7.
Che-
O rádio tocava uma música suave e o Pedro
não parava de mastigar batatas fritas enquanto
con-tinuava a olhar para uma revista qualquer
sem mostrar grande interesse pela leitura.
Crrac... crrac... crrac... crrac...
Que vício, Pedro! Fazes tanto barulho a
mastigar que não me deixas ouvir a música!
Não és capaz de parar um bocadinho?
— Adoro fazer crrr-crrr... Sabe bem. Queres
— Não obrigada. Sabes perfeitamente que de-
testo batatas fritas. O que é que tu tens? Nestes
últimos dias tens andado um bocado nervoso.
Pas-sa-se alguma coisa?
— Não, nada de especial.
— Uhmm! Não acredito. Não pode estar tudo bem
porque senão tu não estavas em casa ao sábado
à tarde, a comer batatas fritas e a ler uma revista
feminina...
— Isto é uma revista feminina'? Ah! Pois é...
Por que é que não me disseste há mais tempo?
— Não me pediste opinião! Estás a ver?
Tens que concordar comigo! Passa-se qualquer
coisa que tu não queres dizer... Mas, se calhar*,
se dis-sesses era melhor! Vá lá*! Conta à tua
maninha* que está aqui para te ajudar...
— Vou vender o carro e desistir das aulas
de condução.
— O quê? 'Tás a gozar comigo...
— É a sério. Já decidi.
— Ah não! Nessa não acredito. O que foi que
te aconteceu? Atropelaste* alguém?
— Não, não aconteceu nada de especial.
guei à conclusão que um carro só traz problemas.
É preciso dinheiro para a gasolina e para a oficina;
é preciso espaço para estacionar, paciência para os
engarrafamentos e uma grande capacidade de
encaixe* para aturar os outros automobilistas...
Aliás tenho a sensação que já ninguém respeita
ninguém... ultrapassam pela direita, metem-se
na frente, apitam, insultam, eu sei lá*!
— Deves ter feito alguma* na lição! Tu sempre
achaste que és a única pessoa perfeita neste mundo
e só agora é que descobriste que se calhar nao é
bem assim. Portanto, vingas-te nas batatas fritas...
ficas frustrado... queres desistir... Isso nem parece
— Cala-te! — Gritou o Pedro já desesperado
com a lição de moral da irmã.
E já nem ouviu o resto da conversa. Levan-tou-
se furioso, com o pacote de batatas fritas na mão, e
saiu da sala batendo a porta. Mas lá bem no fundo
também ele concordava com a Teresa. Ah! como
ele detestava ter de reconhecer que ela tinha razão!
8.
Afinal o Pedro não desistiu; e depois dos dias
maus das primeiras experiências fez os exames
sem mais problemas dignos de nota.
No entanto, ainda hoje não pode deixar de pensar
nas mudanças que uma simples brincadeira* , como
 a de comprar um número de sorteio para ajudar
uma Associação de Bombeiros, trouxe à sua vida.
Até aí ele tinha sido um jovem sempre exces-
sivamente confiante nas suas capacidades inte-
lectuais, mas para quem os aspetos práticos do
dia a dia não tinham grande significado. sorteio tirar à sorte
Mas, tanto o assalto de que foi alvo como as vai esperando... (fam.)l não vale a pena; é
primeiras aulas de condução fizeram-no descobrir me-Ihor perder as esperanças
limitações humanas que até aí Ihe eram totalmente ingénuo inocente; crédulo; pessoa que
acredita em tudo
desconhecidas. E verificou, com surpresa, que foi dar pena ser comovente; ser triste
a partir do momento em que recebeu o seu carro que começou a novo em folha completamente novo; que ainda
prestar mais atenção à realidade dos outros... não foi utilizado
Se o leitor hoje se cruzar na rua com uma logo vês... (fam.) nesse momento verás como
ambulância dos Bombeiros Voluntários é bem eu tenho razão
possível que veja o Pedro a conduzi-la. «logo» o primeiro prémio exatamente;

preci-samente
a menos que só se
gozar (fam.) rir-se de qualquer coisa; divertir-se
folhear passar as páginas rapidamente
anúncio aviso; informação; publicidade
4 ter a ver com estar relacionado com
nada como é melhor; o melhor é
tonto maluco; pateta
Júlio de Matos nome de um Hospital Psi-
quiátrico de Lisboa

deliberadamente de livre vontade; de forma

decidida
pôr-se a telefonar começar a telefonar
alegria exuberante excessiva; exagerada
hábil busca habilidosa; eficiente
busca procura; pesquisa
pelos vistos aparentemente
havia passado tinha passado

I (Fam.) — Familiar.