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Editora Lumen Juris

Rio de Janeiro
2020
Copyright © 2020 by José Ricardo Cunha

Categoria: Filosofia do Direito

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rômulo Lentini

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Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

T314t

Teorias críticas e crítica ao direito : volume I / organizador : José Ricardo


Cunha. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2020.
408 p. ; 23 cm. – (Série Teorias Críticas e Crítica ao Direito ; 1)

Inclui bibliografia.

ISBN 978-65-5510-436-3

1.Direito - Filosofia. 2. Direito – História e crítica. 3. Direito e socialismo.


I. Cunha, José Ricardo. II. Título.

CDD 340.1

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Apresentação do Livro Teorias
Críticas e Crítica do Direito

Saudações leitora e leitor!


De um modo ou outro, a crítica sempre integrou a especulação filosófica.
Contudo, na modernidade ela se tornou parte de uma forma específica de
pensamento reflexivo e antidogmático. Autores clássicos tão distintos como
Kant e Marx invocaram essa maneira de pensar como base de seus estudos. Já
no século XX uma série de análises conhecida como Teoria Crítica foi apre-
sentada como uma avaliação reflexiva capaz de revelar e desafiar estruturas
de poder. Para isso, se diferencia daqueles sistemas de conhecimento que pos-
suem alta pretensão de generalização e costumam desenraizar os problemas
sociais de suas formas concretas de manifestação histórica. Hoje já não é ade-
quado imaginar que a expressão “teoria crítica” manifeste apenas uma escola
de pensamento. Existem diferentes teorias críticas, mas todas guardam em
comum tanto o desejo de desafiar os poderes estabelecidos quanto o entendi-
mento de que o ser humano é o produtor de suas próprias formas de vida e,
portanto, os problemas e as contradições sociais são fruto das relações concre-
tas estabelecidas entre pessoas, grupos e classes.
Em um plano mais geral, as teorias críticas se apresentam como teorias
sociais, voltadas para a interpretação e compreensão do conjunto das relações e
interações existente na sociedade. No entanto, também verificamos a aplicação
das teorias críticas a fenômenos específicos, como o fenômeno jurídico. Nes-
se caso é possível verificar tanto a crítica do direito a partir de postulados das
teorias críticas, quanto a constituição de teorias críticas específicas do direito.
Nesse tipo de abordagem do fenômeno jurídico, são mais recorrentes as pers-
pectivas interdisciplinares, sobretudo a partir do diálogo com a filosofia, a po-
lítica, a economia e a história. Busca-se apontar problemas próprios do direito,
tais como os limites do fundacionalismo jurídico e a insuficiência das teorias
que buscam explicar o direito isolando-o das demais interações sociais. Tam-
bém é recorrente no âmbito da crítica e das teorias críticas do direito apontar as
relações entre a forma jurídica e o modo de produção capitalista, bem como as
consequências dramáticas dessas relações, especialmente no que diz respeito à
reprodução sociojurídica de formas de dominação, opressão e exploração.
O livro que a leitora ou o leitor tem em mãos, apresenta parte desse es-
forço de reflexão crítica em torno do direito. Ele nasce no contexto de pes-
quisas desenvolvidas no âmbito da Linha de Teoria e Filosofia do Direito do
Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UERJ.
Desde sua criação, no ano de 2010, a Linha tem procurado realizar e fomentar
uma abordagem crítico-filosófica do fenômeno jurídico enfatizando questões
pertinentes a uma teoria crítica do direito e da norma jurídica. De forma mais
clara, podemos fazer a seguinte apresentação:

A linha de Teoria e Filosofia do Direito, vinculada à Área de Concen-


tração em Pensamento Jurídico e Relações Sociais do Programa de Pós-
-Graduação em Direito da UERJ, abrange a produção científica e as pes-
quisas de docentes e discentes que, a partir de múltiplas abordagens e ei-
xos temáticos, converge no sentido de uma reflexão crítica do direito, que
o entende como parte do tecido social. Tal reflexão é desenvolvida por
investigações, baseadas em elaborações teóricas e análises empíricas, em
perspectiva interdisciplinar com a filosofia, a sociologia, a historiografia
e a ciência política. Dessa forma, reúne estudos sobre o lugar do direito
na dinâmica dos conflitos sociais, com especial ênfase (a) na observação
de sua interação com violências, assimetrias e desigualdades materiais
e simbólicas; (b) no exame de suas conexões com as lutas populares e
movimentos sociais; (c) na investigação de seu potencial transformador
e emancipatório; (d) na avaliação dos limites e possibilidades da relação
entre direito e justiça e, finalmente, (e) na busca de um marco epistemo-
lógico que permita tal compreensão crítica do direito.

O presente livro é o resultado de parte dessa agenda de pesquisa. Aqui,


professores da Linha, pesquisadores de pós-doutorado; alguns doutores e dou-
toras formados na Linha, bem como alguns de seus doutorandos e doutoran-
das, apresentam parte de suas pesquisas. Mas como há um conjunto bem mais
amplo de professoras e professores voltados para o conhecimento crítico do
direito, nós tivemos a alegria de contar com a imprescindível participação de
colegas, amigas e amigos, de outros Programas de Pós-Graduação e Faculda-
des de Direito. Por isso, quero registrar meu agradecimento pela oportunida-
de do compartilhamento das agendas de pesquisa e de uma salutar troca de
ideias com: Nancy Fraser, professora da New School for Social Research; Cecília
MacDowell Santos, professora da Universidade de São Francisco; Flávia Car-
let, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra;
Rodolfo Jacarandá, professor da Universidade Federal de Rondônia; Vinícius
Casalino, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Ricardo
Prestes Pazello, professor da Universidade Federal do Paraná; Pedro Pompeo
Pistelli Ferreira, doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná;
João Paulo Bachur, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Essa
integração e espírito colaborativo entre diferentes universidades e Programas de
Pós-Graduação fortalece a produção acadêmica e científica brasileira.

José Ricardo Cunha


Organizador
Sumário

A Crítica Radical na Ética de Emmanuel Lévinas e Alguns


Limites e Possibilidades Para se Pensar o Direito Outramente.......................... 1
José Ricardo Cunha

Teoria social em Marx............................................................................................39


Guilherme Leite Gonçalves

É o Capitalismo Necessariamente Racista?......................................................... 59


Nancy Fraser

Advocacia Popular e Ativismo Jurídico Transnacional:


Contornos Conceituais à Luz das Epistemologias do Sul.................................85
Cecília MacDowell Santos
Flávia Carlet

Teoria do Direito, Sobreposição Normativa na Amazônia Brasileira e


os Desafios para o Fundacionismo Universalista em Direitos Humanos.....125
Rodolfo Jacarandá

A Forma do Sujeito de Direito em O Capital de Karl Marx............................ 151


Vinícius Casalino

No Ritmo da Contradição: entre a Forma Social-Natural


e a Forma Jurídica a partir de Bolívar Echeverría............................................ 187
Ricardo Prestes Pazello
Pedro Pompeo Pistelli Ferreira

Teoria Crítica e Reificação................................................................................... 219


João Paulo Bachur

A Sujeição ao Direito: Elementos para uma Releitura


do “Sujeito de Direito” em Pachukanis..............................................................253
César Mortari Barreira
Economia política feminista e teoria social em Marx:
para avançar a crítica unitária das relações sociais capitalistas.....................305
Rhaysa Ruas

Proposição À Legitimidade Ética Primeira Crítica ao Direito


Positivo Clássico: o Dilema-Problema entre “O Julgamento
de Eichmann” e “A Lista de Schindler”..............................................................359
Fábio Fernandes Malta Stockler
A Crítica Radical na Ética de Emmanuel
Lévinas e Alguns Limites e Possibilidades
Para se Pensar o Direito Outramente

José Ricardo Cunha1


...a dificuldade para entender o pensamento de
Lévinas, tem a ver com sua inaudita originalidade.
Apesar de sua discrição, este pensamento é absoluta-
mente audacioso: reivindicou um corte radical com
a filosofia ocidental anterior, sem nada ter abdicado
das rigorosas exigências do discurso filosófico.2
François-David Sebbah

Um pensamento crítico é aquele que se opõe ao dogmatismo, que se recu-


sa a aceitar o ser como o sempre mesmo. É um pensamento insubmisso diante
de uma totalidade que é também totalizante. Nesse sentido, poucas teorias são
tão radicalmente críticas quanto a filosofia ética de Emmanuel Lévinas. Trata-
-se de um pensamento que não se acomoda na tradição triunfalista da moder-
nidade e que é inteiramente cético para um conceito de história como marcha
da razão, particularmente pelo fato do próprio Lévinas ter perdido sua família
no holocausto nazista e ter vivido como prisioneiro de guerra durante cinco
anos. Por outro lado, causa certa estranheza, quase uma decepção, que o ho-
mem e cidadão Lévinas não tenha uma biografia repleta de engajamento po-
lítico e social, o que seria de se esperar de um intelectual tão profundamente
comprometido com uma ética radical. Isso especialmente pelo fato de Lévinas
estar em plena maturidade intelectual nas décadas de 1960 e 1970 que foram
tão intensas em termos de engajamento político de intelectuais mais críticos.
A chave para o entendimento de uma eventual decepção é que temos uma
forte tendência a idealizar as pessoas que são referências para a nossa compreen-
são do mundo, especialmente nas questões intelectuais e culturais. Dessa forma,

1 Professor Associado da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Filosofia do Direito pela UFSC e
mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. E.mail: jr-cunha@uol.com.br
2 - SEBBAH, François-David. Lévinas. São Paulo: estação Liberdade, 2009, p. 19.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

transcendemos a obra para nos tornarmos cativos do autor e, com isso, já nos
colocamos na contramão do pensamento crítico. Conhecer uma obra não signi-
fica incensar um autor ou aderir ingenuamente a algum “ísmo”, mas apropriar-
-se cautelosamente de um sistema de pensamento que lhe permita compreender
melhor uma questão e, com isso, desenvolver seu próprio raciocínio. Quando
falamos de teorias críticas, isso significa, também, valer-se de uma teoria ou de
uma ideia para revelar processos de dominação e propor formas de pensar e de
viver que sejam mais libertárias, igualitárias e generosas.
O presente artigo pretende apresentar a crítica radical situada na ética da
alteridade de Emmanuel Lévinas e utilizar esse arsenal filosófico-crítico para
verificar os limites e as possibilidades de se pensar o direito outramente, isto é,
um direito situado fora das estruturas totalizantes da ontologia e radicalmente
comprometido com a ética em um sentido extramoral.

1. A ética levinasiana e a crítica radical da ontologia


Enquanto a tradição da filosofia moral, em geral, apresenta a ética a partir
de pretensões normativas abstratas ou como área do conhecimento que estuda
comportamentos morais, Lévinas vai buscar inspiração na herança fenomeno-
lógica3 para subverter a compreensão da ética. Ele não está interessado, propria-
mente, na constituição de uma teoria normativa, mas, antes, no oferecimento de
fundamentos que permitam a compreensão de um evento relacional fundante e
pré-teórico que se caracteriza por uma abertura radical à alteridade.4 Essa alteri-
dade se revela na forma de um rosto concreto que em sua plena vulnerabilidade
demanda uma entrega total. Na ética levinasiana, a responsabilidade de cada
um pelo humano é levada às últimas consequências. Lévinas costuma fazer re-
ferência a uma frase de Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov, para expressar o
sentido profundo dessa responsabilidade como sendo o essencial da consciência
humana: “Todos os homens são responsáveis uns pelos outros, e eu mais do que
todo mundo.”5 Para Lévinas a responsabilidade é anterior à liberdade e ela surge

3 - Sobretudo nos trabalhos de Edmund Husserl e Martin Heidegger.


4 - Cf. HAROLD, Philip. Profetic Politics: Emmanuel Levinas and the Sanctification of Suffering.
Ohio: Ohio University Press, 2009, p. XIV.
5 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 148.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

exatamente nesse momento de abertura e acolhimento do outro. E nesse evento


se realiza a consciência moral. Assim afirma: se chamamos consciência moral a
uma situação em que a minha liberdade é posta em questão, associação ou aco-
lhimento de Outrem é a consciência moral.6
A base para o pensamento levinasiano é, sem dúvida, a obra de Franz Ro-
senzweig. Em seu A Estrela da Redenção, Rosenzweig faz uma crítica potente
ao conceito ontológico de totalidade, contrapondo à tal ideia a noção de cada
pessoa como ser único e de um mundo sempre plural. Por isso propõe a estrela
no lugar do círculo, pois, para ele, o círculo seria totalizante, ao passo de que a
estrela não seria, já que possui diferentes pontas, sem que uma delas se destaque
como referência única.7 Segundo Rosenzweig, um dos mais graves problemas
da filosofia ocidental foi produzir uma ideia de todo onde o ser humano concre-
to, esse com nome e sobrenome, é substituído por uma representação genérica
que decorre de um conceito abstrato.8 Portanto, é preciso recuperar o sentido da
singularidade do humano, tanto na perspectiva da história de cada sociedade,
quanto do funcionamento das instituições e, sobretudo, da vida de cada pes-
soa concreta. A partir disso, na relação intrínseca entre homem e mundo, será
possível criticar a totalização do mundo para recuperar a pluralidade que lhe é
própria, mas que foi suprimida pela unidade do logos que sustenta a totalidade
do mundo. Até porque a unidade do logos se manifestou historicamente como
violência moral e destruição de saberes oprimidos.
Com efeito, Rosenzweig compreende que a crítica da totalidade implica
a denúncia do logos autocentrado, que se revela na pujança egoica do eu. Por
isso nos lembra que “eu” equivale a um “não” em voz alta, pois o “eu” sempre
sublinha a si mesmo e com isso estabelece inevitavelmente uma oposição.9
Diante disso, propõe uma forma dialógica de pensamento que valorize o in-
terlocutor e suas palavras já que, para ele, a característica fundamental do
humano consiste, exatamente, na capacidade de ouvir, numa disposição para

6 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 91.


7 - ROSENZWEIG, Franz. La Estrella de la Redención. Salamanca: Sigueme, 2006, p. 308. Nesse livro,
no lugar da totalidade opressora da razão triunfante da modernidade, Rosenzweig propõe uma nova
concepção de totalidade formada a partir de uma correlação dinâmica entre as ideias de criação,
revelação e redenção, que expressam os sentidos de Deus, Mundo e Homem, respectivamente, de
forma a entrelaçar nessa mesma dinâmica o passado, o presente e o futuro.
8 - ROSENZWEIG, Franz. Ob. Cit. p. 50.
9 - ROSENZWEIG, Franz. Ob. Cit. p. 218.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

a escuta que institui uma abertura ao infinito.10 Evidente que tal disposição,
como manifestação de um desejo ou de uma vontade, implica uma força moti-
vadora, força essa que seja capaz de se manifestar no espaço do instante, onde
a palavra se projeta. Segundo Rosenzweig, essa força é o amor, pois o amor é
sempre uma exigência do agora, ele não prepara e nem provisiona para o futu-
ro, não é uma propriedade que se acumula, mas um mandamento do presente.
Dessa maneira, o outro, quando tomado pelo amor, mesmo não sendo eu, é
percebido como alguém como eu, ou seja, com corpo, alma, história, dignida-
de, qualidades e limitações, assim como eu as tenho. Dá-se, então, a condição
para aquilo que Rosenzweig denomina de “união redentora” com o próximo,
por meio da qual se produz, concomitantemente, uma união com o mundo.11
Em uma entrevista concedida em 1981 a Philippe Nemo, Lévinas afirma
que foi na filosofia de Franz Rosenzweig que ele encontrou, pela primeira vez,
uma crítica radical da totalidade.12 Pode-se dizer que as reflexões de Rosen-
zweig pavimentaram a estrada seguida por Lévinas e lançaram fundamentos
para o aspecto mais decisivo do pensamento levinasiano: a afirmação de que
a ética deve preceder a ontologia.
Lévinas inicia seu Totalidade e Infinito com duas sentenças instigantes: “A
verdadeira vida está ausente. Mas nós estamos no mundo.”13 Essa dinâmica entre
ausência e presença revela também que estar no mundo não significa, necessa-
riamente, estar mergulhado na vida, ao contrário, pode-se estar mergulhado
na morte. Portanto, existe um desejo de transcendência que será chamado por
Lévinas de desejo metafísico. Tal desejo busca o inteiramente diverso ou o abso-
lutamente outro, algo que está fora de si, mas que não vem para completá-lo. É o
desejo de algo que não pode ser incorporado a si mesmo, daquilo que nunca se
poderá ter, por isso mesmo, um desejo fora do comércio. É o desejo metafísico
que impulsiona o eu em direção ao absolutamente outro, a essa alteridade radi-
cal e incontrolável que está muito além da simples presença de si.
Para que se tenha uma noção adequada do cenário de onde brota o dese-
jo metafísico, é preciso compreender que, segundo Lévinas, a consciência de

10 - ROSENZWEIG, Franz. Ob. Cit. p. 222.


11 - ROSENZWEIG, Franz. Ob. Cit. p. 285.
12 - LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 61.
13 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 19.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

si como uma identidade humana universal alcançada pela razão, se insere no


contexto da relação homem/mundo onde ambos se reforçam numa totalidade
ontológica que institui o sempre mesmo. O mundo é a casa do homem, aquilo
que lhe protege do diferente, assim o mundo deixa de ser “outro” para se tor-
nar “mesmo”, a afirmação do eu. Diz o autor:

O eu, num mundo, à primeira vista, outro, é no entanto autóctone. É


o próprio reviramento dessa alteração; encontra no mundo um lugar e
uma casa... O “em sua casa” não é um continente, mas um lugar onde
eu posso, onde, dependente de uma realidade outra, sou, apesar dessa
dependência, ou graças a ela, livre... Tudo está ao alcance, tudo me per-
tence; tudo é de antemão apanhado com a tomada original do lugar,
tudo está compreendido. A possibilidade de possuir, isto é, de suspender
a própria alteridade daquilo que só é outro à primeira vista e outro em
relação a mim – é a maneira do Mesmo... É preciso tomar a sério o revi-
ramento da alteridade do mundo na identificação de si. Os “momentos”
dessa identificação – o corpo, a casa, o trabalho, a posse, a economia
– não devem figurar como dados empíricos e contingentes, chapeados
sobre a ossatura formal do Mesmo; são as articulações dessa estrutura.14

Como se depreende da leitura, vivemos numa totalidade que reforça


tanto as identidades quanto as estruturas vigentes à maneira de um “sempre
mesmo” que não leva a sério a verdadeira alteridade, não apenas porque a
alteridade se difere do mesmo, mas, sobretudo, porque ela contesta a própria
mesmidade. Dessa forma, somos acostumados a viver no sempre igual como
aquilo que define a nossa casa, ou seja, nossa zona de posse e de conforto; além
disso, nos tornarmos alérgicos às diferenças e adquirimos a tendência a recha-
çar os diferentes, bem como a reforçar as formas de viver e as formas de pensar
que já estão padronizadas. Nesse sentido, desenvolvemos uma predisposição
a nos relacionarmos com o mundo por meio de movimentos de identificação.
Em outras palavras, naquilo que depende de nós, antes do estabelecimento de
relações efetivas, buscamos saber qual a identidade: o quê é, quem é, de forma
a nos mantermos dentro do círculo ontológico do mesmo.
Em seu livro De Outro Modo que Ser ou para Além da Essência, Lévi-
nas afirma a totalidade como uma essência ontologicamente expressada pela
ideia do ser. Como uma essência, o ser é aquilo que tem o interesse de ser, de

14 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 24.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

seguir sendo, isto é, uma afirmação de si que se apresenta como conatus, ou


seja, como um impulso ou um esforço para a perseverança do seu ser.15 Esse
esforço está presente tanto no eu quanto no mundo, pois o ser é uma ordem
que unifica todas as coisas no tempo, é uma sin-cronia que gera a mesmidade.
A ruptura com essa ordem totalizante do ser não significa apenas uma nega-
ção do ser. Não se trata de ser ou não ser, nem mesmo de ser de outro modo,
mas de um estranhamento radical, isto é, de outro modo que ser. Somente
assim é viável quebrar o círculo ontológico, de modo que seja possível se en-
trar em contato com o diferente sem privá-lo de sua alteridade, sem puxá-lo
para o mesmo, possibilitando que ele mantenha sua própria autonomia. Essa
inflexão radical de pensamento, Lévinas já havia manifestado em Totalidade
e Infinito, ao indicar que é preciso transcender a totalidade para se romper o
mesmo. E isso não é apenas um movimento de desprendimento do eu ou de
encontro com o outro, mas a compreensão da outricidade como algo anterior
à própria totalidade e que dela se descola. Em suas palavras:

O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de


uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de
uma alteridade feita da resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade
anterior a toda a iniciativa, a todo imperialismo do Mesmo; outro de
uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro; outro de
uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro
não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria,
dentro do sistema, ainda o Mesmo.16

Esse movimento de transcendência é também um momento de ruptu-


ra onde a subjetividade, como capacidade de autorreflexão, se manifesta por
meio da interrupção da sua submissão à totalidade e se apresenta como o des-
nudamento da essência.
É importante que se esclareça, desde logo, que a inspiração fenomeno-
lógica de Lévinas faz com que sua forma de raciocinar não prescinda da re-
alidade concreta. Por isso mesmo ele afirma que a transcendência realizada
pelo desejo metafísico não ocorre por meio do pensamento puro e simples,

15 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, p. 46.
16 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 25.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

mas pela linguagem,17 já que ela implica um sair de si mesmo para se colocar
diante de um interlocutor, que é o outro. Em suas palavras: uma relação cujos
termos não formam uma totalidade só pode pois produzir-se na economia geral
do ser como indo de Mim para o Outro, como frente a frente...18 Não que o pen-
samento esteja abolido desse processo, mas ele é ressignificado pela presença
de outrem que demanda de mim não apenas a percepção da alteridade, mas
a capacidade de ouvir e a disposição para o acolhimento. Essa presença do
outro diante de mim numa relação que se estabelece face a face é o que pode
me retirar da totalização e de qualquer essência para me lançar na experiência
do genuíno fenômeno da outricidade, que é irredutível ao mesmo, irredutível
à minha própria identidade. É aqui que se estabelece a crise profícua como
condição da crítica radical: enquanto a ontologia tenciona enquadrar o outro
no mesmo e para isso pretende conceituá-lo, defini-lo e reconduzi-lo à cate-
gorias abstratas, a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas
põe em questão o exercício do Mesmo.19 Ocorre aqui uma ruptura visceral com
a tradição da filosofia ocidental que adota o problema do ser como ponto de
partida, fazendo da ontologia seu próprio coração. Perguntar-se “o quê é?” ou
“quem é?” é um esforço de reconstrução conceitual que está na base da nossa
relação com o mundo, sempre em busca de uma essência ou natureza primei-
ra que defina o ser de tudo e todos. Assim, nos acostumamos a lidar com o
mundo por intermédio de uma mediação ontológica, o que faz da ontologia
uma filosofia primeira. Contra isso, Lévinas desfere palavras duras:

A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder. Desem-


boca no Estado e na não-violência da totalidade, sem se presumir con-
tra a violência de que vive essa não-violência e que se manifesta na
tirania do Estado. A verdade, que deveria reconciliar as pessoas, existe
aqui anonimamente. A universalidade apresenta-se como impessoal e
há nisso uma outra inumanidade.20

17 - A filosofia não como narrativa e sim como linguagem, como capacidade de ouvir e disposição para o
diálogo, é algo que Rosenzweig também já havia assinalado. Cf. ROSENZWEIG, Franz. The new thinking.
In Philosophical and Theological Writings. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2000, p. 125.
18 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 26.
19 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 30.
20 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 33.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

A crítica é, portanto, condição necessária para uma emancipação diante


da totalidade, pois ela interrompe o círculo vicioso por ela produzido e ofe-
rece o espaço necessário para a diferença disruptiva. Nesse sentido, a crítica
da totalidade é uma crítica à violência e às diferentes formas de exploração,
opressão e exclusão. Contudo, a dificuldade básica para esse movimento de
crítica é que ela supõe, antes de tudo, uma certa desconfiança de si, uma im-
pugnação do egocentrismo para que se possa sentir a angústia de viver num
mundo onde a verdadeira vida está ausente, onde processos de dominação
instrumentalizam o humano para reduzi-lo ao desumano ou ao inumano.
Nesse sentido, a crítica à totalidade possui uma dimensão teórica ou episte-
mológica na medida em que coloca a nossa compreensão do sistema-mundo
num patamar distinto das ideias dominantes. Todavia, possui também uma
dimensão ético-moral na medida em que provoca a minha indignação diante
do sofrimento do outro e das situações de injustiça social. Em relação a isso,
vale notar duas coisas relevantes: 1) a dimensão ético-moral da crítica é ante-
rior à dimensão teórica ou epistemológica, pois conhecer a realidade não sig-
nifica, necessariamente, se indignar diante dela. É preciso adquirir o espírito
da indignação que resulta do pensamento crítico para olhar para a realidade
não apenas como um voyeur intelectual alimentado pela curiosidade, mas sim
como quem se deixa afetar por ela e, diante dela, assume um compromisso
de transformação; 2) esse compromisso que resulta da indignação típica da
ordem ético-moral deve ser tomado como sendo pessoal e intransferível, ou
seja, trata-se de um compromisso efetivo que recai sobre mim nas minhas
condições concretas, na pessoa que eu sou, nas coisas que eu faço e no mundo
que eu vivo, não é algo que se arrefece ou possa ser escondido em protocolos,
etiquetas, abstrações e universalizações. É nesse sentido que entendo a colo-
cação de Lévinas ao dizer que a crítica da espontaneidade gerada pela consci-
ência da indignidade moral precede a verdade, precede a consideração do todo
e não supõe a sublimação do eu no universal.21
Essa capacidade de pensar-se a si mesmo e pensar o mundo de forma
crítica é uma verdadeira revolução no sujeito, pois o liberta daquela totalidade
ontológica que é o tempo da história universal, onde a existência concreta e as
singularidades se perdem ao serem recolocadas em narrativas gerais. É nessa
brecha de possibilidade que nos situamos como seres separados da essência,

21 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 73.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

daquele “mesmo” que infunde o ser e o mundo. A consciência dessa separação


é imprescindível para que se compreenda efetivamente que eu, outro e mundo
são coisas distintas e irredutíveis umas às outras, ainda que sejamos tentados,
de várias maneiras, por ímpetos de assimilação. A separação é o que faz de
mim alguém próprio e que não pode ser diminuído por categorias jurídicas,
políticas ou culturais. Nas palavras de Lévinas: a separação indica a possibili-
dade para um ente de se instalar e de ter seu próprio destino, ou seja, de nascer e
de morrer sem que o lugar desse nascimento e dessa morte no tempo da história
universal contabilize a sua realidade.22
Pela separação que constitui minha subjetividade, não apenas eu me dis-
tingo do mundo como, também, posso distinguir o outro de mim e entendê-lo
como alguém próprio. Pela capacidade de crítica, posso por em questão a to-
talidade ontológica que não leva em conta a singularidade do existente e nem
as condições concretas da existência e, desse modo, produz uma captura do
outro, do diferente, no sempre mesmo. Nesse sentido, a crítica se revela como
tarefa ética de primeira grandeza, pois cria as condições para a consideração
pelo outro na sua própria outricidade, sem enquadrá-lo em essências ontolo-
gizantes. Essa consideração, no âmbito da ética, se expressa como verdadeira
limitação ao egocentrismo e ao egoísmo, já que se converte em acolhimento
do outro, como quem cede espaço da sua própria casa para abrigar um hóspe-
de. Em um importante trecho de Totalidade e Infinito, Lévinas escreve:

...a crítica não reduz o outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe
em questão o exercício do Mesmo. Um pôr em questão do Mesmo –
que não pode fazer-se na espontaneidade egoísta do Mesmo – é algo
que se faz pelo Outro. Chama-se ética a esta impugnação da minha
espontaneidade pela presença de Outrem. A estranheza de Outrem – a
sua irredutibilidade a Mim, aos meus pensamentos e às minhas posses
– realiza-se precisamente como um pôr em questão da minha espon-
taneidade, como ética. A metafísica, a transcendência, o acolhimento
do Outro pelo Mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente
como a impugnação do Mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que
cumpre a essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dog-
matismo, a metafísica precede a ontologia.23

22 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 43.


23 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 30.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

É fundamental que logo se esclareça que o sentido aqui atribuído por Lé-
vinas à palavra metafísica é aquele expresso na ideia de desejo metafísico, que
consiste exatamente na abertura do eu para a busca do absolutamente outro.
Com efeito, a metafísica levinasiana – de forma contraintuitiva, vale dizer – se
confunde com a própria ideia de ética.24 Por esse motivo a afirmação presente
ao final do parágrafo citado costuma ser expressa pelos comentaristas de Lé-
vinas como sendo “a ética precede a ontologia” e é, sem dúvida, a ideia mais
importante, e também mais conhecida, da obra levinasiana.
Do ponto de vista de uma ética da alteridade, enquanto a moralidade tem
a ver com o senso do dever, tendo em vista o certo e o errado e o conjunto de
valores associados a essa operação da razão, a ética, por sua vez, é entendida a
partir do lugar do outro, como consideração pelo outro. Nessa perspectiva, o
protagonismo é deslocado da razão abstrata para a pessoa concreta que deve
ser tomada a partir dela mesma e não por mediações e representações, pois
a existência quando subordinada à ontologia significa o desaparecimento do
existente. Num artigo seminal de 1951 chamado A Ontologia é Fundamental?
Lévinas se pergunta: aquele a quem se fala é previamente compreendido no
seu ser? Então responde de forma clara e direta: de forma alguma. Outrem não
é primeiro objeto de compreensão e, depois, interlocutor.25 O problema é que a
ontologia coloca a pessoa na condição de objeto e limita o significado de suas
formas de manifestação ao enquadrar tais formas em categorias prévias do
ser. Já a ética toma o outro a partir de suas manifestações mesmas, do seu jeito
de se expressar e de dizer, implicando uma invocação do outro que é também
afetação por outrem. Esse modo de ser afetado pelo outro indica que outrem
está fora de minhas posses e além do meu controle, e a busca de algum meio
de domínio sobre o outro seria a sua própria negação como sujeito, seria sua
eliminação, como num homicídio.26
A relação ética acarreta proximidade. Ela surge do entendimento de que
somos seres separados, mas cria as condições necessárias para a produção de
pontes que aproximam os sujeitos e nessa aproximação coloca em destaque

24 - Diz Lévinas: “A metafísica tem lugar nas relações éticas.” LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e
Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 69.
25 - LÉVINAS, Emmanuel. L’ontologie Est-Elle Fondamentale? Revue de Métaphysique et de Morale.
Paris, PUF, volume 56, nº 1, p. 93, março, 1951, from http://www.jstor.org/stable/40899550
26 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 96.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

a responsabilidade que eu tenho sobre o outro. A proximidade, a presença, o


rosto de outrem gritam pela minha responsabilidade, ainda que eu queira me
desvencilhar dela, negando, com isso, meu próprio dever ético. Para ilustrar
essa ideia, Lévinas se vale de uma passagem da Bíblia, no antigo testamento:

É no Rosto do Outro que vem o mandamento que interrompe a marcha do


mundo. Por que me sentiria eu responsável em presença do Rosto? Esta é a
resposta de Caim, quando se lhe diz: “Onde está teu irmão?” ele responde:
“Sou eu guarda de meu irmão?”... Não se deve tomar a resposta de Caim
como se ele zombasse de Deus, ou como se respondesse à maneira de uma
criança” “Não sou eu, é o outro”. A resposta de Caim é sincera. Em sua
resposta só falta a ética; nela só há ontologia: eu sou eu e ele é ele.27

A ética precede a ontologia porque o rosto de outrem não é uma cate-


goria a ser analisada, mas a expressão da minha responsabilidade sobre ele
e, nesse sentido, ultrapassa qualquer ideia ou conceito que eu dele possa ter.
Como diz Lévinas a epifania do rosto é ética.28
A afirmação de que a ética precede a ontologia traz consequências extraor-
dinárias. Não importa quem eu seja – pois não se trata de definir previamente a
minha essência ou conhecer meu lugar social –, eu sempre terei uma responsa-
bilidade por outrem. A própria subjetividade é reconstituída a partir dessa ideia,
pois ela passa a ser definida por essa relação com o outro, mais precisamente
por esse dever de cuidado com o outro. Isso implica uma refundação da subje-
tividade para além do ser ou da essência e, por isso mesmo anterior ao tempo
histórico. A ética recoloca a subjetividade como corolário de uma responsabi-
lidade que não decorre da minha decisão ou vontade e nem mesmo resulta da
liberdade que eu o outro possamos ter. A responsabilidade é anterior a todo
conhecimento e a toda ontologia; ela se funda sobre a própria coabitação do
mundo, pelo fato da existência de outrem, pela inevitável pluralidade de uma
sociedade que vai para além da essência. É expressivo o seguinte trecho:

Mas a relação com um passado aquém de todo o presente e comple-


tamente re-presentável – pois não pertencendo à ordem da presen-
ça – está incluída no acontecimento extraordinário e quotidiano da
minha responsabilidade pelas faltas ou miséria dos outros, na minha

27 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 151-152.
28 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 194.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

responsabilidade que responde pela liberdade de outrem; na admirá-


vel fraternidade humana onde a fraternidade por si mesma – pensada
com a frieza sóbria de Caim – não explicaria ainda a responsabilidade
entre seres separados que ela clama. A liberdade de outrem nunca po-
deria ter começado na minha, isto é, pertencer ao mesmo presente, ser
contemporânea, ser-me representável. A responsabilidade por outrem
não pode ter começado no meu compromisso, na minha decisão. A
responsabilidade ilimitada onde me encontro vem de aquém da minha
liberdade, de um “anterior-a-toda-a-recordação”, de um “ulterior-a-
-toda-realização”, do não-presente, do não-original por excelência, do
an-árquico, de um aquém ou de um para lá da essência.29

Ao defender que a ética precede a ontologia, Lévinas faz um esforço ex-


cepcional para mostrar que a responsabilidade é anterior ao conceito de ser
que costuma definir a origem de tudo, sendo, assim, pré-original. Na filosofia
antiga, a palavra grega utilizada para designar uma força primeira ou princí-
pio que governa, elemento fundante e perene, é ἀρχή ou arché – eventualmen-
te grafada como arkhé ou arké – que dá origem ao sufixo “arquia” presente em
várias palavras em língua portuguesa. Pois Lévinas diz que a responsabilidade
é an-árquica por considerá-la anterior às forças que governam o mundo, an-
terior a qualquer eventual contrato social e a todo acordo, ela está aquém ou
para além do tempo do ser.
Para a ética da alteridade, o rosto do outro tem uma especial significação
por várias razões. Em primeiro lugar, o rosto indica presença e proximidade,
institui uma relação tão concreta quanto o espaço físico que se compartilha;
em segundo, o rosto carrega consigo a possibilidade da fala e do ouvir, ou seja,
do estabelecimento de um diálogo que pode promover compreensão e enten-
dimento; em terceiro lugar o rosto é o semblante que expressa afeto e senti-
mentos, por ele pode se identificar a dor e o sofrimento do outro, mas também
sua alegria e júbilo; e por fim, o rosto não é um fenômeno que se entrega obje-
tivamente, ele traz algo de enigmático que deve ser desvendado por meio dos
vestígios que apresenta.30 Todo rosto traz expressões que são também pistas a
serem investigadas como um enigma que transcende o presente na direção de
uma história única e repleta de acontecimentos, símbolos e significados. Cada

29 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, p. 54.
30 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., pp. 56-57.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

pessoa que me faceia é um infinito que se abre diante de mim. Todavia um


infinito fora das minhas posses. Não se trata da minha liberdade de usar, go-
zar e dispor do outro como se fosse minha propriedade, mas, antes, da minha
responsabilidade pelo outro, responsabilidade máxima e intransferível que,
no limite, segundo Lévinas, chega ao ponto da substituição, isto é, de tomar o
lugar do outro para sua máxima preservação, como quem se entrega no lugar
de um refém, para que ele possa ser libertado. A ideia de refém é tanto literal
quanto metafórica, e, em qualquer caso, sugere algo que está para além do
egoísmo, mas também para além do altruísmo, já que expressa o exercício de
uma responsabilidade por outrem. Contudo, não há dúvida de que essa repon-
sabilidade pré-originária torna possível virtudes humanas essenciais à vida
social. A ideia aqui é a seguinte: nossa responsabilidade absoluta por outrem
nos mantém permanentemente à disposição do outro, de maneira que nos
tornamos, de certa forma, reféns do outro. Mas essa condição de refém, que
parece ser tão assustadora e inoportuna, designa um estado de entrega que é
a própria antítese do egocentrismo, abrindo espaço para a generosidade. Nas
palavras de Lévinas: é graças à condição de refém que pode haver piedade no
mundo, compaixão, perdão e proximidade, inclusive o pouco que nele encon-
tramos, mesmo o simples “você primeiro”.31 Não se trata de ser para si, mas para
o outro e pelo outro.
Como dito antes, estamos no centro de um pensamento radical, que não
se preocupa em fazer concessões para se tornar mais palatável. A ética levi-
nasiana implica uma maneira de entender a si e ao mundo totalmente fora de
um paradigma autocentrado, que insiste que o meu ser, minha consciência,
minhas ações, meu espaço e minhas posses são aquilo que de mais importante
pode existir. Para além do individualismo possessivo, tão ao gosto do capita-
lismo, essa ética implica compartilhamento a começar pela, não apenas da
entrega dos bens, mas de entrega de si, a partir do que tudo mais é corolário.

31 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 134.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

2. Limites e possibilidades para se


pensar o direito outramentre
Apesar da filosofia de Lévinas não ser tão conhecida, difundida e deba-
tida quanto a de outros autores ligados à ética e à filosofia moral, a forte onda
da crítica pós-estruturalista serviu, de alguma maneira, para difundir mais a
obra levinasiana. Isso permitiu uma apropriação de seu pensamento em di-
versas áreas do saber, onde a questão da alteridade passou a funcionar como
uma espécie de princípio comum de análise das relações sociais. Embora po-
sitivo em muitos aspectos, esse movimento corre um risco epistemológico que
pode ser chamado de “efeito Lévinas”, isto é, que suas categorias filosóficas
sejam apontadas como uma espécie de solução geral para todos os problemas
contemporâneos. Não obstante a questão da alteridade esteja, de fato, presente
como um tema geral e importante da modernidade, não se pode ter a expec-
tativa de ela seja um tipo de vara de condão que resolva todos os problemas
filosóficos, políticos e sociais. Nem Lévinas teve tal ambição. Contudo, e por
outro lado, parece extremamente interessante, e até promissor, que se intro-
duza a ética da alteridade como elemento de crítica em diferentes áreas do
conhecimento, de forma a testarmos algumas possibilidades e limites dessa
crítica. Esse é o caso do Direito, especialmente pelo fato de ter a bilateralidade
como uma de suas características centrais; sem o outro não há relação jurí-
dica, por isso a alteridade é especialmente relevante para o direito. Contudo,
essa alteridade, geralmente, é tomada como ameaçadora e o sistema se volta
muito mais para o fortalecimento do “eu” do que para o acolhimento do ou-
tro.32 Daí o desafio de se pensar o direito outramente.
Outramente é um dos neologismos criados por Lévinas. Ganhou destaque
no título de seu livro Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Esse estranho ad-
vérbio “outramente” expressa uma fissura naquela tradição ontológica que reduz
tudo ao mesmo por intermédio de conceitos, categorias e representações. Impor-
tante ter em mente que essa fissura na ontologia se realiza não por ser de outro
modo (o que ainda estaria no campo do ser), mas por outro modo de ser, isto é,
pelo desfazimento da condição ontológica. O caminho para isso, segundo Lévi-
nas, é a ética, pois ela redefine a subjetividade humana a partir da responsabilida-

32 - Cf. AGUIAR, Roberto. Alteridade e Rede no Direito. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.3, n.6, 2006.

14
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

de incondicional pelo outro. A isso Lévinas chama de incondição humana.33 Nessa


linha de reflexão, vai, então, a pergunta: seria possível pensar o direito outramen-
te? Não o direito de outro modo, mas um outro modo de ser direito.
Esse desafio de repensar criticamente o direito a partir da ética levinasia-
na tem sido aqui e ali enfrentado, não apenas no âmbito específico da filosofia
do direito, mas em outras áreas como, por exemplo, direitos humanos, direito
internacional e direito civil. Embora não haja uma literatura tão abundante,
há reflexões bem expressivas e interessantes.34 Contudo, é importante que fique
claro que a crítica do direito a partir da ética da alteridade não se confunde em
nada com o debate sobre a relação entre direito e moral, que foi especialmente
difundido em função da altercação entre os adeptos do positivismo jurídico e
os adeptos do pós-positivismo. Assim, a ética da alteridade quando aplicada ao
direito não tem nada a dizer diretamente sobre problemas de validade, vigência
ou eficácia da norma, ou ainda sobre lógica jurídica e teorias da argumentação.
Todavia, ela pode oferecer parâmetros transontológicos que ajudem a reposicio-
nar o lugar do humano no âmbito do direito. Não se trata de mais um estudo so-
bre a dignidade da pessoa humana, já que conhecer a dignidade, debater o que é
dignidade, já representa uma captura ontológica do humano. Não que o debate
sobre a dignidade humana seja desimportante ou acrítico, muito pelo contrário.
É que a proposta ética levinasiana se coloca acerca da responsabilidade como
marca pré-originária da subjetividade. Esse sentido da responsabilidade ética
pode ser importante não apenas para criticar certos aspectos do direito, como
para orientar a conduta daqueles que lidam com o direito, especialmente no
âmbito do sistema político e do sistema de justiça.

33 - LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 83.


34 - Seguem algumas referências que indicam essa literatura e podem ser úteis aos pesquisadores
interessados: MANDERSON, Desmond. (ORG.) Essays on Levinas and Law: A Mosaic. Londres:
Palgrave Macmillan, 2009; STONE, Matthew. Levinas, Ethics and Law. Edimburgo: Edinburgh
University Press, 2016; DIAMANTIDES, Marinos. (Org.) Law, Levinas, Politics. Abingdon:
Routledge-Cavendish, 2009; MANDERSON, Desmond. Proximity, Levinas, and the Soul of Law.
Montreal: McGill–Queen’s University Press, 2006; SMITH, William H. Levinas and the Law of
Torts. Oxford: Oxford University Press, 2019; PIMENTA, Leonardo Goulart. Responsabilidade
e direito na teoria de Emmanuel Lévinas. Revista Eletrônica Direito e Política, v.7, n.2, 2012;
CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. A Teoria da Alteridade Jurídica: em busca do conceito
de direito em Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2016; AGUIAR, Diogo Villas Boas.
SILVA, Guilherme Ferreira. GOMES, Magno Federici. Política, Direito e Ecologia. IV Seminário
Internacional Emmanuel Levinas –Belo Horizonte; Conpedi, 2019.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

Um ponto de partida interessante para essa reflexão é o fato de que para a


ética da alteridade o outro não pode ser representado, já que qualquer represen-
tação é também uma redução da outricidade e por conseguinte da própria hu-
manidade. Como dito antes, o rosto não é apenas uma metáfora, mas também a
expressão de uma proximidade real. Não há conceito ou palavra que manifeste
tanto sobre outrem quanto o seu próprio rosto. Aqui já estamos diante de uma
primeira aporia na nossa reflexão, já que o direito positivo sempre captura o hu-
mano em categorias jurídicas, transforma quem em quê. Aos poucos, os iniciados
no direito e os administrados de órgãos públicos tendem a se distanciar cada vez
mais das pessoas reais e a convertê-las em conceitos ou abstrações. Como conse-
quência, em certas situações-limite, há pessoas que se veem na absurda situação
de terem que provar que elas são elas mesmas. Uma citação feita a homônimo,
uma prova de vida perante a órgão de seguridade, um documento perdido numa
cena de crime, um reconhecimento de imagem feito equivocadamente são exem-
plos de situações que revelam como o sistema trabalha transformando pessoas em
categorias ou números, e os problemas práticos que isso pode causar na vida de
pessoas comuns. Para os que são mais pragmáticos, essa forma de operar poderia
se justificar pela necessidade de administração impessoal e de massa. Entretanto,
sob uma perspectiva ética, isso gera riscos significativos.
Tais riscos se distinguem numa escala de gravidade. Em um nível mais
tênue temos o problema da superficialidade, isto é, não considerar as pessoas
pelo que elas realmente são, pela sua história de vida, por suas condições ma-
teriais e pelas concepções de bem que elas carregam e moldam sua presença
no mundo. Já em um nível mais dramático, o risco dessa abstração jurídica
do humano está ligado ao problema da denegação de reconhecimento aos ele-
mentos que permitem a autorrealização do outro. Via de regra, isso está ligado
ao problema de uma hierarquia de identidades instituída na sociedade, hierar-
quia essa que oprime certos grupos e reduz as oportunidades sociais das pes-
soas que integram esses grupos oprimidos. Isso é visível em violências como o
racismo, o machismo ou a LGBTfobia. O reconhecimento da importância e da
dignidade intrínseca das pessoas que manifestam traços dessas identidades
socialmente subalternizadas é uma questão fundamental para a autorreali-
zação e para a luta contra a opressão. Com efeito, quando o direito positivo
reduz essas pessoas a categorias jurídicas, isso pode significar uma dramática
denegação de reconhecimento. Já em um nível devastador, essa transformação

16
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

de pessoas em categorias ou números, pode significar uma brutal desumani-


zação. E aqui é importante ter em conta que a desumanização é o caminho
para a destruição ou aniquilação de pessoas em sociedades que cultivam o
ódio como maneira de fazer política. O exemplo mais contundente é o do mo-
vimento nazista do século XX. O nazismo ascendeu institucionalmente e com
apoio de boa parte da população, e o fez exatamente apoiado sobre o precon-
ceito e o discurso de ódio. Após se instalar no poder do Estado, instituiu uma
política de desumanização do suposto inimigo. Essas pessoas deixaram de ser
pessoas e foram convertidas em categorias: judeus, comunistas, sindicalistas,
negros etc. Não eram mais pessoas, eram predicativos abstratos e números.
No auge, essa desumanização transformou todos esses “inimigos de estado”
em ratos. Basta lembrar que a experimentação do genocídio nos campos de
extermínio começou em câmaras de gás alimentadas por veneno para matar
ratos. E para aqueles que acham que essa já é uma página virada na história
da humanidade, nunca é demais lembrar o crescimento de grupos neonazistas
em todo o mundo nas primeiras décadas de século XXI.35
Essa escala de gravidade em torno do que pode significar o processo de
abstração de pessoas concretas, pode ser mais chocante ou menos chocante. De
qualquer forma, o problema ético central é que admitir que cabe ao sistema jurí-
dico definir a identidade de outrem por meio de suas próprias categorias legais,
é um algo violento e perverso, pois ao fazer isso se reinsere o outro na totalidade
ontológica. Como dito antes, estamos sim diante de uma aporia, pois é sabido
que o direito opera, de maneira geral, convertendo pessoas, demandas e situa-
ções juridicamente relevantes na linguagem universalizável de direitos, deveres,
titularidades legais e procedimentos judiciais; e ao fazer isso, tende a privar as
pessoas de sua própria singularidade. Como afirmam Costas Douzinas e Adam
Gearey, quase por definição e necessidade, o direito esquece a diferença do di-
ferente e a alteridade do outro e, nesse sentido, não pode escapar da injustiça.36
Para a ética da alteridade, o outro sempre deve se apresentar e se dizer a si mes-
mo. A única forma que eu tenho de ter acesso a ele é, exatamente, permitindo
que ele se manifeste como outro que é, como diferente e único, irredutível às for-
mas de representação da ontologia. Todavia, dentro da ontologia e fora da ética,

35 - Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_neo-Nazi_organizations Acesso em 15 de junho de 2020.


36 - DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 165.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

o raciocínio dos juristas, no mais das vezes, funciona a partir de generalizações


e universalizações; desencarna o sujeito real para lhe conferir um tratamento
neutro diante das normas jurídicas, por isso Iustitia, a deusa romana da justiça,
era representada com os olhos vendados. Para o direito, o outro não é o outro
concreto, mas o outro generalizado em abstrações jurídicas. Com isso, perde-se
a dimensão ética própria da outricidade, que é fundamental para que esse outro
possa se afirmar como é, sem mediações. Seguindo no diálogo com a teoria
crítica do direito de Douzinas e Gearey:

As regras legais e sua mentalidade são estranhamente amorais; prome-


tem substituir a responsabilidade ética pela aplicação mecânica de regras
predeterminadas e moralmente neutras e a justiça pela administração da
justiça. Mas tem mais... a filosofia moral em seu imperialismo ontológico
precisa e cria o “outro generalizado”. O sujeito legal é uma persona, uma
máscara, véu ou venda colocada em pessoas reais que, ao contrário das
abstrações da filosofia moral, ferem e sofrem. É duplamente importan-
te, portanto, tirar a máscara do rosto da pessoa e a venda dos olhos da
justiça... A ética da alteridade desafia esses pressupostos ontológicos e
epistemológicos. Essa ética sempre parte do outro e desafia as várias for-
mas como o outro foi reduzido ao mesmo. O outro não é o alter ego do
eu; uma extensão do self. Nem é o outro a negação de si em uma relação
dialética que pode ser totalizada em uma síntese futura.37

Muito provavelmente, um dos principais motivos pelos quais a razão ju-


rídica trabalha com o “outro generalizado”, é a necessidade de equalização
abstrata de todas as pessoas, decorrente, por sua vez, dos interesses da burgue-
sia ascendente após a queda do antigo regime. A liberdade de agir da burgue-
sia dependia da afirmação de que todos seriam iguais, ao menos perante a lei.
O princípio da legalidade com sua máxima de que ninguém fará ou deixará
de fazer senão em virtude da lei, acolheu as pretensões de liberdade oriundas
da revolução liberal-burguesa. Com efeito, a liberdade foi consagrada como
valor máximo das sociedades modernas, mas sempre no plano das abstra-
ções e generalizações. Em outras palavras, do ponto de vista do princípio da
legalidade, todos são livres para serem banqueiros, ainda que, de fato, apenas
alguns muito ricos possam sê-lo. Temos então uma contradição: no plano abs-
trato a liberdade é extensa e generalizada, mas no plano concreto ela é redu-

37 - DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 163

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

zida e seletiva. De qualquer forma, a modernidade liberal e capitalista confere


uma significação sagrada à liberdade, colocando-a como elemento primeiro
da existência humana. Ora, também esse sentido mítico da liberdade a éti-
ca da alteridade irá tomar criticamente, não na perspectiva de desprezar ou
menosprezar a liberdade, mas de compreender que a minha liberdade pode
ser arbitrária e violenta. Daí que a consciência ética se realize no momento
em que a pessoa se dá conta de que o outro não é um ente manipulável posto
à sua disposição, ao contrário, cabe a mim colocar-me à disposição para o
acolhimento de outrem. Nas palavras de Lévinas: é o acolhimento de Outrem,
o começo da consciência moral, que põe em questão minha liberdade. Esta ma-
neira de se confrontar com a perfeição do infinito não é, pois, uma consideração
teorética. Realiza-se como vergonha em que a liberdade se descobre como mor-
tífera no seu próprio exercício.38 É dramático perceber como o aparato jurídico
e o princípio da legalidade podem funcionar, por vezes, como uma forma de
se tentar justificar uma liberdade mortífera, mas que por estar amparada em
leis se torna desavergonhada e até normalizada. A intercessão ética perante
o direito é especialmente importante para manter a mente dos juristas alerta
para o fato de que a liberdade não deve ser exercida de forma insensível ao
outro, mesmo que dentro da lei. O abuso de direito, antes de ser uma categoria
jurídica, é um apelo ético: summum ius, summa iniuria!
É preciso que a ética interrompa o direito para desdogmatizar a liberda-
de, a fim de que ela não seja usada como uma arma do egocentrismo, como
uma forma de dominação do outro, o que seria a própria falência da ética. Isso
requer, antes de tudo, compreender que o sistema jurídico não deve ser utili-
zado como um meio de desprezo ou aniquilação da alteridade, ou, como diz
Lévinas, que Outrem não nos afeta como aquele que é preciso sobrepujar, en-
globar, dominar – mas enquanto outro, independente de nós.39 O mal não deve
ser perpetrado pelo direito. Esse é um dos principais pontos de reflexão que
decorrem da análise feita por Hanna Arendt do julgamento de Adolf Eich-
mann40, que foi um dos principais oficiais de intendência do partido nazista,
responsável pela logística de campos de extermínio. Em seu julgamento em Is-

38 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 73.


39 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 79.
40 - Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.

19
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

rael, no ano de 1961, Eichmann insistiu na tese de que apenas cumpria ordens,
de que agia dentro da legalidade. Ora, para os que argumentavam que o nazis-
mo foi uma monstruosidade, não parece um monstro quem age dentro da lei.
Isso revela que o mal não estava apenas nos nazistas, mas também na ordem
jurídica instituída. Mesmo que se argumente que havia certa legitimidade so-
ciológica na ordem social nazista alemã, em função da adesão da maioria da
população, a ética da alteridade nos permite perceber que a reprovação da
ordem nazista transcende a dimensão sociológica, e mesmo moral, pois não
se trata de saber se havia maior ou menor adesão, e nem mesmo de saber se as
normas eram consideradas certas ou erradas, pois toda essa discussão se passa
já no plano ontológico. O direito nazista, independentemente do senso de mo-
ralidade da sociedade alemã da época, era antiético, obcecado pela ontologia,
preocupado em catalogar pessoas. O resultado, antes mesmo do genocídio, foi
o “altericídio”, isto é, o extermínio do diferente. É exatamente para que não
ocorra esse tipo de coisa que a responsabilidade deve preceder a liberdade.
A ética da alteridade insiste na abertura de espaço para que o outro possa
falar e apresentar-se a si mesmo. Trata-se de uma ética testemunhal onde a narra-
tiva de si precede tanto as narrativas de terceiros quanto as representações. Mais
uma vez a importância do face a face, pois o sentido do outro é dado na presença
do seu rosto que fala e produz significações que vão para além da essência e dos
conceitos da dogmática jurídica. Não é a lei que deve expressar quem é o outro,
não são os agentes do sistema de justiça que devem falar pelo outro. O infinito de
outrem deve ser contado por ele mesmo. Como diz Lévinas, o outro é presença
que domina o que a acolhe, que vem das alturas, imprevista e, consequentemente,
ensinado sua própria novidade.41 Na sua sabedoria testemunhal, é o outro quem
ensina sobre si mesmo, ele é o mestre. Mas isso não pode acontecer enquanto as
representações dominam o raciocínio jurídico. Essa verdade pode ser eloquente-
mente manifestada por meio da comparação com o quadro La trahison des Ima-
ges (A Traição das Imagens), pintado pelo belga René Magritte em 1929:

41 - LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 55.

20
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

A inscrição Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) bem abaixo
da imagem do cachimbo causa um certo desconforto no observador, mas ex-
pressa uma inquietante verdade: de fato não se trata de um cachimbo, mas da
representação do cachimbo e, como tal, ela é totalmente incapaz de produzir
as mesmas afetações que um cachimbo real produziria. Da mesma maneira,
as representações jurídicas são totalmente incapazes de produzir as mesmas
afetações que o outro concreto – não generalizado – é capaz de produzir. Por
isso é tão importante, como falou Lévinas, que o outro ensine sua própria
novidade. Criar as condições para que o outro fale e acolher sua narrativa-
-testemunho é fundamental também no sentido de desfazer preconceitos ou,
como diz Chimamanda Adichie, de evitar os perigos de uma história única. A
escritora nigeriana nos lembra que as histórias contadas por terceiros acabam
por produzir estereótipos sobre os outros. E ainda que os estereótipos não
sejam propriamente inverdades, eles certamente são incompletos e parciais,
por isso é importante que eles não sejam a história única acerca do outro.42
O direito, para ser ético, não pode pretender uma narrativa exclusiva sobre o
outro, pois certamente as categorias legais que capturam o outro serão sempre
incompletas. Da mesma forma, o sistema de justiça não pode se contentar com
histórias únicas e impedir o pleno testemunho de outrem para que ele fale por
si e ensine sua própria novidade.
Nessa linha, e a título de exemplo positivo de atuação ética do sistema de
justiça, vai um importante caso relembrado por Owen Fiss. Trata-se do caso
Goldberg x Kelly, ocorrido no estado de Nova Iorque na década de 1960. O

42 - ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo de Uma História Única. São Paulo: Cia das Letras, 2019.

21
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

problema que deu origem ao caso é que alguns agentes administrativos locais
tinham poder para excluir unilateralmente beneficiários de programas sociais
do governo federal. Essa exclusão poderia ser feita quando houvesse a suspeita
de que aqueles beneficiários não estavam atendendo os requisitos para o rece-
bimento do benefício financeiro. Do ponto de vista da administração pública,
era totalmente legítimo zelar pelo cumprimento dos critérios, contudo os de-
mandantes se queixavam de serem unilateralmente excluídos dos programas
sem terem a chance de explicarem o que estava acontecendo e apresentarem
suas respectivas defesas e justificativas. Já no curso do processo judicial, os
administradores alteraram o procedimento e passaram a comunicar os bene-
ficiários que estavam com seus processos em revisão, para que eles pudessem
apresentar suas razões. No ano de 1970, a Suprema Corte dos Estados Unidos
decidiu, por maioria, que os beneficiários de prestações assistenciais do go-
verno tinham o direito de serem ouvidos antes que os administradores sim-
plesmente retirassem essas pessoas dos programas assistenciais.43 O caso tem
destaque nas faculdades de direito norte-americanas por ser uma referência
na garantia do devido processo legal também na esfera administrativa. No
entanto, Owen Fiss chama a atenção para o fato da decisão ter assegurado aos
menos favorecidos um tipo de respeito e consideração que a administração
pública já tinha com os mais privilegiados.44 Além disso, quero destacar tam-
bém o aspecto ético do caso. A decisão do administrador público de rever a
concessão de um benefício assistencial e cassar tal benefício sem lidar direta-
mente com o beneficiário, significa tratar o outro de forma generalizada para
reduzi-lo à condição de mera categoria administrativa. Vale notar que em
muitos casos, o processo de revisão do benefício decorria de denúncias ou de-
poimentos de terceiros. Quando se resolvia, como era frequente, pela cassação
de um benefício exclusivamente com base numa narrativa feita por terceiros,
tínhamos, então, um bom exemplo dos perigos de uma história única, como
disse Chimamanda Adichie. O que faltava nesses processos era o frente a fren-
te, o rosto do outro como condição básica para recuperar uma história singu-
lar. A partir dessa presença, muitos mal entendidos eram desfeitos e ruídos se
convertiam em diálogo e comunicação. A Suprema Corte deliberou para que o
outro fosse ouvido. Esta deliberação possui um sentido tanto concreto quanto

43 - FISS, Owen. El Derecho como Razón Pública. Madrid: Marcial Pons, 2007, pp. 267 ss,
44 - FISS, Owen. Ob. Cit., p. 268.

22
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

simbólico. No plano concreto criou as condições para um diálogo equitativo,


no plano simbólico afirmou a importância do acolhimento da alteridade, sem
permitir que ela sucumbisse em meio à burocracia e às razões de Estado.
É imprescindível que o direito abra espaço para que o outro fale por si,
testemunhe a si mesmo. Todavia, não basta a abertura do espaço como se isso
fosse suficiente, pois em cada cômodo do edifício jurídico se esconde uma
armadilha formalista, e o formalismo carrega o pernicioso truque de ouvir
sem escutar. Em outras palavras, não basta que se crie as condições para que a
alteridade se apresente, é preciso acolhê-la de frente, sem reconduzi-la às abs-
trações que enfraquecem sua presença. Esse é, precisamente, o sentido extra-
moral da ideia de justiça no âmbito da ética: acolher o outro na proximidade
do face a face. Nesse aspecto Lévinas é simples e direto, ainda que seja recor-
rente nos seus textos a linguagem metafórica e hiperbólica. Em Totalidade e
Infinito, assim escreve: chamamos justiça ao acolhimento de frente no discurso.
45
Esse acolhimento se dá, antes de tudo, por meio da confiança, como aque-
la que se deposita no mestre. Por isso mesmo, segue dizendo Lévinas que a
justiça consiste em reconhecer em outrem o meu mestre.46 Essa primazia de
outrem como o próprio significado de justiça na relação ética, implica deixar
o outro produzir o sentido de sua história para me revelar aquilo que eu não
posso ver por mim mesmo. Somente por esse acolhimento é possível fazer
justiça, dar ao outro a consideração que lhe pertence, embora parta de mim.
Esse movimento redunda no envergonhamento da minha liberdade de forma
que ela é contida, não porque aí se iniciaria a liberdade de outrem, mas pela
presença do outro, que apenas por sua pura proximidade suplica e ordena jus-
tiça. Trata-se, nos termos de Lévinas, de captar no discurso uma relação não
alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo [metafísico] – onde o poder,
por essência assassino do Outro, se torna em face do Outro e “contra todo o
bom senso”, impossibilidade do assassínio, consideração do Outro na justiça.47
Esse é o senso de responsabilidade que deve integrar e unir ética e direito e
que pode ser revelado por meio da palavra cuidado. Vai nessa linha a reflexão

45 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 60.


46 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 61.
47 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 34.

23
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

de Desmond Manderson ao buscar incorporar o sentido da responsabilidade


ética levinasiana no âmbito do direito:

O dever de cuidar, na lei e na ética, imagina a possibilidade de uma ‘re-


lação não alérgica, uma relação ética’. Tal relacionamento, como vimos,
não é formal, mas particular, não conceitual, mas experiencial, não
igual, mas desigual. Começa com aquelas poucas palavras que nos ilu-
minam como sujeitos humanos, nos submetem à responsabilidade e que
conferem à responsabilidade jurídica sua ética e sua voz: Eis-me aqui. 48

O dever de cuidar, próprio do senso de responsabilidade pelo outro, se


inscreve na ideia da ética como filosofia primeira. Contudo, como afirmar a
ética como filosofia primeira se a ontologia já está consagrada como a primeira
filosofia? Até para fazer essa afirmação da ética como filosofia primeira seria
necessário usar a linguagem da ontologia. Esse problema que enfrenta Lévinas
é apontado por Jacques Derrida no seu extenso artigo Violência e Metafísica.49 A
resposta a Derrida surge em De Outro Modo que Ser ou Para Além da Essência
onde Lévinas faz uma importante distinção entre o dito e o dizer.50 Para Lévinas
o dito é a linguagem da ontologia e, por isso, expressa a ideia de essência do ser.
Já o dizer é a abertura do outro, é a alteridade própria da ética. A questão fun-
damental dessa relação entre o dizer e o dito é que o dizer, como abertura pela
linguagem, precisa se inserir no domínio do dito, porém ele não se prende a esse
domínio, ele o supera. Assim o dizer funciona dentro do dito, mas como uma
exceção ao dito, pois o dizer não se refere ao ser, mas a um outro modo que ser,
fissurando a ontologia para fazer nascer a ética de tal fissura. Como dizia Cora
Coralina, é a vida nascida nas frinchas das pedras.51
Pois essa distinção entre o dito da ontologia e o dizer da ética é um dos
aportes mais interessantes de Lévinas para se fazer a crítica ética do direito. Não
há dúvidas de que o direito opera no domínio da ontologia. Aliás, como área do
conhecimento que transita entre o ser sociológico e o dever ser normativo, o di-

48 - MANDERSON, Desmond. Here I am: illuminating and delimiting responsibility. In DIAMANTIDES,


Marinos. (Org.) Law, Levinas, Politics. Abingdon: Routledge-Cavendish, 2009, p. 161.
49 - Cf. DERRIDA, Jacques. Violência e Metafísica: ensaio sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas.
In DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2014.
50 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, pp. 48-51.
51 - Referência ao poema Minha Cidade, de Cora Coralina.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

reito eleva o grau de abstração da ontologia, pois converte o seu dever ser, mera
vontade abstrata, em ser normativo, capaz de coerção e força. O dizer da ética
não pretende substituir ou destituir o dito do direito. Esse dizer tem em vista
produzir uma abertura para alteridade que não seja meramente instrumental,
isto é, que não tome o outro apenas como ente manipulável, mas permita que
ele se manifeste na sua concretude e singularidade. Nesse sentido, é um dizer
literal, como a voz que surge do rosto de outrem e chama a minha responsabili-
dade. Enquanto o sistema jurídico se ocupa com o cumprimento das responsa-
bilidades legais de todos, a ética se pré-ocupa que cada um possa se manifestar
no âmbito das situações juridicamente relevantes, de forma que sua singulari-
dade e suas condições concretas sejam consideradas. Isso implica assegurar a
voz e o direito de ser ouvido sem preconceitos, sem pré-juízos e sem mediações
categoriais. Por outro lado, isso corresponde à responsabilidade ética dos juris-
tas de não obliterar os sujeitos por meio de representações ou ficções jurídicas.
Para aqueles que atuam no direito por ofício, muitas situações e procedimentos
podem parecer repetitivas, mecânicas e até entediantes, ou mesmo o problema
dos outros pode soar absurdo, ridículo ou desinteressante. Todavia, nada disso
desobriga os profissionais do direito do dever de cuidado e da responsabilidade
ética de ouvir o dizer do outro antes e acima de qualquer rótulo que decorra do
dito do direito. É um dever ético de sensibilidade, de estar sensível à exposição
do outro, de fazer de sua própria passividade pura atenção ao outro. Nos termos
de Lévinas é um oferecer-se sem reserva, uma não-iniciativa que se abre para re-
ceber a alteridade.52 Isso é o acolhimento do outro de frente, fazer justiça numa
perspectiva propriamente ética.
A relação ética, para Lévinas, envolve proximidade e rosto. Ela ocorre,
portanto, no âmbito de duas pessoas. É nessa relação dual que sucede o aco-
lhimento de outrem e a minha entrega absoluta na forma do “eis-me aqui”.
Temos, assim, um duo ético. No entanto, Lévinas sabe muito bem que as rela-
ções extrapolam o frente a frente e para além do duo existe uma pluralidade
de indivíduos que formam a sociedade. Manter-se, exclusivamente, no duo
ético e fechado para a sociedade não é algo que seja condizente com o pró-
prio sentido de responsabilidade ética. Até porque o duo ético nunca se dá
isoladamente, ele ocorre em meio à pluralidade social. Assim, aquela relação
ética de natureza dual, formada por um eu-tu ou eu-você, é de alguma forma

52 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.133.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

conturbada pela imagem que surge ao desvio do rosto: existe um terceiro ou


terceiros que são mais ou menos afetados por nossas ações e, inclusive, pelo
próprio duo ético. Esse desvio ou abertura de visão introduz a figura de um
terceiro: não se refere ao tu ou ao você, mas sim ao ele. Daí Lévinas produz
mais um neologismo denominado de eleidade.53 Essa palavra guarda referên-
cia à consideração ética, e indica uma forma do outro me dizer respeito ainda
que não entre em conjunção comigo.54 Assim explica Lévinas:

A eleidade do mais-além-do-ser é o fato de que sua chegada até mim


é um ponto de partida que me permite realizar um movimento até o
próximo. A positividade desta partida, aquilo pelo que esta partida,
esta diacronia não é um termo da teologia negativa, é a minha respon-
sabilidade para com os outros, ou se preferirmos, o fato de que eles se
mostrem no seu rosto. O paradoxo desta responsabilidade consiste no
fato de que estou obrigado sem que tal obrigação tenha começado em
mim, como se em minha consciência uma ordem tivesse entrado sor-
rateiramente, tal qual um intruso...55

Portanto, ainda que o terceiro extrapole o duo ético, ele permanece sen-
do minha responsabilidade, não obstante esta responsabilidade não decorra
da proximidade e sim da consciência moral.
O terceiro não é apenas o outro do outro, é outrem em geral e a própria
expressão da realidade do conjunto da sociedade. Seria uma contradição per-
manecer fechado no duo ético e não me sentir responsável com o que se passa
com as demais pessoas da sociedade. Ainda que Lévinas não seja um teórico
da política, ele está bem ciente das implicações políticas da ética. Ele sabe que a
sociedade é lugar de muitas injustiças, onde a liberdade é muitas vezes exercida
como forma de violência e domínio sobre o outro. E ainda que isso não ocorra
no âmbito da relação que se estabelece no duo ético, eu tenho responsabilidade
pelos problemas sociais, ou, no dizer de Lévinas, eu carrego uma falta ou uma
culpa pela injustiça social. Ao falar de nossa inquietude diante do sofrimento

53 - A eleidade designa algo como a qualidade de ser ele ou um terceiro. Resulta exatamente do pronome
pessoal reto “ele”. Como Lévinas escreveu em francês, ele grafou a palavra como “illeidade”, já que
se refere ao pronome “il”. Nas traduções para outros idiomas, muitos tradutores preferem manter o
neologismo no original.
54 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.57.
55 - Idem, ibidem.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

alheio, Lévinas sentencia com palavras fortes: Como se cada um, com as mãos
puras e na sua inocência presumida ou certa, tivesse que responder pelas fomes e
pelos crimes! O temor de cada um por si, na sua própria mortalidade, não conse-
gue absorver o escândalo da indiferença ao sofrimento de outrem.56 Que se tenha
em mente que essa culpa não se resolve pela caridade assistencial, pela filantro-
pia ou por uma ação benéfica à primeira pessoa que se encontra.57 Lévinas nos
recorda que a falta social é cometida sem que eu o saiba, em relação a uma mul-
tiplicidade de terceiros que eu não olharei jamais de frente...58 Apesar do terceiro
estar fora do duo ético e não aparecer no face a face, a minha relação com ele
deve ser inspirada pelo sentido de cuidado que é próprio da consideração ética.
Por isso Lévinas afirma que minha relação com o outro na condição de próximo
confere sentido às minhas relações com todos os outros.59
O que muda não é apenas que o terceiro não surge na proximidade do
rosto. É também o fato de que a multiplicidade das relações e a estrutura das
instituições sociais provocam uma série de situações que geram exploração,
opressão, exclusão. O próprio comércio das liberdades, onde cada um preten-
de se afirmar como vontade particular e autônoma, produz assimetrias e desi-
gualdades, ocasionando diferentes tipos de privações e dominações. Isso tudo
conforma um quadro de injustiça, e diante de tal quadro é a consciência hu-
mana que reivindica a necessidade da justiça. Mas aqui não estamos mais si-
tuados naquele sentido propriamente ético e extramoral da justiça como aco-
lhimento do outro de frente, até porque o terceiro surge no desvio do olhar no
rosto do outro que está à frente. A justiça aqui tem um sentido propriamente
moral e recorre ao conjunto dos valores presentes na sociedade e depende de
conceitos e categorias que envolvem várias áreas do conhecimento e inúmeros
debates. A consequência disso é uma espécie de retorno à ontologia. Nesse
sentido moral da justiça, o dizer da ética depende muito do dito da ontologia,
até porque a justiça social envolve a totalidade da sociedade. Num elucidativo
trecho de Outramente que Ser, assinala Lévinas:

56 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p.244.
57 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.43.
58 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.45.
59 - LÉVINAS, Emmanuel. De Otro Modo que Ser o más Allá de la Esencia. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 2011, p. 239.

27
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

É necessária a justiça , ou seja , a comparação, a coexistência, a con-


temporaneidade, a reunião, a ordem, a tematização, a visibilidade dos
rostos e, por isso, a intencionalidade e o intelecto, e, na intencionali-
dade e no intelecto, a inteligibilidade do sistema e, por isso, também
uma co-presença em pé de igualdade, como diante de um tribunal. A
essência como sincronia: juntos-num-lugar. A proximidade adquiri
um novo sentido no espaço da contiguidade. Mas a pura contiguidade
não é uma “natureza simples”, pois supõe, de saída, um pensamento
tematizador, o lugar e o corte da continuidade do espaço em termos
discretos, assim como o todo, a partir da justiça. 60

Com efeito, nesse sentido propriamente moral da responsabilidade ética,


que surge a partir da consciência do terceiro, isto é, da compreensão do con-
junto das relações sociais, as exigências de realização da justiça envolvem o en-
frentamento de problemas econômicos, políticos, culturais e jurídicos, ou seja,
colocam a consciência ética – consideração pelo outro – no centro do debate
ontológico. É preciso se defrontar com aquela mesmidade típica da ontologia,
em certos casos até reafirmá-la, sem que, contudo, isso signifique concordância
ou legitimação de uma totalidade totalizante e massificante. O clamor moral
pela justiça, quando resulta da ética, mantém e sustenta a imprescindibilidade
do respeito à alteridade, de que as vozes sejam ouvidas, em especial as vozes
diferentes, aquelas que, geralmente, não encontram eco nas convenções sociais
dominantes. Isso significa dizer que essa justiça moral, quando eticamente con-
siderada, se manifesta, por um lado, como dito, mas, por outro lado, também
como dizer. Como diz Paul Ricoeur, na noção mesma de outro está implicado
que o objetivo de viver bem, inclua, de alguma maneira, o sentido da justiça.61
Essas considerações são especialmente relevantes para o direito, pois o sis-
tema jurídico de uma dada sociedade é manifestação do dito desta sociedade,
daquela totalidade ontológica, e, como tal, ele expressa o mesmo das relações
sociais, ele reproduz mecanismos de dominação de classe e de grupos sociais.
Não há dúvidas de que o direito positivo é mais um dos espaços por intermédio
dos quais, os grupos dominantes afirmam e legitimam sua dominação. Con-
tudo, e de outra parte, o direito também consiste num tipo de discurso que
está comprometido com certas ideias de justiça, especialmente pelos valores da

60 - LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p.237.


61 - RICOEUR, Paul. Sí mesmo como Outro. Madrid: Siglo XXI de España Editores, p. 202.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

liberdade e da igualdade. Isso se revela ao longo da história do direito, porém,


sobretudo, no constitucionalismo emergente a partir do século XX. Por isso que
mesmo após enfrentar os horrores da II Guerra Mundial, Lévinas não renuncia
ao ideal de justiça e de igualdade que são típicos do mundo jurídico. E o faz de
forma bem conscienciosa, sabendo que as instituições do direito e da política
podem expressar o mal, mas que deveriam produzir o bem. É nesse sentido que
assevera que a justiça é sempre revisão da justiça e esperança de uma justiça me-
lhor.62 Lévinas afirmava que a manifestação do dizer no dito era uma benéfica
traição da filosofia. Pois para que a justiça se renove em justiça melhor, é preciso
que a justiça traia o direito, isto é, que ela esteja no mundo jurídico mas não se
reduza ou se limite às categorias legais que expressam o dito ou o mesmo das
relações sociais. Além disso, também é preciso que a ética traia a justiça, isto
é, que ela reconheça os fundamentos e alicerces morais da justiça, aqueles que
exigem cálculos e comparações, mas que abra o espaço devido para que o dizer
de outrem se manifeste, que interrompa os cálculos, quando necessário, para
garantir espaço para as singularidades. A ideia de equidade inserida por Aristó-
teles no âmbito dos cálculos da justiça e da aplicação da lei, parece ser uma boa
expressão desses benéficos atraiçoamentos.
Claro que ética e direito são campos distintos. Mas desde o início está
sendo afirmado o potencial da ética como crítica do direito. Então não se trata
de criar uma expectativa de que a ética solucione os problemas do direito e
muito menos de que ela substitua o direito, mas sim de que ela pressione a
consciência do direito ou a consciência dos juristas, para que no mundo ju-
rídico a alteridade e o senso de reponsabilidade por outrem realmente façam
questão. Novamente a teoria crítica do direito de Douzinas e Gearey:

Dizer, portanto, que o direito começa como ética, como infinito, não
totalizável e não regulado momento do encontro com o outro, soa con-
trafactual. Mas a ética da alteridade é inequívoca; o sentido de respon-
sabilidade, o ‘ponto de vista interno’ que me fala e me comanda, vem
da proximidade de um ao outro - o fato de estarmos envolvidos e im-
plicados à medida que somos confrontados e endereçados pelo outro.
Na minha proximidade com o outro, dentro ou fora da lei, me preocu-

62 - LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p.249.

29
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

po com a assimetria absoluta de um para o outro e me encontro numa


relação de substituição insubstituível e irreversível.63

As palavras de Douzinas e Gearey reforçam o senso de reponsabilidade


ética também dos juristas. Não cabe, nessa perspectiva, o cômodo lugar onde
cada um se esconde atrás da formalidade legal ou mesmo nas convicções de sua
própria consciência. Note que a alteridade reivindica a si mesma como forma de
manifestação objetiva, assim não incumbe à minha consciência supor ou dizer
o que é o melhor para o outro, muito menos classificá-lo de acordo com os meus
conceitos e parâmetros morais. Também não se sustenta a aplicação mecânica
e burocrática da lei se isso significa aniquilação da diferença e aumento de de-
sigualdades imerecidas e injustificadas. A ética da alteridade, essa consideração
incondicional pelo outro, implica o deslocamento de si a partir de sua própria
passividade – deixar-se afetar –, e, com isso, uma tendência a duvidar-se de si
mesmo, uma forte capacidade de autocrítica. Essa tendência que invoca humil-
dade, tão difícil em tempos de forte egocentrismo, é vital para que se compre-
enda a legitimidade da diferença, das vozes dissonantes, e se tome em sério o
compromisso moral e jurídico de garantia de uma igualdade equitativa de opor-
tunidades, de respeito aos diferentes modos de vida que não sejam excludentes e
predatórios e de fortalecimento das formas de organização social que favoreçam
a autoemancipação de grupos subalternizados.
Buscar o sentido extramoral da justiça no âmbito do direito, equivale a
procurar espaços próprios de alteridade presentes no direito, não em um sen-
tido meramente instrumental ou formal, mas sim na perspectiva do cuidado
ou da intenção ética. Nessa linha, pode-se dizer que um primeiro espaço de al-
teridade é constituído pelas pesquisas, análises e teorias críticas do direito que
são produzidas no ambiente acadêmico, envolvendo não apenas professoras e
professores, mas, também, alunas e alunos de pós-graduação e graduação em
direito. Nessas pesquisas, a superação das abordagens mais dogmáticas, for-
malistas e conservadoras, costuma ter como base um humanismo intrínseco
que se preocupa com o ser humano antes da ordem jurídica. Elas também
são capazes de revelar como a ideologia jurídica e determinadas técnicas do

63 - DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, pp. 165-166.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

direito podem destituir ou reduzir a humanidade de cada um, produzindo ou


reforçando processos de exploração, opressão e exclusão.
De outro ponto de vista, pode-se notar um espaço para a alteridade no
conjunto das normas que pretendem assegurar vez, voz e direitos exatamen-
te àqueles grupos subalternizados, isto é, ao outro contra-hegemônico que se
recusa à totalização ontológica. Como é sabido, o direito positivo expressa as
correlações de força existentes na sociedade. Nesse processo dinâmico das cor-
relações de força, algumas vezes as instâncias de mediação institucional, tais
como assembleias constituintes, parlamentos e administrações públicas apro-
vam normas que resultam de lutas populares por acesso a bens públicos, ao
reconhecimento e ao respeito pelas características próprias que constituem um
determinado grupo. Vou denominar esse conjunto de normas como legislação
equitativa. No Brasil, essa legislação pode ser encontrada de forma mais expres-
siva a partir da Constituição de 1988.64 Os direitos humanos tomados de forma
decolonial e emancipatória representam o maior exemplo disso. Evidentemen-
te, a legislação equitativa não desfaz os processos de opressão e exploração que
são perpetrados em nome do direito, já que outras leis e mecanismos jurídicos
totalizantes seguem válidos no direito positivo. Mas ainda assim, a legislação
equitativa permanece importante, tanto no aspecto prático quanto simbólico,
para assegurar o lugar da alteridade e a consideração ética na esfera do direito.
Um outro espaço para a alteridade, embora não seja muito claro e defi-
nido, seria aquilo que vou designar como uma hermenêutica do humano con-
creto. Isso se liga à atividade jurisdicional. Ocorre nos casos em que parte da
magistratura se imbui da consciência ética e se mostra pré-ocupada em fazer
da prestação jurisdicional algo além da burocracia processual. Isso se revela,
fundamentalmente, em dois momentos: i) no curso do devido processo legal;
e ii) na prolação da decisão. No primeiro momento, referente ao curso do de-
vido processo legal, a hermenêutica do sujeito concreto requer fazer com que o
devido processo legal assegure as condições necessárias para que outrem fale
por si e seja ouvido sem preconceito, sendo respeitado na sua singularidade e
diferença. Aqui, juízas e juízes não permitem que as formalidades do julga-
mento funcionem como obstáculo para manifestações autênticas. Da mesma
forma, garantem que as peculiaridades das partes, bem como as suas respec-

64 - Cf. CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. A Teoria da Alteridade Jurídica: em busca de um


conceito de direito em Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2016, pp. 61-93.

31
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

tivas condições concretas, sejam levadas ao processo, naquilo que é relevante


para a adequada compreensão do caso. O tribunal também é lugar para que
o rosto seja acolhido de frente. Ainda que nesse cenário não se forme um duo
ético entre o juiz e a parte, a responsabilidade pelo acolhimento permanece.
Já num segundo momento, referente à prolação da decisão, a hermenêutica do
sujeito concreto resulta em orientar a decisão judicial não apenas por parâ-
metros técnicos, mas, também, pela intenção ética, o que envolve um desejo
sincero de fazer justiça. Nessa perspectiva, já o relatório da sentença não é
apenas reprodução de fatos narrados, mas o momento onde a autoridade de-
cisional revela uma audição livre de preconceitos e o conhecimento efetivo do
outro – jurisdicionado – nas suas condições reais. A fundamentação apresenta
não apenas como certos fatos se subsumem à determinadas normas, mas por-
que aquelas normas escolhidas e não outras igualmente aplicáveis são as mais
adequadas para o caso, para aquelas partes. No dispositivo, diante do conflito
irreconciliável, serão assegurados os bens jurídicos mais relevantes e preser-
vados direitos fundamentais. É essa consideração ética, como justiça em sen-
tido extramoral, que permite tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, o que significa fazer a justiça em sentido moral.
É possível falar, ainda, em um outro espaço de alteridade presente no
direito que irei denominar de relações humanizadas e humanizadoras no siste-
ma de justiça. Aqui me refiro ao esforço de ações inclusivas no acesso à justiça
para que o outro mais vulnerável seja acolhido nas suas especificidades, de
modo que o ambiente do sistema de justiça não lhe seja hostil. O acesso à justi-
ça é imprescindível como parte da realização do direito, contudo as estruturas
do sistema de justiça também reproduzem preconceitos e discriminações con-
tidas na ontologia social. A ruptura dessa ontologia por meio do acolhimento
do diferente e da responsabilidade radical que cada um de nós tem pelo outro,
ocasiona também tanto a superação dos preconceitos e das discriminações que
dificultam o acesso à justiça, quanto a superação de preconceitos e discrimi-
nações que ocorrem dentro do sistema de justiça. Isso quer dizer considerar o
outro mais vulnerável não com aquela piedade que acredita que o outro só tem
a receber, mas com a consideração ética que propicia que o outro se fortaleça
na sua capacidade de poder fazer.65 Um dos melhores exemplo desse espaço de
alteridade como relações humanizadas e humanizadoras no sistema de justiça

65 - RICOEUR, Paul. Sí mesmo como Outro. Madrid: Siglo XXI de España Editores, p. 198.

32
Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

são as 100 Regras de Brasília.66 Essas Regras constituem um Documento ela-


borado no ano de 2008 durante a Cúpula Judicial Ibero-americana, realizada
em Brasília, e possui como finalidade garantir as condições de acesso efetivo
à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, sem discriminação al-
guma, englobando o conjunto de políticas, medidas, facilidades e apoios que
permitam que as referidas pessoas usufruam do pleno gozo dos serviços do
sistema judicial. Enquanto a hermenêutica do humano concreto é um espaço
de alteridade produzido no âmbito da jurisdição, as relações humanizadas e
humanizadoras no sistema de justiça ocorrem como espaço de alteridade pro-
duzido no âmbito da gestão do sistema de justiça.

Considerações finais
É indispensável atentar que, segundo Lévinas, a posição que o “eu” ocupa
dentro do duo ético é de entrega total ao outro, o que se revela por meio da
profundidade da expressão “eis-me aqui”. Com efeito, o duo ético comporta
uma relação assimétrica e de subordinação à alteridade. Isso pode parecer es-
tranho e gerar uma certa hesitação por parte daqueles que se debruçam sobre
a filosofia levinasiana, entretanto não haveria como ser diferente diante da
proposta de afirmar a ética como filosofia primeira e romper com a tradição
totalizante do pensamento ontológico. Todavia, é interessante notar que, fora
do duo ético e como postura de vida, esse mesmo compromisso com a ética
como filosofia primeira se expressa como forte exercício de insubmissão. Em
outras palavras, a coragem de propor e sustentar a ética como filosofia pri-
meira desemboca num movimento de resistência à totalidade que se afirma
como improfanável, como um ser inamovível que interrompe o movimento
dos corpos para subsumi-los e controlá-los.
A imagem muita bem definida dessa totalidade no mundo atual é a da
modernidade capitalista, antropocêntrica, patriarcal, branca, heterossexual e
cristã, autodenominada como civilizada. Essa totalidade se apresenta como
necessária e irresistível naquilo que é, autorreproduzindo-se a si mesma e pro-
movendo o seu próprio culto. Afirmar a ética no lugar da ontologia como fi-
losofia primeira, significa uma profanação do improfanável, ou seja, enfrentar

66 - https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf Acesso em 17/06/2020.

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Teorias Críticas e Crítica do Direito – Volume I

essa totalidade à maneira de um “não ter que ser”. Não ter que ser capitalis-
ta e propor formas alternativas de bem-viver e economias solidárias; não ter
que ser antropocêntrico e afirmar os direitos da mãe-terra e a necessidade de
coabitação pacífica e equilibrada com os demais seres da natureza; não ter
que ser patriarcal e, assim, reforçar a igualdade de direitos entre homens e
mulheres e as lutas contra o machismo e a misoginia; não ter que ser branco
ou caucasiano para ter sua dignidade reconhecida e respeitada, e valorizar a
ancestralidade africana e de povos originários, sendo parte da luta contra pre-
conceitos e discriminações; não ter que ser heterossexual e respeitar as dife-
rentes orientações sexuais, construindo convivências plurais e inclusivas; não
ter que ser cristão, admitindo um irrestrito direito à diversidade religiosa e à
manifestação de distintas crenças, incluindo o ateísmo.
Walter Benjamin, na sua conhecida IX Tese sobre o conceito da Histó-
ria, invoca o quadro Angelus Novos, pintado por Paul Klee em 1920, para se
referir a um anjo da história que voltou seu rosto para o passado e se deparou
com uma catástrofe sem fim. O anjo se esforça para acordar os mortos e re-
construir o que foi destruído, porém um forte vendaval sopra sobre as asas
do anjo e o arrasta sem cessar para o futuro, impedindo a reconstrução do
passado. Benjamin afirma que esse vendaval é aquilo que chamamos de pro-
gresso.67 Essa abordagem escatológica da história e o ceticismo quanto àquilo
que é celebrado como civilização, une os pensamentos de Benjamin e Lévinas.
O progresso no sentido benjaminiano e a totalidade ontológica no sentido
levinasiano guardam forte correspondência e acionam um sinal de alerta que
deve nos conduzir a uma profunda reflexão, com crítica e autocrítica. Se o
progresso e a totalidade produzem destruições e mortes, coisas que não po-
dem ser justificadas por alguns benefícios materiais ou tecnológicos, então é
hora de pensar diferente. Aliás, não apenas de pensar diferente, mas de pensar
no diferente, no outro que me interpela com sua face. Essa é uma tarefa tanto
existencial quanto institucional e, por isso, nos leva à questão: qual direito
que queremos? O direito que expressa o vendaval do progresso, mas impede a
reconstrução do passado? Ou um direito que se abre à alteridade e se esforça
para acordar os mortos e superar a catástrofe?

67 - BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In BENJAMIN, Walter. O Anjo da História.


Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 14.

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