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Rio de Janeiro
2020
Copyright © 2020 by José Ricardo Cunha
Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
T314t
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5510-436-3
CDD 340.1
1 Professor Associado da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Filosofia do Direito pela UFSC e
mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. E.mail: jr-cunha@uol.com.br
2 - SEBBAH, François-David. Lévinas. São Paulo: estação Liberdade, 2009, p. 19.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
transcendemos a obra para nos tornarmos cativos do autor e, com isso, já nos
colocamos na contramão do pensamento crítico. Conhecer uma obra não signi-
fica incensar um autor ou aderir ingenuamente a algum “ísmo”, mas apropriar-
-se cautelosamente de um sistema de pensamento que lhe permita compreender
melhor uma questão e, com isso, desenvolver seu próprio raciocínio. Quando
falamos de teorias críticas, isso significa, também, valer-se de uma teoria ou de
uma ideia para revelar processos de dominação e propor formas de pensar e de
viver que sejam mais libertárias, igualitárias e generosas.
O presente artigo pretende apresentar a crítica radical situada na ética da
alteridade de Emmanuel Lévinas e utilizar esse arsenal filosófico-crítico para
verificar os limites e as possibilidades de se pensar o direito outramente, isto é,
um direito situado fora das estruturas totalizantes da ontologia e radicalmente
comprometido com a ética em um sentido extramoral.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
a escuta que institui uma abertura ao infinito.10 Evidente que tal disposição,
como manifestação de um desejo ou de uma vontade, implica uma força moti-
vadora, força essa que seja capaz de se manifestar no espaço do instante, onde
a palavra se projeta. Segundo Rosenzweig, essa força é o amor, pois o amor é
sempre uma exigência do agora, ele não prepara e nem provisiona para o futu-
ro, não é uma propriedade que se acumula, mas um mandamento do presente.
Dessa maneira, o outro, quando tomado pelo amor, mesmo não sendo eu, é
percebido como alguém como eu, ou seja, com corpo, alma, história, dignida-
de, qualidades e limitações, assim como eu as tenho. Dá-se, então, a condição
para aquilo que Rosenzweig denomina de “união redentora” com o próximo,
por meio da qual se produz, concomitantemente, uma união com o mundo.11
Em uma entrevista concedida em 1981 a Philippe Nemo, Lévinas afirma
que foi na filosofia de Franz Rosenzweig que ele encontrou, pela primeira vez,
uma crítica radical da totalidade.12 Pode-se dizer que as reflexões de Rosen-
zweig pavimentaram a estrada seguida por Lévinas e lançaram fundamentos
para o aspecto mais decisivo do pensamento levinasiano: a afirmação de que
a ética deve preceder a ontologia.
Lévinas inicia seu Totalidade e Infinito com duas sentenças instigantes: “A
verdadeira vida está ausente. Mas nós estamos no mundo.”13 Essa dinâmica entre
ausência e presença revela também que estar no mundo não significa, necessa-
riamente, estar mergulhado na vida, ao contrário, pode-se estar mergulhado
na morte. Portanto, existe um desejo de transcendência que será chamado por
Lévinas de desejo metafísico. Tal desejo busca o inteiramente diverso ou o abso-
lutamente outro, algo que está fora de si, mas que não vem para completá-lo. É o
desejo de algo que não pode ser incorporado a si mesmo, daquilo que nunca se
poderá ter, por isso mesmo, um desejo fora do comércio. É o desejo metafísico
que impulsiona o eu em direção ao absolutamente outro, a essa alteridade radi-
cal e incontrolável que está muito além da simples presença de si.
Para que se tenha uma noção adequada do cenário de onde brota o dese-
jo metafísico, é preciso compreender que, segundo Lévinas, a consciência de
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15 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, p. 46.
16 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 25.
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mas pela linguagem,17 já que ela implica um sair de si mesmo para se colocar
diante de um interlocutor, que é o outro. Em suas palavras: uma relação cujos
termos não formam uma totalidade só pode pois produzir-se na economia geral
do ser como indo de Mim para o Outro, como frente a frente...18 Não que o pen-
samento esteja abolido desse processo, mas ele é ressignificado pela presença
de outrem que demanda de mim não apenas a percepção da alteridade, mas
a capacidade de ouvir e a disposição para o acolhimento. Essa presença do
outro diante de mim numa relação que se estabelece face a face é o que pode
me retirar da totalização e de qualquer essência para me lançar na experiência
do genuíno fenômeno da outricidade, que é irredutível ao mesmo, irredutível
à minha própria identidade. É aqui que se estabelece a crise profícua como
condição da crítica radical: enquanto a ontologia tenciona enquadrar o outro
no mesmo e para isso pretende conceituá-lo, defini-lo e reconduzi-lo à cate-
gorias abstratas, a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas
põe em questão o exercício do Mesmo.19 Ocorre aqui uma ruptura visceral com
a tradição da filosofia ocidental que adota o problema do ser como ponto de
partida, fazendo da ontologia seu próprio coração. Perguntar-se “o quê é?” ou
“quem é?” é um esforço de reconstrução conceitual que está na base da nossa
relação com o mundo, sempre em busca de uma essência ou natureza primei-
ra que defina o ser de tudo e todos. Assim, nos acostumamos a lidar com o
mundo por intermédio de uma mediação ontológica, o que faz da ontologia
uma filosofia primeira. Contra isso, Lévinas desfere palavras duras:
17 - A filosofia não como narrativa e sim como linguagem, como capacidade de ouvir e disposição para o
diálogo, é algo que Rosenzweig também já havia assinalado. Cf. ROSENZWEIG, Franz. The new thinking.
In Philosophical and Theological Writings. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2000, p. 125.
18 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 26.
19 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 30.
20 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 33.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
...a crítica não reduz o outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe
em questão o exercício do Mesmo. Um pôr em questão do Mesmo –
que não pode fazer-se na espontaneidade egoísta do Mesmo – é algo
que se faz pelo Outro. Chama-se ética a esta impugnação da minha
espontaneidade pela presença de Outrem. A estranheza de Outrem – a
sua irredutibilidade a Mim, aos meus pensamentos e às minhas posses
– realiza-se precisamente como um pôr em questão da minha espon-
taneidade, como ética. A metafísica, a transcendência, o acolhimento
do Outro pelo Mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente
como a impugnação do Mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que
cumpre a essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dog-
matismo, a metafísica precede a ontologia.23
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
É fundamental que logo se esclareça que o sentido aqui atribuído por Lé-
vinas à palavra metafísica é aquele expresso na ideia de desejo metafísico, que
consiste exatamente na abertura do eu para a busca do absolutamente outro.
Com efeito, a metafísica levinasiana – de forma contraintuitiva, vale dizer – se
confunde com a própria ideia de ética.24 Por esse motivo a afirmação presente
ao final do parágrafo citado costuma ser expressa pelos comentaristas de Lé-
vinas como sendo “a ética precede a ontologia” e é, sem dúvida, a ideia mais
importante, e também mais conhecida, da obra levinasiana.
Do ponto de vista de uma ética da alteridade, enquanto a moralidade tem
a ver com o senso do dever, tendo em vista o certo e o errado e o conjunto de
valores associados a essa operação da razão, a ética, por sua vez, é entendida a
partir do lugar do outro, como consideração pelo outro. Nessa perspectiva, o
protagonismo é deslocado da razão abstrata para a pessoa concreta que deve
ser tomada a partir dela mesma e não por mediações e representações, pois
a existência quando subordinada à ontologia significa o desaparecimento do
existente. Num artigo seminal de 1951 chamado A Ontologia é Fundamental?
Lévinas se pergunta: aquele a quem se fala é previamente compreendido no
seu ser? Então responde de forma clara e direta: de forma alguma. Outrem não
é primeiro objeto de compreensão e, depois, interlocutor.25 O problema é que a
ontologia coloca a pessoa na condição de objeto e limita o significado de suas
formas de manifestação ao enquadrar tais formas em categorias prévias do
ser. Já a ética toma o outro a partir de suas manifestações mesmas, do seu jeito
de se expressar e de dizer, implicando uma invocação do outro que é também
afetação por outrem. Esse modo de ser afetado pelo outro indica que outrem
está fora de minhas posses e além do meu controle, e a busca de algum meio
de domínio sobre o outro seria a sua própria negação como sujeito, seria sua
eliminação, como num homicídio.26
A relação ética acarreta proximidade. Ela surge do entendimento de que
somos seres separados, mas cria as condições necessárias para a produção de
pontes que aproximam os sujeitos e nessa aproximação coloca em destaque
24 - Diz Lévinas: “A metafísica tem lugar nas relações éticas.” LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e
Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 69.
25 - LÉVINAS, Emmanuel. L’ontologie Est-Elle Fondamentale? Revue de Métaphysique et de Morale.
Paris, PUF, volume 56, nº 1, p. 93, março, 1951, from http://www.jstor.org/stable/40899550
26 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 96.
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27 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 151-152.
28 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 194.
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29 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, p. 54.
30 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., pp. 56-57.
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32 - Cf. AGUIAR, Roberto. Alteridade e Rede no Direito. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.3, n.6, 2006.
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rael, no ano de 1961, Eichmann insistiu na tese de que apenas cumpria ordens,
de que agia dentro da legalidade. Ora, para os que argumentavam que o nazis-
mo foi uma monstruosidade, não parece um monstro quem age dentro da lei.
Isso revela que o mal não estava apenas nos nazistas, mas também na ordem
jurídica instituída. Mesmo que se argumente que havia certa legitimidade so-
ciológica na ordem social nazista alemã, em função da adesão da maioria da
população, a ética da alteridade nos permite perceber que a reprovação da
ordem nazista transcende a dimensão sociológica, e mesmo moral, pois não
se trata de saber se havia maior ou menor adesão, e nem mesmo de saber se as
normas eram consideradas certas ou erradas, pois toda essa discussão se passa
já no plano ontológico. O direito nazista, independentemente do senso de mo-
ralidade da sociedade alemã da época, era antiético, obcecado pela ontologia,
preocupado em catalogar pessoas. O resultado, antes mesmo do genocídio, foi
o “altericídio”, isto é, o extermínio do diferente. É exatamente para que não
ocorra esse tipo de coisa que a responsabilidade deve preceder a liberdade.
A ética da alteridade insiste na abertura de espaço para que o outro possa
falar e apresentar-se a si mesmo. Trata-se de uma ética testemunhal onde a narra-
tiva de si precede tanto as narrativas de terceiros quanto as representações. Mais
uma vez a importância do face a face, pois o sentido do outro é dado na presença
do seu rosto que fala e produz significações que vão para além da essência e dos
conceitos da dogmática jurídica. Não é a lei que deve expressar quem é o outro,
não são os agentes do sistema de justiça que devem falar pelo outro. O infinito de
outrem deve ser contado por ele mesmo. Como diz Lévinas, o outro é presença
que domina o que a acolhe, que vem das alturas, imprevista e, consequentemente,
ensinado sua própria novidade.41 Na sua sabedoria testemunhal, é o outro quem
ensina sobre si mesmo, ele é o mestre. Mas isso não pode acontecer enquanto as
representações dominam o raciocínio jurídico. Essa verdade pode ser eloquente-
mente manifestada por meio da comparação com o quadro La trahison des Ima-
ges (A Traição das Imagens), pintado pelo belga René Magritte em 1929:
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A inscrição Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) bem abaixo
da imagem do cachimbo causa um certo desconforto no observador, mas ex-
pressa uma inquietante verdade: de fato não se trata de um cachimbo, mas da
representação do cachimbo e, como tal, ela é totalmente incapaz de produzir
as mesmas afetações que um cachimbo real produziria. Da mesma maneira,
as representações jurídicas são totalmente incapazes de produzir as mesmas
afetações que o outro concreto – não generalizado – é capaz de produzir. Por
isso é tão importante, como falou Lévinas, que o outro ensine sua própria
novidade. Criar as condições para que o outro fale e acolher sua narrativa-
-testemunho é fundamental também no sentido de desfazer preconceitos ou,
como diz Chimamanda Adichie, de evitar os perigos de uma história única. A
escritora nigeriana nos lembra que as histórias contadas por terceiros acabam
por produzir estereótipos sobre os outros. E ainda que os estereótipos não
sejam propriamente inverdades, eles certamente são incompletos e parciais,
por isso é importante que eles não sejam a história única acerca do outro.42
O direito, para ser ético, não pode pretender uma narrativa exclusiva sobre o
outro, pois certamente as categorias legais que capturam o outro serão sempre
incompletas. Da mesma forma, o sistema de justiça não pode se contentar com
histórias únicas e impedir o pleno testemunho de outrem para que ele fale por
si e ensine sua própria novidade.
Nessa linha, e a título de exemplo positivo de atuação ética do sistema de
justiça, vai um importante caso relembrado por Owen Fiss. Trata-se do caso
Goldberg x Kelly, ocorrido no estado de Nova Iorque na década de 1960. O
42 - ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo de Uma História Única. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
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problema que deu origem ao caso é que alguns agentes administrativos locais
tinham poder para excluir unilateralmente beneficiários de programas sociais
do governo federal. Essa exclusão poderia ser feita quando houvesse a suspeita
de que aqueles beneficiários não estavam atendendo os requisitos para o rece-
bimento do benefício financeiro. Do ponto de vista da administração pública,
era totalmente legítimo zelar pelo cumprimento dos critérios, contudo os de-
mandantes se queixavam de serem unilateralmente excluídos dos programas
sem terem a chance de explicarem o que estava acontecendo e apresentarem
suas respectivas defesas e justificativas. Já no curso do processo judicial, os
administradores alteraram o procedimento e passaram a comunicar os bene-
ficiários que estavam com seus processos em revisão, para que eles pudessem
apresentar suas razões. No ano de 1970, a Suprema Corte dos Estados Unidos
decidiu, por maioria, que os beneficiários de prestações assistenciais do go-
verno tinham o direito de serem ouvidos antes que os administradores sim-
plesmente retirassem essas pessoas dos programas assistenciais.43 O caso tem
destaque nas faculdades de direito norte-americanas por ser uma referência
na garantia do devido processo legal também na esfera administrativa. No
entanto, Owen Fiss chama a atenção para o fato da decisão ter assegurado aos
menos favorecidos um tipo de respeito e consideração que a administração
pública já tinha com os mais privilegiados.44 Além disso, quero destacar tam-
bém o aspecto ético do caso. A decisão do administrador público de rever a
concessão de um benefício assistencial e cassar tal benefício sem lidar direta-
mente com o beneficiário, significa tratar o outro de forma generalizada para
reduzi-lo à condição de mera categoria administrativa. Vale notar que em
muitos casos, o processo de revisão do benefício decorria de denúncias ou de-
poimentos de terceiros. Quando se resolvia, como era frequente, pela cassação
de um benefício exclusivamente com base numa narrativa feita por terceiros,
tínhamos, então, um bom exemplo dos perigos de uma história única, como
disse Chimamanda Adichie. O que faltava nesses processos era o frente a fren-
te, o rosto do outro como condição básica para recuperar uma história singu-
lar. A partir dessa presença, muitos mal entendidos eram desfeitos e ruídos se
convertiam em diálogo e comunicação. A Suprema Corte deliberou para que o
outro fosse ouvido. Esta deliberação possui um sentido tanto concreto quanto
43 - FISS, Owen. El Derecho como Razón Pública. Madrid: Marcial Pons, 2007, pp. 267 ss,
44 - FISS, Owen. Ob. Cit., p. 268.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
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reito eleva o grau de abstração da ontologia, pois converte o seu dever ser, mera
vontade abstrata, em ser normativo, capaz de coerção e força. O dizer da ética
não pretende substituir ou destituir o dito do direito. Esse dizer tem em vista
produzir uma abertura para alteridade que não seja meramente instrumental,
isto é, que não tome o outro apenas como ente manipulável, mas permita que
ele se manifeste na sua concretude e singularidade. Nesse sentido, é um dizer
literal, como a voz que surge do rosto de outrem e chama a minha responsabili-
dade. Enquanto o sistema jurídico se ocupa com o cumprimento das responsa-
bilidades legais de todos, a ética se pré-ocupa que cada um possa se manifestar
no âmbito das situações juridicamente relevantes, de forma que sua singulari-
dade e suas condições concretas sejam consideradas. Isso implica assegurar a
voz e o direito de ser ouvido sem preconceitos, sem pré-juízos e sem mediações
categoriais. Por outro lado, isso corresponde à responsabilidade ética dos juris-
tas de não obliterar os sujeitos por meio de representações ou ficções jurídicas.
Para aqueles que atuam no direito por ofício, muitas situações e procedimentos
podem parecer repetitivas, mecânicas e até entediantes, ou mesmo o problema
dos outros pode soar absurdo, ridículo ou desinteressante. Todavia, nada disso
desobriga os profissionais do direito do dever de cuidado e da responsabilidade
ética de ouvir o dizer do outro antes e acima de qualquer rótulo que decorra do
dito do direito. É um dever ético de sensibilidade, de estar sensível à exposição
do outro, de fazer de sua própria passividade pura atenção ao outro. Nos termos
de Lévinas é um oferecer-se sem reserva, uma não-iniciativa que se abre para re-
ceber a alteridade.52 Isso é o acolhimento do outro de frente, fazer justiça numa
perspectiva propriamente ética.
A relação ética, para Lévinas, envolve proximidade e rosto. Ela ocorre,
portanto, no âmbito de duas pessoas. É nessa relação dual que sucede o aco-
lhimento de outrem e a minha entrega absoluta na forma do “eis-me aqui”.
Temos, assim, um duo ético. No entanto, Lévinas sabe muito bem que as rela-
ções extrapolam o frente a frente e para além do duo existe uma pluralidade
de indivíduos que formam a sociedade. Manter-se, exclusivamente, no duo
ético e fechado para a sociedade não é algo que seja condizente com o pró-
prio sentido de responsabilidade ética. Até porque o duo ético nunca se dá
isoladamente, ele ocorre em meio à pluralidade social. Assim, aquela relação
ética de natureza dual, formada por um eu-tu ou eu-você, é de alguma forma
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
Portanto, ainda que o terceiro extrapole o duo ético, ele permanece sen-
do minha responsabilidade, não obstante esta responsabilidade não decorra
da proximidade e sim da consciência moral.
O terceiro não é apenas o outro do outro, é outrem em geral e a própria
expressão da realidade do conjunto da sociedade. Seria uma contradição per-
manecer fechado no duo ético e não me sentir responsável com o que se passa
com as demais pessoas da sociedade. Ainda que Lévinas não seja um teórico
da política, ele está bem ciente das implicações políticas da ética. Ele sabe que a
sociedade é lugar de muitas injustiças, onde a liberdade é muitas vezes exercida
como forma de violência e domínio sobre o outro. E ainda que isso não ocorra
no âmbito da relação que se estabelece no duo ético, eu tenho responsabilidade
pelos problemas sociais, ou, no dizer de Lévinas, eu carrego uma falta ou uma
culpa pela injustiça social. Ao falar de nossa inquietude diante do sofrimento
53 - A eleidade designa algo como a qualidade de ser ele ou um terceiro. Resulta exatamente do pronome
pessoal reto “ele”. Como Lévinas escreveu em francês, ele grafou a palavra como “illeidade”, já que
se refere ao pronome “il”. Nas traduções para outros idiomas, muitos tradutores preferem manter o
neologismo no original.
54 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.57.
55 - Idem, ibidem.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
alheio, Lévinas sentencia com palavras fortes: Como se cada um, com as mãos
puras e na sua inocência presumida ou certa, tivesse que responder pelas fomes e
pelos crimes! O temor de cada um por si, na sua própria mortalidade, não conse-
gue absorver o escândalo da indiferença ao sofrimento de outrem.56 Que se tenha
em mente que essa culpa não se resolve pela caridade assistencial, pela filantro-
pia ou por uma ação benéfica à primeira pessoa que se encontra.57 Lévinas nos
recorda que a falta social é cometida sem que eu o saiba, em relação a uma mul-
tiplicidade de terceiros que eu não olharei jamais de frente...58 Apesar do terceiro
estar fora do duo ético e não aparecer no face a face, a minha relação com ele
deve ser inspirada pelo sentido de cuidado que é próprio da consideração ética.
Por isso Lévinas afirma que minha relação com o outro na condição de próximo
confere sentido às minhas relações com todos os outros.59
O que muda não é apenas que o terceiro não surge na proximidade do
rosto. É também o fato de que a multiplicidade das relações e a estrutura das
instituições sociais provocam uma série de situações que geram exploração,
opressão, exclusão. O próprio comércio das liberdades, onde cada um preten-
de se afirmar como vontade particular e autônoma, produz assimetrias e desi-
gualdades, ocasionando diferentes tipos de privações e dominações. Isso tudo
conforma um quadro de injustiça, e diante de tal quadro é a consciência hu-
mana que reivindica a necessidade da justiça. Mas aqui não estamos mais si-
tuados naquele sentido propriamente ético e extramoral da justiça como aco-
lhimento do outro de frente, até porque o terceiro surge no desvio do olhar no
rosto do outro que está à frente. A justiça aqui tem um sentido propriamente
moral e recorre ao conjunto dos valores presentes na sociedade e depende de
conceitos e categorias que envolvem várias áreas do conhecimento e inúmeros
debates. A consequência disso é uma espécie de retorno à ontologia. Nesse
sentido moral da justiça, o dizer da ética depende muito do dito da ontologia,
até porque a justiça social envolve a totalidade da sociedade. Num elucidativo
trecho de Outramente que Ser, assinala Lévinas:
56 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p.244.
57 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.43.
58 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.45.
59 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, p. 239.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
Dizer, portanto, que o direito começa como ética, como infinito, não
totalizável e não regulado momento do encontro com o outro, soa con-
trafactual. Mas a ética da alteridade é inequívoca; o sentido de respon-
sabilidade, o ‘ponto de vista interno’ que me fala e me comanda, vem
da proximidade de um ao outro - o fato de estarmos envolvidos e im-
plicados à medida que somos confrontados e endereçados pelo outro.
Na minha proximidade com o outro, dentro ou fora da lei, me preocu-
62 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p.249.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
63 - DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, pp. 165-166.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
65 - RICOEUR, Paul. Sí mesmo como Outro. Madrid: Siglo XXI de España Editores, p. 198.
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
Considerações finais
É indispensável atentar que, segundo Lévinas, a posição que o “eu” ocupa
dentro do duo ético é de entrega total ao outro, o que se revela por meio da
profundidade da expressão “eis-me aqui”. Com efeito, o duo ético comporta
uma relação assimétrica e de subordinação à alteridade. Isso pode parecer es-
tranho e gerar uma certa hesitação por parte daqueles que se debruçam sobre
a filosofia levinasiana, entretanto não haveria como ser diferente diante da
proposta de afirmar a ética como filosofia primeira e romper com a tradição
totalizante do pensamento ontológico. Todavia, é interessante notar que, fora
do duo ético e como postura de vida, esse mesmo compromisso com a ética
como filosofia primeira se expressa como forte exercício de insubmissão. Em
outras palavras, a coragem de propor e sustentar a ética como filosofia pri-
meira desemboca num movimento de resistência à totalidade que se afirma
como improfanável, como um ser inamovível que interrompe o movimento
dos corpos para subsumi-los e controlá-los.
A imagem muita bem definida dessa totalidade no mundo atual é a da
modernidade capitalista, antropocêntrica, patriarcal, branca, heterossexual e
cristã, autodenominada como civilizada. Essa totalidade se apresenta como
necessária e irresistível naquilo que é, autorreproduzindo-se a si mesma e pro-
movendo o seu próprio culto. Afirmar a ética no lugar da ontologia como fi-
losofia primeira, significa uma profanação do improfanável, ou seja, enfrentar
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
essa totalidade à maneira de um “não ter que ser”. Não ter que ser capitalis-
ta e propor formas alternativas de bem-viver e economias solidárias; não ter
que ser antropocêntrico e afirmar os direitos da mãe-terra e a necessidade de
coabitação pacífica e equilibrada com os demais seres da natureza; não ter
que ser patriarcal e, assim, reforçar a igualdade de direitos entre homens e
mulheres e as lutas contra o machismo e a misoginia; não ter que ser branco
ou caucasiano para ter sua dignidade reconhecida e respeitada, e valorizar a
ancestralidade africana e de povos originários, sendo parte da luta contra pre-
conceitos e discriminações; não ter que ser heterossexual e respeitar as dife-
rentes orientações sexuais, construindo convivências plurais e inclusivas; não
ter que ser cristão, admitindo um irrestrito direito à diversidade religiosa e à
manifestação de distintas crenças, incluindo o ateísmo.
Walter Benjamin, na sua conhecida IX Tese sobre o conceito da Histó-
ria, invoca o quadro Angelus Novos, pintado por Paul Klee em 1920, para se
referir a um anjo da história que voltou seu rosto para o passado e se deparou
com uma catástrofe sem fim. O anjo se esforça para acordar os mortos e re-
construir o que foi destruído, porém um forte vendaval sopra sobre as asas
do anjo e o arrasta sem cessar para o futuro, impedindo a reconstrução do
passado. Benjamin afirma que esse vendaval é aquilo que chamamos de pro-
gresso.67 Essa abordagem escatológica da história e o ceticismo quanto àquilo
que é celebrado como civilização, une os pensamentos de Benjamin e Lévinas.
O progresso no sentido benjaminiano e a totalidade ontológica no sentido
levinasiano guardam forte correspondência e acionam um sinal de alerta que
deve nos conduzir a uma profunda reflexão, com crítica e autocrítica. Se o
progresso e a totalidade produzem destruições e mortes, coisas que não po-
dem ser justificadas por alguns benefícios materiais ou tecnológicos, então é
hora de pensar diferente. Aliás, não apenas de pensar diferente, mas de pensar
no diferente, no outro que me interpela com sua face. Essa é uma tarefa tanto
existencial quanto institucional e, por isso, nos leva à questão: qual direito
que queremos? O direito que expressa o vendaval do progresso, mas impede a
reconstrução do passado? Ou um direito que se abre à alteridade e se esforça
para acordar os mortos e superar a catástrofe?
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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I
Bibliografia:
FISS, Owen. El Derecho como Razón Pública. Madri: Marcial Pons, 2007.
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RICOEUR, Paul. Sí mesmo como Outro. Madrid: Siglo XXI de España Editores.
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SMITH, William H. Levinas and the Law of Torts. Oxford: Oxford University
Press, 2019.
STACY, Helen. Levinas and law: siding with the angels. Australian Journal of
Law and Philosophy, Vol. 33, 2008.
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