Você está na página 1de 23

CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE

NAVIO

CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE NAVIO


Soluções Práticas - Arruda Alvim | vol. 3 | p. 239 - 270 | Ago / 2011
DTR\2012\264

José Manoel de Arruda Alvim Netto


Doutor e Livre-docente em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Parecerista e consultor jurídico em âmbito nacional e internacional. Desembargador
aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Área do Direito: Civil


Resumo: Este parecer analisa cláusulas contratuais que estabelecem, em contrato de
empreitada para construção de navio, a transferência da propriedade do casco do navio
e a tradição ficta por meio de constituto possessório. Também foi abordada a questão da
impossibilidade de invocação, pelo empreiteiro, da aquisição da propriedade pela
"especificação", por ter sido este contratado para a criação de coisa nova.

Palavras-chave: Propriedade - Tradição ficta - Constituto possessório - Empreitada -


Navio - Construção - Compra e venda - Código Civil.
Sumário:

- Consulta - 1. Esclarecimentos iniciais - 2. Da transferência de propriedade do casco,


equipamentos e acessórios e da ocorrência de tradição ficta - 3. Considerações finais - 4.
Da resposta aos quesitos

LEGISLAÇÃO E DISPOSITIVOS LEGAIS UTILIZADOS:Código Civil: arts. 425; 610 a 626;


1.267; 1.269 a 1.271 – Constituição Federal: art. 5.º; 170.

Consulta

Solicita a consulente nosso entendimento a respeito de assuntos relacionados com o


direito brasileiro, em discussão na arbitragem que está sendo realizada perante a
[informação omitida] Corte Arbitral.
1
A consulta concerne ao contrato celebrado entre a consulente e “Empresa Contratada”
S.A., cujo objeto era a construção de um navio.

O ponto central da discussão neste parecer é o de saber se a propriedade do casco e dos


equipamentos que, de acordo com o estágio da obra e dos pagamentos feitos, foram ou
já deveriam ter sido agregados ao casco, pertence à consulente ou à Empresa
Contratada e qual é a posição do direito brasileiro em relação ao contrato e à
transferência de propriedade; notadamente tendo em vista o que consta dos itens “xxx”
e “iii” da cláusula 1; dos itens A, B, C e D da cláusula 4; dos itens 19.1, 19.2, 19.5, 19.6
e 19.9 da cláusula 19.

Não temos a menor hesitação em responder que essa propriedade é, sob o abrigo do
direito brasileiro, e em sintonia com o que consta do contrato e do que se passou, da
consulente, pelos motivos que seguem.

1. Esclarecimentos iniciais

Inicialmente, deve ser esclarecido que a controvérsia sobre a transferência da


propriedade do casco do navio e demais bens empregados – ou que deveriam ter sido
empregados – na construção do navio, a ser dirimida de acordo com a lei brasileira, está
regulada expressamente no Código Civil, art. 1.267, caput e parágrafo único, primeira
frase.

No referido artigo está clara a possibilidade de transmissão de propriedade exatamente


Página 1
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

do modo como ocorreu no caso sob consulta e em congruência perfeita com o que foi
contratado.

O que, talvez, pudesse obscurecer esta nítida orientação do direito brasileiro seria a
assertiva categórica e generalizada de que no direito brasileiro não seria possível a
transferência da propriedade de bens móveis antes da entrega física do bem. Tal
afirmação ignora a existência das diversas formas de tradição no direito brasileiro.

No direito brasileiro é notoriamente conhecida a tradição sem a entrega física do objeto,


destacando-se a tradição ficta e a tradição simbólica, ordinariamente designadas por
outras denominações, tais como tradição virtual, jurídica ou contratual.

Sem embargo das peculiaridades que adiante se descreverão, relativas à tradição ficta e
à tradição simbólica, os termos tradição ficta, simbólica, virtual ou jurídica costumam ser
utilizados aleatoriamente para designar a possibilidade de tradição sem a necessidade de
entrega real.

Tal possibilidade encontra-se expressamente prevista no Código Civil vigente (e já


vigente ao tempo da conclusão do contrato), como se encontrava no precedente Código
Civil, de 1916, tendo em vista a existência de hipóteses em que não se justifica a
tradição real, i.e., a que se faz com a entrega física do bem, em virtude da situação
contratual ou da situação física do bem ou bens.

Eventual afirmação no sentido de que não teria havido a tradição do casco – e dos
equipamentos cuja titularidade deveria ter sido transferida conforme cronograma
contratual – somente poderia decorrer de uma leitura incompleta do direito brasileiro.

Como será exposto no corpo deste parecer, no caso analisado verificou-se a tradição
2
ficta, em conformidade com o que foi ajustado nas cláusulas contratuais – e à luz das
situações ocorridas – enquadráveis no art. 1.267 e seu parágrafo único do CC.

A tradição ficta produz, precisamente, os mesmos efeitos jurídicos que a entrega


material do bem. É, portanto, juridicamente igual à tradição chamada real.

Essa modalidade de tradição não é exclusiva do direito brasileiro: no direito alemão, v.g.
, há texto legal idêntico ao do art. 1.267, parágrafo único, primeira frase, do CC
3
brasileiro, que é o do § 930 do CC alemão. Assim, tanto o direito alemão como o
brasileiro, ambos de origem romano-germânica, admitem a tradição ficta.

Para evidenciar a pertinência desses esclarecimentos preliminares, destaca-se a


descrição feita por Carvalho Santos acerca da tradição ficta, prevista já no Código Civil
4
de 1916: “(…) o essencial é que o vendedor passe, de futuro, a possuidor do imóvel
vendido, em nome do comprador, e a estipulação a respeito, deve ser expressa ou
5
resultar, univocamente, de outras cláusulas do contrato”.

Ou seja, houve uma venda, e aquele que possuía o bem vendido como seu passou a
possuí-lo em nome do comprador, o novo proprietário.

Tudo isso sem que haja necessidade de tradição física do bem.

Em verdade, será demonstrado que não há, entre os civilistas brasileiros, quem negue a
possibilidade de tradição sem entrega material do bem, hipótese que, aliás, está
expressa na lei.

Essas considerações eram necessárias para desfazer eventual pré-concepção a que a


leitura parcial das fontes legais e doutrinárias pudesse conduzir.

2. Da transferência de propriedade do casco, equipamentos e acessórios e da ocorrência


de tradição ficta

2.1 Dos requisitos à transferência da propriedade de bens móveis no direito brasileiro


Página 2
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

O cerne da questão submetida à análise em face do direito brasileiro refere-se aos


requisitos legais para a transferência de propriedade de bens ou coisas móveis.

A solução do problema não apresenta dificuldade alguma, uma vez que a lei é clara ao
determinar que a transmissão da propriedade de bens móveis deve se perfazer mediante
o preenchimento de dois requisitos: o primeiro, referente ao título, causa da
transferência; e o segundo, concernente à tradição do objeto cuja propriedade é
transferida, que, conforme antecipado, poderá ou não ocorrer mediante entrega física do
bem.

2.1.1 Da causa ou título da transferência de propriedade

No caso sob consulta, a causa ou título da transferência de propriedade encontra-se


prevista no contrato celebrado entre as partes. Está dito, naquele instrumento
contratual, que: 1.º Pelo recebimento do Bill of Sale referente ao casco, será transferida
a propriedade deste para a consulente. 2.º Após a transferência de titularidade sobre o
casco da “Empresa Contratada” para a consulente, a embarcação permanecerá no
domínio físico da contratada até a entrega do navio construído.

Há no contrato ajuste de compra e venda do casco, o qual foi devidamente cumprido,


como comprova a nota de venda assinada pela “Empresa Contratada”.

Apesar de não regulamentada expressamente, a nota de venda não é negócio jurídico


estranho ao direito brasileiro. A expressão inglesa “bill of sale” designa, literalmente, em
português, “nota de venda”, o que, em linguagem jurídica, pode ser também visto como
6 7
fatura, ou instrumento de venda. É o instrumento em que se documenta a ocorrência
de uma venda concluída e no qual se documenta, no caso concreto, a ocorrência de
tradição sem entrega física do bem.
8
A nota de venda é documento comum, usado diariamente, e que documenta/comprova
a realização de uma venda. O bill of sale previsto no contrato é a comprovação
documentada de que ocorreu a venda e, mais especificamente, a tradição ficta.

Trata-se de um meio de formalização e prova da execução de um contrato. Portanto,


demonstra que as obrigações estipuladas no contrato foram cumpridas. Ou seja, a nota
de venda reforça – e, como se verá adiante, simboliza – a ocorrência da tradição ficta. A
redação do contrato é clara quanto ao objetivo da [consulente] de obter a propriedade
do casco do navio e correlato objetivo da Empresa Contratada de vender o referido
casco.

À luz do direito brasileiro, o conteúdo da nota de venda, por si só, é bastante para
transferir a propriedade do bem móvel. A nota de venda traz expressamente o ajuste de
tradição ficta e comprova o adimplemento do contrato pela compradora (consulente).

Já no que concerne aos bens que foram ou deveriam ter sido acrescidos ao casco de
acordo com o cronograma estabelecido no contrato (acessórios, aprestos, máquinas e
equipamentos) é igualmente inequívoco que houve a transferência de tudo o que foi
pago, já que, de acordo com os itens 19.5 e 19.6:

“19.5 A titularidade de qualquer equipamento ou outros itens da Embarcação será


automaticamente transferido à e permanecerá sob posse da mediante respectivo
pagamento à contratada.

19.6 Após a transferência de titularidade sobre o casco da Contratada para a


[contratante (consulente)], a embarcação permanecerá sob o domínio físico da
contratada até a data de entrega.”

Assim, considerando os termos das cláusulas 4 e 19, os pagamentos das parcelas são
realizados à medida que se cumprem as etapas estipuladas para a construção do navio,
não restam dúvidas de que a propriedade dos bens que foram agregados ao casco do
Página 3
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

navio, assim como daqueles que, pelo estágio do contrato e dos pagamentos feitos,
deveriam ter sido agregados ao navio, foi, automaticamente, transferida à [contratante
(consulente)], pela tradição ficta. Isso também implicou alteração da situação
possessória pelo constituto possessório igualmente previsto no contrato.

A previsão contratual de transferência da propriedade do casco do navio é plenamente


lícita, pois no Brasil não há vedação à previsão contratual de transferência de
propriedade no contrato de empreitada.

Ao contrário, o direito contratual brasileiro preconiza a liberdade das partes e autonomia


contratual, que podem contratar o que lhes aprouver, havendo no Código Civil preceito
que permite, inclusive, contratos atípicos (art. 425 do CC brasileiro). Não existe, no
direito brasileiro, vinculação das partes à denominação legal atribuída ao contrato,
sobretudo quando celebrado entre partes privadas e com objeto patrimonial disponível.

São livres as partes para estabelecerem as estipulações que entenderem convenientes,


vinculando-se e reciprocamente obrigando-se com fundamento em negócios – ou atos –
jurídicos das mais variadas espécies e com os mais variados conteúdos. A autonomia da
vontade tem fundamento no topo da hierarquia normativa do sistema, prevendo a
Constituição Federal que:

“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (…)

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei” (grifamos).

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre


iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios” (grifamos).

A liberdade é direito fundamental, previsto destacadamente na Constituição, sendo certo


que a autonomia da vontade e a liberdade contratual são indeléveis decorrências de tão
importante direito. Negar a liberdade contratual e autonomia da vontade é negar a
liberdade prevista na Constituição.

No âmbito do direito privado – assim entendido como aquele que regula as relações
entre particulares – a regra é a liberdade de ação, não estando a pessoa constrita a agir
apenas quando e como a lei determina. A pessoa pode agir livremente, desde que não
ultrapasse o âmbito da delimitação estabelecida pela lei (conforme está bem delineado
no inc. II do art. 5.º da CF supratranscrito).

Como dissemos, não obstante a garantia de liberdade, existem delimitações que


estabelecem fronteiras à livre atuação do particular. Na legislação pertinente ao direito
privado – nele se incluindo o direito contratual – tais delimitações se destacam como as
normas de ordem pública.

As normas de ordem pública são aquelas que devem ser obrigatoriamente seguidas
pelas partes, cuja aplicação não pode ser objeto de renúncia. Em contraposição a estas
existem as normas dispositivas, as quais, em verdade, incidem supletivamente, quando
as partes não disciplinam de forma diversa.

No direito contratual imperam as normas dispositivas, sendo apenas a menor parte da


legislação composta por normas de ordem pública. Assim, é certo que a maioria das
abstratas prescrições legais só deve ser atendida quando as partes não tenham
estabelecido de forma diversa.

Dessa forma, podemos afirmar que as partes, de uma maneira geral, são livres para
Página 4
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

decidir se querem contratar, com quem contratar e o que contratar. É esta a regra no
âmbito do direito contratual brasileiro.

No caso concreto, as partes fizeram um negócio cujo objeto principal é a construção de


um navio, sendo nominado como contrato de empreitada, e no mesmo instrumento
inseriram cláusula que prevê a transferência e aquisição do casco.

Esta forma de aquisição da propriedade é plenamente válida em nosso direito, haja vista
que não há vedações a tal estrutura contratual nas disposições contratuais relativas à
empreitada do Código Civil e na legislação esparsa. A legislação não esgota todas as
espécies possíveis de negócio jurídico, inclusive no caso dos que podem ter a empreitada
como pano de fundo.

O contrato de empreitada é expressamente previsto no Código Civil brasileiro (arts. 610


a 626) e, como é a regra geral no direito contratual, traz o Código uma regulamentação
que se expressa em normas dispositivas.

É certo que as partes, ainda que adotem de uma maneira geral o contrato de empreitada
conforme as regras previstas no Código, têm liberdade para estabelecer as cláusulas do
contrato, adotando ou não as normas supletivas previstas na legislação.

Na esfera desta liberdade, podem também as partes livremente estipularem cláusulas


que, em verdade, encerram novo negócio, não estando sujeitas a contratarem em
instrumento apartado. O que determinará a natureza do negociado não será o título
dado, mas o conteúdo livremente estabelecido pelas partes. As partes convencionaram a
transferência de titularidade do casco, que foi transferido à consulente em decorrência
de verdadeira compra e venda convencionada e executada, independentemente do
contrato de empreitada.

Vale destacar que houve a execução da compra e venda, formalizada pela nota de
venda, em que se documenta a transferência da titularidade do casco para a consulente.

O casco é bem autônomo em relação à empreitada e, portanto, objeto de direito de


propriedade autônomo. Tanto assim que se verifica, em mais de uma oportunidade, a
transferência deste direito: primeiro para a “Empresa Contratada”, pelo proprietário
precedente e, depois, para a consulente, por força do contrato, do pagamento da
primeira parcela e da entrega da nota de compra.

Existindo o casco precedentemente ao contrato de empreitada, não se pode dizer que


este foi construído de forma a cumprir tal contrato. A nota de venda é até mesmo
repetitiva ao estabelecer a transferência da propriedade e posse à compradora
consulente. Constitui, pois, evidência do ânimo e da vontade expressada e realizada das
partes em contratar a transferência de titularidade do casco.

Quando se fala em compra e venda, cogita-se ulteriormente de transferência de


propriedade, o que ocorreu pela tradição ficta. A nota de venda demonstra que houve
um negócio em que se estabeleceu e ocorreu a transferência da propriedade do casco
para a consulente.

De igual forma, a comprovação de pagamento das parcelas previstas no contrato


evidencia a transferência automática dos bens e equipamentos previstos para as
respectivas prestações, nos termos da referida cláusula 4, combinada com o item 19.5.
A existência de um contrato de empreitada não seria óbice para o reconhecimento da
compra e venda destes equipamentos, tanto quanto não foi óbice à compra e venda do
casco.

O contrato de empreitada convive com a compra e venda; é possível que as mesmas


partes firmem ambas as avenças, ainda que em um só instrumento contratual.

O que caracteriza o contrato de empreitada é a obrigação do empreiteiro de, mediante


Página 5
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

remuneração, entregar a obra ao dono conforme convencionado. Repita-se: faz parte do


objeto do contrato a obrigação do empreiteiro.

Ao se falar unicamente em um contrato de empreitada se está cogitando dessa relação:


obrigação de entregar a obra mediante pagamento. É certo que a realização da obra se
dá em favor do dono da obra e que a remuneração se estabelece em favor do
empreiteiro.

O contrato de empreitada, portanto, disciplina meramente relações


pessoais/obrigacionais. Conforme se tem uma empreitada em que os materiais sejam
inicialmente fornecidos pelo empreiteiro ou pelo dono da obra, há diferentes disciplinas
presentes no Código Civil.

Em nenhuma hipótese, todavia, a lei impede que a propriedade dos materiais seja
gradualmente transferida ao dono da obra, como no caso do contrato celebrado entre as
partes. Tampouco há qualquer violação à natureza do contrato de empreitada com a
adoção desta sistemática de transferência de propriedade.

No caso, existiu uma transferência de propriedade do casco, o qual serviria de base para
a construção do navio. E, a partir daí, desenvolveu-se atividade de uma empreitada na
qual houve a transferência gradual da propriedade dos equipamentos ao longo do
contrato.

Conforme anotamos, a empreitada encerra uma obrigação do empreiteiro de entregar


determinada obra pronta. À luz do direito brasileiro se quer dizer que o empreiteiro
cumpre o contrato ao entregar a obra ao dono de acordo com a convenção das partes.
Mas, repetimos, isto não quer dizer que enquanto não acabada a obra, não exista
possibilidade de o dono da obra receber a coisa.

Quando se fala em recebimento da obra pelo dono ao final da empreitada, está aí se


projetando o fim esperado do contrato. Todavia, pode haver a ruptura prematura da
relação contratual, como ocorreu no caso.

Na hipótese de extinção do contrato, deve o empreiteiro entregar a obra no estágio em


que se encontra, sendo reduzida a remuneração que este receberia. Tal regra se aplica
independentemente de a coisa a ser produzida ser divisível ou indivisível.

É certo que o empreiteiro detém a coisa, pois tem a causa jurídica para justificar a
detenção (o contrato). Com a extinção do contrato cessa essa causa, revelando-se
obrigação de entregar a coisa ao dono da obra.

É pacífico que pode haver transferência de propriedade da obra incompleta, qualquer


que seja ela, no direito brasileiro. É fato que, no caso sob consulta, não se pode falar em
propriedade do navio como um todo – já que navio pronto não há –, mas é de
propriedade da consulente o casco e tudo quanto nele se aderiu ou que deveria ter
aderido conforme cronograma do contrato, havendo obrigação da empreiteira de
entregar o bem à [consulente].

A suposta indivisibilidade do objeto do contrato de empreitada se dá justamente pelo


fato de ter o dono da obra o direito de receber obra completa, podendo recusar a obra
incompleta, portanto. Mas se o direito é do dono da obra, este pode também aceitar
receber a obra incompleta.

Em suma: no direito brasileiro o contrato de empreitada não disciplina nem impede a


transferência da propriedade dos bens e materiais envolvidos. A transferência da
propriedade se operou pela compra e venda do casco, livremente convencionada pelas
partes no mesmo instrumento contratual.

À luz do direito brasileiro a transferência da titularidade decorreu da compra e venda


estabelecida e já executada, havendo a aquisição da propriedade com a conjugação do
título (contrato) e do modo (tradição).
Página 6
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

Houve, pois, a venda do casco, prevista no contrato e comprovada pela nota de venda,
assim como também se consumou a venda, com transferência da propriedade, dos bens
que foram agregados ao casco e de outros bens que deveriam se acrescer ao casco do
navio nas etapas que já tenham sido cumpridas (ou que deveriam ter sido, segundo o
cronograma contratual) e pagas na empreitada.

2.1.2 Da tradição ficta

Constatada a existência de causa para a transferência da propriedade, é preciso analisar


o modo pelo qual se consumou tal transferência. A denominação de tradição ficta
decorre da circunstância de não haver entrega física do bem. Transfere-se a propriedade
por cláusula contratual executada – como no caso. A chamada tradição simbólica tem
idêntica característica e é normalmente utilizada quando adotado procedimento
representativo da entrega, como no caso de se entregarem ao comprador as chaves do
veículo.

A tradição ficta e a tradição simbólica se opõem à chamada tradição real, que ocorre
com a entrega física da coisa. Ambas – tradição ficta e simbólica – podem ser
designadas por denominações como tradição virtual e tradição jurídica.

No direito brasileiro o modo de aperfeiçoamento da transmissão de propriedade dos bens


móveis ocorre mediante tradição. A tradição pode ser real, ou pode ser ficta, ou
simbólica, com valor idêntico (validade e eficácia) à tradição real.

A possibilidade de diferentes formas de tradição foi devidamente assinalada por Orlando


Gomes, na parte final do trecho reproduzido:

“Consoante observação de Dernburg, a tradição é a forma geral e necessária da


alienação das coisas com a intenção de lhe transferir a propriedade, mas, por extensão,
admite-se que se realize a entrega simbólica ou presumidamente (…)”.

Prossegue o doutrinador citado, tido como um dos maiores civilistas brasileiros:

“(…) São formas de tradição: tradição real, jurídica e virtual.

Na tradição real, o alienante faz ao adquirente a entrega material do bem. Na tradição


jurídica, a transmissão se opera, sem a entrega material, por força de determinações de
uma norma jurídica. Na tradição virtual, mas conhecida como tradição simbólica ou
consensual, a entrega da coisa é feita operando-se por processos jurídicos que fazem
presumi-la. Meios de tradição virtual são o constituto possessório e a traditio brevi manu
9
“.

Como explicitado, a tradição, no direito brasileiro, não se opera apenas mediante


entrega física do objeto ao novo possuidor. Dessa forma, a questão sob consulta é
facilmente solucionada pela límpida redação da lei vigente, qual seja, do art. 1.267 e seu
parágrafo único, do Código Civil:

“Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da
tradição.

Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir


pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa,
que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da
10
coisa, por ocasião do negócio jurídico” (grifamos).

Esta é a norma que abriga o direito de propriedade da consulente, pela previsão


contratual – rigorosamente sintonizada e inequivocamente possível no direito brasileiro.

Tal previsão legal, acrescida às cláusulas contratuais que preveem a transmissão da


propriedade do casco e bens que a ele se agreguem ou que deveriam se agregar
(especialmente itens 19.2 e 19.5), somadas também à nota de venda do casco pela
Página 7
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

Empresa Contratada e à existência de pagamento das prestações relativas a grande


parte da empreitada, inclusive mediante entrega de certificados de transferência de
propriedade de alguns equipamentos, tornam inequívoca a transferência de propriedade.

No direito brasileiro a tradição é a maneira representativa da regra geral de


transferência da propriedade de bens móveis, e essa regra é a que está no art. 1.267,
caput, e no seu parágrafo único, do CC brasileiro. O parágrafo único, primeira frase,
dispõe sobre a espécie de tradição que se perfaz com o constituto possessório, que se
adapta perfeitamente ao caso analisado.

Ou seja: a tradição, no direito brasileiro, não é sempre sinônimo de transferência


material da coisa. Ocorre juridicamente a tradição, na espécie de tradição ficta, desde
que isso decorra da vontade das partes, o que, no caso sob consulta, é explicitado na
cláusula 19, itens 19.1, 19.2, 19.5 e 19.6, e evidenciado: em relação ao casco, pela Nota
de Compra; em relação a outros bens e equipamentos, mediante comprovação do
pagamento respectivo e, em alguns casos, da entrega de certificados.

Em rigor do exame do contrato a tradição ficta está prevista especialmente na cláusula


19, item 19.1, e item 19.5, em função das quais se altera a situação possessória.

A tradição sem entrega material da coisa decorre da convergência de vontades no


sentido de transferir a propriedade de coisa móvel do vendedor ao comprador. Quando
implica a alteração da situação possessória, diz-se que ocorreu a tradição ficta pelo
chamado constituto possessório, referido no art. 1.267, parágrafo único, do CC; já
quando decorre da utilização de simbologia (entrega de chaves, nota fiscal, documento
de transferência), representativa da entrega da coisa, costuma ser denominada tradição
simbólica. Vale salientar que ambas encerram a mesma ideia: a tradição também se
passa sem que haja entrega efetiva (material) do bem.

Os elementos normativos do art. 1.267 e seu parágrafo único, primeira frase, do CC,
ligam-se à ocorrência de tradição, pois aí está disposto: “Subentende-se a tradição
quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; (…)”, ou seja,
juridicamente ocorre tradição; e, nessa hipótese, como o vendedor não entrega
materialmente a coisa ao comprador, altera-se – pelo constituto possessório – o título da
posse do vendedor, que deixa de possuir com o ânimo de dono; deixa de possuir o bem
como seu.

Ao aludir à manutenção da posse física com a “Empresa Contratada”, e mesmo à


transferência de propriedade do casco e dos equipamentos mediante quitação das
respectivas parcelas, o contrato deixa claro que tais bens só permanecerão com a
“Empresa Contratada” com a finalidade de se cumprir o contrato de empreitada, já que a
“Empresa Contratada” não mais os possui como proprietária. A posse indireta – exercida
em nosso direito pelo dono da coisa – é a exercida pela consulente, proprietária dos
bens. O que fica com a “Empresa Contratada” é um desmembramento da posse (=
posse direta), que nada tem a ver com a propriedade e somente se exerce sob a
autorização do proprietário, possuidor indireto.

Essa modificação do título da posse está clara no contrato e indica que houve, nos
termos da lei, o constituto possessório, razão também suficiente para atestar a
transferência de propriedade e a tradição. O constituto possessório foi objeto de
consideração em nossa obra sobre Direito das coisas, a ser publicada pela editora
GEN/Forense, na qual consta:

“A posse pode ser adquirida no contexto da aquisição da propriedade, o que demandará,


para os móveis, como regra, a efetiva tradição, como, ainda, poderá ocorrer com a
transmissão da propriedade imóvel (registro), não sendo esta, necessariamente,
acompanhada da posse; por meio do constituto possessório altera-se a causa da posse”.
11

Página 8
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

No caso, o que se verificou foi que, tendo sido transferida a propriedade, passou
também, para a consulente, a chamada posse indireta, que é indissociável do direito de
propriedade, ficando com a “Empresa Contratada” apenas a posse direta para o término
dos trabalhos (v. item 19.6), salvo rescisão prematura do contrato, caso em que é dever
da “Empresa Contratada” entregar o bem à consulente imediatamente. A situação atual,
diante da crise na execução do contrato, alterou essa posse direta, passando a poder ser
denominada posse precária. A posse precária não atribui o direito de ficar com a coisa,
mas confere à outra parte (no caso, a consulente) o direito à devolução e à recuperação
12
da coisa.

Houve, portanto, tradição, para todos os fins de direito, na modalidade denominada


tradição ficta, ficando a consulente com a posse indireta, imanente ao direito de
propriedade.

O constituto possessório é meio de aquisição da posse (que revela, necessariamente, a


tradição), pelo qual há a aquisição da posse indireta pelo novo proprietário, ficando o
antigo proprietário com a posse direta. E, no caso, a propriedade foi adquirida pela
tradição ficta.

Em suma, com a tradição ficta temos enfeixada a seguinte situação: o proprietário


originário, ao transferir a propriedade, deixa de ter legítima causa para permanecer na
posse do bem. Assim, este deveria entregar o bem ao adquirente. Todavia, o novo
proprietário, em decorrência de negócio travado com o vendedor, transfere a posse
direta para este. Ou seja, o constituto possessório possibilita que esta operação seja
executada de forma amalgamada, sem necessidade de que, inutilmente, o controle
material seja passado de pessoa para pessoa, e retornado, novamente, de pessoa a
13
pessoa.

Para que não se duvide da ordinariedade desse meio de transmissão da propriedade,


que nenhuma estranheza causa aos juristas brasileiros, é preciso que se reproduzam
trechos de nossa doutrina nacional, dos clássicos aos mais modernos e, bem assim,
excertos de jurisprudência existente sobre o tema.

Eduardo Espínola, consagrado jurista brasileiro, há muito esclarecia a hipótese de


tradição ficta:

“No comércio da vida, os contratos constituem títulos ordinários de aquisição da


propriedade, tanto imobiliária como mobiliária; entretanto, a aquisição, resultante da
transferência que faz o antigo proprietário ao novo, só se realiza, quanto aos imóveis,
pela transcrição; e, quanto aos móveis, pela tradição.

Entende-se, todavia, que a tradição se efetuou quando o transmitente continua a possuir


14
a coisa transmitida pelo constituto possessório“.

Washington de Barros Monteiro, ao afirmar que a transferência de propriedade de bens


móveis depende da tradição, descreve as hipóteses de tradição no direito brasileiro:

“Três as espécies de tradição: real, simbólica e ficta. É real, quando concretizada pela
efetiva entrega da coisa, feita pelo alienante ao adquirente, que a recebe e a apreende,
ou a assinala. (…) É simbólica, quando traduzida por ato representativo da transferência
da coisa; a entrega não é real, substituindo-se por ato equivalente, como a entrega das
chaves do lugar, onde a coisa se acha. (…). Finalmente, a tradição é ficta, quando
decorrente do constituto possessório; o tradens continua na posse da coisa, não mais
em seu nome, porém, em nome e por conta do adquirente. O constituto possessório é
15
assim tradição convencional”.

Independentemente da nomenclatura que se adote, todas essas hipóteses constituem


tradição, no sentido jurídico da palavra, para o direito brasileiro. Por isso, é correto
afirmar que a consulente é titular do direito real de propriedade sobre o casco do navio e
sobre os bens e equipamentos que deveriam ser agregados conforme a previsão
Página 9
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

contratual, uma vez que houve a tradição ficta, para todos os fins, de acordo com o
direito brasileiro.

A doutrina é unânime ao indicar a tradição ficta como espécie de tradição, suscetível de


transferir a propriedade, sempre que aliada a uma causa.

Caio Mário da Silva Pereira explica exaustivamente o modo como se perfaz a


transferência da posse e da propriedade pela tradição ficta, ao ensinar que:

“A tradição originariamente se configura na entrega da coisa, materialmente efetivada.


Mas, como a vida social e mercantil não tolera subordinar-se diuturnamente às
exigências do formalismo jurídico, a tradição procura afeiçoar-se a imposições práticas.
Partindo, então, da tradição real, o direito moderno desenvolve a noção de tradição
16
simbólica e cultiva o constituto possessório, que nos vem do direito romano”.

Carvalho Santos, jurista clássico brasileiro, assim descreve a ocorrência de tradição ficta
pelo constituto possessório:

“O ‘constituto possessório‘ a nosso ver, deve ser havido como expressamente estipulado
não somente quando se usam ou empregam as palavras sacramentais, mas sempre que
do texto da escritura se puder concluir que possuidor atual deixa de possuir a coisa, para
passar a tê-la apenas em nome do comprador que fica sendo o seu possuidor embora
‘solo animo’, não sendo essencial, como querem alguns, que diga ficar possuindo, em
17
nome do comprador ou donatário”.

Pontes de Miranda assinala a desnecessidade de entrega material do bem: “No


constitutum possessorium, A, que transmite a posse, fica como possuidor imediato, ou
mediato inferior, ou servidor da posse, em relação a B. (…) A aquisição do poder fático
18
sôbre a coisa não pressupõe o exercício, e.g., o contacto material com a coisa. (…)”.

Assim também Sílvio Rodrigues: “A tradição é ato complementar do negócio jurídico,


para que gere seu principal efeito, isto é, a transferência do domínio (…). A tradição
pode ser efetiva ou real, simbólica ou ficta. (…) Diz-se ficta a tradição quando ela se
ultima pelo constituto possessório, já anteriormente examinado. Ocorre quando o
alienante, em vez de proceder à entrega da coisa vendida, a retém em suas mãos por
um outro título, como, por exemplo, o de locatário. Em rigor, deveria o alienante
entregar a coisa ao alienatário, que a seguir a devolveria à mesma pessoa, que se
transformara em locatário. Para evitar essa dupla e recíproca entrega do bem móvel, o
19
legislador supõe que ela existiu, admitindo a tradição ficta”.

No mesmo sentido se apresenta Darcy Bessone: “(…) aquisição da posse por meio do
constituto possessório, isto é, por meio de cláusula contratual, pela qual o possuidor
transfere a posse a outra pessoa, passando à condição de detentor. Continua a coisa em
seu poder, porém não mais a título de posse, mas já a título de simples detenção. O
comprador pode não receber imediatamente a coisa comprada, deixando-a em poder do
vendedor. Poderá, apesar disso, ter, desde logo as vantagens próprias da posse, como a
percepção dos frutos, a proteção possessória e o usucapião, inserindo no contrato a
20
cláusula constituti ou o constituto possessório”.

É este o escólio de Orlando Gomes: “Quem está impedido de exercer sobre a coisa o
poder físico ou privado de utilizá-la, pela forma que lhe convenha, deve ter meio rápido
de tomá-la como, por exemplo, a pessoa que adquire um bem e dele não pode servir-se
porque terceiro se recusa a entregá-lo. O adquirente já é, no entanto, possuidor por
haver adquirido a posse mediante tradição ficta; nesse caso, o terceiro estará possuindo
injustamente e, portanto, o fato de deter a coisa pode ser considerado esbulho,
21
cabendo, assim, a ação de reintegração”.

Arnaldo Rizzardo, no item Tradição, inserido no Capítulo XVI, A aquisição da Propriedade


Mobiliária, de sua obra, descreve a transferência de propriedade dos bens móveis:

Página 10
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

“Cuida-se de mais uma forma de transferência e aquisição da propriedade. No sentido


literal, corresponde à entrega da coisa ao adquirente e conceitua-se como o ato pelo
qual se transfere a outra pessoa o bem, em razão de um título que autoriza a
transferência, que é o contrato. (…)

No caso dos móveis, anota Marco Aurélio S. Viana: ‘O contrato, também, não transfere o
domínio, mas é mister a tradição, ou seja, a entrega da coisa ao adquirente. É
necessário, portanto, o acordo no sentido de transferir a propriedade, e sua execução,
pela entrega da coisa. Só com esta nasce o direito real’.

Conhecem-se três espécies de tradição:

a) a real, consistente na efetiva entrega da coisa, feita pelo próprio alienante ao


adquirente. Observa Washington de Barros Monteiro: ‘Mas a tradição real pode ainda
exteriorizar-se pela entrega a um terceiro, por ordem do adquirente, ou pela remessa da
coisa à casa deste, ou ao lugar por ele designado’.

b) a simbólica, consubstanciada não pela tradição real, mas por um ato que a
represente, por um sinal ou instrumento, significativo do recebimento do bem. Assim,
por exemplo, a entrega das chaves de um cofre, ou de uma peça onde se encontra o
bem que é transferido ao comprador, ou de um veículo – tudo simbolizando entrega da
própria coisa objeto do contrato.

c) a ficta, se decorrente do constituto possessório, mas quando o vendedor continua na


22
posse do móvel, não, porém, em seu nome, e sim em nome do adquirente”.
23 24
Idênticas as anotações de Carlos Alberto Gonçalves, Maria Helena Diniz, Sílvio Salvo
25 26 27
Venosa, Fábio Caldas de Araújo e Carlos Alberto Dabus Maluf apenas para citar
alguns dos inúmeros juristas brasileiros que comentam a tradição ficta.

A jurisprudência brasileira também admite a possibilidade de transferência de posse e de


28 29
propriedade pela tradição ficta, tanto no âmbito do STF e do STJ como nos demais
30 31
Tribunais brasileiros. -

As cláusulas contratuais coadunam-se inteiramente com este sistema brasileiro da


tradição ficta, porque a “Empresa Contratada” transmitiu a propriedade do casco do
navio (v. especialmente itens 19.1, 19.6, 19.9) e dos acessórios, máquinas,
equipamentos e demais bens que a ele se agregaram ou deveriam se agregar de acordo
com o previsto no contrato (v. especialmente itens 19.5 e 19.9 da cláusula 19) à
consulente, e continuou apenas na posse direta dos bens por ter ocorrido o constituto
possessório, expressamente previsto no contrato.

2.1.3 Da tradição simbólica

Além das previsões contratuais que expressamente anunciam a mudança de causa


jurídica da posse da “Empresa Contratada” e, portanto, a tradição do bem à consulente
pela tradição ficta, é possível ainda extrair do conteúdo da nota de venda e do
certificado de propriedade de alguns equipamentos, entregues pela “Empresa
Contratada” à consulente, uma situação típica de tradição simbólica.

Não há dúvidas de que o casco do navio e todos os equipamentos que foram e deveriam
ter sido agregados a ele no atual estágio da empreitada foram objeto de constituto
possessório, o que, pelo direito brasileiro, bastaria para satisfazer o requisito da tradição
e transferir a propriedade à consulente.

Porém, relativamente a alguns bens, foram praticados, adicionalmente, atos formais,


simbólicos, que o direito brasileiro também considera idôneos a transferir a posse (e, via
de consequência, a propriedade), como se pôde verificar das fontes doutrinárias
transcritas. O bill of sale referente ao casco do navio e a certificação de transferência de
propriedade relativa aos equipamentos cogitados na cláusula 4 do contrato representam,
Página 11
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

portanto, a ocorrência da tradição.

A bem dizer, se a tradição do casco do navio e dos equipamentos que a ele se


agregaram – ou deveriam ter sido agregados – não decorresse das disposições do
contrato, decorreria, de toda forma, da existência de tradição simbólica, em virtude da
prática de atos representativos (entrega do bill of sale e de certificado).

A ampla utilização da tradição simbólica no direito brasileiro pode ser demonstrada pelas
transcrições da doutrina dos nossos civilistas, constantes do tópico precedente, e pela
32 33 34
jurisprudência do STJ e demais tribunais locais brasileiros. -

Estão, desta forma, satisfeitos todos os requisitos para a transmissão de propriedade do


casco e demais equipamentos que deveriam ter sido agregados pelo cronograma do
contrato, quais sejam: a tradição e a causa jurídica da transmissão de propriedade (pela
vontade das partes consignada no contrato).

2.2 Da impossibilidade de transferência de propriedade pela especificação

Quanto à indagação acerca da possibilidade de a ter adquirido, pela especificação, a


propriedade sobre o casco e sobre o que a ele se agregou, que é objeto da quesitação da
consulente, deve ser elucidado que o instituto da especificação é inaplicável ao caso,
pelas razões a seguir sistematizadas:

(a) a especificação somente poderia se aplicar à hipótese de criação de espécie nova,


cuja estrutura pudesse agregar alguma utilidade social ou comercial, o que não é o caso;

(b) mesmo que houvesse espécie nova, de especificação não se cuidaria a hipótese, pois
o contrato celebrado entre as partes já disciplina situação diversa;

(c) não é possível ignorar as disposições do contrato, quando se passaram os fatos nele
descritos, e pretender uma solução extracontratual, colidente com o que está no
contrato;

(d) para que ocorra a especificação, é necessário que o especificador construa ou crie a
coisa para si, de modo que não poderia ter sido contratado para este fim.

A necessidade de criação de espécie nova é objeto de previsão expressa do art. 1.269 do


CC, o que não ocorre na hipótese submetida à consulta, já que, de acordo com os
documentos analisados e as alegações das partes, os bens cuja titularidade se disputa
são o casco do navio, já existente, e os equipamentos a ele agregados, ou que a ele
deveriam ter sido agregados.

Não se cogita de nenhuma espécie nova que possa guardar valor artístico, científico ou
utilidade social cuja singularidade autorize o enquadramento no conceito de ‘criação’ ou
35
‘especificação’. Isso já ponderava Clóvis Beviláqua, autor do Código Civil de 1916, e
prelecionam os juristas mais atuais, sob a égide do Código Civil de 2002, como é o caso
de Arnaldo Rizzardo, para quem “importa, para se caracterizar a especificação, que do
36
trabalho resulte uma coisa nova. Não a configura a alteração da coisa primitiva”.

Abstraída a ausência de espécie nova como requisito essencial à especificação, a


existência de contrato entre as partes dispondo sobre os termos da construção do navio
afasta qualquer possibilidade de invocação do instituto previsto no art. 1.269 para fins
de transferência da propriedade. Por ter sido encomendado, o produto da empreitada,
ainda que concluído, não poderia ser objeto de especificação. Pontes de Miranda
esclarece que a encomenda de coisa nova, a ser criada ou confeccionada por uma das
partes contratantes, exclui a aquisição pela modalidade de especificação:

“O que faz algo de encomenda, e.g., bôlsa, sapato, vestido, em virtude de contrato de
obra, está a atribuir ao contraente a propriedade, desde que cortou, se a matéria-prima
é do freguês, ou se o freguês lhe adquiriu a matéria-prima, tratando-se de casa que
37
vende e faz (e.g., loja e alfaiataria)”.
Página 12
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

Assim, se uma empresa foi contratada para o fim de elaborar determinado bem, como
ocorreu na hipótese sob consulta, não lhe é lícito in- vocar o direito de propriedade sobre
o produto final, ao argumento de tê-lo “criado”.

De acordo com Lafayette, a especificação somente poderá transmitir a propriedade se o


especificador a tiver realizado para si: “Além do que fica exposto, se requer, para que o
38
especificador adquira a propriedade da nova espécie, que faça a especificação para si”.

A contrario sensu, não haverá transmissão de propriedade pela especificação se a nova


espécie tiver sido criada para outra pessoa ou a pedido de outrem. Esse aspecto foi
observado incisivamente por Fábio Caldas de Araújo, ao afirmar que “o especificador
39
deveria manifestar claramente sua intenção de aquisição do bem especificado”.

É incongruente afirmar que um construtor tem o ânimo de ficar com a coisa para si,
especialmente pelo fato de a construção ser feita sob encomenda, havendo destinatário
certo. Considerando que a especificação existe justamente para valorizar o trabalho
daquele que cria “espécie nova”, tal instituto não se aplica aos casos em que o valor do
trabalho já tenha sido pactuado com um terceiro. Essa conclusão é enfatizada por Fábio
Caldas de Araújo em comentário ao art. 1.269 do CC, no qual se fornece exemplo
40
análogo, em que houve contratação da criação e entrega do bem ao seu dono.

Além disso, não se pode esquecer que a construção foi feita sobre base (casco) de
propriedade da consulente, que a adquiriu em decorrência da compra e venda válida e
eficazmente efetuada e nela se empregaram materiais que também foram transferidos à
consulente por força do contrato.

Deve-se, ainda, observar que a “Empresa Contratada” não age de boa-fé, o que afasta a
possibilidade de transferência da propriedade pela especificação.

Diante do que se verifica dos documentos analisados, houve contrato formal entre as
partes no que toca: (a) à atividade de empreitada; (b) à transferência da propriedade do
casco do navio; (c) à transferência da propriedade dos bens agregados ou que deveriam
se agregar ao casco, conforme o cronograma previsto em contrato com vista à
construção do navio; (d) ao objetivo final de entrega do navio pronto, cumpridos todos
os requisitos legais concernentes à documentação, sem prejuízo da anterior
transferência do casco e acessórios (v. especialmente cláusula 19, item 19.9).

Ao invocar a existência de especificação conscientemente pretende-se deixar de cumprir


previsão contratual, a saber: a transferência da propriedade do casco, dos acessórios e
de entrega material do navio, quando pronto.

Descaracterizada, portanto, a boa-fé do ponto de vista subjetivo, na medida em que a


“Empresa Contratada” tinha plena ciência do ajuste acerca da transferência de
titularidade do casco, dos acessórios e também da entrega futura do navio.

Simplesmente por alegar a suposta condição de “criadora” do navio com a finalidade de


obter para si a propriedade do bem e, com isso, descumprir o que foi lícita e livremente
pactuado, a “Empresa Contratada” está praticando ato contrário à boa-fé.

E, ainda que o contrato não fosse expresso quanto ao objetivo de transferência do casco
e dos materiais empregados na construção do navio à proporção da evolução do
contrato, e da futura propriedade do navio, a boa-fé teria sido quebrada sob a
perspectiva objetiva, devido à conduta contraditória da “Empresa Contratada”.

A contraditoriedade do comportamento da “Empresa Contratada” está em que: ao


mesmo tempo em que pactua a construção de navio, a título remunerado, com a
consulente, invoca o suposto fato de tê-lo “criado” para adquirir a propriedade do navio
ou de suas partes, em detrimento da mesma consulente que a contratou para tal fim.

A circunstância de a “Empresa Contratada” ter sido contratada para construir o navio, a


Página 13
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

título remunerado, sobre o casco de propriedade da consulente, seria suficiente para


impor-lhe a obrigação de, em caso de rescisão contratual, devolver-lhe o objeto da
empreitada no estágio em que se encontra. Desse modo, não poderia invocar a aquisição
da propriedade do navio ou de suas partes, em detrimento da consulente, em
decorrência do fato de ter sido contratada para construí-lo.

Conceber a legitimidade dessa postura é, em última análise, admitir a violação do


41 42
princípio da boa-fé objetiva - – prestigiado pelo Código Civil brasileiro –, que, no
caso, se traduz no brocardo nemo potest venire contra factum proprium, que é a
proibição de a parte adotar comportamento contraditório em relação ao até então
adotado, desde que esse comportamento tenha despertado legítima confiança na outra
parte.

No caso, ainda que não existisse disposição contratual expressa a respeito da entrega do
navio e de suas partes, o comportamento adotado pela “Empresa Contratada”,
contratada para construí-lo por um determinado preço, a partir de um casco que já havia
sido pago e adquirido pela consulente, e mediante cláusula que determinava a
transferência automática da propriedade dos bens a serem utilizados na empreitada à
medida que fossem sendo pagas as prestações, seriam suficientes para demonstrar que
havia confiança legítima da consulente, decorrente do contrato de empreitada, no
sentido de que a “Empresa Contratada” estaria obrigada a entregar o objeto final do
contrato. Como observado por Anderson Schreiber:

“A tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que


deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio
de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. A incompatibilidade ou
contradição de comportamentos em si deixa de ser vista como o objeto da repressão
para passar a ser tão somente o instrumento pelo qual se atenta contra aquilo que
verdadeiramente se protege: a legítima confiança depositada por outrem, em
consonância com a boa-fé, na manutenção do comportamento inicial. Em outras
palavras, é a tutela da confiança o fundamento contemporâneo do nemo potest venire
43
contra factum proprium“.

A jurisprudência nacional, especialmente do STJ, cujas decisões significam a


interpretação final e correta do direito federal brasileiro, também é clara quanto à
44 45
inadmissibilidade de comportamento contraditório das partes. -

Na hipótese sob consulta, mesmo que se pudesse cogitar de ausência de clareza


contratual – o que não parece ser o caso, invocação de transferência de propriedade
pela especificação configura comportamento contraditório e quebra da confiança
legitimamente despertada quando da celebração do contrato de empreitada, o que
46 47
afronta o princípio da boa-fé objetiva e o disposto especialmente nos arts. 113 e 422
do CC.

3. Considerações finais

Em conclusão, o questionamento sobre transferência do casco do navio e dos bens que a


ele se agregaram – assim como daqueles que deveriam ter sido agregados – pode ser
solucionado da seguinte forma:

• À luz do direito brasileiro, foram cumpridos os requisitos para transferência da


propriedade, quais sejam, a causa ou título e a tradição ou modo.

• A causa está prevista no contrato, especialmente nas cláusulas 1, itens “iii” e “xxx” e
19, itens 19.1, 19.2, 19.5, 19.6 e 19.9, da cláusula 19, nas quais se manifesta clara a
vontade das partes de transferirem a propriedade do casco do navio à consulente,
mediante pagamento da primeira parcela e apresentação do bill of sale, e dos
equipamentos e bens que, pelo contrato, foram ou deveriam ser agregados ao casco,
mediante pagamento das parcelas respectivas (v. cláusula 4 e item 19.5).
Página 14
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

• A tradição, que é modo de transferência da propriedade, ocorreu na modalidade ficta,


por ser expressa a vontade das partes no sentido de permanecer a “Empresa
Contratada” com a posse física dos referidos bens (cláusula 19, itens 19.5 e 19.6) após a
transferência de propriedade. Esta situação enquadra-se na hipótese do art. 1.267 e seu
parágrafo único, do Código Civil brasileiro, que cuida da modificação da situação
possessória pelo constituto possessório: pela disposição contratual, o alienante – no
caso, a “Empresa Contratada” – deixa de possuir a coisa como dono e limita-se à posse
física, direta do bem, e a posse indireta do bem, indissociável do direito de propriedade,
é transferida ao adquirente – no caso, a consulente.

• A existência do bill of sale e de certificado de transferência de equipamentos é dado


que reforça a tradição ficta, por serem estes documentos formalizadores do
cumprimento das disposições contratuais. É certo se disposição contratual não houvesse
acerca da tradição ficta, o bill of sale e o certificado de transferência dos equipamentos
principais poderiam, isoladamente, representar a existência de tradição ficta e simbólica
dos bens. A tradição simbólica – ao lado da tradição ficta e da real – é igualmente aceita
no direito brasileiro como modo idôneo de transferência da propriedade.

• A doutrina e a jurisprudência brasileiras não questionam a licitude da tradição sem a


transferência material do bem, nas modalidades ficta e simbólica, ambas idôneas a
transferir a propriedade de bens móveis.

• A especificação, prevista nos arts. 1.269 a 1.271 do CC brasileiro, não pode ser
aplicada ao caso sob consulta como modalidade de aquisição de propriedade, por
diversas razões: em primeiro lugar, porque tais dispositivos legais não podem ser
aplicados na hipótese de já incidirem regras contratuais sobre a matéria; segundo,
porque a especificação somente ocorre quando há criação de espécie nova, à qual se
agregue substancial valor artístico, científico ou utilidade social, o que não é o caso;
terceiro, porque não pode haver aquisição de propriedade pela especificação de obra que
foi encomendada pelo proprietário da matéria-prima; quarto, porque a lei brasileira
exige boa-fé do especificador, e a “Empresa Contratada” deixou de observar esse
preceito sob a perspectiva subjetiva – já que tinha consciência que a destinatária da
titularidade da obra era a consulente – e objetiva –, pois, ainda que não houvesse
disposição contratual nesse sentido, o fato de ter sido contratada para uma empreitada
já obstaria a atitude contraditória da “Empresa Contratada” de invocar o direito de
propriedade pela especificação.

4. Da resposta aos quesitos

1. Tomando-se por base a divisão entre (i) o casco do navio; (ii) os equipamentos
afixados ao casco do navio; e (iii) os equipamentos encomendados para o navio, mas
ainda não afixados ao casco, pergunta-se:

1.1 Quais os dispositivos da legislação brasileira aplicáveis à transferência de


propriedade dos bens descritos no item 1.1 (i), (ii) e (iii)?

Resposta:

Aplica-se no caso o disposto no art. 1.267 e seu parágrafo único, do Código Civil
brasileiro.

1.2 Quais os requisitos legais para efetivar essa transferência?

Resposta:

Os requisitos para a ocorrência dessa transferência são a existência de causa (título) e a


tradição do bem.

No caso, a causa da transferência é o contrato celebrado entre as partes, que contém


manifestação de vontade das partes no sentido de transferir a propriedade do casco,
Página 15
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

mediante o pagamento da primeira parcela e entrega do bill of sale, e dos bens e


equipamentos que a ele deveriam se agregar à proporção da evolução da obra. A
propósito dessas manifestações de vontade, são específicas as cláusulas 4 e 19.

Já a tradição decorre da verificação dos acontecimentos descritos especialmente na


cláusula 19, itens 19.2 e 19.5 do contrato, referentes à transferência do casco e do que
sobre este se agregou ou deveria ter se agregado, respectivamente.

O fato de, com relação ao casco do navio e a alguns equipamentos principais, haver
documentos que, por si só, seriam representativos da transferência da propriedade (bill
of sale e certificação dos equipamentos) reforça e formaliza a existência da tradição
ficta.

No caso, a tradição do casco e dos equipamentos que a ele se agregaram ou deveriam


ter sido agregados, nos termos das cláusulas 4 e 19.5, decorreu da tradição ficta.

Ademais, podemos afirmar que a tradição do casco e dos equipamentos objeto de


certificação ocorreu na modalidade ficta ou simbólica, sendo o bill of sale e o certificado
de transferência dos equipamentos entregue a atos representativos desta tradição.

1.3 Os dispositivos da legislação brasileira aplicáveis aos contratos de empreitada


impõem alguma restrição ou exigência adicional para a transferência de propriedade dos
bens descritos no item 1.1 (i), (ii) e (iii)?

Resposta:

Não há restrição alguma no particular, uma vez que vigora entre as partes a chamada
autonomia privada e liberdade contratual, e o que foi pactuado é expressamente válido,
em si mesmo, ao lado de haver texto legal expresso (art. 1.267 e seu parágrafo único,
do CC) admitindo essa transferência.

A disciplina da transferência de titularidade da propriedade dos bens utilizados na obra


pode ser livremente disposta pelas partes, não havendo vedação legal a essa
possibilidade.

De mais a mais, a regulamentação do contrato de empreitada no direito brasileiro não é


imposta por normas de ordem pública, de sorte que, mesmo que houvesse disposição
legal em contrário, as partes poderiam dispor contratualmente como bem lhes
aprouvesse.

A autonomia privada e a liberdade contratual não deixam dúvidas a respeito da


legalidade do contrato. Não havendo desrespeito a normas de ordem pública, que
implicariam a invalidade da convenção, não há que se falar em desrespeito ao contrato
de empreitada.

O direito brasileiro foi seguido fielmente no que tange à transferência de propriedade dos
bens.

1.4 Considerando a vontade das partes expressa nos documentos analisados e as


circunstâncias fáticas do caso concreto, foram preenchidos os requisitos exigidos pela lei
brasileira para a transferência da propriedade à consulente?

Resposta:

Como se argumentou no corpo do parecer, verificou-se a vontade das partes expressa


no contrato, e os acontecimentos a que se referem especialmente os itens 19.1, 19.2 e
19.5 ocorreram, de tal forma que, com base no art. 1.267 e seu parágrafo único, do CC,
verificou-se legitimamente a transferência da propriedade.

2. Mantendo a divisão apontada no item 1, pergunta-se:

Página 16
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

2.1 A especificação (arts. 1.269 a 1.271 do CC) é forma de aquisição de propriedade


aplicável ao caso?

Resposta:

Pelo que se disse no corpo do parecer, a especificação é inaplicável à solução desta


controvérsia, pois: não se verificou o pressuposto essencial ao enquadramento da
hipótese a esta modalidade aquisitiva da propriedade, qual seja, a de criação de espécie
nova; o requisito da boa-fé, pelas razões expostas, também não foi atendido; e, acima
de tudo, a existência de contrato entre as partes regulando a construção do navio (ainda
não concluída) impede a incidência dos dispositivos do Código Civil que cuidam da
especificação.

2.2 Considerando a vontade das partes expressa nos documentos analisados e as


circunstâncias fáticas do caso, foi efetivada a transferência de propriedade dos bens
descritos no item 1.1 (i), (ii) e (iii) à Contratada por especificação?

Resposta:

Não, pois, como elucidado no tópico precedente, as normas que regulam a hipótese
estão previstas no contrato celebrado entre as partes, de modo que não incidem os arts.
1.269 a 1.271 do Código Civil.

Além disso, a situação prevista nos referidos artigos do Código Civil não estaria
configurada no caso, já que não houve criação de espécie nova e não foi observada a
boa-fé.

É esse o nosso parecer.

São Paulo, 11 de dezembro de 2008.

1 Foram omitidos os nomes dos interessados, assim como transcrições de cláusulas


contratuais.

2 Ver, principalmente, cláusula 1, itens “iii” e “xxx”, cláusula 19, itens 19.1, 19.2, 19.5,
19.6 e 19.9.

3 Dispõe o CC alemão (BGB), § 930:


“Besitzkonstitut. § 930. Ist der Eigentümer im Besitz der Sache, so kann die Übergabe
dadurch ersetzt werden, dass zwischen ihm und dem Erwerber ein Rechtsverhältnis
vereinbart wird, vermöge dessen der Erwerber den mittelbaren Besitz erlangt”.

Em tradução, em língua inglesa, dispõe o mesmo texto:

“Section 930. Constructive delivery. If the owner is in possession of the thing, the
delivery may be replaced by a legal relationship being agreed between the owner and
the acquirer by which the acquirer obtains indirect possession”.

Especificamente, a respeito da construção de navio, há previsão expressa de tradição


ficta. Veja-se o § 929-a, do BGB:

“§ 929a Einigung bei nicht eingetragenem Seeschiff (1) Zur Übertragung des Eigentums
an einem Seeschiff, das nicht im Schiffsregister eingetragen ist, oder an einem Anteil an
einem solchen Schiff ist die Übergabe nicht erforderlich, wenn der Eigentümer und der
Erwerber darüber einig sind, dass das Eigentum sofort übergehen soll. (2) Jeder Teil
kann verlangen, dass ihm auf seine Kosten eine öffentlich beglaubigte Urkunde über die
Veräuβerung erteilt wird”.
Página 17
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

Em tradução para a língua inglesa:

“Section 929a. Agreement with regard to unregistered ship (1) In order to transfer the
ownership of a ship that is not registered in the ship register, or of a share in such a
ship, delivery is not necessary if the owner and the acquirer are in agreement that the
ownership is to pass immediately. (2) Either party may require that, at his cost, a
notarially certified document of the disposal is issued to him”.

4 J. M. Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, 6. ed., São Paulo/Rio de


Janeiro: Freitas Bastos, 1956, vol. 7, nos comentários ao art. 494, item 6, com o título
“Pelo constituto possessório”, p. 63-64-67.

5 Idem, p. 64.

6 A expressão fatura é definida como “documento contendo a discriminação dos


produtos vendidos, bem como as quantidades e valores, entregues ao comprador”.
Indica-se ser a expressão fatura sinônimo de bill of sale (Maria Chaves de Mello,
Dicionário jurídico – Law dictionary, 7. ed., São Paulo: Elfos, 1998, verbete fatura, p. 94.
No Legal dictionary – Dicionário jurídico, de autoria de Durval Noronha Goyos Júnior, são
indicadas como sinônimas as expressões fatura e bill of sale (Durval Noronha Goyos Jr.,
Legal dictionary – Dicionário jurídico, 5. ed., Observador Legal Ed., 2003, verbete fatura,
p. 483).

7 É o que consta do Legal dictionary – Dicionário jurídico, de Durval Noronha Goyos


Júnior, p. 60, verbete bill of sale, em que consta a tradução: fatura, instrumento de
venda, nota de venda.
Noutros dicionários avançados de língua inglesa – jurídicos e não jurídicos – encontra-se
a mesma definição: “Bill of sale: a writing evidencing the transfer for personal property
form one person to another. Putnam v. McDonald, 71, Vt. 4, 5, 47, Atl. 159. It is in
frequent use in the transfer of personal property, especially that of which cannot be
given. In England bill of sale of a ship at sea or out of the country is called a grand bill of
sale; but no distinction is recognized in this country between grand and ordinary bills of
sale; Portland Bank v. Stacey, 4 Mass, 661, 3 Am. Dec. 253. The effect of a bill of sale is
to transfer de property of the thing sold” (Bouvier’s Law Dictionary: a concise
encyclopedia of the law, 3. ed., 1984, vol. 1, p. 362); “Bill of sale: n. an official
document recording the sale of personal property” (Oxford Advanced Learner’s
Dictionary, 5. ed., Ed. Jonathan Crowther, Oxford University Press, 1995, p. 197).

8 No Brasil, a nota de venda é regularmente utilizada em matéria tributária, sendo


exigida sempre pelo Fisco quando houver tributação envolvida em decorrência de
vendas. Para tanto basta consultar sites brasileiros, de que são exemplos, dentre
muitíssimos outros: [www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/
atosant2001/1999/AD05499.htm] e [www.24horasnews.com.br/index.php?
mat=255832].

9 Orlando Gomes, Direitos reais, 19. ed., rev., atual. e aum. por Luiz Edson Fachin, Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 208.
Tal lição podia ser extraída da obra do autor já na edição de 1962, na qual se explicava
o seguinte sobre a tradição:

“As formas de tradição resumem-se a três: real, jurídica e virtual. Na tradição real, o
alienante faz ao adquirente a entrega material do bem. Na tradição jurídica, a
transmissão se opera, sem entrega material, por força de determinação de uma norma
jurídica. Na tradição virtual, mais conhecida como tradição simbólica ou consensual, a
entrega da coisa é ficta, operando-se por processos jurídicos que fazem presumi-la.
Meios de tradição virtual são o constituto possessório e a traditio brevi manu“ (Orlando
Página 18
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

Gomes, Direitos reais, Rio de Janeiro: Forense, 1962, t. I, 251 – os destaques são
nossos).

10 Essa norma é tradicional no direito brasileiro e constava do disposto no art. 494, inc.
IV, do direito anterior, Código Civil de 1916. Isto significa que todo o entendimento a
respeito, desde 1916, é o mesmo. Confira-se, a propósito, a redação do Código Civil
anterior:
“Art. 494. A posse pode ser adquirida:

(…)

IV – pelo constituto possessório”.

11 Comentários ao Código Civil, São Paulo: GEN/Forense, [2009], p. 247.

12 A esse respeito escrevemos o seguinte: “(…) posse precária, uma relação com a
coisa, que terá tido a sua causa, originariamente legitimadora, a qual, ilicitamente,
resulta alterada, v.g., o comodato que não mais subsiste; ou, o abuso de confiança do
detentor, pretendendo tornar-se possuidor em nome próprio” (idem, p. 133).
Ainda, escrevemos mais o seguinte, procurando demonstrar que, conquanto uma
situação possessória (posse direta da “empresa contratada”, para terminar a construção
do navio), sucedida pelo inadimplemento e pela rescisão, passou a ser a de posse
precária, que, rigorosamente, é uma não posse: “(…) Em todos estes casos, quem
exerce o poder de fato seria mero detentor, ou possuidor precário. Não se pense porém
que esta posse precária é uma modalidade da figura genérica posse: o legislador só a ela
se refere para a excluir” (idem, p. 175).

A doutrina brasileira considera a chamada situação de posse precária, que rigorosamente


é uma situação de fato destituída de qualquer proteção jurídica. Em nossa já referida
obra, que está no prelo da Ed. GEN/Forense, consta dos comentários aos dispositivos da
posse, no direito brasileiro (nota 205), o seguinte:

“V. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, 3. ed., reimp., Rio de Janeiro: Borsoi,
vol. X, § 1.077, 4, p. 122-123, observa que é comum vir a ocorrer a precariedade a
partir do abuso de confiança. Encontra-se à base da posse precária a infração ao
princípio Neminem sibi ipsum causam possessionis mutare potest, que está consagrado
no art. 1.203. Moreira Alves (Posse – Evolução histórica, 1. ed., cit., 1985, n. 11, p. 68 e
nota 185) ensina, com lastro em posição que parece ter sido dominante no direito
romano, que ‘O interdito de precario foi criado pelo pretor para que o que entregara em
precarium uma coisa a terceiro pudesse obter deste a sua restituição, caso ele se
recusasse a fazê-lo espontaneamente’. Astholfo Rezende (A posse e sua proteção, cit.,
n. 161, p. 246-247), baseando-se em Cornil (e em crítica deste a Savigny) frisa estar
subjacente à situação uma ‘lesão ou transgressão do compromisso assumido de restituir
[a posse ao concedente] à [sua] primeira exigência’. Mais conclusivamente para o direito
contemporâneo, com lastro em Ihering e Savigny, Astholpho Rezende (op. ult. cit., n.
163, p. 249) opina pelo cabimento de interdito possessório, como também, de uma ação
contratual”.

13 A divisão da posse, no direito brasileiro, é tradicional a dualidade de posses sobre o


mesmo bem – de acordo com a organização vertical da posse –, havendo paralelamente
as posses direta e indireta. Esta realidade está expressa no art. 1.197 do CC, que prevê:
“Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente,
em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida,
podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”.

O Código Civil é claro ao definir que a posse indireta e a direta coexistem e que esta
deriva daquela. Desta forma, não se pode pensar em posse direta legítima sem que se
Página 19
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

defina de qual causa esta foi derivada.

14 Eduardo Espínola, Posse, propriedade, compropriedade ou condomínio, direitos


autorais, Rio de Janeiro: Conquista, 1956, p. 324.

15 Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil: direito das coisas, 37. e 38.
ed., São Paulo: Saraiva, 2003 e 2007, p. 201 e 200, respectivamente, 3. vol.

16 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil: direitos reais, 18. ed., rev. e
atual. de acordo com o Código Civil de 2002, Rio de Janeiro, Forense, 2004, vol. 4, p.
171.

17 Op. cit., p. 66.

18 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de direito privado cit., vol. 10, p.
159-160 e 201.

19 Sílvio Rodrigues, Direito das coisas de acordo com o novo Código Civil, 27. ed., São
Paulo: Saraiva, 2002, vol. 5.

20 Darcy Bessone, Direitos reais, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 282.

21 Orlando Gomes, Direitos reais cit., 2004, p. 99.

22 Direito das coisas, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 281.

23 “A tradição pode ser real, simbólica ou ficta, como já demonstrado no Título I, ‘Da
posse,’ Capítulo III, item n. 2.2.1 desta obra, ao qual nos reportamos. O constituto
possessório ou cláusula constituti é espécie de tradição ficta. Ocorre quando o vendedor,
transferindo a outrem o domínio da coisa, conserva-atodavia em seu poder, por um
outro título, como, por exemplo, na qualidade de locatário. A referida cláusula tem a
finalidade de evitar complicações decorrentes de duas convenções, com duas entregas
sucessivas” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro: direito das coisas,
Saraiva: São Paulo, 2006, vol. 5, p. 301).

24 “b) O constituto possessório (art. 1.267, parágrafo único) ou cláusula constituti, que
é exatamente, o contrário da traditio brevi manu, pois ocorre quando o possuidor de um
bem (imóvel, móvel ou semovente) que o possui em nome próprio passa a possuí-lo em
nome alheio. É uma modalidade de transferência convencional da posse, onde há
conversão da posse mediata em direta ou desdobramento da posse, sem que nenhum
ato exterior ateste qualquer mudança na relação entre a pessoa e a coisa. Opera-se tal
fenômeno mediante dois atos jurídicos simultâneos: um, de transferência da posse de
um possuidor antigo a um novo possuidor, e outro, de conservação da posse pelo antigo
possuidor em nome do novo adquirente (reserva de usufruto, locação etc.). P. ex.: A
vende a B a casa de que é proprietário e onde reside, ficando convencionado que A
permanecerá na casa, não mais como proprietário, mas como locatário, de modo que o
possuidor antigo, que tinha posse plena e unificada, passa a ser possuidor direto, ao
passo que o novo proprietário se investe na posse indireta. Cornil esclarece que o
objetivo da cláusula constituti foi evitar ao possuidor o ônus de uma tradição, para, em
seguida, ter o adquirente necessidade de restituir a coisa assim recebida” (Maria Helena
Diniz, Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas, 17. ed. atual., São Paulo:
Saraiva, 2002, vol. 4, p. 65).

25 “O constituto possessório, referido na lei e já mencionado no tocante aos imóveis, é


tradição ficta. O alienante continua na posse do imóvel, mas altera-se seu animus.
Possuía como dono e passa a possuir a outro título. Vende a coisa e permanece com ela
como locatário, por exemplo. (…)” (Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil: direitos reais,
Página 20
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

São Paulo: Atlas, 2001, p. 196).

26 “Por derradeiro, defrontamo-nos com o constituto possessório. O art. 1.267,


parágrafo único, também abre exceção quanto à necessidade de transmissão física, pois
o proprietário passa a ser o possuidor direto. Nesta situação vislumbra-se o papel
preponderante do animus, visto que não há alteração quanto à situação fática do corpus”
(Fábio Caldas Araújo, Comentários ao Código Civil brasileiro, Rio de Janeiro: Forense,
2009, vol. 11, t. 3 [no prelo], em nota ao art. 1.267, p. 88).

27 “Tradição é a entrega da coisa. Pode também ser ficta, como tem entendido a
jurisprudência (RJTJSP 134/77)” (Carlos Alberto Dabus Maluf, in: Ricardo Fiuza [coord.],
Novo Código Civil comentado, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1.159).

28 “Constituto possessório – Reintegração de posse. 1. Para existência do constituto


possessório e consequente transferência da posse indireta ao beneficiário dela, não há
necessidade de o instrumento conter as palavras ‘cláusula constituti,’ ‘constituto
possessório,’ nem mencionar que o transmitiu, se demitiu da posse e a conserva em
nome do adquirente. Basta que o transmitente declare que imite na posse o adquirente
ou a ele a transfere” (STF, 1.ª T., RE 65681, rel. Min. Aliomar Baleeiro, j. 20.02.1973,
DJ 13.04.1973, disponível em: [www.stf.jus.br]).

29 “O comprador de imóvel com clausula constituti passa a exercer a posse, que pode
ser defendida através da ação de reintegração” (STJ, 4.ª T., REsp 173.183, rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 01.09.1998, DJ 19.10.1998, disponível em: [www.stj.jus.br]).

30 “(…) A aquisição da posse se dá também pela cláusula constituti inserida em escritura


pública de cessão de direitos possessórios de imóvel, o que autoriza o manejo dos
interditos possessórios pela adquirente, mesmo que nunca tenha exercido atos de posse
direta sobre o bem. (…) Constituto possessório é definido como ‘a convenção, ou o pacto
aceito entre os contratantes, mediante o qual se entende promovida a tradição (traditio
ficta), apesar de continuar a coisa em poder de outrem’ (cf. De Plácido e Silva,
Vocabulário jurídico, Rio de Janeiro: Forense, vol. 1, p. 529). Ou, como observa Tito
Lívio Pontes (cf. Da posse, 2. ed., Leud, 1978, p. 96), ‘a transmissão da posse a outrem
sem que este outro a tomasse corporalmente, sem qualquer ato externo, por ato de
simples convenção escritural’ – conceito que se encaixa perfeitamente na hipótese dos
autos” (TJSP, 20.ª Câm. de Direito Privado, rel. Des. Álvaro Torres Júnior, j. 15.04.2008,
disponível em: [www.tj.sp.gov.br]).

31 “Constituto possessório. Desnecessidade da apreensão física do bem pelo possuidor


ou por seu representante. Possessória. Antigo possuidor que confere seu direito a
adquirente, fazendo figurar cláusulas configuradoras do constituto possessório.
Qualificativo de sua posse que se altera (…)” (TJSP, 15.ª Câm. de Direito Privado, Ap
1034055100, rel. Des. Araldo Telles, j. 21.02.2006, disponível em: [www.tj.sp.gov.br]).

32 “Ação de depósito. Bem dado em garantia de dívida. Penhor mercantil. Tradição


simbólica. A entrega simbólica do bem e a circunstância de ser o depositário o dono da
coisa depositada não desfiguram o contrato de depósito. Precedentes do STF e do STJ”
(STJ, 4.ª T., REsp 330.316/SC, rel. Min. Barros Monteiro, j. 06.02.2003, DJ 04.08.2003,
p. 306).

33 “Compra e venda de bem móvel. Tradição ficta efetuada. Alienações sucessivas.


Terceiro de boa-fé. Prevalência de seu interesse. – Ainda que não possa se questionar
ter havido a real tradição do bem, certo é que houve a tradição ficta, na medida em que
o certificado de propriedade do veículo, devidamente assinado pelo vendedor, foi
entregue ao comprador e o bem a terceiro de boa-fé, que efetuou o seguro total,
colocando-se como beneficiário da apólice, tudo isso evidenciando a consolidação do
domínio em suas mãos. – Não se pode esquecer que a tradição não precisa ser
necessariamente real, com a efetiva entrega da coisa. Pode também ser simbólica. Essa
Página 21
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

última se perfaz através de um ato que, por assim dizer, representa o ato da entrega da
coisa (…)” (TJMG, Ap 2.0000.00.449771-0/000, rel. Des. Tarcisio Martins Costa, j.
07.12.2004, DJ 19.02.2005, disponível em: [www.tjmg.gov.br]).

34 “Ora, segundo se infere do disposto no art. 620 do CC [1916], a propriedade dos


bens móveis transmite-se pela tradição. Nos dizeres de Washington de Barros Monteiro:
‘Tradição é a entrega de coisa ao adquirente, o ato pelo qual se transfere a outrem o
domínio de uma coisa, em virtude de título translativo da propriedade. Dois, portanto, os
requisitos para que ela exista: a) – acordo das partes, no sentido de transferir a
propriedade; b) – execução desse contrato mediante entrega da coisa’ (Curso de direito
civil, 17. ed., São Paulo: Saraiva, 1977, 3.º v., p. 201). Não é necessário, assim, o
registro no ‘Detran’, para que se efetive a transferência de propriedade de veículos
automotores. Basta a tradição, que se dá pela entrega das chaves dos veículos vendidos
(tradição simbólica)“ (AgIn 933.726-8/SP, rel. Juiz José Marcos Marrone, j. 14.06.2000).

35 “O que, na especificação, gera o direito é o trabalho criador, que transforma a


matéria informe em obras de arte, de ciência ou de utilidade para a vida social. E essa
criação se verifica, de modo claro, quando, na tela, que não é sua, o artista pinta um
belo quadro; ou no mármore alheio o escultor faz uma estátua; ou no papel, de outrem,
o escritor dota a ciência ou a literatura com um produto de valor intelectual. Para a
sociedade e para a civilização, a matéria utilizada perde todo o interesse, que se volve
para a forma nova, que a inteligência fez surgir” (Clóvis Beviláqua, Direito das coisas, 5.
ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, vol. 1, p. 210).

36 Op. cit., p. 377.

37 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, Parte especial: t.


XV; Direito das coisas: propriedade mobiliária (bens corpóreos), p. 122.

38 Lafayette Rodrigues Pereira, Direito das cousas, 2. ed., Rio de Janeiro: Jacintho
Ribeiro dos Santos, [s/d], p. 92.

39 Fábio Caldas de Araújo et al., Comentários ao Código Civil, São Paulo: GEN/ Forense,
t. III, v. 11, p. 94, (no prelo).

40 “Obviamente não há que se falar em especificação se existe um contrato de trabalho


(Herstellung auf Grund eines Werkvertrag) prevendo a criação de um novo objeto móvel
em benefício do contratante” (op. cit., p. 95).

41 “(…) boa-fé (CC, arts. 113, 187 e 422), intimamente ligado não só à interpretação do
contrato – pois, segundo ele, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre
a intenção inferida da declaração de vontade das partes – mas também ao interesse
social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes deverão agir com
lealdade, honestidade, honradez, probidade (integridade de caráter), denodo e confiança
recíprocas, isto é, proceder com boa-fé, esclarecendo os fatos e o conteúdo das
cláusulas, procurando o equilíbrio nas prestações, respeitando o outro contratante, não
traindo a confiança depositada, procurando cooperar, evitando o enriquecimento sem
causa. Trata-se, portanto, da boa-fé objetiva” (Maria Helena Diniz, Curso de direito civil
brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais, 23. ed., rev. e atual.,
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 33-34).

42 “(…) A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo


objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa
ajuste a própria conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta,
escorreita e leal. (…)” (REsp 803.481 (JRP\2007\3059), 3.ª T., j. 28.06.2007, rel. Min.
Nancy Andrighi, DJ 01.08.2007, p. 462).

43 A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra


Página 22
CONSTITUTO POSSESSÓRIO NA COMPRA E VENDA DE
NAVIO

factum proprium, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 95-96.

44 Cf. REsp 1040606, rel. Min. Paulo Gallotti, publ. 09.09.2008: “O comportamento
contraditório da construtora atrai a aplicação da chamada Teoria dos Atos Próprios, pois
não pode se beneficiar da sua conduta incoerente e antagônica, especialmente quando,
após aceitar o distrato e se oferecer para reduzi-lo a termo, algum tempo depois
recusa-se a assinar o instrumento que sua própria assessoria jurídica elaborou”.

45 “(…) Denota-se, assim, que a almejada declaração de nulidade do título exequendo


está nitidamente em descompasso com o proceder anterior do recorrente, valendo trazer
à liça, o magistério de Pontes de Miranda, segundo o qual ‘a ninguém é lícito venire
contra factum proprium, isto é, exercer direito, pretensão ou ação, ou exceção, em
contradição com o que foi a sua atitude anterior, interpretada objetivamente, de acordo
com a lei’ (cf. Tratado de direito privado, Campinas: Bookseller, 2000, p. 64).
Já se disse, a propósito, que as relações obrigacionais são, em verdade, uma ‘fila’ ou
uma ‘série’ de deveres de conduta e contratuais (‘Reihe von Leistungspflichten und
weiteren Verhaltenspflichten’), vistos no tempo, ordenados logicamente, unidos por uma
finalidade, portando esta um sentido único (‘sinnhaftes Gefüge’), que une e organiza a
relação contratual, que é a realização dos interesses legítimos das partes (‘vollständigen
Befriedigung der Leistungsinteressen aller Gláubiger’), ou, em última análise, a
realização do objetivo do contrato e o posterior desaparecimento da relação (‘Erloschen’)
(Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, 1987, p. 26-28, apud Claudia Lima Marques,
contratos no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Ed. RT, 1999, p. 107-108).

Avulta referir, em acréscimo, as valiosas considerações tecidas pelo Min. Ruy Rosado de
Aguiar (REsp 95.539/SP, 4.ª T., DJ 14.10.1996, p. 39015), acerca do tema em questão:

‘(…) O direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se
traduz como exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento
assumido anteriormente (Menezes Cordeiro, Da boa-fé no direito civil, 742). Havendo
real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada
da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é
admissível dar eficácia à conduta posterior’” (STJ, 4.ª T., REsp 681.856/RS, rel. Min.
Hélio Quáglia Barbosa, j. 12.06.2007, DJ 06.08.2007, p. 497, disponível em:
[www.stj.jus.br]).

46 “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração.”

47 “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,


como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Página 23

Você também pode gostar