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ASSASSINATO ENTRE ESCRAVOS

Era cinco de maio de 1888, na fazenda Tanque Novo, Bom Conselho. Passava das
onze horas da noite quando Martinho, escravo pertencente a Maria Francisca de Jesus, se
dirige à Fazenda Olaria, de propriedade de Raimundo Correia de Souza (Tio de Correinha
da zabumba), é noite alta e a maioria das pessoas já estavam dormindo. Martinho chega
a uma pequena casa de palha onde dorme tranquilamente Sérgio, escravo de Raimundo
Correia de Souza.

Sorrateiramente Martinho afasta duas tábuas que servem de porta ao casebre


simples e acende um fogo, provavelmente para ter visibilidade. A fraca luz produzida
pelas chamas permite que Martinho identifique com precisão o local onde Sérgio dormia,
aproxima-se portando um machado que trazia consigo e faz mira, sem piedade desfere
uma certeira pancada com o “olho do machado” na cabeça da sua vítima.

Mesmo diante da brutalidade do fato, Sérgio não morre imediatamente, geme e se


contorce de dor enquanto seu algoz se afasta, recoloca as tábuas no acesso à cabana e
caminha de volta ao Tanque Novo. No dia seguinte, para não levantar suspeitas, tenta
seguir uma rotina normal, levanta-se cedo e vai para roça trabalhar. Não demora muito
até Raimundo Correia, tenente da guarda nacional, acompanhado de José Napoleão e mais
dois escravos, chegar ao local onde Martinho trabalha e dar voz de prisão ao assassino.
Começava ali um longo julgamento, ocorrido na Vila de Bom Conselho, atual Cícero
Dantas. Sérgio morreria quatro dias depois do atentado e Martinho é indiciado em crime
de morte.

A história que você acabou de ler está detalhadamente descrita no processo crime
07/225/17, manuscrito de 198 páginas, sob a guarda do Arquivo Público do Estado da
Bahia.

No decorrer dos trâmites do processo, as testemunhas relatam que Sérgio e


Martinho tinham tido uma “alteração”, uma briga por razões desconhecidas. É provável
que a disputa pelo amor de uma escravizada tenha provocado o desentendimento entre os
dois. Ao longo das páginas amareladas pelos cento e trinta e quatro anos decorridos,
descobre-se que Martinho havia ido à casa de Sérgio outras três vezes, mas não levou a
cabo o seu plano de vingança, até consumar o fato no dia cinco de maio.
Preso pelo dono do escravo assassinado, Martinho segue para a cadeia da vila de
Bom Conselho onde é interrogado e aguarda o desenrolar dos procedimentos necessários.
Ali, relata ter entre 45 e 46 anos, ter nascido em Inhambupe e ter chegado à fazenda Olaria
30 anos antes do crime.

No dia nove a promotoria oferece denúncia contra o acusado:

Ilustríssimo senhor juiz municipal [trecho ilegível] o promotor da comarca, em


cumprimento do dever que lhe impõe a lei, vem ante o ilustríssimo denunciar a Martinho,
escravo que foi de D. Maria Francisca de Jesus, pelo fato que possa a expor [trecho
ilegível]. Tendo no mês de abril tido o denunciado uma alteração com Sérgio, escravo do
Tenente Raimundo Correia de Souza, ao ponto de se atracarem, resolveu vingar-se. Pelo
que, por mais de uma vez foi à casa do seu contendo à noite e achando-o dormindo voltou
sem nada fazer-lhe, mas no dia 5 do corrente mês, estando em um trabalho na roça do
coronel Aristides da Costa Borges, onde também se achava Sérgio e tendo esse zombado
do denunciado, talvez por não ter se saído melhor na luta, resolveu desde logo levar a
efeito o seu projeto de vingança e então, no mesmo dia, por volta da meia noite, dirigindo-
se à casa de Sérgio e achando-o dormindo, passa a dar certeiros golpes – acendeu o fogo
e pegando de um machado, descarregou-lhe sobre a cabeça, produzindo-lhe tão grande
pancada, depois a morte.

Ora, com por esse procedimento, o denunciado incorreu no sansão penal do art.
192, do código criminal, para que seja punido [trecho ilegível] o promotor público dá a
presente denúncia e apresenta como testemunha a senhora [palavra ilegível] Rodrigues
dos Santos, Pedro Francisco dos Santos, Saturnino Viana Nunes, Amâncio dos Reis de
Alcântara, José Calazans da Silva, Manoel Cardoso dos Santos, todos moradores nessa
vila. Ilmo° Promotor Público.

No dia 15 de maio, doze dias após o crime, a proprietária do escravizado concede


a esta carta de liberdade, conforme consta no processo:

Digo em aliança [trecho ilegível] D. Maria Francisca de Jesus que [trecho ilegível]
escravo de nome Martinho, de idade de 46 anos, mais ou menos, ao qual concedeu
liberdade, que, de hoje em diante, ciente do crime contra [trecho ilegível] o presente de
minha livre [trecho ilegível] porém em mão [trecho ilegível] a João Nunes da Silva, que
este por mim [trecho ilegível] em presença de duas testemunhas.
Bom Conselho, 15 de maio de 1888.

João Nunes da Silva

João Gonçalves Dias

Auriclei Augusto César.

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Mas qual a razão da concessão da liberdade a um escravizado que tinha acabado


de ser preso por assassinar outro homem? A resposta para isso é tão dolorosa quanto pode
ser o próprio regime escravista. Em conversa com o advogado e historiador Fagner
Andrade, ele me afirmou que um escravo era visto como nada mais que um bem material,
ao qual se pode comprar e vender conforme a vontade do dono, a bem da verdade, um
escravizado não era mais que um animal aos olhos da sociedade da época e a atitude da
dona provavelmente se deu no intuito de se livrar do problema. Como um cavalo ou um
boi que invade e danifica a propriedade de outra pessoa, isso poderia trazer problemas
para ela.

Martinho foi comprado por Francisco Correia de Souza, pai de Raimundo Correia,
ainda muito jovem. Sabe-se que o escravizado nasceu em Inhambupe por volta de 1846.
O comprador, Franciso, foi homem influente em seu tempo, possuía a patente de alferes
e em 1876, foi eleito vereador na primeira legislatura da recém-criada Vila de Bom
Conselho, ao lado de Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo.

O assassinato de Sérgio parece ter sido algo marcante para toda a comunidade,
tanto é que a história foi passada de geração em geração, gerando, inclusive, um livro
intitulado Bom Conselho dos Montes do Boqueirão, escrito por uma bisneta de Raimundo
Correia, Telma Antonieta, em 1989.

Curioso é ver como a memória é falha e muitas partes da história foram distorcidas
ao longo dos anos, o assassino é tratado no livro como Tobias e diversas passagens do
trágico incidente foram ressignificados, sendo somente esclarecido com a leitura do
processo na íntegra.

Na obra em questão, Sérgio é descrito como um negro inteligente e proativo,


sonhador e com um improvável envolvimento amoroso com a filha do seu dono.
A cronologia dos fatos dá conta de que a briga entre os dois se deu no dia 20 de
abril de 1888, onde Martinho aparentemente saiu como derrotado, no dia 05 de maio,
ambos foram mandados a trabalhar na propriedade do Coronel Aristides Borges e lá,
Sérgio teria zombado de Martinho, que resolveu ali mesmo levar a cabo a sua vingança.
Naquela mesma noite, o assassinato aconteceria.

Martinho foi réu confesso, durante o julgamento não fez questão de se defender,
apenas narrou que matou Sérgio por ele ter ele ter zombado dele e limitou-se a responder
questões pontuais. As testemunhas se revezam em breves relatos, todos contavam a
mesma versão dos fatos com pouquíssimos acréscimos.

A sentença saiu em 26 de setembro daquele mesmo ano, nela pontua o juiz:

Em vista e conformidade da decisão do juiz, julgando o réu Martinho “indiciado” no grau


mínimo do art. 192 do código criminal, o condenando à pena de vinte anos de prisão com
trabalho, que cumprirá na cadeia da capital e nas custas.

Sala de reunião do juiz da Vila de Bom Conselho, 26 de setembro de 1888.

O Juiz de Direito: Reginaldo Alves de Mello.

Martinho seria condenado a 20 anos de reclusão com trabalho, pegando uma pena
mínima, já que o código penal da época previa o enforcamento. O fato foi noticiado pelo
jornal gazeta de notícias do Rio de Janeiro, o recorte está disponível no site da hemeroteca
digital e foi encontrado pelo pesquisador cícero-dantense Marcelo Reis, que também me
cedeu um trecho do livro Bom Conselho dos Montes do Boqueirão e outras valiosos
informações que me ajudaram a compor essa história.

De acordo com as memórias narradas e descritas por Telma no livro, Martinho


teria vivido em Salvador após cumprir sua sentença e trabalhou como ambulante na
capital.

O processo crime que apura o assassinato de Sérgio, é uma boa amostra de como
se encarava a justiça por essa região no final do século XIX. De acordo com Fagner
Andrade, pouca coisa do modus openrandi mudou, alguns termos são empregados no
direito ainda hoje, contudo, a aplicação da lei mudou muito nesse último século. Para se
ter uma ideia, o código penal da época, que vigorou de 1831 a 1891, previa, no seu artigo
192, a pena de morte, a galés perpétua (trabalho forçado) e a pena de vinte anos de prisão
em seu grau mínimo para o caso de assassinato. Martinho, como se viu, foi condenado
com a pena mínima prevista no mesmo artigo.

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Moisés Reis é professor, historiador e escritor. Formado em História pela Uniages e


mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe.

Contato: 75 99974-2891

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