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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEORIA GERAL DO DIREITO

DEPÓSITO FINAL DE TESE DE LÁUREA

PODER CONSTITUINTE E FUNDAÇÃO

Lucca Cecin Zohgbi Paiva


Nº USP: 10277680

Trabalho de Conclusão de Curso (“Tese de Láurea”)


apresentado ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do
Direito da Universidade de São Paulo, como requisito parcial
para título de bacharel em Direito.
Orientador: Professor Doutor Ari Marcelo Solon.

São Paulo - SP
2021
AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo carinho, amor e compreensão neste ano difícil e desafiante, a
despeito dos atrasos, adiantamentos, omissões e surpresas.
Aos meus amigos de infância Davi, Enrico, Guilherme, Keveny, Pedro e Vinicius, e
aos meus amigos de graduação Arthur, Bruno, Bruna, Caio, Chang, Guilherme, Henrique,
Francisco, José Henrique, Karen, Laura, Leonardo, Newton, Otávio e Tokio, pelos anos de
amizade, apoio acadêmico e convivência que dão alma às arcadas.
Aos meus professores e professoras de graduação, Celso Fernandes Campilongo,
Diogo R. Coutinho, Eduardo Cesar S. V. Marchi, Elza Boiteux, Eunice Aparecida de Jesus
Prudente, Hélcio Maciel França Madeira, Humberto Bergmann Ávila, José Luiz Gavião de
Almeida, Lucas Fucci Amato, Mara Regina de Oliveira, Maria Paula Dallari Bucci, Mauricio
Stegemann Dieter, Nilton Ken Ota, Orlando Villas Bôas Filho e Ricardo de Barros Leonel,
pelo apoio, ensinamentos e por preencherem um mundo de dogmática com crítica, significado
e reflexão.
Aos meus professores e professoras de línguas, Alain Michel Schoeny, Carmen Lucia
Gavazzi, Fernanda Rangel e Moisés Valdebenito, pela estima, carinho e incentivo ao
aprendizado do estrangeiro, sem o qual este trabalho jamais seria possível.
Aos meus professores e professoras de Ensino Médio, Celso Manocchio, César
Moretti e Cibele Barbosa Silva, pelas lições de vida e por me ensinarem a amar o
conhecimento, a geografia, a história, a sociologia e a filosofia desde o princípio.
À minha terapeuta Elaine Paiva, pela consideração, apoio e direcionamento sem os
quais esta pesquisa não teria tomado as proporções e a complexidade que puderam tomar.
Aos meus supervisores de estágio e amigos Débora e Robert, pela estima, apoio e
incentivo a sempre ir além do mediano.
Ao Sr. Dr. Juiz Sérgio da Costa Leite e Des. Luis Fernando de Barros Vidal, pelo
apoio, ensinamentos e oportunidade de contato próximo com o Direito Civil e Público.
E ao meu orientador, prof. Dr. Ari Marcelo Solon, que me acolheu desde o início da
graduação, fomentando em mim o amor pela filosofia e pela história do Direito e mostrando-
me as longínquas raízes do presente, e também pelo seu carinho e incomparável atenção com
os alunos da graduação.
“O início não é só a metade do todo, é quase o fim” – Políbio, Hist., Livro V, 32.
RESUMO

Poder Constituinte é um conceito basilar da teoria do Estado. Desde sua origem


moderna no ideário de Emmanuel de Sieyès nos prelúdios da Revolução Francesa, o conceito
toma um caráter central no Direito Público. Apesar disso, a teoria do Constituinte é
negligenciada por algumas escolas da teoria jurídica por ser um fato extrajurídico. O presente
trabalho busca, então, expor as raízes do pensamento político e jurídico do Constituinte pelo
pensamento de Sieyès, Carl Schmitt e Hannah Arendt, contrastando-o ao normativismo usual
e comentando-o pela contraposição desses autores. Como problemas motrizes, destacam-se a
legitimidade do Constituinte e o inexorável problema do paradoxo fundacional, pelo qual se
questiona a factibilidade das teorias contratualistas e políticas do Estado em questão de
autoridade e organização fundacional. Assim, em Sieyès delineiam-se os traços básicos da
teoria do constituinte no contexto do século XVIII; em Schmitt expõem-se a sua concepção
unitarista da política, a consequente rivalidade com o positivismo Kelseniano, e suas
interpretações dos conceitos clássicos da teoria do Estado, denunciando suas raízes
absolutistas; e, por fim, em Arendt, contrapõe-se o estado da teoria dos demais autores por
uma visão que condena o conceito de soberania e o atualiza de forma republicana e realista
pela plural como constituinte do conceito principiológico da fundação romana.

Palavras-chave: Carl Schmitt. Decisionismo. Fundação. Hannah Arendt. Legitimação. Poder


constituinte. Teoria do Estado.
ABSTRACT

Pouvoir Constituant is a founding concept in State theory. Since its modern origins by
the ideas of Emmanuel de Sieyès at the beginning of the French Revolution, the concept
comprises a central role on Droit Publique. In spite of these acknowledgments, the
Constituent theory is often neglected as being essentially superfluous or redundant by some
schools of modern Law theory. This paper then aims to showcase the political and juridical
roots of the Constituent Power through the workings of Sieyès, Carl Schmitt and Hannah
Arendt by contrasting them to the usual normativist theory and by juxtaposing and
commenting these authors in relation to one another. As driving paradigms of research there
are the problem of Constituent legitimacy and the ever present foundational paradox, which
questions the feasibility of contractualist and political theories of State by the light of
authorization and foundational organization. In this manner, through Sieyès it is shown the
basic workings of the Constituent Power theory over the 17 th century theoretical context;
through Schmitt it is shown the unitarist concept of the political, his rivalry with Kelsen’s
positivism, his interpretations of classical concepts pertaining to the theory of State and his
denouncing of those concepts as the offspring of absolutism; and, finally, through Arendt, the
other authors’ State theories are contrasted by a realistic republican conceptualization which
condemns sovereignty and replaces it by pluralistic notion of corps politiques following the
roman foundational principle.

Keywords: Carl Schmitt. Constituent Power. Decisionism. Hannah Arendt. Foundation.


Legitimacy. State theory.
SUMÁRIO

RESUMO...................................................................................................................................3
1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................6
2. A TEORIA DE EMMANUEL JOSEPH SIEYÈS EM “O QUE É O TERCEIRO
ESTADO?”................................................................................................................................8
3. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE SEGUNDO O UNITARISMO DE CARL
SCHMITT................................................................................................................................17
3.1. TEOLOGIA POLÍTICA: UMA DENÚNCIA DO SOBERANO ABSOLUTO..........18
3.2. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO – OS SISTEMAS LEGAIS SEGUNDO O
DECISIONISMO SOCIOLÓGICO.....................................................................................34
3.2.1. As Formas constitucionais..................................................................................34
3.2.2. Devir do Poder constituinte Democrático........................................................43
3.2.3. Doutrina democrática........................................................................................44
3.3. KALYVAS: RUMO A UMA TEORIA DE CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO................................................................................................................47
3.4. MARTIN LOUGHLIN: O CONSTITUCIONALISMO ENTRE O NORMATIVISMO
E O DECISIONISMO..........................................................................................................56
4. POLITIZANDO O EXTRAORDINÁRIO: O PLURALISMO DE HANNAH
ARENDT..................................................................................................................................65
4.1. A QUESTÃO SOCIAL: A DESTRUIÇÃO DO POLÍTICO.......................................65
4.2. CONSTITUIÇÃO DA LIBERDADE: O OBJETIVO REVOLUCIONÁRIO.............68
4.3. MEL A. TOPF: ALGUMAS RESSALVAS NECESSÁRIAS.....................................79
4.4. DOMANDO O EXTRAORDINÁRIO: H. ARENDT COMO UMA RESPOSTA À
CARL SCHMITT.................................................................................................................81
CONCLUSÕES.......................................................................................................................84
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................91
1. INTRODUÇÃO

O conceito do Poder Constituinte é visto de forma quase onipresente nos cursos e


manuais de Direito Constitucional 1, senão de forma aprofundada, pelo menos em sua feição
formalista. Nesse sentido, é corriqueiro seu tratamento em categorias doutrinárias simples de
Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado ou de Reforma (que abarca
ainda mais características)2; todo esse que Paulo Bonavides chama de “Poder Constituinte
Constituído”.3 Já como teoria jurídica em si, tradicionalmente insere-se no conceito formal de
Constituição, separando o poder constituinte dos poderes constituídos, e torna-se ponto de
partida e matriz de toda a obra levantada pelo constitucionalismo de fins do século XVIII e
primeira metade do século passado.4 Autores como Raymond Carré de Malberg chegaram a
assinalá-lo como “o problema capital do Direito Público”.5
Apesar dessa relevância, o conceito de Poder Constituinte é ainda hoje controverso
nas discussões constitucionais e políticas. Outros importantes autores como Hans Kelsen
diminuem os conceitos envolvidos naquela Teoria por serem ou redundantes ou externos ao
estudo do Direito.6 Chegando-se ao ponto de ser visto ele como “supérfluo para a teoria legal
de teóricos como Fuller, Dworkin, Alexy e seus seguidores.”.7
A despeito dessa tendência, o presente trabalho busca estudar a teoria do Poder
constituinte por meio da análise de seus principais proponentes, a saber, Emmanuel de Sieyès 8
e Carl Schmitt9, por meio de seus comentadores, Andreas Kalyvas 10 e Martin Loughlin11 (bem
como pelos trabalhos deste nobre orientador, Ari Marcelo Solon)12; para então contrapô-los à
teoria de Hannah Arendt em “On Revolution”13. O estudo busca demonstrar a relevância do

1 Por referência, claramente de forma não exaustiva, cfr. MENDES, 2009. p. 231; e BONAVIDES, 2004.
2 JUNIOR, 2017.
3 BONAVIDES, 2004. Op. cit. p. 149-52.
4 Idem. p. 143.
5 “Pour compléter la théorie de l'organe d'État, il est indispensable d'aborder une dernière question, que certains
auteurs présentent comme le problème capital du droit public (…). C'est la question du pouvoir constituant "
MALBERG, 1922.
6 LOUGHLIN, 2013, p. 1.
7 Idem (2013).
8 SIEYÈS, 2002.
9 SCHMITT, 1982 e 2005.
10 KALYVAS, 2008 e 2020.
11 LOUGHLIN, 2013 e 2020.
12 SOLON, 1997 e 2015.
13 ARENDT, 1977 e 2013.
tema, primeiramente por ser um conceito clássico e histórico, e em segundo lugar por ensejar
reflexões sobre a origem dos sistemas políticos e normativos durante momentos
extraordinários:
“A doutrina jurídica tradicional entende que o povo e o poder constituinte não têm
lugar no direito público, por não serem “categorias jurídicas”. O que se esquece com
esta visão é o simples fato de que as questões constitucionais essenciais são
políticas. Tentar separar o conceito de constituição do conceito de poder constituinte
significa excluir a origem popular da validade da constituição e esta validade é uma
questão política, não exclusivamente jurídica. A doutrina do poder constituinte é,
antes de tudo, um discurso sobre o poder constituinte, exercendo o papel de mito
fundador e legitimador da ordem constitucional. Para utilizar a expressão de Ernst-
Wolfgang Böckenförde, o poder constituinte é um “conceito limite” do direito
constitucional. Não se trata da norma fundamental hipotética de Hans Kelsen ou de
direito natural, mas de uma força política real que fundamenta a normatividade da
constituição, legitimando-a.”14

Para isso, realizamos a exposição da teoria de Sieyès em seu escrito político “O que é
o Terceiro Estado?”, para então passar à Schmitt em suas duas obras, “Teologia Política” e
“Teoria da Constituição”, contextualizando-os com os comentários de Loughlin, Kalyvas e
Solon em suas respectivas publicações. Em seguida, chega-se na teoria de Arendt em On
Revolution, também comentada por Kalyvas; e, ao fim, a contraposição de todas as obras em
conclusão.

14 BERCOVICI, 2013. pp.305-6


2. A TEORIA DE EMMANUEL JOSEPH SIEYÈS EM “O QUE É O
TERCEIRO ESTADO?”

“O que é o Terceiro Estado?” é um panfleto político escrito por Emmanuel-Joseph de


Sieyès às vésperas da Revolução Francesa. O texto fora redigido como uma resposta direta à
convocação dos Estados Gerais nas vésperas da revolução, e busca então propor um
diagnóstico e um prognóstico para a situação da reforma na França, notadamente condenando
os privilégios dos dois estamentos superiores, a nobreza e o clero, em detrimento do “Terceiro
Estado”, que correspondia à vasta maioria da população.15
O texto é dividido em seis partes, segundo o próprio prólogo do autor, sendo as três
primeiros o diagnóstico traçado, e as três últimas o prognóstico:
I) O que é o Terceiro Estado? - Tudo;
II) O que foi ele até o presente, na ordem política? - Nada;
III) O que ele demanda? - Tornar-se alguma coisa;
IV) O que os ministros tentaram e o que os próprios privilegiados propõem a favor do
Terceiro estado;
V) O que deveria ser feito.
VI) O que ainda não foi feito para que o Terceiro estado ocupe o lugar que lhe cabe
politicamente.
Assim, como se vê, as próprias questões levantadas pelo autor preambularmente já
enunciam a essência da teoria de Sieyès: que o Terceiro estado é a nova realidade política que
deverá tornar-se a totalidade do Estado. Essa essência é novamente confirmada pelo título do
primeiro capítulo, tal seja, “O Terceiro estado é uma Nação completa”.16
É possível genericamente delinear a teoria de Sieyès segundo as duas linhas que traça
M. Foucault em comentários sobre o autor e sobre a Revolução. A Nação de Sieyès possui um
caráter dúplice, um formal e outro um funcional ou substancial.17
A feição formal é o estado jurídico da Nação. Corresponde à noção segundo a qual a
própria existência da Nação depende de uma vestimenta legal e de instâncias que a institua.

15 BASTOS, 2009, pp. 21-23.


16 SIEYÈS, 2002. p. 2.
17 FOUCAULT, 2012. p. 145.
Assim, é necessário que existam duas coisas: uma lei comum e uma legislatura, “uma lei
comum e uma representação comum, voilà o que constitui uma Nação”.18
Dessa forma, para que exista uma Nação, não é preciso nem que exista um rei, nem
mesmo que exista um governo, pois mesmo antes da formação de qualquer governo, antes do
nascimento do soberano, ou da delegação do poder, a Nação existe: sua formalidade só
depende da instituição da lei comum e da legislatura, a instância que ela mesmo qualifica
como legítima para conceber as leis.19
A feição substantiva, por sua vez, corresponde às condições históricas que
possibilitam o surgir nacional, os “trabalhos” e as “funções”. Os trabalhos são primeiramente
a agricultura, em segundo lugar as manufaturas e a indústria, em terceiro o comércio e por fim
as artes liberais; as funções são o exército, a Justiça [judiciário, em correspondência
anacrônica] e a Administração.20
Esse caráter substantivo denúncia em Sieyès uma inversão do que se tinha na análise
teórica, política e historiográfica até então. As condições funcionais propostas não são efeito
da existência de um Estado, mas a própria razão para existir o Estado: ele é a sua garantia.
Todas essas condições são, ademais, taxativas à teoria de Sieyès, a falta de uma ou de
outra retira a qualificação de “Nação” da sociedade estudada, restando-lhe somente a
potencialidade em virar uma Nação: “Ele o será, talvez, juridicamente, mas jamais
historicamente”.21
Consequência direta, assim, dessa definição axiomática, é que o Terceiro estado, à
época de Sieyès e segundo o autor, detinha todas as condições históricas para se tornar uma
Nação, mas não possuía as formais: a legislatura e a lei comum que lhe beneficiasse.
É da substantividade do conceito de Nação exposto pelo autor, também, que a sua
obra é categorizada como sendo uma das fundadoras da teoria do Estado burguês. Nesse
sentido, Gilberto Bercovici faz questão de ressaltar que:
“Para Sieyès, assim como para boa parte dos autores do século XVIII, como
Adam Smith, a Nação tem um significado econômico. A Nação é composta por
todos aqueles que contribuem para o progresso econômico, produzindo bens e
valores para o mercado. A Nação não é abstrata, sendo definida como um todo
social integrado pelo conjunto de indivíduos dispersos que produzem e trocam no
mercado e que querem proteger suas relações econômicas. O que unifica o Terceiro
Estado é o interesse comum em realizar e estender seus direitos, concebidos como
meios de satisfazer as suas necessidades. A Nação exclui os privilegiados, que não

18 Ibid.; SIEYÈS, 2002. p. 9.


19 FOUCAULT, 2012. p. 145.
20 Ibid. “L’Épée, la Robe, l’Église et l’Administration”. SIEYÈS, 2002. p. 3.
21 “Il le sera, peut-être, juridiquement, mais jamais historiquement. FOUCAULT, 2012. p. 146.
participam no trabalho, como a nobreza, sendo constituída pelo conjunto dos
produtores de bens e valores. Por isso, o Terceiro Estado é uma Nação completa,
autossuficiente e autônoma. O papel da Nação é redigir uma constituição para
manter a possibilidade de evolução do sistema político em conformidade com os
interesses econômicos.”22

Passadas essas linhas gerais, cremos então que é possível então expor os principais
tópicos da teoria original de Sieyès, os capítulos primeiro, segundo e quinto, sem que suas
peculiaridades soem estranhas por alguma falta de contexto.
O primeiro capítulo já se inicia com o apontamento de que o Terceiro Estado é uma
Nação completa, expresso na seguinte colocação: “o que é preciso para que uma Nação
subsista e prospere? São precisos trabalhos particulares e função públicas.”.23 Como exposto,
os trabalhos correspondem à força produtiva e à organização comercial, enquanto que as
funções àquelas instituições que formam o governo, entendido como uma garantia àquelas
condições históricas e não elas como uma decorrência dele, como se tinha anteriormente.
Tal construção de Sieyès é notadamente teleológica na medida em que busca retirar a
nobreza e o alto clero24 da Nação. Seu texto, portanto, é construído como forma de denúncia
aos privilégios insustentáveis dos estamentos superiores, seja pelo argumento moral seja
como consequência de sua definição de Nação:
Quem ousaria assim dizer que o Terceiro estado não tem em si tudo o que é
preciso para formar uma Nação completa? (…) Se se suprimisse as ordens
privilegiadas, isso não diminuiria em nada á Nação; pelo contrário, lhe
acrescentaria. (…) Não basta ter mostrado que os privilegiados, longe de serem
úteis à Nação, só podem enfraquecê-la e prejudicá-la. Vamos provar agora que a
ordem nobre não entra na organização social; que poderá ser uma carga para a
Nação, mas não forma parte dela.25

É com essa determinação que Sieyès define a Nação: “O que é uma Nação? Um corpo
de associados que vivem sob uma mesma lei comum e que são representados pela mesma
legislatura, etc.”26
O segundo capítulo busca realizar uma retrospectiva histórica para demonstrar a
insustentabilidade da situação do Terceiro estado. Trata-se da narrativa de um povo que se diz

22 BERCOVICI, 2013. p. 317. Grifos nossos.


23 SIEYÈS, 2012, p. 2.
24 Sieyès, como membro do baixo clero, não considerava a Igreja necessariamente um estorvo à Nação:
concebia sua organização e seus membros da mesma forma que se concebe um trabalhador liberal; considera
assim o clero mais como uma profissão dentro da organização social do que uma ordem estamental: “Lorsqu’on
dit que le clergé est plutôt une profession qu’un ordre”. Ibid. p. 6.
25 BASTOS, 2009 p. 52.
26 SIEYÈS, 2012. p. 5.
vitorioso pela ocupação e pela conquista, e que por sua ancestralidade possui legitimidade
para deter privilégios.
Nesse constante, é interessante o apontado por M. Foucault quando traça duas linhas
interpretativas inteligíveis à historiografia daquela época até meados do século XIX. A
primeira corresponde à explicação reacionária e restauradora portada pela nobreza, e a
segunda pela burguesia revolucionária. O que as caracteriza e as diferencia são os pontos
focais colocados nos eventos históricos.27
Para aquela nobreza em declínio, a França nasce das ocupações e das conquistas dos
povos que constituiriam a aristocracia antiga, que pelo direito de luta detinha Poder e a
verdadeira governança. O rei, destacado tanto da nobreza vainquere quanto da plebe vaincue,
buscava minar a autoridade e os poderes daquela aristocracia ao fazer acordos com o Terceiro
estado, fomentando revoltas religiosas e jacqueries e garantindo a independência das cidades
livres. A revolução, aqui, é nada mais que a insurreição final do Terceiro estado contra a
“fronteira final” do poder: contra a monarquia que se tornara absoluta por conta dele. Trata-se
então de uma história de conflito, cujo ponto central é a guerra, que anima os corpos ao
desenvolvimento. É, também, ulteriormente, uma linha histórica que parte do presente para
projetar-se novamente ao passado, restaurando-o.28
Para a burguesia, no entanto, o ponto focal não é o passado, mas o presente. Este
representa a universalidade do Estado, que permite a reunificação dos povos vitoriosos
(nobreza) e dos vencidos (o Terceiro estado). Aqui, não há traços de dominação, mas de
adaptação às novas realidades histórico-econômicas. É um discurso conciliativo burguês:
remonta-se à origem dos conflitos no passado tão somente para que se possa cumprir a
totalização do Estado doravantemente.29
A teoria de Sieyès, por originar-se antes da própria revolução, às vésperas da
convocação dos Estados Gerais, não poderia atrelar-se a essas correntes. O que tem o condão
de fazer, porém, segundo Foucault, é de instaurar aquela inversão e portanto a segunda linha:
a totalidade que clama ao Terceiro estado (à Nação) busca romper o tradicionalismo
historiográfico e instaurar o novo, do presente ao futuro.

27 FOUCAULT, 2012. p. 150.


28 Ibid. pp. 150-153.
29 Importante ressaltar que Foucault traça essas linhas interpretativas de forma simbiótica. Embora a nobreza
reacionária alie-se mais à primeira e a burguesia revolucionária à segunda, uma não é independente da outra.
Ibid. p 151.
O seu apontamento contra a nobreza é, então, realizado pela definição axiomática do
que constitui uma Nação – forma e substância, em contraste ao que se tinha à França com os
Estados Gerais, ou seja, uma “assembléia clérico-nobre-judiciária” que privava o Terceiro
estado, a Nação, de sua condição formal. Assim o sintetiza o autor situação: “Resumindo, o
Terceiro estado não teve, até agora, verdadeiros representantes nos estados Gerais. Desse
modo, seus direitos políticos são nulos”30
Passando ao quinto capítulo, “O que Deveria Ter Sido Feito: Os princípios
Fundamentais”31, Sieyès passa a enunciar o verdadeiro cerne da sua teoria política.
Inicia o feito ao afirmar que toda Nação deve ser livre, não existindo então outro meio
de resolver problemas nacionais que não pela própria Nação. Assim, se não se tem uma
constituição própria, somente a Nação teria o direito de produzi-la. Igualmente, se já se tem
uma constituição, a conjectura política da época deve ser repensada pelo fato daqueles dois
estamentos dominantes não representarem e não poderem exercer de fato a pretensão
nacional.
Sieyès então expõe sua teoria da formação política, em caráter verdadeiramente
iluminista e contratualista. O autor vê três épocas na formação de uma Nação: a individual, a
coletiva e a representativa.
Na primeira época, tem-se que um grupo de indivíduos isolados decide se reunir. Por
este fato eles já são potencialmente uma Nação, possuindo todos os direitos, apenas não os
exercendo ainda. Essa fase é caracterizada então pelo jogo de vontades individuais: a
associação é sua obra, e essas vontades são a origem de todo o poder.
A segunda é caracterizada já pela ação da vontade comum. Os indivíduos aqui
decidem definir entre si as necessidades e os meios públicos para poderem exercer este
objetivo comum definido. Disso decorre que o poder pertence à esfera pública. As vontades
individuais ainda são a origem do poder, como na primeira, mas se consideradas
individualmente, elas não configuram nada: a união aqui que cria o poder.
Por fim a terceira é a do governo exercido pela procuração, o governo representativo.
Essa fase é, na visão de Sieyès, uma consequência natural do tamanho da Nação: “(…) os
associados são numerosos demais e estão dispersos em uma superfície muito extensa para que
possam facilmente exercer sua vontade comum diretamente(...)”. 32 Assim, não lhes resta

30 BASTOS, 2009. p. 58.


31 SIEYÈS, 2012. pp. 50-63.
32 Ibid. pp. 51-2.
opção senão a de discriminar e de separar tudo o que é essencial para velar as atenções e as
expectativas públicas, esta porção irredutível da vontade nacional (e consequentemente de
poder), confiando-a a alguns membros elegidos entre eles: é o governo representativo.
Dessa convenção final Sieyès aponta ele mesmo algumas consequências:
primeiramente, que pela eleição e afunilamento da vontade geral em representantes, a
comunidade jamais abdica seu direito à Vontade em si, pois esta é uma propriedade
inalienável e indisponível.
Em segundo lugar, que os representantes não possuem plenitude de exercício, pois são
vinculados à vontade geral. É dizer que os delegados escolhidos para exercer a vontade da
Nação possuem apenas uma porção do poder geral, a que é suficiente para exaurir os
objetivos para os quais foram escolhidos.
E, por fim, que não compete aos delegados a capacidade de aumentar ou de diminuir
os limites que lhes foram demarcados pela coletividade.
Essas duas últimas consequências, ademais, implicam duas realidades, que serão
posteriormente abarcadas à teoria de C. Schmitt e de H. Arendt. Implica dizer, portanto, que i)
os representantes ou legislatura institucional não absorvem totalmente a vontade nacional ou
o poder constituinte; e que, ii) não absorvendo a vontade nacional, os representantes não são
soberanos e, portanto, ainda prestam reverência à coletividade: o direito ao poder tido pelos
representantes é emprestado e limitado.
Em seguida Sieyès lança uma reflexão acerca do constitucional e sua relação com a
Nação.
O autor define a Constituição como a organização do corpo, que lhe dá
concretabilidade a fim de alcançar os objetivos a ele destinados. Tais objetivos são delineados
pela vontade geral e são empenhados pelos representantes elegidos por ela, conservando-se os
limites já mencionados; assim, mostra-se necessária a estipulação de uma Constituição
positiva que distingua o legal do ilegal (o abuso da vontade geral): tanto o poder legislativo
quanto o próprio exercimento da vontade nacional são impossíveis sem as formas
constitutivas, o corpo de representantes “não age, não dirige, não comanda senão por elas”.
Em relação ao interesse e à organização anterior que é capaz de dar uma Constituição
à Nação, o autor afirma que nenhum corpo é capaz de constituí-la: “A Nação existe antes de
tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes dela e acima
dela só existe o direito natural.”. 33 Distingue então duas formas de leis constitucionais, que se
dizem fundamentais: as que regem a organização e funções do corpo legislativo, e as que
determinam a organização e a função de outros corpos ativos. As primeiras são fundadas pela
vontade nacional antes mesmo da constituição, formando o primeiro degrau. As segundas
devem ser estabelecidas por uma vontade representativa especial [a Assembleia constituinte].
Com isso Sieyès busca traçar, por fim, o tema central deste trabalho: a distinção de
Poder constituinte e Poder Constituído (pouvoir constituant e povouirs constitué). Sua linha
de raciocínio simplesmente se organiza a dizer que a Constituição do Estado não pode ser
obra do governo, pois este é poder constituído e, portanto, não pode encomendar atos que
requerem vontade nacional plena, sejam tais atos sobre a organização interna geral do Estado
ou sobre as próprias prerrogativas que vinculam os representantes, aumentando ou
diminuindo os seus limites.34
O problema que surge com essa colocação, zeteticamente 35, é o problema generalizado
das fundações. Aqui compreendido como o “paradoxo da fundação”, reside na necessidade
lógica de um corpo já organizado para se poder constituir, ou seja, como pode uma massa
amorfa e homogeneizada como a Nação positivar qualquer coisa que seja? Se tal massa puder
ser identificada como um órgão legislativo ou como uma representação especial, nas palavras
do próprio autor, já estaríamos tratando, pela teoria exposta, de um poder constituído,
institucional, e não constituinte. O problema tratado, enfim, é que para que tal ato fundacional
se realizasse, para que um grupo de estranhos concretos se encontrasse e deliberasse
racionalmente a positivação de uma Constituição lastreada naquela Vontade Geral, a
“consequência teria que se tornar a própria causa”.36 As soluções propostas ao paradoxo são
individuais de cada autor, e serão abordadas adiante nas exposições respectivas.
Retomando, faz questão Sieyès de ressaltar, portanto, que a Nação não pode ser
limitada por formas positivas por ela mesmo estipuladas, pois isso implicaria a ascensão de
tiranos que, abusando do juízo de confiança que constitui sua representação, fazem da
vontade nacional e dos indivíduos que a formam meros espectadores. Essas limitações,
ademais, têm o condão de impedir a resolução de problemas aos quais o mandato

33 BASTOS, 2009, p. 88.


34 SIEYÈS, 2012. pp. 53-55.
35 Dogmaticamente, a doutrina nacional trata da questão em termos de Poder constituinte Originário, ilimitado,
e derivado, limitado, com a consequente limitação de emenda à Constituição prevista nas cláusulas pétreas do
Artigo 60, § 4º da Constituição da República de 1988. Cfr. MENDES, 2009 e BONAVIDES, 2004.
36 LOUGHLIN, 2013. p. 14.
representantes não é suficiente. Nessas situações de incerteza a vontade geral e a Nação são os
juízes supremos; se ela fosse absorvida totalmente pelos poderes constituídos, como em uma
procuração sem limites aos representantes, qualquer conflito entre as partes do Estado torna-
se-ia irresolúvel, além desses procuradores virtualmente se tornarem déspotas.
A justificativa de Sieyès para tal raciocínio é a sua compreensão de que a Nação existe
fora do tecido social e, assim, “nós devemos conceber as nações sobre a terra como
indivíduos fora do tecido social ou, como se diz, no estado de natureza.”37
Sieyès finaliza o texto então ao propor uma representação extraordinária, apontada
pela vontade nacional para dar à Nação uma constituição; ou se essa já existe, para modificá-
la. Essa representação prescindiria das amarras dos Estados Gerais (nesses o Terceiro estado é
representado ordinariamente). Ulteriormente, enfim, Sieyès localiza a Nação em todos
aqueles que constituem a coisa pública.
Podemos agora então sintetizar brevemente as principais proposições do autor. A
teoria de Sieyès insere-se contextualmente como uma ruptura com a historiografia. Sieyès
mistura a teoria política de Rosseau e de Hobbes ao conceber um Poder constituinte livre,
ilimitado e fonte extralegal de toda a legalidade (decorrente então da Vontade nacional) e
exercido de forma representativa, ao mesmo tempo que o concebe como a própria legalidade,
a lei constitucional, ainda que não esta não o compreenda em sua totalidade. Une assim uma
faceta histórico-política, que chamamos anteriormente, nas palavras de Foucault, de
“substantiva”; à faceta formal e jurídica, que corresponde aos ordenamentos constitutivos do
governo e da própria ordem positiva.
A. Kalyvas o critica duramente por essa ambivalência. Segundo o autor grego, fora
essa característica que teria resultado em minar a distinção-chave constituinte e constituído
que o próprio Sieyès havia formalmente endossado, acabando politicamente na autoautorizada
Convenção constituinte (1789-1791) e a popularmente eleita Convenção Nacional (1792-
1795), marcada por consequências insidiosas. Ressalta, ademais, que a eventual absorção do
constituinte, pela mediação representativa, tornara-se um paradoxo lógico e uma formulação
legal enigmática que produziu apropriações politicamente suspeitas e refutações polêmicas
tanto na pessoa direta de Napoleão, quando diz “eu sou o poder constituinte” em 1804, quanto

37Ibid. p. 55. Grifos nossos. Nesse ponto, Martin Loughlin afirma que Sieyès só coloca a Nação no estado de
natureza pura e simplesmente porque, no simplismo do autor, não haveria nada fora da legalidade positiva senão
tal estado. LOUGHLIN, 2013. p. 4.
na história bonapartista e cesarista que se moldou na forma de políticas publiscitárias e
protopopulistas.38
Não obstante as críticas, a teoria de Sieyès é sem dúvida um marco para teoria política
moderna, sendo em muitos aspectos incorporada na teoria constitucional de Carl Schmitt,
bem como sendo objeto de inspiração para os comentários de Hannah Arendt à história
constitucional francesa e sua comparação com a revolução americana.

38 KALYVAS, 2013, p. 61.


3. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE SEGUNDO O
UNITARISMO DE CARL SCHMITT

A teoria política e constitucional de Carl Schmitt é um dos polos teóricos do século


XX, principalmente se considerado o seu embate com Hans Kelsen como crítica ao
positivismo jurídico que se tornava a teoria hegemônica de sua época.
Conceitualmente a teoria do autor alemão é denunciada como expoente máxima do
decisionismo legal, posicionamento que denuncia o estado da teoria jurídica positivo como
sendo um reducionismo abstrato que priva o jurídico de seu conteúdo intrinsecamente
político.
Autor notadamente controverso, expõe sua teoria em diversos textos que,
coerentemente a sua teoria, misturam teoria política com constitucional. Dos seus principais
textos, serão trabalhados Teologia Política39 de 1922 e Teoria da Constituição de 192840.
Em Teologia Política, Schmitt apresenta seu trunfo teórico acerca da historiografia dos
conceitos jurídico-políticos de soberania e Estado, e como tais conceitos foram apreendidos e
dissimulados desde as revoluções burguesas, que buscaram secularizá-los com um sucesso
suficiente para induzir confusões e uma teoria jurídica “autossuficiente”, mas que são
invariavelmente originários de um contexto teológico e absolutista.
Em Teoria da Constituição, o autor busca definir dogmaticamente sua doutrina
constitucional em termos políticos, classificando o estado da teoria jurídica de sua época e
apontando-a como notoriamente burguesa, ao mesmo tempo que descreve os sistemas
políticos e fenômenos jurídicos ocidentais em seus termos originários de vontade, unidade
política e soberania.
Ambas as obras se confundem conceitualmente, sendo impossível a apresentação de
uma sem a imersão na outra. Todavia, tentaremos seguir um roteiro cronológico,
apresentando primeiro os conceitos do autor como aparecem em Teologia Política para depois
expô-los contextualmente em sua forma jurídica em Teoria da Constituição. Cremos também
ser produtivo interseccioná-los com alguns comentários dos autores contemporâneos, haja

39 SCHMITT, 2005.
40 SCHMITT, 1934 e 1982.
vista que tais trabalhos são verdadeiramente conclusões em forma comentada dos textos de
Schmitt.

3.1. TEOLOGIA POLÍTICA: UMA DENÚNCIA DO SOBERANO ABSOLUTO.

Schmitt inicia o primeiro capítulo do texto político de 1922 com uma das definições mais
importante de sua teoria: “soberano é aquele que decide na exceção.” 41. Tal axioma é a razão
de ser da teoria decisionista, e torna-se claro pela própria situação de exceção.
Preceitua-se que, em uma situação extrema, não circunscritível pelo ordenamento
legal, aquele que toma as rédeas do poder ou, ao menos, exala uma decisão vinculante e com
eficácia, mostra-se como o Soberano. Tal soberano, porém, após exalar a decisão que funda o
ordenamento legal posterior, torna-se omisso até que precise decidir para manter a unidade
política novamente.
O conceito de soberano em Schmitt é, confessamente, aplicável e somente relevante
para tais casos de exceção. Essa concepção, todavia, não desclassifica a teoria do autor como
descritiva de um nicho teórico. A estranheza conceitual que se tem com a definição de um
soberano omisso na maior parte do tempo decorre, segundo o próprio autor, do estado da
teoria jurídica constitucional desde a Revolução Francesa.
Em linhas gerais, a teoria positivista que segue tal revolução que prevê a Constituição
como corpo legal limitante ao Estado e ao soberano, e o império da lei como autossuficiente
(lembremo-nos da teoria de Sieyès, que chega ao ponto de igualar a Nação ao corpo legal 42),
advém de um movimento histórico burguês que não é uma consequência natural ou
necessária, apesar de portar-se como se fosse, com teorias cientificistas como a de Hans
Kelsen.
A apreensibilidade e a própria crítica de Carl Schmitt à teoria legal de seu tempo
originam-se da negação, portanto, da autossuficiência da norma e, ulteriormente, de seu
embate contra Kelsen em relação à visão de que a norma jamais deriva de um fato.43

41 SCHMITT, 2005, p. 5.
42 “A Nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes dela
e acima dela só existe o direito natural.”. SIEYÈS, 2012. pp. 53-55.
43 KELSEN, 1949, pp. 110-111.
Na cronologia do poder soberano, o autor coloca o liberalismo constitucional como
um verdadeiro veio ideológico que busca neutralizar o soberano, substituindo-o com um
império da lei, “todas as tendências do desenvolvimento constitucional moderno apontam
para a eliminação do soberano nesse sentido.”44 Assim, imperioso para que se entenda a teoria
do autor alemão é o exercício de contextualizá-la contra o panorama positivista e dogmático
habitual que se alastra até hoje.45 A sagacidade de sua obra advém, por fim, do fato de Schmitt
portar-se como um “outsider” contra o estado da teoria jurídica hegemônica.
Schmitt traça as origens desse decisionismo desde Jean Bodin, atribuindo ao francês a
concepção do soberano como expressão do estado de exceção. As reflexões presentes na obra
República de Bodin, no capítulo 10, podem ser reduzidas na questão da vinculação
(limitação) do soberano às leis, e a sua responsabilidade pelos estamentos. Segundo Bodin,
interpretado por Schmitt, o soberano vincula-se pelo direito natural, mas em situações
emergenciais tal vinculação cessa, e o soberano possui discricionariedade para emanar uma
decisão: em um exercício lógico, Bodin pergunta-se se em uma situação de emergência o
príncipe deve consultar o povo ou o senado. Qualquer resposta afirmativa parece-lhe um
absurdo, pois implicaria imergir o soberano em um conflito de interesses, e a soberania
dividir-se-ia entre as partes interessadas. Assim, em tal situação, a decisão deve ser
logicamente una, da mesma forma que o soberano.
A soberania e, logo, o Estado, coerentemente, baseiam-se na decisão que soluciona a
controvérsia. Schmitt enxerga com isso que, como qualquer outra ordem, o ordenamento legal
deriva ulteriormente de uma decisão e não apenas de outra norma, em flagrante contraste com
seu opoente Hans Kelsen.
Para além, portanto, de uma concepção de legitimidade (refletindo-se no sentido
etimológico próprio da palavra, aquilo que deriva das leges), o paradigma do Soberano
residiria, enfim, na questão de quem seria o responsável em uma situação em que não se
antecipa qualquer responsabilidade, tal seja, quem possuiria poder ilimitado para si?46

44 SCHMITT, 2005, p. 7.
45 A própria apreensibilidade de toda a discussão do Poder constituinte pela doutrina hodierna ilustra o ocaso de
Schmitt: ainda que lembrado e incorporado na dogmática por termos de “Poder originário e Poder derivado”, seu
nome e contribuições são esquecidas, e seus conceitos se reduzem a uma tecnicalidade instrumental típica de
uma ciência jurídica positivista.
46 Essa questão compreende o clássico tema da teoria da soberania. Para uma visão panorâmica do conceito de
Soberania na jusfilosofia alemã, cfr. SOLON, 1997, pp. 19-46.
A resposta para essa pergunta claramente não poderia advir de um glossário liberal,
tampouco adviria da jurisprudência usual cotidiana, pois trata-se verdadeiramente de uma
expressão do extraordinário.
A insuficiência do legalismo positivista para Schmitt, portanto, decorre da concepção
de que um sistema jurídico hermeticamente considerado em suas próprias leis ou, no extremo
da teoria kelseniana, na expressão de sua unidade legal, jamais poderia prever a situação de
seu próprio ocaso sem romper com sua autossuficiência.
Essa asserção não implica, porém, uma negação da ordem legal ou da completa
aniquilação de qualquer ordem no extraordinário. Atesta o autor que apesar de parecê-lo, o
estado de exceção não é nada como um estado de anarquia ou caos. Juridicamente a decisão
ainda impera, ainda que o ordenamento legal esteja abolido. Isso porque o Estado, baseando-
se na decisão originária e sendo uma expressão da unidade política de seu constituinte47,
busca sua autopreservação, e liberado em virtude dela consegue desvincular-se da validade da
simples norma legal. No estado de exceção, a decisão tomada liberta-se de quaisquer
confinamentos normativos e torna-se absoluta.
A solução schmittiana pareceria, ao olhar incauto, uma negação da ordem positiva em
troca de um cheque em branco à razões sociológicas. O que o autor alemão destaca, porém, é
que embora a exceção levante o véu de abstração do ordenamento positivo, as suas
consequências políticas manifestam-se em termos jurídicos por meio da decisão que fundará
as novas normas.48
A diminuta apreensibilidade dessa afirmação advém do próprio posicionamento do
autor em relação às teorias vigentes, tal seja, a do positivismo kelseniano e à perspectiva da
ciência jurídica como um meio de previsibilidade. Notadamente, o estado de exceção é por
definição imprevisível em seu início, sendo somente descritível em natureza. A existência
uma ciência jurídica positiva, dotada do intuito de promover previsibilidade, torna-se
impossível frente ao imprevisível desprovido de uma ordem legal: para que uma ordem legal,
e consequentemente sua respectiva ciência, existam, é necessária uma situação normal que
permita proscrições futuras; e durante o extraordinário, tal realidade é impossível até o
momento em que o Soberano decide o seu estabelecimento.

47 O povo, as oligarquias, o Rei, etc. O sujeito do poder soberano/constituinte será aprofundado em seguida.
48 Ibid. p. 13.
A existência deste estado de normalidade (e a constatação do estado oposto), como
coloca Schmitt, não é uma “pressuposição superficial” que um jurista pode ignorar. Esse
estado das coisas é condição da própria validade normativa, necessariamente factual.
Por essa ordem de fatores, portanto, tem-se que o Soberano que decide não precisa de
uma ordem legal para que possa decidir: ele não só decide a despeito dela, mas contra ela,
para criar além dela.
Schmitt aponta que a importância do estado de exceção como origem e sustentação
das teorias políticas era reconhecida por autores como John Locke e outros racionalistas do
século XVIII, mas foi esvaindo-se com o surgir de outras teorias em tempos menos
conturbados no século XIX. Nesse contexto, teorias kantianas e neo-kantianas, como a de
Hans Kelsen, segundo Schmitt, não possuem a mínima ideia de como lidar com o problema
da exceção.
A máxima kelseniana de que uma norma ou ponto origem de imputação, assim, possa
estabelecer a si mesma parece-lhe um absurdo lógico, apesar de denotar a essência do que é o
positivismo legal. Dessa forma, constata-se que da tendência do constitucionalismo liberal de
descrever todas as situações legais em uma acepção de “império da lei” denota uma tentativa
justamente de domar a exceção, a situação em que o Direito pode suspender a si mesmo.
Iniciando o segundo capítulo, é possível vislumbrar outra característica da exceção
como objeto de estudo que ilude a epistemologia positivista usual. Segundo Schmitt o
Soberano é confessamente a instância inapelável de poder, mas ele mesmo é em sua essência
inapreensível. Enquanto que a pura força pode mover os corpos, o Poder não se traduz na
legalidade de forma direta. Assim, o problema fundamental do conceito de soberania para o
Direito é, para Schmitt, a discriminação de sua essência jurídica.49
Esse paradigma fulcral, porém, está longe de ser uma inovação da teoria de Schmitt.
É, em verdade, um ponto de discussão comum da teoria jurídica alemã desde o século XIX,
passando por autores como Gierke, Jellinek e Hugo Krabbe.50
Até em Krabbe, autor mais próximo à Kelsen no tratamento do conceito, dividia-se o
paradigma da soberania pela limitação do soberano ilimitado: o sujeito soberano é ou não
controlado pelas leis que cria? A solução de autores como Jellinek era a de conceber a
distinção sociológica (poder) e jurídica (legalidade) como duas faces da mesma moeda, sem,
no entanto, exaurir o tema. Com Krabbe, todavia, quebra-se tal dualismo ao colocar-se o
49 Schmitt, 2005, p. 17.
50 SOLON, 1997. p. 41-6.
Soberano dentro do Direito: o poder do Estado só se realizaria na confecção de novo direito,
pois a sua realização é mero cumprir do que já foi juridicamente vinculado.
A solução de Kelsen, porém, é o objeto da crítica de central de Schmitt. Para além da
fórmula simples proposta por Krabbe, Kelsen, inspirado na filosofia neo-kantiana, enxerga
problemas no antigo dualismo alemão ao afirmar que a soberania não poderia significar tanto
a ilimitação do poder, “ser”, quanto o significado jurídico de “dever”.51 Kelsen é notadamente
contrário ao embasamento jusnatural do Direito, e portanto não vê solução na soberania senão
a de negá-la como um conceito ultrapassado do absolutismo.
Nesses termos, a teoria kelseniana cinge-se em um positivismo cognoscente, quer
dizer, em um estado de ciência que necessita de um sujeito que pensa: kantianamente, entra-se
em um território epistemológico em que a faceta real ou factual pouco importa; o que vincula
o direito internamente e, ulteriormente, o juízo do jurista (que é a ciência jurídica), é a
normatividade. Em termos não epistemológicos, para Kelsen, Estado é o ordenamento
jurídico, e assim o Estado só é soberano enquanto é a ordem jurídica. Isso porque Kelsen
concebe o Direito como uma ordem coativa (que não se confunde com o ato coercitivo), e
coerentemente vê problemas em considerar o Estado como sujeito de direitos, como um ente
com personalidade (se assim o fosse, o Estado, detentor de direitos e deveres, estaria limitado
ao ordenamento e, portanto, sem soberania). Assim, a acepção de que o Estado é a própria
ordem jurídica é a única forma correta ou possível de se empregar, para o austríaco, o
conceito de soberania.
Indo ainda além, Kelsen traz os benefícios de não se perder em abstrações de
personalidade. Com Estado sendo o próprio ordenamento, vê-se tanto a identidade da norma
como objeto, o sistema de normas objetivas válidas da conduta humana; quanto como sujeito,
o Estado como expressão figurada com o intuito de formar a ordem jurídica como unidade.
Assim sendo, ao mesmo tempo que se pode imputar o estatuto de uma sociedade como sendo
a própria sociedade anônima, imputa-se também a totalidade da ordem jurídica como sendo o
Estado, a imputação ulterior do juízo cognoscente do jurista.52
Com a distinção necessária, para Kelsen, entre o mundo descritivo sociológico e o
jurídico, surge, porém, o problema da validade jurídica. Tal problema persegue Kelsen por
toda a sua vida acadêmica e fora objeto de várias sofisticações pelo autor. Em sua teoria, a
solução manifesta-se na norma fundamental. Concebendo o Estado/ordenamento jurídico
51 Ibid. p. 50-2.
52 Ibid. p. 52-56.
como uma unidade piramidal, tem-se que as normas inferiores retiram validade das suas
superiores, em um juízo imputativo. Chegando ao topo da pirâmide, então, a próxima e última
imputação seria à norma fundamental.
Nos trabalhos iniciais do austríaco, a norma fundamental é meramente uma norma
hipotética do juízo do jurista, um pressuposto necessário para que se dê validade ao resto do
sistema jurídico, mas que de fato não existe como ordem positiva. Posteriormente, porém,
Kelsen clarifica tal juízo ao dizer que a norma fundamental adequa-se ao sistema jurídico
correspondente, ou seja, ela muda conforme o regime político e o teor da constituição positiva
estabelecida.53 A norma fundamental, assim, continua um juízo hipotético e tautológico de
validade que não vincula nada senão a legitimidade do sistema objeto mas, pelo menos, toma
uma forma de adequação.
Sem muita dificuldade, assim, enxerga-se o motivo de tantas críticas à Kelsen e o
incômodo do autor que o faz debater tanto o tema: Kelsen presta-se ao serviço de superar o
jusnaturalismo, mas sua solução, que em verdade fundamenta toda a sua teoria, soa tão
transcendental e tautológica quanto as proposições naturalistas. Assim, o estado da teoria
Kelseniana presente em Teoria Pura do Direito e outros trabalhos, fizeram com que Schmitt
tecesse duras críticas ao autor.
Schmitt condena Kelsen pela criação de uma teoria purista por excelência. Coloca que
a teoria kelseniana busca retirar o sociológico forçosamente do fenômeno jurídico e reduzi-lo
ao jurisprudencial pela distinção kantiana entre ser e dever ser. O resultado de que o Estado
deve ser concebido como algo puramente jurídico, normativamente válido e não algo fora da
realidade legal, é uma consequência natural e previsível. O feito, segundo Schmitt, extrapola
autores como Jellinek mas permanece igualmente tautológico. O reducionismo kelseniano
implica finalmente a questão de que não se deriva uma norma de um fato, que uma norma só
derivaria de outra norma, e que juridicamente, como exposto anteriormente, o Estado é
idêntico a sua constituição.54
O ponto central da teoria kelseniana, segundo Schmitt, é o seu caráter monístico: a
despeito da prévia discussão dualista, a unidade do método epistemológico neokantiano
demanda uma visão unitária do Direito. Mesmo o dualismo proposto entre ser/dever-ser
equaciona-se em uma metafísica monística.

53 Assim, em uma democracia, a norma fundamental é democrática; na ditadura, autoritária, etc. KELSEN,
1949, pp. 116-118.
54 SCHMITT, 2005. p. 17.
A teoria kelseniana, ademais, pretenderia ser objetiva no sentido científico. O
problema, segundo Schmitt, surge quando a pureza de uma análise jurisprudencial positiva é
confrontada com valores dados ao próprio jurista. Necessariamente, para que a análise do
jurista seja coerente ao monismo e à pureza pretendida, o intérprete deverá atuar como uma
superioridade relativa, possivelmente deturpando o seu próprio juízo para que simplesmente
ele permaneça puro em sua análise. Em outras palavras, tudo o que o jurista cognoscente
considera contraditório ao sistema aprioristicamente definido (a ordem jurídica como um todo
coerente), é ignorado como uma impureza de raciocínio. Implicitamente, portanto, quaisquer
valorações consideradas “impuras” pelo intérprete deverão ser deixadas na antessala pré-
jurídica. Faz-se um aceno exagerado a um formalismo, que é confessamente o objetivo da
ciência jurídica proposta por Kelsen, uma ciência pro-forma.
A consequência do pensamento kelseniano para Schmitt é a negação por excelência do
Soberano. Mas enquanto Kelsen o coloca de maneira aparentemente autêntica, o ponto a ser
feito por Carl Schmitt é de que, novamente, o seu pensamento decorre de uma tradição liberal
antiga.
Isso porque, afinal, fora Krabbe quem propusera que soberano não é o Estado, mas o
Direito. Nesses termos, a concepção moderna de Estado substitui a força antiga do rei, das
autoridades, com um poder espiritual: “Nós não vivemos mais sob a autoridade das pessoas,
sejam elas físicas ou jurídicas, mas sob a autoridade das normas, de forças espirituais. Aqui a
essência do Estado moderno é revelada.”.55 Incidentalmente, em Krabbe o Estado ainda é
tolerado como um ente que pode existir, na condição de que o faça por meio do império legal.
Já em Kelsen, a teoria jurídica dispensa quaisquer noções relacionadas a Poder como extra ou
pré-jurídicas.
Em Krabbe, a função do Estado é notoriamente a de legislar. Menos que isso, o Estado
limita-se à constatação do interesse legal conforme a moralidade dos membros da Nação.
Assim, não obstante as similitudes com Kelsen, Krabbe ainda engaja em explicações
sociológicas para o campo jurídico. Um movimento similar e contraditório é cometido por
Kelsen, segundo Schmitt, quando se baseia em uma concepção subjetiva de forma (a
concepção do intérprete) como o ponto original de juízo, tomando a unidade do sistema legal
como um ponto de percepção independente; ao mesmo tempo em que ele demanda uma

55 ““We no longer live under the authority of persons, be they natural or artificial (legal) persons, but under the
authority of norms, of spiritual forces. There the essence of the modern idea of the state is revealed.” H.
KRABBE apud SCHMITT, 2005, p. 22.
objetividade científica. Segundo Schmitt, esse clamor por objetividade não é nada mais que
uma tentativa de evitar-se elementos pessoais e, assim, poder-se traçar a validade do sistema
de forma impessoal.
Até em Max Weber, em sua teoria sociológica do Direito, segundo o autor, é exposta
uma “evolução” da esfera jurídica à requisição de formalizações pelo fenômeno da
racionalização. Demanda-se a tecnicidade e a indiferença (o paralelismo entre a forma e o
conteúdo jurídico) para que se estipule um sistema altamente funcional.
Em verdade, os vários conceitos de soberania desses autores, segundo Schmitt,
requerem que subjetividades sejam eliminadas do conceito de Estado. Em Kelsen, a
concepção de um direito de comando é inerentemente subjetiva e portanto não denota
qualquer normatividade, não sendo objetivamente legal. Em Krabbe, a distinção entre
pessoalidade e impessoalidade estava relacionada à relação entre o concreto e o abstrato, ao
contraste entre a autoridade e a prescrição legal; em outras palavras, o contraste entre um
comando pessoal e a validade impessoal da norma abstrata intrinsecamente relevante ao
liberalismo constitucional do século XIX. Ulteriormente, para o autor holandês, o comando
pessoal era uma relíquia deixada pelo absolutismo monárquico.
Para Carl Schmitt, porém, essas objeções falham em não perceber que a ligação entre
a personalidade e a autoridade formal provém de um interesse jurídico específico, tal seja, da
essência da decisão legal. Schmitt não nega a indiferença inicial do juízo legal, mas reitera
que há elementos da decisão legal que não podem ser derivados diretamente de suas
premissas, especialmente porque o momento da decisão inicial permanece independente. A
decisão legal, ademais, pertence à percepção legal na medida em que o mero juízo é incapaz
de realizar o comando normativo. É uma máxima evidente que a ideia ou o juízo legal não
podem se implementar sozinhos, e isso decorre do fato de que o juízo legal não atribui a
competência de quem deverá aplicá-lo. A autoridade de implementação, auctoritatis
interpositio, não pode ser simplesmente derivada de uma prescrição legal, ela depende de
elementos factuais e concretos. A norma por si só é um enunciado vazio em implementação,
ao ponto que sem pessoalidade, sem uma autoridade pessoal final, qualquer pessoa poderia
alegar certeza do conteúdo normativo de uma lei e estar igualmente correto aos demais.
Essa autoridade final, porém, não advém da norma positiva que a prescreve (não pode
a lei prescrever quem será o soberano): tentar reservar competência por vias formais e
legiferantes é um ato de completa tolice.56
Em relação ao juízo imputativo, cabe dizer que a decisão nasce do nada,
normativamente. A coercitividade legal da decisão é algo completamente diferente do
resultado do juízo jurídico. A imputação não é possibilitada pela existência de uma norma,
mas o contrário: da norma em si não há ponto de subsunção, somente conteúdo normativo. O
que dita a subsunção, portanto, é o caso concreto subsumível ao enunciado legal (e não o
contrário).
O cristal do decisionismo de Schmitt, segundo o próprio autor, está em Hobbes. A
teoria hobbesiana é um da das formas de pensamento legal acerca da percepção de
normatividade na decisão, e ela denota, mais que tudo, a essência jurídica personalíssima da
decisão e a origem de sua coercitividade, em contraste à norma pura de Kelsen. Autoritas non
veritas facit legem é a máxima hobbesiana que enuncia a importância na norma é a autoridade
que a emanou, não o seu conteúdo material.
Hobbes, segundo Schmitt, enuncia um argumento decisivo que mostra a conexão entre
o decisionismo e o personalismo, que rejeita as tentativas de suprimir o Estado da soberania
pelo Estado do ordenamento legal válido, típico do positivismo jurídico 57. O personalismo
mostra-se, ulteriormente, quando se indaga da hierarquia espiritual de poderes, vista de uma
forma abstrata: conceber autoridades abstratas hierarquicamente é um absurdo, pois “sujeição,
comando, Direito e Poder são acidentes, não de Poderes mas de Pessoas.” 58 Assim, a vida
legal depende daquele que decide.59
De tal apelo ao decisionismo pessoal, em conjunto com a questão da competência não-
legítima de quem decide podemos entender no que consiste a própria decisão em Schmitt. A
coercitividade aqui, ao contrário de em Kelsen, não é um atributo inerente à norma legal, mas
ao comando relativo a uma autoridade factual, uma pessoa. Desse modo, tal ordem ou
decisão, deve ser reforçada: “a verdade não se cumpre por si só, mas carece de comandos

56 Novamente, a apreensibilidade desta afirmação nos parece alienígena considerando o meio jurídico atual, em
que a Constituição Federal da República delega todas as competências, como, por exemplo, quando estipula que
o Presidente é o chefe do executivo (art. 76, CRFB/88). Para Schmitt, essa alegação não implica absolutamente
nada. Se o Presidente é o chefe do executivo é porque ele é considerado o chefe do executivo e toma decisões de
um chefe do executivo, não porque uma lei o delegou esta função; a matéria define a forma e não o contrário.
57 SOLON, 1997. p. 83.
58 HOBBES Apud Schmitt, 2005, p. 34.
59 Ibid.
coercíveis. Para realizar isto, é chamada uma potestas directa que, diferentemente da
indirecta, consiste na atuação do comando, obtém obediência e pode defender quem
obedece”.60
Ressalta-se, por fim, que a teoria de Hobbes, tão vangloriada por Schmitt, chega a
constituir um avanço contra o próprio “pai” do conceito de soberania, eis que Jean Bodin
ainda depende de um monarca constituído e venerado, legítimo (no sentido antigo), enquanto
que, para Hobbes, o soberano
“não é competente para decidir com base em um ordenamento já existente, somente
a decisão que, no lugar da desordem e da insegurança do estado de natureza,
instaura a ordem e a segurança do Estado, o transforma em soberano e torna
possível, tudo que se segue, a lei e a ordem”.61

Nisso já enxerga-se a razão, portanto, do lugar central que a decisão na exceção possui
na teoria de Carl Schmitt. É o teor de sua crítica à Kelsen: “O direito só existe onde há
decisão pessoal; quem decide de modo inapelável é o soberano; quando ocorrem decisões do
soberano, há o estado de exceção.”62
O terceiro capítulo do livro traz o tema que dá razão à obra, Teologia política. A tese
principal de Schmitt é apresentada pelo autor logo em seu introito: “todos os conceitos
significantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados, e não só por
conta de seu desenvolvimento histórico, mas porque eles foram transferidos da teologia para a
teoria do Estado.”63
Brilhantemente, Schmitt reconta o desenvolvimento da teoria do Estado denunciando-
a como eminentemente liberal, mas contrapondo-a com aquela que a antecede e com os
elementos que nela permanecem, a despeito da sua evolução por antagonismo. Prega uma tese
segundo a qual a metafísica de um tempo denuncia o “espírito da época” de uma forma
indireta; assim, apesar de a justificativa teológica não constar mais na teoria do Estado, seus
elementos nela persistem.64
O constitucionalismo moderno, nesses termos, convive com o deísmo, um veio
teológico e metafísico que bane o milagre do mundo, e rejeita a inerente transgressão das leis
da natureza implícitas no conceito de milagre (que é uma exceção decorrente de uma

60 SCHMITT apud SOLON, 1997. p. 84.


61 Ibid. p. 83.
62 Ibid. p. 87.
63 SCHMITT, 2005, p. 36.
64 Nesse contexto, Kelsen e seu cientificismo, como criticado por Schmitt, não são nada mais que uma
expressão do seu tempo.
intervenção divina direta), da mesma forma que rejeita a intervenção direta e externa de um
soberano no sistema jurídico-legal.
Nesse tom, o racionalismo iluminista do século XVIII rejeitava a exceção como
paradigma pra a teoria do Estado, enquanto que, em feição contrária, os
contrarrevolucionários expunham suas teorias baseando-se na pessoalidade monárquica e no
decisionismo. Schmitt traz, como expoentes desse movimento, três filósofos: Bonald, de
Maistre e Donoso Cortés.
Afirma Schmitt, ademais, que a onipotência do legislador contemporâneo, onipresente
na doutrina de sua época e até na hodierna, é uma derivação obscena da teologia. Igualmente,
existem reminiscências teológicas na argumentação jurídica e na hermenêutica. O intento dos
positivistas e liberais é o de rechaçar ao máximo o discurso teológico, muito embora incorram
nele.
O conceito de soberania, segundo Schmitt, em Laband e Jellinek, por exemplo, define-
se na concepção de “um poder uno do Estado em governar”; um poder quase individual, suis
generis e monopolizado, cercado de um misticismo que remonta em muito o direito divino
anteriormente execrado.
Até Kelsen confessa essa mesma realidade, expondo a relevância da relação intrínseca
entre teologia e direito. Em sua tentativa de expor o assunto por analogias, porém, o autor
alemão consegue enxergar o viés kelseniano e suas contradições: enquanto se preza por um
raciocínio cientificista que remonta às ciências naturais, a teoria kelseniana baseia-se em uma
metafísica que busca identificar uma legalidade natural com um direito positivo-normativo,
com a intenção de se rejeitar arbitrariedades em busca de respostas universais e isentas. Nesse
aspecto, novamente, Kelsen mostra-se como um homem de seu tempo. Tal visão científica é
plenamente visível, ademais, no endosso feito por Kelsen à democracia, considerando-a o
austríaco uma “expressão de relativismo político e uma abordagem científica livre de
milagres e de dogmas, baseado na mente humana e crítica”.65
A genialidade de Schmitt está, porém, na constatação que expõe antes de fazer suas
críticas. O autor enxerga duas formas possíveis, metodológicas, de se tratar sociologicamente
a teoria legal, pois apesar de tender ao absoluto, Schmitt “não se dirige a abstrações
numinosas, busca compreender o decisionismo legal concreto, como sociólogo, indagando

65 Ibid. p. 42.
sobre a aplicação concreta do direito”.66 A primeira, verdadeiramente, é psicológica, e a
segunda, é a da sociologia dos conceitos propriamente.
Psicologicamente, poder-se-ia conceber a sociologia dos conceitos como uma redução
radical segundo a origem. Assim, o raciocínio jurídico dependeria do operador que se está
analisando, seja ele um burocrata, um advogado ou um professor de Direito. Nessa visão, o
sistema hegeliano de filosofia seria caracterizada como sendo a “filosofia de um professor”,
que se dá ao luxo, pelo seu status social, de analisar a história e o mundo de uma forma
puramente contemplativa. Igualmente, olhando-se a teoria kelseniana, a classificação seria a
da ideologia de um advogado-burocrata que opera em circunstâncias políticas instáveis e que
busca sistematizar o corpo de ordens que recebe de autoridades superiores.
Muito diferente essa concepção da sociologia dos conceitos que Schmitt busca aplicar
para o Direito, que sozinha consegue conquistar um resultado científico para um conceito
como o da soberania.67 Schmitt a coloca aparte de uma teoria legal pragmática, discriminando
o seu intento como o de desvelar a estrutura sistemática radical básica e compará-la com a
representação conceitual da sociedade em uma certa época. Nela, o autor não está interessado
na descrição fática ou na correspondência exata de um conceito com uma época, por exemplo,
ao se dizer que o monarquismo absolutista do século XVII era aquele ensejado pelo conceito
cartesiano de Deus, especificamente; é, agora sim, o de comparar as estruturas sociais
monárquicas daquela época com o que se tinha no estado de consciência geral do momento,
correspondendo, ulteriormente, a estrutura jurídica da época com a estrutura metafísica
em voga. Nesses termos, assim, fica claro dizer que àquela época o conceito de Monarquia
era dominante e evidente na consciência do período, assim como a democracia o será
posteriormente.
Asserta, primeiramente, que a sistemática de estudo dos conceitos jurídicos pressupõe
uma ideologia radical (no sentido teológico) e consistente, e que por conta disso tal ideologia
poderia ser confundida por uma filosofia espiritual da filosofia da história ou uma filosofia
materialista. Em verdade, considera que o engajamento em uma discussão dialética entre
materialismo e espiritualismo é inócuo, pois ambos acabam cancelando-se. O estudo
sociológico proposto, assim, é uma concepção radical, teológica e teleológica, e consiste na
constatação de que a imagem metafísica de uma época representa a forma de organização
política dessa época:
66 SOLON, 1997. p. 87
67 SCHMITT, 2005, p. 45.
A imagem metafísica do mundo de uma época específica expressa possui a
mesma estrutura que aquela que é parente àquela época como uma forma de sua
organização política. O estabelecer de tal identidade é a sociologia do conceito da
soberania. Ela prova, realmente, como Edward Caird o disse em seu livro sobre
Auguste Comte, que a metafísica é a forma de expressão mais intensa e clara de
uma época.68

Dessa constatação, portanto, pode-se apontar, do iluminismo do século XVIII, o


caráter eminentemente absolutista: “imiter les décrets immuables de la Divinité”, como
expressa Rousseau em Economia Política. Aqui, o autor francês, na visão de Schmitt, por
Emile Boutmy, aplica a mesma ideia ao soberano que os filósofos costumam aplicar a Deus:
“ele pode fazer o que tiver vontade, ele só não poderá ser mau” 69. Da mesma forma, na teoria
legal do século XVII, o monarca é igualmente identificado com Deus na posição do Estado,
sendo então o príncipe o Deus cartesiano transposto ao mundo político.
Schmitt constata que tais séculos XVII e XVIII foram todos dominados por essa ideia
e que, inclusive Hobbes, desconsiderando o seu lado decisionista, continuava a ser
personalista a despeito de suas inclinações científicas e atomísticas. Ele ensejava o Estado à
visão de uma única criatura mitológica, o Leviatã, e não o fazia, segundo Schmitt, por apelo
antromórfico, mas por uma decorrência do seu pensamento jurídico: era necessário que o
legislador fosse, também, o Soberano criador.
Essa concepção do criador e arquiteto, porém, contém uma ambiguidade causal. O
Soberano é, como dito, tanto o criador como legislador, tal seja, a autoridade legitimante. Isso
teria desembocado, durante a Revolução Francesa, na infame figura do “législateur”.
Desde então o raciocínio estritamente científico penetrou as ideias políticas e afastou,
de uma vez por todas, os remanescentes do discurso da soberania que ainda persistia no
pensamento iluminista. Disso decorre, segundo Schmitt, que o princípio legal é identificado
diretamente com o Direito natural que se aplica sem exceções: “o soberano, que na visão
deísta da realidade ainda permanecia, mesmo que de forma transcendental, como o criador da
máquina do mundo, é a partir de então radicalmente reprimido. Agora a máquina automatiza-
se.”.70
Em Rousseau, segue Schmitt, a volonté générale (vontade geral) torna-se idêntica à
vontade do Soberano, ao mesmo tempo que, porém, o sujeito que emana a vontade ganha uma
qualidade quantitativa, é dizer, torna-se plural. Assim, le peuple (o povo) torna-se soberano.

68 Ibid. p. 46. Grifos nossos.


69 Ibid.
70 Ibid. p. 48.
Como consequência direta de tal transposição, o elemento decisionista e personalista do
conceito original de soberania é perdido, a vontade popular é sempre boa, le peuple est
toujours vertueux.
Tal inflexão faz com que a unidade estatal estabelecida graças à monarquia absoluta
transgrida-se em uma unidade orgânica, que com o adicional da nova consciência nacional,
faz surgir a concepção de Estado como um todo orgânico. Assim, por fim, tanto a concepção
teística quanto a deística de Deus e do Estado tornam-se ininteligíveis à metafísica política.
Nos Estados Unidos, Schmitt vê a iteração do fenômeno na fé pragmática de que a voz
do povo é a voz de Deus, o que é consubstanciado, na visão do autor, pela narrativa de
Tocqueville em que se atesta esse mesmo caráter divino do povo na vida estatal. Igualmente,
a visão de Kelsen acerca da democracia como a expressão de um cientificismo impessoal e
relativista é completamente consonante com o desenvolvimento visto na teologia política e na
metafísica do século XIX.
Nesse século, segundo Schmitt, tudo era dominado por ideias de imanência, de
identidade entre fonte e objeto. Assim, a tese democrática de identidade entre governantes e
governados (rulers with the ruled); a teoria orgânica do Estado com a identidade entre Estado
e soberania; a identidade entre a soberania e o ordenamento em Krabbe; e, por fim, a
identidade entre o Estado e a ordem jurídica em Kelsen. Essa tendência, ademais, por
definição, denuncia a identidade com o real e a rejeição de concepções deístas, outrora
preponderantes. Nada mais consequente, portanto, que autores como Proudhon proclamassem
que a humanidade deveria tomar o lugar de Deus.
Em síntese, a emergência do constitucionalismo burguês imanente implica para
Schmitt dois momentos característicos: a eliminação de tudo que é teístico e transcendental e
a formação de um novo conceito de legitimidade. Assim, o conceito tradicional reputado à
aristocracia dinástica perde todo o sentido, de modo que desde 1848 a doutrina do direto
público torna-se positiva, ocultando seus dilemas e contradições na feição do Poder
constituinte do povo, acarretando a substituição da legitimidade monárquica pela
democrática.
Visto isso, Donoso Cortés, filósofo reverenciado por Schmitt, só vê uma solução:
ditadura. Seria, segundo o autor alemão, a mesma solução encontrada por Hobbes, decorrente
de seu pensamento decisionista: autoritas non veritas facit legem.
O último capítulo do livro, portanto, reserva-se a exposição do ideário
contrarrevolucionário dos filósofos trazidos por Schmitt. Em síntese, tais pensadores viam a
impossibilidade de um corpo inorganizado decidir em tempos extremos, tempos de exceção.
É dessa conjectura que Schmitt traça o centro de sua teoria.
Primeiramente, De Maistre equaciona a soberania do Estado com a infalibilidade da
Igreja. O valor do Estado para o autor é o de decidir, ação característica de quem possui
soberania. O valor da igreja é que ela representa a última inapelável decisão. Assim, a
infabibilidade da Igreja traz a essência da decisão inapelável, e essa decisão possui a mesma
natureza que a soberania do Estado: as duas palavras, infabibilidade e soberania seriam para
De Maistre sinônimos perfeitos. “Toda soberania age como se fosse infalível, todo governo é
absoluto – uma sentença que poderia ser dita de forma igualmente literal por um anarquista,
apesar de com uma intenção completamente diferente.”71
De forma paritária à Hobbes, De Maistre coloca autoridade, também, como uma
virtude máxima: todo governo é bom desde que estabelecido. Assim, a decisão de um
magistrado (ao contrário do que pregariam os anarquistas) é sempre boa, pois decorre de sua
autoridade, valorando a decisão por si mesma, pois em situações extremas, é mais importante
que se faça uma decisão, qualquer que seja, que se preocupe-se como a forma que tal decisão
é tomada.
Donoso Cortés, por sua vez, coloca-se como um autor declaradamente antiliberal.
Enxergando a importância da decisão no momento de exceção, Schmitt alega ver em Donoso
a essência do liberalismo burguês, que foge da decisão frente a exceção, preferindo o debate.
Isso faz com que Donoso cunhe à burguesia o adjetivo de “clasa discutidora”, ou classe
debatedora. Uma classe que transforma toda a atividade política em discussão, na imprensa e
no parlamento, é incapaz de lidar com a exceção.
Essa realidade é aparente ao autor nos eventos do fim da Monarquia de Julho: o
liberalismo constitucional busca paralisar o rei por meio do parlamento, ao mesmo tempo que
o deixa no trono, incorrendo-se na mesma inconsistência que o deísmo faz ao tirar Deus do
mundo e ainda dependendo de sua existência para validar a ordem política. Em outros termos,
a burguesia liberal quer um Deus mas ele não pode ser ativo; quer um monarca que deve ser

71 Ibid., p. 55.
inofensivo.72 Busca, enfim, fugir da decisão na exceção, que Cortés atribui à ditadura:
antecipa-se o juízo final.73
Conclusivamente, ambos os autores veem, segundo Schmitt, ao contrário de seus
pares restauracionistas, uma via de mão única nos eventos do século XIX. Assim que
depostos os reis, ninguém mais teria a coragem de ser monarca senão pela vontade do povo.
Isso, segundo o autor, traz o decisionismo dos pensadores em uma conclusão; tal seja, eles
demandam a ditadura política.
Podemos conceber, sinteticamente, portanto, a tese central de Teologia Política como
uma exposição dos elementos ocultos do sistema vigente de Direito. Nele, Schmitt aponta as
contradições do sistema legal positivista, que ulteriormente pressupõe uma independência,
seja supostamente “espiritual” ou científica, do sistema legal em relação a fatores morais e
sociológicos.
Em contraste, denuncia a origem da teoria do Estado como sendo notadamente
decisionista, remontando o Direito como uma ciência inevitavelmente sociológica e pessoal.
Aponta, ademais, meios de discriminação da estrutura jurídica vigente por meio da sua
identificação com a teoria metafísica vigente na consciência geral; e, nesses termos,
possibilita-se a constatação da evolução da teoria legal e descrição dos sistemas jurídicas
desde o século XVI até a data de sua obra, da virada absolutista a sua incorporação deística ao
conceito orgânico de povo e de Poder constituinte, denunciando as estruturas teológicas
veladas no liame político e estatal, a despeito das teorias liberais recentes que buscam
reprimir tanto o soberano originário quanto o teístico e, enfim, o deístico do Estado.
Concebe conceitualmente, por fim, a origem dos sistemas jurídicos como decorrentes
de um momento extraordinário em que alguém toma uma decisão para estabilizar o momento
de incerteza e caos. Essa decisão é emitida pela autoridade soberana que cria o sistema legal
futuro e que, para fins deste trabalho e na obra Teoria da Constituição, será tratado como
Poder constituinte.

72 Ibid. p. 60.
73Nesse ínterim descritivo, Schmitt lança um conceito que será trabalhado à exaustão em seu livro mais
conhecido, O Conceito do Político. Embora não explorado neste trabalho de conclusão de curso, cabe
discriminar que Schmitt vê na tendência burguesa o fim da política, a substituição do meio político por um meio
técnico e organizacional com foco estritamente econômico; tendência de mesma sorte que a descrição feita por
Max Weber em relação ao Estado moderno: trata-se de uma grande planta industrial. A banalização da decisão e
seu ocultamento por meio de um sistema autossuficiente positivo, supostamente objetivo e imparcial, bem como
impossibilidades conceituais em relação a forma do Estado e governo, compõe, enfim, o centro da crítica de
Schmitt contra o liberalismo.
3.2. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO – OS SISTEMAS LEGAIS SEGUNDO O
DECISIONISMO SOCIOLÓGICO

Diferentemente do trabalho anterior, Teoria da Constituição se apresenta como uma obra


menos filosófica e mais próxima da forma doutrinária jurídica usual, pois pela própria divisão
de temas tem-se uma exposição muito mais descritiva e sistemática do que crítica, como
anteriormente.
Apesar disso, pode-se dizer que nessa obra a intenção de Schmitt é a de aplicar as
reflexões tidas das suas obras anteriores em um contexto sistemático, redefinindo a dogmática
constitucional pela sua concepção de decisionista e sociológica de Direito, em flagrante
contraste à teoria constitucional liberal que o autor dedica sua vida acadêmica a criticar.

3.2.1. As Formas constitucionais.

Já de início, o autor dedica quatro capítulos 74 à distinção do conceito absoluto,


relativo, positivo e ideal de Constituição.
Segundo Schmitt, a Constituição em sentido absoluto corresponde, prontamente, à
concreta maneira de ser resultante de qualquer unidade política existente. 75 Disso, podem-se
perceber três significações diferentes de constituição:
A primeira corresponde à situação concreta do conjunto da unidade política e da
ordem social de um Estado; a segunda, a uma maneira especial de ordenação política e social,
tal seja, forma de governo, como democracia, monarquia etc.; a terceira, ao princípio de devir
dinâmico da unidade política, do fenômeno da formação continuamente renovada e erigida
daquela unidade política, desde uma força e energia subjacente ou operante na base. Trata-se
do conceito filosófico de devir.76

74 O original é separado em parágrafos, conforme a tradição alemã, que aqui serão tratados como capítulos.
75 SCHMITT, 1982, p. 30.
76 “[Filosofia] Processo de mudanças efetivas pelas quais todo ser passa; Movimento permanente que atua como
regra, sendo capaz de criar, transformar e modificar tudo o que existe; essa própria mudança.” Disponível em:
https://www.dicio.com.br/devir/ , acesso em: 31 de outubro de 2021.
Da primeira, tira-se que o Estado em Schmitt é a própria Constituição. Ele não possui
uma Constituição “segundo a qual” se forma e funciona a vontade estatal: a Constituição é
uma situação presente do ser do Estado, o status de unidade e de ordem. Da segunda, que a
forma da Constituição do Estado não impõe um dever-ser, como delegações vazias de
competência (vide a teoria positivista), mas é, como preceituavam os autores medievos, uma
forma formarum, que descreve a forma de governo, já constituindo-o faticamente. Da terceira,
por fim, concebe-se o Estado como algo dinâmico, jamais estático.
Uma Constituição também pode ser absoluta quando é pensada como um sistema
normativo supremo, como uma norma fundamental ou norma das normas. Trata-se do
conceito positivista de Constituição, que corresponde ao modelo kelseniano. Schmitt faz
várias críticas a essa visão, assim como em Teologia Política. Traça desde o liberalismo tal
corrente e a coloca como baseada em conceitos de unidade sistêmica e de validade.77
Em verdade, Schmitt vê que uma Constituição é válida somente quando emana de um
poder (força ou autoridade) constituinte e se estabelece pela vontade desse sujeito. Aqui, a
palavra vontade significa, em contraste com simples normas, uma magnitude do Ser como
origem do Dever-ser. Trata-se, enfim, de uma constatação fulcral de Schmitt, que realiza a
ciência jurídica: a soberania deve possuir lastro na realidade concreta.
Nesses termos, uma norma vale porque é justa, derivando-se assim do Direito Natural,
ou porque é motivada por uma vontade já existente: uma norma jamais se estabelece por si
mesma. Assim, dizer que a Constituição vale como norma fundamental é vê-la por suas
qualidades de conteúdo, lógicas, morais e outras concretas.
A despeito de Kelsen e do positivismo, ademais, a unidade do ordenamento reside na
existência política do Estado, e não em leis, regras ou qualquer classe de normatividades.
Pensar a constituição de Weimar, com seus 181 artigos, muitos deles meramente dispositivos
e declaratórios78, como um sistema coeso e com unidade interna, é pura ficção.79
Nesse teor, segundo o autor, as representações da Constituição como um sistema
normativo absoluto com unidade estão presentes desde 1789, em que se instaurara a fé na
figura do législateur bom e infalível, que descreveria toda a situação política e social de
forma escrita e formal. Atualmente [ao tempo de C. Schmitt], encontrar-se-ia a situação

77 Ibid. p. 31.
78 Para Schmitt a Constituição não declara, constitui; qualquer descrição legal formalmente constitucional que
não cria efeitos jurídicos é meramente redundante.
79 Ibid. p. 35.
oposta, de que o texto Constitucional independe da situação política a partir do momento de
sua elaboração. A Constituição, aqui, transforma-se em uma série de distintas leis
constitucionais positivas.80
O conceito relativo de Constituição corresponde simplesmente à distinção entre as
normas materialmente constitucionais e formalmente constitucionais. Schmitt com essa
classificação busca destacar que até mesmo Constituições escritas podem não ter teor
constitucional. Tal teor decorre então da vinculação à vontade soberana, e não à forma que se
dá ao texto. Relata, como exemplo, que no caso americano, a Constituição escrita era somente
uma consequência da vontade da unidade política da Revolução (o que contrasta, como se
verá, do pensamento de H. Arendt).
Em seguida, o conceito positivo de Constituição. Trata-se, sinteticamente, da
Constituição como decisão do conjunto sobre o modo e forma da unidade política.
É o apelo de Schmitt à concepção segundo a qual não se pode conceber uma
Constituição como um código fechado de normas, tampouco como a união de normas
constitucionais ou como derivação delas: a Constituição em sentido positivo surge mediante
um ato do Poder constituinte.
Aqui estende-se grossa parte da teoria constitucional de Schmitt, bem como sua
sociologia política. Schmitt concebe a unidade política como algo sempre anterior ao sistema
legal vigente, ao contrário da teoria positivista que simplesmente a reduz ao pré-jurídico.
O ato constituinte, nesses termos, não é limitado por qualquer ordenamento
normativo. Sua única limitação faz-se da decisão momentânea expedida pela totalidade da
unidade política, considerando-se a particularidade da sua forma existencial. Esse ato
decisório, nesses termos, apenas constitui a forma da unidade política.81
Aqui, como se vê, há um aceno grande a teoria de Sieyès, que concebe o Poder
constituinte como necessariamente ilimitado, sob pena de ser velado ou usurpado. Apesar
disso, em contraste ao francês, Schmitt não busca igualar a criação do constituinte, o
ordenamento legal, com a próprio Nação política. Esta, na teoria do alemão, jamais se
confunde com a mera forma legal como em Sieyès, que traça condições históricas e
econômicas para a constituição da Nação, mas condiciona a sua existência política à
ratificação declaratória legal.

80 Ibid. p. 35-36.
81 Ibid. p.45-46.
Na teoria de Schmitt, ademais, prevê-se dois erros comuns da teoria legal usual. O
primeiro consiste na concepção de que uma nova Constituição deve necessariamente fundar
um novo Estado; o erro decorre da ideia de que a Constituição significa o estabelecimento de
um novo pacto social, o que, na doutrina do Poder constituinte, não é verdade. A fundação do
Estado advém do pacto social. A própria existência do Estado, segundo Schmitt, já pressupõe
o contrato social firmado. Assim, o que dá o status político ao Estado é o pacto social, não a
Constituição. Esta, agora sim, decorre da vontade da unidade política, que existe
anteriormente à Constituição, e só se relaciona ao Estado como condição de existência.82
Outro equívoco apontado é o de igualar a Constituição a um codex exaustivo. Trata-se
de uma pretensão positiva como sempre rechaçada pelo autor. A unidade da Constituição não
reside no seu corpo legal escrito, mas na unidade política que a cria, cuja forma de existência
é que se dá com o ato constituinte.83
Por consequência desses pensamentos, a Constituição em Schmitt não é absoluta, pois
não surge de si mesma, e também não existe em virtude de sua justiça normativa ou por sua
hermeticidade sistemática. A existência política da Constituição, novamente, é determinada
pela unidade política, e essa, materialmente, determina-se por si mesma. 84 Por esse todo,
enfim, a Constituição nada mais é que a expressão formal da soberania de um Estado que é
anterior a ela, que não se funda nela.85
Nesses termos, afirma Schmitt, a distinção entre a Constituição e a lei constitucional
só é possível, ademais, porque a essência da Constituição não está contida em uma lei ou em
uma norma: no limite de toda normatização reside uma decisão política do titular do Poder
constituinte, tal seja, do povo na democracia ou do príncipe (a dinastia) na monarquia.
O conceito de Constituição positiva de Schmitt implica, ademais, uma dissonância
com a doutrina usual que relega informações preambulares nas constituições escritas como
mero capricho da assembleia constituinte. Assim, o preâmbulo constitucional, segundo as
ideias do autor, revela a essência da vontade e da decisão política que funda o respectivo
sistema legal, sendo tão normativa quanto as disposições em si, senão até mais.86

82 A noção de Constituição como pacto é trabalhada por Schmitt posteriormente.


83 Ibid. p. 46.
84 Aqui Schmitt inspira-se na filosofia materialista de Spinoza, segundo a qual a unidade tem existência própria.
SOLON, 1997. p. 91.
85 Ibid.
86 SCHMITT, 1982, p. 48. No Brasil, como se verá, a teoria de Schmitt fora incorporada de forma capciosa e
exatamente nestes termos, sendo o AI-1 de 1964 uma verdadeira aplicação concreta da teoria do autor.
A Constituição, ademais, é intangível, enquanto que as leis constitucionais comuns
podem ser, a qualquer tempo, suspensas e derrocadas no estado de exceção. A Constituição
garante os direitos fundamentais que a fundam, mesmo que eles não estejam dispostos
normativamente ou se tensionem com a legiferação futura. A única forma, portanto, de abolir
a Constituição (em contraste ao texto constitucional), é por meio de uma revolução.
Assevera Schmitt em relação à Constituição de Weimar, de forma elucidativa, que seu
caráter eminentemente burguês decorre justamente dela ser consequência de um pacto pelo
status quo entre as forças socialistas e liberais. Assim, ainda que prescreva disposições
sociais-democratas, suas estruturas são aquelas de um Estado burguês.87
Em seguida, Schmitt discute o conceito ideal de Constituição, tal seja, aquele feito
segundo a interpretação política. Aqui, claramente, mostra-se o triunfo do liberalismo,
concebendo-se pelo termo “Constituição” geralmente aquele tipo ideal burguês.88
Nesse teor, as constituições liberais prenunciam a liberdade política acima de tudo,
entendida essa como a liberdade de possuir propriedade. Lista-se, ademais, que tais
constituições garantem, também, o reconhecimento de direitos fundamentais, a divisão de
poderes e, ao menos, a participação do povo no poder legislativo por representação;
conjuntamente com a separação de poderes como basilar da estrutura do Estado.
Conforme seu trabalho em Teologia Política, porém, Schmitt destaca que o Estado
liberal não nasce do nada político, e que inclusive herda muitos aspectos do absolutismo que
o precede. Assim, passa a dissertar sobre a evolução constitucional enquanto trata do tema do
nascimento da Constituição (positiva).
Destaca-se que, no caso inglês, o estabelecimento da unidade política começa com a
luta contra o rei, no parlamento, a despeito do restante da Europa, em que a unidade se contra
para o rei, contra os estamentos feudais. Em outras palavras, na maioria dos outros Estados
europeu, a unidade política foi obra do absolutismo monárquico.89
A origem própria origem da concepção de Estado nasce dessa realidade, o príncipe
teria poder contra os outros estamentos, de maneira que se poderia perguntar: qual é o Estado
ou situação política atual? E a resposta seria, “a da unidade política no príncipe”.

87 Argumento parecido é dado por Kelsen em relação à norma fundamental que dá validade ao sistema. Cfr.
KELSEN, 1949, pp. 116-118.
88 Ibid. p. 58.
89 Ibid. p. 67-68.
Em verdade, por essa explicação, Schmitt nos fornece a própria definição do que é
Estado. Nesse continente europeu (Europa ocidental), o príncipe se faz absoluto por tornar-se
o legibus solutus, tal seja, aquele na posição privilegiada de decidir sozinho sobre questões
intrínsecas ao tecido social da época; e, desse contexto, a palavra “Estado” designa justamente
esta formação política ao fazer a conexão verbal e mental com a palavra status, do latim, pois
desse status amplo da unidade política relativiza e absorve todas as outras relações estatais,
em particular as dos estamentos e as da Igreja. Assim, o Estado, sendo status político,
converte-se no Status em sentido absoluto: o Estado moderno é soberano, e, seu poder,
indivisível. As qualidades que o tornam assim, consequentemente, decorrem de sua unidade
política. O conceito de soberania, sobretudo, teria a função de superar a legitimidade do status
quo feudal.90
Teoricamente, as inovações e a percepção dessa mudança são indicadas em Hobbes e
Bodin, como exposto no último livro. Suas teorias, segundo Schmitt, mostram que o soberano
é aquele que decide na exceção, com poder para quebrar a ordem jurídica atual pelo bem-estar
de todos, pela manutenção da unidade política.
Continua Schmitt, cronologicamente, atestando que em 1789, com a Revolução
Francesa, surge a concepção de Constituição moderna, um misto de elementos liberais e
democráticos. O embasamento teórico da revolução é notadamente a teoria do Poder
constituinte, e com ela, a Teoria do Estado da revolução passa a ser uma fonte capital, não
somente para a dogmática política seguinte, mas também para a construção jurídica do caráter
positivo da Teoria da Constituição contemporânea.91
O Poder constituinte, conforme Schmitt, pressupõe o povo como uma entidade política
existencial. A palavra Nação designa em sentido expressivo um povo capaz de atuar, desperto
à consciência política. Historicamente, novamente, Schmitt atesta que a origem dessa
concepção de unidade política e de nacionalidade vieram como consequência do absolutismo
monárquico precedente.92 Nesses termos, na França, o povo francês constitui-se como o
sujeito do Poder constituinte, fazendo-se consciente de sua capacidade política de agir, e se dá
conta até supostamente de uma Constituição, afirmando assim, a sua própria capacidade
política: ao dar-se constituição o povo francês formar-se-ia em Nação. O que não significa,
porém, que a não houvesse existência política outrora, tampouco que se fundara um Estado

90 Ibid. p. 70.
91Ibid.
92 Ibid. p. 71.
mediante o Poder constituinte revolucionário; como dito antes, o Ser político precede o
momento constituinte: o que não existe politicamente não pode decidir ou fundar qualquer
coisa.93
O ato da fundação por confrontamento ao monarca absoluto, prossegue, coloca a
Nação como um sujeito também absoluto e, apesar dos princípios de limitação e de divisão de
poderes burgueses, a fundamentação e intento revolucionários sempre foram absolutos, pois a
unidade política não se rompe ou se destitui por leis constitucionais.
Aqui, como se verá, traça-se uma das mais importantes teses de H. Arendt em Sobre a
Revolução, e uma consequência do repetido por Schmitt desde T.P, a concepção de que o
liberalismo institui-se das bases do Estado absolutista ou, como diz a autora, o povo calça os
sapatos do príncipe. No mais, importante ressaltar que a distinção necessária entre o ato em
que o povo se dá a Constituição pelo ato da fundação do Estado, como alegada por Schmitt, é
problemática conforme apontam Kalyvas e Loughlin (cfr. itens 3.3 e 3.4).
Schmitt concebe o restante da história constitucional francesa, ademais, como uma
história da supremacia do Poder constituinte do povo, mas do feitio constitucional puramente
formal. Assim, velava-se o intento soberano intrínseco ao constituinte, em troca de um pro
forma liberal.94
Um outro apontamento interessante a ser feito consta de uma crítica de Schmitt a
Gierke, quando se trata da questão do anacronismo. Schmitt considera absurda a concepção
de tratar a concepção de pacto social, ou de qualquer outro termo correlato atrelado à Teoria
do Estado moderna, como sinônimos entre autores de épocas tão diversas, como Rosseau
contra Marsílio de Pádua.95 Com isso, o autor mostra-se estritamente meticuloso com os
termos utilizados e as análises traçadas.
Posteriormente, em tratativa referente ao sujeito do Poder constituinte, Schmitt afirma
que o seu titular é a Nação, tanto como o povo. 96 Verdadeiramente, ambas são categorias
conceituais similares, porém a Nação, pelo meno ao contexto francês é um conceito mais
exato segundo Schmitt. O conceito de povo designa uma coletividade de homens unidos por
questões étnicas e culturais, mas que não são necessariamente políticas, enquanto que a Nação
pressupõe estritamente a vontade e a consciência política. Schmitt traça o conceito em Sieyès,

93 Ibid.
94 Ibid. p. 73.
95 Ibid. p. 85.
96 Ibid. p. 95.
e assevera da mesma forma, que o ato ao qual a Nação se dá uma Constituição pressupõe um
Estado já existente; com o adicional de que para que esse ato seja perfeito, é necessária a ele
uma vontade expressa em uma decisão. Nas palavras de Sieyès, trata-se do “basta que a
Nação o queira.”
Nesse aspecto, pode-se dizer que tanto em Schmitt quanto em Sieyès a fundação do
Estado político permanece um ato vago, ainda que circunscritível. Tal é a constatação de
Loughlin e de Kalyvas, que será, segundo este último, suplantado pela concepção de H.
Arendt, como se verá (item 4)
Em questão ainda à Sieyès, Schmitt faz a acusação de que o francês liga a doutrina
democrática do constituinte com a antidemocrática redução da política à representação da
vontade popular mediante a legislatura. Essa ação, segundo o alemão, é tipicamente
burguesa.97
Nesse constante, Schmitt está reiterando uma de suas críticas a um dos conceitos
liberais que considera uma hipocrisia: a da identificação entre governantes e governados
quando se tem uma legislatura. Neste ponto, Sieyès, como exposto anteriormente, coloca-a
como necessária na evolução da sociedade haja vista a pluralidade de indivíduos em
consideração; apesar disso para Schmitt, em termos deciosionistas, não pode o soberano,
titular do poder constituinte (aqui, o povo), delegar tal poder a representantes e ser,
pragmaticamente, por eles governado. A única forma autêntica, segundo o autor, decorrente
de seus pensamentos em T.P, seria a da ditadura, em que o ditador cumpre ações em nome do
povo por aclamação direta.98 Schmitt chega também a fazer a ressalva à possibilidade de
demagogos e tiranos em geral, que podem capturar tal aclamação com má-fé (tal qual faz
Sieyès no constante à usurpação do P. constituinte por extrapolação da legislatura concedida)
mas não dedica muitas linhas ao tema, o que lhe rende severas críticas dos democratas
Loughlin e Kalyvas.
No tema da atividade do Poder constituinte, Schmitt atesta em semelhança à Sieyès
que “não se pode dar um procedimento regulado ao qual se encontre vinculada a atividade do
poder constituinte.”99 Ou seja, o ordenamento jurídico que segue a decisão originária não
pode nem limitá-lo nem circunscrevê-lo por descrição, como se faz com o princípio

97 Ibid. p. 98.
98 Ibid. p. 100.
99 Ibid. p. 99.
legalidade do estado liberal. Ademais, o autor traça alguns pontos elementais quanto a
atividade100:
Afirma Schmitt que a atividade do Poder constituinte do povo se manifesta mediante
qualquer expressão reconhecível de sua vontade política de conjunto imediata, dirigida por
uma decisão sobre o modo e forma da unidade política. Disso decorrem algumas
peculiaridades.
a) O povo, como titular do P. constituinte, não é uma instância institucionalizada: se o
fosse, o Poder constituinte seria absorvido pela ordem estabelecida, o que contradiz sua
natureza ilimitada axiomática.
b) Disso, a forma natural de manifestação da vontade do povo, como já dito, é pela
aclamação direta. Tal aclamação, em democracias, confunde-se por termos de “opinião
pública”. Ulteriormente, a manifestação de vontade do povo dar-se-ia em forma de “nãos” e
“sims” às questões principais referentes à unidade política.
c) A vontade do povo é imediata. É anterior e superior a todo procedimento de
legislação constitucional comum, ou seja, sua atividade não é circunscritível à legiferação.
Das características expostas de atividade do Poder constituinte, portanto, decorre o
problema já mencionado da usurpação do Poder por demagogos e tiranos por simples
aclamação comum. Ademais, a própria discriminação do “reconhecimento inequívoco da
vontade” é extremamente problemática. Confessa-se, quando se tem formas institucionais de
fazê-lo, como plebiscitos e referendos, a aferição da vontade popular torna-se meramente uma
questão de contagem. Mas isso não implicaria a circunscrição formal do próprio constituinte?
Sem falar, também, das possibilidades decorrentes de usurpação deste Poder por aqueles
demagogos, como se faz nos regimes cesaristas.
Ulteriormente, mesmo supondo-se a existência de um método de aferição que respeite
os elementos da teoria do constituinte originário, anterior e ilimitado de forma não à
posteriori à exceção; é pacífico que tamanha vagueza, quando aliada de uma teoria por
definição totalitária, no sentido de radicalidade e de extremismo – e nesse sentido Schmitt é
tão enfático quanto Sieyès em sua terminologia de “tudo ou nada” - pode ensejar grandes
discricionariedades e insegurança jurídica até nos momentos de paz. Poder-se-ia dizer,
utilizando-se do próprio diagnóstico de Schmitt, que essa é a razão do liberalismo criar tantos
entraves e mecanismos de autorregulação do Poder.

100 Ibid.
Na questão à opinião pública, também, ter-se-ia não só o problema de discriminar o
que é a opinião uníssona, principalmente quando se tem em consideração que em momentos
de exceção e turbulência política o que menos se percebe é o consenso; mas também o
problema teórico da opinião pública como diretriz do espaço político, conforme H. Arendt.101
Endereçando a questão da legitimidade, Schmitt, em decorrência de seu decisionismo,
não empresta ao conceito a tratativa usual da doutrina clássica ou majoritária. Schmitt trata
por legitimidade o significado etimológico da palavra, tal seja, é legítimo aquilo que decorre
da lex, das leges. Assim, é impossível, na teoria do autor, dizer que uma Constituição é
legítima nesse sentido: a Constituição possui como substância a decisão política pautada na
unidade política da Nação, a sua legiferação em ordenamento jurídico é apenas o modo
formal de sua existência, sendo a existência política o modo material. Em outras palavras, não
pode ser legítima a Constituição, só podem ser constitucionais as leges.102
Sobre as formas históricas de legitimidade, Schmitt destaca duas – a dinástica e a
democrática, que correspondem, respectivamente, como sujeitos do Poder constituinte, ao
príncipe e ao povo. Onde prepondera a autoridade do rei, é reconhecido o Poder do monarca;
onde prepondera a maiestas populi, a validade da Constituição decorrerá da vontade
popular.103 A legitimidade dinástica, apoiada na autoridade do monarca, quer dizer que o
titular do Poder constituinte é o monarca abstratamente considerado, tal seja, não o sujeito
individual, Rei Pedro I de Bragança, mas a família dinástica considerada em sucessão
hereditária. De modo inverso, a legitimidade democrática apoia-se na noção de que o Estado é
a unidade política do povo, tal seja, o Estado é o status político do povo.

3.2.2. Devir do Poder constituinte Democrático

Em atenção ao Poder constituinte democrático, Schmitt é enfático em repetir as teses


de Sieyès, segundo as quais esse poder não pode ser absorvido pela constituição escrita ou
pelo ordenamento em geral, e disso decorrem consequências não intuitivas para a teoria usual
de institutos como revisão e reforma constitucional, por exemplo. Segundo o autor, tais

101 ARENDT, 1977. pp. 95 e 225.


102 SCHMITT, 1982. p. 104.
103 Ibid.
institutos não afetam o Poder constituinte em si, só possuem a capacidade de alterar a
Constituição legalmente considerada, a forma escrita.
A inalienabilidade do constituinte, como proposta por Sieyès, implica, para o
constituinte democrático, a sua vitaliciedade. É dizer, o Poder constituinte do povo não se
extingue por qualquer ato jurídico de seu exercício, muito menos se apoia em qualquer título
jurídico. Na França, o princípio democrático do Poder constituinte é inaugurado pelo artigo
28 da Constituição de 1793, que expressa: “Um povo sempre possui o direito de rever, de
reformar e de mudar a sua Constituição”104, e tal redação expressa justamente o elemento de
eternidade do constituinte popular: o povo, como categoria política, pode até abolir a sua
constituição atual em prol de outra, sem que a Nação se desfaça ou o povo francês deixe de
ser. Assim, segundo Schmitt, pelo menos um mínimo da Constituição anterior é mantido, ao
menos no que se refere a parte que formaliza a existência política do titular da soberania.
Nesses termos, há sempre uma continuidade enquanto o titular é o mesmo, o Estado
persiste existindo conjuntamente com o constituinte. A única forma de quebrar tal
continuidade é por meio de uma revolução que substitua o titular do constituinte, como
aconteceu em 1789 pela supressão do monarca absoluto pelo povo.

3.2.3. Doutrina democrática.

A democracia, para Schmitt, contemporaneamente considerada, é o governo em que


há a identidade de dominantes e dominados, de governantes e de governados, dos que
mandam e dos que obedecem105.
Essa dominação, por consequência, não pode ser efetiva no sentido de quebrar aquela
identidade. A razão disso, além do axioma da definição, é que a democracia em Schmitt
pauta-se no princípio da igualdade (e não nos princípios da igualdade e liberdade, haja vista
que tal liberdade é um conceito burguês, conforme exposto) e, assim sendo, na
homogeneidade interna que constitui a Nação.106 Nesses termos, um governo que realmente
104 “Article. 28: Un peuple a toujours le droit de révoir, de réformer et de changer sa Constitution.”
105 Ibid. p. 230.
106 Essa homogeneidade pode ser por diferentes fatores culturais, sociológicos etc. Pode também ser dificultada
por uma heterogeneidade interna. Em T.C, Schmitt aborda situações de imigração e de países como a África do
Sul, com uma população heterogênea a ponto de criar cenários políticos de discriminação. Considerando-se que
perpetua uma relação de dominação de uma elite contra uma minoria não pode ser
considerado democrático.
Por definição, o poder do Estado e do governo emanam do povo em uma democracia,
sendo então o grande problema do regime a necessidade de os governantes e governados
serem diferenciados, ainda que homogêneos. Nesse sentido, as eleições realizadas e os cargos
públicos fazem com que os que governam se diferenciem por meio do povo, mas não contra o
povo; o projeto de Sieyès, atesta Schmitt, contava justamente dessa distinção, pois naquela
situação os nobres queriam diferenciar-se contra os cidadãos.107
A identidade democrática, ademais, implica a ideia de que todos os elementos do
Estado atividade de Poder permanecem dentro da homogeneidade e aquela identidade. Assim,
todo pensamento democrático move-se em ideias de imanência: o teológico expresso não tem
lugar na democracia, salvo quando traduzido in concreto.
Em relação ao povo de uma democracia, ainda, Schmitt asserta que o povo manifesta-
se usualmente mediante votações, mas frisa que ele não desaparece com o fim delas, pois o
povo, como sujeito do Poder constituinte, é inapreensível por instituições. 108 Ele se encontra
fora e acima de toda a regulação constitucional, as competências constitucionais a ele
conferidas (como em casos de eleições e votações), não esgotam jamais a sua capacidade e
existência política. Assim, o povo não pode vir a se tornar um órgão institucional, sob pena de
se cometer o erro crasso de tomar-se a forma pela matéria.109
A sua forma de atuação específica, ademais, como já dito, é a aclamação; adiciona-se,
ainda, que essa aclamação não pode ser privada, sempre pública. Schmitt, nessa instância,
assevera que o Estado de Direito burguês busca suprimir a aclamação do povo por institutos
como o voto secreto, que torna a expressão da opinião pública em opinião privada. 110Nesse
constante, a finalística do liberalismo é o de privatizar e pulverizar as atuações públicas. O
que também é levantado por H. Arendt, muito embora não pelos mesmos meios.
Em síntese da teoria constitucional schmittiana, pode-se adicionar aos conceitos
explorados em Teologia Política, sobretudo, a tratativa específica à Constituição de Schmitt,
em relação aos demais autores, bem como a especificação do soberano e seu conceito na visão

o livro é de 1928, torna-se flagrante que a Alemanha passaria também a ser um dos exemplos mais emblemáticos
de insidiosos do tema. Ibid. p. 228.
107 Ibid. p. 233.
108 Ibid. p. 237.
109 Ibid.
110 Ibid. p. 240.
criadora do Poder constituinte segundo os desdobramentos contemporâneos desde a
Revolução Francesa.
Desse modo, temos uma teoria constitucional que não reduz o político ao pré-jurídico,
pelo contrário, temos uma teoria constitucional que coloca o jurídico como forma positivada
da existência política, que é anterior e independente. Contrariamente às teorias usuais,
portanto, a validade da Constituição depende da sua vinculação com o poder e a vontade que
a emanou, possuindo então lastro fático.
Desse lastro importa que positivações meramente declaratórias não possuem nenhuma
relevância coercitiva mas, em sentido oposto, descrições preambulares, por exemplo, tem a
capacidade de denotar mais constitutividade jurídica que normatizações não consonantes ao
soberano.
O Poder constituinte contemporâneo, ademais, denota a concepção de povo (ou o
príncipe) como o seu titular. O povo, emanando sua vontade como decisão no momento de
exceção, assim, erige o sistema normativo e é consequentemente externo e inapreensível a
esse ordenamento. O povo é condição existencial do Poder constituinte, e a sua atuação
política configura a Nação.
Essa concepção de constituinte advém, ademais, da Revolução Francesa, e tem como
seu maior proponente a teoria de Sieyès, que, como atesta H. Arendt, foi o maior teórico legal
da Revolução Francesa.111 O povo francês, consciente de sua existência política e fazendo-a
valer, coloca-se no lugar o príncipe absoluto e constitui a Nação em sua inteireza. A
dissonância com Sieyès aqui se dá predominantemente, portanto, em relação à concepção que
o ordenamento legal constitui a Nação “elle même”, denunciando Sieyès como um autor
liberal.
Nesse contexto, afirma Schmitt ser a Revolução francesa a origem do sistema liberal
constitucional, um marco na teoria do estado que vinculará a legiferação e políticas futuras.
Essa acepção, como se verá (item 3.3 a seguir), mostra-se como uma visão peculiar e
idealizada de Schmitt em relação ao liberalismo, contrapondo-se com a visão de Hannah
Arendt acerca da Revolução Francesa.
Em relação ao devir constitucional, ademais, Schmitt enfatiza, por consequência
lógica, os equívocos das teorias constitucionais liberais em equivaler a Constituição escrita
com a material, colocando mecanismo de reformas e de revisão como capazes de alterar esta.

111 ARENDT, 1977, p. 162.


A Constituição material só se altera por vontade política do constituinte, o povo, e alterações
formais não a alcançam. Essa vontade, ainda, é ilimitada ao ponto de prever-se ao povo a
capacidade de derrocar a própria Constituição.

3.3. KALYVAS: RUMO A UMA TEORIA DE CONSTITUCIONALISMO


DEMOCRÁTICO

A. Kalyvas é um autor grego pertinente ao constitucionalismo pelos seus


apontamentos que buscam resgatar a materialidade do constituinte democrático. 112 Em seu
livro, “Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt, and Hannah Arendt” 113, o
autor faz uma análise comparativa dos três autores presentes no título com o intuito de
teorizar a política do extraordinário sob o ângulo da soberania popular, propondo uma teoria
que possa, novamente, resgatar a natureza radical da democracia.114
Em seus comentários à Schmitt, o autor inicialmente preocupa-se em fisgar um
possível caráter democrático e não autoritário da teoria schmittiana, considerando-se a vida
política do autor e sua associação com a teorização do nazismo.
Inicialmente, o autor levanta que até em uma Ditadura o soberano continua sendo o
povo: trata-se de uma expressão do próprio Schmitt segundo a qual os regimes ditatoriais só
são possíveis em democracias.115
A associação pela qual Schmitt é tido como um autor enamorado com visões
autoritaristas e extremistas e desencantado com mecanismo de autorregulação de Estado são
apenas parcialmente corretas, diz Kalyvas. O que elas não percebem é que o critério da
discricionariedade e a vontade pessoal são características que definem, em Schmitt, a
ditadura, não a soberania em si. O soberano é aquele quem cria a Constituição e as leis
fundamentais do regime, é o sujeito do constituinte, não a pessoa do ditador.
Nesse constante, temos que, pela influência de autores como Bodin e Rousseau em
Schmitt, o soberano popular possui os traços de ser indivisível, irrepresentável

112 Cfr. KALYVAS, 2020.


113 KALYVAS, 2008.
114 Ibid. p. 81.
115 Ibid. p. 97. e SCHMITT, 1982, p. 232.
(inapreensível), inalienável e intransferível. Assim, a imagem do Ditador em Schmitt é uma
mera delegação do poder popular, que é vinculado a ele e não pode usurpar sua natureza
ilimitada.116
Em relação ao constituinte democrático em específico, prepondera para Kalyvas
primeiramente a distinção primordial de Schmitt, importada de Sieyès, entre povo constituinte
e povo constituído; e depois o seu esforço em combinar o princípio da identidade democrática
com o princípio de representação clássico.
A distinção trabalhada em Schmitt tem o intuito de diferenciar os momentos criadores
de exceção daqueles ordinários. Longe de propor uma teoria constitucional da exceção eterna,
como interpretam alguns comentadores de Schmitt, a distinção inicial possibilita justamente o
contrário. Inicialmente, na exceção, o soberano popular cria o sistema legal, mas após isso se
afasta, pois é impossível que se permaneça no caos eternamente. 117 Para que isso aconteça, é
necessária a criação de um sistema representativo: a legislatura existe para suprir o vácuo
criado pela ocultação do soberano popular após o extraordinário.118
A falha em reconhecê-lo, segundo Kalyvas, implica a caricaturização da teoria de
Schmitt a um cesarismo legitimado.
No seio da polêmica, Kalyvas vê que a teoria constitucional de Schmitt anterior ao
nazismo é, ademais, uma crítica genuína a um dos principais problemas que ainda persiste nas
democracias contemporâneas, tal seja, aquele da autoimposição e da autolimitação de uma
ordem democrática.119
Enfrentando esse paradigma, Schmitt, segundo Kalyvas, busca criar uma teoria
constitucional para suplantar a teoria liberal de constitucionalismo. Em vez de conceber a
Constituição como um meio formal de proteger direitos individuais da maioria e da
autoridade estatal, Schmitt elabora uma teoria que se pergunta como proteger o Poder
constituinte do povo soberano de si mesmo, dos seus excessos e cegueiras; bem como, na
rotina política em termos ordinários, dos poderes representantes; questão que, como visto, é
basilar até em Sieyès.

116 KALYVAS, 2008. p. 99.


117 Essa é, inclusive, a constatação de Arendt na comparação entre a Revolução Francesa e a americana: a
primeira buscou a perpetuação revolucionária, enquanto a segunda buscou o seu fim na promulgação de uma
Constituição.
118 KALYVAS, 2008, p. 128.
119 Ibid. p. 129.
Nesses termos, a Constituição é definida na sua finalidade preservar e manter a
decisão fundadora e a soberania do povo naquilo que concerne a sua própria existência.120
O intento de teoria e a sua estruturação são, como dito, uma resposta à generalização
liberal que se tem no constitucionalismo majoritário. Schmitt não equivale a Constituição a
sua forma legal, mas concebe esta, pelo contrário, apenas como uma necessária representação
formalística do conteúdo constitucional, exógeno por excelência do sistema legal. Nessa
interpretação, não é o constitucionalismo que é oposto à democracia, mas sim o
constitucionalismo liberal:121
“Enquanto o liberalismo, segundo Schmitt, emergiu como uma teoria que
buscava a fragmentação do poder político pela neutralização ou eliminação do Poder
constituinte do povo soberano; a democracia, por contraste, corresponde à teoria do
poder popular, que busca encontrar uma solução viável à questão de como gerar,
sustentar e proteger tal poder.”122

A teoria de Schmitt no constante democrático, então, centra-se no fato da Constituição


cristalizar os valores e princípios democráticos bem como as instituições do governo.
Kalyvas, assim, nega a visão liberal segundo a qual a constituição é mero texto formal de
princípios abstratos, ou resultado de concessões pragmáticas e um balanço de forças. A
Constituição, no mérito de Schmitt, corporifica o constituinte em forma legal, sem implicar
um rule of law exaustivo.
Com essa concepção, supre-se a natureza amorfa e fraca do soberano, necessariamente
exógeno, por sua institucionalização na ordem legal. A Constituição transforma um soberano
sem forma em uma autoridade legal constituída. 123 Isso porque, na visão de Kalyvas, Schmitt
enxerga que “o soberano popular só pode sobreviver enquanto estiver investido em uma
forma jurídica”124.
Essa transição, do constituinte ao constituído, seria a concepção de Schmitt de que é
melhor se ter um soberano constituído invisível que um soberano constituinte todo-poderoso
permamente mas autodestrutivo. Com essa mudança, o povo como entidade instituída é
organizado e toma forma, e sua vontade será expressada segundo as regulações e

120 Ibid. p. 131.


121 Ibid. p. 130.
122 “Whereas liberalism, according to Schmitt, emerged as a theory that aimed at the fragmentation of political
power and has pursued this aim by seeking to neutralize or eliminate the constituent power of the sovereign
people, democracy, by contrast, came forth as a theory of (popular) power, trying to find a viable solution to the
question of how to generate, sustain, and protect this power.” SCHMITT apud Kalyvas, Ibid.
123 Ibid. p. 132.
124 “ The popular sovereign can survive only when it is invested with a juridical form.” Ibid. p. 133.
procedimentos que ele mesmo definiu no momento fundador 125. Ainda mais, o povo vincular-
se-á à ordem legal que ele mesmo criara.
O posicionamento de Kalyvas aqui se mostra interessante pelo fato de mundanizar
Schmitt, afastando o caráter apologista ao caos que se pode ter do autor alemão à primeira
vista. Mas deve, porém, ser considerado com cautela. Isso porque, como mencionado
anteriormente à exposição de T.C, Schmitt segue Sieyès explicitamente no que se refere à não
limitação do soberano à ordem legal instituída. A passagem necessária, de constituinte ao
constituído a que Kalyvas faz referência é encontrada no seu tratar da atividade do Poder
constituinte popular, e tal passagem pode também ser interpretada no sentido contrário ao
dado por Kalyvas:
“El Pueblo, como titular del poder constituyente, no es una instancia
firme, organizada. Perdería su naturaleza de pueblo si se erigiera para un normal y
diario funcionamiento y para el despacho ordinario de asuntos. Pueblo no es, por su
esencia, magistratura, ni nunca – tampoco en una Democracia – autoridad
permanente. De otra parte, el pueblo necesita ser, en la Democracia, capaz de
decisiones y actuaciones políticas. (…) Tampoco puede ser disuelto, como que no
es una entidad organizada. En tanto que existe y quiere seguir existiendo, su
fuerza vital y energía es inagotable, y siempre capaz de encontrar nuevas formas de
existencia política. La debilidad consiste en que el pueblo ha de decidir sobre las
cuestiones fundamentales de su forma política y su organización, sin estar
formado u organizado él mismo. 126 (…). Corresponde a la inmediatez de esta
voluntad popular el poder exteriorizarse con independencia de todo procedimiento
prescrito y todo método prescrito. Hoy se fija, en la práctica política de la mayor
parte de los países, la voluntad del pueblo mediante un procedimiento de votación
secreta o elección secreta. Sería un error – y por cierto un error anti-
democrático – el tener por noma absoluta y definitiva de la Democracia estos
métodos del siglo XIX. La voluntad del pueblo de darse una Constitución puede
sólo demostrarse mediante el hecho, y no mediante la observación de un
procedimiento normativamente regulado. Y claro está que tampoco puede ser
enjuiciado a base de leyes constitucionales anteriores o en vigor hasta el
momento.”.127

Dessa forma, pode-se dizer que Schmitt chega até a acenar à interpretação da
institucionalização como mostra da vontade popular, mas o faz com inúmeras ressalvas em
relação a apreensibilidade e limitação do poder popular pela ordem legal instituída. Esse deve
ser o cuidado tido com a interpretação de Kalyvas, portanto, pois é sim necessária uma forma
de aferir a vontade popular, e é necessário que se saia do extraordinário à ordem legal,
segundo o próprio Schmitt, mas jamais se negando o soberano constituinte pela instituição do
ordenamento.

125 Ibid.
126 Este é o paradoxo fundacional.
127 SCHMITT, 1982. pp. 99-100. Grifos pessoais.
De fato, o ponto apresentado por Kalyvas concentra-se na necessidade da
normalidade, ao contrário da interpretação equivocada segundo a qual Schmitt seria um
teórico exclusivamente do extraordinário, e disso temos certeza por dizeres do próprio
autor.128
Em relação ao antiliberalismo, Kalyvas aponta Schmitt como um crítico das
democracias aparentes. Segundo ele, o liberalismo, com sua teoria universal de direitos
humanos, seu economicismo, seu legalismo e a respectiva tendência à moralização, bem
como seu individualismo, tanto recusa reconhecer a distinção fundamental entre amigo e
inimigo, quanto renega o poder político original, possuindo então um grande receio frente ao
soberano popular. 129
O triunfo do constitucionalismo schmittiano, nesses termos, está em reconhecer a
necessidade da legalidade e da institucionalização para se chegar à normalidade, enquanto
ainda não se mina o soberano original.
Um dos apontamentos centrais de Kalyvas a Schmitt está na distinção que o autor
grego enxerga nos momentos constitucionais em Schmitt, do constituinte ao constituído. Essa
distinção divide a Constituição schmittiana em dois estratos, o superior, concernente ao
caráter fundamental da Constituição, que trata da forma e regime de governo e do
estabelecimento das instituições principais; e o inferior, que corresponde ao procedimental. O
primeiro, pode-se dizer, contém a essência da existência política da Nação, e o segundo
corresponde à parafernália legal atribuída ao liberalismo.130
O estrato inferior, apesar de ser tratado de forma crítica por Schmitt é, confessamente
pelo autor, imprescindível ao funcionamento do Estado contemporâneo. 131 “O paradigma
enfrentado, então, não é o de abolir um em favor do outro, mas de ver como ambos podem ser
melhor articulados entre si, e qual parte possui prioridade sobre a outra”.132 Nesse aspecto,
certamente o estrato superior vincula o inferior, e jamais o contrário. No mais, tal
posicionamento é o dizer de Schmitt em relação às emendas e possíveis reformas ou revisões
de leis constitucionais: o seu caráter é sempre aditivo ou superficial, jamais essencial. 133 Essa

128 SCHMITT apud KALYVAS, 2008. p. 135.


129 Ibid. p. 136.
130 Ibid. p. 140.
131 “He recognized that the liberal part ‘is so important and só characteristic to any modern constitution’ that it
cannot be rejected altogether.”SCHMITT apud KALYVAS, Ibid.
132 “The crucial task is not to abolish the one in favor of the other but to see how they can be better articulated
and which part has priority over the other.” Ibid.
133 SCHMITT, 1982, p. 108.
qualidade, segundo Kalyvas, advém do entendimento segundo o qual a democracia de
Schmitt implica que o extraordinário não pode tornar-se frequente e, para que isso não ocorra,
uma constituição democrática deve prever mecanismos que dificultem mudanças
constitucionais importantes pelos mecanismos de emenda: a democracia, em autodefesa,
precisa silenciar o soberano periodicamente.134
Para abordar a concepção do político de Schmitt, Kalyvas traz a obra “Roman
Catholicism and Political Form” em que o autor acusa o protestantismo de ter falhado em
oferecer uma resposta às contradições do mundo moderno. 135 Schmitt vislumbra um mundo
dividido entre uma racionalidade econômica capitalista e uma reação irracional de um
romantismo, entre a forma abstrata e o conteúdo concreto, entre matéria e espírito. 136 Para
entender o seu argumento, Kalyvas atrai a atenção para o conceito de representação em
Schmitt.
Representação para o autor não é o ato de simulacro, tampouco é o ato de vincular
uma pessoa ou grupo de entidades para agir em nome de seus interesses socioeconômicos.
Representação, portanto, não é nem procuração e nem legislatura. Representação, para
Schmitt, pode ser definida como o ato de “tornar o invisível visível”, enfatizando por
consequência os aspectos de transformação e transubstanciação. Nesses termos, para que haja
a possibilidade de se visualizar algo como valores abstratos e princípios, há que se ter uma
instituição concreta que faça a mediação desses conceitos imateriais. É nesse aspecto que
Schmitt mescla personificação com representação, ou seja, uma pessoa encarna a
representação de tais conceitos. “A representação somente pode ser feita por uma pessoa, uma
figura de autoridade, (…) pois pessoalismo é inerente à ideia de representação.”137
Com essa definição, Schmitt criticou a política moderna justamente pela falta de
mecanismos de representação política. A ascensão de interesses econômicos, do materialismo
e do anonimato (que Arendt virá a definir como o “social”) destruíram as formas tradicionais
das instituições capazes de encarnar ideias regulatórias. Igualmente, o político fora reduzido à
mera política, tal seja, a um aparato de poder utilizado por atores em seu esforço de promover
seus interesses sectários.138

134 KALYVAS, 2008, p. 144.


135 Um diagnóstico parecido é feito por Arendt, como se verá, no seu dizer de que o protestantismo acaba com a
tradição e autoridade no mundo moderno, ligados à Igreja e ao passado romano, e não o substitui com nada.
ARENDT, 1961, pp. 17-41.
136 SCHMITT apud KALYVAS, ibid. P. 146.
137 Ibid. p. 148
138 Ibid.
O político para Schmitt (e em alguma medida para Arendt) é o espaço de princípios
éticos, do invisível, de valores abstratos, isto é, o espaço de simbolismo e representação em
que a sociedade forja a sua unidade simbólica, transcendendo divisões empíricas por meio de
significações normativas morais e coletivas; enquanto que o social é o espaço do material, do
visível e do imediato, que é saturado por mostras econômicas e interesses conflitantes.139
Schmitt vê, na visão de Kalyvas, um mundo em que conflitos políticos tornaram-se
uma tradução de conflitos econômicos sobre a apropriação de benesses materiais, em vez de
um conflito sobre concepções de justiça e de moral, do bom e do como a sociedade deveria
ser organizada. Nas visões racionalistas da sociedade do socialismo e do liberalismo, não há
nada a mais para ser representado; pelo contrário, só há interesses imediatos a serem tratados
pelo político; tudo recaiu ao profano espaço do material, do privado e do visível. O político
teria sido substituído pela mera administração das coisas, instrumentalizado na forma de
política de interesses, sem nenhuma fronteira entre o simbólico e o real.140
O jovem Schmitt buscou solucionar esse problema pela aposta na única Instituição, a
seu ver, a historicamente ter algum sucesso encarnando o poder da representação, a Igreja
Católica; ademais, personificando-a na única entidade que com sucesso encarnara o invisível,
o Papa. Posteriormente, porém, o autor teria reconhecido a necessidade o Estado moderno ser
secularizado (e da Igreja ser incapaz de restaurar-se no papel antigo), e passou então a
personificar a sua representação do soberano popular na figura do presidente eleito.141
A concepção que Schmitt dá ao executivo, ademais, seria uma das maiores fraquezas
de sua teoria em uma concepção democrática, indica Kalyvas: apesar de que o autor alemão
não tivesse buscado minar o constitucionalismo, a sua teoria do executivo era ambígua. 142
Primeiramente porque concede ao chefe do executivo dois papéis diferentes, a do
representante, no sentido substantivo, do povo soberano em tempos ordinários, e a do
delegado desse mesmo povo durante a ditadura em situações de exceção. Isso faz com que o
executivo se torne a força mais preponderante do Estado, dando a ele prerrogativas de
governar sozinho e de usurpar o poder popular de forma cesarista, fazendo uso de plebiscitos
e de referendos.

139 Ibid. p. 149.


140 Ibid. p. 149-151.
141 Ibid. p. 152-153.
142 Ibid. p. 159.
A segunda faceta da ambiguidade apontada por Kalyvas, ademais, seria a constatação
de que o presidencialismo schmittiano afastaria ainda mais o povo da intervenção e da
participação política, mesmo em tempos de exceção (afinal, o ditador ainda permaneceria o
correspondente popular nessas ocasiões). Tal modelo teórico invoca uma democracia elitista
que contradiz o restante da teoria de Schmitt sobre a democracia, novamente desembocando
em uma visão plebiscitária do executivo.143
Em comento a Kalyvas, indaga-se todavia se essa não era a intenção original mesma
de Schmitt. Como dito anteriormente, o autor faz ressalvas ao meio plebiscitário e
referendário por se tratarem de dispositivos burgueses do século XIX, mas, segundo suas
conclusões de De Maistre e de Donoso Cortés, não seria a ditadura a correspondência correta
as estruturas internas da teologia política? Schmitt afirma que uma Ditadura só é possível em
solo democrático, mas não seria a consequente preponderância do executivo que advém de
sua teoria, na condição de correspondentes à vontade popular e protetora da unidade política,
a concretização própria do princípio da representação?
Enfim, Kalyvas conclui que Schmitt, em contrapartida a sua ambiguidade teórica em
relação ao presidencialismo, enxerga que um constitucionalismo coeso não deve sustentar-se
em considerações pragmáticas e balanços de poder de ocasião, muito menos na confiança
completa na legalidade formal: enxerga que o constitucionalismo precisa de uma base
profunda o suficiente para que se mantenha a unidade política mesmo em tempos de crise.
Para a criação dessa base seria necessário, por fim, que a Constituição exponha abertamente o
seu teor democrático e suas origens populares, ainda codificando formalmente a soberania
popular.
Tais argumentos, em conjunto, fazem de Schmitt um autor oposto a sua caricatura
usual para Kalyvas. De um autor que propõe o governo ditatorial e a exceção permanente por
excelência para um autor que clama por um constitucionalismo com lastro fático na soberania
popular.144
Como equívocos e omissões, por fim, além da tendência ao presidencialismo
“absoluto” e cesarista, Kalyvas aponta que Schmitt reduz a democracia ao princípio da
igualdade, destituindo-a de seus valores de liberdade coletiva por associar esta ao liberalismo,
contrapondo-a a “igualdade substantiva”; reduz também o campo de atuação do constituinte

143 Ibid. p. 160.


144 Ibid. p. 162.
popular à esfera de produzir a Constituição, o que enseja um paradoxo em sua teoria; e,
finalmente, por não conseguir perceber o povo fora de categorias legais e jurídicas.145
Ao reduzir a democracia à igualdade, Schmitt cria vários problemas teóricos que o
impossibilitam de ver a dimensão emancipatória da política democrática. Como exemplo,
Kalyvas afirma que o autor alemão vacilava entre colocar os direitos políticos no estrato
inferior, como parafernália legalista, dada a sua natureza estritamente formal, ou no superior,
concebendo-os como direitos fundamentais, pelo caráter constitutivo que possuem em uma
democracia calcada no princípio da igualdade. Essa depreciação do ideal de liberdade política,
juntamente a sua separação entre o social e o político teriam feito o autor banir o valor da
autonomia coletiva da sua concepção de democracia.
A limitação da soberania popular ao constituinte, ademais, cria um paradoxo: uma vez
criada e estabelecida a Constituição e o ordenamento jurídico, o poder soberano está
predestinado a se omitir. O seu sucesso sinaliza o seu recuo, ele não possui nada mais a fazer.
Assim, Schmitt, para Kalyvas, não consegue perceber que o povo pode também expressar sua
vontade de várias formas igualmente extraordinárias, transgressivas e produtivas fora da
criação constitucional.
Finalmente, Schmitt prender-se-ia no próprio paradigma que buscava criticar: ele não
consegue ir além das categorias jurídicas. Igualmente com o problema anterior, Schmitt, ao
reduzir o soberano ao constituinte, deixa um vácuo em sua teoria em relação a outros aspectos
importantes da política relacionados à estrutura socioeconômica, ao campo simbólico e das
lutas para reconhecimento social. Schmitt, segundo Kalyvas, ignorou muitas formas de
contestação radical que não endereçam a Constituição diretamente mas que a afetam por
questionar e irritar diversas outras relações de poder periféricos à Constituição.
Em suma, Kalyvas vê a democracia em Schmitt como tendo três momentos. O
primeiro corresponde ao extraordinário, e é o momento que definirá o ordenamento jurídico e
a forma de governo, dando-lhe uma Constituição. É durante ele que o soberano exala a
decisão final que acaba com o extraordinário. O segundo momento corresponde ao ordinário,
em que o ordenamento jurídico já tem sua forma e os juristas, desacostumados com o
extraordinário, podem passar a concebê-lo como autossuficiente. Não obstante a distinção
entre o fundamental superior e o ordinário procedimental, o segundo momento de Schmitt
descreve, em síntese, o regime constitucional liberal. E, por fim, o terceiro momento, que

145 Ibid. 184-6.


seria a redenção de Schmitt aos olhos de Kalyvas, mas que é deixado de lado pelo autor, ou
ofuscado pela hegemonia do executivo presidencialista. Essa fase democrática corresponde na
teoria de Schmitt às formas de atuação do soberano popular não institucionalizado. Por
definição, esse povo não pode ser absolvido pela ordem jurídica e portanto deve manifestar-se
de forma extrainstitucional. O autor dedica algumas páginas ao tema, destacando a atuação do
povo por assembleias populares (sempre fora do sistema política institucional) e outros meios
como de conselhos, mas se limita a isso. Para Kalyvas, é a oportunidade perdida de se
conceber uma democracia mais radical, só sendo portanto suficiente quando é completada
pela contribuição de outros autores.146

3.4. MARTIN LOUGHLIN: O CONSTITUCIONALISMO ENTRE O NORMATIVISMO E


O DECISIONISMO.

Martin Loughlin expõe, em seu artigo “The Concept of Constituent Power”147, uma
tese interessante acerca do meio e tema de discussão desta pesquisa. Contrapondo o que
chama de normativismo e decisionismo jurídicos, o autor propõe uma solução sincrética que
permitiria a união do realismo moral decisionista com o aceno à instrumentalidade formal do
normativismo em prol de uma tese democrática, similarmente à Kalyvas.
O autor, como dito, distingue três formas do pensamento jurídico, o normativismo, o
decisionismo e o relacionismo, a ser apresentado como a contraposição dos anteriores. O
normativismo corresponde à corrente de autores como Hans Kelsen, que prezam pela
autonomia do ordenamento, recolocando conceitos como poder em uma categoria exógena e
redundante. O decisionismo, notadamente de Carl Schmitt, funda o Direito como vontade e
concebe o ordenamento por si só como insuficiente para se ter autonomia, sendo necessário o
recurso a um poder soberano, o Poder constituinte.

146 Ibid., pp.177-184.


147 LOUGHLIN, 2013.
Os normativistas, como dito, em geral, destacam-se por conceber a autonomia do
sistema jurídico. Essa definição abarca tanto os positivistas legais como Kelsen, quanto os
moralistas anti-positivistas como Fuller, Dworkin e Alexy.
Para Kelsen, como já explorado quando tratamos de Schmitt e de Kalyvas, o Direito é
o próprio ordenamento jurídico. O autor austríaco concebe a ciência do Direito como livre de
ideologias, sendo preenchida somente com elementos das ciências naturais. Loughlin afirma
que o autor, pela distinção de Hume entre ser e dever-ser, posteriormente trabalhada por Kant
e os neo-kantianas, enxerga uma norma fundamental (grundorm) hipotética que dá validade
ao sistema jurídico.148 Para todos efeitos, o conceito de Poder constituinte é pré-jurídico.
Para os demais autores, explicitados no artigo de Loughlin na figura de David
Dyzenhaus, o Poder constituinte como conceito é igualmente supérfluo. Concebendo o
Direito como uma estrutura de princípios jurídicos que governam toda a conduta humana, a
noção de um momento fundador ou de uma decisão original vinculante ou autorizante é
rechaçada por uma visão moralista do direito público. O que importa, para ambos os grupos,
enfim, é que o Direito seria melhor compreendido por uma análise endógena, na concepção
de que o ordenamento legal possui qualidades intrínsecas que sustentam a visão de
comunidade política, sendo essas qualidades que dão autoridade ao Direito. O constituinte,
i.e, “o povo” como legitimador ou autorizador, aqui é, novamente, redundante.149
Como vantagem do decisionismo sobre o normativismo, Loughlin destaca o fato de
Schmitt reconhecer que o poder de constituir é um ato político com uma necessária dimensão
existencial. Constituições para Loughlin não são puramente construções normativas, elas são
determinadas pelo processo histórico que é a construção do Estado.
O método relacionista busca, então, exaltar os méritos da teoria schtmittiana em
reconhecer a Constituição como o meio de ser do Político, em reconhecer que sempre haverá
uma lacuna entre a norma (a constituição escrita) e realidade (o ser), em reconhecer que tal
lacuna deve ser preenchida pela atividade de governar, e em reconhecer que como conflitos
são inevitáveis, o ato de governar acaba sendo uma forma de dominação pela qual decisões
devem ser tomadas.150 O relacionismo, porém, diverge em relação aos defeitos da teoria
schmittiana, em especial do enfoque demasiado na unidade política como condicionante ao

148 Ibid. p. 5.
149 Ibid p. 6-7.
150 Ibid. p. 12.
Estado e à liderança carismática, que podem desencadear, segundo Loughlin, os governos
totalitários.
Ainda mais, diverge em uma questão central: representação [legislatura]. Em Sieyès,
Loughlin vê a representação como tema central por consequência logística de se manter a
divisão de trabalho na sociedade moderna, e em Schmitt vê uma crítica à representatividade
quando o autor se refere ao princípio da identidade democrático (é difícil que se tenha
representantes iguais ao povo sem que se desemboque em uma aristocracia). Para Loughlin,
nenhum dos autores endereça o centro da questão, que é a concepção de que uma vez
invocado o conceito, o próprio povo deve ser considerado uma representação, pois poder
político só é criado quando “o povo” é diferenciado da realidade concreta da multidão.151
Em Loughlin, o fenômeno da transferência da autoridade do príncipe para o povo,
narrado por Schmitt e por Arendt, implica uma mudança profunda na questão da
representação simbólica: a figura transcendental do soberano divino acaba, mas o espaço
desta soberania permanece. Esse espaço, segundo o autor, é o espaço do político, um domínio
autônomo que, a despeito de suas contingências, expressa uma forma de ser revelada na sua
lógica de ação e na sua singular concepção de poder.
O espaço do político é o que o normativismo, segundo Loughlin, busca remover do
discurso constitucional, seja em sua vertente positivista ao igualar o Estado ao ordenamento
jurídico e definir soberania como bobagem metafísica, seja em sua vertente antipositivista por
conceber o constitucionalismo como uma filosofia moral. Schmitt, realmente, como também
alude Loughlin, aceita a autonomia do político e enxerga o espaço do político advindo da
transição do teístico para o deístico (vide itens 3.1, 3.2.3 e 3.3), mas remedia a lacuna deixada
por essa transição com a concepção de um soberano ditatorial que mantém a unidade política.
Para Loughlin, essa noção de “o povo como um só” 152 só pode desembocar no totalitarismo,
em que qualquer forma de oposição é considerada como “o inimigo”.
A análise relacional parte do momento da fundação. Rousseau, segundo Loughlin, foi
o primeiro a destacar o paradigma paradoxal da fundação pela pergunta: como pode um grupo
de estranhos se encontrarem e, sem se conhecerem ou terem objetivos em comum,
deliberarem para fundar uma Constituição? Como pode o corpo não constituído constituir?
Como poderia o povo, ou categoria similar, pactuar sendo que será esse pacto o próprio
constituinte desse povo? Trata-se, enfim do tema central deste trabalho de conclusão de curso.
151 Ibid. p. 13.
152 “The people-as-one”. Ibid.
Segundo o autor, o normativismo soluciona-o por tratar a fundação como puro ato de
representação, o Poder constituinte é inteiramente absorvido nos poderes constituídos, ele é
uma pressuposição de um juízo jurídico. O decisionismo, por sua vez, resolve o problema por
pressupor uma igualdade substantiva misteriosa do povo (vide Schmitt item 3.2.3).153
O método relacionista, para Loughlin, resolve o problema mais satisfatoriamente que
os demais por adotar a noção de “auto-constituição” 154, que é compreendida pela referência à
identidade reflexiva. Schmitt argumenta que a decisão do soberano é o começo absoluto, que
advém de um nada normativo e de uma desordem concreta 155 o que, relacionalmente, jamais
acontece. Para Loughlin, a fundação e sua forma normativa só podem ser entendidas
virtualmente. A questão é que essa virtualidade choca-se com a realidade, pois o concreto
sempre é problemático. Esse momento de confronto toma forma como um ato de violência, e
a definição territorial de Estado é invariavelmente arbitrária pois nenhuma comunidade
“natural” habita o espaço político. Essas contradições, para o autor, explicam a necessidade
do governo, pois apesar de o espaço do político poder ser visto como o espaço de liberdade (o
“começo absoluto” virtual), sua manutenção requer institucionalizações, e essas, por sua vez,
implicam dominação (uma quebra da identidade de Schmitt).
Em outras palavras, o ponto de partida fundacional é feito sim por um corpo desunido,
mas esse corpo projeta um sistema virtual de unidade (a Nação ou o Estado) e de igualdade; e
essa convenção fundacional necessita ser institucionalizada para que se concretize na
realidade. A institucionalização, porém, implica o governo e dominação de uns (os agentes
das instituições) sobre os outros (as pessoas comuns).
Em Loughlin, o povo é o sujeito do Poder constituinte, mas isso não significa que a
autoridade política está localizada no povo (na multidão, nas pessoas concretas), como
defendem os teóricos do princípio da soberania popular. O Poder constituinte expressa uma
igualdade virtual de cidadãos. Essa igualdade é gerada inter homines (estabelecendo o
princípio da unidade política), mas ela funda uma associação real que se divide entre
governantes e governados, em uma relação de dominação (estabelecendo o princípio da
hierarquia); ela funda a racionalidade constitucional (a normatividade), mas a associação só

153 Aqui excetua-se que o próprio Schmitt adverte para não se confundir o momento de nascimento do Estado, o
pacto social ou contrato social, do momento de nascimento da Constituição, que é o momento da decisão na
exceção. Loughlin os trata como similares, mas sua teoria se compatibiliza com a de Schmitt pela concepção da
fundação virtual e a realidade política, como se verá.
154 “self-constitution” Ibid. p. 14.
155 SCHMITT apud LOUGHLIN. Ibid.
evolui por ação (decisão). A tensão consequente entre soberania (a vontade geral) e o
soberano (o agente com autoridade para impor a decisão no nome daquela vontade geral) faz
com que o Poder constituinte não seja entendido somente como força. Sua evolução envolve,
então, uma dialética entre Direito (droit politique) e o governo real, as instituições que sofrem
uma constante irritação.156
Dessa perspectiva, o paradoxo para Loughlin pode ser abordado de forma diferente.
Começaria a fundação com a constituição de uma unidade política por um ordenamento
jurídico ou com a constituição do ordenamento jurídico por uma unidade política? Hans
Lindahl, segundo o autor, assevera que alguém deve tomar a iniciativa e decidir pelo grupo
segundo os interesses comuns que percebe, discriminando quem pertence a ele, pois a unidade
política surge primeiramente da instituição de uma Constituição. 157 Sob o aspecto relacionista,
a última situação é somente uma questão de legiferação, e a primeira torna-se sobre a
constituição da unidade política pelo droit politique, em vez de pelo ordenamento. Assim,
quando o Poder constituinte é concebido como uma expressão do droit politique, pode-se
dizer que a unidade política não advém da instituição de uma constituição escrita, mas da
forma com que esse droit politique opera dentro da constitucionalização do Estado.
O argumento de Schmitt, visto dessa forma, segundo Loughlin, não parece restar tão
longe do relacionismo: o autor alemão constrói sua análise da distinção entre a Constituição e
a constituição escrita, e dela reconhece que o Estado está em um constante processo de
formação. A despeito disso, o autor nunca chegou completamente a esse método. Loughlin
atesta que teria sido o seu contemporâneo, Herman Heller, que o faria. Segundo Heller, tanto
o normativismo quanto o decisionismo seriam metodologias errôneas, pois assim que se
reconhece a qualidade formadora de Poder do Direito, é impossível que se entenda a
Constituição como a decisão de um poder “desnormatizado” 158. Como Poder e Direito são
mutuamente constitutivos e reciprocamente dependentes, nunca se poderia aceitar o vazio
normativo da decisão inicial.
Para Loughlin, Poder é criado por um ato simbólico em que a multidão reconhece a si
mesma como a formação de uma unidade, um coletivo singular: “nós o povo”159. Esse ato não
pode existir somente na dimensão fictícia, ele deve ter efeitos na realidade, e isso envolverá

156 Ibid. p. 15
157 LINDAHL apud LOUGHLIN, ibid.
158 HELLER apud LOUGHLIN, ibid. p. 16-7.
159 “We the people”. Ibid.
com frequência o uso da força. Esse poder político, todavia, só pode ser mantido e aumentado
por meio de institucionalizações e, nesses termos, o povo realmente ordena e estabelece um
sistema de governo.
A Constituição concede autoridade às autoridades constituídas para legislar, e ao
limitar e definir e formalizar essas competências, a Constituição torna-se ela mesma um
instrumento de criação de poder. Ainda que não se implique o estabelecimento de um “rule of
law”, tem-se, porém, que sempre haverá uma lacuna entre o arranjo constitucional (a
expressão da soberania) e a capacidade decisória das autoridades governantes (a expressão da
autoridade soberana). Poder político, assim, é criado pela representação simbólica da
fundação e da constituição de corpos, e é então aplicado por meio da ação governamental.
Poder, então, não se estabelece nem no “povo” nem nas autoridades constituídas; ele existe na
relação estabelecida entre a imaginação ou arranjo constitucional e a ação governamental.160
Com o relacionismo em mente, Loughlin passa a descrever a significação do Poder
constituinte no pensamento constitucional. Poder constituinte expressa o aspecto criador da
relação de poder político. Contrariamente à tese decisionista, ele não pode ser igualado ao
poder concreto da multidão, pois isso é uma falácia materialista, que reduz o Poder
constituinte a um fato: o Poder constituinte só existe quando aquela multidão pode projetar si
mesma não só como a expressão de uma maioria, mas da totalidade. Sem a dimensão da
representação simbólica, não há Poder constituinte, pois ele, como conceito, simboliza o
aspecto dinâmico do discurso constitucional. O Poder constituinte, porém, como afirmam
Schmitt e Sieyès, não pode ser totalmente absorvido pela ordem constituída e ser assim
igualada a uma norma fundadora: essa é a falácia normativista. A sua realização, segundo
Loughlin, não implicaria o rule of law, um sonho impossível, mas a erradicação da liberdade
política.
Indo além de Schmitt, cujo decisionismo limita-se ao momento fundador, o método
relacionista de Loughlin mostra como o momento de fundação virtual continua a funcionar
em um regime estabelecido como uma expressão do aspecto dinâmico do ordenamento
constitucional, pois ele exibe a relação de tensão entre a soberania e o soberano. O
relacionismo preceitua que o Poder ou o Direito não advém de um nada normativo, pois a
constituição formaliza preceitos de droit politique que expressam a unidade política. Em
Rousseau, Loughlin destaca que a constituição seria eventualmente corrompida pois o povo

160 Ibid. p. 18.


permaneceria uma entidade não institucionalizada, e em Schmitt, que o papel político do povo
não é exaurido pelas alocações de aferição da vontade popular. Ambos os autores estão
retirando seus argumentos da distinção entre o constitucionalismo legal e a Constituição em
si. Na visão relacionista de Loughlin, por fim, a expressão desses termos se dá pela concepção
de que o povo não institucionalizado está ali para irritar os poderes institucionais em uma
relação que criará vontade política genuína.
Da necessidade de não absorção e não institucionalização do povo advém, ademais, a
dúplice natureza do povo. Além da natureza paradoxal da fundação, o povo deve ser
interpretado tanto como uma unidade virtual (a Nação), mas também como uma entidade não
institucionalizada (a multidão, as pessoas comuns) que está em oposição às autoridades
instituídas. Em Schmitt, essa natureza está presente em sua expressão de que no Estado
burguês o povo é o proletariado, aqueles que foram deixados fora dos poderes constituídos; o
mesmo em Sieyès, em que a Nação é definida como o Terceiro Estado, que não possui
representação efetiva.
Nesses termos, o Poder constituinte em Loughlin, assim como nas teorias de Sieyès,
Schmitt e Kalyvas, só existe enquanto ele resiste a representação institucional. Ademais, o
problema da discriminação do sujeito do Poder constituinte que ressaltamos anteriormente
contra Schmitt é também constatado por Loughlin, que afirma: “O problema não é que ele [o
espaço político] é vazio [nas democracias modernas], mas que esse espaço está cheio de
reivindicadores da voz do Poder constituinte”.161 Contrariamente à intuição, por fim, ressalta-
se que esse é o seu papel: “a função do Poder constituinte é a de manter a questão de quem é o
sujeito aberta, principalmente porque o conceito de ‘o povo em um só’ é a marca indubitável
do totalitarismo.162”
Em comento à Loughlin (e em certo grau também à Kalyvas), podemos ressaltar
alguns passos dados pelo autor em seu relacionismo que já cremos estarem presentes em
Schmitt e em Kelsen.
Por certo, a distinção dos dois campos, normativismo e decisionismo, por si só facilita
a discussão e é cômoda para um artigo acadêmico não muito extenso. Em contrapartida, ela
pode ensejar algumas discrepâncias com a teoria dos autores em específico. Quando Schmitt
ressalta o ponto de começo absoluto (new beginnings), ele não está afirmando estritamente

161 Ibid. p. 20.


162 “The function of constituent power is to keep that question open, not least because ‘the people-as-one’ is the
hallmark of totalitarianism.”Ibid.
que a nova ordem legal nasce do vácuo completo, e sim que ela nasce de uma ruptura com o
regime anterior que pode se fazer completa pela adoção de novas estruturas e formas de
governo. Assim, a destituição revolucionária da monarquia para a instauração da república
marca a derrocada de um regime pelo outro, e com ela substituem-se a forma (monarquia para
república) e o sujeito soberano (do princípe para o povo), bem como o ordenamento legal
antigo. Isso se dá pelo fato do autor alemão reiterar diversas vezes que mudanças graduais
não significam a quebra do Estado, que é sempre anterior (a substituição da quarta República
Francesa pela quinta, por exemplo), e pelo fato do autor distinguir a Constituição material da
constituição escrita.
Ainda, se feita a distinção que Kalyvas enxerga na teoria de Schmitt em relação ao
estrato superior e inferior de uma Constituição, é consequente a conclusão segundo a qual a
mudança da constituição sob a mesma forma de governo não implica realmente uma mudança
efetiva, eis que a constituição escrita, nas disposições não fundamentais tem justamente este
caráter dispositivo.
Nesses termos, as críticas de Loughlin e de Kalyvas quanto o problema da
[des]continuidade do constitucionalismo de Carl Schmitt devem ser consideradas somente em
relação às influências da Constituição antiga em relação à nova. Schmitt, enxergando que a
Constituição versa sobre os direito e matérias fundamentais do regime e da unidade política,
inadmite que a Constituição anterior possa interferir de qualquer forma na nova, pois isso
seria um absurdo lógico. É esse o “normative nothingness” no qual a decisão do soberano
instaura-se; e é essa a fraqueza de sua teoria, segundo a qual não poderíamos, por exemplo,
conceber a transição do regime ditatorial brasileiro ao democrático em 1988, haja vista que a
Constituição da República de 1988 fora “autorizada” por disposição do ordenamento anterior.
Nos mesmos termos, seria difícil de se conceber tradições e progressos constitucionais em
países que tiveram múltiplas Constituições nos últimos séculos sem que se fizesse
malabarismos intelectuais ad hoc em nome da coesão interna da teoria constitucional.
Nesse tema, por fim, a teoria kelseniana é muito mais elegante. Embora a norma
fundamental mude de regime para regime (e isso não altera absolutamente nada
normativamente), a pressuposição da unidade do novo ordenamento faz com que as normas
meramente dispositivas e infraconstitucionais do antigo sejam novadas, concebendo-se uma
continuidade normativa. A condição pela qual a normatividade anterior seria novada é, por
fim, a chave de toda a teoria kelseniana, chave inclusive que, se levada a seu extremo
tautológico, consegue com facilidade afastar até as críticas de Schmitt, Loughlin e Kalyvas de
sua teoria (embora nos deixe com um extremo realismo jurídico não fundamentado): a
eficácia. A eficácia de uma norma, na teoria kelseniana, é a condição sine qua non de sua
validade e, por consequência, do restante do ordenamento jurídico. Enquanto a norma pré-
constitucional cumprir sua coercitividade (da qual a eficácia é um termômetro), ela continuará
válida e será incorporada no novo ordenamento de forma novada.163

163 KELSEN, 1949, pp. 118-19.


4. POLITIZANDO O EXTRAORDINÁRIO: O PLURALISMO DE
HANNAH ARENDT

O trabalho de Hannah Arendt em “On Revolution”164 nos permite elucidar ainda mais
a questão da realidade contra as categorias jurídicas e políticas da teoria do Estado. Àquilo
que nos concerne para este trabalho, são de especial interesse os capítulos 2, 3, 4 e 5, nos
quais a autora trabalha a separação havida entre o social e o político na modernidade, e
contrasta os experimentos revolucionários americano e francês sob a ótica da fundação e da
constituição.

4.1. A QUESTÃO SOCIAL: A DESTRUIÇÃO DO POLÍTICO

O segundo capítulo versa sobre a Questão Social, e trata portanto da definição do


social na teoria arendtiana, explorando sua contraposição ao político e o paralelismo
consequente entre a Revolução Francesa de 1789, em que o social não só existia mas foi, para
a autora, o centro da insurreição e o motivo de seu fracasso; e a Revolução Americana de
1765, em que o social não teria sido uma questão relevante.
Como avessa à política, Arendt introduz o capítulo do social com a noção da
Necessidade. A política, para Arendt, possui uma feição muito similar à de autores como Carl
Schmitt, que afastam as interpretações usuais modernas segundo as quais a política é um meio
ou instrumento de se realizar reformas sociais ou de se adotar medidas de mudança social.
Tais linhas de associação, tão intuitivas e recorrentes, são para esses autores decorrências da
banalização e da deturpação da autêntica Política pelos tempos modernos. Em Schmitt, como
ressaltamos, a Política é um campo autêntico e digno da vivência humana, intrinsecamente
valorativo e não utilitarista. Para Arendt, igualmente classicista, a Política autêntica é aquela
da ação política. A ação é o discurso público (não necessariamente um discurso formal, mas
qualquer discurso): o intercâmbio plural de ideias em um determinado espaço de ação é o
164 ARENDT, 1977.
político, e esse espaço e a ação determinam o ponto mais alto possível da liberdade humana; a
política em Arendt então é um ato heroico pelo qual o homem percebe a sua própria
existência colocando-a em jogo. Pelo seu classicismo, entende-se o racional intrinsecamente
romano trazido por Maquiavel, em que o ator político165 é um corajoso que age nas
oportunidades ofertadas pela vida, de forma contingente, sob o disfarce de Fortuna; ao
contrário do utilitário, que na teoria do autor florentino se encarna no conceito de virtú.
Consequentemente, o crivo da política autêntica é a grandeza do ato, e não a sua maior
utilidade. E em contraposição à Schmitt, por fim, a política arendtiana, como se verá, busca
ser isenta de moralidade que, em verdade, é para a autora um verdadeiro antagonista da
autenticidade.166
Por esse racional, a questão da Necessidade, do real, da miséria, daquilo que
invariavelmente aprisiona a existência humana ao banal e ao mecânico, marca mais os
eventos da Revolução Francesa que a própria busca pela fundação da liberdade ou de um
novo Estado. Durante a Revolução F., o fenômeno é aparente pela pobreza da população
francesa que se contrasta, pelo menos em foco político, a da Revolução Americana. Assim,
busca pela erradicação dos problemas que dão azo à miséria é a Questão social para Arendt.
Essa Questão social, segundo Arendt, seria hiperventilada anacronisticamente pelo
século XIX e século XX ao ponto de exaustão. Ressalta a autora que os autores e atores das
revoluções, em suas respectivas épocas, não endereçavam os pobres e marginais
necessariamente como inclusos no conceito de povo. Tanto na França quanto na América, os
pobres eram excluídos da política (apesar de não da representação). Ademais, a questão da
miséria que tanto preocuparia os autores franceses durante a Revolução era, segundo Arendt,
uma absoluta novidade no campo político. Em termos teóricos, o inconformismo que se tem
às teorias contemporâneas das classes baixas contra as superiores não seria, para o homem do
século XVIII, algo tangível.167
Em relação à teoria do Estado com o que se chamaria futuramente de social, Arendt
traz que a teoria do príncipe soberano seria substituída em forma e grau pela teoria da vontade
geral de Rousseau. Assim como em Schmitt, Arendt constata a mudança da vontade
inafastável e onipotente do rei pela vontade onipotente do povo. Essa vontade popular,

165 E aqui o destaque não é acidental. Para Arendt, a Política não é uma ciência a ser explicada
contemplativamente em termos filosóficos e teóricos, mas sim em termos teatrais, pois “o teatro é a arte política
por excelência”. Ibid. p. 138.
166 ARENDT, 1977. p. 130-151.
167 ARENDT, 1977. pp. 67-73.
ademais, tem raízes retiradas no conceito de compaixão ao outro e, com essa característica,
adquiriria uma abrangência sem limites durante a Revolução Francesa por figuras como
Robespierre. Esta virtude de compaixão e, ulteriormente, de piedade (que possui para Arendt
um caráter muito mais negativo), escancarariam as portas do político para os “les misérables”
e, com isso, o espaço político torna-se ia realmente o espaço do social.168
Dessa forma, de forma inversa à Schmitt em sua crítica ao “privatismo” liberal,
conflitos que eram para permanecer no privado vieram à praça política; conflitos que
deveriam ser a preocupação de administradores, tornaram-se matéria objeto de persuasão e de
decisão. A necessidade do povo era violenta e pré-política, e somente a violência poderia
satisfazê-la.
Em contrapartida à Revolução Americana, portanto, que buscava fundar a liberdade
(freedom) por meio de instituições duradouras (e por isso não ousava sair do corpo civil); a
Revolução Francesa buscava a libertação da Necessidade, e com isso acabou desembocando
em grandes rios de violência:
O rumo da Revolução Americana continuava comprometido com a fundação da
liberdade e o estabelecimento de instituições duradouras, e aos que atuavam nessa
direção não era permitido nada que estivesse fora do escopo do direito civil. O rumo
da Revolução Francesa, quase desde o início, foi desviado desse curso de fundação
pela imediaticidade do sofrimento; ele foi determinado pelas exigências de
libertação não da tirania, e sim da necessidade, e foi movido pela ilimitada
imensidão tanto da miséria do povo quanto da piedade inspirada por essa miséria 169

Também em contraste aos americanos, o conceito de povo em francês não era o da


massa de pluralidade. Qualquer similar desse conceito na França seria, segundo Arendt,
erradicado ao chegar nos estratos inferiores da população: os malheureux de Robespierre
eram uma multidão dirigida por uma vontade só, a de suprir as suas necessidades cabais.
Tratava-se da figura do monstro de várias cabeças que faz tudo o que quiser.
Outro aspecto em que o social, segundo Arendt, teria comprometido a Revolução
Francesa em seu intento original era aquele referente à luta contra a hipocrisia e suas
repercussões no Estado legal. Adquirindo a Revolução um claro caráter de virtude e de
carisma, seus protagonistas e observadores pautaram-se não mais no mundo de aparências que

168 Ibid. pp. 73-82.


169 ARENDT, 2013. p. 131. “The direction of the American Revolution remained committed to the foundation
of freedom and the establishment of lasting institutions, and to those who acted in this direction nothing was
permitted that would have been outside the range of civil law. The direction of the French Revolution was
deflected almost from its beginning from this course of foundation through the immediacy of suffering; it was
determined by the exigencies of liberation not from tyranny but from necessity, and it was actuated by the
limitless immensity of both the people’s misery and the pity this misery inspired.” ARENDT, 1977 p. 92.
é a política típica dos estados modernos (em que a intriga toma o centro de atuação), mas na
busca de uma essência verdadeira plasmada em atos. Com isso, a persona, instituto
característico dos regimes liberais, é abolida e, segundo Arendt, os indivíduos perderiam as
proteções que advinham dela. Aqui, novamente, faz-se alusão ao teatro para explicar o
político e o jurídico: a persona jurídica, para Arendt, é uma máscara pela qual o ator (o
indivíduo) atua no espaço público, reservando seu estado natural (sua essência) ao privado.
Com a entrada do social no meio político, essa máscara é descartada e os direitos do ator são
fundados diretamente no direito natural: assim, segundo a interpretação revolucionária, não
adquire personalidade jurídica a pessoa por ingressar na sociedade civil, ela já possui direitos
naturais inalienáveis desde o nascimento.

4.2. CONSTITUIÇÃO DA LIBERDADE: O OBJETIVO REVOLUCIONÁRIO

Conforme mencionado, o objetivo de uma Revolução é a fundação da liberdade, e essa


fundação tem que ser sucedida por uma Constituição que constitua instituições para que não
seja em vão. Esse é o tesouro revolucionário empreendido pelos americanos segundo Hannah
Arendt.170
Nesse constante, as revoluções para Arendt devem possuir começo, meio e fim, e esse
fim é a fundação da liberdade por meio da Constituição. Segue a autora que a Revolução
Francesa, ao contrário da americana, teria caído na armadilha da revolução perpétua, em que
o objetivo torna-se impossível e com isso a revolução transforma-se em um fim em si mesmo.
Trata-se de um triste paradigma do mundo contemporâneo, segundo a autora, em que as
Constituições promulgadas não seguem o sucesso das revoluções mas os seus fracassos. 171
Como efeito mais nefasto ainda, agora para o constitucionalismo em si, traz a autora que os
europeus do século XX, apesar de admirar os americanos em seu feito no século XVIII, não

170 Ibid, p. 140.


171 Ibid. p. 145.
conseguem fazer a simples distinção entre constituição como ato de governo (ato de
engenharia jurídica) e Constituição como ato fundacional.
Prosseguindo, em tema de constituição os americanos já estavam imersos em um
corpo civil, e com a revolução buscaram somente sedimentá-lo sem os ingleses. Enquanto
isso, na França, os revolucionários buscaram fundar algo completamente novo sendo que
vinham de uma realidade completamente incompatível com o objetivo original (o feudalismo
absolutista).
A sucessão de monarquia para República no caso americano, portanto, não fora
seguida de um vácuo de poder. Soma-se isso ao fato de que os americanos, atentos à natureza
do Poder, perceberam-se de que somente o Poder pode contrapor Poder. A lei, nesse sentido,
consegue somente limitar os poderes, não impedi-los. Essa foi a interpretação de Montesquieu
que fora posta em prática no caso americano e que fora ignorada no caso francês: o mero
império das leis é insuficiente para conter as vicissitudes de um Estado. O poder do
governante, quando monopolizado, é implacável e converte-se rapidamente em violência.172
Nesse sentido, os Estados Unidos, recém-egressos de uma tentativa falha de
constituição do governo (a Confederação), perceberam, ainda, que seria necessário não só a
limitação do poder monopolizado, mas o contrário: a criação de um novo poder na
constituição da União, pois a fundação do Estado jamais poderia advir da mera abstinência
(poder negativo) dos Estados à União.
Em outros termos, temos a máxima exposta por Arendt, e constatada também por
Schmitt em T.P., segundo a qual as Revoluções são determinadas pela forma de autoridade e
de poder que as precedem. Assim, as “novas” formas de poder e a fundação das novas
liberdades são canalizadas, antes de tudo, nas formas antigas recém-abolidas: “A Nação
calçou os sapatos do príncipe, mas não antes do príncipe calçar os sapatos da Igreja”. 173 Desse
axioma, novamente, resulta a distinção entre a experiência americana e francesa. Enquanto os
americanos advinham de uma monarquia já limitada, e com isso buscaram se esquivar dos
absolutos para derivar seus novos poderes (apesar de, como veremos, a questão do absoluto
ser onipresente); os franceses advinham diretamente do exemplo mais típico de monarquia
absolutista da historiografia, e com isso basearam suas teorias e atos revolucionários em suas
formas: a vontade geral é transportada e toma efeitos tal qual a antiga vontade do rei, que se
constituía, como seu antecessor o papa, como a fonte de Poder e de Direito na terra.
172 Ibid. P. 150.
173 Ibid. p. 155.
Diferentemente dos franceses nesse aspecto, portanto, Arendt dirá que os americanos
colocaram no povo o centro do poder, em consonância com Schmitt (a vontade do povo é a
vontade de Deus), mas objetivaram a fonte das leis na Constituição que assegura a fundação
da Nação.
Não se pode, porém, tomar a sucessão dos fenômenos (de igreja para monarquia, e
monarquia para soberania popular) de forma linear ou necessária, pois a sucessão do
eclesiástico feudal para o absolutismo não foi automática e tranquila, mas sim uma usurpação
real do poder da Igreja pelos reis. Esse absolutismo se desfez da tradição e da autoridade
temporal da Igreja mas, para que pudesse ter sucesso, teve que preencher o vazio criado com
as mesmas estruturas antigas, fazendo recurso a uma legitimação transmundana e
necessariamente exógena às relações humanas. Não se olvida que se trata de um meio
caminho à secularização do poder, mas também não se pode esquecer que qualquer corpo
legal instituído necessita de uma origem crível que o embase. Esse é o paradigma do absoluto
em Arendt.174
A necessidade do absoluto manifesta-se, segundo Arendt, de duas formas:
primeiramente atrelada inexoravelmente à atividade legiferante; e depois atrelada à questão
do petitio principi, à questão da fundação.
Na produção de leis, o paradigma do absoluto mantém necessário que o soberano seja
soberano, ou seja, que tanto a Nação de Sieyès quanto o príncipe absolutista não podiam
limitar-se por determinações da lei, pois na verdade eles eram a fonte de toda a legalidade:
“Essa era a razão pela qual até Blackstone teria sustentado que um ‘poder
absoluto e despótico deve residir em algum lugar em todos os governos’, em que é
óbvio que esse poder absoluto torne-se despótico quando perde a sua conexão com
uma autoridade superior a si mesmo. O fato de Blackstone chamar esse poder de
despótico indica claramente a que ponto o monarca absoluto tinha se desprendido,
não da ordem politica que comandava, mas da ordem divina ou do direito natural a
que estivera submetido antes da era moderna.”175

O segundo momento é a necessidade de um absoluto no momento fundacional, como


legitimador. Em Sieyès, Arendt afirma que o petitio principi reside como a distinção entre
poder constituinte e constituído e, depois, ao se igualar o constituinte à própria Nação,

174 Ibid. pp. 157-162.


175 “This was the reason why even Blackstone had maintained that an ‘absolute despotic power must in all
governments reside somewhere’, whereby it is obvious that this absolute power becomes despotic once it has
lost its connection with a higher power than itself. That Blackstone calls this power despotic is a clear indication
of the extent to which the absolute monarch had cut himself loose, not from the political order over which he
ruled, but from the divine or natural-law order to which he had remained subject prior to the modern age. ” Ibid.
p. 162.
necessariamente fora do tecido social e do ordenamento, no estado de natureza. Assim, Sieyès
teria resolvido tanto o problema da legitimidade dos novos poderes, o pouvoir constitué, cuja
autoridade não poderia ter sido garantida pela Assembleia Constituinte, o do pouvoir
constituant (pois a Assembleia não era ela mesma constitucional dado que era anterior à
própria Constituição); e o problema da legitimidade das novas leis que precisariam de uma lei
superior de onde derivar validade. Arendt vê que em Sieyès tanto o Direito quanto o Poder
estavam ancorados na Nação ou, melhor dizendo, na vontade nacional, que permanecia ainda
acima das instituições de governo e das leis.176
O que os revolucionários não se deram conta, porém, é que tal vontade nacional, por
não ter forma objetiva, poderia ser manipulada ao bel prazer de figuras carismáticas e que,
nesses termos, a fundação de uma República sob a noção dessa vontade nacional ou popular
era uma fundação fraca:
“A história constitucional da França poderia muito bem ser lida como um
conto monótono e repetitivo que ilustrara diversas vezes o que deveria ter sido óbvio
desde o começo: que a vontade da multidão (se esse conceito é mais que uma ficção
legal) é relativa e altera-se o tempo todo por definição, e que uma estrutura
construída sobre essa fundação é construída sobre areia movediça. O que salvou o
Estado nacional de um colapso imediato foi a facilidade extraordinária com que essa
vontade nacional podia ser manipulada em qualquer momento que alguém ousasse
tomar o fardo ou a glória da ditadura para si.”177

Em contrapartida, a Revolução americana só cristalizou o novo poder percebido entre


eles, o da autoassociação política. Assim, não derivavam a autoridade de conceitos abstratos,
mas da realidade já instituída:
Aqueles que receberam o poder de constituir, de criar Constituições, eram
delegados eleitos de corpos já constituídos; eles recebiam autoridade de baixo, e,
quando se fiaram ao princípio romano de que a sede do poder reside povo, eles não
pensaram em termos de ficção e de um absoluto, da Nação acima de toda
autoridade e absolvida de quaisquer leis, mas em termos da realidade existente:
a realidade da multidão organizada cujo poder era exercido em consonância
com as leis e limitadas pelas leis.178
176 ARENDT, 1977 p. 163.
177 “The constitutional history of France, where even during the revolution constitution followed upon
constitution while those in power were unable to enforce any of the revolutionary laws and decrees, could easily
be read as one monotonous record illustrating again and again what should have been obvious from the
beginning, namely that the so-called will of a multitude (if this is to be more than a legal fiction) is ever-
changing by definition, and that a structure built on it as its foundation is built on quicksand. What saved the
nation-state from immediate collapse and ruin was the extraordinary ease with which the national will could be
manipulated and imposed upon whenever someone was willing to take the burden or the glory of dictatorship
upon himself.” Ibid.
178 “Those who received the power to constitute, to frame constitutions, were duly elected delegates of
constituted bodies; they received their authority from below, and when they held fast to the Roman principle that
the seat of power lay in the people, they did not think in terms of a fiction and an absolute, the nation above all
authority and absolved from all laws, but in terms of a working reality, the organized multitude whose power
was exerted in accordance with laws and limited by them.” Ibid. p. 166.
Assim, Arendt enxerga a fundação da República americana como um fenômeno em
que os revolucionários agiram para fundar um corpo político com base na realidade colonial
já existente, respeitando as fontes de poder concebidas nas assembleias e condados locais, em
vez de embasá-la em uma inovação abstrata, em que se busca marcar um novo começo em
absoluto:
“(...)tivesse a convenção federal, em vez de criar e constituir um novo poder
federal, escolhido limitar e abolir o poder dos estados, os fundadores teriam
descoberto imediatamente as perplexidades de seus colegas franceses; eles teriam
perdido o seu Poder Constituinte (...) Não só foi o sistema federal a única
alternativa para o princípio do Estado nacional; ele foi também o único meio de
se evitar a armadilha do círculo vicioso do poder constituinte e do poder
constituído”.179

(...)

Esses novos corpos políticos realmente eram “sociedades políticas”,e sua


grande importância para o futuro consistia na formação de uma esfera política
que gozava de poder e estava habilitada a reivindicar direitos sem possuir ou
reivindicar soberania.”180

Tratando a experiência americana à luz das teorias contratualistas vigentes no século


XVIII, Arendt atesta a existência de dois veios que são negligenciados por autores
universalistas. A primeira, a consensual, é a que vê o contrato social de forma consensual, em
que o pacto seria formado entre iguais para instituir a sociedade; já na segunda, a autoritária,
em que o pacto é a concessão de chancela ao governante pelos governados. Notavelmente, a
experiência americana corresponde à consensual.
A forma consensual corresponde ao ato de vinculação inter-homines para a formação
de uma comunidade baseada na reciprocidade, pressupondo igualdade. O seu conteúdo é uma
promessa, e o seu resultado é a formação de uma societas, no sentido original romano, de
aliança.
O segundo, todavia, é um ato aborígene entre a sociedade e o governante que recebeu
o seu poder, renunciando-se o poder individual de cada membro e meramente expressando
enfim o seu “consentimento”. Aqui, a soma total de todos os consentimentos formaria o poder
do governante, como à imagem do Leviatã de Hobbes.
179 “(…)had the federal convention, instead of creating and constituting a new federal power, chosen to curtail
and abolish the state’s power, the founders would have met immediately the perplexities of their French
colleagues; they would have lost their pouvoir constituent (…) Not only was the federal system the sole
alternative to the nation-state principle; it was also the only way not to be trapped in the vicious circle of pouvoir
constituant and pouvoir constitué”. Ibid. pp. 165-6. Grifos nossos.
180 ARENDT, 2013, p.220. “These new bodies politic really were ‘political societies’, and their great
importance for the future lay in the formation of a political realm that enjoyed power and was entitles to claim
rights without possessing or claiming sovereignty” ARENDT, 1977. 168. Grifos nossos.
Ambas as teorias são claramente antagônicas na medida em que o indivíduo, no
sistema de alianças, ganha tando poder quanto perde no consentimento; ao mesmo tempo que,
por reciprocidade, o mesmo indivíduo no meio consensual renuncia o seu isolamento, no
meio oposto o mantém. Nesses termos, o pacto de societas é necessariamente imbuído de
alteridade, enquanto o do consentimento é secreto. Nisso, por fim, temos que o pacto de
alteridade em uma República dá forma ao próprio governo e afasta a questão da
identidade entre governante e governando, sendo assim a expressão máxima do potestas
in populo romano. Não obstante, ambas as teorias são, conforme Arendt, decorrentes de
ficções:
Ademais, em teoria, os dois contratos eram ficções, explicações fictícias de
relações existentes entre os membros de uma comunidade chamada sociedade, ou
entre esta sociedade e seu governo; e, embora seja possível rastrear a história das
ficções teóricas até um passado muito remoto, nunca tinha existido nenhum caso,
antes do empreendimento colonial do povo britânico, que apresentasse a mais
remota possibilidade de comprovar a validade de tais ficções na realidade
concreta.181

Nesse sentido, a inovação americana sintetiza, para Arendt, o conceito de ação:


faculdade humana que necessita de pluralidade. O agregamento dos colonos em ação política
possibilitou a criação de uma nova forma de poder, e esse poder foi mutuamente mantido pela
organização dos membros em societas. Esse agregamento (convenant), ademais, torna-se
imperioso e consequência do desbravamento do novo mundo: não é um esforço teórico.182
O sistema de alianças e o ato de fazer promessas tratam-se para Arendt, assim, dos
primórdios do ato fundacional, constituindo as estruturas pelo poder da ação política. Da
mesma forma que as promessas, o ato fundacional também lida com a estabilização face um
futuro incerto. A gramática da ação com a sintaxe do poder, então, constituem o ato
fundacional, a maior faculdade política do homem:
A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que requer uma
pluralidade de homens; a sintaxe do poder: o poder é o único atributo humano que se
aplica exclusivamente ao entremeio mundano onde os homens se relacionam entre

181 ARENDT, 2013. p. 222. “In theory, moreover, both contracts were fictions, the fictitious explanations of
existing relationships between the members of a community called society, or between this society and its
government; and while the history of the theoretical fictions can be traced back deep into the past, there had been
no instance, prior to the colonial enterprise of the British people, when even a remote possibility of testing their
validity in actual fact had presented itself.” ARENDT, 1977. p. 170.
182 What prompted the colonists ‘solemnly and mutually in the Presence of God and one another, [to] covenant
and combine ourselves together into a civil Body Politick; and by virtue hereof [to] enact, constitute, and frame,
such just and equal Laws, Ordinances, Acts, Constitutions, and Offices, from time to time, as shall be thought
most meet and convenient for the general Good of the Colony; unto which we promise all due Submission and
Obedience’ (as the Mayflower Compact has it), were the ‘difficulties and discouragements which in all
probabilities must be forecast upon the execution of this business’. ARENDT, 1977 p. 167.
si, unindo-se no ato de fundação em virtude de fazer e manter promessas, o que, na
esfera da política, é provavelmente a faculdade humana suprema. 183

A conquista americana fora, por fim, o perceber de que, com o rompimento com a
Coroa britânica e a consequente abolição das leis e constituição britânicas, eles precisariam
não de um novo poder, mas de uma nova fonte de autoridade, pois a criação de poder não
lhes era estranha.
Em contraposição a tudo isso, na França, Arendt enxerga que não haviam corpos
políticos constituídos anteriormente à Constituição que pudessem conduzir a revolução para
uma direção razoável, pois os que existiam eram decorrentes de uma realidade estamental.
Assim, a deposição do Rei na França lançou o país verdadeiramente em um estado de
natureza (enquanto que na América a rebelião só privou os americanos de seus direitos como
servos ingleses e de seus governadores).
A prática francesa, aliada à teoria vigente da época, buscou colocar todo o poder no
povo (e a deificação do povo é a consequência de se derivar tanto o Direito quanto o Poder da
mesma fonte), concebendo-o como volonté générale, mas plasmando a efetividade em
violência, que não constitui nada. De forma oposta, nos EUA, o passo necessário de descobrir
a nova fonte de autoridade concretizou-se com a conclusão de que, inversamente ao caso
francês, a fonte de autoridade (ao contrário do poder) vem de cima, não de baixo.
A lei fundamental que concede autoridade ao législateur na teoria de Rousseau é o
grande desafio apresentado ao autor (e corresponde em Arendt, novamente, à questão do
absoluto), que representa verdadeiramente o paradoxo fundacional: como criar a lei
fundamental que dá autoridade para legislar sobre o ordinário, sem que se tenha anteriormente
qualquer autoridade para isso? A solução passa, segundo Arendt, pelo apelo deístico, presente
em ambas as revoluções: para estabelecer-se a validade das leis humanas, “il fraudrait des
dieux”. Assim, o verdadeiro problema da política, nas palavras do francês, é o de fundar um
governo em que as leis estão acima dos homens.
Em contrapartida a todos esses paradigmas, Arendt atesta a experiência grega e a
romana, nas quais não se precisava de um recurso transcendental para legislar. No caso grego,
o legislador estava fora da pólis, e sua influência era pré-política (mas nem por isso ele se

183 ARENDT, 2013, p. 228. “The grammar of action: that action is the only human faculty that demands a
plurality of men; and the syntax of power: that power is the only human attribute which applies solely to the
worldly in-between space by which men are mutually related, combine in the act of foundation by virtue of the
making and the keeping of promises, which, in the realm of politics, may well be the highest human faculty.”
ARENDT, 1977 p. 175.
esquivava das leis que produzia). Já para os romanos, a lex seria algo completamente
mundano, correspondente de forma etimológica à ligação entre uma coisa e outra. Seria feita,
então, somente para regrar problemas banais, ainda que suas concepções de autoridade
passavam pela aprovação divina: a lex existia para dar coesão ao cenário político depois da
incursão romana no Lácio, pois antes disso essas leis não existiam; o ato legislativo romano,
ademais, teria o intuito de espalhar a pax romana, tal seja, o sistema de alianças feitos após a
derrota de um povo pelos romanos, e a sucessiva integração desse povo vencido à societas
romana. Por todos os motivos, a noção de um legislador, como o constituinte moderno, que
legisla e está acima de sua legislação não só era estranha aos antigos, como seria prontamente
atrelada à tirania em Roma.184
Dessas conceituações, Arendt conclui que o recurso à legitimidade das Leis era
necessário somente por conta da tradição absolutista. E ainda nesse contexto, confessa que até
os “founding fathers”, como homens de seu tempo, eram igualmente deístas e concebiam a
necessidade de uma legitimação transcendental em seus textos. Para Arendt, a expressão “we
hold these truths to be self evident” presente na Declaração de Independência possuía um
sentido irracionalista, tão axiomático quanto absolutista.
Nesse ponto, embora a prática vista pelos revolucionários americanos indicassem uma
fuga do paradigma do absoluto e da armadilha de um começo completamente novo, é de se
destacar que as teorias jurídicas e políticas da época, concebidas em termos de direito natural,
possuíam uma origem teocrática na lei divina hebraica, que se transfigura naquele direito
natural: o modelo jurídico ocidental se baseia na autoridade espiritual emanada do criador do
universo, Deus, e que é repassada para seus vicários (com o Papa sendo a maior figura) para
depois, por usurpação, ser repassada aos Reis.185
Consequentemente, não se evita o absoluto na América por falta de uma tradição
política ou histórica, ou pelo fato de se ter corpos já constituídos: o absoluto se faz presente
inerentemente à questão legal pelo fato da tradição Ocidental interpretar a norma como
comando, exigindo uma exegese divina à validade. Por essas razões, os founding fathers
teriam, na concepção de Arendt, plasmado-se nos antigos não por tradição, que usualmente
correspondia à Igreja e que não lhes foi dada no contexto americano, mas por inovação:
precisavam de um paralelo para se inspirar.

184 Ibid. pp. 179-188.


185 Ibid. pp. 189-194.
Quando Saint-Just exclamou: “O mundo está vazio desde os romanos, e está
ocupado apenas com a memória deles, que agora é nossa única profecia de
liberdade”, estava retomando Iohn Adams, para quem “a Constituição romana
formou o povo mais nobre e o poder mais grandioso que jamais existiram”, (…)
Comentei como era estranho esse entusiasmo pelos antigos, como destoava dos
tempos modernos, como era inesperado que os homens das revoluções recorressem
a um passado remoto que fora denunciado com tanta veemência pelos cientistas e
filósofos do século XVII. (…) bem podemos concluir que, sem o exemplo clássico
reluzindo pelos séculos, nenhum dos homens das revoluções dos dois lados do
Atlântico teria tido a coragem para aquilo que se demonstrou ser uma ação sem
precedentes.186

Relacionado ao contexto romano, ademais, Arendt traça o conceito etimológico de


religião da palavra religare, denotando o conceito originário de auctoritas187 e de como os
romanos viam a sua própria República. Do que importa o conceito de autoridade romana para
esta pesquisa é que se tratava de um instituto central na República romana. Manifesta-se no
senado republicano, que por meio da auctoritas conferida aos seus membros e seu próprio
papel institucional, funcionava à semelhança de um poder moderador, tutelando e restringindo
os demais poderes monárquicos e populares188 por meio reconhecimento que esses detinham
do órgão189. E manifesta-se na religião e na cultura conservadora romana, onde a auctoritas se
extrai da sua etimologia de augere, correspondendo à habitualidade e sacralidade com que os
romanos tratavam o passado.190
Diferentemente então do exemplo diretamente deístico que Schmitt e Arendt
constatam em teóricos como Rousseau e nos homens da Revolução Francesa, a religiosidade
dos americanos com a Constituição não seria mirada no exemplo judaico-cristão de
186 ARENDT, 2013, p. 253.“When Saint-Just exclaimed, ‘The world has been empty since the Romans and is
filled only with their memory, which is now our only prophecy of freedom’, he was echoing John Adams, to
whom ‘the Roman constitution formed the noblest people and the greatest power that has ever existed’, just as
Paine’s remark was preceded by James Wilson’s prediction that ‘the glory of America will rival—it will
outshine the glory of Greece’.I have mentioned how strange this enthusiasm for the ancients actually was, how
out of tune with the modern age, how unexpected that the men of the revolutions should turn to a distant past
which had been so vehemently denounced by the scientists and the philosophers of the seventeenth century.(…)
we may well come to the conclusion that, without the classical example shining through the centuries, none of
the men of the revolutions on either side of the Atlantic would have possessed the courage for what then turned
out to be unpreccdented action.” ARENDT, 1977. p. 196
187 O tema da auctoritas em Arendt é melhor trabalhado em sua obra “Between Past and Future” (ARENDT,
2006), e já foi trabalhado por nós em oportunidade de Iniciação Científica.
188 E sendo influenciado por eles, em maior ou menor escala. Cfr. LINTOTT, 1999, p.208ss.
189 The senate, it may be said, without the magistrates' executive power would have been an impressive but
ineffective torso. However, while this image reflects the importance of magistrates to the senate and the
dependence of magistrates on the senate which Polybius described, it does not do justice to the fact that the
functions of the senate were called into being by the power of the magistrates. The senate's influence resulted
from the need to check and co-ordinate that power in the interest of the efficient administration of Rome's
affairs and of the coherence of the aristocracy. The senate was the natural forum for common policies to
be formed and differences between aristocrats to be brokered and reconciled. Its political weight fulfilled
both a constitutional and a social need. LINTOTT, 1999, p. 174
190 Também presente em “What is Authority?” de ARENDT, 1961, pp. 91-143.
divindade, mas no sentido romano de religio, de religar os atos à fundação. Isso porque em
Roma, a autoridade não residia nas leis, e a validade dessas leis não derivava de uma
autoridade acima delas. Ela era, na verdade, incorporada em uma instituição política, o senado
romano – potestas in populo, mas auctoritas in senatu.191
Os americanos, todavia, perceberam a impossibilidade do senado americano, como
uma câmara legislativa, ser o centro de autoridade da República, e conceberam então, nas
palavras de Hamilton, que “a majestade da autoridade nacional deve se manifestar por meio
das cortes de justiça”192, pois esse era o único ramo de governo que não podia exercer poder.
Dessa forma, embora os americanos tivessem se inspirado nas instituições romanas, eles
divergiam na realidade jurídica e hermenêutica:
Mas, se a diferenciação institucional americana entre poder e autoridade
possui traços nitidamente romanos, por outro lado seu conceito de autoridade é
completamente diverso. Em Roma, a função da autoridade era política e consistia
em dar conselhos193, ao passo que na república americana a função da autoridade é
jurídica e consiste na interpretação. 194

Como conclusão à questão do absoluto na experiência americana então, temos que a


derivação da autoridade exógena é recolocada na Constituição, fruto político de uma realidade
que não é nem necessariamente virtual (o povo como categoria abstrata como a Nação em
Sieyès e em Schmitt, inicialmente), e nem divina: “a Suprema Corte deriva a sua autoridade
da Constituição como um documento escrito (…)”.195 A Constituição americana, conclusão de
todo o esforço revolucionário americano, é tanto um documento escrito quanto uma realidade
jurídica representativa. Em sua materialidade é a forma dos direitos e do status político
americano, que é anterior à Constituição e se aumenta graças a ela (relembremos, a Federação
é um novo poder fruto de uma canalização “from the ground up”). Ela é, por fim, a fonte
máxima de autoridade do sistema jurídico e político porque representa os ideais
revolucionários:

191 ARENDT, 1977, p. 199. Arendt aqui cita Cícero em De leges; “Cum potestas in populo auctoritas in senatu
sit” De leg. 3. 28.
192 HAMILTON apud ARENDT, ibid. p. 200. Também em HAMILTON, 2003, p. 74 (O Federalista nº 16).
193 Trata-se de uma simplificação de Arendt. Como pudemos estudar em trabalho prévio, as responsas que os
jurisconsultos e o senado promoviam eram definitivamente conselhos mas, no caso dos jurisconsultos, a
autoridade vista era eminentemente jurídica e limitava-se exclusivamente a problemas de direito quiritário. Cfr.
DOMINGO, 1999.
194 ARENDT, 2013 p. 258. “However, while the American institutional differentiation between power and
authority bears distinctly Roman traits, its own concept of authority is clearly entirely different. In Rome, the
function of authority was political, and it consisted in giving advice, while in the American republic the function
of authority is legal, and it consists in interpretation.” ARENDT, 1977. p. 200.
195 Ibid.
“O próprio fato de que os homens da Revolução Americana se vissem como
‘fundadores’ indica até que ponto eles deviam saber que seria o ato de fundação
em si, e não um Legislador Imortal, uma verdade autoevidente ou qualquer
outra fonte transcendente. E supraterrena, que acabaria por se tornar a fonte
de autoridade no novo corpo político.”196

No mais, a fundação americana é um ato que, segundo o espírito romano encarnado


pelos revolucionários, seria o fruto de incrementação e vinculação futuras:
A questão é muito mais simples: eles se consideravam fundadores porque haviam
decidido conscientemente imitar o exemplo romano e emular o espírito romano.
Quando Madison fala dos “sucessores” aos quais “caberá […] aperfeiçoar e
perpetuar” o grande projeto formado pelos ancestrais, ele previa “aquela veneração
que o tempo confere a todas as coisas, e sem a qual o governo mais sábio e mais
livre não possui a estabilidade requerida’197

Ademais, a teoria da fundação em Arendt baseia-se na concepção de que


principiologia americana de Poder e de República eram importações trazidas de Roma. A
redenção americana em relação ao problema do absoluto em novos começos está, portanto, na
dualidade trazida pelo conceito de princípio nas línguas latinas e grega, em que começo é
regra estruturante e vinculante de um sistema normativo: o começo vincula o final e a si
mesmo, por ser tanto princípio simbólico da fundação e por ser uma regra que impulsiona a
teleologia fundacional até o presente das relações políticas e jurídicas.
(…) Como tal, o princípio inspira os atos que se seguirão e continua a
aparecer enquanto dura a ação. E não é apenas nossa língua que ainda deriva o
“princípio” do latim principium, sugerindo assim tal solução para o problema que,
de outra maneira, seria insolúvel, a saber, o problema de um absoluto na esfera dos
assuntos humanos, que é relativa por definição; o idioma grego, numa semelhança
impressionante, diz a mesma coisa. Pois a palavra grega para início é αρχή e αρχή
significa ao mesmo tempo início e princípio. Nenhum poeta ou filósofo posterior
exprimiu o significado profundo dessa coincidência com maior beleza e concisão do
que Platão quando, no final da vida, observou de maneira quase fortuita: (...) ‘Pois o
início, porque contém seu próprio princípio, é também um deus que, enquanto mora
entre os homens, enquanto inspira seus feitos, a tudo salva’. É a mesma experiência
que, séculos mais tarde, fez Políbio dizer: “O início não é meramente a metade do
todo, mas se estende ao fim”. E foi também a mesma percepção da identidade entre
principium e princípio que finalmente persuadiu a comunidade americana a buscar
‘em suas origens uma explicação de suas qualidades próprias e, assim, uma
indicação do que traria seu futuro’”198

196 ARENDT, 2013. p. 262 “The very fact that the men of the American Revolution thought of themselves as
‘founders’ indicates the extent to which they must have known that it would be the act of foundation itself, rather
than an Immortal Legislator or self-evident truth or any other transcendent, transmundane source, which
eventually would become the fountain of authority in the new body politic.” ARENDT, 1977 p. 204.
197 ARENDT, 2013. p. 261. “The fact of the matter is much simpler: they thought of themselves as founders
because they had consciously set out to imitate the Roman example and to emulate the Roman spirit. When
Madison speaks of the ‘successors’ on whom it will be ‘incumbent ,,,to improve and perpetuate’ the great design
formed by the ancestors, he anticipated ‘that veneration which time bestows on every thing, and without which
the wisest and freest government would not possess the requisite stability’.” MADISON Apud ARENDT, p. 203
(O federalista nº 14 e 49).
Em conclusão, a solução americana para o paradoxo fundacional foi, então, a de não
“principiar” sua fundação com a violência (que jamais se confunde com autoridade), ou com
um absoluto que legitima o sistema jurídico ou político, mas com a pluralidade:
“Por grandiosas e significativas que sejam tais percepções, elas só passam a
se aplicar à esfera política depois de se reconhecer que estão em flagrante oposição
com as velhas noções, mas ainda correntes, sobre o papel dominante da violência,
necessária para todas as fundações e, portanto, supostamente inevitável em todas as
revoluções. Sob este aspecto, o curso da Revolução Americana conta uma história
inesquecível e pode ensinar uma lição sem igual; pois essa revolução não eclodiu,
mas foi feita por homens deliberando em conjunto e com a força dos compromissos
mútuos. O princípio que veio à luz naqueles anos cruciais quando foram lançadas as
fundações — não pela força de um arquiteto, mas pelo poder somado de muitos —
era o princípio da promessa mútua e da delibe¬ ração comum; e de fato foi o próprio
acontecimento que decidiu, como havia insistido Hamilton, que os homens “são
realmente capazes [...] de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da
escolha”, que não estão “destinados para sempre a depender do acaso e da força para
suas constituições políticas”.”199

4.3. MEL A. TOPF: ALGUMAS RESSALVAS NECESSÁRIAS.

198 ARENDT, 2013. pp. 272-273. “(…) As such, the principle inspires the deeds that are to follow and remains
apparent as long as the action lasts. And it is not only our own language which still derives ‘principle’ from the
Latin principium and therefore suggests this solution for the otherwise unsolvable problem of an absolute in the
realm of human affairs which is relative by definition; the Greek language, in striking agreement, tells the same
story. For the Greek word for beginning is αρχή,, and αρχή, means both beginning and principle. No later poet or
philosopher has expressed the innermost meaning of this coincidence more beautifully and more succinctly than
Plato when, at the end of his life, he remarked almost casually (...)‘For the beginning, because it contains its own
principle, is also a god who, as long as he dwells among men, as long as he inspires their deeds, saves
everything.’ It was the same experience which centuries later made Polybius say, ‘The beginning is not merely
half of the whole but reaches out towards the end.’ And it was still the same insight into the identity of
principium and principle which eventually persuaded the American community to look ‘to its origins for an
explanation of its distinctive qualities and thus for an indication of what its future should hold’.” ARENDT,
1977. p. 213. Grifos nossos.
199 ARENDT, 2013. p. 273. “Great and significant as these insights are, their political relevance comes to light
only when it has been recognized that they stand in flagrant opposition to the age-old and still current notions of
the dictating violence, necessary for all foundations and hence supposedly unavoidable in all revolutions. In this
respect, the course of the American Revolution tells an unforgettable story and is apt to teach a unique lesson;
for this revolution did not break out but was made by men in common deliberation and on the strength of mutual
pledges. The principle which came to light during those fateful years when the foundations were laid—not by
the strength of one architect but by the combined power of the many—was the interconnected principle of
mutual promise and common deliberation; and the event itself decided indeed, as Hamilton had insisted, that
men ‘are really capable of establishing good government from reflection and choice’, that they are not ‘forever
destined to depend for their political constitutions on accident and force’.” ARENDT, 1977. pp. 213-4.
Mel A Topf, em seu artigo “Hannah Arendt and the Problem of Legitimacy and
Stability in Constitutional Consolidation”200, traz algumas críticas à exposição de Arendt em
On Revolution que consideramos pertinentes.
Primeiramente, o autor destaca que Hannah Arendt ulteriormente falha em demonstrar
concretude do momento fundacional que tanto destaca, colocando a realização do fenômeno
como algo “quase mágico”. E de fato, a leitura enviesada da obra de Arendt pode caracterizar
um anacronismo e simplificação dos eventos transcorridos na Revolução americana.
Em mesma nota, Kalyvas, por exemplo, cita as colocações de George Lichtheim em
1964 em comento à obra arendtiana, em que é destacada a tendência da autora em discutir
tópicos políticos em termos filosóficos, e vice-versa, até que a distinção entre metafísica e
política é totalmente perdida ou mitigada em um crepúsculo no qual não importa mais se
estamos lidando com os eventos reais, as ideologias contemporâneas dos autores sobre os
eventos, ou as reflexões subsequentes de autores distantes dos revolucionários originais. Um
ano depois, até Eric Hobsbawn faria duras críticas ao livro, ressaltando que a autora possui
uma preferência por constructos metafísicos à descrição da realidade fática.201
Ademais, Topf destaca ainda que eventos centrais à teoria de Arendt foram
exagerados ou mal interpretados pela autora. O Mayflower compact, por exemplo, que serve
de síntese a toda a hipótese de Arendt acerca da capacidade de autoassociação americana e do
poder na América colonial de organizar-se de baixo para cima (e não o contrário, como na
França), seria, enfim, irrelevante no teor revolucionário, e não seria a forma pela qual os
próprios colonizadores concebiam a realidade: Topf destaca que os americanos de então eram
explicitamente conscientes de que estavam criando organizações de governo sob a chancela
direta do Rei.202 A atuação dos americanos durante a revolução seria, por fim, muito mais
próxima ao conceito de fabricação exposto por Arendt que ao de ação, que supõe inovação,
pois os revolucionários, durante a febre de “constitucional making”, vinculavam-se não
menos que os seus colegas franceses nos paradigmas de uma legitimação externa e superior, e
não se distanciavam muito das fontes teóricas trabalhadas na França.203
Não obstante essas críticas, enxergamos na construção de Arendt uma teoria que,
apesar de confusa e anacrônica, pode simbolizar sim uma fuga do problema do absoluto pelo

200 TOPF, 2019.


201 KALYVAS, 2008, pp. 187-9.
202 TOPF, 2019, pp. 63-66.
203 Ibid. pp. 61-71.
concreto (ao menos em termos teóricos), principalmente se considerada em contraposição à
suposições mais reducionistas como a de Schmitt, que pressupõe unidade política na
fundação. Assim, aliada Arendt com teorias como o relacionismo de Loughlin (que é,
confessamos, incompatível em partes com a da autora), podemos conceber um leque maior de
teorias pluralistas acerca dos princípios constitucionais de um regime político ou de um
Estado. A teoria arendtiana como guia de concretização ou realização da teoria decisionista de
Schmitt é, ademais, a tese final de Kalyvas no trabalho supracitado.

4.4. DOMANDO O EXTRAORDINÁRIO: H. ARENDT COMO UMA RESPOSTA À


CARL SCHMITT.

A conclusão da obra de Kalyvas é extremamente pertinente ao tema pois o autor


coloca Arendt como a ponte entre Weber e Schmitt no que concerne eventos extraordinários,
nem os reconduzindo à irracionalidade nem os assumindo absolutos, pois tanto Arendt quanto
Schmitt apontam para o fim do tradicionalismo pelo secular, o fim da autoridade
transcendental e a emergência do Povo como único ator político legítimo; mas Arendt, ao
contrário de Schmitt, coloca a questão da soberania fora da fundação da República: “the
people” nos EUA detinha uma noção de pluralidade.
Arendt, para Kalyvas, dá o passo necessário além de Schmitt, visualizando o problema
totalitário em começos absolutos, consideradas as suas origens teológicas por uma vontade
soberana. A teoria da autora colocaria o extraordinário de duas formas: de um lado, a política
extraordinária é intimamente ligada à liberdade da mesma forma que o processo de criar uma
ordem constitucional é sinônimo de um poder originador que cria um espaço político novo; de
outro, a política extraordinária é confrontada com o problema da autoridade e do
reconhecimento, e esse reconhecimento não pode depender somente na arbitrariedade e na
vontade dos fundadores, o que muitas vezes implica a fundamentação no absoluto.
Assim, a liberdade em Arendt é difusa. Pode ser relacionada primeiramente à
concepção grega, de ser livre da necessidade (concepção da pólis ateniense); e à liberdade
política, vista como a possibilidade de fundar novos começos coletivamente. Para Arendt, a
liberdade moderna é associada com o agir revolucionário (não obstante Topf considerar que
isso seria fabricação), de estabelecer fundações e o de constituir constituições. 204 O conceito
de liberdade em Arendt, portanto, pressupõe autodeterminação, a capacidade de uma
comunidade de indivíduos livres de criar as fundações políticas e legais que os governarão,
sem apelar a autoridades transcendentais ou metafísicas (não obstante a fundamentação
essencialmente metafísica de Arendt). E implícita nessa formulação de liberdade está a
concepção de que durante momentos de política extraordinária os indivíduos se veem como
agentes e como fundadores de seu próprio mundo político 205. A teoria política de Arendt é,
enfim, sobre a agência humana.
E com as noções de liberdade e de pluralidade em mente, Kalyvas vê que Arendt
execra a concepção de soberania clássica, pois a vê como uma relíquia absolutista que passa
aos termos populares, mas, ao contrário de Schmitt (que ainda vê em Hobbes o cristal do
decisionismo teológico)206, nem por isso passa a denotar algo positivo. O conceito unificante
da soberania popular possui, portanto, feição totalitária à Arendt, e significa a negação da
pluralidade e, assim, da República e da política. “A infeliz decisão pela qual ‘os homens da
Revolução Francesa colocaram o povo no trono do rei’ foi em parte responsável pela tragédia
francesa”.207
Assim, a soberania popular, bem como o seu endosso em Schmitt em forma da
opinião pública homogênea e expressa em termos de “sim” e “não”, “the people as One”, são
o problema da vontade absoluta:
“O problema com uma vontade coletiva absoluta, colocada como ‘um corpo
sobrenatural dirigido por uma ‘vontade geral’’ irresistível e super-humana, é que,
em contraste a uma constelação de opiniões plurais, ela cultiva o mesmo, resultando
no fato de que ‘não há mediação possível entre vontades como há com opiniões… a
vontade geral não era nada mais nada menos do que aquilo que vinculava muitos em
um só’. O que é único sobre o político, notadamente a sua pluralidade, é erradicado.
A ideia de um soberano popular ‘exclui todos os processos de câmbio de opiniões e
de um eventual consenso entre eles’”208

Sintetizando as consequências da ficção da soberania popular em substituir a vontade


do rei, como fizemos, Kalyvas aponta em Arendt que (i) ela cria um vácuo legal que
despersonifica as pessoas juridicamente, jogando-as em um estado de natureza em que não há

204 KALYVAS, 2008, p. 203.


205 Ibid. p. 204.
206 SOLON, 1997, p. 84.
207 ARENDT apud KALYVAS, p. 213.
208 ARENDT apud KALYVAS, p. 212.
proteção legal. A soberania popular pode tudo. Possui, assim, as consequências totalitárias da
volatilidade: a soberania popular aprisiona-se em sua própria ilusão de onipotência e nunca
sai dos primórdios do extraordinário, pois sem regulação ou limitação, o soberano fica
vulnerável às suas próprias arbitrariedades, até que finalmente mergulha no terror.209
A soberania popular, ademais, (ii) aniquila o dissenso de opinião e, com isso, o espaço
do público, pois enquanto que na Revolução Americana se dava oportunidade ao dissenso
(que era até encorajado), a Revolução Francesa manejava a opinião popular como uníssona e
contra qualquer oposição.
Em suma, Kalyvas vê em Arendt uma teoria do Constituinte que não pressupõe uma
unidade totalitária ou uma descontinuidade com o absolutamente novo, que prioriza uma
fundação vinculante ao futuro e plural por excelência:
Esse argumento é extremamente esclarecedor por mais uma razão. Ele
mostra que Arendt não desconsiderava a noção usual do Poder Constituinte. Como
Negri já pontuou, “Arendt nos deu a mais clara imagem do Poder Constituinte em
sua radicalidade e em sua força.”. Ela rejeitava a versão de Sieyès (e a de Schmitt)
do Poder Constituinte, que identificava com a Nação soberana ou com a vontade
popular, localizando-a em um estado de natureza sem Direito. Contrariamente a essa
versão, ela buscou descentralizar o Poder Constituinte ao relocá-lo dentro da
multiplicidade e espaços públicos. A singularidade da Revolução Americana,
pregava, derivava-se do fato “de que nunca houve qualquer questionamento sério do
pouvoir constiutuant daqueles que elaboraram as constituições estaduais”. Em vez
de substituir a qualidade extensiva e plural do Poder Constituinte com uma vontade
absoluta e sem norma, os revolucionários Americanos aceitaram e integraram o seu
sistema federativo em vários locais, em “uma série de corpos subordinados
devidamente autorizados – distritos, condados, municípios”. E por fazê-lo dessa
forma, os Americanos realizaram duas coisas: primeiro, eles efetivamente
desvincularam o Poder Constituinte da soberania, relocando-o em uma série de
assembleias pré-constituídas; e, segundo, eles o vincularam aos processos de
deliberação, aos de mútua persuasão, ao de diálogo público decisório.” 210

209 Ibid. p. 220.


210 “This argument is extremely illuminating for one additional reason. It shows that Arendt did not dismiss the
notion of the constituent power as it has been argued. As Negri has correctly pointed out, “Arendt has given us
the clearest image of constituent power in its radicalness and strength.” She rejected Sieyes’s (and Schmitt’s)
version of constituent power, which she had identified with the sovereign nation or a popular will and located it
in a lawless natural state. Contrary to this version, she sought to decenter the constituent power by relocating it
within a multitude of participatory public spaces. The uniqueness of the American Revolution, she claimed, was
derived from the fact “that there never was any serious questioning of the pouvoir constituant of those who
framed the state constitutions.” Instead of seeking to replace the extensive and plural quality of the constituent
power with an absolute, normless will, the American revolutionaries accepted and integrated into their federal
system its multiple sites, in “a number of subordinate, duly authorized bodies – districts, counties,
townships.”By doing so, the Americans accomplished two things: first, they effectively uncoupled the
constituent power from sovereignty, relocating it in multiple preconstituted assemblies; and, second, they tied it
to processes of deliberation, mutual persuasion, and public dialogue, that is, to processes of discursive opinion
formation and decision making.” Arendt et NEGRI apud KALYVAS, Ibid. p. 228.
CONCLUSÕES

O conceito de Poder Constituinte, não obstante as suas raízes medievais, toma a feição
contemporânea efetivamente com a Revolução Francesa pelas ideias de Emmanuel de Sieyès.
O autor buscava, com a enunciação da teoria, superar a realidade estamental que vivenciava o
reino Francês à época, e por isso constata uma noção de poder que pressupõe a origem do
poder nas características substantivas daquilo que considerará uma Nação, para então
localizá-lo nos sujeitos que constroem essa realidade material, o Terceiro Estado.
Sieyès concebe o ordenamento jurídico e a Constituição como forma do que já se tem
em realidade, a totalidade do Terceiro Estado. Mas, longe de desnecessária, a forma jurídica
em Sieyès é a constitutividade que o Terceiro Estado não tinha até então. O “nada” que era na
história francesa deve ser entendido dessa maneira, como uma usurpação de direitos pela
espada e pela toga.
O ideário proposto por Sieyès é, portanto, fundamental para a teoria posterior de
Schmitt, pois várias categorias e ideias do francês passarão, forma e grau, para o autor
alemão. Noções como a da inapreensibilidade do Constituinte à ordem institucional, dado que
ele é anterior a ela por definição; a definição de Nação por um substrato homogenizante
(ainda que formal) etc. Ironicamente, em contraste à Arendt e Kalyvas, Sieyès, ainda que um
autor do extraordinário, é um marco para o liberalismo constitucional que Schmitt criticará
um século depois.
Sieyès reduz a atuação política do Poder constituinte à legislatura por um
pragmatismo logístico extremamente simples, e dessa maneira limita a atuação popular às
formas constituídas. Essa redução, marca do liberalismo constitucional, é também a fonte de
seu ocaso quando tida em sua forma mais pura, sem outros mecanismos de autocontrole e
regulação. Daí resulta parte do cabresto de Schmitt quando analisa a Revolução Francesa
como fonte do liberalismo constitucional: mirando-se mais no exemplo de Sieyès que nos de
outros revolucionários como Condorcet e Robespierre, atribui um caráter enviesado e
idealista que foi a Revolução Francesa, em flagrante oposição à visão pessimista de Arendt
quando destaca que aquele formalismo rasteiro seria facilmente vilipendiado pelos jacobinos
e pelo turbilhão revolucionário. Assim, ainda que notavelmente importante em prescrever a
principal forma de atuação política do Estado moderno (a legislatura parlamentarista) a teoria
Sieyès é, não obstante, incompleta quando se tem o crivo da estabilização constitucional em
mente.
Já de sobrevoo no início do século XX, Schmitt propõe constatações em relação ao
Constituinte que buscam discriminar a sua origem absolutista, bem como de recolocá-lo na
discussão jurídica como um poder extrainstitucional e atuante no extraordinário –
características que, a sua época e até hoje, são ignoradas pela teoria jurídica “normativista”,
nas palavras de Loughlin. O Poder constituinte de Schmitt denota a puissance do soberano em
criar o próprio sistema jurídico-legal, e por consequência a dualidade intrínseca da decisão
soberana na norma jurídica, testemunhando o caráter político da normatividade que, quando
concebido por meio da totalidade (nascimento e ocaso) do sistema jurídico, não pode ser
ignorado.
Em seio constitucional, vemos em Schmitt a descrição dos sistemas normativos
liberais sob a ótica de uma teoria decisionista e, portanto, que pressupõe qualidades políticas
no Direito. A teoria constitucional de Schmitt enxerga o jurídico como forma constitutiva da
existência política do Estado, que por sua vez não é nada mais nada menos que a forma
situacional da unidade política do soberano (invariavelmente o povo na modernidade).
Como passo além de Sieyès, Schmitt acrescenta à teoria constitucional o receio
necessário de reduzir a Nação (ou, no caso positivista, o Estado) ao ordenamento jurídico,
denunciando o caráter meramente aparente da autossuficiência do sistema legal, que ensejaria
alguma forma de rule of law, como uma ilusão decorrente da situação ordinária da unidade
política, em que o soberano se omite para pôr fim ao extraordinário.
No mais, como bem destaca Kalyvas (e em certa medida também Loughlin), a teoria
constitucional proposta por Schmitt, ainda que conceda aos pontos liberais para que se tenha
aquela estabilidade política, ainda é eminentemente construída em termos unitaristas. Como
dito, Schmitt concebe o Estado como a descrição da situação atual da existência política do
Povo, tal seja, a da unidade política. E é papel do soberano ou de seu representante, tanto no
primeiro momento extraordinário quanto no terceiro momento, quando há uma irritação às
instituições ordinárias que deturpam a unidade política, decidir para protegê-la.
Não obstante, assim, da rebuscada teoria da representação e do conceito político de
Schmitt, não se olvida que suas soluções implicam, como implicaram, Estados ou autoritários
ou totalitários, conforme a descrição de Arendt. 211 Nesse sentido, impossível não destacarmos
a influência decisiva de Schmitt para a realidade político-jurídica do Brasil, por exemplo,
quando se deu o golpe militar em 1964. Extremamente em voga entre os juristas brasileiros, o
AI-1 denota quase que ipsis litteris as categorias da teoria constitucional Schmittiana:
(….) A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte.
Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa,
como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo
anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força
normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto
seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução
vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,
representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o
Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-
em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se
tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a
assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de
reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder
enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que
depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa
Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela
sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente
dispõe.212

Assim, a solução encontrada pelo velho Schmitt de igualar o Presidente com o


guardião da Constituição, prescrevendo a preponderância do executivo sobre os demais
poderes, como catalisador da vontade una do povo é, para nós, uma ode ao desastre.
Pode-se dizer a esse respeito, como o faz Kalyvas, que Schmitt chegou a considerar
uma atuação mais direta (mas jamais absoluta, como em uma democracia direta) do
Constituinte soberano extrainstitucional na ordem já estabelecida, o que corresponderia a um
terceiro momento da democracia em sua teoria. Seria, em termos, a noção de assembleias
populares extrainstitucionais que podem exalar a vontade do povo. Schmitt não dedica muitas
páginas à solução, porém, e o canônico de sua teoria ainda sugere uma redução da percepção
da vontade popular a simples comandos de “sim” e “não” 213, que são facilmente manipuláveis
por figuras carismáticas e por uma política cesarista (ainda que o autor tenha execrado
plebiscitos e referendos como formas obsoletas e limitadas de apreensão do popular). No
mais, a vontade popular em Schmitt é algo ulteriormente homogenizante por definição, haja
211 Arendt concebe o totalitarismo como a gradação mais completa do autoritarismo e, inversamente, o
autoritarismo como um totalitarismo de meio termo. Cfr., ARENDT, 2006.
212 ATO INSTITUCIONAL Nº 1, DE 9 DE ABRIL DE 1964. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm>. Acesso em: 15 de novembro de 2021. Grifos
nossos. Para uma abordagem mais aprofundada da dinâmica schtmittiana do regime militar de 1964, Cfr.
SILVA, 2009.
213 SCHMITT, 1982, p. 99.
vista que o conceito de aclamação descrito pelo autor está intimamente ligado ao de opinião
popular uníssona.214
Dessa forma, como solução ao decisionismo de Schmitt e ao normativismo de Kelsen
em um sentido democrático, Loughlin apresenta o seu método relacionista que, combinado
com os apontamentos de Kalyvas em relação à Schmitt, permite-nos vislumbrar, enfim, uma
teoria sincrética do momento fundacional e da institucionalização que o segue. Com a
concepção de uma dialética entre o virtual constituinte e o real constituído podemos preencher
realisticamente uma teoria que, até em um autor prestadamente sociológico como Schmitt,
permanecia em categorias abstratas da teoria do estado do século XVI. Em conclusão, esse
dualismo concretista nos possibilita, ainda, vislumbrar uma teoria do Constituinte realista e
plural em Hannah Arendt.
Isoladamente considerada, ainda, a dúplice natureza do conceito do Direito que
relacionista herda de Herman Heller e de Hans Lindahl é o grande mérito de Loughlin. Por si
só a concepção do Direito (que o autor, sem equivalente na língua inglesa, chama de droit
politique) como formador de Poder afasta tanto o reducionismo à norma pura quanto o
decisionismo em um extraordinário “desnormatizado”. Ademais, se o Povo, essa categoria
clássica da teoria do Estado, deve ser levada a sério no contexto apresentado, as colocações de
Loughlin implicam então a visão dúplice do conceito: tanto como momento simbólico de uma
unidade virtual (a Nação), quanto como entidade material não institucionalizada, a multidão
oposta às autoridades instituídas.
Por essa visão facilita-se o preenchimento das lacunas usuais da teoria do Estado
clássica, principalmente quando se considera o paradoxo fundacional. Não obstante, trata-se
de uma teoria simples e um tanto reducionista, pois no máximo prevê, na forma de uma
dialética de “irritação” via droit politique, aquela atuação extrainstitucional brevemente
ensaiada por Schmitt e destacada por Kalyvas. Assim, como um ensaio que busca atualizar a
teoria do Poder constituinte clássico por meio da dialética entre seus principais autores,
cremos que ela é mais que o suficiente (ainda mais quando consideramos que, para fins de
apreensibilidade teórica e de didática, reduções são imprescindíveis); porém, como uma
metodologia exaustiva e sistêmica de como o social e político interferem no formal e jurídico,

214 Ibid. pp. 100 e 240.


pode-se dizer que esse método relacionista é deveras simplório, principalmente se posto lado
a lado a uma teoria robusta de um autor funcionalista como Niklas Luhmann215
No mais, temos como conclusão a teoria de Hannah Arendt, cuja contextualização
com Schmitt enseja uma possível solução ao problema original desta pesquisa – a resolução
do paradoxo fundacional.
Grande parte das críticas da obra Sobre a Revolução de Arendt, como bem diz
Kalyvas, focam demais nos levantamentos da autora contra a “Questão Social” na França 216,
ignorando o cerne da discussão sobre os fins revolucionários e o estabelecimento de
Constituições.
Em verdade, as ideias apresentadas por Arendt em a Questão Social podem ser
facilmente confundidas por um ensaio reacionário e aristocrata qualquer (e o intérprete, em
alguns aspectos, não estaria muito distante da verdade); mas, ulteriormente, o capítulo da
Questão Social em On Revolution denota o âmago da teoria política da autora. O conceito de
política em Arendt é, em simetria a sua metodologia filosófica, poético e heroico. Assim, o
político em Arendt é a exceção, não o ordinário 217. Consequentemente, sua crítica ao social e
sua constatação de que ele corrói a política por instrumentalizá-la para fins impossíveis não é
um elitismo pueril mas sim, a nosso ver, um saudosismo advindo de uma concepção de
política eminentemente romântica. Não obstante o romantismo arendtiano, porém, o seu
diagnóstico do sucesso americano e da falha francesa denotam, acima de tudo, uma teoria
realista e plural de Poder.
Vimos que o objetivo de uma Revolução, em Arendt, não pode ser outro que a
fundação da liberdade e o da consequente institucionalização das conquistas revolucionárias
por meio de uma Constituição (feito que não está nada distante de Schmitt). Arendt parte de

215 Que embora não tenha sido objeto de estudo desta pesquisa, merece um destaque nesse aspecto específico
como forma de contraste.
216 Que é, diga-se de passagem, a mesma natureza das críticas que Schmitt recebe quando aponta as
inconsistências do liberalismo constitucional tanto em Teologia Política quanto em O conceito de político. Isso
decorre, a nosso ver, do fato de que ambos os autores colocam-se na contemporaneidade como opositores da
confusão entre o público e o privado e da banalização da esfera política e, por isso, parecem transversais a ambos
os lados do espectro político usual: “When Hans Morgenthau asked Arendt about her political loyalties, she
responded that “the left think that I am conservative, and the conservatives sometimes think I am left.“She
could not have been more accurate. Her political theory consists of an outstanding attempt to bring together
radical change and legal continuity, the extraordinary and the ordinary. The consequences of this uniquely
syncretic body of thought become most apparent in her attitude toward democracy, which continues to divide
Arendt scholarship. For some, Arendt was an antidemocrat who embraced elitism, advocated political exclusion,
defended restrictions on universal suffrage, and rejected social justice.47 For others, she is a proponent of a
radical, participatory version of democracy, especially when it is juxtaposed with actually existing liberal
representative governments.” KALYVAS, 2008, p. 264. Grifos nossos.
217 “ Authentic politics is rare and either episodic or short-lived.” VILLA, 2001. p. 144.
pressupostos muito similares àqueles do autor alemão, a dizer, da concepção teológica do
conceito de soberania e o da necessidade de amplificação do Poder constituinte pelo constituir
político em forma federativa. Diverge importantemente, porém, na valoração daquela
soberania e nos meios pelos quais a promulgação constitucional ocorre.
Arendt, diferentemente de Schmitt, não vê no conceito de soberania popular e suas
características absolutas de unicidade nada mais que uma ode ao autoritarismo e ao
totalitarismo. Ainda mais, a autora localiza a amplificação do poder que possibilita a
instauração da Constituição revolucionária no extrainstitucional pulverizado e plural, em vez
de vê-lo no extrainstitucional homogenizado. É dizer que em Arendt propõe-se uma teoria
constitucional em que os constituintes, e não o povo abstrato ou o soberano representante,
criam uma nova forma de poder por meio de estruturas políticas de dialogo já constituídas.
Essa fundação, ademais, a despeito da teoria de Schmitt, não implica nenhuma usurpação de
legitimidade do constituinte pelo instituído, pelo contrário, o instituído que possui sua
existência política anterior ao novo regime se autolegitima por meio da associação, debate e
diálogos livres entre seus membros, que praticam o que a autora consideraria ser a política
autêntica.
Dessa forma, o pacto de alteridade em Arendt, concretizado por uma visão consensual
do contrato social caracterizado por promessas mútuas, dá forma ao governo e afasta
quaisquer contradições entre governantes e governados, de forma inspirada no princípio do
potestas in populo romano. Nesse mesmo contexto romano, por fim, Arendt também propõe
uma solução ao problema do absoluto e da legitimidade legal em questão de autoridade,
localizando-a não na vontade popular, como em Schmitt, mas na Constituição que simboliza
as conquistas revolucionárias. Assim, enquanto o poder no povo é o princípio político que
funda a República americana, a autoridade no judiciário é o princípio jurídico-hermenêutico
que fundará o sistema legal.
Assim sendo, apesar das fraquezas teóricas de Arendt, apontadas por Topf e por
Hobsbawn (que vemos como verosimilhantes) é de se destacar que (i) as ideias arrazoadas
mostram-se oportunas mesmo que confusas e metafísicas e que, (ii) essas ideias só são
possíveis graças a esse caráter difuso e transversal da análise Arendtiana: uma análise
funcionalmente diferenciada em termos sociológicos, políticos ou históricos dificilmente
conseguiria propor uma conclusão realista típica de uma filosofia holística como a de Hannah
Arendt. Nesse sentido, a grande inovação e qualidade que a obra Teoria da Constituição de
Schmitt possui em enquadrar e pensar elementos políticos por meio de categorias jurídicas
clássicas é, ao mesmo tempo, um limitante a sua teoria para a compreensão e descrição da
esfera política. Não se duvida do caráter não-incidental e material das conclusões do autor
mas, ao mesmo tempo, destacam-se os perigos desse reducionismo jurídico. É esse
reducionismo, por exemplo, que faz Schmitt enxergar Sieyès e a Revolução Francesa como a
fundação do constitucionalismo liberal sem que, ao mesmo tempo, destaquem-se as nuances
do caráter antagônico da política jacobina durante a mesma Revolução, que em muitas
situações pensava sob as mesmas categorias teológicas e formalísticas dos girondinos liberais.
Em conclusão, as teorias dos autores apresentados, sob os mais diversos ângulos,
concebem respostas possíveis à questão da soberania fundacional e da Constituição do
sistema política, ensejando um panorama muito mais complexo e diverso que a simples
redução em categorias doutrinárias do Poder constituinte geralmente possui em tempos
ordinários.
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