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A ALDEIA ANOS 60-70 – alguns apontamentos

Alguém lembra como era os dias e noites de inverno nas aldeias da Beira Baixa? Nos
invernos de antigamente pouca coisa se fazia no campo. Uma coisa era imprescindível
todos os dias: dar de comer aos animais. Fora isso, os dias se arrastavam entre uma
refeição e outra, uma visita à taberna, uma conversa à fogueira, ou ao redor duma estufa
ou braseira. As noites eram compridas e difíceis de passar, principalmente para quem
vivia sozinho. A solidão à noite doía mais.
A taberna ou o café eram refúgios contra a solidão, num tempo que ainda não se falava
de centros de dia. A oração ao cair da noite, ou a missa, eram opções para as mulheres
mitigarem o isolamento e partilharem notícias da aldeia. Ficar ao soalheiro, só em dias
de algum sol que mal dava para aquecer, se protegidos das aragens.
À noite em geral as mulheres ficavam por casa, à cozinha cuidando dos afazeres e os
homens davam uma volta pela taberna. Voltavam cedo para casa. Os jovens ficavam um
pouco mais na mesa do café a jogar à lerpa, grande entretém para as noites de inverno.
A lerpa se jogava com algumas regras básicas com um mínimo de três jogadores e com
um baralho de quarenta cartas: Tem que se assistir; ver bem qual é o trunfo; tirar por
baixo e dar três cartas para cada jogador, pela direita; se tira por cima dá uma carta para
o próprio e mais duas. A primeira é o trunfo e dá pela esquerda três cartas para cada um;
se já tiverem uma vaza tentar lerpar os outros...
Não se jogava a dinheiro que era algo que escasseava naqueles tempos. O que vinha da
França ia diretamente para pagar as contas, sobretudo a mercearia. O que se ganhava na
serração ou de jorna, mal sobrava para o copo de vinho ou aguardente. Cada jogador
comprava cinco tostões de rebuçados de meio tostão, o que dava dez rebuçados. O feliz
ganhador levava para casa um bolso cheio para poder continuar a jogatina no outro dia.
Cerveja era um artigo escasso e só se bebia no verão, pelo calor e quando chegavam os
avec`s para pagar uma rodada. Rodadas na mesa eram raras. Os rebuçados de meio
tostão eram reis. A essa hora os homens do copo já há muito se tinham retirado.
Em dias de Bonanza, do Santo, do Mascarilha ou outra série, a lerpa ficava para mais
tarde ou para o outro dia. Para essa programação alternativa tinha-se que procurar o Tio
Isidro sapateiro para abrir o centro paroquial e ligar a televisão de válvulas que
demorava uns três minutos para aquecer. Mais tarde o Tio Zé de Casegas assumiu o
centro paroquial e que facultava os famosos bilhetes vermelhos de 5 tostões. Para ver os
ranchos ou os desenhos animados aos domingos, não precisava de bilhete.
Ano de 1966, primeiro campeonato do mundo transmitido pela TV. Direto de Inglaterra.
Em campo os magriços, tendo por base a equipe do Benfica: Mário Coluna, Eusébio,
José Augusto, José Torres e António Simões, Germano, Américo do Porto, Jaime Graça
do Setúbal e outros. Nunca houve tanta escassez de ovos na aldeia. Os poleiros eram
assaltados diariamente para vender os ovos na taberna e comprar o ingresso para o jogo.
Enfileirados naqueles bancos de pau, o corpo tremendo de emoção e ansiedade, íamos
seguindo com paixão a equipa das quinas suplantando os adversários e vendo um rei
Pelé saindo chorando do campo. Trememos de medo e angústia assistindo à Coreia do
Norte marcando três golos de rajada e pulamos de alegria com os quatro golos marcados
por Eusébio naquele jogo e José Augusto selando a vitória com um golo no final. Cinco
a três para Portugal. Mais uma vez sofremos com o roubo no jogo com a Inglaterra, que
nos retirou da final. Essa eram as nossas emoções mais fortes naquele tempo em que
não havia bicicletas, motocicletas ou jipe 4x4.
Então chegou o serralheiro. Instalou-se na loja do ti Manel da várzea, seu sogro. Com
sua forja e fole de ar ia dando forma aos ferros e outros metais. Passado um tempo
passou para o negócio das motorizadas e o ronco dos motores a dois tempos encheu a
aldeia. A motorizada passou a ser o sonho de consumo da malta. Ao fim de semana era
ver as motos para cima e para baixo, além de ser mais fácil ir para as festas e jogos de
bola.
Mas o Serralheiro não ficou só nas motorizadas. Encheu a beira do rio, os ribeiros e
poços de “Pachanchos” tocados a petróleo e que tinham lá as suas manias. Às vezes
eram tão grandes essas manias que só o serralheiro tinha a solução para o problema. Foi
a época que estes motores barulhentos foram substituindo as rodas e os açudes. O som
lento e calmo da roda enchendo a represa ou abastecendo a levada foi se silenciando
pouco a pouco.
As noras e picotas entraram em desuso. Lá pela Lameira a velha Delfina também
adquiriu um pachancho, que coexistiu durante um tempo com a picota. O meu irmão
Júlio tornou-se especialista neste gênero de motores brigando com o motor da Delfina
que de vez em quando ficava com a mosca. E o tio Eduardo, vizinho de fazenda ria
contemplando os esforços do Júlio para pôr o maldito motor a funcionar. Enquanto isso
a picota ia cumprindo sua obrigação pelas mãos da Vó Delfina.

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