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MARTINS, Nilce Sant`Anna. Introdução à Estilística.

São Paulo:
EDUSP, T.A.Queiroz (Ed), 1989. Capítulo 1.

/. A CONCEITUAÇÃO DE ESTILÍSTICA

O que é Estilística? Eis uma pergunta a que não se responde fá-


cil e prontamente. Pode-se dizer, como princípio de explicação, que
Estilística é uma das disciplinas voltadas para os fenômenos da lin-
guagem, tendo por objeto o estilo, o que remete a outra
embaraçosa e infalível pergunta: e o que é estilo?
Neste capítulo, que tem o caráter de introdução à Estilística
com vista à língua portuguesa, serão mencionadas algumas das ten-
tativas de definir estilo e, a seguir, os principais estudos que, no de-
correr de nosso século, se têm realizado sob a denominação de Esti-
lística. Indicaremos, então, sob que aspecto será estudada a Estilís-
tica neste trabalho.

1.1 A VARIEDADE DE CONCEITOS DE ESTILO


A palavra estilo, que hoje se aplica a tudo que possa apresen-
tar características particulares, das coisas mais banais e concretas
às mais altas criações artísticas, tem uma origem modesta. Designa-
va em latim — stilus — um instrumento pontiagudo usado pelos
antigos para escrever sobre tabuinhas enceradas e daí passou a de-
signar a própria escrita e o modo de escrever.
No domínio da linguagem têm sido tão numerosas as defini-
ções de estilo que vários linguistas têm procurado classificá-las de
acordo com os critérios em que elas se fundamentam. Assim, Geor-
ges Mounin (Introdução à Linguística) reúne as definições de estilo
em três grupos: 1) as que consideram estilo como desvio da nor-
ma; 2) as que o julgam como elaboração; 3) as que o entendem co-
mo conotação. Nils Erik Enkvist (Linguística e estilo) as distribui
em seis grupos: 1) estilo como adição, envoltório do pensamento;
2) estilo como escolha entre alternativas de expressão; 3) estilo co-
mo conjunto de características individuais; 4) estilo como desvio da
norma; 5) estilo como conjunto de características coletivas (estilos
de época); 6) estilo como resultado de relações entre entidades lin-
guísticas formuláveis em termos de textos mais extensos que o pe-
ríodo.
Pode-se observar que os critérios dos diversos grupos não são
excludentes. Assim, por exemplo, as características individuais
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dem incluir escolha, desvio da norma, elaboração, conotação, o


que mostra a dificuldade de tais classificações.
Acrescente-se que, dos teóricos da Estilística, alguns só consi-
deram o estilo na língua literária, outros o consideram nos diversos
usos da língua; alguns relacionam o estilo ao autor, outros à obra,
outros ainda ao leitor, que reage ao texto literário; alguns se con-
centram na forma da obra ou do enunciado, outros na totalidade
forma-pensamento.
Dentre as inúmeras definições e explicações do fenômeno do
estilo, arrolamos algumas que se encontram na bibliografia indica-
da no final do capítulo, especialmente nas obras já referidas de
Mounin e Enkvist e nos livros de Guiraud. Fica ao leitor a tentativa
de encaixá-las nos grupos mencionados, bem como a seleção das
que lhe parecerem mais satisfatórias.
"O estilo é o homem." (Buffon) "O estilo é o pensamento."
(Rémy de Gourmont) "O estilo é a obra." (R.A. de Sayce)
"Estilo é a expressão inevitável e orgânica de um modo
individual de experiência." (Middleton Murray)
"Estilo é o que é peculiar e diferencial numa fala." (Dâ-
maso Alonso)
"Estilo é a qualidade do enunciado, resultante de uma es-
colha que faz, entre os elementos constitutivos de uma dada
língua, aquele que a emprega em uma circunstância determina-
da." (Marouzeau)
"O estilo é compreendido como uma ênfase (expressiva,
afetiva, ou estética) acrescentada à informação veiculada pela
estrutura linguística sem alteração de sentido. O que quer dizer
que a língua exprime e o estilo realça." (Riffaterre)
"O estilo de um texto é o conjunto de probabilidades con-
textuais dos seus itens linguísticos." (Archibald Hill) "Estilo
é surpresa." (Kibédi Varga) "Estilo é expectativa
frustrada." (Jakobson) "Estilo é o que está presente nas
mensagens em que há elaboração da mensagem por si
mesma." (Idem)
"Estilo é o aspecto do enunciado que resulta de uma esco-
lha dos meios de expressão, determinada pela natureza e pelas
intenções do indivíduo que fala ou escreve." (Guiraud)
"Estilo é o conjunto objetivo de características formais
oferecidas por um texto como resultado da adaptação do ins-
trumento linguístico às finalidades do ato especifico em que
foi produzido." (Herculano de Carvalho)

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"Estilo é a linguagem que transcende do plano intelectivo para


carrear a emoção e a vontade." (Mattoso Câmara) Como um
fecho a esta série de definições, cada qual com sua relativa
validez, e muitas delas com pontos comuns, sejam lembradas estas
pertinentes ponderações de Georges Mounin:
"[O estilo] É um fenômeno humano de grande complexidade.
É a resultante linguística de uma conjunção de fatores
múltiplos (...). Se algum dia se chegar a atribuir ao estilo uma
fórmula, há-de ser uma fórmula extremamente complexa. To-
das as reduções lapidares da definição do estilo só podem ser e
permanecer como empobrecimentos unilaterais. Não damos
ainda por findas as nossas tentativas para compreender o por-
quê do efeito que certas obras têm sobre nós. Nesta encruzilha-
da onde talvez compreendamos por que é que certo poema nos
envolve e nos possui e nos toca de determinada maneira, tem
que haver uma convergência de causas linguísticas formais,
mas também de causas psicológicas, psicanalíticas, históricas,
sociológicas, literárias, etc. E será indubitavelmente o conjun-
to que poderá dar conta dessa coisa ainda muito misteriosa
que é a função poética: por que é que certas mensagens produ-
zem em nós efeitos incomensuráveis com os de todas as outras
espécies de mensagens que quotidianamente recebemos."
(Introdução à Linguística, p. 158-9)

1.2 O APARECIMENTO DA ESTILÍSTICA Embora a palavra


estilística já fosse usada no século XIX, é no século XX que ela
passa a designar uma nova disciplina ligada à Linguística. Tomando
o lugar deixado pela Retórica (de que se dirá alguma coisa no final
do capítulo), a Estilística surge nas primeiras décadas do século XX,
graças sobretudo a dois mestres que lideram duas correntes de
grande importância: Charles Bally (1865-1947), doutrinador da
Estilística da língua, e Leo Spitzer (1887-1960), figura exponencial
da Estilística literária.

1.2.1 A ESTILÍSTICA DA LÍNGUA


Ampliando o campo de estudo do seu mestre Ferdinand de
Saussure, iniciador da Linguística moderna, Charles Bally volta-se
para os aspectos afetivos da língua falada, da língua a serviço da vi-
da humana, língua viva, espontânea, mas gramaticalizada, lexicali-
zada, e possuidora de um sistema expressivo cuja descrição deve ser
a tarefa da Estilística. Bally condena o ensino da língua baseado

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apenas na gramática normativa e nos textos literários, o qual dá


uma visão parcial da língua, de um tipo de língua que não corres-
ponde ao que as pessoas usam nas múltiplas atividades de sua vida
social e psíquica. As suas ideias são desenvolvidas numa série de en-
saios reunidos no livro Le langage et la vie e também no Traité de
siylistique française, no qual expõe o seu método e o aplica ao
francês. Bally distingue duas .faces da linguagem — a intelectiva ou
lógica e a afetiva; estuda os efeitos da afetividade no uso da
língua; examina os meios pelos quais o sistema impessoal da
língua (estudado por Saussure) é convertido na matéria viva da
fala humana. Ele foi o primeiro a distinguir com precisão o
conteúdo linguístico do conteúdo estilístico, a informação neutra do
suplemento subjeti-vo a ela acrescentado, mostrando que um
mesmo conteúdo pode ser expresso de diferentes modos. Os
efeitos expressivos, pelos quais o ser humano manifesta seus
sentimentos e atua sobre o seu semelhante, são classificados em
naturais (manifestações de prazer e desprazer, de admiração e
desaprovação, processos de intensificação das ideias) e evocativos
(que sugerem certo meio social ou certa época e aparecem, por
exemplo, na língua familiar, na gíria, na língua profissional, na
literária, etc.). Note-se que Bally não se volta para o discurso
("parole"), o uso individual da língua, mas para o sistema
expressivo da língua coletiva ("langue"). Para ele "a Estilística
estuda os fatos da expressão da linguagem, organizada do ponto de
vista do seu conteúdo afetivo, isto é, a expressão dos fatos da
sensibilidade pela linguagem e a ação dos fatos da linguagem sobre
a sensibilidade". (Traité, p. 16)
Bally inicia, assim, A Estilística da língua ou da expressão lin-
guística, que se ocupa da descrição do equipamento expressivo da
língua como um todo, opondo a sua Estilística ao estudo dos estilos
individuais e afastando-se, portanto, da literatura.
Alguns dos seus continuadores, como J. Marouzeau e M.
Cressot, discordam em alguns pontos da sua posição. Marouzeau
dá à Estilística um enfoque mais individual, deslocando-a do siste-
ma para o discurso. A língua é, segundo ele, um repertório de pos-
sibilidades, um fundo comum posto à disposição dos usuários que
o utilizam conforme suas necessidades de expressão, praticando
sua escolha, isto é, o estilo, na medida que lhe permitem as leis da
língua. Tanto Marouzeau como Cressot voltam-se para a língua li-
terária, considerando-a o domínio por excelência da Estilística,
porque nas obras dos escritores se acumulam os recursos expressi-
vos, ricos e variados. Marouzeau, no Précis de stylistiquefrancaise,
e Cressot, em Le style et ses techniques, analisam os procedimentos

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expressivos literários, mas não fazem estudos de obras ou de auto-


res. Oferecem um método de descrição da linguagem literária, per-
manecendo mais presos à Linguística do que à Literatura.
No domínio da língua portuguesa, várias obras se ligam a essa
corrente. Manuel Rodrigues Lapa, em sua Estilística da língua por-
tuguesa (1945) segue bem de perto a linha de Bally, estudando valo-
res expressivos do vocabulário português, das várias classes de pa-
lavras, e de algumas construções sintáticas, com mais relevo da
concordância irregular. Com certa frequência, dirige-se, em tom de
conselho, aos leitores que se iniciam na arte de escrever, imprimin-
do ao seu tralho um cunho didático e normativo, que não se enqua-
dra bem na Estilística descritiva. Sua obra tem, principalmente, um
fim prático, de modo que ele não se detém em aspectos teóricos co-
mo a conceituaçãp de estilo ou Estilística.
Mattoso Câmara Jr. ocupa-se de Estilística em várias partes de
suas obras, mas é sobretudo na Contribuição à Estilística Portu-
guesa (1952) que trata das possibilidades expressivas de nossa lín-
gua. A sua concepção de Estilística apóia-se nas três funções da lin-
guagem, de Karl Búhler: representação, expressão e apelo. (A re-
presentação corresponde à linguagem intelectiva, e a expressão ou
manifestação psíquica e o apelo ou atuação sobre o outro corres-
pondem à linguagem afetiva de Bally.) Mattoso Câmara considera
a Estilística uma disciplina complementar da Gramática, pois en-
quanto esta estuda a língua como meio de representação, a Estilísti-
ca estuda a língua como meio de exprimir estados psíquicos (ex-
pressão) ou de atuar sobre o interlocutor (apelo). A Linguística em
seu sentido amplo abrange a Gramática e a Estilística, e em seu sen-
tido restrito apenas a Gramática. A função essencial da língua é a
representação mental da realidade, mas o seu sistema é alterado pe-
los falantes com o fim de exprimir emoções e de influir sobre as
pessoas. É, pois, esse uso da língua que ultrapassa o plano intelecti-
vo que ele considera estilo, conforme a sua definição já apresenta-
da. Mattoso Câmara trata de uma parte das possibilidades expressi-
vas do português, dando uma amostragem do que podem ser os es-
tudos estilísticos, sendo o seu estudo bem mais restrito que os de
Cressot e Marouzeau, sem deixar de ser de nível elevado e de con-
sulta obrigatória pelos que estudam Português em nível universitá-
rio.
Merece ainda ser mencionado o Ensaio de Estilística da Língua
Portuguesa, de Gladstone Chaves de Melo, em que o Autor, antes
de examinar os aspectos estilísticos da língua, tece considerações

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sobre diversas teorias, fazendo a defesa da linha de Bally, que "as


modernas correntes deixam intocada", (p. 40)

1.2.2 A ESTILÍSTICA COMO SOCIOL1NGUÍSTICA


Entre os linguistas ingleses voltados para a Estilística, é opor-
tuno mencionar aqui David Crystal e Derek Davy, que, embora
não se prendam à corrente iniciada por Bally, apresentam alguns
pontos comuns. Segundo estes autores (Investigating English Style,
1969), a Linguística é a disciplina acadêmica que estuda cientifica-
mente a linguagem, e a Estilística é uma parte dessa disciplina que
estuda certos aspectos da variação linguística. A língua não é um
todo homogéneo, pois nas diferentes situações que se nos apresen-
tam em nossa vida social, usamos diferentes variedades de lingua-
gem. Quando falamos a uma criança, por exemplo, usamos uma
linguagem diferente da que usamos com um adulto; quando con-
versamos com uma pessoa da família não nos expressamos da mes-
ma forma que ao conversarmos com alguém de pouca intimidade.
A linguagem de uma carta é diferente da de um ensaio científico, a
de.um sermão da de um discurso político, e assim por diante. Cabe
à Estilística estudar as variedades, quer da língua falada, quer da
língua escrita, adequadas às diferentes situações e próprias de dife-
rentes classes sociais. Para estes autores Estilística é Sociolinguísti-
ca, e pode ser útil a muita gente: ao sociólogo, ao psicólogo, ao fi-
lósofo, ao crítico.literário, às pessoas comuns, enfim, a todos os in-
teressados no uso da linguagem na sociedade.
Os autores reconhecem que o primeiro passo na análise estilís-
tica — apreensão dos traços estilísticos — é forçosamente intuitivo,
mas o estilólogo deve falar objetivamente sobre eles. Procuram for-
necer um método de análise que possa ser utilizado pelos interessa-
dos na investigação do comportamento linguístico, considerando
ser necessário cuidar do treinamento de analistas. Entre os textos
que eles analisam não incluem nenhum texto literário, explicando
que, pela sua complexidade, a linguagem literária só deve ser anali-
sada em etapa posterior; dado o seu caráter mimético,
especialmente na prosa de ficção, a linguagem literária pode incluir
características de todos os outros tipos de linguagem e, por isso, só
deve ser analisada quando os tipos mais simples e específicos já
tenham sido adequadamente descritos e os analistas devidamente
treinados.

1.2.3 A ESTILÍSTICA LITERÁRIA


A outra grande corrente da Estilística é a literária, iniciada por
Leo Spitzer, também chamada idealista (por se prender à filosofia

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idealista de B. Croce e K. Vossler), psicológica (por lhe interessar a


psicologia do escritor) e genética (por pretender chegar à gênese, ou
origem, da obra literária). Spitzer declara ter recebido na universi-
dade uma sólida formação humanística, que contudo não corres-
pondeu a suas expectativas: o divórcio dos estudos linguísticos e li-
terários, ambos norteados por uma visão historicista, deixou-o de-
cepcionado e daí nasceu-lhe a ambição de estabelecer uma ponte
entre a Filosofia e a Literatura; que seria a Estilística.
A Estilística de Spitzer parte da reflexão, de cunho psicologis-
ta, sobre os desvios da linguagem em relação ao uso comum; uma
emoção, uma alteração do estado psíquico normal provoca um
afastamento do uso linguístico normal; um desvio da linguagem
usual é, pois, indício de um estado de espírito não-habitual. O estilo
do escritor — a sua maneira individual de expressar-se — reflete o
seu mundo interior, a sua vivência. Spitzer concebeu um método
de estudo de estilo que chamou "círculo filológico". Consistia,
bem resumidamente, no seguinte: inicialmente lia e relia, paciente e
confiantemente uma obra, de grande artista, pois a escolha do au-
tor já pressupõe uma valoração; graças à intuição, encontrava um
traço estilístico significativo que servia como ponto de partida para
a penetração no centro da obra, isto é, o espírito do autor, o princí-
pio de coesão; a associação desse pormenor a outros permitia a
apreensão do princípio criador, da forma interna, enfim levava à
visão totalizadora da obra. E esse princípio criador devia ser con-
firmado pelos múltiplos aspectos da obra. Uma marca dos traba-
lhos de Spitzer foi o pensamento de que a intenção do autor é algo
específico, definido e, em princípio, encontrável. Dotado de excep-
cional acuidade de observação, de intuição rara e de vastíssima cul-
tura, Spitzer empreendeu trabalhos de valor, principalmente sobre
autores franceses (Rabelais, Racine, La Fontaine, Diderot, Proust,
etc.). Seus estudos são independentes uns dos outros, adaptações
do seu método à natureza específica de cada obra estudada, e não
se apresentam em uma linha coesiva. A obra mais acessível para um
contacto com a Estilística de Spitzer é a coleção de ensaios intitula-
da Linguística e história literária.
Já Erich Auerbach (1892-1957), dono também de incomensu-
rável cultura, empreendeu uma obra gigantesca, considerada "o
mais vasto, o mais abrangente, o mais profundo e erudito estudo de
estilo que já se produziu" (cf. Graham Hough), combinando a
abordagem sincrônica com a diacrônica. A sua obra Mimesis — a
representação da realidade na literatura ocidental (1946) contém
vinte ensaios separados sobre textos que cobrem um espaço de

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3.000 anos, do Velho Testamento e da Odisseia até os irmãos Gon-


court e Virgínia Woolf. O objetivo da obra é nada menos que
apreender os vários modos por que a experiência dos homens, his-
tórica, social, moral e religiosa, tem sido representada em forma li-
terária nas várias fases da cultura ocidental. Cada ensaio tem a den-
sidade e particularidade de um erudito artigo individual, mas o
conjunto é dirigido por um só propósito e dele emerge um padrão
coerente e não forçado. A conexão entre as observações linguísticas
sobre vocabulário ou sintaxe e as demais considerações a que elas
conduzem é sempre clara. Auerbach é um historiador da cultura e
chega a conclusões de grande alcance e generalidade, mas estas con-
siderações são sempre apoiadas com segurança em uma base lin-
guística (cf. Graham Hough). No dizer de Victor Manuel Aguiar e
Silva, "em vez do nexo entre estilo e sentimento que encontramos
na teoria spitzeriana, aparece em Auerbach a vinculação entre
estilo e ideologia, entre estilo e concepção da realidade". (Teoria
da literatura, p. 595)
Na corrente da Estilística literária deve ser mencionada tam-
bém a doutrina de Dâmaso Alonso, poeta, filólogo e linguista espa-
nhol. A sua obra Poesia espanhola inclui capítulos teóricos, em que
o Autor expõe suas ideias estilísticas, e estudos de vários poetas do
Século de Ouro (Garcilaso de Ia Vega, Gôngora, Fray Luís, Lope
de Vega, San Juan de Ia Cruz). Dâmaso Alonso faz a apologia da
Estilística literária, que deve ser considerada "irmã mais velha e
guia de toda estilística da fala usual e não sua borralheira", sendo a
diferença entre fala usual e fala literária questão de matiz e grau. O
objeto da Estilística é bem amplo, global, abrangendo "o imagina-
tivo, o afetivo e o conceitual". A obra literária caracteriza-se pela
unicidade, por ser "um cosmo, um universo fechado em si". Toda
obra literária encerra um mistério e sua compreensão depende basi-
camente da intuição, podendo-se, entretanto, estudar cientifica-
mente os elementos significativos presentes na linguagem. Só mere-
cem estudo as grandes obras literárias, "aquelas produções que
nascem de uma intuição, quer poderosa, quer delicada, mas sempre
intensa, e que são capazes de suscitar no leitor outra intuição seme-
lhante à que lhes deu origem". A obra move-se, pois, entre duas in-
tuições: a intuição criadora do autor e a intuição atualizadora do
leitor, (p. 38)
Há (ainda para D. Alonso) três modos de compreender a obra
literária, marcados por um crescente grau de precisão. O primeiro é
o do leitor comum, que não procura analisar nem exteriorizar suas
impressões. É uma intuição totalizadora, que se forma no processo
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da leitura e que reproduz a intuição totalizadora que deu origem á


obra, isto é, a intuição do autor. Esta leitura, cujo objetivo primá-
rio é o prazer, é o fundamento das outras espécies de conhecimen-
to.
O segundo grau de compreensão é o do crítico, cujas qualida-
des de leitor são excepcionalmente desenvolvidas, tendo ele uma ca-
pacidade receptiva mais intensa e mais extensa que a comum; o crí-
tico exerce uma atividade expressiva, comunicando as imagens in-
tuitivas recebidas. Ele transmite suas reações de modo criativo e
poético, sem explicar o como e o porquê da produção da obra. A
crítica é uma arte. Dâmaso Alonso aceita a crítica impressionista,
mas rejeita a história literária convencional.
O terceiro grau de compreensão da obra literária é o da tentati-
va de desvendar os mistérios da criação de uma obra e dos efeitos
dessa obra sobre os leitores. Surge aqui a intenção de explicar cien-
tificamente os fatos artísticos, sendo essa abordagem científica a
Estilística.
O poema se nos apresenta como uma sucessão temporal de
sons (os significantes) vinculada a um conteúdo espiritual (o signifi-
cado). Dâmaso Alonso atribui a significante e significado conceitos
diferentes dos de Saussure. Para ele o significante não é apenas "a
imagem acústica", mas o som físico também; e o significado não é
um mero conceito, mas uma complexa carga psíquica que pode in-
cluir emoção, afetividade, volição, intencionalidade, imaginação.
O significante total A é ligado ao significado total B por nume-
rosos nexos parciais. Além dos nexos verticais, há os horizontais.

A – a1 . . . . a2 . . . . a3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . an

B – b1 . . . . b2 . . . . b3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . bn

Como significantes totais temos: a obra, o poema, a estrofe, o


verso, o vocábulo, e como significantes parciais o ritmo, a entoa-
ção, a sílaba, o acento. O significado total é a representação da rea-
lidade e os significados parciais os múltiplos elementos sensoriais,
afetivos e conceptuais que essa representação comporta.
As séries de nexos verticais (a1 — b1) e horizontais (a1 .... a2);
(b1 .... b2) é que constituem o poema como um organismo — extre-
mamente complexo e delicado. A primeira função da Estilística é
investigar as relações entre os elementos parciais e, sendo estes mui-
to numerosos, selecionar os mais relevantes e reveladores. É neces-
sário acrescentar que Dâmaso Alonso se mostra pessimista quanto

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ao alcance da Estilística na apreensão da essência do poema, que


lhe parece um mistério indevassável.
Como a de Spitzer, a Estilística de Dâmaso Alonso é psicolo-
gista, atribuindo papel proeminente à intuição. Enquanto Spitzer
se mostrava mais preocupado com a manifestação do autor na
obra, Dâmaso Alonso se sente mais espicaçado pelo mistério da
criação poética, pela pergunta: O que é o poema? O que é a obra li-
terária?
Outro estilólogo espanhol, Amado Alonso, mais otimista
quanto às possibilidades da Estilística, apresenta as duas correntes
que vimos examinando como complementares e não distintas. A
primeira Estilística, a da língua, cuida dos recursos expressivos de
natureza linguística: dos indícios que se sobrepõem aos signos, do
lado afetivo, ativo, imaginativo e valorativo das formas da língua.
Tais valores expressivos tanto se encontram na língua falada como
na literária. Essa primeira Estilística é a base de uma outra de
maior amplitude, a Estilística literária ou da obra (ou da 'fala', por
ser de cunho individual). A tarefa da Estilística literária é examinar
como é constituída a obra literária e considerar o prazer estético
que ela provoca no leitor; quer dizer, o que interessa à Estilística li-
terária é a natureza poética do texto. Traços linguísticos, dados his-
tóricos, ideológicos, sociológicos, psicológicos, geográficos, folcló-
ricos, etc., a visão de mundo do autor, tudo se engloba no valor es-
tético da obra, que está impregnado do próprio prazer do autor ao
criá-la e que vai suscitar no leitor um prazer correspondente. Cabe
à Estilística, "nova disciplina filológica", procurar, aquilatar e re-
tificar os métodos convenientes para fazer estudos rigorosos do
poético.
O conceito de estilo comporta para Amado Alonso a mesma
duplicidade. Em sentido mais restrito, estilo é o uso especial do
idioma pelo autor, uma mestria ou virtuosismo idiomático como
parte da construção. Em sentido amplo, estilo é toda a revelação do
artista, é o homem, conforme a expressão de Buffon: "le style c'est
1'homme même".
Alicia Yllera, traçando a história crítica das ideias estilísticas
(Estilística, Poética e Semiótica Literária), depois de expor a posi-
ção de Amado Alonso, salienta a sua importância, mostrando que
ele não só sintetiza as principais tendências de autores que o prece-
deram como também prenuncia certos aspectos da Estilística estru-
tural moderna ou da Semiótica literária. A Bally se prende a sua
concepção dos elementos afetivos, ativos, imaginativos e valorati-
vos da linguagem. A Spitzer a sua compreensão do estilo como re-
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velação do homem. Ao estruturalismo, a preocupação com o modo


de construção da obra. À Semiótica, a distinção entre signo (refe-
rência lógica, intencional ao objeto) e indício (expressão, sugerên-
cia da realidade psíquica).
A esses ilustres representantes da Estilística literária deve-se
acrescentar ainda Helmut Hatzfeld, estilólogo a quem se deve,
além de importantes ensaios, o levantamento e a crítica de vastíssi-
ma bibliografia da Estilística aplicada às literaturas românicas. Na
sua doutrina, bem como nas de Damaso e Amado Alonso, se baseia
a obra de José Luís Martin, Crítica estilística, que propõe um méto-
do de análise estilística da obra literária.

1.3 A ESTILÍSTICA FUNCIONAL E ESTRUTURAL


Em meados do século, a Estilística (ainda que com outra deno-
minação) se desenvolve, em grande parte, baseada nos estudos de
Roman Jakobson. A Estilística se diz funcional, quando relaciona-
da às funções da linguagem, conforme a apresentação que delas fez
o autor checo; diz-se estrutural quando se baseia nas relações dos
elementos do texto.
Realizando-se em 1958, na Universidade de Indiana, Estados
Unidos, uma conferência interdisciplinar sobre o Estilo (cujos tra-
balhos foram reunidos no volume organizado por Thomas A. Se-
beok — Style in language), Jakobson apresentou o trabalho "Lin-
guística e Poética", que, traduzido para numerosas línguas, se tor-
nou de referência praticamente obrigatória nos estudos da lingua-
gem, não lhe faltando, contudo, críticas e restrições.
Rejeitando os termos Estilística e estilo, demasiado
imprecisos e prejudicados pelo uso indiscriminado, Jakobson os
substitui por Poética e Função Poética, respectivamente. O objeto
da Poética é esclarecer o que é que faz da mensagem verbal uma
obra de arte; a distinção do que é artístico do que não é artístico. A
Poética é uma parte da Linguística, pois se ocupa de estruturas
linguísticas. Mas em que se distinguem o objeto da Poética e o
objeto da Linguística? Como distinguir a linguagem poética da
linguagem comum?
Jakobson parte do processo de comunicação em que concor-
rem seis fatores, dispostos no conhecido esquema:

Contexto
Mensagem
Emissor Contacto Destinatário
Código

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A cada um desses fatores corresponde uma função linguística.
As funções se realizam simultaneamente, podendo-se notar a rele-
vância de uma em relação a outras, em diferentes enunciados, fato
que permite distinguir vários tipos de linguagem (comum, científi-
ca, convencional, lírica, épica, publicitária, etc.).
O pendor para o contexto (a realidade, a informação) constitui
a função referencial. (Esta função recebe de outros autores nomes
diversos: representativa, denotativa, cognitiva, nocional, intelecti-
va, ideacional.)
A função resultante do pendor para o emissor é a emotiva (ou
expressiva), cuja realização mais pura é a interjeição. É função cen-
trada no locutor, sendo, portanto, evidenciada pelos pronomes e
formas verbais da l f pessoa.
A função que incide sobre o destinatário (2f pessoa) é a conati-
va (a apelativa, de Bühler), realizada principalmente pelo vocativo
e pelo imperativo.
A função ligada ao canal é a fática, que diz respeito ao contac-
to entre emissor e receptor. É uma função básica, que fica subja-
cente a outras, pois se não houver contacto, não há comunicação.
Ela aparece quase isolada quando não se transmite conteúdo de
qualquer relevância: quando se visa a verificar se o canal está fun-
cionando (Você está me ouvindo?), quando se estabelece um con-
tacto (Bom dia, Oi) ou quando se encerra o mesmo (Até logo,
Tchau). As crianças que ainda não aprenderam a falar já manifes-
tam o desejo de contacto através de sons que não constituem lin-
guagem propriamente dita, ou seja, linguagem articulada.
Voltando-se a comunicação para a própria linguagem, sendo o
código o objeto da comunicação, ou o referente particular do enun-
ciado, tem-se a função metalinguística. Esta função pode ser consi-
derada implícita nas mensagens em que se nota que o emissor, ao
fazer sua escolha entre os meios de expressão, fez alguma reflexão
de ordem linguística. Em todo texto literário, que pressupõe uma
acurada seleção dos meios expressivos, a função metalinguística es-
tá subjacente, incorporada à função poética.
A função poética, que vem a ser o pendor para a própria men-
sagem, correspondendo à sua elaboração como um fim em si mes-
ma, pode sobrepor-se às demais funções, ou ainda estar presente no
texto sem ser a de maior proeminência. Jakobson refere-se não só à
concomitância das funções como à sua hierarquia. Considera obra
poética aquela em que a função poética tem a primazia, e Poética a
parte da Linguística que trata da função poética nas suas relações
com as outras funções da linguagem.
12
Aproximando a teoria de Jakobson da de Bally, podemos di-
zer que, enquanto para este a Estilística se concentra na função
emotiva da linguagem em relação com a função intelectiva (referen-
cial), para Jakobson a Estilística, ou Poética, se concentra na rela-
ção da função poética com as demais funções. Podemos também
aproximar Jakobson de Amado Alonso, interessado, como vimos,
sobretudo no valor poético do texto literário. À teoria das funções
da linguagem prendem-se também os estudos da Linguística da
enunciação, a que nos referimos no capítulo 5.
Para explicar a realização da função poética, Jakobson entra
na estruturação da frase e do texto (Estilística estrutural), lembran-
do os dois modos fundamentais do comportamento verbal: a sele-
ção (eixo paradigmático) e a combinação (eixo sintagmático). Para
exemplificar ele toma uma frase tão simples como "O menino dor-
me". Sendo o tema da mensagem "uma criança", foi escolhido o
substantivo menino entre sinónimos vários (bebê, nenê, infante,
guri, etc.) e para comentar o tema um dos verbos aparentados (dor-
me, cochila, repousa, etc.). As duas palavras escolhidas se combi-
nam na cadeia falada. A seleção se dá na base da equivalência, da
similaridade, podendo ser também na base da dissimilaridade
(sinonímia/antonímia), enquanto a combinação, a construção da
sequência repousa sobre a contiguidade. Ele formula então o prin-
cípio da função poética: "A função poética projeta o princípio da
equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação." Quer
dizer que a equivalência, que é própria dos paradigmas da língua, é
transposta para o sintagma, que é elemento da fala, do discurso, o
qual é comumente constituído de elementos de natureza diferente;
por exemplo, o sintagma nominal constituído de artigo — adjetivo
— substantivo, com número de sílabas e acentuação geralmente di-
versos. Jakobson dá como exemplo de equivalência na sequência a
célebre frase de César: Veni, vidi, vici. E explica: "É a simetria dos
três verbos dissilábicos, com a consoante inicial e a vogal final idên-
ticas, que dá esplendor à mensagem lacónica da vitória de César."
A repetição de fonemas em palavras diversas (rima, aliteração,
etc.) de um mesmo padrão vocabular (palavras com número de síla-
bas e posição de acento equivalentes), a série sinonímica, os antôni-
mos, a repetição de um mesmo segmento melódico (pé métrico,
verso), a simetria, o paralelismo, são, pois, exemplos de equivalên-
cias transpostas para a sequência do discurso, constituindo recur-
sos poéticos. Pode-se observar, entretanto, que esse princípio, mui-
to preso à natureza formal do texto, não chega a abranger todos os
caracteres da linguagem poética.

13
A especificidade estilística depende, pois, de uma relação das
formas no interior da mensagem (cf. Dâmaso Alonso) e é esta es-
trutura do texto (que não se deve confundir com a estrutura do có-
digo) que o pesquisador deve determinar. A Estilística estrutural
salienta que o valor estilístico de um signo depende de sua posição
no seio de um sistema. Todo signo pertence a duas estruturas, a do
código, que define seu lugar numa categoria (estrutura paradigmá-
tica), e a da mensagem, na qual ocupa uma posição determinada
(estrutura sintagmática). Daí as duas possibilidades: estudar a for-
ma do signo em relação ao texto ou em relação ao sistema linguísti-
co a que pertence; estudar os efeitos expressivos realizados no texto
ou estudar os recursos expressivos em potencial na língua.
Jakobson mostra que o efeito poético repousa sobre uma com-
binação das duas estruturas: a análise da mensagem não deve dis-
pensar a análise do sistema, do código. O efeito de um vocábulo de-
pende não só da frase, do contexto em que se encontra, como da to-
nalidade significativa que se sente em confronto com outros vocá-
bulos equivalentes. Aplicando essas considerações ao verso de Bi-
lac: "O ângelus plange ao longe em doloroso dobre", pode-se dizer
que o valor expressivo de plange, por exemplo, está no vocábulo
em confronto com chora, toca, ou outro que poderia ocupar a mes-
ma posição, mas esse valor é intensificado pelo seu relacionamento
com ângelus e longe, que contêm fonemas comuns, sendo especial-
mente expressivos os fonemas nasais, que sugerem som prolonga-
do, distante, lamentoso.
Esquematizando a doutrina, tem-se:

As estruturas do signo são


a) paradigmáticas – categoria do sistema linguístico
b) sintagmáticas – posição no texto

A estilística pode tratar


a) dos meios expressivos em potencial na língua
b) dos efeitos alcançados pelo seu uso no texto.

É oportuno salientar que Jakobson valoriza o papel da gramá-


tica no texto poético, negando a ideia vigente no seu tempo de estu-
dante de que as ideias e o conteúdo emocional constituíam a essên-
cia e o valor do texto. Para ele as questões do verso, de sua matéria
sonora e a problemática gramatical são indissolúveis e de igual im-
14
portância. As categorias gramaticais repetidas ou contrastantes têm
função de composição, daí o seu cuidado de descobrir o perfil gra-
matical de um texto e valorizar o seu efeito artístico (cf. Diálogos,
p. 110).
Entre outros autores que seguem a Estilística estrutural temos
Michael Riffaterre (Estilística estrutural) e Samuel Levin (Estrutu-
ras linguísticas na poesia).
Riffaterre considera a Estilística estudo exclusivo da mensa-
gem, negando a pertinência estilística do sistema (o que se pode
considerar uma posição radical contestável). O estilo é fato resul-
tante da forma da mensagem e repousa sobre uma dupla série de
procedimentos: uns decorrentes de uma convergência (paralelismo,
colocação de elementos linguísticos equivalentes — fônicos e se-
mânticos — em posições equivalentes), e outros decorrentes dum
contraste dos signos. Os signos não têm valor absoluto, mas um va-
lor resultante de uma oposição e contacto com outros signos. So-
mente no contexto é que se atualiza o valor expressivo. Ponto im-
portante da teoria de Riffaterre é a ênfase dada ao leitor: o estudo
do estilo só pode ser definido em função do leitor, sendo destituída
de pertinência estilística toda referência ao autor. Os estudos estilís-
ticos devem ter por base, portanto, depoimentos de leitores diver-
sos, críticos, pessoas de alguma cultura literária.
Samuel Levin, aplicando o princípio da função poética de Ja-
kobson, procura descrever as estruturas linguísticas que distinguem
a linguagem da poesia da linguagem comum. Toda a sua tentativa
de descrição tem por núcleo a estrutura que ele chama acoplamento
("coupling") e que consiste no seguinte: duas formas equivalentes
— seja pelo som, seja pelo sentido — dispostas na cadeia falada em
posições equivalentes. O acoplamento é, pois, a convergência (v.
Riffaterre) de duas equivalências, uma de posição e outra de natu-
reza (fonética ou semântica), e constitui um modo de integração e
de amplificação do poema. A rima é o exemplo mais claro de aco-
plamento, visto que palavras com coincidência de sons são apresen-
tadas em posição equivalente (conforme os esquemas rimàticos das
composições de forma fixa). O emprego de sinónimos, antônimos,
de palavras com alguma correlação de sentido em posições equiva-
lentes está no mesmo caso. E também o metro (sequência fônica
com determinado número de sílabas e acentos, que se reproduz no
texto com certa regularidade). Enfim, são acoplamentos as cons-
truções que apresentam algum tipo de paralelismo.
Embora considerando que o acoplamento é uma das estruturas
importantes em poesia, reconhece Levin que por si só ele não expli-

75
ca a unificação do poema. E, em relação ao grau desejável do seu
emprego em poesia, adverte que seria um erro concluir que quanto
mais acoplamentos se encontrem num poema tanto melhor será ele.
Pelo contrário, poderá ser um poema banal. O efeito do processo
depende da ação e interação simultânea de todos os outros fatores
que atuam sobre o poema. Depois de expor o seu método, Levin
aplica-o na análise de um soneto de Shakespeare, mas esclarece não
pretender uma interpretação global do texto, e sim uma demonstra-
ção do papel desempenhado pelo acoplamento. Na conclusão da
análise diz ser a sua função principal unificar o texto e facilitar a
sua memorização.
Para deixar mais claras estas ideias formuladas pela Estilística
estrutural, tomemos o exíguo texto de um haicai de Guilherme de
Almeida, "Pensamento":
O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
(Toda a poesia, VI, p. 131)
O texto, de 17 sílabas poéticas, é formado por 5 frases nomi-
nais, havendo, portanto, equivalência estrutural: as três primeiras
com a sobriedade de artigo definido mais substantivo, e as duas úl-
timas, um pouquinho mais desenvolvidas, iniciadas por um sintag-
ma nominal preposicionado com a ideia de lugar, destacado por
pausa. Estes sintagmas preposicionais apresentam uma equivalên-
cia de sentido, visto que designam uma superfície e os sintagmas
que a eles se seguem indicam a linha, o traço que se forma nas su-
perfícies. Temos, portanto, equivalência de posição e equivalência
de significado, o que vem a ser um acoplamento. Note-se também a
equivalência dos artigos: definidos nas três frases do primeiro ver-
sos e nos sintagmas adverbiais, e indefinidos nos sintagmas subor-
dinantes dos 2º e 3º versos. Quebrando levemente a simetria entre
o segundo e o terceiro versos, o substantivo círculo, que ocupa o
centro do "círculo" formado pelo poema, é o único acompanhado
de adjetivo. Representando por X o sintagma nominal formado
por artigo definido e substantivo e por Y o sintagma com artigo in-
definido, por p a preposição e por A o adjetivo, tem-se este esque-
ma que evidencia a equivalência estrutural:
x.x.x.
pX, Y A
pX, Y.

16
Outros acoplamentos de posição/natureza, observamos em:
folha e fuga, que além de estarem em posição equivalente, se rela-
cionam pela aliteração do /f/ e pela vogal final comum (que se pode
chamar rima atônica); associam-se ainda pelo sentido já que é
sugerida a fuga da folha pelo ar, como símbolo do pensamento.
Fuga acopla-se ainda a ruga pela rima e pela posição final no verso.
No segundo verso temos uma rima entre palavras colocadas no iní-
cio e no final (equivalência por oposição): no lago /vago. O terceiro
verso apresenta ainda o acoplamento rosto/ruga, que têm a alitera-
ção do /r/, o mesmo número de sílabas, a mesma posição do acen-
to, e ainda se encontram em relação metonímica (ruga = traço do
rosto).
A analise das equivalências e convergências da sintética com-
posição revela como elas enriquecem o poder sugestivo das pala-
vras.

1.4 ESTILÍSTICA E RETÓRICA


Como foi visto, a Estilística despontou nas primeiras décadas
deste século como uma disciplina de intenção mais ou menos cientí-
fica, sem o objetivo prático de ministrar conselhos ou normas a
quem fala ou escreve. Contudo, ela não pode ser completamente
desligada de estudos sobre a expressão linguística feitos em séculos
anteriores, a saber, a Retórica, que se ocupou da linguagem para
fins persuasivos e artísticos.
O desenvolvimento da literatura pressupõe uma atividade re-
flexiva em torno dos recursos expressivos da língua e não se pode
conceber a culminância dos poemas homéricos sem imaginar por
trás deles uma longa tradição do cultivo da linguagem, ainda que
não se tenham conservado documentos teóricos comprobatórios. A
acentuada valorização da palavra, do discurso, que impregna as fa-
las dos heróis homéricos (ressalte-se, por exemplo, ser a facúndia
um dos altos predicados de Ulisses) nos faz crer numa retórica as-
sistemática, bem anterior à de Corax e Tísias, apontados como os
primeiros mestres da arte do discurso (século V a.C.). Diz Cícero,
em sua obra Brutus, que foram esses dois homens os primeiros a
reunir alguns preceitos teóricos do discurso argumentativo no em-
penho de ajudar os proprietários de terras da Sicília a defenderem
seus direitos violados por tiranos. Anteriormente, ainda que muitos
se houvessem esforçado em falar ordenada e cuidadosamente, nin-
guém, ao que se sabe, tinha seguido um método definido de arte.
Atribui-se a um discípulo de Tísias — Górgias (séculos V-IV a.C.) a
17
introdução da Retórica em Atenas, onde floresceu com os sofistas.
Valorizando a destreza verbal, a apresentação convincente dos ar-
gumentos, Górgias não manitestava preocupação quanto à veraci-
dade dos fatos, razão por que a sua Retórica se tornou objeto de
críticas. Essa irresponsabilidade moral passa a ser condenada, rei-
vindicando-se para a Retórica um papel mais nobre que o da sim-
ples persuasão. Visto o discurso como o fundamento da sociedade
humana, o meio pelo qual o homem expressa sua sabedoria, a edu-
cação para o bom uso da palavra é defendida como a mais benéfica
e desejável. Esse ideal seria mais tarde defendido magnificamente
por Cícero, bem como por Quintiliano, e continuado pela Idade
Média e pelo Classicismo, desempenhando importante função edu-
cativa. Alguns dos diálogos de Platão censuram a Retórica pela
possibilidade do uso de técnicas persuasivas para fins desonestos e
apresentam uma redefinição da Retórica, defendendo o primado
da sabedoria e da verdade sobre a habilidade verbal. A sabedoria é
o princípio e o fim da eloquência.
É, porém, Aristóteles quem escreve um verdadeiro tratado —
A Retórica (possivelmente em 339-338 a.C.), obra extensa, fértil
em ensinamentos, discutindo, analisando, ordenando todos os as-
pectos da arte do discurso, de maneira prática e percuciente. Segun-
do José Luís Martin, que traça um bom histórico dos estudos retó-
ricos e estilísticos, das suas remotas origens até o século XX, Aris-
tóteles não só conclui toda uma era da critica, como também come-
ça outra: a crítica literária ocidental. Os dois livros de Aristóteles,
A Retórica e A Poética, formam os dois pilares em que se fundou a
crítica tradicional do Ocidente, até chegar a Charles Bally (Crítica
estilística, p. 90).
Aristóteles dá particular relevo às provas da causa em questão
e procura mostrar que a Retórica, não menos que a Lógica, tem sua
própria espécie de rigor intelectual. A Retórica é primariamente
uma técnica de argumentação, mais do que de ornamentação. Ao
tratar do estilo, afirma ser a clareza, que se alcança pelo emprego
dos termos próprios, a sua principal virtude: "Se o discurso não
tornar manifesto o seu objeto, não cumpre a sua missão." O ora-
dor deve adequar o estilo às diferentes situações, evitando tanto o
estilo rasteiro como o empolado. A elegância de linguagem pode
ser obtida principalmente pela metáfora, que "é o meio que mais
contribui para dar ao pensamento clareza, agrado e um certo ar es-
trangeiro" (cf. p. 209). Salienta também a importância do epíteto e
do diminutivo, aconselhando, contudo, a moderação no uso de um
e outro. Muito pertinentes são também as considerações sobre o rit-

18
mo, o qual concorre para que o discurso ganhe majestade e realize
a sua função de comover. O discurso deve ter ritmo, mas não me-
tro, pois neste caso se tornaria poema. São comentados os valores
ritmicos de vários tipos de frases, as construções antitéticas, simé-
tricas, sempre com fartos exemplos. Os últimos capítulos da Retó-
rica tratam das partes do discurso, suas finalidades e característi-
cas.
Na Poética, que é pouco posterior à Retórica e que nos chegou
incompleta, Aristóteles trata da conceituação de poesia como imi-
tação da realidade (mimese), dos géneros poéticos (tragédia e epo-
peia, sobretudo) e da elocução poética, mencionando aspectos co-
muns à oratória, como a clareza; refere-se aos desvios da linguagem
comum que tornam a linguagem da poesia mais elevada, e enfatiza
especialmente o valor da metáfora: "É importante saber empregar
a propósito cada uma das expressões por nós assinaladas, nomes e
glosas; maior todavia é a importância do estilo metafórico. Isto só,
e que não é possível tomar de outrem, constitui a característica dum
rico engenho, pois descobrir metáforas apropriadas equivale a ser
capaz de perceber as relações." (Cap. XXII).
Com o seu gênio classificatório, Aristóteles ordena, divide,
subdivide os múltiplos elementos da arte oratória e da poética, mas
não se detém numa classificação pormenorizada das figuras de lin-
guagem. Seriam os retóricos posteriores que iriam multiplicar as
observações sobre os fenómenos da expressão, elevando incessante-
mente o número das denominações e complicando a sua classifica-
ção. O estudo da elocução chegará a sobrepor-se ao das demais
partes da Retórica (invenção, disposição, ação e memória), ficando
ela confinada às figuras do discurso (cf. Fontanier: Les figures du
discours), quando não aos tropos (cf. Dumarsais: Traité des
tropes).
Nos grandes retóricos do Classicismo, a Retórica já se confun-
dira com a Poética, oferecendo orientação para a elaboração literá-
ria em geral e estabelecendo critérios para o julgamento das obras.
Com a profunda mudança de ideias que se dá a partir do sécu-
lo XVIII (Romantismo), com a valorização do individual e repúdio
de normas estabelecidas e da imitação como princípio artístico, a
Retórica cai em desprestígio, passa até a ser ridicularizada. Muito
contribuiu para isso a obsessão da nomenclatura, da classificação
pela classificação, que fazia do texto literário um pretexto para a
identificação e denominação das figuras, com prejuízo da emoção e
do prazer que ele deveria proporcionar. Charles Bally, por exem-
plo, rejeita a complicação retórica para classificar aquilo que ele

19
chama simplesmente "categorias expressivas" com termos técnicos
rebarbativos e pedantes e que não designam tipos definidos. "Se
uma terminologia é necessária, é preciso refazê-la; para nós, que só
procuramos a razão de ser e as formas naturais e expressivas das
imagens, nossa classificação será muito mais simples." (Traité, p.
187.) Não obstante os repetidos ataques à nomenclatura retórica,
termos como metáfora, metonímia, onomatopéia, prosopopéia,
alegoria, hipérbole, anacoluto, zeugma, etc. continuaram a ser usa-
dos, não tendo sido nem substituídos nem dispensados.
Por volta dos anos sessenta, pode-se presenciar um movimento
de revalorização da Retórica, uma nova avaliação da sua contribui-
ção ao estudo dos fatos da linguagem. Pierre Guiraud, depois de
apresentar as linhas principais que nortearam a Retórica nos seus
vinte e tantos séculos de desenvolvimento, dá um balanço do seu le-
gado: "A Retórica é a Estilística dos antigos; é uma ciência do esti-
lo, tal como então se podia conceber uma ciência. A análise que nos
legou do conteúdo da expressão corresponde ao esquema da lin-
guística moderna: língua, pensamento, locutor. As figuras de dic-
ção, de construção e de palavras definem a forma linguística em seu
tríplice aspecto fonético, sintático e léxico; as figuras de pensamen-
to, forma do pensamento; os géneros, a situação e as intenções do
sujeito falante. Alguns dos seus aspectos podem parecer-nos ingé-
nuos T- muito menos do que se poderia julgar à primeira vista —
mas de todas as disciplinas antigas, é a que melhor merece o nome
de ciência, pois a amplidão das observações, a sutileza da análise, a
precisão das definições, o rigor das classificações constituem um es-
tudo sistemático dos recursos da linguagem, cujo equivalente não
se encontra em qualquer dos outros conhecimentos daquela
época." (A Estilística, p. 36; La stylistique, p. 20.) É possível que
esse julgamento seja excessivamente favorável, mas é inegável a im-
portância da contribuição da Retórica para o conhecimento dos fa-
tos da linguagem em geral (visto que as figuras não são exclusivas
da linguagem literária) e da linguagem artisticamente elaborada em
particular.
Obras modernas que tratam da Retórica com profundeza e
amplitude consideráveis são Elementos de Retórica Literária, de
Heinrich Lausberg (Elementer der Literarischen Rhetorik, Mun-
chen, 1963; l? ed. 1949; tradução portuguesa, 1965), modestamente
considerada pelo autor um manual introdútório, e o Dictionnaire de
Poétique et de Rhétorique, de Henri Morier(lª ed. 1961; 2ª ed.,
consideravelmente aumentada, 1975).

20
Vários autores, como Roland Barthes, Gerard Genette, J. Co-
hen, Chaim Perelman e L. Olbrecht-Tyteca, entre outros, têm re-
novado os estudos retóricos em obras de real importância. Grande
repercussão tem tido a retomada da Retórica em nova base
científica por um grupo de professores da Universidade de Liege,
Bélgica, na obra Rhétorique générale. Os autores (J. Dubois, F.
Edeline, J.M. Klinkenberg, P. Minguei, F. Pire e H. Trinon)
propõem-se a estudar a função retórica (denominação que
preferem à função poética de Jakobson), considerando que essa
função implica alterações múltiplas da linguagem, e denominam
metábole "todo tipo de mudança de um aspecto qualquer da
linguagem". Essas mudanças se enquadram em quatro tipos: as
alterações da expressão (signifi-cantes) são os metaplasmos
(alterações de palavras) e metataxes (alterações de frases); as
alterações de conteúdo (significado) são os metassememas
(palavras) e metalogismos (frases). Essas alterações podem dar-se
por supressão, por adjunção ou acréscimo, ou por supressão-
adjunção de elementos linguísticos (alterações substanciais) ou
podem ocorrer na ordem dos elementos (alterações relacionais).
Os metalogismos — que correspondem às figuras de pensamento
— não alteram os elementos linguísticos mas afetam a lógica do
enunciado. A descrição das figuras retóricas ou metáboles se
baseia em conceitos operatórios não muito precisos, de difícil de-
finição, a saber: grau zero, desvio, marca, redundância, autocorre-
ção e invariante. O resumo do item 2 (conceitos operatórios) do ca-
pítulo I dá uma ligeira ideia da orientação da obra e do seu objeto:
"Em resumo, a retórica é um conjunto de desvios suscetíveis
de autocorreção, isto é, que modificam o nível normal de redun-
dância da língua, transgredindo regras, ou inventando outras no-
vas. O desvio criado por um autor é percebido pelo leitor graças a
uma marca, e em seguida reduzido graças à presença de um inva-
riante. O conjunto dessas operações, tanto as que se desenvolvem
no produtor como as que têm lugar no consumidor, produz um
efeito estético específico, que pode ser chamado ethos e que é o ver-
dadeiro objeto da comunicação artística. A descrição completa de
uma figura de retórica deve então obrigatoriamente comportar a de
seu desvio (operações constitutivas do desvio), a de sua marca, a de
seu invariante e a de seu ethos." (p. 66-67) (Entretanto o estudo
mais desenvolvido do ethos não chegou a entrar neste volume.)
A Retórica Geral toma exemplos, não muito numerosos, quer
da linguagem literária, quer da jornalística. É uma obra sobrecarre-
gada de teoria, que exige do leitor certo tirocínio nos estudos lin-
guísticos ou. retóricos.
21
1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sendo muito numerosos os autores que se ocuparam ou que se
vêm ocupando de Estilística e Retórica, apresentando novas ideias
e teorias, e não .sendo a intenção deste trabalho fazer um histórico
minucioso do seu desenvolvimento, muitos estudiosos de vulto, co-
mo Roland Barthes, Carlos Bousono, Gérard Genette e outros, não
foram mencionados. Acreditamos, entretanto, que a síntese apre-
sentada seja suficiente para dar ideia das teorias principais, bem co-
mo da complexidade e da importância da matéria.
Pela incursão feita através das obras mais significativas da Es-
tilística e da Retórica, pode-se ver que noções fundamentais da
pri-.meira já se encontravam na segunda, como a de desvio e
escolha, das variedades de linguagem conforme a situação ou
estado emotivo do falante, da expressividade, e do efeito suscitado
no leitor ou ouvinte.
A Estilística tem um campo de estudo mais amplo que o da Re-
tórica: não se limitando ao uso da linguagem com fins exclusiva-
mente literários, interessa-se pelos usos linguísticos corresponden-
tes às diversas funções da linguagem, seja na investigação da poeti-
cidade, seja na apreensão da estrutura textual, seja na determina-
ção das peculiaridades da linguagem devidas a fatores psicológicos
e sociais.
As várias teorias estilísticas, cada qual com a sua contribuição,
podem ser compreendidas em dois grupos: as que consideram o fe-
nômeno estilístico como objeto de pesquisa em si mesmo, e as que o
consideram como o meio privilegiado de acesso à interioridade do
escritor. A primeira é a Estilística de expressão ou linguística, a se-
gunda a do indivíduo, a literária. Em ambos os casos se reconhece
na linguagem uma função representativa (intelectiva, referencial,
denotativa), que diz respeito a um conteúdo objetivo, nocional, e
um função expressiva, apoiada na primeira, que diz respeito a um
conteúdo subjetivo, o qual constitui o fato estilístico, atingindo sua
intensidade máxima na língua literária (cf. P. Barucco, Éléments de
stylistique).
O caráter científico da Estilística — ou a sua pretensão de atin-
gir o estatuto de ciência — advém do seu objetivo de explicar os
usos da linguagem que ultrapassam a função puramente denotati-
va, com maior exatidão e sem o propósito normativo que caracteri-
zou a Retórica. Contudo, não se logrou ainda um método rigoroso
que assegure sua condição de ciência e o seu objeto não está satisfa-
toriamente delimitado.
22
O estudo que ora apresentamos trata da expressividade da lín-
gua portuguesa, isto é, os meios que ela oferece aos que falam ou
escrevem para manifestarem estados emotivos e julgamentos de va-
lor, de modo a despertarem em quem ouve ou lê uma reação tam-
bém de ordem afetiva.
Seguimos, pois, a linha descritiva, iniciada por Bally, com
aproveitamento das lições de mestres diversos, especialmente Ja-
kobson, que tão bem relacionou a arte literária com os elementos
linguísticos. Evidentemente, só será apresentada uma parte do uni-
verso expressivo de nossa língua, sendo impossível, mesmo em obra
de maior proporção e ambição, apresentar a totalidade (ou quase)
dos recursos que constituem o seu potencial, mesmo porque esse
potencial está em constante renovação.
Embora com alguma frequência se examinem fatos de lingua-
gem comum, é principalmente dos textos literários que são toma-
dos exemplos que permitem deduzir as possibilidades estilísticas do
português nos três níveis: fonético, léxico, sintático. Esses exem-
plos são forçosamente destacados do seu contexto, o que impede
que se perceba a plena extensão do seu valor expressivo, relaciona-
do a outros elementos da rede estilística. Entretanto, pela indicação
das obras de que foram extraídos, poderá o leitor ir ao texto origi-
nal nos casos que lhe despertem maior interesse.
Os procedimentos expressivos, de natureza vária, que apare-
cem combinados na sequência do discurso, são examinados separa-
damente nos diferentes capítulos por motivo didático. Mas muitos
exemplos tomados para ilustrar um determinado fato, podem ser
aproveitados para observação de outras particularidades que neles
convergem. Nos três capítulos dedicados à Estilística fônica, léxica
e sintática, são estudados respectivamente os valores ligados à so-
noridade, à significação e à formação das palavras, à constituição
das frases; no capítulo final, são focalizados alguns aspectos do
discurso, particularmente os processos de citação e de apresentação
da fala nas narrativas de ficção. Enquanto neste predomina a Esti-
lística da enunciação, nos outros tem mais destaque a Estilística do
enunciado.
Não tem este trabalho a pretensão de ensinar os leitores a es-
crever ou orientá-los na formação de uma estilo; tampouco visa a
análises literárias integrais. Seu objetivo é despertar maior cons-
ciência das imensas possibilidades de expressão da nossa língua, as
quais têm sido desenvolvidas e exploradas pelos seus milhões de
usuários. O conhecimento da língua do ângulo da expressividade
constitui o passo inicial para a compreensão e valoração dos textos
23
literários. Como bem diz Guiraud, "sem ser o objeto nem o fim
único da análise estilística, os estudos dos valores expressivos e de
seus efeitos é a tarefa maior do estilólogo e o ponto de partida in-
dispensável de toda crítica de estilo" (Essais de stylistique, p. 75).

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