trabalho prévio, as responsas que os
jurisconsultos e o senado promoviam eram definitivamente conselhos mas, no caso dos jurisconsultos, a
autoridade vista era eminentemente jurídica e limitava-se exclusivamente a problemas de direito quiritário. Cfr.
DOMINGO, 1999.
194 ARENDT, 2013 p. 258. “However, while the American institutional differentiation between power and
authority bears distinctly Roman traits, its own concept of authority is clearly entirely different. In Rome, the
function of authority was political, and it consisted in giving advice, while in the American republic the function
of authority is legal, and it consists in interpretation.” ARENDT, 1977. p. 200.
195 Ibid.
“O próprio fato de que os homens da Revolução Americana se vissem como
‘fundadores’ indica até que ponto eles deviam saber que seria o ato de fundação
em si, e não um Legislador Imortal, uma verdade autoevidente ou qualquer
outra fonte transcendente. E supraterrena, que acabaria por se tornar a fonte
de autoridade no novo corpo político.”196
196 ARENDT, 2013. p. 262 “The very fact that the men of the American Revolution thought of themselves as
‘founders’ indicates the extent to which they must have known that it would be the act of foundation itself, rather
than an Immortal Legislator or self-evident truth or any other transcendent, transmundane source, which
eventually would become the fountain of authority in the new body politic.” ARENDT, 1977 p. 204.
197 ARENDT, 2013. p. 261. “The fact of the matter is much simpler: they thought of themselves as founders
because they had consciously set out to imitate the Roman example and to emulate the Roman spirit. When
Madison speaks of the ‘successors’ on whom it will be ‘incumbent ,,,to improve and perpetuate’ the great design
formed by the ancestors, he anticipated ‘that veneration which time bestows on every thing, and without which
the wisest and freest government would not possess the requisite stability’.” MADISON Apud ARENDT, p. 203
(O federalista nº 14 e 49).
Em conclusão, a solução americana para o paradoxo fundacional foi, então, a de não
“principiar” sua fundação com a violência (que jamais se confunde com autoridade), ou com
um absoluto que legitima o sistema jurídico ou político, mas com a pluralidade:
“Por grandiosas e significativas que sejam tais percepções, elas só passam a
se aplicar à esfera política depois de se reconhecer que estão em flagrante oposição
com as velhas noções, mas ainda correntes, sobre o papel dominante da violência,
necessária para todas as fundações e, portanto, supostamente inevitável em todas as
revoluções. Sob este aspecto, o curso da Revolução Americana conta uma história
inesquecível e pode ensinar uma lição sem igual; pois essa revolução não eclodiu,
mas foi feita por homens deliberando em conjunto e com a força dos compromissos
mútuos. O princípio que veio à luz naqueles anos cruciais quando foram lançadas as
fundações — não pela força de um arquiteto, mas pelo poder somado de muitos —
era o princípio da promessa mútua e da delibe¬ ração comum; e de fato foi o próprio
acontecimento que decidiu, como havia insistido Hamilton, que os homens “são
realmente capazes [...] de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da
escolha”, que não estão “destinados para sempre a depender do acaso e da força para
suas constituições políticas”.”199
198 ARENDT, 2013. pp. 272-273. “(…) As such, the principle inspires the deeds that are to follow and remains
apparent as long as the action lasts. And it is not only our own language which still derives ‘principle’ from the
Latin principium and therefore suggests this solution for the otherwise unsolvable problem of an absolute in the
realm of human affairs which is relative by definition; the Greek language, in striking agreement, tells the same
story. For the Greek word for beginning is αρχή,, and αρχή, means both beginning and principle. No later poet or
philosopher has expressed the innermost meaning of this coincidence more beautifully and more succinctly than
Plato when, at the end of his life, he remarked almost casually (...)‘For the beginning, because it contains its own
principle, is also a god who, as long as he dwells among men, as long as he inspires their deeds, saves
everything.’ It was the same experience which centuries later made Polybius say, ‘The beginning is not merely
half of the whole but reaches out towards the end.’ And it was still the same insight into the identity of
principium and principle which eventually persuaded the American community to look ‘to its origins for an
explanation of its distinctive qualities and thus for an indication of what its future should hold’.” ARENDT,
1977. p. 213. Grifos nossos.
199 ARENDT, 2013. p. 273. “Great and significant as these insights are, their political relevance comes to light
only when it has been recognized that they stand in flagrant opposition to the age-old and still current notions of
the dictating violence, necessary for all foundations and hence supposedly unavoidable in all revolutions. In this
respect, the course of the American Revolution tells an unforgettable story and is apt to teach a unique lesson;
for this revolution did not break out but was made by men in common deliberation and on the strength of mutual
pledges. The principle which came to light during those fateful years when the foundations were laid—not by
the strength of one architect but by the combined power of the many—was the interconnected principle of
mutual promise and common deliberation; and the event itself decided indeed, as Hamilton had insisted, that
men ‘are really capable of establishing good government from reflection and choice’, that they are not ‘forever
destined to depend for their political constitutions on accident and force’.” ARENDT, 1977. pp. 213-4.
Mel A Topf, em seu artigo “Hannah Arendt and the Problem of Legitimacy and
Stability in Constitutional Consolidation”200, traz algumas críticas à exposição de Arendt em
On Revolution que consideramos pertinentes.
Primeiramente, o autor destaca que Hannah Arendt ulteriormente falha em demonstrar
concretude do momento fundacional que tanto destaca, colocando a realização do fenômeno
como algo “quase mágico”. E de fato, a leitura enviesada da obra de Arendt pode caracterizar
um anacronismo e simplificação dos eventos transcorridos na Revolução americana.
Em mesma nota, Kalyvas, por exemplo, cita as colocações de George Lichtheim em
1964 em comento à obra arendtiana, em que é destacada a tendência da autora em discutir
tópicos políticos em termos filosóficos, e vice-versa, até que a distinção entre metafísica e
política é totalmente perdida ou mitigada em um crepúsculo no qual não importa mais se
estamos lidando com os eventos reais, as ideologias contemporâneas dos autores sobre os
eventos, ou as reflexões subsequentes de autores distantes dos revolucionários originais. Um
ano depois, até Eric Hobsbawn faria duras críticas ao livro, ressaltando que a autora possui
uma preferência por constructos metafísicos à descrição da realidade fática.201
Ademais, Topf destaca ainda que eventos centrais à teoria de Arendt foram
exagerados ou mal interpretados pela autora. O Mayflower compact, por exemplo, que serve
de síntese a toda a hipótese de Arendt acerca da capacidade de autoassociação americana e do
poder na América colonial de organizar-se de baixo para cima (e não o contrário, como na
França), seria, enfim, irrelevante no teor revolucionário, e não seria a forma pela qual os
próprios colonizadores concebiam a realidade: Topf destaca que os americanos de então eram
explicitamente conscientes de que estavam criando organizações de governo sob a chancela
direta do Rei.202 A atuação dos americanos durante a revolução seria, por fim, muito mais
próxima ao conceito de fabricação exposto por Arendt que ao de ação, que supõe inovação,
pois os revolucionários, durante a febre de “constitucional making”, vinculavam-se não
menos que os seus colegas franceses nos paradigmas de uma legitimação externa e superior, e
não se distanciavam muito das fontes teóricas trabalhadas na França.203
Não obstante essas críticas, enxergamos na construção de Arendt uma teoria que,
apesar de confusa e anacrônica, pode simbolizar sim uma fuga do problema do absoluto pelo
O conceito de Poder Constituinte, não obstante as suas raízes medievais, toma a feição
contemporânea efetivamente com a Revolução Francesa pelas ideias de Emmanuel de Sieyès.
O autor buscava, com a enunciação da teoria, superar a realidade estamental que vivenciava o
reino Francês à época, e por isso constata uma noção de poder que pressupõe a origem do
poder nas características substantivas daquilo que considerará uma Nação, para então
localizá-lo nos sujeitos que constroem essa realidade material, o Terceiro Estado.
Sieyès concebe o ordenamento jurídico e a Constituição como forma do que já se tem
em realidade, a totalidade do Terceiro Estado. Mas, longe de desnecessária, a forma jurídica
em Sieyès é a constitutividade que o Terceiro Estado não tinha até então. O “nada” que era na
história francesa deve ser entendido dessa maneira, como uma usurpação de direitos pela
espada e pela toga.
O ideário proposto por Sieyès é, portanto, fundamental para a teoria posterior de
Schmitt, pois várias categorias e ideias do francês passarão, forma e grau, para o autor
alemão. Noções como a da inapreensibilidade do Constituinte à ordem institucional, dado que
ele é anterior a ela por definição; a definição de Nação por um substrato homogenizante
(ainda que formal) etc. Ironicamente, em contraste à Arendt e Kalyvas, Sieyès, ainda que um
autor do extraordinário, é um marco para o liberalismo constitucional que Schmitt criticará
um século depois.
Sieyès reduz a atuação política do Poder constituinte à legislatura por um
pragmatismo logístico extremamente simples, e dessa maneira limita a atuação popular às
formas constituídas. Essa redução, marca do liberalismo constitucional, é também a fonte de
seu ocaso quando tida em sua forma mais pura, sem outros mecanismos de autocontrole e
regulação. Daí resulta parte do cabresto de Schmitt quando analisa a Revolução Francesa
como fonte do liberalismo constitucional: mirando-se mais no exemplo de Sieyès que nos de
outros revolucionários como Condorcet e Robespierre, atribui um caráter enviesado e
idealista que foi a Revolução Francesa, em flagrante oposição à visão pessimista de Arendt
quando destaca que aquele formalismo rasteiro seria facilmente vilipendiado pelos jacobinos
e pelo turbilhão revolucionário. Assim, ainda que notavelmente importante em prescrever a
principal forma de atuação política do Estado moderno (a legislatura parlamentarista) a teoria
Sieyès é, não obstante, incompleta quando se tem o crivo da estabilização constitucional em
mente.
Já de sobrevoo no início do século XX, Schmitt propõe constatações em relação ao
Constituinte que buscam discriminar a sua origem absolutista, bem como de recolocá-lo na
discussão jurídica como um poder extrainstitucional e atuante no extraordinário –
características que, a sua época e até hoje, são ignoradas pela teoria jurídica “normativista”,
nas palavras de Loughlin. O Poder constituinte de Schmitt denota a puissance do soberano em
criar o próprio sistema jurídico-legal, e por consequência a dualidade intrínseca da decisão
soberana na norma jurídica, testemunhando o caráter político da normatividade que, quando
concebido por meio da totalidade (nascimento e ocaso) do sistema jurídico, não pode ser
ignorado.
Em seio constitucional, vemos em Schmitt a descrição dos sistemas normativos
liberais sob a ótica de uma teoria decisionista e, portanto, que pressupõe qualidades políticas
no Direito. A teoria constitucional de Schmitt enxerga o jurídico como forma constitutiva da
existência política do Estado, que por sua vez não é nada mais nada menos que a forma
situacional da unidade política do soberano (invariavelmente o povo na modernidade).
Como passo além de Sieyès, Schmitt acrescenta à teoria constitucional o receio
necessário de reduzir a Nação (ou, no caso positivista, o Estado) ao ordenamento jurídico,
denunciando o caráter meramente aparente da autossuficiência do sistema legal, que ensejaria
alguma forma de rule of law, como uma ilusão decorrente da situação ordinária da unidade
política, em que o soberano se omite para pôr fim ao extraordinário.
No mais, como bem destaca Kalyvas (e em certa medida também Loughlin), a teoria
constitucional proposta por Schmitt, ainda que conceda aos pontos liberais para que se tenha
aquela estabilidade política, ainda é eminentemente construída em termos unitaristas. Como
dito, Schmitt concebe o Estado como a descrição da situação atual da existência política do
Povo, tal seja, a da unidade política. E é papel do soberano ou de seu representante, tanto no
primeiro momento extraordinário quanto no terceiro momento, quando há uma irritação às
instituições ordinárias que deturpam a unidade política, decidir para protegê-la.
Não obstante, assim, da rebuscada teoria da representação e do conceito político de
Schmitt, não se olvida que suas soluções implicam, como implicaram, Estados ou autoritários
ou totalitários, conforme a descrição de Arendt. 211 Nesse sentido, impossível não destacarmos
a influência decisiva de Schmitt para a realidade político-jurídica do Brasil, por exemplo,
quando se deu o golpe militar em 1964. Extremamente em voga entre os juristas brasileiros, o
AI-1 denota quase que ipsis litteris as categorias da teoria constitucional Schmittiana:
(….) A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte.
Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa,
como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo
anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força
normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto
seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução
vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,
representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o
Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-
em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se
tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a
assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de
reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder
enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que
depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa
Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela
sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente
dispõe.212
215 Que embora não tenha sido objeto de estudo desta pesquisa, merece um destaque nesse aspecto específico
como forma de contraste.
216 Que é, diga-se de passagem, a mesma natureza das críticas que Schmitt recebe quando aponta as
inconsistências do liberalismo constitucional tanto em Teologia Política quanto em O conceito de político. Isso
decorre, a nosso ver, do fato de que ambos os autores colocam-se na contemporaneidade como opositores da
confusão entre o público e o privado e da banalização da esfera política e, por isso, parecem transversais a ambos
os lados do espectro político usual: “When Hans Morgenthau asked Arendt about her political loyalties, she
responded that “the left think that I am conservative, and the conservatives sometimes think I am left.“She
could not have been more accurate. Her political theory consists of an outstanding attempt to bring together
radical change and legal continuity, the extraordinary and the ordinary. The consequences of this uniquely
syncretic body of thought become most apparent in her attitude toward democracy, which continues to divide
Arendt scholarship. For some, Arendt was an antidemocrat who embraced elitism, advocated political exclusion,
defended restrictions on universal suffrage, and rejected social justice.47 For others, she is a proponent of a
radical, participatory version of democracy, especially when it is juxtaposed with actually existing liberal
representative governments.” KALYVAS, 2008, p. 264. Grifos nossos.
217 “ Authentic politics is rare and either episodic or short-lived.” VILLA, 2001. p. 144.
pressupostos muito similares àqueles do autor alemão, a dizer, da concepção teológica do
conceito de soberania e o da necessidade de amplificação do Poder constituinte pelo constituir
político em forma federativa. Diverge importantemente, porém, na valoração daquela
soberania e nos meios pelos quais a promulgação constitucional ocorre.
Arendt, diferentemente de Schmitt, não vê no conceito de soberania popular e suas
características absolutas de unicidade nada mais que uma ode ao autoritarismo e ao
totalitarismo. Ainda mais, a autora localiza a amplificação do poder que possibilita a
instauração da Constituição revolucionária no extrainstitucional pulverizado e plural, em vez
de vê-lo no extrainstitucional homogenizado. É dizer que em Arendt propõe-se uma teoria
constitucional em que os constituintes, e não o povo abstrato ou o soberano representante,
criam uma nova forma de poder por meio de estruturas políticas de dialogo já constituídas.
Essa fundação, ademais, a despeito da teoria de Schmitt, não implica nenhuma usurpação de
legitimidade do constituinte pelo instituído, pelo contrário, o instituído que possui sua
existência política anterior ao novo regime se autolegitima por meio da associação, debate e
diálogos livres entre seus membros, que praticam o que a autora consideraria ser a política
autêntica.
Dessa forma, o pacto de alteridade em Arendt, concretizado por uma visão consensual
do contrato social caracterizado por promessas mútuas, dá forma ao governo e afasta
quaisquer contradições entre governantes e governados, de forma inspirada no princípio do
potestas in populo romano. Nesse mesmo contexto romano, por fim, Arendt também propõe
uma solução ao problema do absoluto e da legitimidade legal em questão de autoridade,
localizando-a não na vontade popular, como em Schmitt, mas na Constituição que simboliza
as conquistas revolucionárias. Assim, enquanto o poder no povo é o princípio político que
funda a República americana, a autoridade no judiciário é o princípio jurídico-hermenêutico
que fundará o sistema legal.
Assim sendo, apesar das fraquezas teóricas de Arendt, apontadas por Topf e por
Hobsbawn (que vemos como verosimilhantes) é de se destacar que (i) as ideias arrazoadas
mostram-se oportunas mesmo que confusas e metafísicas e que, (ii) essas ideias só são
possíveis graças a esse caráter difuso e transversal da análise Arendtiana: uma análise
funcionalmente diferenciada em termos sociológicos, políticos ou históricos dificilmente
conseguiria propor uma conclusão realista típica de uma filosofia holística como a de Hannah
Arendt. Nesse sentido, a grande inovação e qualidade que a obra Teoria da Constituição de
Schmitt possui em enquadrar e pensar elementos políticos por meio de categorias jurídicas
clássicas é, ao mesmo tempo, um limitante a sua teoria para a compreensão e descrição da
esfera política. Não se duvida do caráter não-incidental e material das conclusões do autor
mas, ao mesmo tempo, destacam-se os perigos desse reducionismo jurídico. É esse
reducionismo, por exemplo, que faz Schmitt enxergar Sieyès e a Revolução Francesa como a
fundação do constitucionalismo liberal sem que, ao mesmo tempo, destaquem-se as nuances
do caráter antagônico da política jacobina durante a mesma Revolução, que em muitas
situações pensava sob as mesmas categorias teológicas e formalísticas dos girondinos liberais.
Em conclusão, as teorias dos autores apresentados, sob os mais diversos ângulos,
concebem respostas possíveis à questão da soberania fundacional e da Constituição do
sistema política, ensejando um panorama muito mais complexo e diverso que a simples
redução em categorias doutrinárias do Poder constituinte geralmente possui em tempos
ordinários.
BIBLIOGRAFIA