Você está na página 1de 3

AS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO, HOJE

O nosso sistema de Ensino Superior insiste ainda, em 2020, numa submissão


fora deste tempo de todas as áreas da educação às Ciências da Educação (CE), desde
os processos de acreditação de cursos na A3ES até aos programas de financiamento
da investigação através da FCT. A recente actualização das áreas de formação das
comissões de avaliação da A3ES no campo educativo (divididas em: Formação de
Professores do 3ºCiclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário (Ensino
Universitário) e dos Ensinos Vocacional e Artístico; Formação de Educadores de
Infância e de Professores do Ensino Básico (1º e 2º Ciclos); Ciências da Educação)
representa já um passo em frente importante ao distinguir a formação de
professores das CE, mas não resolve os restantes problemas. As CE foram sempre
tratadas como uma “área” universal capaz de agrupar todas as muitas áreas de
trabalho em educação, o que é um erro que a seguir tentarei demonstrar. Segundo o
estudo temático da A3ES sobre as CE, “A oferta de ensino superior em Ciências da
Educação em Portugal (CNAEF 142) era constituída, à data de referência do presente
estudo (Dezembro de 2016), por 100 ciclos de estudos (cursos), 67 dos quais
pertencentes ao ensino universitário e 33 pertencentes ao ensino politécnico.”
(Ciclos de Estudos Temáticos, nº 45, ed. por Rita Friães, A3ES, 2016), mas nunca se
menciona aí a diversidade de perfis que esses cursos representam.
Uma obra de referência internacional sobre educação, a International
Encyclopedia of Education ed. por Penelope Peterson, Eva Baker e Barry McGaw (3ª
ed., Elsevier, 2010) nos seus 8 volumes, em nenhum momento inclui espaço para a
designação CE e nem sequer lhe atribui uma secção própria, no extenso índice de
subáreas – talvez o mais completo disponível: ver
<https://www.sciencedirect.com/referencework/9780080448947/ international-
encyclopedia-of-education#book-description> – no campo da educação, que é
exactamente o termo escolhido para criar uma enciclopédia, isto é, uma soma de
saberes. E em outro exemplo, os 10 volumes da Encyclopedia of Language and
Education (3ª ed., ed. por Stephen May, Springer, 2017) também não optaram por
sequer dedicar um volume às CE, porque elas representam um modo de pensar a
educação e não a soma de todas as esferas de acção que representam o
conhecimento em educação. Precisamente, o que as CE não são é essa soma de
saberes, mas antes o campo de especulação (no sentido filosófico grego) teórica
sobre todas as acções educativas. Por esta primeira razão, a designação correcta
para agrupar todas as especialidades que tratam de temas educativos devia ser
educação e não CE.
As CE não são nem nunca foram, mesmo nas décadas em que em Portugal, se
popularizaram no sistema educativo, a área mais universal de tudo o que diz
respeito a educação. É a educação, na sua expressão mais universal e histórica, que
devia ser a área capaz de agrupar numa única instância todas as suas variantes e/ou
aplicações. Nem mesmo quando os Gregos antigos criaram a primeira
universalização do conceito de educação – paidéia – deixaram de lembrar que tal
conceito era a soma de muitas formações que incluíam a ética, a ginástica, a
gramática, a retórica, a música, a matemática, a filosofia e a história natural. Hoje, o
campo universal da educação continua a ser a soma de todos estes subcampos
formativos e de muitos outros que a sociedade contemporânea soube criar e
desenvolver. As CE não têm essa capacidade agregadora e consensualizada que
reconhecemos historicamente no conceito maior de educação.
Uma pesquisa em https://www.dges.gov.pt sobre os cursos de “ciências da
educação” registados em Portugal dá um resultado de 38; a mesma pesquisa sobre
cursos de “educação” dá o resultado de 270, o que prova que este campo é muito
mais aberto e inclui não só os cursos padrão de CE mas também todos aqueles que
estão fora do seu campo de acção directa, como os cursos de didácticas específicas,
os cursos de formação de professores, os cursos de formação ao longo da vida, os
cursos de educação ambiental, os cursos interdisciplinares como a história da
educação, a sociologia da educação, a filosofia da educação ou a psicologia da
educação, que são “ciências” distintas das CE, embora dialoguem entre si, porque
todas as variantes somadas respondem ao grande campo das ciências sociais e
humanas. A soma destas possibilidades de trabalho em educação pertence, por
lógica epistemológica simples, à educação e não à sua disciplinarização rígida e
mais particular contida na designação CE.
Nesta lógica, quem trabalha nestas áreas fora do âmbito mais restrito das CE
não pode sentir-se confortável em momentos de avaliação institucional e académica
como a dos processos de acreditação de cursos (A3ES) ou de projectos de
investigação (FCT), que desde sempre não entenderam esta diversidade e
assumiram, erradamente, que tudo é parte dessa área universal designada por CE.
Quem forma professores, faz muito mais do que estudar CE – e neste ponto já foi
feita a justa reparação criando-se duas CAEs distintas -, quem estuda a história da
educação faz muito mais do que estudar CE, quem investiga e desenvolve projectos
em didáctica específica de uma disciplina investiga muito mais do que CE, e por aí
fora.
Também há outro desencontro insustentável entre as carreiras académicas e
a grande área de CE que a A3ES e a FCT decidiram privilegiar como singular e
dominante no campo educativo: hoje, é possível, em toda a dimensão da carreira
académica universitária e politécnica, especializar-se em áreas como a didáctica
específica de uma disciplina, a formação de professores, a filosofia da educação, a
história da educação, a sociologia da educação, etc. Para todas estas áreas, há
grupos disciplinares autónomos e é possível concorrer aos diferentes lugares de
carreira nestas especialidades e não em CE. Assim, o quadro diversificado de áreas
disciplinares no campo da educação permite aceder a uma cátedra em educação e
suas especialidades, nas quais se pode incluir a subárea das CE, e não o seu
contrário, porque um professor catedrático em Didáctica, como é o meu caso, por
exemplo, não é necessariamente um especialista em CE, tal como um catedrático em
CE não é obrigatoriamente um especialista em Didáctica. Contudo, o que os une é
que serão ambos, consensualmente, especialistas em educação. E é sobre esta
grande área de trabalho, que herdámos da paidéia dos gregos antigos e que mantém
intacta a sua universalidade, que devíamos reorganizar todo os subsistemas de
Ensino de Superior, dos processos de acreditação aos ciclos de estudos, das
organizações institucionais à avaliação de áreas de investigação.

Você também pode gostar