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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

GUSTAVO SORANZ GONÇALVES

O cinema de Trinh T.Minh-ha:

intervalos entre antropologia, cinema e artes visuais

The cinema of Trinh T.Minh-ha:


Intervals between anthropology, cinema and visual arts

CAMPINAS

2016
GUSTAVO SORANZ GONÇALVES

O cinema de Trinh T.Minh-ha:

intervalos entre antropologia, cinema e artes visuais

The cinema of Trinh T.Minh-ha:


Intervals between anthropology, cinema and visual arts

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de


Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título
de Doutor em Multimeios.

Thesis presented to the Institute of Arts of the University of Campinas


in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor in
Multimedia.

Orientador: Prof. Dr. Marcius César Soares Freire.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE A VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO
GUSTAVO SORANZ GONÇALVES, E ORIENTADO
PELO PROF. DR. MARCIUS CÉSAR SOARES FREIRE.

CAMPINAS

2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPEAM

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Gonçalves, Gustavo Soranz, 1978-

G586c GonO cinema de Trinh T. Minh-ha : intervalos entre antropologia, cinema e artes
visuais / Gustavo Soranz Gonçalves. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

Orientador: Marcius César Soares Freire.

Gon Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Go n1. Trinh, T. Minh-Ha (Thi Minh-Ha), 1952-. 2. Documentário (Cinema). 3.


Antropologia. 4. Cinema experimental. 5. Filmes etnográficos. I. Freire, Marcius
Cesar Soares. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The cinema of Trinh T. Minh-ha : intervals between anthropology,
cinema and visual arts
Palavras-chave em inglês:
Trinh, T. Minh-Ha (Thi Minh-Ha), 1952-
Documentary films Anthropology
Experimental films
Ethnographic films
Área de concentração: Multimeios
Titulação: Doutor em Multimeios
Banca examinadora:
Mauro Luiz Rovai
Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau
Fernão Pessoa Ramos
Francisco Elinaldo Teixeira
Marcius César Soares Freire
Data de defesa: 31-08-2016
Programa de Pós-Graduação: Multimeios
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

GUSTAVO SORANZ GONÇALVES

ORIENTADOR: PROF. DR. MARCIUS CÉSAR SOARES FREIRE

MEMBROS:

1. PROF. DR. MARCIUS CÉSAR SOARES FREIRE


2. PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA
3. PROF. DR. FERNÃO VITOR PESSOA DE ALMEIDA RAMOS
4. PROF. DR. HENRI PIERRE ARRAES DE ALENCAR GEVAISEAU
5. PROF. DR. MAURO LUIZ ROVAI

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da


Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca


examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

DATA: 31.08.2016
Para Michelle, Clara e Theo,

Amores de uma vida.


AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Fernando e Vera, que me receberam de volta em casa após mais
de uma década, sem quem eu não teria conseguido fazer nada.

Ao meu orientador, Marcius Freire, pela orientação, estímulo e amizade.

Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp, Sarah


Rojo (in memoriam), Gabriel de Barcelos, Janaína Welle, Jennifer Serra, Letizia
Nicoli, Teresa Noll, Rodrigo Barreto, Carla Paiva, Juliano Araújo, Felipe
Bomfim, Marcella Grecco, Isabel Anderson, Gabriel Tonelo e Natalia Barrenha
pelas conversas, trocas e companheirismo no período do doutorado.

Ao professor Odenildo Sena e a professora Maria Olívia Ribeiro Simão, pela


valorização da formação de recursos humanos qualificados como política
pública estratégica.

Ao professor Geraldo Harb, pela oportunidade de iniciar os estudos do


doutoramento sem precisar me afastar de minhas atividades institucionais.

Às colegas Tânia Brandão, Jônia Quedma e Edilene Mafra, pelo apoio durante
essa jornada, o que permitiu que eu me ausentasse das funções institucionais
para poder me dedicar ao doutoramento.

Ao amigo Sérgio Freire, pelas caronas para o aeroporto.

Ao amigo Erlan Souza, pelo estímulo, leitura e comentários de parte desta tese.

Aos professores Nuno Abreu (in memoriam) e Francisco Elinaldo, pelos


comentários no exame de qualificação.

Aos professores Mauro Rovai, Henri Gervaiseau, Francisco Elinado e Fernão


Ramos, pelos comentários na banca de avaliação.

À Fundação de Amparo a Pesquisa do Amazonas – FAPEAM, pela bolsa de


doutorado.

Ao Centro Universitário do Norte – Uninorte, por ter me permitido a liberdade


necessária para poder cursar o doutorado.
A Carla Maia e Luís Felipe Flores, pelo convite para participar da Mostra O
cinema de Trinh T. Minh-ha, que me colocou em contato com a cineasta.

A Trinh T. Minh-ha, pela generosidade em me oferecer acesso à sua produção


artística que não está disponível no circuito de cinema.

À minha esposa, Michelle, e meus filhos, Clara e Theo, por me apoiarem


incondicionalmente, suportarem minhas ausências e me permitirem concretizar
esta etapa da minha jornada.
RESUMO

Trinh T. Minh-ha é uma cineasta e intelectual vietnamita, radicada nos Estados Unidos desde
os anos 1970. Possui formação acadêmica multidisciplinar, com estudos na área de
composição musical, de etnomusicologia e de literatura comparada. Nas últimas décadas tem
atuado com destaque em diversos campos da produção artística e também da produção
acadêmica. Realizou oito filmes, entre médias e longas-metragens, montou cinco instalações
multimídia e publicou quatorze livros, entre obras artísticas, coletâneas de roteiros e
entrevistas e ensaios teóricos.

Seus filmes provocam as convenções de diferentes searas fílmicas, transitando nos intervalos
entre o documentário, o filme etnográfico, o cinema experimental e o cinema narrativo. Em
sua produção, tanto intelectual quanto fílmica, encontramos questões que atravessam de um
campo a outro, subvertendo as fronteiras e criando intersecções entre a teoria e a prática de
modo a questionar os lugares determinados entre saberes, relacionando as artes e as ciências
de modo inovador. Seus temas de interesse giram em torno das formas de representação da
diferença cultural, a condição feminina e questões de identidade.

Nossa pesquisa se debruça sobre seus filmes propondo um duplo movimento de


relacionamento: um primeiro que vem da teoria em direção aos filmes, para investigar como
as estratégias inovadoras utilizadas em seu cinema dialogam com a teoria social, de modo a
pensar outros marcos na relação entre o cinema e antropologia. O segundo parte dos filme em
direção à teoria do cinema, mais precisamente a teoria dedicada ao cinema documentário, para
analisar como seus filmes podem contribuir para expandir o debate sobre esse domínio
cinematográfico por oferecer contribuições originais e desafiadoras em relação aos pilares
essenciais desse tipo de cinema, que são aqueles ligados às estratégias de filmagem e à
relação entre quem filma e quem é filmado. Entendemos seus filmes como casos exemplares
que nos permitem pensar o cinema documentário em sua plenitude poética e que contribuem
de modo original em relação àquela que talvez seja a grande contribuição da tradição do
documentário para o cinema, a questão ética.

Para investigar uma produção tão desafiadora e questionadora dos cânones tradicionais das
áreas com as quais dialoga, nosso referencial teórico está constituído a partir de contribuições
vindas do campo da antropologia, da teoria do cinema e das artes.

Palavras-chave: Trinh T. Minh-ha, Documentário, antropologia, cinema experimental, filme


etnográfico.
ABSTRACT

Trinh T. Minh-ha is a filmmaker and Vietnamese intellectual, rooted in the United States
since the 1970s has multidisciplinary academic education with studies in musical
composition, ethnomusicology and comparative literature. In recent decades it has worked
prominently in various fields of artistic production and also the academic production. Held
eight films, including medium and feature films, he has set up five multimedia installations
and published fourteen books, including works of art, collections of scripts and interviews and
theoretical essays.

His films provoke the conventions of different filmic cornfields, moving in ranges between
documentary, ethnographic film, experimental cinema and narrative cinema. In its production,
both intellectual and filmic, we find issues that cross from one field to another, subverting the
boundaries and creating intersections between theory and practice in order to question the
places determined between knowledge, relating the arts and innovative way science . His
topics of interest revolve around the forms of representation of cultural difference, the female
condition and identity issues.

Our research focuses on his films proposing a dual relationship of movement: a first that
comes from theory toward the movies, to investigate how innovative strategies used in your
movie dialogue with social theory, to think other milestones in the relationship between
cinema and anthropology. The second part of the film toward the film theory, specifically the
theory dedicated to documentary cinema, to analyze how his films can help to expand the
debate on the cinematic domain by offering unique and challenging contributions from the
essential pillars of this kind of cinema, which are those linked to filming strategies and the
relationship between who films and who is filmed. We understand his films as exemplary
cases that allow us to think the documentary film us in his poetic fullness and contribute in an
original way in relation to what may be the great documentary tradition of contribution to the
cinema, the ethical question.

To investigate a production so challenging and questioning the traditional canons of the areas
with which dialogue, our theoretical framework is formed from contributions coming from the
field of anthropology, film theory and the arts.

Keywords: Trinh T. Minh-ha, Documentary, anthropology, experimental cinema, ethnography


film.
SUMÁRIO

Introdução 12

Capítulo 1 – Ressonâncias teóricas entre o feminismo e as vanguardas artísticas 21


1.1 A teoria feminista do cinema 22
1.2 O cinema independente de vanguarda 30
1.3 A voz como estratégia narrativa. 32
1.4 A voz e o som no cinema de Trinh T. Minh-ha 37
1.4.1 O som e o silêncio 38
1.4.2 A voz 43

Capítulo 2 - Trinh T. Minh-ha entre a prática e a teoria do documentário 45


2.1 - cineasta-teórica 50
2.2 – Reflexividade 57
2.3 - A poética do documentário 65

Capítulo 3 - Sobre cinema e antropologia ou o lá fora aqui dentro 72


3.1 - Antropologia visual 75
3.2 - Virada linguística na antropologia 81
3.3 - Virada etnográfica nas artes 85
3.4 – A autorreflexividade no documentário e a montagem 89
3.5 – Reassemblage – um filme sobre o Senegal? 91
3.6 – Um filme sobre o Senegal. Mas o quê no Senegal? 93
3.7 – A póetica da repetição 94
3.8 – O filme e o caderno de campo 103
3.9 – Paisagem sonora, silêncio e locução em Reassemblage 104
3.10 – Considerações sobre o caderno de campo 109
3.11 - Reassemblage – o filme como exposição do caderno de campo 114
3.12 – Naked Spaces – os espaços de moradia dos povos da Terra 115
3.13 – Coniderações sobre o uso da voz over na tradição do documentário 118
3.14 – A voz over em Naked Spaces 121
3.15 – Surname Viet Given Name Nam – modos de narrar a história e a nação 125
3.16 – Verdade e encenação na entrevista 132

Capítulo 4 – Gestos ensaísticos e estética da parcialidade 137


4.1 Cinema, antropologia e escrita etnográfica 140
4.2 Um cinema ensaístico 145
4.3 A estética da parcialidade 155
4.4 Requisitos da estética da parcialidade 157
4.4.1 O “estar entre” 157
4.4.2 A abordagem indireta 159
4.4.3 A busca pelo intervalo 161
4.5 - Shoot for the Contents – A (re)aproximação de Trinh T. Minh-ha ao Oriente. 163
4.5.2 - Rupturas e continuidades – estratégias da via indireta 166
4.5.3 - Encenação e locução 170
4.5.4 – Confúcio e Mao – tradição e transformação 171
4.5.5 – Entrevistas 172
4.5.6 - Intervenções gráficas – caligrafia e dragões 177

Capítulo 5 – A arte de enquadrar o tempo 182


5.1 - A experiência do tempo e da temporalidade em The Fourth Dimension 185
5.2 - A experiência do deslocamento e o deslocamento como experiência 187
5.3 - Trens e tambores – percepção e consciência 190
5.4 - Rituais tecnológicos modulando a experiência 192
5.5 - Presença e subjetividade 193
5.6 - Relembrar para esquecer – Forgetting Vietnam 195
5.7 - Revisitar o passado, reencontrar a memória 208

Capítulo 6 – Um outro lugar dentro do aqui 213


6.1 – O movimento inside/out 213
6.2 – Os artifícios do cinema – A tale of love 214
6.3 – Radicalidade e experimentação – Night Passage 218

Conclusão 223

Referências bibliográfica 233

Filmografia citada 241


12

INTRODUÇÃO

“A memória é uma ilha de edição”

Waly Salomão, Carta aberta a John Ashbery

“a arte passou para o campo ampliado da cultura, que supostamente


é o domínio da antropologia.”
Hal Foster, 2015, p. 174

A primeira vez que lemos o nome de Trinh T. Minh-ha foi em um plano de curso
da disciplina Metodologias de pesquisa e antropologia visual: cinema e vídeo, ministrada
pelo professor Marcius Freire, no Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp1.
O nome da cineasta está presente na 11ª sessão, intitulada Por uma poética da descrição em
etnocinematografia, que indica o filme Naked Spaces – living is round (1985) como parte do
conteúdo da aula e textos da cineasta na bibliografia. Um dos textos indicados é o “The
Totalizing Quest of Meaning”, primeiro ao qual tivemos acesso mais ou menos nesse período,
antes mesmo de termos a chance de assistir a um filme dirigido pela cineasta. Nesse momento
ainda não eramos alunos do Programa e tínhamos chegado ao plano de curso após uma
pesquisa na internet, interessados em conhecer mais sobre cinema documentário. O plano de
aula nos interessou, em especial a sessão que indicava o trabalho de Trinh T. Minh-ha. Após
nos tornarmos alunos regulares do Programa de Pós-Graduação em Multimeios, cursamos
esta disciplina em 2012.

Desde esse momento, no início dos anos 2000, recém-saídos da graduação,


tínhamos como hábito a busca por filmes que eram citados nos livros, mas que eram um tanto
incacessíveis - por conta do nosso interesse maior nos domínios do cinema experimental e
documentário – uma vez que não eram filmes disponíveis no circuito exibidor comercial e
nem no circuito de vídeo doméstico, no Brasil. Incomodava-nos ler os textos e não ter acesso

1
Esse plano especificamente está depositado na página do Programa na internet nos arquivos relacionados aos
planos do ano de 2002
13

aos filmes. Havia uma sensação de frustração por lermos análises e descrições sem ter a
chance de assistir aos trabalhos. Dificuldade esta que permaneceria ainda por algum tempo. O
circuito de vídeo doméstico basicamente era dedicado ao cinema de ficção comercial, com
raras e honrosas iniciativas de distribuição de cinema diferente do modelo hegemônio norte-
americano e a TV paga ainda engatinhava na oferta de filmes desses tipos. Entretanto, a
internet começava a abrir novas possibilidades de acesso aos filmes com as redes de
compartilhamento de arquivos P2P2. Isso provocou uma revolução e esta pesquisa tem grande
débito para com essa realidade. Participando de fóruns e grupos especializados em troca de
filmes não comerciais, tivemos acesso a um universo cinematográfico que não estava
facilmente disponível no Brasil, além de ter acesso também a textos e livros que não estavam
(ou ainda não estão, na maior parte dos casos) traduzidos para o português.

Em 2005, o livro Introdução ao documentário, de Bill Nichols, foi lançado no


Brasil e este se tornou um guia importante de referência para que buscassemos os filmes.
Porém, apenas tivemos a chance de assistir a um filme de Trinh T. Minh-ha, ou, melhor
dizendo, a um trecho de filme (especificamente de Reassemblage), na Socine de 2008,
realizada na UnB, em uma apresentação do professor Paulo Menezes, da USP. Aqueles
poucos minutos exibidos do filme nos impressionaram muito e nos deixaram interessados em
conhecer melhor o trabalho da cineasta. Nesse mesmo ano, Reassemblage foi disponibilizado
na internet, inicialmente no fórum privado de troca de arquivos Karagarga, seguido do site
Surrealmoviez e, alguns meses depois, com legendas em português no site brasileiro Making
off.

O trabalho de Trinh T. Minh-ha começou a aparecer timidamente no Brasil mais


ou menos nesse período. Em 2005, a diretora veio ao Brasil a convite da artista plástica e
cineasta Paula Gaitán que, ao lado do filósofo Juan Posada, estava organizando a segunda
edição da mostra O cinema que pensa, no MAM-RJ, onde Minh-ha participou de um debate e
alguns filmes seus foram exibidos. Em 2010, o Seminário Internacional Fazendo Gênero,
promovido pela UFSC, contou com a presença de Trinh T. Minh-ha na conferência de
abertura e com uma mostra de seus filmes exibidos em vídeo e legendados em português.3 Em
2012 o Fórumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico, realizado em Belo
Horizonte, exibiu os filmes Reassemblage e Surname Viet Given Name Nam, na mostra

2
P2P – é a sigla em inglês para o termo peer to peer, que se refere a um protocolo de trocas de arquivos pela
internet.
3
O trabalho de legendagem ficou a cargo do Laboratório de Imagem e Som – LISA, da USP
14

paralela A mulher e a câmera e publicou em seu catálogo o texto Diferente de você/como


você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença.
Finalmente, em 2015, a Amarillo Produções Audiovisuais realizou a mostra O cinema de
Trinh T.Minh-ha, ocorrida na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro, que contou com retrospectiva
completa da diretora, incluindo trabalhos menos acessíveis, como vídeos retirados de
instalações, sessões comentadas de filmes, debate e duas masterclasses da diretora. Tivemos a
honra de sermos convidados pela curadoria da mostra para escrevermos um texto para o
catálogo e para comentarmos a exibição do filme Shoot for the Contents na mostra, além de
termos tido a oportunidade de conhecermos pessoalmente a diretora e durante alguns dias
acompanhá-la pelo Rio de Janeiro.4 Essa oportunidade foi muito importante para nos colocar
em contato com parte da obra da cineasta que até aquele momento estava incacessível, como é
o caso dos vídeos retirados de instalações, e nos ter permitido conversar diretamente com ela,
uma pessoa muito afável e generosa, que nos disponibilizou seu último filme, Forgetting
Vietnam5, que não integrava a mostra. Desse modo, esta nossa pesquisa inclui análise
completa da produção fílmica6 de Trinh T. Minh-ha até este momento7.

O catálogo da mostra O cinema de Trinh T.Minh-ha traz três textos importantes de


autoria da cineasta traduzidos para o português: Não pare no escuro (declaração da artista),
que apresenta e sintetiza as intenções e posturas caras ao seu trabalho artístico; A busca
totalizante do significado, talvez seu texto mais conhecido, que evidencia claramente sua
postura crítica em relação ao domínio do cinema documentário; e Questões de imagem e
política, que apresenta como as questões políticas atravessam de modo transversal sua
produção. Além desses, reúne ensaios sobre seus filmes, escritos por pesquisadores
brasileiros, conjunto com o qual pudemos colaborar com o texto A arte de enquadrar o
tempo, sobre o filme The Fourth Dimension.

Essa série de eventos tem contribuído para o conhecimento relacionado à


produção de Trinh T. Minh-ha no Brasil. Entretanto, seus filmes ainda permanecem, em boa
medida, de acesso bastante limitado ao público brasileiro. Além da disponibilidade dos seus
filmes por meio da internet, em fóruns dedicados à arte de vanguarda ou cinema experimental,

4
Devemos esta oportunidade a Carla Maia e Luis Felipe Flores, curadores da mostra e organizadores do
catálogo.
5
O filme está atualmente percorrendo o circuito de festivais. Em março de 2016 estreou na competição
internacional do festival Cinema du Reel, em Paris.
6
Por produção fílmica estamos considerando os trabalhos realizados para serem exibidos em cinema, sejam
captados em vídeo ou película. Não estamos incluindo os trabalhos retirados das instalações, que não foram
objeto de análise detida neste trabalho.
7
Ano de 2017
15

mas principalmente nas comunidades de troca de arquivo via torrent, há a possibilidade de


encontrar seus filmes nos acervos de algumas universidades e programas de pós-graduação,
tanto ligados ao cinema como ligados à antropologia.

Seus filmes são distribuídos pela Woman Make Movies8, pequena distribuidora de
cinema independente localizada em Nova York e não tiveram circulação comercial no Brasil.
Nas redes de troca de arquivo pela internet, o único que está disponível com legendas em
português é Reassemblage. Talvez isso explique o porquê de este ser seu filme mais
conhecido no país e sobre o qual mais se fez referência em textos acadêmicos aqui
publicados.

Como desenvolvemos no decorrer do nosso texto, os filmes de Trinh T. Minh-ha


estão presentes em parcela importante da produção acadêmica que se dedicou aos estudos
relativos ao cinema documentário nos últimos vinte e cinco anos, mais ou menos.
Praticamente todos os seus filmes, especialmente aqueles que podemos considerar associados
ao campo do documentário, foram objeto de análises detidas em livros importantes que
ajudaram a conformar um corpus teórico para o que podemos chamar de teoria do cinema
documentário (estes argumentos estão desenvolvidos em nosso segundo capítulo). Entretanto,
uma das suposições que tínhamos no início de nossa pesquisa parece ter se confirmado: a de
que a produção de Trinh T. Minh-ha é bastante conhecida, porém, apenas em sua superfície.
Encontramos textos que refletem sobre seus filmes isoladamente, mas não encontramos
referências que tratem de sua produção de forma mais completa, articulando uma reflexão
entre esses filmes. Em diversos livros importantes desse período histórico recente, o nome de
Trinh T. Minh-ha é citado como um exemplo de cineasta que situa-se em uma posição entre-
áreas, cuja filmografia demonstra alguns dos mais importantes predicados do que há de mais
interessante e inventivo no cinema documentário contemporâneo. Livros que tratam do
cinema documentário, do cinema pós-colonial, do cinema experimental, do filme etnográfico,
do cinema feminista, do cinema independente. Poderíamos relacionar várias passagens que
confirmariam essa afirmação: o cinema de Trinh T. Minh-ha é múltiplo, intrigante e
desafiador. Entretanto, falta ainda um trabalho que se debruce sobre sua filmografia e sobre
sua produção intelectual de modo mais verticalizado e aprofundado.

No decorrer dos últimos quatro anos em que levamos a cabo esta pesquisa,
percorremos diversos eventos acadêmicos no país, apresentando o progresso de nossos

8
http://www.wmm.com/
16

estudos. Em vários deles o filme Reassemblage foi o exemplo central na exposição e, em


praticamente todas as apresentações (senão em todas), a exibição dos minutos iniciais do
filme gerou situações intrigantes de estranhamento. Mesmo em eventos especializados em
cinema, como os encontros da Socine, a disjunção entre imagem e som no início do filme - a
tela preta sonorizada por cerca de 30 segundos, seguida de imagens justapostas por jump cuts
de velhos senegaleses desenvolvendo trabalhos manuais em imagens silenciosas – criou
situações inusitadas de desconforto e curiosidade. Invariavelmente, havia pessoas
perguntando se a exibição não estava acontecendo com a imagem fora de sincronia em
relação ao som. Claro que podemos considerar que, talvez, as pessoas presentes em sala não
fossem necessariamente as mais informadas sobre o cinema da cineasta, ou mesmo sobre o
cinema de fatura mais experimental; do mesmo modo, é possível dizer que, em eventos
acadêmicos, sempre há limitação de tempo nas apresentações e, geralmente, contam com
estruturas modestas de reprodução de imagens e sons e a preocupação com as questões de
ordem técnica na exibição de produtos audiovisuais está sempre na ordem do dia. Todavia,
esta história com ar de anedota serve para reforçar um ponto: o cinema da cineasta provoca a
maneira como percebemos e interpretamos a realidade através das imagens em movimento.
Trata-se de um cinema que perturba nossas convições e nossas certezas, consolidadas por
farta exposição a produtos audiovisuais muito codificados que nos chegam com facilidade
pelas mídias massivas e pelo circuito comercial hegemônico de cinema.

Conforme íamos conhecendo melhor sua produção fílmica e nos aprofundando em


sua produção acadêmica, um dos aspectos que nos chamou a atenção foi o notável diálogo
entre seus filmes e seus ensaios teóricos. Assim como seus filmes adotam modos indiretos
para abordar um assunto, promovendo uma relação intrigante entre forma e conteúdo - onde
não há submissão de uma parte relativamente à outra, mas uma relação indissociável entre
ambas - o diálogo entre filmes e textos também não se dá de modo direto, mas como uma
maneira de expressar um pensamento que está em movimento, aberto à experiência. Um
pensamento que está em construção e que se constitui enquanto um atravessamento de
fronteiras, mais precisamente explorando os intervalos existentes entre as polarizações mais
tradicionais. Em resumo, entre as polaridades há um intervalo muito maior do que as posições
que estão nos limites podem fazer crer. Ou, dito de outro modo, há diversos modos de se
representar um objeto, e o modo de representá-lo é tão importante quanto o teor daquilo que
se quer dizer sobre ele.
17

O acesso aos textos ajuda a iluminar seus filmes e vice-versa Entretanto, optamos
por não nos basearmos em seus textos de modo central na elaboração desta nossa pesquisa.
Tentamos manter certa distância a fim de garantir maior originalidade em nossas análises
sobre sua produção fílmica. Apoiamo-nos em seus textos ou entrevistas em momentos
pontuais, especialmente em passagens que ajudam a elucidar determinado elemento
relacionado ao processo criativo da cineasta, evitando buscar referências que fossem
associadas a processos de interpretação dos filmes propriamente. Ainda que tenha existido tal
intenção de distanciamento, este pode não ter sido plenamente conseguido, evidentemente. O
atravessamento entre textos e filmes é tão determinante que uma tal posição de separação fica
praticamente inviabilizada, uma vez que se tenha tido acesso a ambas as facetas de produção
de Trinh T. Minh-ha.

No primeiro capítulo da tese nos debruçamos sobre duas questões essenciais para
uma análise consequente do cinema de Trinh T. Minh-ha. A primeira delas é a questão do
feminismo, preponderantemente ligada ao âmbito da temática e das relações entre sujeito e
objeto apontadas pelos filmes, mas orientadora das dimensões éticas e estéticas que movem a
cineasta em sua produção tanto fílmica quanto acadêmica. Contribuições da teoria feminista
do cinema nos ajudaram a definir as balizas para pensar a produção fílmica da cineasta a
partir de uma relação com as formas e estratégias hegemônicas de cinema a partir do
pressuposto de que o cinema feminista tem de desafiar as formas convencionais a fim de
afirmar sua diferença como valor essencial. Este amparo teórico nos permitiu pensar o
cinema de Trinh T. Minh-ha para além da ideia de um cinema experimental pela questão da
forma e inseriu seu cinema em um campo maior de disputas, onde a busca de formação da
diferença deve dar conta de uma relação entre forma e conteúdo, entre ética e estética. A
segunda questão é a utilização da dimensão sonora, especialmente da voz - mas também do
silêncio, das músicas e dos ruídos - como recurso central em sua criação cinematográfica,
assunto que reaparece em capítulos posteriores de modo recorrente, às vezes secundário, às
vezes como aposta central no argumento, confirmando como tal estratégia narrativa é decisiva
para conformar sua postura autoral.

No segundo capítulo promovemos uma revisão de como se consolidou uma teoria


do cinema dedicada ao domínio do documentário, buscando identificar como Trinh T. Minh-
ha ocupa lugar privilegiado entre a posição de objeto de interesse de teóricos e como autora
de uma teoria dedicada a refletir sobre as especificidades desse tipo de cinema, contribuindo a
um só tempo para consolidar e repensar a tradição dessa seara cinematográfica. A posição
18

peculiar assumida pelo seu cinema nos leva à questão da reflexividade, termo constantemente
evocado em esforços de problematização das categorias de representação simbólica tanto
clássicas quanto modernas, central em processos contemporâneos dedicados a repensar os
problemas da antropologia enquanto disciplina e do cinema enquanto prática artística.
Apresentamos também uma breve distinção entre as duas principais vertentes da teoria do
cinema documentário, a cognitivista-analítica e a pós-estruturalista. Concentrando nossos
esforços na vertente pós-estruturalista, partimos do conceito de poética do documentário, a
reunião das funções ou modalidades essenciais desse tipo de cinema, tal como apontadas por
Michael Renov (2007) para apoiar nossa reflexão sobre o cinema de Trinh T. Minh-ha.

A fim de buscar certo distanciamento em relação a sua produção teórica de modo


a permitir uma relação mais direta com os filmes, como mencionamos antes, estruturamos a
pesquisa a partir de um movimento inspirado pelos termos elaborados pela própria cineasta-
teórica em relação a seus filmes, sintetizados nas categorias outside/in e inside/out, algo como
o que vem de fora para dentro e o que vem de dentro para fora. Na primeira categoria temos
os filmes mais identificados com os domínios do cinema documentário e, na segunda, com os
domínios do cinema de ficção. Sendo assim, realizamos um movimento de fora para dentro,
ou um movimento de aproximação à sua produção fílmica vindo de fora desse campo, a partir
de teorias do campo das ciências sociais, particularmente da antropologia, em direção ao
domínio artístico da produção da cineasta. Esse movimento está concentrado em nosso
terceiro capítulo, onde promovemos uma aproximação em direção à produção fílmica de
Trinh T. Minh-ha vinda da teoria social. Buscamos encontrar convergências entre cinema e
antropologia repensando certos marcos da relação histórica entre esses campos, de modo a
pensar como seus filmes nos permitem ver intersecções para além dos cânones já consagrados
nas distintas tradições de ambas as áreas, prospectando novas possibilidades cognitivas nos
seus intervalos. Como um dos recursos para expor nossos argumentos, propomos uma leitura
comparativa do filme Reassemblage – from the fireligh to the screen (1982) com o caderno de
campo do trabalho etnográfico, onde nos baseamos em pontos críticos da teoria antropológica
para realizar uma leitura que situa o filme como um meio de criticar e ao mesmo tempo de
propor soluções originais para os problemas enfrentados pela disciplina. Soluções estas
possíveis apenas pelo meio cinema.

Passamos então a esboçar uma nova proposta de abordagem da conjunção


antropologia e cinema, de modo a explorar o intervalo entre as áreas como força produtiva, o
que nos levou a uma reflexão sobre as formas que a antropologia encontrou de utilizar os
19

meios visuais, ou mais precisamente os audiovisuais, para produzir conhecimento. Tal


interesse nos conduziu a um ponto importante para uma autoconsciência crítica emergente
dentro da antropologia no anos 1980 que foi o Seminário Writing Culture, uma das
referências importantes para esta pesquisa. A fim de atualizar os interesses e a dinâmica da
virada linguística que estaria ocorrendo na antropologia, conforme defendido pelo Seminário
em questão, vamos ao encontro da chamada virada etnográfica na arte, tal como apontada por
alguns autores do campo das artes em períodos mais recentes, notadamente a partir da
contribuição de Hal Foster (2013) e seu influente texto O artista como etnógrafo. Neste
capítulo abordamos mais detidamente os filmes Reassemblage (1982), Naked Spaces – living
is round (1985) e Surname Viet Given Name Nam (1989).

O quarto capítulo elabora a categoria de estética da parcialidade para o cinema da


diretora. Voltamos para as propostas do Seminário Writing Culture para pensar como a
problematização da escrita etnográfica conduzida no seio da antropologia pode contribuir com
subsídios para pensarmos o cinema documentário no âmbito de sua renovação estética,
oferecendo elementos para uma teorização do domínio do filme de não ficção. Esse interesse
pelo cinema documentário mais inventivo, desafiador e experimental, nos levou ao encontro
das questões que giram em torno do ensaístico no cinema, particularmente do ensaístico no
documental. Procuramos trabalhar em uma perspectiva histórica para situar o interesse
associado à relação entre o filme documentário e o ensaio literário a fim de delimitar o
método de aproximação ao cinema de Trinh T. Minh-ha. Para além dos termos substantivos
que têm surgido nos últimos tempos – há alguns recorrentes, como filme-ensaio, ensaio
fílmico, filme ensaístico, vídeo-ensaio - nos interessa trabalhar aqui com a noção de “gestos
ensaísticos” que estão no filme, ou seja, a noção de uma evidenciação que se dá pela
linguagem enquanto ato, da experiência, operada pela forma do filme, na articulação dos sons
e das imagens e não em uma forma exterior ao filme. Em relação ao cinema da cineasta, nos
concentramos em três linhas de força que entendemos estarem presentes em seus filmes de
modo transversal, além de serem forças mobilizadoras que traduzem uma visão política
particular: i) o “estar entre”, ii) a abordagem indireta e iii) a busca pelo intervalo. A fim de
ilustrar nossas hipóteses, aqui nos dedicamos a uma análise detida do filme Shoot for the
contents (1991).

Em busca de outros marcos teóricos e outros modelos de análise para o estudo dos
filmes de Trinh T. Minh-ha, no quinto capítulo nos dedicamos a análises dos filmes The
fourth dimension (2001) e Forgetting Vietnam (2016), a partir de uma abordagem
20

fenomenológica, inspirados em Sobchack (1992). Seu trabalho sobre um modelo de


identificação cinematográfica alternativo ao psicanalítico costuma ser referência frequente
quando se trata de análise fílmica, especialmente aquelas dedicadas ao cinema de ficção.
Consideramos que a proposta da autora oferece um instrumental necessário e adequado à
decriptação dos filmes de Trinh T. Minh-Ha, que são o resultado de posturas de crítica, de
revisão e de reflexão que desafiam formas e modelos canônicos, clássicos e convencionais.
Acreditamos que a proposta fenomenológica da experiência fílmica proposta por Sobchack
nos permitiu superar dificuldades que se apresentaram logo no início desta pesquisa: como
abordar cientificamente uma filmografia tão questionadora das disciplinas e tradições com as
quais está em relação? Como sistematizar minimamente as análises dos filmes sem incorrer
no equívoco de impor teorias exteriores e incoerentes com a proposta de trabalho da própria
cineasta-teórica? Para tentar fazer frente a essas questões, acreditamos que a análise fílmica
detalhada e preocupada com as estratégias de utilização do som e da imagem utilizados nos
filmes nos permitiu desenvolver este estudo de forma coerente com a trajetória artística e
intelectual da cineasta. Queremos crer que a proposta de Sobchack nos permitiu falar da
“‘espessura’ da experiência humana e das consequências ricas e radicais do ser encarnado e
sua representação. Para acomodar a si mesmo na experiência, seu método é responsavelmente
dialético e não é informado por nenhum telos em particular.” (SOBCHACK, 1992, p.7)

No sexto e último capítulo passamos a uma análise dos filmes da diretora que se
encaixam sob os termos do movimento por ela intitulado de inside/out, algo aproximado ao
que comumente chamamos de cinema de ficção ou cinema narrativo. São eles: A Tale of Love
(1995) e Night Passage (2004). São análises mais pontuais e superficiais, pois se distanciam
dos casos que mais nos interessam nesta pesquisa, fartamente abordados nos capítulos
anteriores, que são os filmes que dialogam mais fortemente com a tradição e com a teoria do
cinema documentário, campo no qual buscamos delimitar nossas hipóteses e no qual
investimos nossos esforços, amparados por certo instrumental teórico e analítico. De todo
modo, a inclusão desses dois últimos filmes nos permitiu uma análise completa da filmografia
da cineasta.
21

CAPÍTULO 1

RESSONÂNCIAS TEÓRICAS ENTRE O FEMINISMO E AS


VANGUARDAS ARTÍSTICAS

“Escolhas formais no cinema experimental nunca são apenas escolhas


estéticas, um tipo de atitude “arte pela arte” que poderia separá-lo do filme
narrativo politicamente engajado (uma carga muitas vezes colocada sobre
cineastas experimentais). Forma não é apenas entendida como conteúdo,
mas também é usada para expressar forte conteúdo político – enquanto ao
mesmo tempo desafia o treinamento de percepção e as suposições do olhar
do espectador.”

Pasqualino & Schneider, 2014, p. 12

A vietnamita Trinh T. Minh-ha, radicada nos Estados Unidos desde os anos 1970,
tem atuado proficuamente em diversos campos do conhecimento, transitando com
desenvoltura entre manifestações artísticas tão diferentes quanto a poesia, a música e o
cinema e, no campo intelectual mais estritamente acadêmico, sua produção se destaca naquilo
que tem sido genericamente chamado de estudos pós-coloniais, abordando temas de interesse
dos estudos culturais, do feminismo, da retórica, da antropologia e do cinema. Com efeito, sua
produção transita entre todas essas áreas do conhecimento, sempre desafiando normas e
convenções historicamente consolidadas, deslocando teorias e epistemologias, provocando
revisões e renovações que colocam tanto seus textos como seus filmes em sintonia fina com
diferentes movimentos de questionamento e problematização de cânones acadêmicos e
artísticos diversos. Consideramos que seus textos e filmes compõem um corpus rico em
densidade intelectual, que desafia limites e paradigmas convencionais das formas expressivas
com as quais ela dialoga, com atravessamentos que evidenciam uma postura ética e estética
que instiga e promove a reflexão acerca dos modos de narração, das relações de poder, das
formas de representação da alteridade, da atitude política e da experiência estética no mundo
contemporâneo.
22

Neste capítulo iremos abordar dois tópicos que são muito importantes na
produção de Trinh T. Minh-ha. O primeiro deles é a questão do feminismo, que atravessa toda
sua produção intelectual e artística, sendo um dos aspectos mais importantes na configuração
de sua postura crítica e, também, central em sua produção fílmica, como veremos ao longo
dos diversos capítulos. O segundo tópico é a questão da banda sonora na obra fílmica da
cineasta. Com maior acuidade, buscaremos trabalhar sobre a utilização da voz como estratégia
central no seu cinema.

Para trabalhar as duas questões acima delineadas, partiremos inicialmente de


alguns pontos da teoria feminista do cinema, desde alguns textos seminais, procurando
apontar como certas questões neles levantadas podem nos ajudar a pensar o cinema de Trinh
T. Minh-ha. Desse modo, não estamos interessados em trazer a teoria feminista para amparar
o estudo do cinema de Minh-ha, mas tão somente partir dos estudos feministas no âmbito da
teoria do cinema para pensar aproximações possíveis entre os filmes da cineasta e as questões
levantadas por esse campo desde a década de 1970. Dito de outro modo, pretendemos apontar
como o trabalho fílmico da realizadora nos instiga a perscrutar os meandros dessas
aproximações, notadamente aquelas que privilegiam o olhar, a identificação psicológica, a
natureza do desejo cinemático e os efeitos de controle do aparato cinematográfico.

Uma vez que alguns textos importantes da teoria feminista do cinema dedicaram-
se a problematizar o aparato cinematográfico, entendemos que trilhar esse caminho nos levará
naturalmente em direção ao nosso segundo tópico de interesse, que, como apontamos acima, é
a análise do som nos filmes, mais precisamente as estratégias relacionadas ao uso da voz.
Como veremos, alguns dos textos sobre os quais apoiaremos nossa argumentação foram
produzidos nesse espectro e sob a luz das questões previamente levantadas pela investigação
na teoria feminista do cinema.

1.1 A teoria feminista do cinema

O cinema sempre foi um domínio majoritariamente masculino em suas posições


de decisão e de poder. A presença de mulheres em tais posições que abordaram temas
importantes ao universo feminino, sintonizadas com disputas conduzidas no campo social
pela igualdade de direitos ou em favor de conquistas políticas sempre foi tímida,
especialmente em relação ao cinema narrativo e ao esquema industrial de produção.
23

Entretanto, com o passar das décadas e em sintonia com as disputas e avanços do movimento
feminista, algumas cineastas exemplares foram responsáveis por trabalhos importantes para
inserir no campo da produção artística as questões relevantes para as mulheres e também para
problematizar a produção artística de um ponto de vista feminino. O caminho para que
algumas mulheres pudessem assumir posições de comando na produção cinematográfica,
especialmente na função de diretoras, demandou tempo e avanços dentro da indústria do
cinema. Geralmente ocupando lugares secundários nas produções, em posições consideradas
mais adequadas ao que seria o papel da mulher (são conhecidos os casos das mulheres
montadoras, cuja função evocava uma associação com o ato de costurar típico de uma ideia
pré-concebida de certo universo doméstico feminino) ou em posições cuja visibilidade estava
fortemente marcada por papéis sociais já legitimados pela ideologia dominante (como o lugar
das atrizes no star system), algumas superaram os desafios impostos pelas questões sexistas e
passaram para postos de comando prioritariamente reservados para os homens.

Não entraremos em detalhes relacionados à presença feminina na produção


cinematográfica e nem evocaremos nomes para ilustrar esses nossos argumentos iniciais, mas,
em relação aos interesses de nossa pesquisa, citaremos alguns casos de mulheres cineastas,
que de algum modo, inserem-se em uma linha de atuação que nos motiva aqui neste capítulo.
Referimos-nos a cineastas com presença no universo das vanguardas artísticas e com
aproximação relativa a teoria crítica e a política cultural, em um cenário de produção que se
fortaleceu fora dos esquemas industriais ou comerciais de produção. Elas foram favorecidas
pelas inovações tecnológicas que baratearam os custos da produção e permitiram a
consolidação de um modelo de produção mais livre e menos normatizado por convenções
hegemônicas, estas últimas geralmente associadas a poderes econômicos e políticos
dominados pelo universo masculino.

Apesar de, historicamente, serem poucas as mulheres em posições de


protagonismo no cinema, conforme assinalamos acima, há nomes importantes que fizeram
parte de sua evolução como forma expressiva. Alguns nomes poderiam ser lembrados, como o
de Germaine Dulac, por exemplo, que transitou entre filmes narrativos e experimentos
surrealistas, contribuindo para explorar os meios cinemáticos em sua especificidade, dirigindo
diversos filmes entre as décadas de 1910 e 1930. Entretanto, consideramos que o nome mais
importante que responde aos fatores que apontamos acima e cuja produção é anterior à década
de 1970, é o de Maya Deren, cineasta norte-americana de origem ucraniana que desenvolveu
profícuo trabalho de vanguarda nas artes nas décadas de 1940 e 1950, com especial interesse
24

pelas artes performáticas, pela poesia e pelo cinema. Sua atuação estendeu-se ao diálogo com
o campo da antropologia, quando, em 1947, ela foi contemplada com uma bolsa da
Guggenheim Foundation Fellowship que a permitiu realizar três visitas ao Haiti entre 1947 e
1954. De tais visitas resultaram a publicação de um livro, gravações de áudio, a realização de
filmagens da pesquisa sobre os rituais da tradição religiosa haitiana do vodu que deram
origem ao filme Divine Horsemen: the living gods of Haiti, de 1953.

Maya Deren tinha uma formação artística e intelectual multidisciplinar.


Originalmente atuante no campo da dança, chega ao cinema pelo caminho da experimentação
das vanguardas artísticas. Foi defensora de um cinema que deveria primar pela busca de uma
forma expressiva original, explorando as potencialidades dos recursos da imagem e do som
em detrimento dos modelos narrativos tributários do teatro e da literatura. Em seu famoso
ensaio Cinema: o uso criativo da realidade, publicado originalmente em 1960, ela escreveu
que

Se o cinema se destina a ocupar seu lugar entre as formas artísticas


plenamente desenvolvidas, deve deixar de meramente registrar realidades
que não devem nada de sua existência ao instrumento fílmico. Pelo
contrário, deve criar uma experiência total, oriunda da própria natureza do
instrumento a ponto de ser inseparável de seus próprios recursos. Deve
renunciar às disciplinas narrativas que emprestou da literatura e sua tímida
imitação da lógica causal dos enredos narrativos, uma forma que floresceu
como celebração do conceito terreno e paulatino de tempo, espaço e relação
que foi parte do materialismo primitivo do século XIX. Pelo contrário, deve
desenvolver o vocabulário de imagens fílmicas e amadurecer a sintaxe de
técnicas fílmicas que as relaciona. Deve determinar as disciplinas inerentes
ao meio, descobrir seus próprios modos estruturais, explorar os novos
campos e dimensões acessíveis a ele e assim enriquecer artisticamente nossa
cultura, como a ciência o fez em seu próprio domínio. (DEREN, 2012,
p.149)

De par com as questões especificamente cinematográficas, podemos notar nesse


texto preocupações típicas das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX,
especialmente no que tange a experimentação em relação a forma e ao conteúdo. Além disso,
a atuação de Maya Deren no campo das artes já anunciava preocupações associadas ao
feminismo, com destaque para o protagonismo da mulher em seus trabalhos, que contaram
com a força de sua presença em tela em parte de sua produção fílmica. Porém, em seus
escritos, os temas feministas ainda não estavam contemplados diretamente.
25

A teoria feminista chega ao cinema na década de 1970, reverberando os avanços


da chamada segunda onda feminista, que desde o fim da Segunda Guerra Mundial avançava
no campo das disputas políticas e pela liberação das mulheres, com especial relevância a
partir da década de 1960, quando as demandas do movimento se diversificam em termos de
posicionamentos e interesses, acompanhando os avanços sociais e as agitações geopolíticas ao
redor do mundo. Na teoria do cinema o impacto do feminismo segue essa diversificação de
interesses, além de refletir também a diversidade institucional do cinema, inicialmente com
trabalhos dedicados a questionar o sexismo dentro dessa indústria, produções que faziam
propaganda de questões feministas, debates sobre política cultural e análises do sexismo na
representação cultural através do filme.

A inglesa Laura Mulvey é uma das principais vozes na teoria feminista do cinema,
com trabalhos incontornáveis em se tratando dessa temática. Seu texto Prazer visual e cinema
narrativo, escrito em 1973 e publicado na revista Screen em 1975, continua sendo uma
referência fundamental para as questões desse interesse, mesmo décadas após sua primeira
publicação. Além de vasta produção de interesse na teoria de cinema, Mulvey também
produziu alguns filmes ao lado de Peter Wollen, com destaque para Riddles of the Sphynx, de
1977, considerado um dos mais importantes filmes experimentais ingleses dessa década. O
trabalho explora questões da representação feminina, o lugar da maternidade dentro da
sociedade patriarcal e relações entre mãe e filha. Cabe notar que Mulvey e Wollen são dois
proeminentes teóricos do cinema, cujo trabalho intelectual emerge nesse período em que a
própria teoria do cinema ainda avançava nos terrenos da investigação acadêmica e buscava
consolidar suas bases e referências.

Para Mulvey

A colisão entre o feminismo e o cinema é parte de um encontro explosivo


maior entre o feminismo e a cultura patriarcal. Desde muito cedo, os
movimentos das mulheres chamaram a atenção para o significado político da
cultura: a ausência das mulheres da criação da arte dominante e da literatura
como um aspecto integral da opressão. A partir deste insight, outros debates
sobre política e estética adquiriram nova vida. Foi o feminismo (não
exclusivamente, mas em boa medida) que deu uma nova urgência à política
da cultura e focou nas conexões entre opressão e comando da linguagem.
Amplamente excluídas das tradições criativas, submetidas à ideologia
patriarcal dentro da literatura, artes populares e representações visuais, as
mulheres tiveram que formular uma oposição ao sexismo cultural e descobrir
meios de expressão que quebrassem com uma arte que tinha dependido para
26

sua existência de um conceito exclusivamente masculino de criatividade.


(2009, p.111)

Esta afirmação de Mulvey sintetiza alguns avanços da crítica feminista do cinema,


que saiu de um interesse inicial em buscar delinear uma tradição do cinema feminino, que
estaria interessada em resgatar a presença das mulheres na produçao cinematográfica,
apontando que a exclusão de mulheres das posições de comando nessa área tem relação
proporcional com a exploração da mulher como objeto sexual. Para esse fim, seria necessário
resgatar os casos de filmes dirigidos por mulheres, para tentar apontar elementos de modo a
reconhecer neles uma estética feminina coerente.

Entretanto, estas suposições iniciais mostraram-se inadequadas para a crítica


feminista do cinema que se esboçava, pois demonstraram que precisavam ganhar maior
densidade para lidar com as questões que o cinema exigia enquanto meio simbólico
sofisticado que é. Podemos verificar esta necessidade nesta declaração de Laura Mulvey:

A experiência da opressão, o reconhecimento da exploração da mulher na


imagem, poderia atuar como um elemento unificador para as mulheres
diretoras, apesar de suas origens serem diferentes. Uma análise cuidadosa
mostraria como as disputas associadas com ser mulher sob dominação
masculina encontravam uma expressão que unificava através de
diversidades de todos os tipos. Certamente, os filmes feitos por mulheres
foram predominantemente sobre mulheres, seja por escolha ou por outro
aspecto ou marginalização. Mas começou a parecer crescentemente duvidoso
que uma tradição unificada pudesse ser traçada, exceto em um nível
superficial de mulheres como conteúdo. (2009, p.113).

A crítica feminista do cinema avançaria então no sentido de superar estas


estratégias iniciais de forma a desenvolver “cuidadosas e detalhadas análises da linguagem e
códigos usados por uma diretora sozinha em um mundo de outra forma exclusivamente
masculino. Tal trabalho se tornou um avanço crucial na crítica feminista do cinema.”
(MULVEY, 2009, p.115) Em resumo, não bastava que diretoras mulheres substituissem os
personagens masculinos por personagens femininas, ou que deslocassem as personagens
femininas para outras posições dentro da narrativa que não fossem aquelas identificadas com
as posições subjugadas ao modelo masculino do poder patriarcal. Para que a crítica feminista
do cinema avançasse em direção ao escopo de uma teoria feminista do cinema, a questão da
27

linguagem cinematográfica deveria entrar no foco da reflexão e ser objeto de crítica,


“sondando o deslocamento entre a forma cinematográfica e o material representado, e
investigando vários meios de abrir o espaço fechado entre a tela e espectador.” (MULVEY,
2009, p.120).

Desta constatação surge o quadro teórico que vai sustentar a consolidação de uma
teoria feminista do cinema, assentada sobre os pilares da investigação do signo, a partir de
contribuições da semiologia, e do inconsciente na representação, a partir de contribuições da
psicanálise. Somado a isso, o interesse em desvendar o aparato cinematográfico é marcado
fortemente pela contribuição de Louis Althusser e sua investigação dos aparatos ideológicos
do estado.

Porém, a questão feminista no cinema deveria ir além do campo da investigação e


da teoria e deveria ser refletido no campo da produção cinematográfica propriamente dita.
Quais seriam as prerrogativas da prática de um cinema produzido por mulheres que estivesse
em sintonia com as questões políticas que o movimento feminista conduzia no campo das
disputas sociais?

Para Claire Johnston - outra autora fundamental para delinear as bases do que
viria se consolidar como uma teoria feminista do cinema – o cinema feminista deveria propor
um cinema engajado no campo da estética, que utilizasse, crítica e conscientemente, a forma
do filme e explorasse outros modos de articulação entre os diversos elementos que compõem
sua linguagem. Em seu texto Women’s cinema as counter-cinema, publicado inicialmente em
1973, Johnston toca diretamente na questão da forma fílmica como reflexo de uma ideologia.

Claramente, se aceitamos que o cinema envolve a produção de signos, a


ideia de não intervenção é pura mistificação. O signo é sempre um produto.
O que a câmera de fato captura é o mundo ‘natural’ da ideologia dominante.
O cinema das mulheres não pode permitir tal idealismo; a ‘verdade’ da nossa
opressão não pode ser ‘capturada’ em celulóide com a ‘inocência’ da
câmera: ela tem que ser construída/manufaturada. Novos significados tem
que ser criados perturbando a estrutura do cinema burguês masculino no
interior do texto do filme. (1976, p.214)

Os argumentos de Johnston nos direcionam para o campo da experimentação


formal no cinema como uma necessidade resultante de disputas ideológicas que marcaram o
28

período histórico em que a teoria feminista do cinema surge. As contendas da arena política
apontavam para o desenvolvimento de uma consciência crítica em relação à forma fílmica em
que esta se configurava como resultado de mentalidades forjadas pelo pensmento “burguês
masculino”, cujos contornos exigiam novas estratégias por parte das diretoras mulheres
quanto ao dispositivo cinematográfico e seus efeitos na audiência.

Apesar de a maioria dos textos da teoria feminista do cinema se debruçar sobre o


cinema narrativo, essa questão da experimentação reverbera no campo das vanguardas
artísticas e do cinema experimental, algo que Laura Mulvey especificamente tratou no seu
texto “Film, feminism and avant-garde” (1978), que estamos utilizando como base aqui em
nossa exposição neste capítulo. Nesse texto, Mulvey tece considerações sobre a relação da
semiologia com vanguarda que nos parece importante para pensar essa aproximação entre
esses dois campos. Partindo de Julia Kristeva e seu trabalho em relação à poética modernista,
onde a autora ligou a crise que produziu o modernismo com o ‘feminino’, Mulvey expõe
como a semiótica coloca a questão da linguagem em primeiro plano, enfatizando a
importância crucial do significante e a natureza dual do signo. Para Mulvey, Kristeva

vê a feminilidade como reprimida na ordem patriarcal e como mantendo uma


relação problemática para com esta. A tradição é transgredida pela erupção
de excessos linguísticos, envolvendo prazer e ‘o feminino’ diretamente
oposto à linguagem lógica e repressão endêmica do patriarcado. Um
problema permanece: nesses termos, a mulher apenas atua em relação ao que
estava sendo reprimido, e é a relação poética masculina à feminilidade que
entra em erupção no seu uso da linguagem poética. O próximo passo
deveria, de um ponto de vista feminista, se mover para além da mulher que
não fala, um significante do ‘outro’ do patriarcado, para um ponto onde
mulheres possam falar por si mesmas, além da definição de ‘feminilidade’
especificada pelo patriarcado, para uma linguagem poética feita também
pelas mulheres e seu discernimento. Mas o ponto importante de Kristeva é
este: a trangressão é obtida pela própria linguagem. A ruptura com o passado
deve atuar através dos meios que elaboram o sentido, subvertendo suas
normas e recusando sua totalidade imperturbável. Aqui, por extensão, a
importância do cinema independente para o feminismo aparece plenamente:
é fora das restrições do cinema comercial, em debate com a linguagem, no
contra-cinema, que a experimentação feminista pode ocupar o seu lugar.
(2009, p.121-122)

Esse destaque para a necessidade de um cinema feminista que esteja identificado


com a experimentação formal é algo que aproxima esses argumentos das demandas do campo
das vanguardas artísticas e particularmente do cinema experimental, como podemos notar
29

com a argumentação de Mulvey quando esta destaca a importância do cinema independente


nesse cenário. É também a pedra de toque que leva Johnston a formular a sua argumentação
em relação ao que seria aquilo que ela propõe como um contra-cinema. Nas palavras da
autora, “qualquer estratégia revolucionária deve desafiar a representação da realidade; não é
suficiente discutir a opressão às mulheres dentro do texto do filme; a linguagem do
cinema/representação da realidade deve também ser interrogada, para que uma quebra entre
ideologia e texto seja efetuada” (JOHNSTON, 1976, p.215).

Outra autora fundamental para a consolidação da teoria feminista do cinema e que


coloca a questão da forma - mais precisamente das estratégias de mise en scène - em primeiro
plano para discutir o cinema feminista é Mary Ann Doane, em cujo trabalho a questão do
corpo feminino aparece com importante centralidade. No texto “Woman’s Stake: filming the
female body”, publicado em 1981, a autora se dedica a pensar como as estratégias de
filmagem do corpo feminino deveriam ser problematizadas sob a luz dos avanços na teoria
feminista do cinema, ou seja, como o feminismo deveria nortear o cinema das mulheres para
além da oposição entre um essencialismo que marcou as reflexões iniciais, dominado pela
questão das denúncias do sexismo no cinema, e um anti-essencialismo, que buscaria um
cinema de oposição a esse modelo hegemônico. Para fugir dessa dualidade, a teoria feminista
do cinema deveria arriscar-se a definir ou construir uma especificidade feminina, que pudesse
providenciar uma representação simbólica autônoma da mulher no cinema. Para Doane,

Está claro, a partir das explorações anteriores das elaborações teóricas do


corpo feminino, que a delimitação não está simplesmente ligada a uma
imagem isolada do corpo. A tentativa de ‘apoiar-se’ no corpo de modo a
formular a relação diferente da mulher em relação à fala, à linguagem,
esclarece o fato de que o que está em jogo é, mais do que isso, a sintaxe que
constitui o corpo feminino como um termo. Os mais interessantes e
produtivos filmes recentes que lidam com a problemática feminista são
precisamente aqueles que elaboram uma nova sintaxe e, desse modo,
‘falando’ sobre o corpo feminino de modo diferente, até mesmo de modo
hesitante ou desarticulado da perspectiva da sintaxe clássica. (1981, p. 33)

Esta declaração de Doane nos remete diretamente para o cinema de Trinh T.


Minh-ha, especialmente no caso do seu primeiro filme, Reassemblage (1982), onde o modo
de filmar o corpo feminino é marcado pelo uso de estratégias atípicas na seara à qual o filme
aparentemente pertence, qual seja, a do filme etnográfico. A cineasta optou por uma série de
30

enquadramentos parciais, de corpos fragmentados e deslocados em quadro, detalhes dos seios


e movimentos de câmera hesitantes, articulados em uma montagem marcada por jump cuts. A
narração em voz over, por sua vez, estabelece uma série de paralelos com situações que não
estão ilustradas na imagem, mas que remetem a questões do encontro intercultural, problemas
da etnologia, da descrição da diferença e questões de gênero.

1.2 O cinema independente de vanguarda

Desde o final da década de 1960 surgiram cineastas, atuando especialmente no


campo do cinema experimental, que colocaram a questão da representação da mulher em
sintonia com uma forma fílmica vanguardista em termos de utilização dos recursos da
imagem e do som. Assim fazendo, exploram as articulações da montagem e da
experimentação na narrativa como forma de elaborar estéticas inovadoras, particularmente
informadas e engajadas em debates das questões de gênero, não raro narrados sob um ponto
de vista assumidamente em primeira pessoa.

Antes de avançarmos cabe aqui lembrar que, no contexto norte-americano, este


cenário de produção de cinema independente foi marcado pela existência de um importante
grupo de cineastas experimentais na cidade de Nova Yorke, que articularam diversas
iniciativas em torno do cinema experimental underground. Uma figura central neste cenário
foi a do cineasta Jonas Mekas, que, ao lado de outros entusiastas do cinema de vanguarda,
fundou, no final da década de 1950, a revista Film Culture, seguida da organização da
filmmakers cooperative, que seria a origem da Anthology Film Archives, dedicada a preservar
a memória do cinema de vanguarda. Essa agitação cultural resultou no movimento conhecido
como The new american cinema, modelo de cinema experimental, cooperativo, auto-
financiado, do qual fizeram parte cineastas como Stan Brakhage e Shirley Clarke.

Apesar de não abordar temas feministas diretamente em seus filmes, o caso de


Shirley Clarke nos interessa pela sua atuação fundamental na consolidação de um modelo de
cinema independente nos Estados Unidos. De início associada à produção de vanguarda, com
filmes experimentais mais formalistas, como Bridges-go-round (1958), que mostra uma
sequência de sobreposições de imagens de paisagens da cidade de Nova Yorke e caminhos
traçados por pontes e viadutos, com manipulação nas cores e embaladas por uma trilha de
Jazz e feitos sonoros, ela produziu filmes narrativos, que abordaram temas como questões de
31

identidade e raça. Um exemplo dessa vertente é The cool world (1964), que narra de forma
realista as dificuldades de ser um jovem afro-americano crescendo no ambiente urbano das
grandes cidades. A cineasta ganhou um Oscar pelo documentário Robert Frost: A Lover's
Quarrel With the World (1963) e teve filmes que circularam por importantes festivais como o
Festival Internacional de Veneza.

Retornando a exemplos de cineastas que têm relação mais direta com as questões
feministas no cenário norte-americano, podemos citar o caso de Su Friedrich, cujos filmes
transitam entre estratégias do cinema narrativo, do documentário e do experimental, com
trabalhos que refletem sobre sua vida pessoal e, abordam temas relacionados ao universo
feminino desde uma perspectiva homossexual, mantendo um produção regular desde o final
da década de 1970 até os dias atuais. Podemos citar entre seus trabalhos mais importantes The
Ties that Bind (1985), um documentário sobre sua mãe, que emigrou da Alemanha para os
Estados Unidos, tendo crescido sob o regime nazista e os horrores da guerra; Sink or Swin
(1990), um filme sobre questões da sua infância que moldaram o modo de ver as relações
familiares, a paternidade e as relações de trabalho e lazer, a partir das memórias e eventos
relacionados a um pai ausente e a conformação de seu lado afetivo; Hide and seek (1996), um
filme sobre a homossexualidade na adolescência vivida na década de 1960, elaborado a partir
da utilização de estratégias ficcionais, articulação de material de arquivo – filmes científicos e
educacionais – e lembranças pessoais.

No cenário europeu, por sua vez, temos o caso seminal da cineasta francesa Agnès
Varda, que tem vasta e importantíssima produção, desde o final dos anos 1950. Seus filmes
iniciais são associados à Novelle Vague, passando para uma produção extensa com trânsito
frequente entre o cinema narrativo e o documentário, com diversos exemplos de filmes
inovadores na maneira como relacionam a esfera privada com a esfera pública em estratégias
ensaísticas que problematizam o documentário de um ponto de vista da experiência pessoal da
cineasta. Outro nome europeu importante de ser lembrado é o da cineasta belga Chantal
Akerman, que também tem filmes importantes, tanto no campo do cinema narrativo como no
campo do documentário. Nesse segundo caso, com filmes mais afeitos a discutir as temáticas
feministas.

Nos filmes de Varda e Akerman ancorados no campo do documentário, uma das


estatégias centrais na elaboração do discurso é a utilização da voz como recurso narrativo
pleno de potencial expressivo. Vários filmes dirigidos pela cineasta francesa utilizam um
32

modo poético e pessoal de locução em voz over, algo ampliado em seus últimos
documentários, como é o caso de Les glaneurs et la glaneuse (2000), onde a diretora assume
uma visão em primeira pessoa para refletir sobre o ato de catar ou recolher (batatas, imagens),
imbricando a experiência pessoal com a experiência pública. Entre outros casos de interesse,
Chantal Akerman, por sua vez, dirigiu o filme News from home (1977), no qual utilizou a
locução em voz over de modo central para realizar um filme intimista rememorando cartas
trocadas com sua mãe. Ao fazer isso, estabelece relações entre a experiência privada e o
espaço público de modo bastante poético e original, construindo, através do cinema, uma
ponte entre Nova York e Bruxelas.

1.3 A voz como estratégia narrativa

Como vimos anteriormente, uma das principais contribuições da teoria feminista


do cinema foi a problematização do aparato cinematográfico como uma instância relacionada
à dimensão ideológica. A partir dessa concepção, teóricas ligadas a esse campo de estudos
dedicaram-se a investigar como o cinema utiliza os seus recursos técnicos de modo a articular
sentidos e afetar a percepção do espectador quanto aos tópicos abordados, reverberando a
concepção de que enquanto teoria cinematográfica, os estudos feministas deveriam refletir
sobre os aspectos mais sofisticados da linguagem cinematográfica. Nessa reflexão acerca da
forma do filme a partir da perspectiva aqui delineada, os aspectos ligados ao uso da voz no
cinema ganharam dimensão importante.

No texto “A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço”, publicado


inicialmente em 1980, Mary Ann Doane coloca a análise da voz no centro do interesse de sua
investigação, oferecendo uma contribuição importante em relação às preocupações
emergentes relacionadas ao aparato cinematográfico e enfatizando como as estratégias
formais e estéticas deveriam ser objeto de ampla e profunda reflexão intelectual. Nesse texto
ela relaciona quatro aspectos que considera fundamentais para a reflexão sobre a voz no
cinema: a) a sincronização entre som e imagem, b) a diferenciação entre voz off e voz over, c)
o prazer da audição e d) a política da audição.

Para Doane (1983), o cinema narrativo hegemônico recorre à sincronização entre


som e imagem como um recurso fundamental para suas estratégias narrativas que buscam a
transparência e a impressão de realidade, que atuam diretamente para a identificação da
33

audiência com o realismo cinematográfico. Nesta relação entre voz e corpo, as possibilidades
criativas desse encontro ficam sacrificadas e o som adquire mero caráter de reprodução, na
qual a voz necessita estar ancorada em um determinado corpo e este em um determinado
espaço para reforçar o efeito mimético de um realismo cinematográfico.

Em nome de uma análise acurada, a autora enfatiza a importância da conceituação


precisa em relação aos usos da voz no cinema, diferenciando as categorias de voz off e voz
over9. O primeiro termo, voz off está relacionado à diegese e tem uma dimensão lateral, ou
seja, trata-se da voz de um personagem que não vemos naquele momento, mas que está na
cena, que já conhecemos ou que acompanhamos anteriormente participando da trama, mas
que nesse momento preciso a câmera não mostra. Segundo Doane, “o uso tradicional da voz
off constitui uma negação do enquadramento como limite e uma afirmação da unidade e
homogeneidade do espaço representado.” (1983, p.462). O termo voz over, por sua vez, é uma
voz descorporificada, apresentada como fora da diegese. “Precisamente por não ser escrava de
um corpo é que esta voz é capaz de interpretar a imagem, produzindo a sua verdade.
Descorporificada, carente de qualquer especificação no tempo ou no espaço, a voz over está,
como mostra Bonitzer, além da crítica – ela censura as perguntas ‘Quem está falando?’,
‘Onde?’, ‘Em que hora?’ e ‘Para quem?’” (DOANE, 1983, p.467).

Trabalhando, sobretudo, com exemplos do cinema narrativo, o terceiro ponto


abordado por Doane em seu texto diz respeito ao prazer da audição. Com uma abordagem
psicanalítica em relação ao som, entendendo este como efeito determinante para o realismo no
cinema, cuidadosamente planejado em termos de técnicas narrativas e em termos de
tecnologia de captação e de reprodução, neste domínio cinematográfico em especial, o som
tem a função de sustentar o prazer narcísico derivado na imagem.

Entretanto, no documentário, a voz over passou a representar uma autoridade


e uma agressividade que já não podem ser mantidas – assim, como diz
Bonitzer, a proliferação de novos documentários que rejeitam o absolutismo
da voz over e dizem estabelecer um sistema democrático ‘permitindo ao
assunto falar por si mesmo’. E mais, o que este tipo de filme realmente
promove é a ilusão de que a realidade fala, ao contrário de ser falada, e que o
filme não é um discurso construído. Efetuando uma ‘impressão de
conhecimento’, um conhecimento que é dado e não produzido, o filme oculta
seu próprio trabalho e coloca a si mesmo como uma voz sem sujeito. A voz é

9
No sexto capítulo desta pesquisa, na análise do filme Naked Spaces, também fazemos referência a essa questão
da diferenciação entre voz off e voz over.
34

ainda mais poderosa em silêncio. A solução então não é banir a voz, mas
construir outras10 políticas. (DOANE, 1983, p. 471)

Encontrar na utilização da voz no documentário outras políticas nos interessa


sobremaneira. Retornaremos a esse ponto mais adiante neste capítulo quando passarmos a
apresentar algumas estratégias relacionadas ao som nos filmes de Trinh T. Minh-ha,
especialmente as estratégias dedicadas à locução e ao uso da voz.

Retornando aos pontos apresentados por Doane concernentes ao uso da voz no


cinema, o último deles diz respeito ao que ela denominou de a política da voz. Novamente
dedicando atenção principalmente ao cinema narrativo, a autora identifica que a mise-en-
scène clássica trabalha para perpetuar a unidade entre imagem e som. Utiliza-se de efeitos
homogeneizantes como modo de garantir a noção de realismo, de continuidade e de
transparência necessários para a identificação da audiência, como forma de apagar os traços
que permitem a percepção do aparato cinematográfico, estendendo o som para disfarçar o
corte entre os planos, por exemplo. No caso dos documentários, essas estratégias estão
expressas na opção recorrente de utilizar apenas uma voz na locução em voz over, sendo esta,
geralmente, uma voz masculina. A famosa “voz de Deus”.

Em outro texto, intitulado “Ideology and the practice of sound editing and
mixing”, publicado em 1980, Mary Ann Doane trata das questões ideológicas do aparato
cinematográfico relativos à edição e à mixagem do som no cinema de modo mais amplo e não
apenas em relação ao uso da voz. Nesse trabalho ela reforça os argumentos sobre o uso
normativo do som no cinema hegemônico de ficção, mas chama a atenção para uma questão
problemática que pode emergir na relação do som com a imagem.

Enquanto o som é introduzido, em parte, para apoiar essa ideologia, ele


também arrisca uma crise ideológica em potencial. O risco reside na
exposição da contradição implícita na polarização ideológica de
conhecimento. Devido ao fato de som e imagem serem usados como fiadores
de dois modos de conhecimento radicalmente diferentes (emoção e
intelecção), sua combinação acarreta a possibilidade de expor uma fissura
ideológica – uma fissura que aponta para a irreconciabilidade de duas
verdades da ideologia burguesa. As práticas de edição de som e mixagem
são projetadas para mascarar essa contradição através da especificação de
relações permitidas entre som e imagem. (DOANE, 1980, p.50)

10
Ênfase do original
35

Essas considerções de Doane reforçam que a investigação acadêmica sobre o


aparato cinematográfico deve lançar luzes sobre a estética do cinema, sobretudo em um meio
social interessado em subverter as convenções amplamente utilizadas no cinema narrativo
hegemônico, como é o caso do campo do cinema experimental. Conhecer a forma
cinematográfica e sua técnica é essencial para explorar suas possibilidades expressivas de
modo pleno, expandindo o potencial do cinema como meio de expressão. E, sobretudo, nos
fazer ver como a investigação não deve estar centrada apenas nos aspectos da imagem, tão
amplamente estudada no âmbito da teoria do cinema, mas deve incluir o som como objeto de
escrutínio.

Nas questões dedicadas às análises da voz no cinema e em sintonia com as


proposições de Doane, temos também o trabalho de Kaja Silverman, especialmente os
argumentos apresentados em seu texto Dis-embodying the female voice, publicado pela
primeira vez em 1981. Nesse texto, assim como Doane, a autora se debruça prioritariamente
sobre o cinema narrativo, para problematizar as questões relacionadas à voz no cinema e
também parte da identificação da sincronização como um elemento unificador da linguagem
cinematográfica. Segundo suas palavras,

A sincronização funciona como um imperativo virtual no cinema de ficção.


Embora à voz masculina seja ocasionalmente permitido transcender esse
imperativo completamente, e à voz feminina seja de tempos em tempos
permitida uma pausa qualificada do seu rigor, ela organiza toda a relação
som/imagem. Ela é a norma em relação à qual esses relacionamentos aderem
ou se afastam. (SILVERMAN, 1984, p.132).

Seguindo os princípios da teoria feminista do cinema, Silverman identifica a


normatização em relação ao cinema narrativo hegemônico como sendo orientada por uma
lógica masculina, em que a opressão sexista em favor do homem como elemento central e
agregador da narrativa, atua como força onisciente na organização dos elementos do filme. A
diferenciação entre os gêneros coloca sempre em desvantagem as estratégias associadas ao
feminino. Para a autora, os mecanismos de exclusão são muito mais complexos do que
aqueles que negam o acesso das mulheres a uma visão autorizada, e requerem formulação
cuidadosa para desvendar sua articulação. Em sua exposição ela enfatiza que o sujeito
masculino assume posições de autoridade dentro e fora do filme e o sujeito feminino, ao
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contrário, tem sistematicamente negadas tais possibilidades, sendo excluído de qualquer


autoridade discursiva.

Após desenvolver sua exposição centrando a argumentação em exemplos que


miram no uso da voz no cinema narrativo, diferenciando as possibilidades narrativas
geralmente cedidas ao masculino e ao feminino nas estratégias utilizadas por tais filmes,
Silverman volta-se para o cinema de vanguarda para amparar sua busca por alternativas
estéticas em relação a esse padrão hegemônico normativo, tal como vimos anteriormente nos
argumentos de Mulvey (1978) e Doane (1980). Nas palavras da autora: “é na prática da
vanguarda feminista, entretanto, que a voz feminina tem sido mais exaustivamente
interrogada e utilizada de modo mais inovador.” (SILVERMAN, 1984, p.137).

A argumentação de Silverman desenvolve-se no sentido de apontar como a


desvinculação entre corpo e voz no cinema, especialmente no caso do corpo e da voz
feminina, provoca rupturas nos modelos hegemônicos de normatização nas relações entre som
e imagem, de modo a provocar novas percepções acerca da representação da realidade e do
próprio dispositivo cinematográfico, elaborando formas narrativas mais complexas,
desafiadoras e intrigantes para o espectador. Para exemplificar seus pontos ela se baseia em
alguns exemplos de documentários associadas a práticas mais experimentais, especialmente
os filmes News from home, de Chantal Akerman (1977) e Journeys from Berlin/71, de
Yvonne Rainer (1980).

Para Silverman, o filme de Rainer é um caso notável de utilização de estratégias


de tratamento da voz e, em especial, das estratégias de sincronização ou disjunção do corpo e
da voz femininos no cinema. Para ela, “essas questões são tratadas de modo muito mais
profundo neste que é inquestionavelmente o mais memorável uso de vozes femininas no
âmbito das vanguardas feministas, se não em todo o cinema experimental.” (SILVERMAN,
1984, p.143).

Yvonne Rainer é uma artista norte-americana com produção diversificada em


campos distintos e cuja produção fílmica e intelectual guarda algumas proximidades com a de
Trinh T. Minh-ha. Seria interessante cotejar o percurso de ambas as artistas e suas respectivas
obras. Entretanto, tal abordagem fugiria ao escopo desta pesquisa, e infelizmente não
conseguiremos aprofundar esta questão aqui. Oriunda do campo da dança e do teatro, Rainer
também tem atuação marcada por uma jornada interdisciplinar tanto intelectual quanto
artística e uma experiência que desloca questões de um campo a outro, subvertendo os limites
37

e as fronteiras entre disciplinas e práticas expressivas. Além disso, seu percurso criativo
revela um diálogo profícuo entre a teoria e a produção artística. Seus filmes foram objeto de
interesse da teoria feminista do cinema e ajudaram a moldar seus argumentos em um diálogo
de mão dupla que se estabeleceu entre a artista, que, informada pela teoria, incorporou a
reflexão sobre as políticas da representação em suas obras. No mundo acadêmico, suas
proposições conceituais e a grande variedade da sua expressão artística sugerem modos
instigantes de se repensar o empreendimento teórico.

Yvonne Rainer é uma incansável teórica, no sentido que os termos da


reflexão podem mudar, mas o ato da reflexão está sempre lá. Seus filmes e
suas palavras oferecem a reflexão teórica como fluxo permanente, sempre
mudando. Teoria nunca tem uma voz unificada; às vezes ela parece
menosprezada, às vezes ela parece ser citada com grande reverência. A
teoria nunca tem um pé na certeza, e, como resultado, você frequentemente
encontra teoria em lugares inesperados no trabalho de Rainer. (MAYNE,
1999, p. 24).

Assim como em Trinh T. Minh-ha notamos uma contemporaneidade com relação


ao momento de crise na antropologia e na revisão dos padrões da escrita etnográfica (hipótese
que buscaremos desenvolver no capítulo três), em Rainer podemos ver tal simultaneidade e
trocas positivas com a teoria feminista do cinema.

1.4 A voz e o som no cinema de Trinh T. Minh-ha

Diante de toda essa exposição relativa à conformação da teoria feminista do


cinema e ao modo como tal teoria contribuiu para problematizar o aparato cinematográfico,
com especial atenção aos elementos sonoros da linguagem cinematográfica e em particular ao
papel da voz no cinema, consideramos que a produção fílmica de Minh-ha tem aspectos muito
originais a oferecer para que possamos problematizar o uso do som e, notadamente, da
locução no campo do documentário moderno.

É importante relembrar aqui que a formação inicial da cineasta foi na área


musical. Ela possui diploma pelo National Conservatory of Music & Theater, de Saigon
(1969), bacharelado em literatura e música francesa, na Wilmington College (1972), estudos
de etnomusicologia, na Université de Paris IV-Sorbonne (1974), Master of Arts em literatura
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francesa e etnomusicologia, pela University of Illinois, Urbana-Champaign (1973) e Master of


Music (composição), pela University of Illinois, Urbana-Champaign (1976). Dessa sua
origem na atuação musical Trinh T. Minh-ha trouxe para sua produção fílmica a noção
determinante de ritmo, fundamental na organização dos elementos expressivos do seu cinema.

Nos capítulos seguintes, particularmente nas passagens dedicadas às análises


fílmicas, retornaremos aos elementos sonoros no trabalho da diretora e, de modo um pouco
mais desenvolvido, nos dedicaremos a algumas observações sobre as estratégias no uso da
locução que encontramos em seus filmes.

1.4.1 O som e o silêncio

Nos filmes dirigidos por Trinh T. Minh-ha encontramos diferentes estratégias de


uso da música, dos ruídos e do silêncio. Há os casos da música incidental, tocada por músicos
e instrumentistas em estúdio e adicionada na montagem; há o caso desse mesmo tipo de
música, tocada ao vivo diretamente na cena, como parte da diegese do filme; há o caso dos
ruídos e sons captados em som direto durante o trabalho de campo, mas utilizados como
recurso sonoro não sincrônico de modo a desnaturalizar a associação à imagem e adquirir
outra função, musical e rítmica e há o caso do silêncio como recurso narrativo.

Seus filmes Reassemblage (1982) e Naked Spaces (1985) utilizam de forma


exemplar uma série de estratégias sonoras que são muitas vezes destacadas como
características singulares da sua expressividade artística. Um elemento essencial dos seus
trabalhos é o seu caráter disjuntivo entre som e imagem. Esses filmes foram captados em
película 16 mm, com som registrado em um gravador Nagra e filmados em áreas rurais de
países da África Ocidental. Entretanto, apesar da possibilidade tecnológica do registro
sincrônico do som e da imagem já estar disponível no momento de produção dos filmes, neles
não há uma única passagem em que imagem e som estão em sincronia. No caso de
Reassemblage, os créditos em tela mostram apenas a menção um filme de Trinh T. Minh-ha,
sendo que no roteiro do filme publicado posteriormente temos a indicação de que Minh-ha
produziu (juntamente com Jean-Paulo Bourdier), dirigiu, fotografou, escreveu e editou o
filme. Baseados nessas informações, podemos supor que ela própria foi responsável pela
fotografia e pelo registro dos sons, de modo que não poderia, com o equipamento utilizado,
39

registrar simultaneamente ambos. Em diversas entrevistas11 Minh-ha já declarou que teve


pouca experiência prévia com cinema antes de emigrar para os Estados Unidos nos anos 1970
e que a realização de Reassemblage foi marcada por um processo de aprendizado em
realização. No caso de Naked Spaces, por sua vez, em uma primeira tela os créditos iniciais
apresentam as informações de que o filme foi fotografado, escrito e teve a música gravada por
Minh-ha. A referência à direção aparece marcada por um X, como que a anular este quesito.
No roteiro publicado de Naked Spaces, porém, não há menção ao registro das músicas. Em
uma segunda tela com créditos temos a informação de que Trinh T. Minh-ha montou o filme e
que Jean-Paul Bourdier foi assistente.

Tal uso da banda sonora acabou tornando-se uma das forças estéticas do filme. O
caráter disjuntivo da montagem de Reassemblage e de Naked Spaces nos remete diretamente
ao princípio da continuidade visual, da transparência e da identificação, que são aspectos
centrais para o cinema narrativo, mas que são também buscados pelo cinema de cunho
etnográfico convencional, por exemplo, seara com a qual estes filmes da diretora dialogam
claramente. Com este princípio o filme desnaturaliza a representação dos corpos, do espaço e
da ação que registra no Senegal, chamando a atenção para a política da representação e não
para o tema. Ao assumir a disjunção como princípio narrativo radical, Reassemblage
posiciona-se de modo a questionar as presunções dos modelos convencionais de cinema,
especialmente dos modelos clássicos de documentário. Seguindo o pensamento de Mulvey
(1977), trata-se de um exemplo contundente de que um cinema de vanguarda estética e
política só pode existir enquanto contraponto ao modelo hegemônico.

Nos outros filmes da cineasta o caráter disjuntivo arrefece e a montagem ganha


um caráter mais paratático – onde as imagens e sequências são organizadas sequencialmente,
porém, sem guardar conjunção coordenativa entre si - articulando diversos elementos
heterogêneos em uma exploração ensaística dos temas e das formas onde não há compromisso
com a linearidade, mas a justaposição de episódios que se sucedem sem se vincular a um
ordenamento causal, onde não há explicação ou hierarquia de forma claramente definidas. Os
filmes Surname Viet Given Name Nam (1989), The Fourth Dimension (2001) e Forgetting
Vietnam (2015) incluem letreiros eletrônicos sobrepostos às imagens. Imagens de arquivo
(fotografias e filmagens) aparecem em Surname Viet Given Name Nam e Forgetting Vietnam.
Diferentes texturas de imagem são adotadas em Shoot for the Contents e Forgetting Vietnam.

11
Para entrevistas mais focadas nos três primeiros filmes da diretora ver Framer Framed (1992)
40

O uso de música pré-gravada aparece em The Fourth Dimension (2001) e Night Passage
(2004)

O silêncio é um elemento narrativo importante em Reassemblage e em Naked


Spaces. Quando nos referimos a silêncios estamos falando da ausência total de som realmente
e não apenas de um nível baixo de registro sonoro ou coisa que o valha. Em certas passagens
desses filmes, Minh-ha retira o som completamente, deixando a cena silenciosa, de modo que
esse silêncio se torna ensurdecedor. Dito de outro modo, utilizando uma metáfora mais
comum e associada ao campo da imagem, o uso do silêncio nesses filmes torna o trabalho
com o som visível. Para Mary Ann Doane (1984) a invisibilidade do trabalho com o som é a
medida da força da banda sonora do filme. Evidentemente, nos filmes aqui em questão,
podemos dizer o contrário. Como forma de expor o aparato cinematográfico, causando
sensação de estranhamento e desnaturalizando a identificação com o tema, os silêncios
assumem um caráter ativo e marcante, contribuindo para a elaboração de uma narrativa em
que imagem e som expressam dimensões sensíveis que desestabilizam as expectativas típicas
das narrativas convencionais, onde comumente há a manutenção de oposições ideológicas
entre o inteligível e o sensível, o intelecto e a emoção, o fato e o valor, a razão e a intuição.
Nos casos aqui destacados, a evidenciação do trabalho com o som é a medida da força da
estética do filme.

Passando para a dimensão do som, vamos nos dedicar ao tema a partir de dois
aspectos: os sons gravados em campo e utilizados de modo não sincrônico com a imagem na
montagem, e a utilização de músicas.

O primeiro caso, dos sons não-sincrônicos, está mais fortemente presente nos dois
filmes iniciais da cineasta, mas em menor escala também aparecem nos demais. Nos casos
dos filmes realizados na África, os sons registrados em campo são utilizados de modo a
compor uma sonoridade rítmica, afastando-se de uma função que poderia ser ilustrativa ou de
contextualização. Temos sons de trabalhos manuais, como o pilar do alimento pelas mulheres,
sons de insetos, de falas, cantos de trabalho e cânticos rituais. Entretanto, nenhum deles se
oferece como suporte para a imagem, sendo trabalhados de forma autônoma. Mesmo quando
os sons são relativos à imagem, como no caso das mulheres que estão trabalhando no pilão, o
som não é sincrônico e o que prevalece é o ritmo da montagem, da articulação entre imagem e
som, e não a ilustração ou a descrição, seja da imagem em relação ao som ou vice-versa.
Nesses casos, os sons são trabalhados como na música concreta, ou seja, uma composição
41

musical que se constrói na montagem, incorporando elementos a princípio estranhos ao


universo musical, como ruídos e sons naturais registrados anteriormente para deles extrair
musicalidade. Ao invés da composição musical nos moldes convencionais, onde estão
envolvidos instrumentos e músicos, aqui a sonoridade surge da montagem desses ruídos na
etapa de pós-produção.

Em relação ao segundo caso, temos duas situações: a música incidental sobreposta


à imagem, e a música registrada dentro da diegese no ato da filmagem. A música incidental
aparece nos filmes de Trinh T. Minh-ha em uma multiplicidade de usos. Por exemplo, a partir
de arquivos, contribuindo para tecer uma narrativa que revisita a dimensão histórica a partir
de experiências individuais, como é o caso dos filmes Surname Viet Given Name Nam e
Forgetting Vietnam, que utilizam poemas ou cânticos tradicionais, ou então a partir de
registros pela câmera de rituais encenados, como é o caso nos filmes Shoot for the contents e
The Fourth Dimension. Aqui acompanhamos espetáculos performáticos e musicais e
cerimônias que revisitam tradições culturais e folclóricas cujos sons passam do diegético para
o extra-diegético na articulação da montagem.

O filme Night passage é um caso interessante de experimentação com a música


em relação à narrativa. As personagens Kyra, Nabi e Shin vão percorrendo as salas e espaços
na viagem que empreendem pela “passagem noturna”. Nesses locais elas encontram outros
personagens, que lidam com dimensões diferentes da performance. Temos situações
dedicadas à palavra, ao movimentos, às luzes e aos sons e que inserem as personagens
principais em experiências dentro do filme. Experiências com a tecnologia, com expressões
artísticas, com diferentes sensações e energias. A maneira de realizar este trabalho conjugou
experiências com a câmera, resultado da encenação para o filme e experiências na cena, na
diegese, onde as personagens se depararam com performances sendo executadas em tempo
real no desenrolar da cena. Esta situação é particularmente interessante no caso da música.
Em diversas cenas há música sendo interpretada em tempo real, no próprio transcorrer do
plano e a interpretação da música está em sintonia com o desenvolvimento da ação. A música
incidental não é apenas inserida em um trabalho de edição posterior, com ajustes controlados
de duração e transições, mas é executada em sintonia com o trabalho dos atores e da câmera,
devendo lidar com essas dimensões de duração e transição dentro da duração do plano. Uma
situação de filmagem em direto que remete ao documentário, executada em uma encenação
ficcional.
42

Logo no início do filme, quando Kyra sai do seu local de trabalho, temos a
primeira situação onde a música está sendo interpretada diretamente na cena, como parte da
diegese. Kyra sai de bicicleta do galpão onde trabalha. O som da flauta começa. Ela cruza
com um homem e uma mulher, que estão por ali em frente ao galpão, sentados. A música da
flauta tocando uma melodia. O homem chama Kyra, que retorna ao encontro deles. A câmera
acompanha Kyra em uma panorâmica horizontal e enquadra os três no plano: Kyra, o homem
e a flautista. Kyra e o homem começam a conversar sobre problemas, sonhos e os caminhos
da vida. A flautista toca seu instrumento pontuando o diálogo entre os atores. O plano
permanece o mesmo, sem decupagem. Os três em cena simultaneamente. Após a conversa,
Kyra levanta-se e caminha para a bicicleta, a câmera a acompanha em uma panorâmica
horizontal, deixando o homem e a flautista fora do quadro. A flautista retoma a melodia que
preenche a cena da saída de Kyra. Em outra cena mais adiante, já dentro do trem que faz a
“passagem noturna”, Kyra, Nabi e Shin encontram-se com dois contadores de história em um
dos vagões. Um deles conta histórias cantando a capella. Mais adiante as três personagens
estão em outro espaço, um ambiente aberto, brincando com cores e formas desenhadas no
chão, quando seguem uma linha colorida fazendo a passagem para outro espaço maior, onde
um baterista está tocando uma bateria eletrônica, sendo acompanhado por um percussionista.
Algumas pessoas sentadas ao redor assistindo. Novamente sem decupagem, apenas um plano
de câmera. Neste caso o plano começa fechado no baterista e vai se abrindo em zoom out,
incluindo todos em cena. Kyra brinca com uma bola metálica dançando ao som da música.
Nabi passeia de patins, em movimentos circulares ao redor. Shin brinca com o projetor de luz.
Lentamente as personagens vão saindo do quadro, no que são acompanhados pela câmera em
uma panorâmica lateral, até chegarem a uma figura humana desenhada no chão com pontos
luminosos. O som da bateria e da percussão permanece. A última cena que apresenta música
inserida na diegese acontece em uma sala de jantar, local em que as personagens
confraternizam com algumas pessoas à mesa. Ao chegar à sala, as personagens recebem
captadores que são colocados no rosto. Ao fundo temos um grupo de música eletrônica
experimental, com uma série de equipamentos eletrônicos ligados. Os músicos vão compondo
em interação com a cena, incorporando os sons gerados pelos captadores do rosto de cada
ator. Movimentos físicos se transformam em sons manipulados eletronicamente dentro da
própria diegese do filme.

Em relação à utilização de músicas pré-gravadas, Trinh T. Minh-ha trabalhou com


o grupo de música instrumental experimental The Construction of Ruins nos filmes A Tale of
43

Love, the Fourth Dimension e Night Passage. O trabalho do grupo resulta de uma
improvisação bastante livre, utilizando instrumentos adaptados, como o piano ‘preparado12’,
nos moldes dos instrumentos de músicos de vanguarda como John Cage. O trabalho com este
grupo é baseado na improvisação e busca trazer para o campo sonoro a mesma liberdade e
inventividade almejada no campo visual. O grupo trabalha de modo bastante experimental,
sem seguir estruturas musicais definidas, como seria esperado de uma música no sentido
convencional. Como um grupo de vanguarda tampouco vê limites entre o que é ruído e o que
é música, abusando das sonoridades dissonantes. Para R. Murray Schaffer, um importante
teórico no campo musical,

Às vezes, a dissonância é chamada de ruído; e para os ouvidos tímidos até


pode ser isso. Porém, consonância e dissonãncia são termos relativos e
subjetivos. Uma dissonância para uma época, geração e/ou indivíduo pode
ser uma consonância para outra época, geração e/ou indivíduo. A
dissonância mais antiga na história da música foi a Terça-Maior (dó-mi). A
última consonância na história da música foi a Terça-Maior (dó-mi) (1991,
p.69)

Podemos notar que no cinema de Trinh T. Minh-ha o aspecto musical ressoa a


utilização de estratégias desafiadoras como aquelas utilizadas no âmbito da imagem, de modo
a contribuir para propor uma experiência fílmica que pretende encontrar caminhos novos para
representar uma visão particular de mundo.

1.4.2 A voz

A cineasta explorou uma multiplicidade de possibilidades no uso da locução em


voz over, demonstrando, como o modelo convencional ou clássico de documentário é
limitador em sua estrutura narrativa excessivamente normatizada.13 A locução evidencia a
importância da palavra falada para Trinh T. Minh-ha (ao lado da palavra escrita dos letreiros e
da palavra escrita nos livros) e permite a cineasta explorar dimensões retóricas, poéticas,
líricas e pessoais que subvertem os modelos narrativos recorrentes no cinema. A voz no

12
Objetos estranhos ao piano são inseridos nas cordas do piano, como parafusos e moedas, a fim de obter novas
e inusitadas sonoridades
13
Exposições mais detalhadas de observações sobre o uso da locução em seus filmes estão desenvolvidas no
sexto capítulo desta tese, dedicado às análises fílmicas.
44

cinema de Trinh T. Minh-ha é elemento fundamental para o desenvolvimento de seu caráter


ensaístico - tema ao qual nos dedicaremos mais detidamente no capítulo quatro. É no espaço
da locução que a cineasta exerce com plenitude seu discurso.

Vamos recorrer a Mary Ann Doane, buscando seus argumentos em favor daquilo
que chamou de a política da voz, no texto “A voz no cinema: a articulação de corpo e
espaço”. Para a autora, o documentário clássico trabalha para confinar a voz over em uma
única voz, que ao lado da sincronização entre imagem e som, atua como forma de buscar
obter um efeito homogeneizante, de unidade. Como já vimos em diversas passagens, o que
interessa para Trinh T. Minh-ha é trabalhar na multiplicidade, buscar a diferença na
multiplicidade. Esta busca pode ser traduzida em seus diferentes filmes nas estratégias de
locução adotadas, por exemplo no uso de duas vozes distintas, como em Shoot for the
contents, ou mesmo três vozes distintas, como em Naked Spaces. “Isto implica não apenas
aumentar o número de vozes, mas radicalmente mudar o relacionamento delas para com a
imagem, efetuando uma disjunção entre som e significado, fazendo prevalecer aquilo que
Barthes define como o’grão’ da voz sobre e contra sua expressividade ou poder de
representação.” (DOANE, 1983, p.472-473)

Em último lugar, devemos ressaltar que nos filmes de Trinh T. Minh-ha a locução,
mesmo quando não é feita por ela própria, é carregada de sotaque. Nos filmes da cineasta
praticamente todas as locuções em voz over são em inglês. Com excessão das duas entrevistas
de Shoot for the Contents e de alguns outros personagens aqui e ali, quase sempre são
mulheres que falam. Em praticamente todos esses casos o inglês não é a língua materna de
quem fala e as vozes são frágeis e delicadas. Desse modo, as vozes carregam dois elementos –
sotaque e fragilidade - que perturbam as normas daquilo que o modelo convencional
normatizou como sendo esperado do recurso da locução em voz over: a locução masculina, de
voz grave e assertiva. Para Barthes (1977), a voz não é pessoal, não é original, porém ao
mesmo tempo é individual: ela tem um corpo que ouvimos, que não tem identidade civil, não
tem personalidade, mas tem mesmo assim um corpo separado. Acima de tudo, a voz carrega
diretamente o simbólico, acima do inteligível, o expressivo.

Pela voz há a afirmação da diferença de seu cinema, protagonizado por mulheres, não
raro em situações de deslocamento, de diáspora, que refletem a experiência intercultural a
partir dos intervalos e dos cruzamentos entre culturas, lugares e instâncias de poder.
45

CAPÍTULO 2

TRINH T. MINH-HA:

ENTRE A PRÁTICA E A TEORIA DO DOCUMENTÁRIO

“Como um paradigma para o documentarista e o mundo histórico, eu


prefiro a noção de encontro, um diálogo entre aquele que vê e aquele
que é visto, a subjetividade do realizador encarando a objetividade do
mundo. Mais frequentemente na tradição do documentário,ao invés de
filtrar a sensibilidade, o mundo apresenta-se em precedência. Mas
não há nada inerente ao empreendimento do documentário que
requeira que isso seja assim. Talvez, este seja o modo de descrever
convergências e disparidades simultâneas entre o trabalho do
documentarista e o do artista contemporâneo diante de um mundo
transbordando de dramas humanos e contingências.”
Michael Renov (2007, p.14)

Em relação ao cinema, nosso interesse primeiro aqui nesta pesquisa, consideramos


que Minh-ha ocupa uma posição curiosa, diríamos até mesmo peculiar. Sua produção
cinematográfica surge na esteira de um momento histórico de mudanças nos contornos da
prática do cinema documentário, estimuladas pela proliferação dos equipamentos portáteis de
registro de imagens e sons no final da década de 1960 e dos dispositivos eletrônicos de vídeo
a partir da década seguinte. Tais mudanças proporcionaram diversos movimentos virtuosos de
produção, revelando cineastas e filmes que contribuíram para modificar o panorama mundial
desse domínio cinematográfico, assim como elevaram a atenção em relação a essa extensa
produção no âmbito da crítica e dos estudos acadêmicos. No campo da reflexão neste período
vimos surgir obras e autores dedicados a pensar a especificidade do cinema documentário,
alçando-o desde então a uma posição destacada entre os objetos de interesse nos estudos de
cinema. Podemos assinalar obras de cunho histórico como os livros The Documentary
46

Tradition14, organizado por Lewis Jacobs, publicado em 1971, o livro Non-fiction Film: a
critical history, de Richard Barsam, de 1973, e o livro A History of the Non-fiction Film, de
Eric Barnouw, publicado em 1974, trabalhos que foram fundamentais para a compreensão do
que se convencionou chamar a tradição do documentário. A interseção entre o cinema e as
ciências sociais, tema que particularmente nos interessa para pensar os filmes de Trinh
T.Minh-ha, tem no livro Principles of Visual Anthropology, organizado por Paul Hockings e
publicado em 1974, um marco por reunir artigos e ensaios que se debruçam sobre assuntos
pertinentes ao documentário de cunho antropológico, com questões relativas à
problematização da representação da alteridade, a relação entre cineasta e sujeitos filmados e
a relação do cinema com a pesquisa etnográfica.

Na década de 1980 temos o período que é marcado por certo adensamento nos
estudos teóricos sobre o cinema documentário, com destaque na produção anglo-saxônica
para o livro Ideology and the Image: social representation in the cinema and other media, de
Bill Nichols, publicado em 1981, que reúne artigos escritos em diferentes períodos e sobre
temas que vão do cinema narrativo de ficção ao filme etnográfico. Nele podemos notar por
parte do autor um interesse crescente relativo ao cinema documentário, evidenciado na
organização interna da obra, que conta com três capítulos dedicados a esse domínio
cinematográfico.15 Tal interesse se concretizaria na publicação pelo mesmo autor de outras
obras fundamentais para a teoria do cinema documentário nas décadas seguintes, com os
livros Representing Reality (1991), Blurred Boundaries: questions of meaning in
contemporary culture (1994) e Introduction to Documentary (2001). A esses trabalhos de
Nichols, devemos unir o livro Theorizing Documentary, organizado por Michael Renov em
1993, como exemplo cabal de que os estudos de cinema estavam consolidando um corpus
teórico específico, que avançava nas questões pertinentes aos domínios do filme de não-
ficção, considerando suas especificidades e diferenças em relação aos cânones do cinema
narrativo de ficção.

Dado o cenário brevemente esboçado nos parágrafos anteriores, cumpre aqui


destacar como enxergamos, nesse contexto, o trabalho de Trinh T. Minh-ha, uma vez que,
como apontamos acima, defendemos – e procuraremos demonstrar - que ele ocupa uma

14
No caso de livros que não foram traduzidos para o português, optamos em manter a grafia da publicação
original. Os livros que foram traduzidos para o português estão grafados com o título do lançamento comercial
no Brasil. O mesmo vale para os títulos dos filmes.
15
Capítulo 6 – The documentary film and principles of exposition; capítulo 7 – Frederick Wiseman’s
documentaries: theory and structure e capítulo 8 – Documentary, criticism, and the ethnographic film.
47

posição peculiar. Consideramos que tal peculiaridade reside no fato de Trinh T.Minh-ha
sempre ter ocupado um espaço próprio entre a teoria e a prática cinematográficas,
constituindo-se como uma presença que conjuga indistintamente ambas as atividades; uma
posição polivalente, situada em um intervalo, um interstício, existente entre as polaridades
típicas dos protocolos das áreas por onde Minh-ha transita. Em seus filmes e textos teóricos -
poderíamos dizer seus ensaios audiovisuais ou escritos - notamos o movimento dialógico
entre os polos, perceptível em sua teoria atuante e em sua prática reflexiva, de modo que
disciplinas acadêmicas, gêneros cinematográficos e formas expressivas são provocados em
seus limites e convenções.

A noção de intervalo assume a importância de categoria central na produção de


Trinh T. Minh-ha. Na introdução do seu livro Cinema Interval (1999), ela apresenta tal
concepção como pedra de toque para suas atividades intelectual e artística

Para manter a relação da linguagem com a visão aberta, alguém teria que
tomar a diferença entre ambos como a própria linha de partida para discurso
e escrita, mais do que um obstáculo lamentável a ser superado. O intervalo,
mantido criativamente, permite que as palavras coloquem em movimento
energias adormecidas e ofereça, como impasse, a passagem de um espaço
(visual, musical, verbal, mental, físico) para outro. (1999, p.xi)

A partir dessas publicações tomadas como marcos históricos de um movimento


de adensamento da teoria do cinema documentário, podemos inserir tanto os filmes da
cineasta, considerados como objetos de interesse privilegiado, como os textos teóricos,
pensados como contribuições epistemológicas importantes para um momento de renovação e
de aprofundamento nos estudos de cinema. Com vistas a traçar paralelos mais precisos,
tomemos como exemplo: Reassemblage, o primeiro filme da cineasta, lançado em 1982,
momento em que a teoria do cinema documentário passava a constituir suas próprias balizas
teóricas. No campo acadêmico, podemos elencar como marco inicial aqui o já citado livro
Ideology and the Image: social representation in the cinema and other media (1981), de Bill
Nichols, ainda não um marco inequívoco, mas com apontamentos importantes de caminhos a
serem trilhados futuramente para a consolidação desse corpus teórico específico. Minh-ha
produziu a seguir os seguintes filmes: Naked Spaces – living is round (1985), Surname Viet
Given Name Nam (1989) e Shoot for the Contents (1991). Na teoria temos a seguir o livro
Representing Reality (1991), de Bill Nichols, onde o autor utiliza o filme Reassemblage
48

(1982) para apoiar seus argumentos associados à noção de reflexividade e às críticas às


estratégias de objetividade no documentário16, cita Naked Spaces como contraponto para
desenvolver seus argumentos relativos ao seu conceito de modo expositivo do documentário e
traz o filme Surname Viet Given Name Nam para ilustrar seu raciocínio relativo aos modos
complexos de representação do mundo histórico em oposição aos modelos clássicos e
convencionais.

Na coletânea Theorizing Documentary (1993), organizada por Michael Renov,


essa posição polivalente de Minh-ha, cineasta e pensadora como aqui estamos defendendo,
aparece mais claramente. No livro ela contribuiu com o texto “The Totalizing Quest of
Meaning”, que havia sido publicado no seu livro When the Moon Waxes Red –
representation, gender and cultural politics, publicado em 1991, texto este que, por sua vez, é
uma revisão e ampliação de um texto anterior intitulado “Documentary is/not a Name”,
publicado na revista October, em 1990. Além de ser uma das autoras de textos do livro, é
exatamente com este termo de referência que ela é citada no texto de Paul Arthur: “em um
ensaio recente, a cineasta-teórica Trinh T. Minh-ha, seguindo uma convincente dissecação dos
mitos da verossimilhança, propõe uma nova epistemologia para a não-ficção baseada em
padrões fílmicos desafiadores de autoridade mais do que meramente substituir uma fonte não
reconhecida de autoridade por outra.” (RENOV, 1993, p.132). Curioso notar que o texto
citado por Arthur é justamente o Documentary is/not a Name, cuja versão expandida e
atualizada integra, como vimos, o mesmo livro. Além dessa citação, Minh-ha aparece também
no texto de Bill Nichols, “Getting to Know you ... knowledge, power, and the body” que
integra a coletânea, onde o autor cita o filme Surname Viet Given Name Nam para sustentar
sua argumentação em relação à representação do corpo e ao uso de imagens de arquivo como
formas expressivas que podem ser usadas de maneira inovadora no cinema documentário.
Desse modo, podemos dizer que os filmes da cineasta foram objetos de análises que
contribuíram para sustentar reflexões importantes para os avanços da teoria do documentário,
ao mesmo tempo em que textos de sua autoria figuravam entre os trabalhos acadêmicos
integrantes de um corpus teórico denso e adequado às questões epistemológicas acerca do
cinema documentário. Em outras palavras, Trinh T. Minh-ha figura ao mesmo tempo como
objeto de interesse e como teórica de um movimento em direção ao aprimoramento de uma
teoria própria para o cinema de não-ficção, onde, no caso da cineasta, não há uma posição que

16
Reassemblage seria objeto de nova e mais aprofundada análise desenvolvida por Nichols para explorar seu
modo reflexivo de documentário no livro Introduction to documentary (1991)
49

vem antes e outra que vem depois. Há simultaneamente uma atividade artística provocadora e
instigante no campo do cinema, e uma prática reflexiva aguda e articulada na produção
intelectual.

Além desses marcos fundadores de uma teoria do cinema documentário apontados


nos parágrafos anteriores, podemos relacionar uma série de outros trabalhos acadêmicos
importantes no campo que surgiram nas décadas seguintes e que desenvolveram abordagens
relacionadas a novos temas e objetos emergentes nos quais a cineasta-teórica tem presença
marcante, seja como objeto de interesse por meio de seus filmes, frequentemente citados
como referência para desenvolver argumentos acerca de propostas analíticas específicas, seja
com a sua participação direta contribuindo com textos originais ou entrevistas. Entre os livros
a destacar podemos citar Questions of Third Cinema (1990), organizado por Jim Pines e Paul
Willemen, que reúne artigos apresentados em uma conferência sobre o tema e que integrou as
atividades em comemoração aos 40 anos do Edinburh International Film Festival, em 1986,
que conta com o texto “Outside In/Inside Out” de Trinh T.Minh-ha, além da participação de
proeminentes teóricos e cineastas associados à noção de terceiro cinema ou mais geralmente
às noções de pós-colonialismo, como Homi K. Bhabha, Teshome H. Gabriel e Haile Gerima.
Outra contribuição importante a abordar temas emergentes que tem contribuído para
diversificar e ampliar o escopo da teoria de cinema é o livro An Accented Cinema – exilic and
diasporic filmmaking (2001), de Hamid Naficy, dedicado a discutir o cinema de um ponto de
vista dos movimentos transnacionais de deslocamento. Entre outros filmes, ele faz uma
análise detalhada de Surname Viet Given Name Nam, de Minh-ha. Podemos ainda relacionar o
livro The Skin of the Film – intercultural cinema, embodiment and the senses (2000), de
Laura U. Marks, que trabalha a noção da sensibilidade na recepção dos filmes e o caráter
háptico dessa experiência, recorrendo aos filmes de Trinh T. Minh-ha em diversas passagens
para apoiar seus argumentos.

A despeito dessa presença dos filmes de Trinh T. Minh-ha em certa literatura da


teoria de cinema nas últimas décadas, podemos dizer que seus textos ainda não tiveram a
mesma penetração nesse campo ou uma repercussão digna da importância que efetivamente
têm nos estudos de cinema contemporâneos, sendo parcialmente conhecidos, permanecendo
como uma contribuição ainda a ser descoberta para o campo de estudos das imagens em
movimento.
50

2.1 Cineasta-teórica

Acreditamos que esssa atuação conjugada de cineasta-teórica confere aos filmes


de Minh-ha um caráter dialógico que fica evidenciado pelas estratégias fílmicas adotadas. Em
sua filmografia a densidade teórica orienta as escolhas estéticas e as opções narrativas
remetem a problemas epistemológicos. Em Naked Spaces, por exemplo, a cineasta filma
diferentes países da África Ocidental a partir de uma postura que busca relativizar as posições
de poder nas relações implicadas no ato de se realizar um filme. Como falar sobre realidades
culturais que não são as suas? Como escrever um texto para a locução de um filme que não
aprisione aquelas dinâmicas culturais em palavras e sentidos impostos pelo diretor? Como dar
conta da complexidade do encontro intercultural que gera o filme? Para lidar com essas
questões, a cineasta adota a locução em voz over como recurso principal. Justamente uma
estratégia notória pelo seu uso conservador, recorrente em filmes que impõem relações de
saber e poder entre quem filma e quem é filmado. Entretanto, o que temos nos comentários
em voz over de Naked Spaces é uma construção muito original de locução, compondo uma
polifonia de vozes, oriundas de diversas posições sociais e culturais, que expressam diferentes
saberes, sem nunca impor uma relação de hierarquia. Aqui importam tanto o conteúdo do que
é falado como o modo como é falado. Desse modo, a locução do filme elabora um espaço
discursivo que nivela no mesmo patamar asserções científicas, poéticas, subjetivas, a fim de
expressar uma postura teórica crítica e reflexiva. No capítulo três retornaremos a essa questão
apresentando uma análise mais completa da locução nesse filme específico.

Inicialmente podemos dizer que em seus filmes as relações entre forma e


conteúdo são inseparáveis. Talvez, em certo sentido, seja lícito dizer que tais relações são
sempre inseparáveis, mesmo que nem sempre sejam assim assumidas. Parece-nos
especialmente interessante como os filmes de Trinh T. Minh-ha deixam ver que não há, por
parte da cineasta, qualquer atitude que ignore a relação de poder existente entre aquele que
detém a prerrogativa de apontar a câmera e editar o material, orquestrando sentidos no
encadeamento de imagens e sons, e o lugar daquele que é filmado, tomado como objeto. O
que se coloca em sua filmografia não é o mero questionamento ou apenas a evidenciação de
lugares de discurso e de poder, mas a busca por um lugar outro, mais precisamente um outro
espaço, um intervalo, encontrado entre os polos já conhecidos e surgido do seu
tensionamento.
51

Em Reassemblage Trinh T. Minh-ha profere seu famoso aforisma: “Não pretendo


falar sobre, mas falar próximo17”, que funciona como uma espécie de declaração de intenções.
Uma afirmação de princípios que norteará todo o filme e, de certo modo, toda sua filmografia.
Podemos dizer, inclusive, que essa afirmação ultrapassa o filme em questão, se desloca para
seus textos teóricos, e se expande como uma reflexão acerca do cinema documentário, onde
prática e análise crítica caminham conjuntamente. Ao afirmar que pretende falar ao lado,
Minh-ha aponta a existência de uma posição outra, que não é o típico “falar sobre”, dominante
no documentário de fatura clássica, e nem mesmo o “dar a voz”, emergente a partir dos anos
1960 como forma de atribuir maior protagonismo aos sujeitos sociais retratados nos filmes.
Essas posições discursivas típicas do cinema documentário são criticadas por Trinh T. Minh-
ha em seu texto “The Totalizing Quest of Meaning”, já citado anteriormente, que foi
traduzido para português e integra o catálogo da mostra dos filmes da diretora ocorrida no
Brasil em 2015. Nesse texto ela desenvolve diversos tópicos relativos ao fazer
cinematográfico, especialmente aqueles relacionados ao campo do cinema documentário,
problematizando noções clássicas a esse domínio e mesmo noções modernas, que estavam
ainda sendo consolidadas nos estudos de cinema.

Para Minh-ha, no modelo clássico de documentário

O que é apresentado como evidência permanece evidência, quer o olho


observador se qualifique como subjetivo quer como objetivo. No cerne de tal
raciocínio reside, intocada, a divisão cartesiana entre sujeito e objeto, que
perpetua a visão de mundo dualista dentro-versus-fora, mente-versus-
matéria. A ênfase é novamente colocada no poder do filme de capturar a
realidade “lá fora” para nós “aqui dentro”. O momento de apropriação e de
consumo é ou simplesmente ignorado ou tornado cuidadosamente invisível,
de acordo com as regras do bom e do mau documentário. A arte de falar para
não dizer nada anda de mãos dadas com a vontade de dizer e dizer apenas
para confinar algo num significado. A verdade deve ser transformada em
algo vívido, interessante: ela tem que ser “dramatizada” se for para
convencer o público da evidência; é sua “confiança” em tal evidência que
permite que a verdade tome forma. (2015, p.35)

Sobre a noção de “dar voz” ao Outro, que a prática do documentário de cunho


social assume para si a partir da chegada da gravação do som sincrônico na década de 1960,
prática que acaba sendo desenvolvida como uma espécie de premissa do documentário

17
I do not intend to speak about, just speak nearby.
52

moderno, em direção a uma maior legitimidade na representação da alteridade, Minh-ha


declara

O cineasta de orientação social é, portanto, aquele que dá voz (aqui, num


contexto vocalizador que é totalmente masculino), aquele cuja posição de
autoridade na produção de significado continua como está, incontestada e
habilmente mascarada por sua missão justa. A relação entre o mediador e o
meio (ou a atividade de mediação) ou é ignorada – isto é, tida como
transparente, isenta de valores e tão inconsciente quanto um instrumento de
reprodução deve ser – ou, então, é tratada de modo mais conveniente:
através da humanização da reunião de evidências para promover o status
quo. (Claro, como todos os seres humanos, eu sou subjetivo, mas, apesar
disso, você deveria confiar nas evidências!) Bons documentários são aqueles
cujo assunto abordado é “correto” e com cujo ponto de vista o espectador
concorda. O que está envolvido aí pode ser uma questão de honestidade (em
relação ao material), mas é frequentemente também uma questão de adesão
(ideológica), portanto de legitimação. (2015, p.36)

O texto de Minh-ha aponta claramente seu entendimento em relação ao


documentário, tanto o de fatura mais clássica como o de fatura mais moderna, como sendo
resultado de um viés marcado por questões que refletem posicionamentos e lugares sociais.
Em síntese, para a cineasta, a posição discursiva nunca é neutra, mas marcada pelo lugar de
onde emana. O discurso, seja ele organizado em qual forma expressiva for, necessariamente
reflete um sujeito histórico, que fala de um lugar e tempo específicos. Assim, vemos que a
trajetória artístico-intelectual de Trinh T. Minh-ha encerra uma dimensão reflexiva acerca da
retórica do cinema documentário que problematiza as posições enunciativas e evidencia as
relações de poder.

A noção de reflexividade no documentário pode ser considerada uma das marcas


do adensamento da teoria dedicada especificamente a esta seara fílmica desde os anos 1980, e
foi bem desenvolvida por Bill Nichols, sendo tratada como um dos modos de representação
recorrentes no campo do cinema documentário. Segundo Nichols, essas categorias que ele
desenvolveu como modos de representação têm origem em uma distinção entre tipos de
endereçamento discursivos diretos e indiretos, ou expositivos e observativos, que foram
apresentadas pelo autor no seu Ideology and the Image (1991, p.182)

Há basicamente dois modos de endereçamento discursivo no documentário


(que são padrões de relações entre som e imagem que especificam “lugares”
53

um tanto diferentes ou atitudes para o espectador): endereçamento direto ou


endereçamento indireto, dependendo se o espectador está explicitamente
reconhecido como o sujeito a quem o filme é destinado. Cada um desses
modos pode então ser subdividido a depender do fato de o espectador ser
abordado por personagens (indivíduos representando seus papéis sociais fora
do filme) ou por narradores (indivíduos representando o ponto de vista do
próprio documentário, figuras substitutas, frequentemente, com interpretação
do próprio cineasta) e também se a narração é sincronizada com as imagens.

Ainda incipientes como categorias explicativas, os modos de endereçamento


discursivo propostos naquele momento por Nichols ainda não contemplavam o termo
“reflexivo” ou “reflexividade”. Posteriormente tais noções de endereçamento foram revistas e
refinadas por Julianne Burton no texto “Toward a History of Social Documentary in Latin
America”, presente na coletânea por ela organizada The Social Documentary in Latin
America (1990)18, incluindo a reflexividade como uma das linhas de força a orientar os tipos
de documentário. Ela estabelece a seguinte tipologia em relação ao cinema documentário: i)
expositivo, ii) observativo, iii) interativo e iv) reflexivo. Julianne Burton define o modo
reflexivo como sendo caracterizado por:

i) voz do cineasta no metacomentário, ii) imagens de “reflexão”, iii)


predominância de estratégias que geram consciência do aparato
cinematográfico. Enfatiza dúvida epistemológica, intervenção (de)formativa
do aparato cinematográfico. Constrói uma instância crítica em direção a
todos os outros modos de prática do documentário como um modo em si
mesmo. Questiona convenções da representação realista assim como o status
do conhecimento empírico, da experiência vivida, e processos de
interpretação interativa. (1990, p.5)

A proposição de Burton tem o grande mérito de ter apontado os quatro modos de


documentário principais, que seriam retomados por Nichols posteriormente, apesar do pouco
desenvolvimento e aprofundamento que marca o paradigma por ela proposto. Importante aqui
é destacar a citação ao filme Reassemblage como um exemplo para o modo reflexivo, ao lado
dos filmes Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929), Daughter Rites (Michelle
Citron, 1980), De grands événements et des gens ordinaires (Raoul Ruiz, 1978) e Unfinished

18
Burton credita a Bill Nichols “numerosas críticas e sugestões no desenvolvimento desse paradigma”,
resultando em aprimoramento da proposta final. Sobre isso, ver a nota 1 do capítulo Toward a History of Social
Documentary in Latin America, presente na coletânea The Social Documentary in Latin America (BURTON,
1990)
54

Diary (Marilú Mallet, 1982). Nichols retoma a tipologia proposta por Burton e a desenvolve
em seu Representing Reality (1991), onde ainda trabalha apenas com os quatro modos por ela
já assinalados. Neste seu primeiro esforço em descrever os modos de representação do
documentário, Nichols assim se refere ao modo reflexivo de representação,

A representação do mundo histórico torna-se, ela mesma, o tópico da


meditação cinemática no modo reflexivo. Ao invés de ouvir o cineasta
envolver-se unicamente em modo interativo (participativo, em modo de
conversação ou interrogativo) com outros atores sociais, agora vemos ou
ouvimos o cineasta engajado no metacomentário, falando a nós menos do
mundo histórico propriamente, como nos modos expositivo e poético ou
interativo e diarístico, do que sobre o processo de representação em si.
Considerando que boa parte da produção de documentários ocupa-se de falar
sobre o mundo histórico, o modo reflexivo endereça a questão do como
falamos sobre o mundo histórico. Como na exposição poética, o foco do
texto desliza do domínio da referência histórica para as propriedades do
texto em si. Exposição poética chama a atenção aos prazeres da forma,
reflexividade aos seus problemas. Ela internaliza muitas das questões e
preocupações que são objeto deste estudo, não como um modo de análise
retrospectiva secundária ou subsequente, mas como uma questão inadiável e
imediata na representação social mesma. Textos reflexivos são
autoconscientes não apenas em relação à forma e estilo, como são os
poéticos, mas também sobre estratégia, estrutura, convenções, expectativas e
efeitos. (1991, p.57)

Sobre a noção de modo reflexivo em particular, cabe aqui considerar que


reflexividade não é uma categoria surgida no seio da teoria cinematográfica. Para esclarecer
seus argumentos e levar adiante suas proposições, ainda em Representing Reality, Nichols
desenvolve uma exposição acerca do que são estratégias reflexivas.

Diferentes autores entendem diferentes coisas por reflexividade. Uma


preocupação primária aqui é diferenciar as dimensões políticas e formais da
reflexividade. Estas não são alternativas, mas diferentes maneiras de
inflexionar e ver um dado conjunto de operações. Nos termos descritos aqui
um mesmo dispositivo (referenciado ao espaço fora de quadro da imagem ou
ao reconhecimento da presença e poder do cineasta, por exemplo) começara
como uma operação formal que perturba normas, altera convenções, e atrai a
atenção do espectador. Em certas circunstâncias ela também será
politicamente reflexiva, chamando nossa atenção para as relações de poder e
hierarquia entre o texto e o mundo. (1991, p. 69)
55

Nichols relaciona ainda os tipos mais conhecidos de operações formais associadas


à reflexividade, considerando serem duas: (1) Reflexividade política, “que opera
primariamente na consciência do espectador, ‘elevando-a’ no vernáculo da política
progressiva, descentralizando-a em uma política Althusseriana em busca de alcançar uma
consciência rigorosa de comunalidade (1991, p. 69)”, e (2) Reflexividade formal, que pode ser
separada em cinco categorias: a) Reflexividade estilística - onde estariam “agrupadas aquelas
estratégias que quebram convenções recebidas. Tais textos introduzem gaps, reversões e
viradas inesperadas que chamam a atenção para o trabalho do estilo e colocam as obsessões
do ilusionismo entre parênteses.” (ibid., p.70). b) Reflexividade desconstrutiva - “o objetivo
aqui é alterar ou contestar códigos ou convenções dominantes na representação documentária,
chamando, desse modo, a atenção à sua convencionalidade. A tensão está menos nos efeitos
de estilo do que na estrutura, e, ainda que estratégias estilísticas possam ser utilizadas, o efeito
central é o de conscientizar sobre o que antes parecia natural ou tinha sido dado como certo.
(ibid., p.72). c) Interatividade – “Esse modo de representação documentária possui o potencial
de ter um efeito de elevação de consciência, chamando a atenção para a singularidade de
filmar eventos onde o cineasta está longe de ser visto e nos encorajar a reconhecer a natureza
situada da representação documentária. (ibid., p.73). d) Ironia – “representações irônicas
inevitavelmente têm a aparência de falta de sinceridade, uma vez que aquilo que foi realmente
dito não significa exatamente o que aparenta. Aquele que é irônico diz uma coisa, mas quer
dizer o oposto.” (ibid, p.73). e) Paródia e sátira - “Paródia pode provocar conscientização
sobre um estilo, gênero, ou movimento, anteriormente dados como certos; sátira é um
dispositivo para afiar a consciência sobre uma atitude social problemática, valor, ou situação.”
(ibid., p.73).

Posteriormente os modos do documentário seriam desenvolvidos e mais bem


acabados pelo autor em seu Introduction to documentary (2001), chegando então a seis
modalidades: i) poético, ii) expositivo, iii) participativo, iv) observativo, v) reflexivo e vi)
performático. Neste livro Nichols refina a descrição do modo reflexivo, chegando à seguinte
formulação

Se, no modo participativo, o mundo histórico provê o ponto de encontro para


os processos de negociação entre cineasta e participante do filme, no modo
reflexivo, são os processos de negociação entre cineasta e espectador que se
tornam o foco de atenção. Em vez de seguir o cineasta em seu
relacionamento com outros atores sociais, nós agora acompanhamos o
56

relacionamento do cineasta conosco, falando não só do mundo histórico


como também dos problemas e questões da representação. (2007, p. 162)

Se compararmos a descrição do modo reflexivo em Representing Reality (1991)


com Introduction to Documentary (2001), notaremos algumas diferenças. Na formulação
original de 1991 o foco do autor recaiu mais sobre a forma, sobre como a reflexividade
implicaria nas questões de estratégias de registro de imagem e som, resultando na renovação
ou revisão de procedimentos fílmicos determinados. Dito de outro modo, nessa visão a
reflexividade seria perceptível por meio do recurso específico de estratégias fílmicas
inovadoras onde as convenções clássicas são alvo de rejeição ou de experimentação. No
limite, esta formulação poderia levar à consideração de exemplos meramente maneiristas,
onde a forma se impôe ao conteúdo como um fim em si mesmo, sem a dimensão mais
sensível da reflexividade. Na formulação definitiva de 2001, o autor inclui além da questão
formal a relação com o espectador, enfatizando que a reflexividade não se atém apenas às
questões relativas às opções imagéticas e sonoras do filme, mas implicam questões da sua
retórica. Questões que atravessam suas opções discursivas, consideradas aqui para além das
opções formais das articulações de imagem e som, passando ao nível da estrutura, onde se
incluem as negociações entre posições e lugares de poder. Para ilustrar o modo reflexivo
nessa última formulação, Nichols recorre ao filme Reassemblage. Para o autor,

a declaração de Trinh T. Minh-ha, de que vai ‘falar próxima’ da África, em


vez de falar ‘sobre a África’, simboliza a mudança que a reflexão produz:
consideramos como representamos o mundo histórico e também o que está
sendo representado. Em lugar de ver o mundo por intermédio dos
documentários, os documentários reflexivos pedem-nos para ver o
documentário pelo que ele é: um construto ou representação19. (2007, p. 163)

A modalidade do documentário reflexivo proposta por Nichols pode ser


considerada como uma das contribuições mais relevantes para a crítica e análise de
documentários não-convencionais, que desafiam os cânones do documentário clássico. Com a
emergência de novos sujeitos no campo do documentário, sujeitos esses ligados a realidades
sociais antes marginalizadas e que passaram a ter acesso a possibilidades tecnológicas que os
inserem em uma arena mais ampla de trocas simbólicas, antes dominada majoritariamente por

19
Itálicos do texto original
57

filmes de fatura mais convencional e oriundos de modelos de produção mais hegemônicos, a


ideia de reflexividade no cinema documentário ganhou ampla repercussão no campo teórico
nas últimas décadas, acompanhando o crescimento na produção e circulação de filmes que
podem ser associados a modelos originais de produção, onde a autoconsciência ou
reflexividade por parte do cineasta ganha importância central.

A noção de reflexividade ganhou dimensão em diversas disciplinas das


humanidades e das artes desde a segunda metade dos anos 1960, constituindo um tema
recorrente a partir dos anos 1980. Entre as áreas que se debruçaram sobre a questão, além da
discussão especificamente dedicada ao documentário que estamos apresentando aqui,
podemos destacar o campo das ciências sociais. Como já apresentamos anteriormente,
interessa-nos uma aproximação em relação à antropologia para uma análise da filmografia de
Trinh T. Minh-ha, uma vez que entendemos estarem seus filmes situados em um espaço entre
áreas, espaço este particularmente adequado a uma problematização a partir de contribuições
teóricas advindas de ambos os campos. Acreditamos que investigar a relação entre o cinema e
a antropologia pode oferecer um viés interessante de análise, o qual buscaremos desenvolver
mais adiante. Por ora, precisamente em relação ao tópico da reflexividade, tiraremos aqui
proveito de alguns apontamentos oriundos dos círculos interessados na antropologia visual.

2.2 Reflexividade

Jay Ruby, antropólogo norte-americano ligado aos estudos do cinema com viés
antropológico e etnográfico, escreveu sobre a reflexividade no cinema documentário, com
foco mais propriamente no que ele denomina de cinema antropológico, em textos publicados
desde meados da década de 1970 e que circularam em versões revistas posteriormente,
inclusive em publicações ligadas aos estudos de cinema, especificamente dedicadas ao
documentário. Seu texto “The Image Mirrored: reflexivity and the documentary film”,
publicado inicialmente no Journal of the University Film Association, em 1977, foi
republicado posteriormente na coletânea New Challenges for Documentary, organizada por
Alan Rosenthal e John Corner, em 1988. O texto “Exposing Yourself: reflexivity,
anthropology, and film”, publicado inicialmente em 1980, foi revisto e republicado em 2000,
na coletânea Picturing Culture: explorations of film and anthropology, que reuniu textos de
sua autoria. Ambos os textos são próximos entre si e apresentam pequenas variações e
58

revisões dos argumentos, sem maiores novidades entre as versões, sendo a publicada em 2000
a mais desenvolvida.

Para Ruby,

ser reflexivo, em termos de trabalho antropológico, é insistir sistemática e


rigorosamente que os antropólogos revelem sua metodologia e a si mesmos
como instrumentos de geração de dados e reflitam como o meio através do
qual eles transmitem seu trabalho predispõe leitores/espectadores a construir
o significado do trabalho em certas maneiras. (2000, p.152)

Esta passagem permite ver como Ruby estava informado sobre as questões
emergentes acerca da autoconsciência do antropólogo como alguém que agencia uma prática
de sentido relativa a alteridade. Uma condição que deveria ser evidenciada em favor de uma
prática reflexiva, adequada a questões epistemológicas importantes da disciplina naquele
momento, de modo que essa disciplina pudesse legitimar seus processos como científicos.
Tais preocupações avançavam desde a década de 1950 e teriam no seminário Writing Culture
(1982) um ponto culminante para colocar a chamada “virada linguística” em evidência na
antropologia, reunindo argumentos em favor da problematização dos processos da escrita
etnográfica, enaltecendo seu caráter estético e poético. Voltaremos a este tópico mais adiante.

Apesar de reconhecer a reflexividade como uma categoria produtiva na


antropologia contemporânea, Jay Ruby defende uma certa pureza baseada no isolamento de
uma comunidade de especialistas e critérios rígidos para a realização do cinema
antropológico, sob pena de este domínio se esvair em contato com outras práticas expressivas
do campo cinematográfico.

... o cinema etnográfico deveria ser uma província exclusiva de antropólogos


interessados em fazer etnografia pictórica. Embora isso pareça relativamente
simples, as consequências poderiam ser de os antropólogos se divorciarem
do atual mundo da prática do documentário/filme etnográfico e dos suportes
tradicionais que evoluíram para a realização de um filme etnográfico (que é
a ideia de que o filme é uma ajuda importante para o ensino ou que o filme
atingirá uma audiência maior) e produzir trabalhos que confundam sua
audiência. (RUBY, 2000, p.239).
59

Apesar dessa visão conservadora e corporativista sobre o uso do cinema na


antropologia, Ruby, que concentra seus argumentos em direção ao cinema documentário
buscando encontrar validação para o que ele se esforça em conceituar como cinema
antropológico, considera que, se a antropologia for examinada em termos de reflexividade
então o filme assume um papel particular no processo de comunicação dessa disciplina.

Ora, mesmo Ruby sendo um notório defensor de regras rígidas em relação ao


filme etnográfico, a passagem citada acima nos permite ampliar o escopo e explorar a noção
de que, ao passo em que a antropologia preocupava-se em refletir sobre sua retórica e as
relações de poder inerentes ao processo de escrita etnográfica, o cinema passava a ter lugar
cada vez mais importante no processo de interpretação da realidade e de escrita etnográfica,
conduzidos tanto no âmbito da antropologia, como faz crer os textos de Ruby, quanto no
âmbito do cinema preocupado em representar as questões culturais.

Em uma crítica a essa postura que buscava atrelar o filme etnográfico, ou o


cinema antropológico como quer Ruby, a normas e convenções estritas ligadas ao domínio da
antropologia cultural, Bill Nichols apontou, no texto “The Ethnographer’s Tale”, publicado
originalmente na Visual Anthropology Review em 1991 (e republicado algumas vezes
posteriormente), novas dimensões que ele considerava como emergentes de um certo estado
de coisas no campo do filme etnográfico, objeto privilegiado da antropologia visual, e que
deveriam ser norteadoras de novos paradigmas para a consideração do cinema de cunho
antropológico naquele momento histórico. Nas palavras de Nichols (1994, p. 68): “Eu quero
sugerir que aquilo que requer esforço articulado não é a redenção do filme etnográfico do seu
aparente estado decadente, mas elevar a exploração e utilização das suas dimensões materiais
e experienciais. Eliminar a perpetuação da ambivalência da representação da experiência, do
corpo e do Outro seria um importante passo adiante.” Mais a frente ele continua com sua
crítica e com seus apontamentos em relação aos caminhos que enxergava para o campo do
filme etnográfico. Citando um livro de Linda Williams sobre o cinema pornográfico hardcore,
em que a autora cunhou o termo pornotopia para designar um modo de recusa ao binarismo
identificado nas posições a favor ou contra a pornografia, Nichols propõe o termo etnotopia
que

poderia dispersar experiência e conhecimento muito além das narrativas


binárias, realistas, canônicas dos contos clássicos dos etnógrafos. Mais do
que dispensar o filme etnográfico de falhar em preencher critérios de
validação antropológica (geralmente inespecificados) baseados em uma
concepção de antropologia como ciência e disciplina profissional queremos
60

ir além, como faz Williams, em direção a uma etnotopia que não abolirá a
experiência, o corpo e o conhecimento do seu ventre, mas os afirmará.
(1994, p.69)

Dando continuidade à sua análise das rupturas de paradigmas e mudanças que


ocorriam naquele momento histórico e que estavam sendo percebidas no campo da produção
das imagens animadas, dentre as quais podemos destacar movimentos e linhas de forças
vindas dos processos culturais associados às lutas de descolonização, por exemplo, Nichols
vai propor uma reinterpretação das estratégias de representação visual, que deveriam passar
necessariamente por questões epistemológicas. Para ele

Se o status do filme etnográfico dentro da antropologia assinala uma tensão


dentro do campo como um todo em termos de teoria epistemológica e modos
de representação, o status do Forest of Bliss de (Robert) Gardner e dos
filmes de Trinh T. Minh-ha, assinalam uma tensão dentro da antropologia
visual entre os cânones de validação das ciências sociais e os modos de
interpretação da teoria cultural. Até agora houve diálogo mínimo entre esses
dois campos desde que antropologia e teoria cultural, assim como os estudos
de comunicação e os estudos de cinema, ocupam lugares muito distintos
dentro da academia norte-americana: sendo o primeiro mais circunscrito a
tradição das ciências sociais apegadas à interpretação de dados, e a última
dentro de uma tradição de interpretação hermenêutica das humanidades. A
adoção de estratégias reflexivas e centradas no texto em muitas formas de
representação interculturais ainda terão que ser equiparadas por uma adoção
comparável da teoria cultural na crítica do filme etnográfico. (NICHOLS,
1994(b), p.80)

Acreditamos que essa necessária revisão epistemológica, apontada por Nichols no


sentido de repensar o campo da representação cultural no cinema desde outros marcos
teóricos e a partir da valorização do cinema como meio privilegiado para expressar a
reflexividade na antropologia, corrobora nossa proposta de aproximação entre o cinema e a
antropologia tendo em Trinh T. Minh-ha um exemplo emblemático de diálogo original entre
tais campos. Ou, se quisermos, de diálogo entre arte e ciência, no sentido de encontrar no
cinema uma contribuição original para pensar problemas da antropologia, sem necessitar para
isso circunscrever o filme dentro de regras e ditames rígidos de validação cientificista. Desse
modo oferecemos uma resposta para a proposição de Ruby que citamos mais acima, onde o
autor defende a prática do filme etnográfico como exclusiva para antropólogos. Em outras
palavras, se a reflexividade marca a antropologia moderna, sendo uma das linhas de força a
61

levar ao questionamento de alguns dos marcos conceituais e metodológicos fundadores da


disciplina, e se em termos de reflexividade temos no filme um meio particular para dar
visibilidade aos procedimentos de sua busca por parte da antropologia contemporânea,
podemos intuir que, caso consideremos lícito que o cinema não depende da antropologia para
representar a realidade cultural, não está na validação de procedimentos científicos a
legitimidade do cinema antropológico. Mas, talvez, possamos dizer que é sim o cinema o
meio mais adequado para apresentar a reflexividade na antropologia, reflexividade esta que
está relacionada a questões éticas e estéticas, que são evidenciadas pela etnografia – seja ela
escrita ou audiovisual, mas que encontram no cinema os meios adequados para dar conta de
uma realidade cada vez mais complexa e intercultural. Para além do cinema, acreditamos que
Trinh T. Minh-ha oferece instrumentos consequentes para se pensar as questões apontadas por
Nichols, uma vez que ela é também uma voz ativa no campo da teoria cultural que ele aponta
em seus argumentos. Voltaremos à questão de sua posição enquanto acadêmica e teórica no
desenvolvimento desta pesquisa.

Insistindo na discussão sobre reflexividade e antropologia, voltemos a J. Ruby e à


sua maneira de identificar como uma questão central para a disciplina o fato de antropólogos
raramente considerarem o trabalho de campo um objeto de estudos sério, mas que, entretanto,
este método é tacitamente aceito como elemento central para a atividade antropológica.
Fazendo referência ao trabalho dos antropólogos George Marcus e James Clifford (1986),
Ruby considera que “mesmo o interesse nas ‘etnografias como texto’ se concentraram em
etnografias como produtos acabados e não em uma exploração do processo da investigação
etnográfica.” (2000, p. 158). Todavia, ainda que naquele momento o interesse em discutir o
método etnográfico não tivesse gerado etnografias que refletissem as problematizações que
eram levantadas no campo epistemológico, um dos efeitos dessa crítica, ou autocrítica dentro
da própria área, foi o de admitir que a etnografia se estende, enquanto método, para além da
antropologia e que a cultura não era um objeto exclusivo dos seus domínios. Segundo
Clifford, “etnografia é um fenômeno interdisciplinar emergente. Sua autoridade e retórica se
espalharam por muitos campos onde ‘cultura’ é um objeto problemático recente de descrição
e crítica.” (1986, p.3)

No texto “Sobre a autoridade etnográfica”, publicado originalmente em 1983,


Clifford elabora seus argumentos sobre a crítica à escrita etnográfica na antropologia,
contribuindo para o cenário de autorreflexão que se adensava na disciplina. Ele reconhece os
movimentos que tensionavam o seu campo de atuação, enfatizando que trabalhos oriundos de
62

realidades culturais diversas, visíveis no cenário pós-colonial, traziam a uma posição de


protagonismo discursos antes omitidos, revelando novos métodos e epistemologias, de tal
modo que

se a escrita etnográfica não pode escapar inteiramente do uso reducionista de


dicotomias e essências, ela pode ao menos lutar conscientemente para evitar
representar ‘outros’ abstratos e a-históricos. É mais do que nunca crucial
para os diferentes povos criar imagens complexas e concretas uns dos outros,
assim como das relações de poder e de conhecimento que os conectam; mas
nenhum método científico soberano ou instância ética pode garantir a
verdade de tais imagens. Elas são elaboradas – a crítica dos modos de
representação colonial pelo menos demonstrou bem isso – a partir de
relações históricas específicas de dominação e diálogo. (2000, p.19)

Consideramos que esta passagem de Clifford apresenta dois elementos centrais


para a ênfase crítica em relação ao método etnográfico então em curso na antropologia, cujo
resultado foi deslocar tal método de um lugar estável no centro de sua disciplina privilegiada
para lugares outros, em que outros discursos, outros pontos de vista, outros sujeitos elaboram
narrativas partindo de diferentes posições em relação àquelas historicamente permitidas e
consolidadas nos discursos convencionais. Como consequência, visibilidade é dada a
intervalos entre as dicotomias polarizadas dos lugares anteriormente estáveis e hierarquizados
entre velhas posições de poder. Em primeiro lugar nos interessa o argumento de que os
“diferentes povos devem criar imagens concretas e complexas uns dos outros” e, em segundo,
o de que “nenhum método científico soberano ou instância ética pode garantir a verdade de
tais imagens” (2000, p.19). Em relação a tais argumentos, consideramos que Trinh T. Minh-
ha aparece, ao lado de nomes importantes dos chamados estudos pós-coloniais, como Gayatri
Spivak e Homi K. Bhabha, por exemplo, como um nome de destaque nesse cenário em que
outros sujeitos assumem o protagonismo, elaborando discursos em outras chaves de
interpretação da cultura e da alteridade.

Em Reassemblage a primeira fala de Trinh T. Minh-ha na locução em voz over


assevera: “menos de vinte anos foram necessários para fazer com que dois bilhões de pessoas
se definissem como subdesenvolvidas. Eu não pretendo falar sobre, mas falar próximo”. Com
estas poucas e certeiras palavras, Trinh T. Minh-ha posiciona-se decisivamente em relação à
parcela do mundo que ela apresentará no desenrolar de seu filme inaugural, o Senegal. No seu
registro desse mundo, marcado pelo legado do colonialismo e da exploração, a cineasta vai
63

deixar clara sua postura de falar próximo, uma postura ética que será traduzida decisivamente
na estética do filme. Situada justamente na abertura, essa passagem tem em si a potência de
uma declaração de princípios definidora de um lugar de discurso sobre a alteridade, lugar esse
que está longe de ser convencional. Trata-se de uma postura alinhada a essa parcela de mundo
com a qual ela irá entreter sua experiência fílmica. De algum modo, a cineasta está ela própria
posicionada no eixo dessa parcela que, definida como subdesenvolvida por força dos
discursos hegemônicos, tornou-se objeto de descrições que ignoram suas especificidades em
favor de generalizações e objetificações. Ao buscar falar próximo – e não sobre ou em nome
de -, a cineasta relativiza seu discurso de modo a refletir sobre as posições de autoridade
tipicamente encontradas nas representações tradicionais da cultura. Assim como nesse filme,
temos no livro Woman, Native, Other – writing postcoloniality and feminism, publicado por
Minh-ha em 1989, uma importante contribuição surgida nesse momento de evidência de
movimentos de renovação nos estudos culturais, propondo novos problemas e novas
interpretações para temas como a questão da identidade, do feminismo e da etnicidade.

Em uma nota de rodapé do já citado “Sobre a autoridade etnográfica” (2000), ao


explicar o recorte pelo qual optou para problematizar seu objeto de escrutínio, James Clifford
assinala outro elemento que nos interessa levar adiante em nossa pesquisa sobre Trinh T.
Minh-ha. O autor (2000, p.60), afirma:

minha discussão se mantém nos limites de uma ciência cultural realista


elaborada no Ocidente, embora em suas fronteiras experimentais. Mais
ainda: ela não está considerando aqui como áreas de inovação os gêneros
‘paraetnográficos’ da história oral, do romance não-ficcional, o ‘novo
jornalismo’, a literatura de viagem e o filme documentário.

Esta observação do autor nos indica a viabilidade de pensar as relações entre os


campos do cinema e da antropologia em uma nova chave de interpretação, chave esta que
considere a legitimidade do cinema como forma de contribuir para uma renovação das
práticas e instrumentos da antropologia.

Com efeito, consideramos que o cinema de Trinh T. Minh-ha, ao menos na porção


inicial de sua filmografia, emerge de um intervalo entre os campos da antropologia e do
cinema, que permite lançar luzes para ambos os domínios simultanemente, oferecendo
contribuições para, por um lado, pensar de modo inovador questões emergentes no campo da
64

antropologia - estamos pensando em como a antropologia aponta uma certa “crise na


disciplina”, a partir de uma virada linguística (Marcus & Clifford, 1986) - e do outro, pensar
questões emergentes da tradição do documentário – como a própria questão da reflexividade
tomada como uma das características mais vigorosas dessa prática expressiva em seu período
recente, e mais precisamente a questão da relação da ética e da estética. O cinema, nos parece,
mostrou-se um meio privilegiado para dar uma resposta à observação de Ruby ao afirmar que,
mesmo após a chamada virada linguística, a antropologia continua a se basear em etnografias
escritas acabadas e não no processo.

Com seus meios expressivos, o cinema pode apresentar o processo do trabalho de


campo, a coleta de dados, o encontro intercultural, a posição do observador, enfim, dar conta
de um processo, ao apresentar uma estética do caderno de campo de um modo que a
etnografia escrita não consegue. O cinema pode elaborar uma espécie de caderno de campo
cinematográfico, um caderno de campo exposto, aberto, reflexivo por princípio. Acreditamos
que Reassemblage, o primeiro filme de Trinh T. Minh-ha é um exemplo cabal dessa
possibilidade. Possibilidade de tomar o cinema como meio expressivo apto a desenvolver uma
forma de etnografia experimental. No desenrolar desta pesquisa esperamos expor os
argumentos que demonstrem essa nossa hipótese.

No âmbito dos estudos de cinema Trinh T. Minh-ha tem, como já vimos, sua
produção cinematográfica frequentemente associada à categoria da reflexividade. Para ela,

Com os diferentes desafios lançados hoje ao próprio processo de produzir


uma interpretação ‘científica’ da cultura, assim como de tornar o
conhecimento antropológico possível, membros dessa comunidade
orientados para o domínio visual inventaram uma posição epistemológica na
qual a noção de reflexividade é tipicamente reduzida a uma questão de
técnica e método. Igualada a uma forma de autoexposição comum no
trabalho de campo, a reflexividade é algumas vezes discutida como
autorreflexividade e, outras, condenada como um idealismo individualista,
precisando ser desesperadamente controlado para que o realizador individual
não ganhe mais importância do que a comunidade científica ou as pessoas
observadas. Portanto, ‘ser reflexivo é virtualmente sinônimo de ser
científico’20. (2015, p. 46)

20
Nestas aspas Trinh cita RUBY, Jay. “Exposing Yourself: reflexivity, anthropology and film”.
65

Aqui, Minh-ha deixa clara sua crítica em relação à postura que elenca
procedimentos técnicos ou narrativos que são tomados como meios de legitimar a
reflexividade como instância científica central tornando-a uma camisa de força ou um
maneirismo, destituindo-a de dimensão crítica ou, mais precisamente, desvinculando-a de
uma posição autocrítica. Segundo seus argumentos, a reflexividade, desse modo, serve como
mais um instrumento para coletar e categorizar, autorizando o sistema que compreende as
forças e autoridades do discurso a exercerem sua prerrogativa de representação da cultura de
um lugar construído como legítimo para tal. Segundo ela,

O ‘cerne’ da representação é o intervalo reflexivo. É o lugar no qual o jogo


dentro do quadro textual é um jogo com esse próprio quadro, portanto na
linha limítrofe entre o textual e o extratextual, em que um posicionamento
interno incorre constantemente no risco de se des-posicionar, e em que a
obra, nunca livre de contextos históricos e sócio-políticos e nem inteiramente
sujeita a eles, apenas pode ser ela mesma correndo constantemente o risco de
nada ser. (TRINH, 2015, p. 48-49)

2.3 A poética do documentário

Avançaremos agora em direção a um debate ligado à teoria do cinema


documentário, sendo que, para seguirmos adequadamente em nossas propostas, cabe aqui
apresentar brevemente as principais vertentes existentes nesse campo. No universo acadêmico
anglo-saxônico as últimas décadas viram um crescimento expressivo de propostas teóricas
envolvendo o filme de não-ficção. Dentre estas, duas se destacaram, tanto pelo volume de
teóricos e trabalhos publicados quanto pelo antagonismo que caracterizava os princípios
norteadores de suas especulações: a corrente cognitivista-analítica, que, dito de modo bastante
geral, busca afirmar a especificidade do cinema de não-ficção, e a pós-estruturalista, que, ao
contrário, enfatiza a sua não-especificidade, borrando as fronteiras entre a ficção e a não-
ficção.

Para uma definição mais precisa em relação às premissas da linha cognitivista-


analítica, Fernão Ramos (1991) esclarece que

O pensamento analítico que assume a possibilidade de uma definição do


campo documentário, trabalha basicamente com dois conceitos centrais: o de
"proposição assertiva"e o de "indexação". O primeiro designa o campo
66

documentário como aquele onde o discurso fílmico é carregado de


enunciados que possuem a característica de serem asserções, ou afirmações,
sobre a realidade (1991, p.5)

O autor complementa explicando o conceito de indexação, enfatizando que

É importante não confundi-lo com "indicialidade", que designa uma


potencialidade da imagem bastante distinta. Por indexação, entenda-se um
conceito que aponta para a dimensão pragmática, receptiva, do
documentário. A idéia é que, ao vermos um documentário, em geral temos
um saber social prévio, sobre se estamos expostos a uma narrativa
documental ou ficcional. Como espectadores, fruimos a narrativa em função
deste saber prévio. (1991, p.6)

Em relação à vertente pós-estruturalista, vamos recorrer novamente a Ramos para


uma exposição de seus princípios gerais. Segundo ele

A linha mais corriqueira deste raciocínio, desenvolve-se dentro de uma


postura que valoriza o desafio a normas estabelecidas. Negar o campo
documentário, equivale aqui a estabeler uma ruptura. O documentário é visto
como um campo tradicional, com regras a serem seguidas. Extrapolar estas
fronteiras é um atestado de inventividade e criatividade (1991, p.2)

As diferentes concepções teóricas acerca do cinema documentário dessas


vertentes levou a uma querela entre autores importantes para esta área de estudos. Pela
vertente cognitivista-analítica temos Noel Carroll, que tece críticas endereçadas à vertente
pós-estruturalista em seu texto “Nonfiction Film and Postmodernist Skepticism”, publicado
no livro Post-Theory – reconstructing film studies, por ele organizado ao lado de David
Bordwell em 1996. Para Carroll, os teóricos da vertente pós-estruturalista defendem a
desconstrução da distinção entre não-ficção e ficção utilizando argumentos que não se
sustentariam a exames mais rigorosos de demonstração. No texto citado, o autor dedica-se a
questionar e refutar os argumentos da vertente pós-estruturalista fazendo referências
diretamente a Michael Renov e Bill Nichols. Sobre Renov, entre outras coisas, ele escreve
67

A hipótese de Renov para o alegado status ficcional do filme de não-ficção –


a verdade sobre a não-ficção, como ele coloca – é supostamente baseado em
algo mais profundo do que técnicas narrativas compartilhadas entre ficção e
não-ficção. Seguindo o historiador pós-modernista Hayden White, Renov
sustenta que o cinema de não-ficção (como a história para White) é
tropológico e, consequentemente, ficcional. O que isso significa e por que
alguém acreditaria nisso? (1996, p.287)

Em relação a Bill Nichols, do mesmo modo, Carroll aponta o que considera


fragilidades em relação aos argumentos deste autor acerca do cinema documentário.

Resumindo as propostas de Nichols, a objetividade no documentário é


impossível devido ao fato de que eles negam seu próprio processo de
construção (e os efeitos formativos), e/ou eles fazem premissas, incluindo
estas: que os fatos são autoevidentes; que retórica é uma parte apropriada da
representação e que documentários têm a capacidade de mover espectadores
a aceitar aquilo que os foi mostrado como sendo verdade. Todos os
documentários caem em conflito com essas acusações e, de fato, todas essas
acusações realmente se acumulam para desafiar a objetividade? Minha
resposta para ambas as questões é “não”. (1996, p.287)

Em um texto originalmente apresentado no encontro Visible Evidence de 1997, e


posteriormente publicado com o título “Documentary Disavowals and the Digital”, no livro
The subject of documentary, que reuniu artigos e ensaios de sua autoria, publicado em 2004,
Michal Renov cita o texto de Noel Carroll ao qual fizemos referência mais acima,
respondendo às provocações.

Em um recente ensaio, Noel Carroll estabelece como meta a refutação do


que ele chama “ceticismo sobre a possibilidade de se produzir imagens
animadas que estejam genuinamente a serviço do conhecimento.” Carroll
defende a eficácia dos protocolos de investigação estabelecidos para os
documentaristas que garantem terem eles, assim como campos afins,
notoriamente os físicos, “padrões de objetividade para se sustentar” (Renov,
2004, p.136-137)

Mais adiante, fazendo referência às críticas recebidas de Carroll, Renov continua


68

O tom de Carroll é o do filósofo reprovador, repreendendo o inculto. Mas é


importante notar que o ceticismo no seio da teoria do documentário ao qual
Carroll de modo tão depreciativo se refere (o título do seu ensaio é “cinema
de não-ficção e ceticismo pós-moderno”) – longe de estar meramente na
moda e ser ilegítimo – pode reivindicar um pedigree filosófico (por exemplo,
Heraclito, Sócrates, Montaigne) pelo menos tão antigo e distinto como o seu
próprio. (Renov, 2004, p.137)

Tendo em vista muito do que já foi apresentado até aqui em relação ao cinema de
Trinh T. Minh-ha, não é difícil notar como os pressupostos com os quais ela trabalha estão
adequados à vertente pós-estruturalista. Isso pode ser respaldado pela seguinte colocação de
Ramos, que toca em um dos pontos centrais relacionados ao seu cinema, que é a questão da
reflexividade, tema sobre o qual trabalhamos mais acima neste capítulo.

O ponto de vista contrário à possibilidade de definição do campo


documentário, costuma trazer em seu âmago um outro argumento caro ao
pensamento contemporâneo: a questão da reflexividade do discurso
cinematográfico. Em geral, o discurso que tem na reflexividade seu ponto de
fuga ético, é sustentado pela negação da possibilidade de uma representação
objetiva do real. Encontramos, no horizonte, novamente a preocupação do
pensamento contemporâneo em frisar a fragmentação da subjetividade que
sustenta a representação (1991, p.2)

Diante do exposto, encontramos em autores associados à vertente pós-


estruturalista o quadro teórico que julgamos adequado para investigar o cinema de Trinh T.
Minh-ha, especificamente a partir de algumas proposições de Michael Renov que,
infelizmente, ainda não tiveram muita repercussão nos estudos do documentário no Brasil,
mas que nos parecem as mais interessantes para se pensar esse domínio cinematográfico em
sua especificidade a partir de sua tradição evolutiva enquanto gênero.

Como se sabe, Michael Renov é, ao lado de Bill Nichols, um dos expoentes dos
estudos de cinema documentário na academia anglo-saxônica na vertente pós-estruturalista.
Seu nome está diretamente ligado aos principais eventos dedicados ao gênero e sua
contribuição pode ser percebida fortemente pelo trabalho junto à coleção de livros da Visible
Evidence, série que ele coorganiza como resultado dos eventos homônimos dedicados aos
estudos do documentário. Além desse trabalho que tem resultado em uma importante
institucionalização desse campo de estudos, Renov tem uma proposição muito interessante
69

para pensar a tradição dessa seara cinematográfica, que consideramos a mais produtiva para a
análise da produção fílmica de Trinh T. Minh-ha. Renov trabalha com a noção de modos,
modalidades ou funções do documentário, que podem ser identificados por certas linhas de
força que podem ser pensadas de forma isolada ou conjugada, fornecendo um instrumental
eficiente para se pensar filmes que são formalmente instigantes e que se utilizam de
estratégias narrativas originais e desafiadoras.

Em um texto publicado em 1986 na revista Wide Angle, intitulado “Re-thinking


Documentary: toward a taxonomy of mediation”, Michael Renov apresenta alguns
argumentos preliminares para pensar os modelos de documentário a partir da noção de
intercessão, que são “as mediações necessárias que ocorrem durante a passagem do texto da
história para o espectador” ( Renov, 1986, p.72). A fim de esclarecer sua argumentação, o
autor apresenta sua definição de mediação, que

pode então ser vista como um local tanto de conjuntura como de


diferenciação ou fricção entre fenômenos relacionados, de fato, uma zona
relacional. No caso do documentário, quatro locais distintos ou instâncias
significativas são distinguíveis sendo que, em sua interação, criam o efeito
de sentido do filme documentário: o “real” histórico, o pró-fílmico, o texto e
o espectador. (1986, p.72)

Para Renov, duas intercessões principais poderiam ser suscitadas entre esses
locais: uma que se dá na passagem do “real” histórico para o pró-fílmico, ou seja, que se dá
no ato da filmagem – o que inclui a relação entre câmera e sujeitos filmados – e a passagem
para o registro das imagens técnicas. E ele continua, (1986, p.72), “tais questões –
performance para a câmera e os efeitos intrusivos do processo de filmagem – constituem um
locus de mediação, uma fonte em potencial de intercessão dentro da identidade tida como
definitiva do comportamento cotidiano e o material pró-fílmico.”

A segunda intercessão se dá nos

interstícios do pró-fílmico e do texto, e constitui sem sombra de


dúvidas o mais complexo e variado campo de intercessão. O primeiro
conjunto de termos de mediação neste segundo grupo principal
envolve o domínio da imagem apenas e inclui questões de figuração e
70

de edição, enquanto que o segundo é pertinente à relação entre som e


imagem, especificamente com as funções da música e da locução.
(1986, p.75)

Os argumentos de Renov relacionados à mediação como noção necessária para


analisar o documentário em sua dimensão retórica vão se desenvolver, dando origem a uma
classificação das tendências do documentário, que foram apresentadas no texto, anteriormente
citado, “Toward a Poetics of Documentary”, publicado no livro Theorizing documentary, que
o próprio autor organizou em 1993.

No texto em questão, Renov apontou algumas linhas de força, identificadas como


princípios de construção, função e efeitos específicos do campo do documentário: i) registrar,
revelar ou preservar, ii) persuadir ou promover, iii) analisar ou interrogar e iv) expressar. Tais
características são a base de sua proposta de uma poética do documentário.

Essas tendências foram aperfeiçoadas posteriormente e podem ser encontradas no


texto “Away from Copying: the art of documentary practice”, incluído no livro Truth or
Dare: Art & Documentary (2007), organizado por Gail Pearce e Cahal McLaughlin a partir
das conferências de mesmo nome, ocorridas em 2006 na Whitechappel Art Gallery e na Tate
Modern. Em sua última versão, baseada na apresentação de Renov no evento, as tendências,
modalidades ou funções do documentário foram expandidas para cinco, com a inclusão da
atuação em torno da modalidade ética. Para o autor, a tradição do documentário é marcada por
momentos de maior ou menor evidência dessas funções, que são como forças a orientar o
campo em direção a interesses específicos. Mas, a poética do documentário se dá plenamente
na interpenetração dessas cinco funções. Dito de outro modo, podemos dizer que, na
consolidação de sua tradição, o domínio do cinema documentário forjou funções ou modos
específicos que o diferenciam decisivamente de outras searas do cinema, como o domínio da
ficção ou do cinema experimental, sendo que sua grande contribuição em uma perspectiva
histórica em comparação aos outros dois domínios é a questão da dimensão ética. Esta última
se insere na compreensão de que todo filme documentário trata de uma relação entre cineasta
e objeto filmado, no mais das vezes entre dois sujeitos, que entretêm entre si uma relação que
deve estar centrada na postura ética implicada nessa relação, pois ela concerne uma troca
intersubjetiva, assentada em um balanço delicado marcado pela consciência de uma
disparidade de posições, de poder (de filmar, de representar) e de acesso aos meios de
representação.
71

Para Renov, a evolução estética do gênero é marcada por essas modalidades, modos
ou funções. Acreditamos que esta noção de uma poética do documentário pode ser muito útil
para nos oferecer ferramentas para posicionar os filmes de Trinh T. Minh-ha como elementos
destacados de trabalhos que se constroem decisivamente em uma outra relação entre ética e
estética, que não a tipicamente evidenciada nos modos convencionais de representação da
realidade.
72

CAPÍTULO 3

SOBRE CINEMA E ANTROPOLOGIA

OU O LÁ FORA AQUI DENTRO

“As complexidades da nossa época requerem habilidades


etnográficas. Esta é uma questão de abrir relatos simplificados,
tornando a prestação de contas possível em diferentes
granularidades, sinalizando os labirintos de possíveis inquéritos para
a sua relevância, seus pontos sem retorno, suas reconceitualizações,
admitindo em uma política de reconhecimento cristais de resistência
que desestabilizam teorias fáceis.”
Michael M.J.Fischer (2009, p.xiii)

O cinema de Trinh T. Minh-ha desperta interesses em áreas distintas do


conhecimento. Seja como objeto de crítica, como instrumento de reflexão ou como artefato
artístico, podemos dizer que seus filmes têm mobilizado a atenção de acadêmicos interessados
nas questões da representação cultural pelas imagens em movimento. Em especial, podemos
dizer que sua filmografia é um caso exemplar para pensarmos a relação entre cinema e
antropologia. Neste capítulo, apresentaremos um panorama comparativo entre as tradições do
cinema e da antropologia, a fim de considerarmos os filmes de Trinh T. Minh-ha em relação a
tais campos do conhecimento.

Sabemos que as relações entre o cinema e a antropologia têm uma longa história.
Conforme já registrou Marc Henri Piault, o processo histórico das sociedades centrais do
ocidente no final do século XIX, com as diversas invenções e inovações tecnológicas
surgidas, aliadas a uma nova ideologia científica, de práticas acumulativas e analíticas,
colocam este como um “século de convergências incríveis” (2002, p.15), convergências estas
que nos levam a observar uma série de paralelismos entre cinema e antropologia, presentes
desde seus marcos de origem. O autor destaca o ano de 1888 como o de várias
simultaneidades importantes. Nesse ano, Franz Boas, crítico dos determinismos biológicos e
73

geográficos, assim como do evolucionismo cultural, considerado um dos pais fundadores da


antropologia cultural contemporânea, publica os resultados de sua expedição ao Ártico, onde
viveu dois anos entre os Inuit. Neste mesmo ano, Étienne-Jules Marey apresentou na
Academia de Ciências de Paris a primeira cinta de fotografias sequenciais tiradas com seu
fuzil cronofotográfico, o primeiro protótipo de uma câmera de filmagem. Em ambos os casos,
temos experiências que seriam fundamentais para os avanços que cinema e antropologia
levariam a cabo em termos tecnológicos, metodológicos e epistemológicos dali em diante.

Segundo Anna Grimshaw (1999), esse período é marcado pela expansão


capitalista, revelando crescente competição entre os impérios coloniais, algo que acaba por
revelar mudanças decisivas em ideias fundamentais, resumidas pela autora na concepção de
que a velha noção de “civilização européia” entrava em crise, baseada que estava em critérios
de “separação, hierarquia e exclusão” (GRIMSHAW, 1999, p. 40). Nesta nova ordem, a
diferença sociocultural presente nas colônias passou a provocar os impérios coloniais, de
modo a despertar novos interesses. Assim, o cinema e a antropologia são parte e espelham
esse período de mudanças fundamentais e são decisivos para reconhecer a necessidade de se
elaborar novas formas de interpretação que dessem conta da complexidade dos modos de vida
existentes nessas diferentes localidades. Para a autora, cinema e antropologia podem ser vistos
como práticas modernas e distintivas do século XX, que representam rupturas decisivas com
formas e convenções existentes. Além disso, os paralelos entre ambos vão muito além dessa
certidão de nascimento contemporânea que compartilham. Ela aponta simetrias notáveis nas
quatro primeiras décadas das tradições que vão se desenvolver em ambos esses campos, que
podem ser analisadas a partir de três importantes pares: a) Alfred Cort-Haddon e os irmãos
Lumière, b) Bronislaw Malinowski e Robert Flaherty e c) Alfred Radcliff-Brown e John
Grierson.

Segundo Grimshaw, esses pares esboçam

um movimento que culmina no estabelecimento de categorias distintas:


“etnografia científica” e “cinema documentário” por volta dos anos 1930.
Nesse ponto, ambas as tradições espelham uma à outra. Porém, o que é
igualmente notável é que, apesar de sua combinação inicial na expedição ao
Estreito de Torres, cinema e antropologia se tornam práticas separadas, não
integradas. (1999, p. 37-38).
74

O primeiro par da análise proposta por Grinshaw observa a proximidade entre as


primeiras filmagens dos irmãos Lumière, exibidas na sessão de 1895, com a primeira
expedição a campo Britânica no Estreito de Torres, conduzida por Cort-Haddon em 1898, que
incluiu o cinematógrafo como um de seus itens essenciais de trabalho científico. Em comum,
essas experiências compartilham o interesse em estabelecer um embate direto com a
experiência da vida. No caso dos Lumière, sair às ruas de Paris, no caso da expedição de Cort-
Haddon, sair para o mundo não-europeu. Em ambos os casos, sair e ver com os próprios olhos
para poder mostrar, por meio do filme, aquilo que se via nesse movimento da vida, porém,
ainda de um ponto de vista fixo. O segundo par de análises proposto pela autora tem o ano de
1922 como ponto chave. Nesse ano, Malinowski publica Argonautas do Pacífico Ocidental,
relato do seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, e Flaherty lança Nanook, o esquimó,
retrato da vida de um Inuit no ártico canadense. Como sabemos, o livro de Malinowski vai
fundar um novo método de trabalho em campo, uma inserção junto aos sujeitos estudados,
conhecido como obervação participante; ao passo em que o filme de Flaherty vai fundar um
modelo de cinema que se convencionou como um paradigma do documentário. Em ambos os
casos, temos um modo de olhar o mundo que privilegia o olho único do observador na
organização das partes em um todo coerente.

Mas é essa ilusão de “mostrar” o mundo que marca o trabalho de cada um


como uma transição na criação de práticas especializadas, a etnografia
científica e o filme documentário. Enquanto que cada um reivindica mostrar
o mundo como ele é, eles estão de fato nos “contando” sobre o mundo; e é
esse movimento incompleto realizado em ambos os trabalhos que provoca o
seu eterno reexame (GRIMSHAW, 1999, p. 41).

O terceiro par de análises aproxima dois grupos distintos. Por um lado o grupo de
antropólogos liderados por Radcliff Brown e, por outro, o grupo de cineastas liderado por
John Grierson. Nesse período histórico, por volta de 1930, já temos a completa separação do
que se convencionou chamar de cinema documentário e do que se definiu como etnografia
científica, cada qual com seus métodos e práticas profissionais já estabelecidos, entretanto,
compartilhando uma abordagem semelhante sobre a sociedade, onde a ênfase está nas ações
das pessoas em prol de um bem coletivo, suprimindo sua individualidade.

Ainda quanto à relação entre cinema e antropologia, Piault enfatiza que o cinema
se
75

apropriou mais rapidamente dos domínios reservados à antropologia, não


hesitando em circular suas câmeras nos mundos exóticos, oferecendo
imagens atraentes para as fantasias do ocidente. Para além do conteúdo
próprio à ficção, aos documentários e aos filmes de viagens e de exploração,
suas técnicas foram enriquecidas pelas exigências e as condições de
filmagem características da atitude antropológica. (PIAULT, 2002, p. 62-
63).

A passagem acima permite notar que, na consolidação de suas estratégias, o


cinema documentário se favoreceu dos métodos de trabalho estabelecidos no campo da
antropologia, permitindo ao campo do documentário burilar aquela que se tornou uma de suas
grandes marcas distintivas em relação a outras tradições de cinema, a preocupação com a
postura ética. A antropologia moderna, por sua vez, vai consolidar cada vez mais seus
métodos em torno da etnografia escrita, afirmando padrões de cientificidade desejados para o
empreendimento dessa disciplina, o que vai ensejar, por parte de alguns antropólogos
interessados nas imagens em movimento, o estabelecimento de uma série de critérios
científicos para validar o filme como um artefato de valor antropológico.21

3.1 Antropologia visual

Primeiramente cumpre aqui esclarecer que utilizaremos o termo antropologia


visual para nos referirmos exclusivamente a filmes, uma vez que nem mesmo dentro dessa
subdisciplina esta terminologia tem uma definição fechada, podendo se referir a elementos
diferentes, de iconografias e manifestações visuais diversas, chegando até mesmo ao estudo
de objetos e artefatos materiais.

Apesar de existir um movimento virtuoso no sentido de incorporar tecnologias


mais modernas - como câmeras de fotografia e de cinema – ao aparato de campo do
antropólogo desde o século XIX, esse movimento não era pacífico e tampouco seguia apenas

21
Nesta pesquisa utilizaremos as definições de etnografia e antropologia tal como as definiu Levi-Strauss,
segundo quem “a etnografia consiste na observação e análise de grupos humanos tomados em sua especificidade
(muitas vezes escolhidos entre os mais diferentes do nosso, mas por razões teóricas e práticas que nada têm a ver
com a natureza da pesquisa), visando a restituição, tão fiel quanto possível, do modo de vida de cada um deles. A
etnologia, por sua vez, utiliza de modo comparativo (e com finalidades que haveremos de determinar adiante) os
documentos apresentados pela etnografia. Com essas definições, a etnografia assume o mesmo sentido em todos
os países, e a etnologia corresponde aproximadamente ao que se entende, nos países anglo-saxões (em que o
termo etnologia está caindo em desuso), por antropologia social e cultural (sendo que a antropologia social se
dedica basicamente ao estudo das instituições consideradas como sistemas de representação, e a antropologia
cultural ao das técnicas, eventualmente também das instituições, consideradas como técnicas a serviço da vida
social)” LEVIS-STRAUSS, Claude, in: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 14.
76

uma linha diretiva de como tal processo deveria se dar. Uma experiência seminal no uso das
imagens técnicas no trabalho de campo do antropólogo, “que deu origem à primeira pesquisa
antropológica a se servir sistematicamente da fotografia e do cinema como instrumentos tanto
na coleta de dados quanto na divulgação de seus resultados” (FREIRE, 2012, p.129), foi
aquele conduzido por Margaret Mead e Gregory Bateson, em Bali, que resultou na publicação
do livro Balinese Character: a photographic analysis, publicado em 1942. Para Marcius
Freire,

Balinese Character. A photographic analysis significa, para todos aqueles


que veem os meios audiovisuais como instrumentos preciosos à disposição
do aparelho de pesquisa dos cientistas sociais, a grande referência, o
principal modelo e a prova definitiva de que a forma de comunicação com o
mundo acadêmico não é apanágio da linguagem escrita.

Para levar a cabo essa pesquisa, seus autores deixaram de lado os caminhos
tantas vezes trilhados da narrativa escrita na descrição etnográfica e se
dedicaram a “mostrar” aquilo que estavam estudando ao mesmo tempo em
que comentavam e complementavam o que mostravam. (2012, p. 140)

Os anos 1950 são um marco decisivo para compreender o movimento que levou a
antropologia enquanto disciplina a problematizar seus métodos de trabalho de campo, agora
desenvolvidos em novos e mais próximos territórios de pesquisa e com realidades culturais
complexas, emergentes desde o segundo pós-guerra e marcados pela descolonização de países
africanos, entre outros movimentos importantes. Um nome a se destacar nesse contexto é o de
Clifford Geertz, considerado um dos fundadores de uma vertente na antropologia conhecida
como Antropologia Interpretativa, que se dedica a estudar a cultura como sistema simbólico.

Nesse período, a chamada antropologia visual avança para além de filmes


etnográficos descritivos sobre povos tradicionais de realidades longinquas dos grandes centros
metropolitanos europeus em direção a filmes originais e transgressivos das normas
convencionais da descrição etnográfica cientificista, em diálogo com movimentos artísticos
como o surrealismo ou com o cinema moderno conduzido fora do âmbito das ciências sociais.
Como se sabe, o caso do cineasta e etnólogo francês Jean Rouch é exemplar no sentido de
cotejar cinema e ciências sociais de modo a provocar e distender as fronteiras entre suas
práticas expressivas e epistemológicas, sendo ele um incentivador da utilização de
metodologias no trabalho antropológico que desafiavam os cânones e as regras acadêmicas da
77

disciplina. Seu filme Os mestres loucos (1955), sobre um ritual de possessão conduzido pelos
Hauka, em Accra, na Costa do Ouro, África Ocidental, foi o primeiro de sua filmografia a
causar impacto tanto nos meios acadêmicos como nos cinematográficos, com recepção
contraditória entre esses campos.

No momento do seu lançamento inicial em 1955, Os mestres loucos se


tornou objeto de intensa controvérsia. Devido a, no desenvolvimento do
filme, assim que os adeptos do culto são possuídos pelos espíritos hauka,
eles mimetizam os modos e as vestimentas de certas autoridades coloniais e,
nessa condição, eles cambaleam nas mais bizarras maneiras, espumando pela
boca, e queimando a si mesmos com tochas flamejantes. No momento
culminante, eles sacrificam um cão, se lançando a beber seu sangue. O filme
foi banido imediatamente pelas autoridades coloniais da Costa do Ouro
alegando que ele retratava crueldade contra animais e falta de respeito pelo
regime colonial. O filme também foi denunciado por lideranças intelectuais
em Paris, tanto europeias quanto africanas, incluindo mesmo o orientador de
Rouch, Marcel Griaule, devido ao filme mostrar africanos se comportando
de maneiras que eles acreditavam pudesse exacerbar os preconceitos racistas
europeus. Mas, com o passar dos anos, Os mestres loucos foi
progressivamente reabilitado, tanto nas literaturas de antropologia como na
de estudos de cinema. A visão mais comumente aceita hoje é de que o filme,
longe de ser racista, provê um relato único de uma poderosa paródia contra-
hegemônica do colonialismo europeu na África. (Henley, 2009, p. 71-72).

Essa recepção negativa do filme Os mestres loucos por parte da comunidade


acadêmica ligada à antropologia na França nos leva a algumas questões. O que teria
incomodado os antropólogos, tanto africanos quanto africanistas europeus, a ponto de
condenarem o filme? Seria o ritual em si algo perturbador? Seria a mise en scène do cineasta,
com seus planos fechados sobre os rostos alterados pelo transe e ensopados de suor e de baba
com sangue o fator de incômodo? Seria uma postura paternalista dos acadêmicos, orientada a
defender aqueles jovens da exposição por eles considerada degradante a que o filme os
relegava? Seria uma combinação de todas essas questões? Não nos cabe aqui especular qual
seria a resposta mais adequada. Não temos meios para isso. Entretanto, tais questões
evidenciam alguns pontos que nos interessam. Em primeiro lugar, podemos destacar que o
cinema é capaz de representar a experiência do mundo histórico de modo mais complexo do
que os relatos etnográficos escritos convencionais e, em segundo, que ao utilizar os meios do
cinema a antropologia pode obter resultados expressivos que nenhum outro meio simbólico
pode oferecer ao processo da representação cultural.
78

Parece-nos que as estratégias narrativas adotadas por Rouch no filme em questão


provocaram tensão e desagrado, frustrando expectativas que seriam as mais convencionais em
torno da necessidade de obter informação acerca de um grupo estudado por meio das imagens.
Ao invés de ser meramente descritivo e distante, ilustrado com as imagens animadas, o filme
Os mestres loucos nos coloca diante de um ritual em seu processo mesmo de constituição.
Acompanhamos o desenrolar da possessão dos Hauka, com as imagens exibindo
explicitamente elementos desse ritual de modo a levar o espectador a uma experiência vívida
do ritual.

Rouch foi um dos mais notáveis cineastas a produzir nas fronteiras entre a arte e a
ciência, provocando os limites dessas diferentes formas expressivas sem impor convenções a
priori, de modo a garantir a liberdade que a experiência da filmagem poderia oferecer e,
dando espaço para o subjetivo em lugares onde se presumia o objetivo como princípio
normativo. Em outros importantes filmes, tais como Eu, um Negro (1958), Crônica de um
verão (1959) e Jaguar (1964), por exemplo, o cineasta vai explorar os elementos da
imaginação e da fabulação, seus e de seus personagens/colaboradores, como linhas de força
no processo de representação cultural, utilizando estratégias fílmicas de abordagem que
promoviam o encontro intercultural, a reflexão sobre a alteridade e a etnografia sobre novas
bases, com novos meios, em um mundo que passava por transformações. Em Rouch
encontramos um defensor ardoroso e um pioneiro ousado do cinema como meio original de
investigação da realidade.

Um caso clássico de defesa do cinema como instrumento para a antropologia é o


de Margaret Mead em seu “Visual Anthropology in a Discipline of Words”, originalmente
publicado em 1974, onde ela nota que a aceitação do cinema como instrumento de campo do
antropólogo era uma dificuldade no seio da disciplina, ainda plenamente devotada à palavra.

Arrisco-me a dizer que mais do que nunca palavras, faladas e escritas, foram
usadas para disputar o valor, recusar fundos e rejeitar esses projetos mais do
que os próprios esforços para conduzí-los. Departamento após departamento
e projeto de pesquisa após projeto de pesquisa falharam em incluir filmagens
e insistem em continuar o desesperadamente inadequado tomar notas de uma
era anterior, enquanto o comportamento que o filme poderia ter capturado e
preservado por séculos (preservado para o júbilo dos descendentes daqueles
que dançaram um ritual pela última vez e para a iluminação de futuras
gerações de cientistas das humanidades) desaparece – desaparecem bem em
frente aos olhos de todos. Por quê? O que há de errado? (1974, p. 4-5)
79

Apesar de não apontar questões estéticas propriamente, e de sabermos que a


adoção das imagens técnicas - fotografia e cinema - no seio da prática etnográfica de Mead
não apontam para formas inovadoras de filmagem, mas ao contrário, desenvolvem-se como
meio de mero registro, este texto de Margaret Mead, introdução do livro Principles of Visual
Anthropology, demonstra como a autora defendia a utilização do cinema em tanto que recurso
indispensável à antropologia na sua condição moderna, incorporando avanços técnicos
recentes que permitiriam à antropologia ir além em suas possibilidades de coleta e, sobretudo,
de preservação das imagens das culturas evanescentes do mundo. Toda a lógica descrita por
Mead nesse texto reforça a compreensão do uso do cinema como meio para se expandir a
atuação da antropologia em seus próprios termos, sem alterar radicalmente seus métodos,
apenas instrumentalizando seu processo de registro.

A partir da década de 1980 veremos amadurecer outros argumentos em favor da


incorporação mais criativa dos meios expressivos do cinema no campo da antropologia.
Diversos autores vão desenvolver a ideia de que a antropologia visual precisaria encontrar
maneiras mais adequadas para se expressar com os meios do cinema, aproveitando conquistas
que o cinema documentário, entendido além dos domínios da representação etnográfica, já
havia levado a cabo. David MacDougall, por exemplo, um destacado cineasta que tem o
trabalho dedicado ao campo da antropologia visual, tanto enquanto cineasta quanto pensador
do campo, ao refletir sobre a experiência da recepção do filme como meio de representação da
realidade, identifica que este é constituído por matérias expressivas diversas – imagem em
movimento e som, em relação sincrônica ou não - podemos acrescentar – por meio das quais
percebemos o Outro, o mundo e as coisas do mundo. Nesse sentido, ele assevera: “Igualar
essa experiência com a da fala escrita é, em face disso, um absurdo. Trata-se de um mundo
experiencialmente diferente, que não é necessariamente inferior à leitura de um texto e deve
ser compreendido de outra forma” (2005, p. 28.).

No mesmo texto, intitulado “Novos princípios da antropologia visual”,


MacDougall arrisca-se a apontar aqueles que considera serem os requisitos necessários para
reconceitualizar a antropologia visual:

a) utilizar as distintas estruturas expressivas do meio visual em


contraposição àquelas oriundas da prosa expositiva; b) desenvolver formas
de conhecimento antropológico que não dependam dos princípios da
metodologia científica para validá-las; c) explorar as áreas da experiência
80

social em que o meio visual demonstre determinada afinidade expressiva,


como a topográfica, a temporal, a corporal e a pessoal. (2005, p. 27)

Podemos notar nesses argumentos de Macdougall a valorização clara da


expressividade do cinema como forma de garantir à antropologia visual uma legitimidade
maior no cenário contemporâneo das ciências sociais. Nesse sentido, consideramos que sua
postura reflete um movimento dos círculos interessados na antropologia visual em direção a
considerar as conquistas do cinema documentário como tradição mais ampla, no sentido de
associar-se a essa tradiação, beneficiando-se de suas conquistas e inovações. Este ponto nos
interessa sobremaneira, pois é a partir dessa valorização da expressividade audiovisual no
campo dos estudos antropológicos que queremos pensar a produção fílmica de Trinh T. Minh-
ha, incluindo-a nesse intervalo encontrado entre o cinema documentário e a antropologia,
lugar de onde sua filmografia tensiona ambas as tradições.

Trinh T. Minh-ha teceu críticas severas aos cânones da antropologia que não passaram
incólumes, acusada de ter uma leitura bastante superficial da teoria antropológica e de fazer
críticas descontextualizadas em seus filmes. Para Alexander Moore, Trinh T Minh-ha
considera a antropologia como uma prática masculina, “mas ela ignora uma antiga e pioneira
tradição de mulheres antropólogas, e essas gigantes ancestrais recentes como Ruth Benedict e
Margaret Mead” (p.77, 1990). Focando suas críticas nos trabalhos teóricos de Trinh T Minh-
ha, ele considera que seus textos são como performances escritas. “Não são elaborados para
serem levados a sério, dissecados e debatidos nos moldes da civilização central, questão por
questão de modo a render algum julgamento. Mas há questões levantadas, implícita e
explicitamente” (MOORE, p.77, 1990).
Com a análise de que o trabalho escrito de Trinh T. Minh-ha não se adequa ao que
seria um modelo de crítica de uma certa civilização central, Moore levanta um dos pontos
centrais no trabalho da autora, que, por um lado, está na raiz da originalidade de seu
pensamento e, por outro, na base das críticas que recebe. Ao observar o percurso de formação
intelectual da autora, notamos a importância de uma formação multicultural, desde sua origem
no Vietnã, com passagens pela França, Estados Unidos e Senegal, para a consolidação de uma
postura de impureza radical, forjada por estudos em diferentes áreas do conhecimento, como
os estudos literários, a antropologia, o cinema, os estudos de gênero e os estudos culturais.
Desse lugar híbrido, entre-áreas, surgem seus argumentos críticos em relação a estruturas
canônicas, destacadas como equivocadas e antiquadas em seus textos. Aqui devemos pensar
81

como a emergência de autores ligados ao chamado pós-colonialismo provoca crises e aponta


caminhos para novas epistemologias possíveis.
Para MOORE (1992, p.70),

Trinh T Minh-ha especificamente se distancia de modos “acadêmicos” de


argumentação e escrita. Ela está preocupada menos em refutar argumentos
usando métodos bem desgastados e comprometidos do que se engajar em
uma heterogeneidade de jogo livre na tentativa de abalar significado, em
deixar “sua” linguagem falar contra si mesmo.

A produção artística e teórica de Trinh T. Minh-ha surge em um momento de revisão


epistemológica nas ciências humanas, onde há certo deslocamento nas práticas de
interpretação cultural, tal como estamos inssitindo nesta pesquisa. Em tal cenário, emergem
novos marcos para os diferentes campos disciplinares, onde despontam hibridizações
conceituais que vão favorecer a ampliação de referenciais teóricos, trazendo à tona novos
autores e novas correntes que ajudam a tornar o campo acadêmico mais prolífico. Assim, para
pensar a obra da cineasta, devemos considerar este horizonte intelectual, onde diferentes
tradições se encontram, ampliando diálogos antes obscurecidos, que contribuem para trazer a
um primeiro plano novas vertentes intelectuais, forjadas nas fronteiras dos campos já
estabelecidos e na sua transdisciplinaridade.
Neste embate entre os campos, a análise aqui feita sobre a obra de Trinh T. Minh-ha
coloca claramente o cinema e a antropologia nessa área de contato. E podemos dizer que,
ainda hoje, seus filmes são mais valorizados no campo dos estudos de cinema do que no
campo da antropolgia visual. Um aspecto a destacar é que Trinh T Minh-ha é antes uma
pessoa ligada ao campo das artes, dada sua formação inicialmente em música e composição,
que passa posteriormente à etnomusicologia, o que a vai levar ao trabalho de campo no
Senegal, quando realiza Reassemblage, chegando, posteriormente, aos estudos de literatura
comparada. Nesse cenário ela é antes a cineasta do que a teórica feminista pós-colonial.

3.2 Virada linguística na antropologia

Voltemos, por ora, aos movimentos que estavam em curso na antropologia de


modo mais amplo desde a década de 1960. Com as diferentes mudanças sociais, com os
processos culturais cada vez mais complexos e rupturas epistemológicas conduzidas nas
82

disciplinas, surge uma tendência crescente de experimentação na escrita etnográfica, uma


espécie de reação filosófica às convenções de realismo que imperavam na antropologia.
Estava em curso um debate sobre a natureza da interpretação nas descrições etnográficas,
destacando-se uma consciência por parte de destacados antropólogos, em sua maioria norte-
americanos, da evidenciação da estrutura retórica da etnografia. Essa tendência ganha
evidência em 1984, quando acontece o Seminário Writing Cultures, no Novo México, nos
Estados Unidos, cuja proposta era reinterpretar o passado recente da antropologia cultural e
abrir suas possibilidades futuras (CLIFFORD & MARCUS, 1986), debatendo sobre a
natureza da interpretação nas descrições etnográficas. Em síntese, podemos dizer que a
antropologia se abria para a consideração de que as narrativas etnográficas possuiam uma
estética, que não eram isentas de um olhar subjetivo do antropólogo, ao mesmo tempo em que
a disciplina revisava e criticava as convenções do realismo que imperavam até aquele
momento. Para essa nova vertente na antropologia os autores cunharam o termo etnografia
experimental.

Seguindo a proposta de paralelos entre a antropologia e o cinema, tal como


elaborou Anna Grimshaw (1999) para pensar o desenvolvimento desses campos, como vimos
anteriormente neste capítulo, vamos evocar um outro momento histórico importante que pode
evidenciar um contato entre essas tradições, expandindo a proposta da autora para períodos
históricos mais recentes. Este momento é o da chamada “virada linguística” na antropologia,
culminante no início da década de 1980, quando podemos pensar que a aproximação entre o
campo do cinema experimental e o da etnografia experimental sugere a concepção de uma
etnografia experimental no cinema. Nesse contexto histórico encontramos o primeiro filme de
Trinh T. Minh-ha, Reassemblage – from the firelight to the screen, lançado em 1982, ou seja,
contemporâneo das discussões sobre a subjetividade da escrita etnográfica no campo da
antropologia, que culminariam com o citado Seminário Writing Cultures, em 1984.

O termo etnografia experimental emerge e se consolida na antropologia nesse


contexto histórico sobre o qual estamos nos debruçando e chega aos estudos de cinema por
meio do livro Experimental Ethnography: the work of film in the age of video, publicado em
1999 por Catherine Russell, que tomou o termo como pedra de toque para pensar filmes que
para ela apresentavam novas formas de ver a representação cultural, conjugando teoria social
e experimentação formal. Para a autora, a etnografia tornava-se um meio de renovação do
vanguardismo do cinema experimental e, apoiando-se em Clifford e Marcus (1986), tomava a
83

categoria como “um termo expandido no qual ‘cultura’ é representada de muitas perspectivas
diferentes, fragmentadas e mediadas.” (RUSSELL, 1999, p. xii). Para ela,

Da interpenetração entre o cinema etnográfico e o de vanguarda emerge uma


forma subversiva de etnografia na qual a crítica cultural é combinada com
experimentos na forma textual. Se a etnografia pode ser entendida como uma
experimentação com a diferença cultural e com a experiência de cruzamento
entre culturas, uma etnografia subversiva é um modo de prática que desafia
as várias estruturas de racismo, sexismo e imperialismo que estão inscritas
implicitamente e explicitamente em tantas formas de representação cultural.
Tomando tanto a etnografia como a vanguarda em seus sentidos mais
amplos, seus pontos de contato descrevem os parâmetros de uma prática
cultural que pode até não ser ‘nova’, mas é recentemente visível. (1999,
p.xii).

Mais adiante, Russell destaca Trinh T. Minh-ha como um caso exemplar em


relação à sua proposta de aproximação entre questões estéticas de um cinema de vanguarda e
conceitos emergentes na teoria antropológica.

Trinh T. Minh-ha tem sido uma das mais proeminentes cineastas entre casos
recentes que emprega uma prática radical de cinema em um meio
especificamente etnográfico. Suas críticas escritas das convenções da
objetividade etnográfica foram catalisadoras no repensar e na renovação da
prática do documentário. A crítica mais convincente de Trinh em relação ao
filme etnográfico está no modo em que ele implica uma divisão do mundo
entre aqueles ‘lá fora’ (os temas da etnografia) e aqueles ‘aqui dentro’ (na
sala de cinema, olhando para eles). Ela argumenta que as premissas da
verdade e veracidade do documentário perpetuam uma dualidade cartesiana
entre mente e matéria na qual o Outro é objetivado e o cineasta e sua
audiência são os sujeitos da percepção. Uma concepção mais fluída de
realidade é necessária para transcender esse paradigma, uma na qual o
significado não esteja ‘fechado’ mas no qual a representação liberte-se e
possa evadir. É a alteriadade da realidade mesma que argumenta ela, deve
ser reconceitualizada, embora ofereça poucas dicas de como isso pode ser
colocado na prática (do cinema). (1999, p.4).

Apesar de destacar Trinh T. Minh-ha como sendo uma cineasta que pratica uma
relação importante entre a teoria social e a experimentação formal, curiosamente, Russell não
se debruça especificamente sobre nenhum filme da diretora para desenvolver suas análises
fílmicas e sustentar sua argumentação relativa ao conceito de etnografia experimental no
cinema. Ao invés disso, opta por abordar filmes diversos mais diretamente associados à noção
84

de cinema experimental em suas diversas facetas, desde Eadweard Muybridge até Bill Viola,
passando por filmes de Luís Buñuel, Chantal Akerman, Jonas Mekas, Maya Deren e Peter
Kubelka, entre outros.

Acreditamos que a filmografia de Minh-ha pode ser tomada como um corpus


destacado para se pensar essa relação entre teoria social e experimentação formal, ou, dito de
outro modo, a relação entre ciência e arte, como apontamos mais acima. Nossa perspectiva é
que sua obra é exemplar para se pensar no conceito de etnografia experimental no cinema.
Entretanto, precisamos ir além de Russell, que entende esse termo como a descrição de uma
metodologia de análise. De certo modo, buscaremos entrar justamente na questão levantada e
não desenvolvida por Russell ao apontar Minh-ha como um caso exemplar para evidenciar
sua proposta de aproximação entre teoria social e experimentação formal.

Partindo de Russell nos debruçaremos sobre a filmografia de Trinh para apontar


caminhos que nos ajudem a pensar um cinema onde a relação entre ética e estética seja
informada por questões importantes dos avanços epistemológicos dos campos com os quais
mantém afinidade, mais precisamente com a antropologia e a arte.

Segundo Russell, Trinh T. Minh-ha é uma das cineastas que mais se destaca no
desenvolvimento de uma prática de cinema radical com contornos especificamente
etnográficos, desenvolvendo em seus filmes críticas severas às formas de representação
cultural, denunciando discursos que defendem uma pretensa objetividade e lógica cartesiana,
que não seriam capazes de dar conta da complexidade da multiplicidade de formas de vida
social que procuram explorar.

Sua filmografia dialoga com diversas expressões do cinema de não-ficção, do


filme experimental, do cinema narrativo, passando pelo etnográfico ao diário de viagem,
deslocando as premissas relacionadas a essas searas fílmicas, contribuindo para alargar as
fronteiras da prática cinematográfica. Ao não se enquadrar em definições rigorosas e
categorizações previamente definidas, esse conjunto de filmes desafia o espectador a uma
interpretação que estabeleça diálogo com essas diferentes tradições com as quais está em
contato.

No campo dos estudos de cinema, ainda hoje, o filme Reassemblage segue sendo
um exemplo destacado de trabalhos que apostam na reflexão crítica sobre a representação
cultural no audiovisual, ou mesmo na dificuldade desta representação se dar de modo objetivo
85

ou avalizado por critérios de cientificidade, como os desejados por certas vertentes do campo
do cinema etnográfico, desejosas de que as práticas fílmicas de representação cultural
respondam a critérios próprios ao campo da antropologia escrita mais tradicional.

No campo da antropologia, Reassemblage parece ter recebido maior atenção e


crítica, uma espécie de reação aos ataques proferidos à disciplina pelo filme, considerada pela
diretora como herdeira de uma postura identificada com o colonialismo ocidental, uma ciência
de caráter masculino, que promove uma busca de sentido totalizante em seu afã descritivo,
que possui pretensão de objetividade em detrimento do reconhecimento do aspecto subjetivo
de seus próprios relatos.

3.3 Virada etnográfica nas artes

Essa posição polivalente ocupada pela cineasta-teórica à qual temos nos referido
aqui nesta pesquisa pode ser percebida não apenas em relação a atividades distintas nos
campos da prática artística e da atividade intelectual, mas também, e especialmente, entre
áreas de conhecimento. Um dos movimentos recentes no campo epistemológico que tem
ressonância das discussões que estamos apresentando aqui, e em relação ao qual Trinh T.
Minh-ha pode ser situada como uma referência seminal, pode ser percebido na confluência
entre os campos da antropologia e da arte, notadamente em casos de práticas artísticas
experimentais que se valem de metodologias vindas do campo das ciências sociais.

Podemos dizer que este movimento de aproximação entre arte e antropologia tem
relação com o já citado Seminário Writing Culture, tão presente aqui em nossa pesquisa,
ainda que os efeitos do Seminário tenham afetado mais diretamente o domínio da escrita
etnográfica, sem exercer muita influência na esfera da antropologia visual. Para Arnd
Schneider, um antropólogo que tem se dedicado a estudos na confluência entre a arte
experimental e a antropologia,

Assumir a noção de experimento é importante para a antropologia visual, e a


antropologia em um sentido mais amplo, por diversas razões. Enquanto a
crítica de Writing Culture levou a experimentações com o texto, o lado
visual foi amplamente negligenciado, e a antropologia visual seguiu
principalmente tradições narrativas, de tal modo omitindo do cânone
trabalhos experimentais (de Juan Downey, Trinh T. Minh-ha e Sharon
Lockhart, por exemplo) que problematizaram noções de proximidade e
86

distância com o tema etnográfico e os múltiplos pontos de vista do


observador participante. (2014, p. 2)

Um dos livros que reuniu textos que propunham, de diferentes pontos de vista,
uma aproximação produtiva entre a teoria da arte e a teoria antropológica foi o The Traffic in
Culture: refiguring art and anthropology, organizado por George Marcus e Fred Myers,
publicado em 1995. Praticamente dez anos após o Seminário ocorrido no Novo México,
novamente George Marcus está associado a um esforço em ampliar as fronteiras e a
porosidade da teoria social para que se abra em diálogo com outras áreas. Nos anos seguintes
Marcus ainda estaria vinculado a diversos outros trabalhos que reuniram textos que
atravessavam as áreas da antropologia e da arte, constituindo um esforço de transversalidade
disciplinar, apontando possibilidades de repensar paradigmas e encontrar novos caminhos
metodológicos para as disciplinas.

Um dos conceitos centrais para abordar a discussão recente surgida nesse cenário
é o de virada etnográfica, surgido no texto “O artista como etnógrafo”, de Hal Foster,
publicado inicialmente em uma versão curta no livro The traffic in culture (1995) e ampliado
para o livro O retorno do real: a vanguarda no final do século XX, do próprio autor. Nesse
texto, Foster elabora sua proposição de interpretar a relação entre prática artística e teoria
cultural a partir da noção de artista como etnógrafo, apoiando-se em Walter Benjamin e seu
texto “O autor como produtor”. Substituindo questões relacionadas a classes sociais e
exploração capitalista presentes em Benjamin por questões de identidade e alteridade
relacionadas ao pós-colonialismo, o autor elabora categorias como “pressuposto realista” e
“fantasia primitivista” para pensar a representação cultural em cenários complexos
emergentes. A grande contribuição de Foster nesse texto é a de problematizar o que ficou
conhecido como a virada etnográfica na arte, conceituação que ganhou certa influência nos
anos seguintes. Foster observa, não sem ironia, que

Recentemente, a antiga inveja do artista entre os antropólogos inverteu sua


orientação: uma nova inveja do etnógrafo consome muitos artistas e críticos.
Se os antropólogos queriam explorar o modelo textual na interpretação
cultural, esses artistas e críticos aspiram a um trabalho de campo em que a
teoria e a prática pareçam conciliadas. Em geral, recorrem indiretamente aos
princípios básicos da tradição do observador-participante, entre os quais
Clifford nota um foco crítico numa instituição específica e num tempo
narrativo que favorece “o presente etnográfico”. Entretanto, esses
87

empréstimos não passam de sinais da virada etnográfica na arte e na crítica


contemporâneas. (2014, p.170).

Desta feita, Foster observa dois movimentos opostos e complementares:

De início, alguns antropólogos adaptaram os métodos textuais da crítica


literária para reformular a cultura como texto; em seguida, alguns críticos
literários adaptaram os métodos etnográficos para reformular os textos como
culturas em pequena escala. E esses intercâmbios explicam grande parte das
obras interdisciplinares do passado recente. (2014, p. 172)

Ao pensar alguns dos efeitos dessa virada etnográfica sobre o trabalho artístico
Foster destaca que

Primeiro, a mudança para um modo horizontal de trabalhar é coerente com a


virada etnográfica na arte e na crítica: o artista seleciona um local, entra com
sua cultura e aprende seu idioma, concebe e apresenta um projeto, para
depois passar para o novo local onde o ciclo é repetido. Segundo, essa
mudança segue uma lógica espacial: o artista não só mapeia um local como
também trabalha em termos de tópicos, enquadramentos etc. (2014, p. 184)

Esse efeito de “um modo horizontal de trabalhar” identificado por Foster, nos
parece aproximado do aforisma “falar próximo” de Minh-ha. Esse lugar de fala pretendido
pela cineasta se estabelece em oposição aos modelos convencionais, como já insistimos aqui
nessa pesquisa, forjando um outro lugar de fala, um lugar que ocupa um novo intervalo
espacial, que reposiciona sujeito e objeto em uma relação horizontal, sem implicação
hierárquica de poder.

Um movimento que podemos considerar como oposto a esse da virada etnográfica


na arte pode ser percebido no campo das ciências sociais nesse mesmo intervalo histórico de
mudanças de paradigmas disciplinares. Movimento oposto no sentido das disciplinas que são
diretamente afetadas por seus efeitos, mas complementar na indicação de desdobramentos
revisionistas de paradigmas, convenções e normas metodológicas e processuais. No centro
88

desses dois movimentos de desdobramento, novamente devemos destacar o Seminário


Writing Culture.

No texto “The modernist sensibility in recent ethnographic writing and the


cinematic metaphor of montage” (1990) George Marcus apresenta uma análise instigante
daquilo que enxerga como uma influência do cinema sobre a antropologia e seus
procedimentos de escrita. A esse movimento de influência, ele denominou como “imaginação
cinemática”. Na exposição de seus argumentos o autor está em busca de demonstrar uma
potencial mudança na relação entre filme e etnografia, considerando que a base desse
processo estaria em mudanças substanciais na escrita etnográfica, possibilitadas em função de
condições históricas propícias, de modo que a disciplina estaria cada vez mais explorando um
aspecto antes reprimido na antropologia que é a dimensão narrativa dos seus relatos escritos.
Para além das questões estéticas que podem ser observadas no tocante a estes últimos, Marcus
destaca as mudanças nos modos como

a antropologia constrói seus objetos (certamente não mais o primitivo


externo ao sistema do mundo moderno), como ela argumenta pela autoridade
de suas próprias representações da alteridade em um campo muito mais
complexo de representações ocupado por diversos Outros que
agressivamente e de forma eloquente “falam por si mesmos” nos mesmos
meios e para os mesmos públicos em termos nos quais antropólogos
anteriormente consideravam ocupar uma posição segura. (1999, p. 3).

Com essas mudanças no contexto e nas condições do trabalho do etnógrafo,


somadas às críticas que clamavam por uma autoconsciência e reflexividade em relação ao
caráter retórico e estético dos relatos etnográficos escritos, Marcus considera que abriu-se o
caminho para (1999, p. 3) “a introdução de alguns dos problemas e técnicas do modernismo
clássico (primordialmente literário), mas adequados aos atuais propósitos e preconceitos
próprios à antropologia”. Esta passagem pode ser esclarecedora do que se convencionou
chamar de “virada artística” ou “virada literária” na antropologia.

Uma contribuição importante para pensar a relação do cinema com a antropologia


nesses novos termos propostos pelo autor está na identificação que ele faz de estratagemas
necessários para produzir um novo tipo de etnografia, adequados à redefinição dos
procedimentos retóricos e conceituais de representação do outro, que seriam: i) problematizar
89

o espaço; ii) problematizar o tempo; iii) Problematizar a perspectiva/voz; iv) Apropriação


dialógica de conceitos e dispositivos narrativos, v) Bifocalidade como distância da alteridade
e vi) Justaposição crítica e contemplação de possibilidades alternativas na narrativa. Mais
adiante Marcus esclarece (1999, p.7) “O que eu quero argumentar é que cada um dos
estratagemas acima é mais facilmente conseguido em um meio cinemático do que em um
escrito, e, de fato, sua realização em textos escritos envolve a difícil tradução de técnicas
narrativas essencialmente cinemáticas – especialmente a montagem – para a linearidade do
texto escrito”.

3.4 A autorreflexividade no documentário e a montagem

Os filmes de Trinh T. Minh-ha destacam-se por seu caráter autorreflexivo,


conceito que, segundo Nichols (2005, p.163), “considera como representamos o mundo
histórico e também o que está sendo representado. Em lugar de ver o mundo por intermédio
dos documentários, os documentários reflexivos pedem-nos para ver o documentário pelo que
ele é: um construto ou representação.”22 Baseados nessa afirmação de Nichols, podemos
assumir que filmes interpretados como autorreflexivos evidenciam que a forma do filme
resulta de estratégias específicas de filmagem e de registro de som que são adotadas e
operadas deliberadamente pela cineasta e não resultado simples da apreensão espontânea dos
eventos desse mundo histórico que seria mimetizado no filme. Tratam-se de casos de filmes
onde a montagem tem uma função determinante na organização das partes e na disposição
destas em favor de uma discursividade, em oposição a um modelo voltado a uma
narratividade centrada na unidade.

Vincent Amiel, em seu livro Estética da montagem, apresenta uma distinção


interessante entre tipos de montagem, que, de modo simplificado, podem ser divididos em
três: i) a montagem narrativa, baseada na continuidade ente os planos; ii) a montagem
discursiva, cuja articulação enter os planos centra-se na descontinuidade e iii) a montagem por
correspondência, que assim como o tipo anterior, também está baseada na descontinuidade
entre os planos. O cinema de Trinh T. Minh-ha, sobretudo os filmes identificados com o
campo da não-ficção, está baseado fortemente nessa descontinuidade e pode ser associada aos
tipos de montagem discursiva e de montagem por correspondência, como propostos por
Amiel. Não cabe aqui agora nos determos em apresentações mais extensas de como isso pode
22
Grifos do autor
90

ser percebido nos filmes, voltaremos a esses tópicos mais adiante nas análises fílmicas
específicas no decorrer de nossa pesquisa, mas cabe aqui dizer que podemos notar isso na
montagem fragmentada de Reassemblage, também na fragmentação espacial e de vozes
presentes em Naked Spaces; na descontinuidade das personagens de Surname Viet Given
Name Nam, oscilando entre a história coletiva e a memória pessoal. São casos em que os
filmes e suas estratégias de filmagem representam um mundo a construir, organizado por
meio de uma montagem discursiva. Em outros casos, como na colagem de imagens da China
contemporânea de Shoot for the contents, assim como nas conexões descontínuas entre
tradição e modernidade no Japão em The fourth dimension e por último nas passagens entre
tempos e lugares diferentes de Forgetting Vietnam, temos exemplos de filmes operando
estratégias retóricas em busca de oferecer um mundo a perceber, organizado por meio de uma
montagem de correspondências. Tais estratégias das montagens baseadas na descontinuidade
propostas por Amiel vão ao encontro dos estratagemas apontados por Marcus (1999) como
necessários para que sejam elaboradas novas formas de representação da alteridade e da
experiência cultural, que apontamos mais acima: i) problematizar o espaço; ii) problematizar
o tempo; iii) problematizar a perspectiva/voz; iv) apropriação dialógica de conceitos e
dispositivos narrativos, v) bifocalidade como distância da alteridade e vi) justaposição crítica
e contemplação de possibilidades alternativas na narrativa. Seus filmes são o exemplo
contundente de como o cinema pode ser um meio expressivo singular para elaborar formas
críticas e reflexivas de representação e interpretação do mundo.

Como sabemos, a organização das estratégias de filmagem e de montagem


dedicada a “apagar” as marcas do filme enquanto forma de representação, ou seja, dedicada a
oferecer uma “transparência” na organização dos meios expressivos do cinema que favorece a
identificação com o tema, com o o que está sendo representado, desviando então a atenção do
como se elabora a retórica por meio do filme são a base do cinema narrativo de ficção
(sobretudo nesse período histórico enfocado até aqui, entre as décadas de 1980 e 1990,
quando a cultura do videoclipe ainda não tinha se consolidado e ainda não tinhamos a internet
como a conhecemos hoje), mas estão também no cerne do modelo clássico de documentário,
dedicado, no mais das vezes, a dar a ver a um mundo evidente, representado por meio de uma
decupagem de planos que constrói um olhar privilegiado sobre seu tema e objeto, mas que
omite ou dissimula tais opções formais e discursivas.

Esses tópicos nos parecem muito produtivos para pensar uma prática cinematográfica
que se faz no intervalo entre a antropologia e o cinema. Consideramos que são pontos muito
91

adequados para se pensar a produção fílmica de Trinh T. Minh-ha e a fim de desenvolver essa
hipótese apoiada pelos argumentos de Marcus, passamos a seguir a uma análise fílmica de
Reassemblage.

3.5 Reassemblage – um filme sobre o Senegal?

Os créditos de Reassemblage são sumários, tanto na apresentação inicial, onde


lemos somente a menção “um filme de Trinh T. Minh-ha”23, como nos créditos finais, em que
constam apenas os agradecimentos a Debbie Meehan, Bill Snock, Ned Hockman e Jean-Paul
Bourdier. Não há qualquer referência aos trabalhos técnicos desenvolvidos. Pelos créditos não
sabemos quem foi o responsável pela câmera, fotografia ou pela montagem do filme, por
exemplo.

Trechos do roteiro do filme foram publicados no livro Framer Framed, que reúne
também roteiros de outros filmes da cineasta, além de fotogramas, sketches, storyboards e
algumas entrevistas publicadas anteriormente em revistas acadêmicas ou realizadas por
ocasião de exibições de seus filmes em festivais e universidades. Na ficha técnica de
Reassemblage disponível no livro temos a informação de que a produção é conduzida por
Jean-Paul Bordieur e pela diretora, que, por sua vez, assina sozinha a direção, a fotografia, o
roteiro e a montagem. O coprodutor, Jean-Paul Bordieur, é um parceiro frequente em outras
obras da cineasta. Ele assina a produção de todos os seus filmes, sendo que em Surname Viet
Given Name Nam (1989), Shoot for the Contents (1991) e A Tale of Love (1995) assina
também o desenho de luz. A parceria ainda acontece em livros, fotografias e instalações.

Este foi o primeiro filme em 16 mm realizado por Trinh T. Minh-ha, que havia
produzido alguns curtas-metragens em 8 mm anteriormente. De certo modo, o filme inaugura
uma obra que vai se pautar pela discussão e problematização do lugar de discursos de
autoridade e de poder, com críticas a diferentes disciplinas e formas de representação cultural.
Partindo da realização cinematográfica, com filmes que desafiam as convenções narrativas
hegemônicas das tradições com as quais dialoga (documentário, filme etnográfico,
experimental), em direção aos textos teóricos, sua obra vai manter um diálogo permanente
entre essas manifestações, entre seus filmes e textos, entre a práxis e a teoria. Seu trabalho vai

23
No original: a film by Trinh T. Minh-ha
92

consolidar uma perspectiva alinhada ao feminismo e ao pós-colonialismo, campos em que vai


se destacar como teórica politicamente engajada com seus temas e áreas de interesse.

Reassemblage é um filme que provoca o espectador a sair de sua condição de


passividade. Utiliza de maneira não convencional todos os recursos da linguagem audiovisual,
sendo bastante original na composição dos planos, na montagem, nos movimentos de câmera,
evocando experiências geralmente associadas ao campo do cinema experimental. Inova no
uso do som, explorando as dimensões rítmicas das manifestações musicais e dos cantos e
falas, elaborando leitmotivs sonoros que pontuam o filme em uma estrutura construída por
repetições, evitando a sincronicidade entre imagens e sons e negando a ilustração dos
comentários por imagens.

O filme é construído com o uso extensivo de locução em voz over, cujo texto foi
escrito e lido pela própria cineasta. Não há, nos comentários, uma única descrição das
imagens que acompanhamos em tela. A locução é construída com diferentes estratégias, por
vezes assertiva, por vezes evasiva, questionadora ou hesitante. Ela tem uma inflexão bastante
introspectiva, e como resultado final, temos uma narração que convoca o espectador à
reflexão e evoca certa poesia.

Como já tivemos a ocasião de comentar, sua formação acadêmica multidisciplinar


e multicultural, vinda da teoria literária, com estudos em literatura comparada e literatura
francesa, passando pela música, com estudos de composição, piano e etnomusicologia e,
tendo estudado em diferentes localidades do mundo, Trinh T. Minh-ha chega ao cinema
aberta à descoberta de um novo meio de expressão, em que a experiência será colocada como
condição do processo de realização. Nesse processo, sujeito e objeto estão sob o escrutínio da
cineasta. Ou seja, realizar o filme serve a um só tempo a um processo de reflexão sobre a
representação de uma cultura, de uma alteridade, assim como a um processo de reflexão sobre
o sujeito deste discurso e sua materialidade, sobre a própria cineasta e seu filme. Dito de outro
modo, a cineasta lança sua reflexão sobre as disciplinas que conformam tais práticas e
discursos, quais sejam, a antropologia e os estudos de cinema, enquanto problematiza o lugar
de onde emanam os discursos, sem deixar de considerar que ela própria está implicada nesse
lugar.
93

3.6 Um filme sobre o Senegal. Mas o quê no Senegal?

Após as imagens iniciais com o título do filme e o nome da diretora, surgem os


créditos “Senegal 1981”, momento em que passamos a ouvir um misto de sons de tambores,
outros instrumentos e falas ou cantos, que vão alternando o ritmo, saindo de uma batida
intensa de tambores para uma cadência mais calma, voltando a aumentar a intensidade para
novamente diminuí-la, com a marcação de outros instrumentos e de conversações. Este trecho
dura 43 segundos de tela preta. Corte no som e na imagem. Com a banda sonora silenciosa,
passamos a ver um homem sentado afiando uma navalha. A câmera está posicionada ao seu
lado e o enquadramento corta partes do seu corpo. Não conseguimos ver com clareza o seu
rosto ou outro aspecto que nos permita identificá-lo em suas particularidades. Cortes secos
para uma série de detalhes de seu corpo e do ato de afiar a navalha. Em uma sequência de
jump cuts, passamos a ver algumas crianças, e depois o mesmo homem, que agora afia um
grande facão e um outro velho homem que fuma um cachimbo. Não há raccord entre as
imagens. As expectativas realistas são frustradas, traídas. Toda esta sequência inicial de
imagens é silenciosa, até que ouvimos a voz da diretora, sem nenhum som em segundo plano,
que diz: “Menos de vinte anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas
se definam como subdesenvolvidas. Eu não pretendo falar sobre, apenas falar ao lado”
(TRINH, 1992, 96). Durante essa fala vemos a primeira imagem de fogo na mata (imagens
semelhantes de fogo aparecerão diversas vezes ao longo do filme). Ao fim da fala voltam os
mesmos sons de tambor e vozes da tela preta incial que seguem com a mesma variação de
cadência de antes, do mais intenso para o mais calmo e de volta ao mais intenso, porém,
agora, com imagens da aldeia. Cortes secos nos conduzem por detalhes das moradias. Temos
uma reunião de pessoas, uma mulher caminha com um jarro sobre a cabeça, um homem, que
olha diretamente para a câmera, corta um tronco de árvore. As imagens são muito curtas,
fragmentadas. Os jump cuts causam saltos nas imagens. Os movimentos de câmera são
oscilantes e interrompidos. A banda sonora continua com a variação dos tambores. Vemos um
homem que entalha um pedaço de madeira com uma machadinha. A câmera registra esta ação
com diferentes recortes, mais próximos ou mais afastados, sempre variando os planos. Saímos
de um detalhe da ação sobre a madeira para um close do homem e então para um plano de
conjunto, depois para um plano geral e voltamos para um plano mais próximo, para outro
detalhe e de volta ao plano geral. Não há continuidade visual na ação, nem descrição exata do
tempo e do progresso dessa ação. Corte na banda sonora. Novamente ouvimos a diretora em
voz over, sem B.G. ao fundo: “Um filme sobre o quê? Um filme sobre o Senegal. Mas o quê
94

no Senegal?” Panorâmica horizontal mostra um caminho entre as árvores, sem niguém à vista.
Aqui chegamos aos dois minutos e trinta e cinco segundos de filme.

3.7 A poética da repetição

Notamos em Reassemblage uma estrutura rítmica forte e certa repetição no uso


das estratégias de abordagem dos objetos, tanto pelos modos de utilizar as imagens como os
modos de utilizar os sons. Sobre o uso da repetição como estratégia narrativa e sobre o
trabalho com a sonoridade do Senegal, a diretora relatou em entrevista a Scott Macdonald,

Eu ainda penso que a repetição em Reassemblage funciona de modo muito


diferente do que em muitos dos filmes que eu tenho visto. Para mim, não é
apenas uma técnica que alguém introduz para efeitos de fragmentação ou de
ênfase. Muito frequentemente pessoas tendem a repetir mecanicamente três
ou quatro vezes algo dito na banda sonora. Esta técnica de looping não tem
nenhum interesse particular para mim. O que me interessa é o modo como
certos ritmos voltavam a mim enquanto eu estava viajando e filmando pelo
Senegal, e como a entonação e a inflexão de cada uma das diversas línguas
locais me informavam sobre onde eu estava. (TRINH, 1992, p.114).

Além das repetições de estratégias sonoras que têm uma função rítmica estrutural
no filme, algumas frases e proposições proclamadas pela diretora na voz over se repetem em
diferentes trechos de Reassemblage, não de modo apenas reiterativo ou cumulativo, mas de
forma a provocar no espectador um novo nível de reflexão sobre a questão, uma espécie de
releitura. Elas refletem a postura da diretora em evitar as descrições que definem significados
únicos para os aspectos culturais e sociais observados. Na impossibilidade de produzir um
significado único, fechado, as repetições colocam e problematizam os temas de forma
complexa e diversificada. Por exemplo, próximo ao final do filme, temos o retorno de duas
assertivas que estavam presentes na sequência inicial que descrevemos anteriormente. A
primeira delas é aquela que já nos foi dado mencionar: “Menos de vinte anos foram
suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definissem como
subdesenvolvidas”, que retorna sobre imagens de um garoto negro desnudo, vestindo apenas
dois colares de miçangas bastante grandes para o seu tamanho que se encontra encostado nas
pernas de uma mulher adulta, chorando e carregando uma boneca branca sem pernas e braços.
Após a locução entram sons da ação dos pilões sendo batidos, momento em que o garoto é
95

mostrado chorando. A sequência de imagens apresenta diferentes planos do garoto, que ora
focam a boneca em suas mãos, ora focam o rosto do garoto chorando, são editadas em jump
cut, enfatizando o distanciamento do espectador em relação à cena. Aqui essa locução não é
mais recebida como havia sido no início do filme. Naquele momento ela teve a função de
introduzir genericamente o tema do filme como sendo o de crítica à objetivação dos discursos
sobre a alteridade. Já aqui a crítica se assevera e, na associação com a imagem do garoto,
reflete não apenas sobre a dificuldade na representação de aspectos da vida cultural, mas faz
uma crítica aos danos e resquícios do colonialismo. Imagem e som associados constróem uma
crítica ao empreendimento colonial branco e ocidental do qual os países africanos foram
vítimas.

Fig. 01 a 04 – Frames de Reassemblage

A segunda assertiva é aquela a que já nos referimos algumas vezes: “Eu não
pretendo falar sobre. Apenas falar ao lado”, praticamente uma afirmação de princípios da
diretora no início do filme, que evita uma posição de poder típica de documentários clássicos,
que se pretendem a falar sobre seu tema. Do mesmo modo, ela não pretende assumir a
96

possibilidade de falar por esse Outro, nem mesmo sugere que o filme possa “dar voz” a esse
outro, postura considerada paternalista pela diretora (Trinh, 1994). Trinh T. Minh-ha busca se
colocar em posição similar àquela do objeto de sua mirada, um lugar que, manifestamente não
seria um lugar de poder ou de autoridade, que ela questiona severamente, mas um lugar de
relação aproximada, de uma relação percebida, que afeta a percepção de quem relata e afeta a
postura de quem é representado nos discursos. Essa assertiva retorna mais ao final do filme,
após algumas sentenças nas quais a diretora questiona os anseios por objetividade, questiona
os discursos que buscam copiar meticulosamente a realidade e ainda as polaridades
construídas em torno do que seria a dificuldade em conciliar criatividade e objetividade. Essa
sequência desenvolve e amadurece uma das questões centrais para a diretora, que é
problematizar as polarizações e os cânones típicos das representações culturais mais
tradicionais, ao passo em que prepara o espectador para receber a assertiva “Apenas fale ao
lado”. Esta agora já é recebida com mais densidade pelo público, que, a essa altura, já recebeu
uma série de imagens e reflexões sobre os efeitos danosos do colonialismo na África, sobre os
problemas das classificações impostas e dos preconceitos, além de críticas sobre a etnologia e
o documentário como meios pretensamente reconhecidos e autorizados a apresentar o Outro.

Em termos de imagem, o filme é todo marcado pela negação da continuidade, que,


eventualmente, ensejaria uma representação realista caso adotada. Ao contrário: bastante
fragmentado, o filme investe na descontinuidade e na opacidade da montagem, com planos
curtos, jump cuts, pontas pretas, enquadramentos parciais e oblíquos. Poderíamos dizer que há
uma recusa deliberada em seguir os ditames e os padrões da realização de um documentário
clássico. Como resultado final, temos a explicitação da postura ética da diretora, que
questiona os discursos elaborados para marcar e refendar lugares de autoridade e poder. A
opção por planos e recortes obtusos, movimentos de câmera interrompidos e trepidantes e
pela fragmentação na montagem, contribuem para a ênfase de que o filme é uma construção,
uma elaboração de discurso. Não há nada de natural no filme a que assistimos, tudo aparece
como resultado de uma opção, de um viés, de um ponto de vista deliberado, explicitado pela
crítica às convenções que se dá tanto na forma estética, quanto no conteúdo do comentário.

Há imagens que são recorrentes em Reassemblage. No entanto, não se trata da


repetição da mesma imagem numa espécie de looping, mas sim imagens semelhantes que vão
aparecendo no decorrer do filme. As encontramos nas diferentes regiões do Senegal filmadas
pela diretora. Em especial podemos destacar planos de animais mortos e as imagens de fogo.
Em relação a esse último, podemos destacar a menção que lhe é feita nocomentário, sempre
97

remetente à mulher, nesta passagem: “Em diversas histórias a mulher é descrita como aquela
que possui o fogo. Apenas ela sabia como fazer fogo. Ela o guarda em diversos lugares. No
final de uma vara que ela usa para cavar o chão, por exemplo. Nas suas unhas ou em seus
dedos.”

Fig. 05 e 06 – Frames de Reassemblage

A imagem do fogo evoca diferentes significados, podendo estar relacionado a


aspectos negativos, como destruição, ou a aspectos positivos, como iluminação e
transformação. Para Khadidiatou Guèye, que estudou o filme Reassemblage a partir da
perspectiva de uma estética africana, a premissa positiva prevalece nas representações do fogo
no filme.

O meu argumento é que o fogo é pré-condição para regeneração. Em “A


psicanálise do fogo” (1964), Gaston Bachelard enuncia a função de
purificação do fogo: “o fogo separa as substâncias e destrói as impurezas
materiais” (103). Em Reassemblage, eu gostaria de sugerir que o fogo no
qual a mulher rural coloca a panela para cozinhar, simbolicamente destrói os
clichês de marginalidade que a audiência poderia ligar a ela. As mulheres de
Trinh não podem ser entendidas através das interpretações fáceis e
precipitadas do público. Tampouco a complexidade da mulher pode ser
capturada pelo visual. Trinh especifica no filme que “a nudez não revela o
escondido. Ela é sua ausência.” A nudez é encarnada pelo vazio dos
significantes visuais. Trinh torna a mulher invisível e inapreensível
elevando-a a um nível mais alto do que o dos seres humanos ordinários, daí a
transcendência do significante do fogo. Então, a forma da estória que é
pontuada por repetições não estáticas e o conteúdo que repudia
interpretações monolíticas, enfatizam a criatividade de Trinh. Essa
criatividade não é confinada ao uso de intrigantes repetições disjuntivas. No
seu esforço incansável para evitar a fossilização e irrevocabilidade dos
98

significados culturais, Trinh usa silêncios através de todo o filme. (GUÈYE,


2008, p.22)

Outro aspecto importante presente nesta citação de Khadidiatou Guèye é a


referência à mulher. Trinh T. Minh-ha inicia Reassemblage com a imagem de um homem
adulto trabalhando, porém, com o avançar do filme as mulheres e crianças tomam conta da
tela. Há diversas passagens em que não vemos os homens, são as mulheres que estão
trabalhando pilando o milho, cuidando das moradias e das crianças. Há uma evidente
valorização da presença feminina no filme e, também, um sublinhamento dos espaços de vida
ordinários nas vilas rurais do Senegal. Não temos imagens de espaços sagrados ou ações
voltadas a rituais, por exemplo, elementos títpicos de filmes etnográficos de fatura clássica.
Os espaços que demarcariam certo estranhamento, certo exotismo, não são o foco das lentes
de Trinh T. Minh-ha. A valoração da mulher e dos espaços cotidianos ordinários contribui
para desfazer as expectativas tradicionais sobre a representação de uma cultura desconhecida
que seriam típicas das instâncias brancas, ocidentais e masculinas de poder.

Outra recorrência no filme são as imagens de seios femininos desnudos.


Novamente jogando com as expectativas em relação ao que seria típico na seara dos filmes
etnográficos tradicionais, Reassemblage insiste em um desmonte dos clichês, partindo de
estratégias típicas dos discursos hegemônicos para destituí-los de sentido e significado, ou
melhor, para denunciar que sempre foram imbuídos de significado, ainda que quisessem fazer
parecer que seriam descrições objetivas, científicas. Como observado por Khadidiatou Guèye
na citação incluída logo acima, a imagem da mulher com os seios desnudos, associada a
passagens da locução como, por exemplo, “a realidade é delicada. Minha irrealidade e
imaginação são de outra forma maçantes. O hábito de impor um significado para cada signo”
acabam por destituir a imagem da mulher desse significado previamente imposto por olhares
denunciados como masculinos pela diretora, para colocá-la em outro patamar de
interpretação, patamar esse que considera a complexidade da vida e das relações culturais
onde a mulher exerce o seu protagonismo.
99

Fig. 07 a 10 – frames de Reassemblage

Há um elemento em especial que atravessa todo o filme, desde o seu início até seu
final, insistentemente, que perturba especialmente as expectativas convencionais próprias aos
documentários de fatura clássica. São recorrentes os olhares em direção à câmera. Olhares que
impedem qualquer impressão de ilusionismo ou de objetividade. Estes denunciam a presença
da diretora em campo, sem, no entanto, evidenciar tal presença por meio de uma imagem sua.
O que se evidencia é uma relação que está posta. Uma relação assimétrica, pois esta que filma
porta um equipamento que é apontado aos sujeitos que são objeto de seu olhar. Alguém,
exterior àquela situação que observamos pelo filme, está presente e provoca a reação daqueles
sujeitos filmados. Todos olham: homens e mulheres. Velhos, adultos, jovens, crianças. Eles
reagem devolvendo seus olhares, seus sorrisos, sua desconfiança, sua permissão, sua
proximidade, sua adesão e sua indiferença. São olhares que permitem perceber diversos
momentos dessa relação que se estabelece entre cineasta e sujeitos filmados. Há olhares
espontâneos, flagrantes de instantes inesperados, quando o sujeito filmado devolve o olhar
percebendo a câmera que o acompanha silenciosamente. Há olhares deliberados, posados,
quando os sujeitos filmados estão abertamente em relação com a câmera, atuando ativamente
nessa relação.
100
101
102

Fig. 11 a 28 – Frames de Reassemblage

Ainda que exista essa relação assimétrica, a inclusão desses olhares remetidos
diretamente para a câmera parece confirmar aquela intenção declarada desde o início do filme
de que a diretora pretende “falar ao lado”. Assim, assistimos a uma série de eventos
cotidianos, filmados por alguém que está ali ao lado acompanhando o desenrolar desses
eventos e que não se furta de incluir no filme a reação à sua presença. Ao final, importa mais
o modo como o filme se constrói do que propriamente o tema sobre o qual pretende falar. E
para isso, a devolução dos olhares é fundamental para dar a ver uma relação que revele sua
ética por meio de uma estética politicamente comprometida com princípios e valores
associados ao desvelamento das relações de poder e de exploração usualmente subsumidas
nos discursos hegemônicos. Se quisermos utilizar os termos de Marcus (1999) que apontamos
mais acima, essa remissão do olhar dos sujeitos filmados para a câmera representa a opção da
diretora por uma bifocalidade como distância da alteridade.

A construção fílmica de Reassemblage é disjuntiva e coloca em diálogo as


imagens e os sons em uma estrutura rítmica que exalta a opacidade da linguagem
cinematográfica, negando o ilusionismo, a linearidade, a continuidade visual. As repetições
permitem que o filme construa uma tessitura complexa e densa de significados.

Há uma passagem no filme em que temos closes de meninas que sorriem.


Passamos para imagens de várias crianças reunidas posando para a câmera. Elas olham
diretamente para a lente. A locução pergunta: “O que podemos esperar da etnologia?”
Passamos para a imagem de fogo. São coqueiros em chamas. Imagem silenciosa. Depois,
temos imagens das moradias sob o ponto de vista de dentro de uma das casas olhando para
fora. Corte seco e vamos para a tela preta. Ouvimos falas, provavelmente na língua nativa da
região. Ao que tudo indica é uma conversação. Não temos legendas em relação que
103

desvendem a conversa. Aqui Trinh T. Minh-ha constrói uma passagem que ilustra a ideia de
que qualquer tentativa de tradução seria parcial, uma vez que não poderia dar conta da
complexidade da vida que observa. Enquanto olhamos para a tela preta e ouvimos a
conversação em uma língua que não conhecemos, passamos a nos questionar sobre a
dificuldade de toda e qualquer tradução, pois, não há tradução sem uma recontextualização,
sobretudo se considerarmos a tradução de culturas fortemente centradas na oralidade, com
nuances que vão da conversação para os cantos e assobios até chegar aos gritos. Aqui, as
vozes dos senegaleses deixam de trazer um significado, deixam de relatar algo, que teria sido
recortado e selecionado (por um antropólogo ou cineasta) e passam a figurar apenas como
sonoridade, como ritmo e entonação. A possibilidade da interpretação está descartada em
favor de uma possibilidade de experimentação na mostração da cultura do Outro. A
experimentação de padrões rítmicos, de entonações, de cores, de movimentos.

3.8 O filme e o caderno de campo

Reassemblage pode ser tomado como exemplo de uma etnografia experimental no


cinema. Nos deteremos sobre os aspectos sonoros de sua composição, analisando a locução
em voz over, escrita e narrada pela própria diretora, como uma espécie de leitura de um
possível caderno de campo, opção esta que seria, em si, outra crítica às práticas da
antropologia cultural tradicional, pois, faz um movimento contrário às convenções da
disciplina, que geralmente mantém os cadernos de campo como trabalhos pessoais, íntimos,
geralmente inacessíveis. Para esta discussão nos apoiaremos no texto Notes on (Field)notes,
de James Clifford (1990), que busca refletir sobre a função dos cadernos de campo,
problematizando e descentralizando a atividade da descrição na etnografia.

Entre 1977 e 1981, Trinh T. Minh-ha efetuou diversos trabalhos de campo na


África Ocidental, particularmente no Senegal, Mali e Burkina Faso, como parte de diferentes
expedições financiadas pela UNESCO e pelo Direction générale de la recherche scientifique
du Senegal, com vistas a produzir uma série de filmes sobre viagens e habitação. Neste
período residiu no Senegal e, graças à sua formação multidisciplinar, com estudos
aprofundados nas áreas de música, etnomusicologia e literatura comparada, atuou como
professora de língua inglesa no American Cultural Center e no Centre de Perfectionnement
de Langue Anglaise, de 1979 a 1980, e de música no National Conservatory of Music and
104

Drama, de 1977 a 1980, localizados em Dakar, capital do Senegal. Como resultado das
filmagens nos países africanos pelos quais passou, ela finalizou seus dois primeiros filmes. O
primeiro com imagens de áreas rurais apenas do Senegal e o segundo com imagens também
do Mali e de Burkina Faso.

3.9 Paisagem sonora, silêncio e locução em Reassemblage

A banda sonora é muito valorizada e utilizada de maneira inovadora, inserindo


cada elemento disponível de forma complexa na estrutura do filme. Podemos destacar três
aspectos sonoros distintos que são trabalhados pela diretora: em primeiro lugar o uso de
paisagens sonoras, termo que vem da tradução da palavra soundscape, conceito que se
popularizou a partir do trabalho do pesquisador canadense Murray Schaffer. Para o autor
(2012, p.99), “uma paisagem sonora consiste em eventos ouvidos e não objetos vistos.” Ela é
composta por “aqueles sons que são importantes seja devido sua individualidade, sua presença
numerosa ou sua dominância.” (ibidem, p.100). Para o autor, em determinadas culturas não
ocidentais o relacionamento com os sons predomina em detrimento do relacionamento com os
elementos visuais. Este seria o caso de populações de áreas rurais da África, que

vivem amplamente em um mundo de sons – um mundo carregado de


significados diretamente pessoais para o ouvinte – enquanto que europeus
ocidentais vivem muito mais em um mundo visual, o que é completamente
indiferente para eles ... sons perdem muito da sua significação na Europa
ocidental, onde o homem frequentemente desenvolve, e deve desenvolver,
uma habilidade notável em desprezá-los. Enquanto para europeus em geral
“ver é crer”, para africanos das áreas rurais, a realidade parece residir muito
mais no que é ouvido e no que é dito ... De fato, alguém é constrangido a
acreditar que o olho é considerado por muitos africanos menos como um
orgão que recebe do que um instrumento da vontade, o ouvido sendo o
principal orgão receptor. (SCHAFER, 2012, p. 102).

As paisagens sonoras em Reassemblage são construídas com a repetição de


músicas, sons de instrumentos musicais, cantos, conversações, sons de insetos e de batidas no
pilão, que não são utilizadas em sincronia com as imagens das respectivas ações, e passam a
atuar como formas expressivas autônomas, com presença marcante na estrutura rítmica
elaborada para o filme.
105

A utilização dessa sonorização pontua o filme e ajuda a apresentar as diferentes


regiões e os seus diferentes povos (Manding, Peul, Sereer, Bamun, Bassari, Bobo), não de
modo convencional, mas de maneira original, enfatizando aspectos menos objetivos e mais
ligados à sensibilidade em relação à dimensão sonora.. Apesar de negarem a sincronicidade
com as imagens, os sons acabam trazendo a sonoridade das línguas faladas em cada
localidade específica, assim como os sons encontrados em cada região. (insetos, aves, sons
dos trabalhos com o pilão), optando por uma estratégia discursiva menos evidente do que as
estratégias de identificação assentadas sobre a utilização das imagens, porém, bastante
expressiva. Segundo a diretora,

O que me interessa é o modo como certos ritmos retornavam a mim


enquanto eu estava viajando e filmando pelo Senegal, e como a entonação e
inflexão de cada uma das diversas línguas locais me informavam sobre onde
eu estava. Por exemplo, o filme trouxe a qualidade musical da linguagem
dos Sereer por meio de trechos não-traduzidos de conversação entre os
aldeões e variando a repetição de certas frases. Cada língua tem sua própria
musicalidade e sua prática não tem que ser reduzida a uma mera função de
transmitir significado. A repetição de que fiz uso tem, consequentemente,
nuances e diferenças inseridas em si, então essa repetição aqui não é apenas
uma reprodução automática da mesma, mas, preferencialmente, a produção
da mesma com e nas diferenças. (TRINH, 1992, p.114).

Em segundo lugar, podemos destacar a presença dos silêncios na banda sonora de


Reassemblage. Assim como as paisagens sonoras, a utilização dos silêncios é importante para
a estrutura rítmica do filme, pois, servem como marcações que o ajudam ao filme a
desenvolver seus compassos e a dar andamento aos diversos temas que desenvolve (aqui nos
referimos aos aspectos tipicamente musicais desses dois termos, sendo o primeiro responsável
por dividir os sons em grupos e o segundo pela velocidade com que esses grupos se alternam).
Os silêncios tem, ainda, um importante papel de provocar estranhamento, desnaturalizando as
imagens e enfatizando a opção pela opacidade da linguagem, demonstrando que cada aspecto
presente em sua estrutura é resultado de uma opção deliberada da cineasta. Justaposição de
planos mais abertos ou mais fechados de um mesmo objeto ou sujeito. Imagens
acompanhadas de sonorização ou em silêncio. Pontas pretas. As imagens saltam aos olhos do
espectador, provocadas pelos jump cuts. A descontinuidade visual e narrativa contribui para
certo distanciamento crítico por parte do espectador, que é instado a uma reflexão não apenas
106

devido a esse trabalho de montagem, mas também pelas assertivas e declarações da cineasta
na locução.

O terceiro e último aspecto sonoro que gostaríamos de ressaltar no filme é a


utilização da locução em voz over, recurso que, na tradição do cinema documentário, foi
largamente utilizado nos filmes de retórica mais objetiva, alvos preferenciais das críticas
proferidas pela diretora em Reassemblage. Com a intenção de elaborar uma descrição
generalizante e totalizante sobre o assunto abordado, os filmes associados ao que se
convencionou chamar de modelo clássico de documentário, demonstram uma postura
onisciente sobre o mundo, no que já foi identificado por muitos como “voz de Deus”.
Elaboram discursos detentores de saber sobre esse mundo histórico, que resultam em filmes
descritivos, expositivos e informativos.

Segundo Bill Nichols, tal recurso

fomentou a cultura do comentário com voz masculina profissionalmente


treinada, cheia e suave em tom e timbre, que mostrou ser a marca de
autenticidade do modo expositivo, embora alguns dos filmes mais
impressionantes tenham escolhido vozes menos educadas, precisamente em
nome da credibilidade que obtinham evitando tanto treino (2007, p. 142).

Apesar de normalmente estar associada a esse modelo chamado de expositivo, a


locução em voz over foi utilizada de modo criativo e não convencional em diversos filmes
que se destacam na história do cinema documentário, demonstrando que a opção pela
utilização desse recurso não se resume a seguir ditames voltados a discursos objetivos, sendo,
muitas vezes, um recurso criativo e inventivo. Podemos citar aqui uma série de filmes de
diretores notáveis, como Chris Marker (Lettre de Sibérie, 1957), Jean Rouch (Moi, un Noir,
1958) e Agnès Varda (Salut les Cubains, 1963), para citar apenas alguns precursores, que
utilizaram locuções irônicas, poéticas, bem humoradas, com referências autobiográficas,
fabulações, estruturas epistolares, etc.

É evidente que a opção de Trinh T. Minh-ha na utilização da locução em voz over


no filme aqui em questão em tudo se diferencia dos aspectos relacionados à proposição de Bill
Nichols acerca da “Voz de Deus”. De imediato podemos observar o fato de ser a própria
diretora que realiza a locução, em oposição à “voz masculina profissionalmente treinada”. Sua
107

inflexão é sutil e frágil, quase introspectiva, em oposição à “voz cheia e suave em tom e
timbre”. Ademais, seu comentário é feito em inglês, que não é sua língua materna, o que
deixa sua exposição verbal carregada de sotaque. A relação de alteridade entre filmador e
filmado característica do documentário clássico sofre, aqui, um revés, visto que os dois
elementos de mostração do outro são, ambos, Outro.

Conforme apontamos anteriormente, a locução não se limita a descrever a imagem


em qualquer passagem do filme. Ao invés disso, elabora sentenças quase autônomas, que têm
diferentes efeitos em sua estrutura discursiva fragmentada. Faremos aqui um esforço em
propor uma categorização para os tipos de sentença que julgamos presentes no filme. A ideia
é permitir uma análise mais detalhada da locução do filme em comparação a aspectos de um
caderno de campo. Consideramos que podemos definir as passagens do comentário em
Reassemblage a partir de cinco categorias:

1) Proposições assertivas – trechos em que a cineasta realiza afirmações enfáticas, que são
importantes para indicar como ela se posiciona em relação ao seu tema e seu objeto, sem as
necessidades de fazer afirmações objetivas para isso, como na passagem inicial, “menos de
vinte anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definissem como
subdesenvolvidas”. Assim, podemos inferir que ela escolheu falar a partir do ponto de vista
dos princípios do pós-colonialismo. O mesmo pode ser percebido nesta outra passagem:
“filmar na África significa para muitos de nós imagens cheias de cores, mulheres de seios
desnudos, danças exóticas e ritos temerosos. O incomum”, afirmação sobre a qual vai
construir uma série de contrapontos visuais no filme para exercer uma crítica sobre a
representação da África encontrada tradicionalmente no cinema.

2) Aforismos – importantes para marcar a postura ética segundo a qual pautou suas decisões
na elaboração do filme. Nesta categoria temos a famosa sentença “Eu não pretendo falar
sobre. Apenas falar próximo”, onde busca fazer uma afirmação de princípios e opor-se ao
típico “falar sobre” das representações culturais tradicionais. Outro exemplo está no trecho:
“documentário porque a realidade é organizada em uma explicação de si mesma”, quando
Trinh T. Minh-ha direciona sua crítica para as formas clássicas de documentários descritivos e
informativos, marcados pela pretensão da objetividade vinda da observação externa ao
processo cultural que está sendo descrito.

3) Descrições de cenas – em diversas passagens a cineasta descreve cenas, talvez hipotéticas


em alguns casos, mas possivelmente visualizadas por ela anteriormente em outros, que nunca
108

estão sendo vistas pelo espectador. Esta opção reforça a postura de enfatizar que a realidade é
mais complexa e intrigante do que é possível conceber em uma descrição ou representação,
seja ela escrita ou visual. Como já vimos, logo no início do filme temos a passagem “em
Enampor, Andre Manga diz que seu nome está listado em um livro de informações para
turistas. Sobre a entrada da sua casa há uma placa escrita à mão que diz ´trezentos e cinquenta
francos´. Um fato antropológico vazio”, trecho que nos leva a refletir sobre a questão da
intersubjetividade presente no trabalho de campo. Em outra passagem, mais adiante, ela
descreve a seguinte cena: “um etnólogo e sua esposa ginecologista voltaram por duas semanas
a uma vila onde eles realizaram trabalho de campo no passado. Ele se define como uma
pessoa que ficou bastante tempo na vila, tempo o suficiente, para estudar a cultura de um
grupo étnico. Tempo, conhecimento e segurança. `Se você não ficou tempo suficiente em um
lugar você não é um etnólogo`, ele diz. Mais tarde ao anoitecer, um círculo de homens se
reúne em frente à casa onde o etnólogo e sua esposa ginecologista estão. Um dos aldeões está
contando uma estória, outro está tocando música em seu alaúde improvisado, o etnólogo está
dormindo ao lado do seu gravador de áudio que está ligado. Ele pensa que exclui valores
pessoais. Ele tenta ou acredita, mas como ele pode ser um Fulani? Isso é objetividade.” Aqui
temos uma cena que descreve uma relação que implica em lugares de poder determinados,
que buscam se legitimar por critérios que seriam validados por suas pretensas cientificidade e
objetividade.

4) Indagações e reflexões – diversos trechos da locução do filme fazem perguntas e


proposições que problematizam definições que poderiam ser consideradas como inequívocas
por um olhar mais apressado, como, por exemplo, a passagem “um filme sobre o quê? Meus
amigos perguntam. Um filme sobre o Senegal; mas o quê no Senegal?” Uma afirmação
aparentemente trivial reverte-se em uma pergunta que toca no ponto nevrálgico do projeto
político, ético e estético de Trinh T. Minh-ha, qual seja, o de que todo discurso implica um
sujeito histórico, um olhar elaborado sobre seu objeto. Dito de outro modo, ao propor essa
questão, “mas o quê no Senegal?”, a cineasta está afirmando que o Senegal, ou, por extensão,
qualquer outra realidade cultural, não pode ser resumida a definições fechadas, objetivas,
digamos, positivistas. Outro exemplo a ser destacado é a pergunta “o quê podemos esperar da
etnologia?” Evidentemente não há uma resposta objetiva a esta questão, que adquire
relevância e densidade quando surge, uma vez que já houve, naquela altura do filme, um
acúmulo de informações, de construções e de argumentações que levam o espectador a
considerar a indagação e duvidar das afirmações peremptórias.
109

5) Repetições e reformulações – O filme tem uma estética baseada na repetição, algo notado
visivelmente em sua estrutura narrativa, na articulação das imagens com os sons. Porém, é
sobretudo na utilização do comentário que a repetição adquire maior significação. Não se trata
de uma repetição mecânica, automática. Está mais relacionada a um retorno a um argumento
prévio para repensá-lo, confrontá-lo novamente para melhor poder apresentá-lo novamente. É
mais propriamente uma reformulação, como se acompanhássemos o próprio ato de reflexão
da cineasta, que indaga mais uma vez seu objeto e não só, mas se questiona novamente.
Acompanhamos o amadurecimento de questões e problemas com os quais a cineasta trava um
embate. Assim acontece com as principais passagens da locução, como aquela a que já nos
referimos e que está colocada justo no início do filme: “menos de vinte anos foram suficientes
para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definam como subdesenvolvidas”, assim como
com a questão “Eu não pretendo falar sobre. Apenas falar ao lado”, que retorna mais ao final,
já resumida e ressignificada, apenas com a frase “falar sobre”. As reformulações configuram-
se como anotações de um processo de reflexão, a exposição de uma elaboração intelectual de
interpretação de uma realidade cultural. Ao optar por esse procedimento, a cineasta está como
que a desvelar as convenções da construção de narrativas etnográficas.

3.10 Considerações sobre o caderno de campo

Em seu já citado ensaio Notes on (Field)notes, James Clifford traz para o centro
de sua reflexão os cadernos de campo, deslocando o foco sobre a atividade da descrição
etnográfica do seu texto final para a etapa de sua gênese ainda no trabalho de campo, quando
começa a tomar forma por meio de anotações, registros e descrições de processos culturais.
Para Clifford, “cadernos de campo são cercados por lenda e frequentemente certo sigilo. Eles
são registros íntimos, cheios de significados – temos dito – apenas para o seu escritor.” (1990,
p. 52). Segundo o autor, não há definição exata sobre o que constitui um caderno de campo. O
trabalho de campo, seu lugar de origem, pode incorporar diferentes fontes de informação e de
evidências sobre as quais o antropólogo se debruçará para elaborar sua etnografia, que, ao
final, será o resultado de um processo de generalizações, sínteses e teorização. “O trabalho de
campo é um conjunto complexo de experiências históricas, políticas e intersubjetivas que
fogem das metáforas de participação, observação, iniciação, harmonia, indução, aprendizado,
e assim por diante, frequentemente adotadas para explicá-lo.” (CLIFFORD, 1990, p. 53).
110

Em seu exercício de reflexão sobre a constituição do caderno de campo, Clifford vai


utilizar três fotografias que registraram diferentes etnógrafos em trabalho de campo,
especificamente em momentos de escrita, para “ilustrar e distinguir graficamente três
momentos distintos na constituição do caderno de campo (Eu posso apenas especular o que
realmente estava acontecendo em cada uma das três cenas de escrita).” (CLIFFORD, 1990, p.
51).

Fig. 29: Joan Larcom em campo em Malekula, Vanuatu.

Na figura 01 temos a primeira das fotografias citadas por Clifford em seu ensaio,
um registro da etnógrafa Joan Larcom, na ilha de Malekula, Vanuatu. Conforme podemos
notar na fotografia, ela está sob uma tenda, entre mulheres e crianças, olhando para um papel
que tem em mãos. Duas mulheres olham diretamente para fora do quadro na direção oposta à
da etnógrafa. Uma delas tem em seu colo um garoto, que olha atentamente para as mãos da
111

etnógrafa, que seguram papel e caneta. Um garoto, posicionado logo à sua frente, olha
diretamente para a câmera, assim como outro menino que está de pé ao fundo da cena.

Fig. 30: C.G. Seligman em campo na Nova Guiné.

A figura 02 apresenta a segunda fotografia da série, que mostra o etnógrafo C.G.


Seligman na Nova Guiné, no ano de 1898, sentado em uma mesa escrevendo suas notas. A
mesa está tomada por diversos objetos. Ao seu lado um dos homens está sentado em outra
cadeira, ambos são rodeados por um grupo de homens e garotos em pé, alguns dos quais
olham diretamente para a câmera.

Por fim, a figura 03 apresenta a terceira fotografia, que mostra o famoso etnógrafo
Bronislaw Malinowski trabalhando em uma mesa sob uma tenda nas ilhas Trobriand. Ele está
de perfil, aparentemente concentrado em seu trabalho no que parece ser uma máquina de
112

escrever. Ao fundo alguns garotos estão ajoelhados e homens estão de pé, do lado de fora da
tenda. Há uma clara separação entre o etnógrafo, na penumbra da tenda, e os nativos da ilha,
que estão do lado de fora, observando-o.

Fig. 31: Malinowski em campo nas ilhas Trobriand.

Para Clifford, essas três fotografias “dizem muito sobre as ordens e desordens do
trabalho de campo”. (1990, p. 51). Para detalhar sua proposta de reflexão, ele vai propor a
definição de três diferentes momentos no trabalho de campo. Optamos em transcrever aqui as
considerações do autor sobre esses momentos, deixando para compará-las mais adiante com
nossas proposições relacionadas ao texto da locução de Reassemblage.

Para o autor, a figura 01 representa um momento de inscrição.

Eu imagino que a foto de Joan Larcom olhando para suas notas registra uma
pausa (talvez por apenas um instante) no fluxo do discurso social, um
momento de abstração (ou distração) quando o observador-participante anota
113

uma frase ou palavra mnemônica para fixar uma observação ou para recordar
algo que alguém acabou de dizer. A foto também pode representar um
momento quando a etnógrafa se refere a alguma lista prioritária de questões,
traços de personalidade, ou hipóteses – uma relação pessoal de “notas e
consultas”. Porém, mesmo que a inscrição seja simplesmente uma questão
de, como dizemos, “tomar uma nota mental”, o fluxo da ação e do discurso
foi interrompido, direcionado para a escrita. (CLIFFORD, 1990, p. 51)

Seguindo as demais descrições de Clifford, a figura 02 representa um momento de


transcrição.

Talvez o etnógrafo tenha feito uma pergunta e esteja escrevendo a resposta:


“Como você chama isso e isso?” “Chamamos isso assim e assim” “Diga isso
novamente, lentamente.” Ou o escritor esteja tomando um ditado,
registrando o mito ou a magia associada a um dos objetos sobre a mesa. Esse
tipo de trabalho era do tipo que Malinowski tentou desalojar do papel central
em favor da observação-participante: se afastando da mesa da varanda e
caminhando por aí, conversando, questionando, ouvindo, observando – e
escrevendo tudo mais tarde. Porém, apesar do sucesso do método de
observação-participante, a transcrição permaneceu crucial no trabalho de
campo, especialmente quando a pesquisa é orientada à linguística ou à
filologia, ou quando coleta (eu prefiro “produz) textos indígenas extensos.
(CLIFFORD, 1990, p. 51).

Finalmente, ainda segundo o autor, a figura 03 representa um momento de


descrição.

a realização de uma representação mais ou menos coerente de uma realidade


cultural observada. Ainda que fragmentada e rascunhada, tais descrições de
campo são designadas para servir como base de dados para escritas e
interpretações posteriores visando a produção de uma narrativa finalizada.
Esse momento de escrita no campo gera o que Geertz (1973) chamou
“descrições densas”. Ela envolve, como a foto de Malinowski registra, um
afastamento do diálogo e observação para um lugar separado de escrita, um
lugar para reflexão, análise e interpretação. (CLIFFORD, 1990, p. 51-52).

Como enfatiza o próprio autor em seu texto, a descrição destes momentos foi um
exercício de abstração, uma vez que eles não existem em estado puro, separados, mas acabam
por se misturar e se alternar nas sequências de encontros e mudanças que acontecem no
trabalho de campo. Tal exercício foi necessário para levar adiante a proposta que ele colocava
114

no texto sobre o qual estamos nos apoiando, quando buscava lançar uma reflexão sobre o
processo de elaboração do caderno de campo, ao invés de analisar etnografias escritas já
finalizadas. Aqui em nossa proposta servirão de apoio para a análise do filme Reassemblage.

3.11 Reassemblage – o filme como exposição do caderno de campo

Reassemblage não se trata evidentemente de um documentário clássico, não é um


filme eminentemente experimental, não é propriamente um filme etnográfico, não é
simplesmente um diário pessoal ou um filme de viagem. De certo modo, a um só tempo, o
filme dialoga com cada uma dessas expressões do cinema de não-ficção, deslocando as
premissas relacionadas a essas searas fílmicas. Ao não se enquadrar em definições rigorosas e
categorizações previamente definidas, o filme desafia o espectador a uma interpretação que
dialogue com essas diferentes tradições que ele coloca em contato.

O aspecto fragmentário e disnarrativo do filme nos provoca de tal modo, que


somos levados a pensar nas opções adotadas pela cineasta para definir suas estratégias, suas
opções. Uma maneira de buscarmos uma aproximação original a ele foi realizar uma análise
comparativa entre sua locução em voz over e a descrição dos momentos do trabalho de campo
do etnógrafo, conforme descritos por Clifford (1990). Seria possível considerar que o filme se
configura como a exposição de um caderno de campo? Ou seja, poderíamos considerar que
seu aspecto fragmentário e disnarrativo é resultado de uma estrutura de anotações, de esboços,
de impressões e interpretações ainda não elaboradas, não depuradas, como nas anotações de
um caderno de campo? Poderia Reassemblage ser considerado uma versão fílmica de um
possível caderno de campo de Trinh T. Minh-ha no período em que ela realizou suas
filmagens no Senegal?

Para Clifford, os cadernos de campo “constituem uma base de dados descritiva,


crua, ou parcialmente cozida, para generalização, síntese e elaborações teóricas posteriores.”
(1990, p.52). Como na metáfora da base de dados crua para os cadernos de campo, podemos
considerar que, quanto ao comentário verbal, o texto de Trinh T. Minh-ha remete a essa ideia
de alguma coisa não acabada, portanto, próximo dessa imagem de algo ainda cru, proposta
por Clifford. A locução do filme não tem uma estrutura narrativa clara. Assim, para manter
uma mesma chave de análise, podemos considerar que apresenta uma estrutura parcialmente
115

cozida, resultando em um filme que não pode ser enquadrado em uma definição rígida, que se
apresenta em “preparo”, para usar mais uma vez a metáfora do autor.

Tomemos os momentos do trabalho de campo propostos por Clifford (1990) para


iniciar nossa análise. Dos três momentos por ele descritos, um em especial pode ser
relacionado às categorias de análise que propusemos aqui. Trata-se do momento de inscrição,
que seria marcado por uma quebra no trabalho de anotações em favor de uma abstração ou
mesmo de uma distração. Seria o momento das anotações e da recuperação de listas prévias
de questões e hipóteses, quando a observação se interrompe e o etnógrafo se volta para o ato
da escrita. Esse momento, segundo Clifford (1990), “é tanto o processo de fazer quanto de
refazer os textos. Escrever é sempre em algum grau reescrever” (1990, p.54). Em nossa
análise da locução de Reassemblage, definimos cinco categorias para a interpretação das
diferentes proposições do texto. Em uma comparação com o momento de inscrição
poderíamos considerar que todas as categorias têm relação estreita com a natureza das
anotações obtidas em um momento de inscrição. Talvez uma exceção possa ser feita em
relação à categoria descrição de cenas, que teria uma identificação maior com o momento de
descrição proposto. As categorias da locução constroem esse aspecto ensaístico do texto, de
uma reflexão que se constrói no processo. De uma elaboração que surge de um segundo
pensamento.

Com a opção por uma locução ensaística para o filme, contendo características de momentos
de inserção no campo, Trinh T. Minh-ha estaria também realizando uma crítica às formas
convencionais de etnografia, formas estas que geralmente se apresentam apenas em suas
formulações finais, já acabadas, relegando aos arquivos pessoais o processo de escrita, o
processo de formulação. Com essa estratégia a diretora expõe o seu caderno de campo no
filme, trazendo para o primeiro plano o seu processo de elaboração. contribuindo assim para a
revisão das práticas de escrita etnográficas, que encontram no processo fílmico um terreno
fértil para a experimentação.

3.12 Naked Spaces – os espaços de moradia dos povos da Terra

Naked Spaces – living is round é o segundo filme da cineasta Trinh T.Minh-ha.


Foi lançado em 1985 e montado a partir de filmagens em países da África ocidental no
período de 1977 a 1980, com passagens por áreas rurais do Burkina Faso, Benin, Mauritania,
116

Togo e Senegal. Parte do material obtido no Senegal já tinha resultado no seu primeiro filme,
analisado mais acima. Diversas são as aproximações possíveis entre esses dois filmes
realizados pela cineasta na África Ocidental. De modo sucinto podemos dizer que Naked
Spaces retoma a postura crítica de Reassemblage em relação a formas de representação
cultural, como o cinema documentário e a antropologia, enfatizando aspectos por ela
considerados como enraizados na cultura ocidental que seriam típicos de vieses orientados à
perpetuação de instâncias de poder, à manutenção de domínios e disciplinas que se
prevalecem de polaridades cristalizadas – tais como a noção de civilizado e primitivo, por
exemplo. Entretanto, no caso deste segundo filme, o faz de outra maneira, menos direta nas
assertivas críticas que endereça diretamente a disciplinas ou práticas específicas, sendo mais
complexo, compondo um trabalho que valoriza diferentes formas de racionalidade expressas,
sobretudo, em uma construção sofisticada da voz over. Diferentemente do primeiro filme, há,
em Naked Spaces, a valorização de tempos mais lentos que se constroem por meio de planos
mais longos cujos contornos produzem sentidos que sublinham aspectos como a questão do
espaço e das moradias nas vilas rurais e tribais. Através deles, os diferentes países, os
diferentes povos, as diferentes regiões da África Ocidental nos são apresentados. Sem nunca
lançar mão de argumentos descritivos em relação as imagens, somos apresentados a uma
diversidade de modos de vida, de cores e de movimentos que expressam a complexidade
social dos “povos da Terra24”. Nossa atenção é convocada a ações típicas da cultura material,
como o trabalho de arar a terra, tecer o algodão ou peneirar a farinha. Não obstante, o objetivo
do filme não é descrever, fazer uma etnocinematografia desses elementos. Não como o faria
um filme etnográfico convencional, por exemplo. É interessante notar como a cineasta busca
romper com as posições entre os “de dentro” e os “de fora”, filmando recorrentemente as
moradias e vilas a partir do ponto de vista interno das casas, lançando um olhar para o espaço
comum a partir do ambiente privado, construindo um mosaico sobre esses lugares e modos de
vida.

24
Fazemos aqui uma referência ao comentário em voz over do filme que abre com essa expressão: “People of
the Earth”.
117

Fig. 32 a 39 – Frames de Naked Spaces


118

Este segundo filme é menos radical em sua forma fílmica. Menos fragmentado e
disjuntivo do que Reassemblage, por exemplo. Aqui, a opção foi por uma estrutura circular
que valoriza o movimento, algo que pode ser notado pela recorrência de panorâmicas e pela
organização de sua estrutura geral, que se inicia e se encerra pelo Senegal. Nas imagens de
Naked Spaces os povos africanos estão quase sempre em movimento, em danças e rituais,
como a comprovar o provérbio “movimento é vida”. Há, neste caso, uma problematização do
espaço operada por meio da justaposição de diferentes lugares de moradia, de trabalho, de
celebração, espaços compartilhados e privados, de culturas diferentes, povos diferentes.
Diferentes entre si e diferentes da cineasta que os filma.

Enquanto Reassemblage é um média-metragem com pouco mais de quarenta minutos,


Naked Spaces é um longa-metragem, com mais de duas horas. Outra diferença essencial, e
que nos interessa mais diretamente, é a utilização da voz over. Em Reassemblage a locução
em voz over é realizada pela própria cineasta, em um texto escrito em primeira pessoa, com
leitura carregada de sotaque e elaborada com inflexões diversas, enfatizando a subjetividade
na sua construção. A de Naked Spaces contém três vozes distintas nos comentários, em uma
complexa articulação de tons, timbres e sentidos, que buscaremos descrever adiante. Aqui
temos uma opção estética radical dedicada a problematizar a perspectiva, a voz.

Para melhor desenvolvermos nossa proposta, antes de abordarmos o filme


especificamente, teceremos algumas considerações sobre o uso da voz over na tradição do
cinema documentário, buscando reconhecer como tal estratégia se tornou um dos cânones do
cinema documentário mais convencional. Paralelamente, abordaremos casos exemplares de
uso da locução em voz over em filmes inovadores e mais alinhados a estratégias
experimentais dentro dessa seara fílmica. Essa perspectiva sobre a utilização desta estratégia
discursiva específica na tradição do documentário nos permitirá melhor apresentar os
argumentos de originalidade e inventidade que entendemos existir na utilização da locução
em voz over em Naked Spaces.

3.13 Considerações sobre o uso da voz over na tradição do documentário

A despeito do uso recorrente dos termos voz off e voz over de forma praticamente
intercambiável no Brasil, cabe aqui inicialmente uma consideração de cunho conceitual. Para
Fernão Ramos,
119

voz over é um conceito de origem anglo-saxã que designa a fala fora-de-


campo que assere. Refere-se particularmente à voz sem corpo, personalidade
ou identidade, que enuncia fora-de-campo na narrativa documentária (...)
Geralmente é dotada de saber, expresso em asserções sobre o mundo. (...)
Quando a fala que enuncia fora-de-campo possui identidade, podemos usar a
expressão voz off ou fora-de-campo. (2008, p. 407).

Uma diferenciação mais precisa entre voz over e voz off pode ser encontrada no
livro Invisible storytellers: voice-over narration in american fiction film, de Sarah Kozloff
(1988), que, como o próprio nome aponta, estudou o uso da locução em voz over no cinema
de fição norte-americano. Entretanto, não fez isso sem antes passar por outras formas de uso
desta estratégia no cinema, como o caso do cinema documentário. Para Kozloff,

“Over”, na realidade, implica mais do que a mera ausência da tela; alguém


poderia distinguir voz over de voz off em termos do espaço de onde esta voz
presumivelmente se originou. No segundo caso, aquele que fala está apenas
temporariamente fora do campo da câmera, a câmera poderia dar uma pan ao
redor da mesma cena e capturar quem está falando. Ao contrário, a voz over
pode ser distinguida pelo fato de que alguém não conseguiria filmar aquele
que está falando simplesmente ajustando a posição da câmera no espaço da
estória. Em vez disso, a voz vem de outro tempo e espaço, o tempo e o
espaço do discurso. (1988, p.03).

A proposição de Kozloff nos interessa mais diretamente aqui em nosso trabalho,


pois fornece balisas mais precisas para uma atenção qualificada ao discurso elaborado em voz
over, algo que será importante para efetuarmos nossa análise desta estratégia no filme Naked
Spaces, que será desenvolvida mais adiante.

De acordo com Kozloff (1988), podemos notar que a prática da narração em voz
over no cinema certamente é tributária de experiências anteriores levadas a cabo em outros
veículos, como a locução radiofônica, por exemplo. No rádio podemos localizar experiências
como o Mercury Theater nos anos 1920, programa ligado à narrativa romanesca – que
revelaria Orson Welles - e a série The march of time, noticioso que começa nas ondas
radiofônicas em 1931, tornando-se um cinejornal em 1935. A prática nos cinejornais foi
decisiva para o desenvolvimento desse formato. As dificuldades técnicas dos primeiros
equipamentos de registro sonoro, pesados, desajeitados e com problemas de ruído na captação
120

encorajaram a prática da gravação separada da locução, com sincronização posterior ao


material montado. Tal método significava conveniênica e economia e, sobretudo, era muito
adequado aos propósitos de expor informação pelo discurso, algo caro a esse tipo de produto.
Além disso, permitia agilidade operacional em um trabalho de montagem que exigia a
conjugação de materiais distintos: o encontro de imagens de arquivo as mais diversas, e ainda
reencenações, gráficos e animações. A locução em voz over dava unidade a tempos e lugares
distintos em benefício de uma estrutura informativa.

A utilização de locução em voz over ocupa papel central na tradição do


documentário. Seja em sua ampla utilização como estratégia paradigmática de um modelo
clássico, onde a lógica regente é a da utilização expositiva de argumentos objetivos sobre o
mundo, seja em vertentes mais poéticas ou subjetivas, onde uma voz mais lírica e pessoal dá
abertura para trabalhos mais originais e inventivos. Mesmo vertentes do documentário
moderno, desenvolvidas a partir de conquistas tecnológicas que permitiram a este tipo de
cinema sair a campo, sair às ruas e acompanhar o fluxo da vida em seu desenrolar.
Registrando os eventos com som sincrônico de forma mais fiel e operacionalmente facilitada,
pautaram sua postura ética tendo no horizonte o uso da locução em voz over, como estratégia
a ser evitada a todo custo, vide os dogmas do cinema direto norte-americano e do cinema-
verdade francófono.

Pesquisas recentes no campo dos estudos de cinema têm demonstrado que a


historiografia clássica do cinema documentário consolidou certos lugares-comuns sobre a
história e a tradição deste tipo de prática. Para Kozloff (1998), a locução em voz over sofreu,
historicamente, preconceito por parte da crítica e dos acadêmicos, sendo relegada a posições
marginais ou tratada de modo desinteressado, algo que tem se modificado na última década.

Sabemos que, mesmo no âmbito da escola inglesa de documentários dos anos


1920 e 1930, onde se forjou e se consolidou o modelo griersoniano de documentário, “cuja
ética educativa não encontra dilema em assumir missão de propaganda” (Ramos, 2008, p. 35),
houve experiências inovadoras no uso da locução em voz over. A tecnologia, naquele
momento ainda uma novidade, contribuiu para a maturação e definição de um modelo
canônico, amplamente utilizado ainda hoje por boa parte dos documentários de fatura
clássica.

Os trabalhos do Empire Market Board e do General Post Office, sob os auspícios


de John Grierson, utilizaram livremente a narração em voz over, experimentando e
121

expandindo suas possibilidades. São bastante conhecidos os casos de Song of Ceylon (Basil
Wright, 1934), Night Mail (Harry Watt e Basil Wright, 1935) e Coal Face (Alberto
Cavalcanti, 1936), trabalhos deste período que utilizam a banda sonora, sobretudo a locução
em voz over, de modo criativo e original, destacando-se do modelo convencional da estrutura
meramente expositiva.

No período do pós-segunda guerra mundial, mais precisamente no final da década


de 1950, surgiram filmes que levaram o uso da locução em voz over no documentário a novos
patamares, fugindo dos modelos didáticos do documentário clássico e abraçando formas
irônicas e poéticas, abertas às subjetividades, permitindo ao documentário expandir seus
limites em modos mais experimentais de enunciação por meio da voz over. Para Consuelo
Lins, (2007, p. 147) “Chris Marker e Agnès Varda são os primeiros a integrar experiências
subjetivas nos próprios filmes, articuladas a uma interrogação sobre o mundo e a uma reflexão
sobre as imagens, por meio uma narração em off25 ensaística e subjetiva.” Podemos citar
como casos emblemáticos desta prática os filmes Lettre de Sibérie (1957), de Chris Marker, e
Salut les Cubains (1963), de Agnès Varda, amplamente analisados na bibliografia sobre
cinema documentário.

3.14 A voz over em Naked Spaces

Em Naked Spaces, o trabalho com a voz over vai além do que poderíamos
considerar uma locução meramente poética ou lírica, ou mesmo subjetiva ou pessoal, e
apresenta uma construção mais complexa, sendo realizada por três diferentes vozes, todas
femininas. Cada uma das vozes tem uma característica peculiar em relação à sua inflexão e
entonação. A voz número 1 - com leitura mais grave - é aquela que profere as sentenças
assertivas, citando declarações anônimas colhidas no trabalho de campo, provérbios populares
e trabalhos de escritores africanos. Entre os autores citados estão Ogotemmeli, velho caçador
cego Dogon que foi interlocutor de Marcel Griaule; Amadou Hampate Ba, escritor do Mali
reconhecido por trabalhar sobre a tradição oral de seu país; Birago Diop, escritor e poeta
senegalês que trabalha sobre o folclore de seu país; Boubou Hama, escritor e historiador
nigeriano; Victor Aboya, nativo de Gana que foi informante de Robert Sutherland Rattray, um
dos primeiros pesquisadores africanistas, além de outros autores africanos citados por John

25
Termo usado no texto original. Exemplo do uso intercambiável dos termos off e over no Brasil ao qual nos
referimos mais acima.
122

Miller Chernoff, percussionista e etnomusicólogo que trabalhou na África ocidental. A voz


número 2 - mais aguda – enuncia de acordo com a lógica ocidental e cita principalmente
pensadores ocidentais. Aqui encontramos citações do filósofo e poeta francês Gaston
Bachelard; do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare; do poeta francês Paul Eluard;
da historiadora norte-americana da arte e de estudos africanos Suzanne Preston Blier; do
escritor chinês Lin Yutang; do escritor e semiólogo francês Roland Barthes; da escritora
feminista e professora francesa Hélène Cixous e do filósofo alemão Martin Heidegger. A voz
de número 3, da própria Trinh T. Minh-ha, é proferida em tom médio, em primeira pessoa, e
relata sensações e observações pessoais, nos moldes do que ela já havia feito em
Reassemblage.

Como observa Trinh T. Minh-ha (1992), a utilização das três vozes oferece uma
série de combinações. A primeira combinação é musical, com os tons grave, agudo e médio.
Outra é cultural e racial, pois temos uma voz negra, outra branca e outra asiática26. As três
vozes apresentam estilos diferentes, sendo a primeira assertiva/não discursiva, a segunda não
assertiva/irônica e a terceira não-assertiva/vulnerável. Três modos distintos de elaborar o
discurso do filme por meio das narrações em voz over. As citações lidas são identificadas nos
créditos finais de Naked Spaces, mas só é possível saber a referência exata de cada uma delas
por meio do roteiro do filme, publicado pela diretora no livro Framer framed (1992).

Nesses dois primeiros filmes o trabalho de Trinh T. Minh-ha com o texto e com a
locução é muito importante para a elaboração do discurso crítico da cineasta. São mesmo
decisivos para afirmar os princípios da cineasta em sua busca por um lugar discursivo
construído no intervalo entre usos convencionais de estratégias narrativas típicas do cinema
documentário, como a locução em voz over, por exemplo. As imagens, por sua vez, trazem a
visão de uma cultura viva, que nos é apresentada mediada pela cineasta, e é esta mediação
propriamente que é o objeto dos filmes. A locução em voz over é a instância onde a cineasta
elabora sua reflexividade. A banda sonora é o lugar de fala da diretora, da exposição de sua
posição política. A locução não constrói um discurso sobre as imagens que acompanhamos,
não se preocupa em nos narrar o vivido naqueles países africanos, a cultura que estamos
visualizando nos corpos, espaços e ações.

Sem maneirismos ou exibicionismos, a cineasta revela sua presença atrás da


câmera de forma sutil, denunciando que o filme é uma construção por meio da montagem,

26
Esta informação está no roteiro do filme, publicado no livro Framer framed.
123

mais fragmentada em Reassemblage e mais elíptica em Naked Spaces. A cultura, a vida que
nos aparece diante dos olhos não pode ser reduzida a um discurso, cristalizada nas imagens de
um filme.

Em Naked Spaces a cineasta expande sua ação. O retorno ao material bruto das
filmagens na África se dá em uma nova abordagem, mais ampla e complexa, resultando em
um trabalho formalmente mais ambicioso do que Reassemblage. Dada a complexa tessitura da
narração em voz over, sua polifonia vocal, a problematização da perspectiva e da voz,
poderíamos dizer que o campo sonoro do filme Naked Spaces adquire certa autonomia em
relação à imagem. Por meio das estratégias de elaboração da locução, somos apresentados à
posição ideológica e política da cineasta. Como vimos mais acima, a voz-over implica uma
“outra relação de tempo-espaço, o tempo e espaço do discurso” (KOZLOFF, 1988, p. 3),
instância de exposição da teoria de Trinh T. Minh-ha. A exposição de um pensamento por
meio de sua expressão artística. Arte e ciência, cinema e antropologia, são convocados a
dialogar e manifestam-se articulados pela cineasta em sua expressão cinematográfica.
Encontro do fazer artístico com a teoria social. Poderíamos dizer que como forma inovadora
de perscrutar um determinado espaço, uma determinada cultura, com meios expressivos
poderosos proporcionados pelas articulações possíveis entre as imagens animadas e os sons,
temos uma etnografia experimental pelo cinema.

Naked Spaces nos parece um caso destacado de como a utilização do comentário


pode ser surpreendente se usado com criatividade e inventividade. O filme não fala
explicitamente sobre suas posições políticas e teóricas. Estas, a cineasta as expõem através da
voz over. Porém, tal situação não se apresenta de modo literal, mas de modo poético e lírico.
Por exemplo, na passagem da voz 1: “estar nu é estar sem fala”, realizada pela voz mais
grave, de forma mais assertiva, citando o velho caçador Dogon, Ogotemmeli. Citando Gaston
Bachelar, a voz 2, mais aguda, profere: “O mundo gira ao redor do ser que se move”. Na
passagem da voz 3, “Não descritivo, não informativo, desinteressante. Sons são como bolhas
na superfície do silêncio”, realizada pela própria diretora, com uma entonação mais neutra.

Naked Spaces traz referências a diversos campos de conhecimento com os quais


diáloga e por onde circula Trinh T. Minh-ha - teoria literária, feminismo, pós-colonialismo,
teoria do cinema, antropologia, poesia, etnomusicologia – aproximando-os de forma dialógica
a fim de tecer um discurso que é interdisciplinar, do ponto de vista epistemológico, e
polifônico, do ponto de vista estético.
124

A articulação das três vozes femininas, com suas características distintas de


entonação e inflexão dificulta a adesão do espectador. A exemplo do teatro épico de Brecht
promove um distanciamento, talvez uma tentativa de desafiar o cinema como dispositivo. A
opção pela voz over é frequentemente uma estratégia que serve para estabelecer a coesão no
documentário e provocar a adesão do espectador, como vimos. Porém, aqui, se constrói na
fragmentação, favorecendo a manutenção de uma postura crítica por parte desse espectador.
Podemos dizer que a distância que a voz over mantém das imagens, sua recusa em ilustrar ou
comentar estas últimas, expressa, através dos recursos cinematográficos, a maneira como a
cineasta entende seu distanciamento em relação à África, representada em seu filme. Em
outras palavras, o filme preserva em seus meios expressivos a distância da cineasta da cultura
com a qual ela está em relação, mantém sua posição de Outro na relação com a África.

A voz over em Naked Spaces se opõe claramente ao modelo clássico de voz over tal
como consagrado na tradição documentária. Esta se utiliza geralmente de uma única voz,
masculina, proferida em tom monocórdico, sem inflexões subjetivas, com um texto que
demonstra onisciência sobre o mundo acerca do qual profere suas sentenças. Ao invés disso,
no filme aqui em questão, Trinh T. Minh-ha, optou por trabalhar a construção de uma voz
over polifônica, que incorpora diferentes vozes, cada uma delas com uma característica
singular, com entonações e inflexões diferenciadas, todas lidas por mulheres. Não há um texto
único, um saber absoluto que discorre sobre as imagens, comentando-as ou sendo por elas
ilustrado. Em Naked Spaces o texto nunca ilustra as imagens.

O trabalho de voz over em Naked Spaces apresenta grande coerência com a noção
de polifonia tal como concebida na musicologia, onde polifonia é entendida como uma
técnica compositiva que produz uma textura sonora específica, onde duas ou mais vozes se
desenvolvem preservando um caráter melódico e rítmico individualizado. A opção pelo uso
das três vozes diferenciadas na locução, a partir de textos bastante distintos (ora a citação de
autores africanos, ora de autores da cultura ocidental e ora observações pessoais da própria
cineasta, como vimos anteriormente), parece confirmar isso. Não é apenas no uso da locução
em voz over que o filme estabelece uma estrutura rítmica e musical para o filme, mas também
com a utilização dos sons musicais dos rituais e danças, das falas dos aldeões, dos silêncios,
que juntamente com a locução compõem uma tessitura sonora complexa.

Com essa estratégia de utilização de uma voz over polifônica Trinh T. Minh-ha
parece buscar um meio de construir um documentário sobre uma determinada realidade
125

cultural, no caso comunidades rurais da África ocidental, com foco especial em sua
cosmologia e seus habitats, que fuja das armadilhas que ela mesma questiona nos modelos
mais convencionais de documentário. Ao invés de se utilizar de falas de personagens que
vivem nas vilas e aldeias por onde filmou, orquestrando-as a seu bel prazer em uma moviola,
conferindo um ordenamento no qual a realidade empiricamente observada serve de material
para o discurso da própria diretora, em uma clara imposição de lugares de poder que ela tanto
questiona em seus textos e filmes, ela busca construir seus argumentos por meio da locução
em voz over que, ao invés disso, deixa de lado completamente o registro da fala daqueles que
são filmados. Quando a fala ou os cânticos são registrados eles não são traduzidos, entram
para compor a tessitura sonora musical que é elaborada pela diretora com os registros sonoros
feitos em campo por ela própria.

As imagens mostram uma cultura dinâmica e em movimento, que não pode ser
cristalizada em um discurso objetivo, descritivo. A dinâmica visual, o ritmo e as cores se
articulam com as três possibilidades de discurso verbal, que trazem para a composição
diferentes argumentos e asserções sobre o mundo e a vida, construindo um filme complexo e
polifônico, que utiliza como estratégia central, de modo original e criativo, a voz over.

3.15 Surname Viet Given Name Nam – modos de narrar a história e a nação

Dirigido, escrito e montado por Trinh T. Minh-ha em 1989, o filme Surname Viet
Given Name Nam apresenta depoimentos de mulheres vietnamitas sobre a condição feminina
no país no período do pós-guerra dos anos 1970/1980, colhidos do livro Vietnâm, un peuple,
des voix, de Mai Thu Van, publicado em francês em 1983. O filme reencena em forma de
entrevistas em primeira pessoa alguns dos depoimentos colhidos pelo livro utilizando, para a
interpretação, mulheres vietnamitas que vivem nos Estados Unidos. Sobre o livro, a própria
diretora do filme relata que

Nascida na Nova Caledônia, ela (a autora) faz parte de uma segunda geração
de exilados, pois sua mãe havia sido mandada para lá à força para trabalhar
em minas de níquel porque sua vila estava entre aquelas que se levantaram
em rebelião contra os colonialistas franceses. Mai chegou a Paris aos vinte e
três anos para trabalhar e estudar e foi ao Vietnã em 1978 para pesquisar
mulheres vietnamitas, o que resultou no livro mencionado. Sendo marxista,
ela pousou em Hanói com uma “pletora de imagens de mulheres libertadas
126

que perturbaram velhos conceitos para atender o socialismo”, e a estada dela


lá, como ela mesma colocou, “balançou profundamente [suas] ideias
preconcebidas assim como pulverizou os estereótipos de mulheres
[vietnamitas] construídos pela imprensa.” (TRINH, 1992, p. 144).

No filme são apresentados quatro depoimentos, interpretados por mulheres sem


experiência prévia com atuação, todos filmados nos Estados Unidos. Na primeira metade os
depoimentos são apresentados como entrevistas originais para o filme, com as mulheres
vestidas em trajes típicos populares ou com trajes profissionais, conforme a profissão da
depoente original – médica ou enfermeira, por exemplo - desempenhando atividades
corriqueiras, como preparar vegetais. Todos gravados em estúdio com elementos de cena que
pudessem remeter a moradias vietnamitas ou ambientes de trabalho institucionalizados, como
um hospital. Os cenários e a iluminação são cuidadosamente preparados. A câmera é bastante
ativa e filma de maneira muito original para uma situação convencional de entrevista, com
enquadramentos variando dos ângulos planos, na altura dos olhos, para os ângulos altos,
observando de cima para baixo, passando dos detalhes e super close para planos médios, além
de diversos movimentos de câmera. A utilização deliberada desses elementos de composição
visual acentua o caráter estilizado das entrevistas dramatizadas conforme acompanhamos o
desenrolar do filme.
127

Fig. 40 a 51 – Frames de Surname Viet Given Name Nam


128

Ainda que fortemente centrado nas entrevistas, o filme se utiliza de outros

elementos na sua composição. No plano sonoro há duas locuções distintas em inglês em voz

over, sendo uma delas realizada pela própria Trinh T. Minh-ha e uma terceira voz cantando

provérbios e declamando poesias em vietnamita, que são legendadas em inglês, além de

depoimentos em inglês carregado de sotaque e depoimentos em vietnamita, legendados em

inglês. No plano visual, além das imagens dos depoimentos, temos imagens de arquivo do

Vietnã – fotografias e cinejornais, e um uso intenso e singular de letreiros e intertítulos. Em

situações de entrevista, por diversas vezes os letreiros, que trazem o mesmo conteúdo do que

está sendo falado, se sobrepõem às imagens dos depoimentos.


129

Fig. 52 a 59 – Frames de Surname Viet Given Name Nam

Com o progresso do filme, certos detalhes, aos poucos, vão evidenciando que as
entrevistas não são exatamente o que parecem. Uma das personagens muda o teor do
depoimento. Outra retira os óculos e olha para a câmera, como alguém que terminou de fazer
uma passagem combinada. Outra aparece andando de um lado para o outro do quadro dando
seu depoimento, com postura totalmente diferente daquela que vinha sendo acompanhada até
aquele momento em seus depoimentos anteriores. Seu comportamento é o de alguém que
ensaia seu texto, texto este que se sobrepõem à imagem, mostrando que não se trata de um
depoimento original que foi transcrito para os letreiros, mas sim o contrário, que é um texto
anterior, ensaiado para o depoimento em vídeo. Temos então a confirmação de que as
entrevistas que vínhamos acompanhando são todas elas encenadas. Uma certa unidade que
vinha sendo apresentada se rompe e somos levados a uma nova relação com essas
personagens. Há uma descontinuidade deliberada nos discursos.
130

Fig. 60 a 65 – Frames de Surname Viet Given Name Nam

A partir deste ponto temos então novos depoimentos das mesmas mulheres que,
agora sim, depõem sobre suas vidas atuais. Esta segunda parte apresenta tomadas menos
preparadas, mais “naturalistas”, com menos estetização, realizadas em locação com luz
natural, com menor variação de câmera em relação aos ângulos e enquadramentos, o que
acaba por ressaltar o caráter produzido das tomadas da primeira parte do filme. Nestas
entrevistas as mulheres respondem a questões sobre porque aceitaram participar do trabalho
encenando as entrevistas e decidem como gostariam de ser representadas no filme. As demais
estratégias – utilização de imagens de arquivo, entonação de cânticos e de provérbios
populares, locuções etc – permanecem e a elas se somam filmagens das mulheres
entrevistadas em suas vidas cotidianas em uma comunidade vietnamita dos Estados Unidos.

O filme marca uma aproximação da cineasta a um universo com o qual ela tem
ligação íntima, sua origem vietnamita, diferentemente dos seus filmes anteriores, que se
dedicaram a objetos de interesse distantes de sua história pessoal pregressa.27 Tal opção
colocou a cineasta em posição de ter de encontrar um distanciamento ainda maior em relação
ao seu tema do que aquele observado em seus dois primeiros filmes para que, assim, pudesse
mais abertamente questionar sua posição de autoridade relacionada à sua própria cultura, pois,

27
Reassemblage – filmado no Senegal e Naked Spaces – filmado em países da África Ocidental
131

cabe lembrar, discutir a representação cultural e posições de autoridade nos discursos é uma
linha de força no trabalho de Trinh T. Minh-ha, e aqui neste caso não é diferente.

A opção por reencenar no filme entrevistas de mulheres, colhidas no Vietnã do


final da década de 1970 e, utilizando como intérpretes mulheres que vivem a diáspora
vietnamita, acaba por se constituir como uma crítica a uma estratégia muito utilizada no
âmbito do documentário moderno: o uso da entrevista como meio privilegiado de acesso ao
real, ao Outro, à diferença cultural. As entrevistas com as mulheres vietnamitas nos EUA,
quando estas são convidadas a escolher como querem ser filmadas soma-se a essa estratégia
inicial e amplia o grau de criticidade relativa a tal recurso. Essa opção nos dois usos da
entrevista enfatiza que o cinema opera meios de dissimulação que permitem que o próprio
estatuto das imagens esteja em questão (TRINH, 1992, P. 146), “em outras palavras, ao
apresentar ambas juntas ao espectador, o que é visivelmente endereçado é a invisibilidade da
política da entrevista e, mais geralmente, as relações de representação”. Nesse filme a diretora
lança mão, mais uma vez, de diversas estratégias expressivas que são usadas de modo muito
inovador e original. Seu estilo, baseado na subversão dos modos narrativos clássicos, desafia
as formas canônicas do documentário convencional. Se observarmos Surname Viet Given
Name Nam na sequência cronológica da filmografia da diretora, podemos dizer que a cada
trabalho ela tem aprofundado sua abordagem experimental em relação às estratégias que o
cinema de não-ficção consolidou em sua tradição e diversificado o uso de recursos
expressivos típicos do mundo do cinema documentário. Se em seus dois primeiros filmes
podemos dizer que, entre outras estratégias, destaca-se o uso da voz over como recurso
inovador, neste caso a novidade está no uso da entrevista (e sua encenação) e no uso de
letreiros e cartelas. Para Hamid Naficy (2001, p.124),

Essas técnicas comentam sobre o cinema e a realidade ao invés de apenas


registrar, reportar ou representar a realidade. Elas desnaturalizam o estilo
realista do cinema clássico e posicionam a subjetividade feminina e a
atividade espectatorial como múltiplas e cambiantes. Os espectadores são
forçados a se envolver em diversas atividades simultaneamente, assistindo,
escutando, ouvindo, lendo, traduzindo e resolvendo problemas.

A observação de Naficy ressalta o enfoque de crítica às representações do mundo


histórico, sendo esta direcionada mais diretamente ao dispositivo cinematográfico. Para uma
132

análise mais profícua e aprofundada dos filmes de Trinh T. minh-ha, poderíamos pensar sua
obra como um todo, incluindo seus textos e não apenas seus filmes, considerando que há
questões que perpassam ambos, de modo a se estenderem e se aprofundarem em um
movimento de análise, reflexão e demonstração que se adensa e reflete uma postura ética e
estética marcada por um posicionamento politico entre áreas de conhecimento e de prática.
Evidentemente este não é o lugar para tal empreendimento. Centraremos aqui nossos esforços
na exposição de um ponto essencial sobre o filme, o uso das entrevistas como estratégia
central de elaboração de sua crítica – ao discurso da história oficial e ao discurso da
representação no cinema documentário clássico .

3.16 Verdade e encenação na entrevista

A dissimulação da encenação nas entrevistas é usada deliberadamente desde o


início do filme para conduzir o espectador por seu discurso crítico, modulando as evidências
artificiais do dispositivo sem deixar claro se estamos a acompanhar uma situação dramatizada
ou espontânea. Até a metade do filme, quando se revela claramente seu dispositivo, não
sabemos dizer ao certo se as entrevistas são “verdadeiras” ou são simuladas. Algumas
situações cenográficas, recursos de iluminação e o uso de intertítulos e letreiros que se
sobrepõem às imagens das mulheres exibindo os textos que estão interpretando, vão revelando
gradualmente os indícios da manipulação dos elementos estéticos.

Quando o filme apresenta claramente que os textos estão sendo ensaiados pelas
mulheres, as imagens evidenciam a dimensão de elaboração e dissimulação das entrevistas até
aqui exibidas. O filme assume suas estratégias em sua dimensão ficcionalizante. Ao optar por
esse recurso, Trinh T. Minh-ha nos alerta que uma entrevista – estratégia recorrente no
documentário moderno e, frequentemente valorizada por ser considerada como um meio de
acesso direto a uma determinada realidade cultural pode ser ensaiada, encenada, roteirizada,
dirigida, dissimulada.28

Entretanto, essa dimensão ficcional não está presente apenas na encenação das
entrevistas, que de certo ponto em diante é clara e evidente. Na segunda metade do filme,
quando passamos para os depoimentos das mulheres que atuaram na encenação, que agora se

28
Mais de vinte anos depois deste filme de Trinh T. Minh-ha, Eduardo Coutinho usou procedimento semelhante
em seu filme Jogo de Cena (2007).
133

revelam como vietnamitas vivendo nos Estados Unidos, como vimos, temos uma nova
dimensão ficcionalizante. Uma vez que as entrevistadas são provocadas a dizer como
gostariam de ser representadas no filme, passamos para a dimensão da autoficção por parte
dessas mulheres em condição diaspórica. Desse modo, o filme questiona profundamente a
estratégia da entrevista como um modo de acesso a uma realidade cultural, à identidade
cultural. Essa estratégia que embaralha o estatuto das imagens acaba por minar a
autenticidade e a autoridade da não-ficção como acesso privilegiado ao mundo histórico.

A estratégia das entrevistas no filme aqui em questão faz um jogo interessante de


posições entre as mulheres que falam ou que detém a autoridade sobre o discurso final, do
livro ou do filme. Vejamos: no livro Vietnâm, un peuple, des voix, a autora, vietnamita de
nascimento, vivendo em exílio na França, retorna ao Vietnã em busca de entender suas raízes,
quando recolhe os depoimentos de mulheres que viviam no país que naquela altura já tinha
passado por diferentes regimes de controle colonial e de exploração. O filme, dirigido por
uma vietnamita que também vive em exílio, porém nos Estados Unidos, encena essas mesmas
entrevistas, simulando o que seriam situações típicas dessas mulheres no Vietnã, em
filmagens conduzidas nos Estados Unidos, utilizando como atrizes mulheres vietnamitas que
também estão expatriadas. Disso tudo resta a percepção do cinema como meio de
dissimulação que embaralha os estatutos da representação e que, neste caso, faz isso
utilizando a entrevista como recurso. Desse modo, o filme apresenta um gesto ensaístico em
direção a uma percepção da dimensão ficcional de toda entrevista, ou, por extensão, de todo
discurso de representação da diferença cultural, da alteridade.

Timothy Corrigan (2001) enfatiza a inventividade da cineasta e o caráter


ensaístico de seu filme, justamente reconhecendo que a situação das entrevistas busca
construir um espaço original para repensar a identidade – das mulheres e da nação,
problematizando os discursos historicamente anteriores, marcados pela exploração imperial e
colonialista. O filme faz isso propondo uma maneira elaborada de discussão acerca do
indivíduo e do coletivo, que aparece pelo contato entre os depoimentos encenados e os
depoimentos em primeira pessoa originais para o filme.

O filme busca problematizar a história do Vietnã a partir de depoimentos apenas


de mulheres, o que é particularmente significativo se levarmos em conta o passado patriarcal e
a herança machista presentes no país.

Para Trinh T. Minh-ha (1999, p.23),


134

Ao invés de construir um ponto de vista interno homogêneo (mesmo quando


baseado em diversos pontos de vista), ou um relato da cultural “não
mediado” em primeira pessoa, o filme envolve a política da entrevista
enquanto entra na história do Vietnã através de lacunas coletivas e
individuais. O que acontece não de um modo facilmente reconhecível, como
seria por meio de cronologia, acumulação linear e sucessão de fatos sobre o
Vietnã (isso é o que alguém poderia encontrar em qualquer livro sobre a
história do Vietnã); mas ao invés disso, através da memória popular, com
suas “omissões ousadas e descrições breves”; através de estórias pessoais
das mulheres; através de canções, provérbios e ditados particularmente
reveladores através das gerações como para as situações com as quais lutam;
em outras palavras, através de fontes de informação não-oficiais e
subestimadas.

Com cerca de uma hora de duração temos a entrevista que revela mais claramente
o dispositivo da encenação no filme. Assistimos a uma das mulheres caminhando de um lado
para o outro no quadro, que permanece estático, com um recorte na escala de um plano
próximo, enquanto ela é filmada lateralmente e repassa o trecho do seu depoimento, como que
em um ensaio, por vezes saindo do enquadramento, para então retornar. Sua fala está
relacionada à necessidade de desmistificar a imagem idealizada da mulher, ilustrada com a
história de varredoras de rua que foram usadas em uma reunião para servirem a uma
encenação orquestrada por homens para construir uma ilusão sobre sua real imagem. Letreiros
sobrepostos à imagem da mulher revelam o texto que ela está lendo, realçando seu caráter de
elaboração prévia. Neste momento, temos uma locução, realizada pela própria diretora,
sobreposta à fala da mulher que ensaia e que neste ponto já está fora de quadro, que diz: “E
eu teria que afirmar essa incerteza: uma entrevista traduzida é um objeto escrito ou falado?”
(Trinh, 1992, p. 73). As reflexões da diretora sobre a entrevista continuam: “Entrevista: um
dispositivo antiquado do documentário. A verdade é selecionada, renovada, deslocada e o
discurso é sempre tático” (ibid., p. 73); “ao escolher a mais direta e espontânea forma de
pronunciação e documentação, eu me encontro mais perto da ficção” (ibid, p. 78). Estas
passagens não apenas explicitam a crítica da cineasta em relação ao uso da entrevista como
lançam luzes sobre as estratégias formais usadas. O fato de serem proferidas no trecho do
filme que evidencia a encenação da primeira série de entrevistas ressalta esse caráter
construído, mas também nos faz pensar sobre o caráter ficcional que pode ser observado nas
entrevistas da segunda parte, dada a dimensão da autoficção que as questões colocadas pela
cineasta busca expor.
135

Uma passagem em uma entrevista da diretora para Judith Mayne, publicada no


livro Framer Framed, em que Trinh T.Minh-ha desenvolve sua reflexão sobre os elementos
fictícios presentes em qualquer discurso.

Cada representação da verdade envolve elementos de ficção, e a diferença


entre o assim chamado documentário e a ficção na sua representação da
realidade é uma questão de graus de ficcionalidade. Quanto mais alguém
tenta clarear a linha dividindo os dois, mais profundamente enredado fica
esse alguém no artifício dos limites (1992, p. 145).

Assim, podemos notar que, ao optar por reencenar as entrevistas colhidas


anteriormente por Mai Thu Van no livro Vietnâm, un peuple, des voix, Trinh T. Minh-ha
desenvolveu um filme que problematiza os discursos históricos tradicionais sobre o Vietnã,
marcados por um legado patriarcal e colonial, para incluir como recurso legítimo ao registro
da história fontes antes subjugadas e menosprezadas, os relatos de mulheres vietnamitas que
viveram as dificuldades do país em seu período pós-guerra, frequentemente marcadas por uma
posição de inferioridade nos discursos tradicionais. Assim, deixa de lado as fontes oficiais e
grandiloquentes para considerar as histórias íntimas e também coletivas, marcadas pela
vivência de mulheres anônimas.

Formalmente, o filme adota a mesma postura de desafio às convenções e tradições


já consolidadas e reconhecidas na tradição do documentário clássico, provocando e
tensionando técnicas e estratégias de modo a deslocar o sentido dessas práticas, criando assim
um dispositivo desafiador, que resulta em uma crítica ao discurso do cinema sobre a diferença
cultural, enfatizando a dimensão da dissimulação presente na orquestração dos elementos
expressivos do cinema. Do mesmo modo, o filme questiona estratégias do documentário
moderno, que nesse período histórico baseava-se fortemente nas possibilidades do registro do
som direto, mais especificamente nos registros dos depoimentos em entrevistas diretas para a
câmera, como meio de um acesso mais direto ao real.

O gesto ensaístico original do filme, ou seja a forma como utiliza seus elementos
formais e expressivos de modo a elaborar um discurso ensaístico, é o de trabalhar na
exposição do seu espaço negativo, existente ao redor ou entre as imagens, tal como na pintura
ou nas artes gráficas. Ou seja, no filme, a ênfase não está diretamente nas entrevistas
encenadas, reencenadas ou autoencenadas – seu caráter de dissimulação fica evidenciado de
136

um ponto em diante no filme – mas nesse espaço que existe para além do plano orientado ao
objeto – seja ele coisa ou sujeito, um espaço discursivo onde posições de autoridade são
problematizadas e práticas de sentido são tensionadas a partir de um amplo repertório
expressivo e reflexivo. A dissimulação essencial de Surname Viet Given Name Nam está em
nos fazer ver a entrevista como estratégia problemática, enquanto nos induz a pensar na
complexidade presente na representação do mundo histórico, que se expande para esse espaço
negativo e que não é neutro, mas um lugar de articulação discursiva crítica e reflexiva.

No capítulo seguinte nos dedicaremos a desenvolver os argumentos relativos à noção


de gesto ensaístico que utilizamos aqui, esta que será importante para aprofundar e avançar
nas análises dos filmes seguintes de Trinh T. Minh-ha.
137

CAPÍTULO 4

GESTOS ENSAÍSTICOS E ESTÉTICA DA PARCIALIDADE

“Não existe política do cinema. Existem figuras singulares que permitem


aos cineastas juntar os dois significados da palavra “política” pelos quais
se pode qualificar uma ficção em geral e uma ficção cinematográfica em
particular: a política como aquilo de que trata um filme – a história de um
movimento ou de um conflito, a revelação de uma situação de sofrimento ou
de injustiça – e a política como estratégia própria de uma operação
artística, vale dizer, um modo de acelerar ou de retardar o tempo, de reduzir
ou de ampliar o espaço, de fazer coincidir ou não coincidir o olhar e a ação,
de encadear ou não encadear o antes e o depois, o dentro e o fora. Seria o
caso de dizer: a relação entre uma questão de justiça e uma prática de
justeza.”

Rancière, 2012, p. 121

No texto Introduction: partial truths (1986), do livro que reúne os trabalhos


apresentados no já citado Seminário Writing Cultures, James Clifford defende que as
reflexões sobre a escrita etnográfica haviam saltado para o primeiro plano, de modo que a
cultura passa a ser um objeto entendido como composto por códigos e representações muito
contestadas, resultados de processos históricos e linguísticos que implicam formas de narrar e
descrever a alteridade. Para Clifford, o foco de análise na retórica e na produção dos textos
etnográficos serve para realçar a natureza construída e artificial das descrições de processos
culturais. Para o autor,

verdades etnográficas são, portanto, inerentemente parciais – comprometidas


e incompletas. Esse ponto já é amplamente afirmado – e objeto de resistência
em pontos estratégicos por aqueles que temem o colapso de padrões claros
de verificação. Mas, uma vez aceito e incorporado na arte etnográfica, um
sentido rigoroso de parcialidade pode ser a fonte de tino representacional.
(1986, p.7)
138

Destacar a parcialidade, ou melhor dizendo, “um sentido rigoroso de


parcialidade”, como estratégia a ser assumida e incorporada na escrita etnográfica coloca um
desafio em relação a como lidar com convenções sobre as quais a antropologia desenvolveu
sua tradição e assentou a busca pela legitimação de sua cientificidade. Este posicionamento
lança um olhar crítico e desafiador sobre os pilares da disciplina, abrindo um campo fecundo
de exploração, que aponta para caminhos mais próximos a questões que vinham sendo
trabalhadas na teoria literária e no campo das artes visuais. A noção de “arte etnográfica” já
insinua tal aproximação.

Mais adiante, ao reconhecer que a disciplina enfrentou historicamente diversas


dificuldades em lidar com questões críticas e reflexivas relacionadas a seus processos de
escrita mais convencionais, Clifford formula algumas perguntas para expandir o debate:

A parcialidade rigorosa que tenho enfatizado aqui pode ser uma fonte de
pessimismo para alguns leitores. Mas também não é uma liberação
reconhecer que ninguém pode continuar a escrever sobre outros como se
estes fossem textos ou objetos distintos? E não poderia a visão de uma
etnografia complexa, problemática, parcial, levar, não ao seu abandono, mas
a maneiras mais sutis e concretas de escrita e leitura, a novas concepções de
cultura como interativas e históricas? (1986, p.25)

A defesa da complexidade do empreendimento reflexivo proposto toca em pontos


essenciais do trabalho do antropólogo, como a questão do encontro com a alteridade e da
relação estabelecida entre sujeito e objeto. Sem embargo, a proposta busca também realçar as
possibilidades positivas do desafio. Sua potência em renovar a escrita etnográfica.

Para Clifford, “a etnografia é um fenômeno interdisciplinar emergente. Sua


autoridade e retórica se espalharam para muitos campos onde ‘cultura’ é um recente objeto de
descrição e crítica”. (1986, p.3) Em seus textos o autor trabalha detalhadamente em relação à
escrita etnográfica no campo da antropologia cultural, com crítica centrada em trabalhos
convencionalmente finalizados em textos escritos, deixando de fora outras formas que ele
identifica como emergentes e legítimas no processo de narração e descrição de realidades
culturais. No texto “Sobre a autoridade etnográfica”, publicado primeiramente em 1983,
portanto anteriormente à realização do Seminário no Novo México, em que já se dedicava a
problematizar a escrita etnográfica, ele reconhece que seu trabalho se mantém “nos limites de
139

uma ciência cultural realista elaborada no ocidente”, e que não incluiu em seu escopo de
análise e investigação formas narrativas que estavam surgindo a partir de esforços de autores
ligados ao oriente ou a realidades pós-coloniais, como Edward Said, por exemplo. E
principalmente, ele reconhece que não considerou como áreas de inovação na escrita “os
gêneros ‘paraetnográficos’ da história oral, do romance não-ficcional, o ‘novo jornalismo’, a
literatura de viagem e o filme documentário”. (2011, p.60)

Nossa proposta neste capítulo é partir das observações de Clifford sobre essas
outras áreas de escrita e estender suas reflexões especificamente para o campo do
documentário, preenchendo uma lacuna apontada pelo próprio autor. Observar como o cinema
documentário tem exemplos que podem sustentar essa tese de que novas formas emergentes
de narrar processos culturais ocorreram fora do campo da antropologia, com contribuições
originais para problemas que a própria disciplina estava colocando em relação a seus
processos mais autênticos, como o trabalho de campo e sobretudo a escrita de relatos
etnográficos. Simultaneamente, esses trabalhos contribuíam para renovar a prática do cinema
documentário em relação à sua tradição histórica, incorporando e dialogando com questões
conceituais relacionadas a formas discursivas advindas do campo dos estudos literários. Dessa
forma, pretendemos aprofundar argumentos que apresentamos no capítulo anterior.

Particularmente, nos interessa investigar como o cinema de Trinh T. Minh-ha


pode ser interpretado no contexto acima, uma vez que está diretamente envolvido em uma
forma de narrar os processos socioculturais que se constroem sobre a crítica e a reflexão em
relação às formas hegemônicas das retóricas sobre a alteridade e sobre processos culturais de
modo que colabora para a expansão e para a renovação dessas formas expressivas,
contribuindo, a partir do cinema, para problematizar justamente elementos como o trabalho de
campo e a escrita etnográfica, além de ser um exemplo de como o cinema em seu domínio
documental desenvolveu meios complexos de representar a cultura e ou a relação
intercultural.

Retomando James Clifford, nos interessa a ideia de “sentido rigoroso de


parcialidade” como estratégia para “tino representacional” (1986, p.7). Ao aproximarmos tal
proposição do antropólogo à proposta da cineasta de “falar próximo”, ao passo em que
aproximamos cinema e antropologia, podemos pensar em uma estética da parcialidade no
cinema de Trinh T. Minh-ha?
140

Evidenciar que o seu cinema está sintonizado com as reflexões que emergiram no
Seminário Writing Culture é um dos interesses deste capítulo. Entretanto, o ponto mais
importante está em enfatizar que o trabalho da cineasta antecipa tais questões. Poderíamos
mesmo dizer que o cinema antecede problemas que a antropologia passava a levantar e que
oferece reflexões complexas e profundas sobre tais questões, colocando-o não apenas como
meio de representação de interrogações temáticas dos diversos campos das ciências humanas
e sociais, mas, também, que ele oferece respostas originais e sofisticadas. Somado a isso, nos
interessa situar a produção da cineasta em relação a uma vertente importante dos estudos de
cinema na contemporaneidade que busca aproximar o cinema do ensaio literário. Faz isso ao
realizar filmes que propõem experiências inovadoras e que distanciam-se das convenções e
domínios já estabelecidos e conformados na história e tradição cinematográficas.

4.1 Cinema, antropologia e escrita etnográfica

Já nos foi dado ressaltar neste trabalho que as proposições de Trinh T. Minh-ha
sobre o documentário levantam questões importantes para irmos além da crítica em relação
aos padrões clássicos desse tipo de cinema e pensarmos a constituição do documentário
moderno. Sabemos que desde o final dos anos 1950 ele já vinha demonstrando importante
inovação estilística através do trabalho de uma plêiade de cineastas exemplares que
contribuíram para que tal inovação acontecesse.

Em seu texto “The totalizing quest of meaning”, Trinh T. Minh-ha direciona


críticas ao cinema documentário em sua fatura mais convencional. O texto abre com o axioma
“não existe tal coisa como o documentário – seja o termo referente a uma categoria de
material, um gênero, uma abordagem ou um conjunto de técnicas” (TRINH, 1993, p. 90).
Para ela essa afirmação precisa ser recolocada incessantemente, ainda que seja possível
identificar uma tradição nesse domínio cinematográfico. Nunca é demais lembrar que sua
crítica está centrada em uma negação do documentário como uma prática de apelo
necessariamente realista, correspondente a certas expectativas que buscam validar este tipo de
discurso por um apelo ligado ao que seriam evidências visíveis do mundo histórico,
comprovadoras de verdades ligadas a um cientificismo de matriz racionalista e positivista.

Para Trinh T. Minh-ha, resistir ao significado cristalizado no discurso do cinema


documentário não leva necessariamente à negação deste como meio legítimo de retórica sobre
141

o mundo histórico. Suas críticas não são elaboradas para afirmar uma oposição a um modelo
hegemônico, mas para reconhecer estruturas e definições que são resultado de práticas de
poder (quem define, quem nomeia, quem aponta, quem filma – para ela posições que
expressam poder predominantemente branco, ocidental, masculino). Sua crítica procura
demonstrar que o significado não se encerra no que é dito ou mostrado. O que muitas vezes é
tomado como verdade em formas clássicas de cinema documentário não passa de uma
construção, elaborada por um sujeito histórico, que opera meios expressivos sofisticados para
elaborar uma retórica sobre o mundo.

Em seus filmes destaca-se o caráter autoral de Trinh T. Minh-ha. Um cinema


formalmente sofisticado, que afirma a cineasta em sua singularidade, que expande a estética
cinematográfica para além de suas convenções clássicas, explorando de forma inovadora a
relação entre imagem e som. Opera com a conjugação de elementos da tradição modernista,
como a colagem de fragmentos e a estética da bricolagem, criando espaços outros de discurso
por meio do cinema. Filmes que não se conformam entre as convenções e estratégias típicas
dos domínios do cinema com os quais dialoga, mas que contribuem para a revisão de suas
estratégias, ampliando seus usos e limites, contribuindo para o apontamento de novos
horizontes para a prática do cinema engajado com a representação da realidade. Os filmes de
Trinh T. Minh-ha nos permitem ver uma relação entre cinema e antropologia que extrapola
suas tradições históricas distintas, criando uma zona de interseção que parte dos domínios da
arte para os da ciência.

A aproximação profícua entre cinema e antropologia em um contexto de


experimentação e revisão de padrões em narrativas etnográficas foi destacado posteriormente
também por George Marcus, organizador ao lado de James Clifford do Seminário ocorrido no
Novo México, citado anteriormente. Em seu ensaio “The modernist sensibility in recent
ethnographic writing and the metaphor of montage”, publicado em 1990, ele reflete sobre
possíveis aproximações entre filme etnográfico e escrita etnográfica, destacando aspectos de
experimentação que considera colocar em outro patamar a relação histórica entre os domínios
da antropologia e do cinema, como apresentamos no capítulo anterior. Para Marcus, apesar de
naquele momento a contribuição dos filmes etnográficos ainda ser um tanto tímida para ajudar
a repensar as questões das narrativas etnográficas, já era possível verificar uma certa
tendência na escrita,
142

aqueles que têm feito o trabalho de criticar a retórica etnográfica,


principalmente com textos escritos em mente, tem operado a partir de uma
imaginação cinemática ou estão lidando com experimentos na forma que
poderiam facilmente, ou talvez mais convenientemente, serem conduzidos
por meio de filmes. (MARCUS, 1990, p.3)

Ainda que não se enquadre estritamente na seara dos filmes etnográficos, o


trabalho de Trinh T. Minh-ha dialoga claramente com este campo, e, como temos insistido,
seu trabalho é fortemente marcado pela crítica à retórica etnográfica. Seus argumentos nos
permitem enxergar a sintonia de seus filmes e textos com esse apontamento de Marcus, assim
como com as críticas que emergiram no seio da antropologia neste período histórico que
estamos enfatizando.

Mais adiante, no mesmo texto, o autor reconhece que o objeto privilegiado da


antropologia tem mudado nas últimas décadas, afetado por alterações da ordem do tempo e do
espaço, que modificam as condições do trabalho de campo, com destaque para “a natureza
crescentemente desterritorializada do processo cultural e as implicações disso para a prática
da etnografia” (1990, p.4), de modo que ele levanta a questão: “como operar a descrição de
um processo cultural que ocorre em espaço transcultural, em diferentes locais ao mesmo
tempo, em mundos paralelos, separados, mas simultâneos?” Para lidar com o problema ele
evoca contribuições do modernismo literário para dar conta da “representação em uma forma
linear de simultaneidade” (1990, p. 4). A experimentação formal na escrita, herança dessa
tradição literária vai encontrar, segundo Marcus, terreno fecundo para se desenvolver no
cinema.

A relevância do cinema entra aqui na adaptação do conceito de montagem


paralela como base para a solução na escrita para atingir um efeito de
simultaneidade. Além disso (e além da minha competência aqui) esse
problema modernista da escrita etnográfica sugere um tratamento na seara da
produção fílmica. É estendendo a metáfora cinemática na escrita
experimental para o ato de filmar que uma nova relação entre escrita
etnográfica e filme pode ser forjada. (1990, p.4)

O cinema apresenta-se então como campo ideal para a experimentação formal em


processos de descrição cultural que pretendem dar conta dos problemas emergentes no mundo
contemporâneo, permitindo à prática da etnografia expandir seus horizontes para além do
143

domínio da antropologia, superando as contingências do trabalho com a escrita literária e as


convenções de validação científica desejados no seio da sua disciplina de origem em favor de
incorporar outras práticas de sentido, outras formas expressivas, potencialmente concentradas
na estética cinematográfica, onde as operações de extensão e distensão do tempo, de
construção de espacialidades, de múltiplos pontos de vista, de operação com o som e a luz vão
modificar a prática da etnografia, proporcionando um campo interdisciplinar onde o
experimental e o etnográfico se encontram por meio da forma fílmica. Aqui podemos trazer
também a noção de etnografia experimental, como já tivemos a oportunidade de explrar
anteriormente, seguindo Catherine Russell (1999) e sua proposta de etnografia experimental
no cinema.

Entendemos que as colocações de Marcus ensejam uma aproximação com a


filmografia de Trinh T. Minh-ha, pois esta reúne as qualidades de experimentação estética
assim como lidam com processos de descrição cultural tais como apontados pelo autor. Este
movimento de aproximação e de encontro entre a teoria social e a estética cinematográfica
tomando como corpus a filmografia da cineasta abre espaço para identificarmos a sua
contribuição para o campo do cinema documentário, em consonância com um momento
importante de revisão epistemológica nas ciências humanas e sociais e contemporaneamente a
um momento vigoroso de florescimento de filmes que expressam novas formas como forma
de relação entre a subjetividade individual e a experiência com o mundo.

Para Clifford (1986, p. 25) “a escrita e a leitura etnográficas estão


sobredeterminadas por forças ultimamente fora de controle, tanto de autores como de
comunidades interpretativas. Essas contingências – de linguagem, retórica, força e história –
devem ser agora abertamente confrontadas no processo da escrita.” Esse processo delineado
por Clifford aponta para uma crise que refletiu-se diretamente na formulação dos relatos
etnográficos na antropologia e pode ser estendida para a realidade do encontro intercultural
típico do universo do cinema documentário. Marcus (1990), identificou quais foram as
principais mudanças nos parâmetros da escrita etnográfica em direção a um quadro de retórica
alinhado a prerrogativas modernistas vindas da teoria literária, ocorrido segundo ele a partir
de certos protocolos. Para o autor

três requerimentos lidam com a construção de assuntos da etnografia por


meio da problematização da construção do espaço, do tempo e da
perspectiva ou voz na etnografia realista. E três requerimentos incidirão
144

sobre estratégias para estabelecer a presença analítica do etnógrafo no seu


próprio texto: a apropriação dialógica de conceitos analíticos, bifocalidade e
a justaposição crítica de possibilidades. (MARCUS, 1990, p.6)

No desenvolvimento do seu argumento, Marcus vai novamente enfatizar a


dificuldade em realizar plenamente as estratégias experimentais no campo da etnografia
escrita. Em suas palavras: “O que eu quero sugerir é que cada um dos estratagemas acima é
mais facilmente alcançado no meio cinemático do que no escrito, e que, na verdade sua
realização nos textos escritos envolve a difícil tradução das técnicas narrativas essencialmente
cinemáticas – especialmente a montagem – na linearidade do texto escrito” (MARCUS, 1990,
p.6).

O autor chega a sugerir o exercício de se pensar uma “montagem” desses


requisitos modernistas de modo comparativo, primeiro na escrita, depois no filme. De certo
modo, nosso texto segue a sugestão, mesmo que parcialmente, e se propõe a trazer os
requisitos apontados por ele para pensar o cinema de Trinh T. Minh-ha, aprofundando neste
capítulo apontamentos que fizemos no capítulo anterior.

Vamos a uma breve descrição de cada um dos requisitos sugeridos por Marcus:
(1990):

a) Problematizar o espaço – parte do reconhecimento da desterritorialização


contemporânea da cultura.
b) Problematizar o tempo – afastamento das metanarrativas históricas em favor da
constituição de memórias coletivas e suas expressões.
c) Problematizar a perspectiva/voz – entendimento da voz como perspectiva e ênfase na
abertura para a polifonia.
d) A apropriação dialógica de conceitos e dispositivos narrativos – substituição da
exegese como meio de reconhecimento do Outro em favor da incorporação da
discursividade da alteridade na sua própria.
e) Bifocalidade – distanciamento discreto da alteridade. Reconhecimento reflexivo da
relação prévia existente entre observador e observado.
f) Justaposições críticas e contemplação de possibilidades alternativas – posicionamento
crítico em relação a aparatos disciplinares e busca por caminhos alternativos e pouco
ou nada explorados.
145

Uma vez feitos esses apontamentos a partir da teoria social, cumpre aqui verificar
também como o campo dos estudos de cinema passou a lidar com as mesmas questões
advindas desse quadro de mudanças amplo em um mundo que passava por transformações.
Assim fazendo, somos levados a pensar tais questões nesse intervalo entre a teoria social e a
teoria do cinema, local de onde consideramos que a prática cinematográfica de Trinh T.Minh-
ha ganha relevância. Em se tratando dos estudos de cinema, esse período coloca em evidência
o interesse em problematizar filmes desafiadores a partir da categoria literário do ensaio.

4.2 Um cinema ensaístico

Como vimos no primeiro capítulo, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas


pela consolidação de uma teoria do cinema documentário, com um corpus de textos dedicados
a problematizar a especificidade desse domínio dos estudos cinematográficos. Entretanto, há
nesse mesmo momento, a emergência de uma outra hipótese que tem se desenvolvido desde
então e que nos últimos anos ganhou densidade e amplitude no campo. Hipótese esta que tem
aproximado os estudos de cinema de uma vertente dos estudos literários. Estamos falando da
ideia de um cinema ensaístico.

As menções a um potencial ensaístico do cinema têm como uma das primeiras


referências publicadas o texto do artista de vanguarda e cineasta experimental alemão Hans
Richter, “O ensaio fílmico: Uma nova forma do cinema documentário29”, publicado em 1940
no suplemento Baseler Nationalzeitung. Nesse texto o autor reflete sobre novas necessidades
que considerava estarem surgindo na produção de documentários e que a forma clássica desse
tipo de cinema não teria como dar conta.

Desta maneira o filme documentário enfrenta a tarefa de visualizar conceitos


intelectuais. Também aquilo que não é visível tem que ser visualizado. As
cenas interpretadas, assim como as atualidades registradas diretamente, são
argumentos em uma demonstração que aspira a dar a entender geralmente
problemas, pensamentos, inclusive ideias. Por essa razão, me parece
adequada a definição de ensaio para esta forma fílmica, pois na literatura a
palavra “ensaio” já implica o tratamento de temas difíceis de uma forma
compreensível para todos. (RICHTER, 2007, p. 188)

29
Aqui utilizamos a tradução para o espanhol, presente na coletânea La forma que piensa. Tentativas en torno al
cine-ensayo, organizada por Antônio Weinchiter (2007)
146

Em 1948 Alexandre Astruc publicou na revista francesa L’ Ecran français seu


famoso texto “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo”. Nesse texto,
pensando em trabalhos de diretores como Orson Welles e Jean Renoir, o autor busca ressaltar
que o cinema está encontrando uma linguagem própria. Para Astruc

O cinema está simplesmente se tornando um meio de expressão, tal como se


tornaram todas as outras artes antes dele, especialmente a pintura e o
romance. Depois de ter sido sucessivamente uma atração de feiras, um
entretenimento semelhante ao teatro de boulevard ou um meio para
preservar as imagens de uma era, está se tornando gradualmente uma
linguagem. Uma linguagem na qual e pela qual um artista pode expressar
seus pensamentos, por mais abstrato que eles sejam, ou traduzir suas
obsessões exatamente como hoje se faz no ensaio ou no romance. (1992, p.
325)

No final da década seguinte, mais precisamente em 1958, André Bazin publicou


um texto no jornal France-Observatetur30 sobre o filme Lettre de Sibérie, de Chris Marker,
que se notabilizou por fazer nova elaboração entre o ensaio e o cinema. Nas palavras de Bazin

Lettre de Sibérie é um ensaio sobre a realidade da Sibéria do passado e do


presente, na forma de um relato filmado. Ou, talvez, emprestando uma
formulação de Jean Vigo sobre À propos de Nice (“um ponto de vista
documentado”), eu diria, um ensaio documentado pelo filme. A palavra
importante aqui é “ensaio”, entendida no mesmo sentido que tem na
literatura – um ensaio a um só tempo histórico e político, ainda que escrito
por um poeta. (2003, p.44).

Para Timothy Corrigan (2011), um dos autores a trabalhar no mundo anglófono


que tem defendido as prerrogativas de um domínio particular do cinema em relação com a
tradição literária do ensaio, ainda que existam textos clássicos do cinema apontando para esta
ideia de um cinema de escrita pessoal que tem filiação com a tradição literária do ensaio
desde o início do século XX, é na década de 1990 que essa conceituação ganha maior
densidade e maior abrangência nos estudos de cinema31. Porém, antes de o termo ganhar a

30
Aqui utilizamos como referência a tradução para o inglês, publicada na revista Film Comment na edição de
julho/agosto de 2003.
31
Para uma boa cronologia de textos dedicados às relações entre o ensaio e o cinema ver WEINRICHTER
(2007).
147

proeminência que passaria a ter nas décadas seguintes, é importante considerar que diversos
autores já trabalhavam com essa noção do ensaístico para pensar o cinema documentário,
alguns de modo indireto, como é o caso de Bill Nichols em relação à categoria de
autorreflexividade, por exemplo.

Um autor importante para pensar o ensaísmo no cinema é o de Michael Renov,


que trabalhou com este conceito em diversos textos, alguns dos quais foram depois reunidos
no livro The subject of documentary (2004). No texto “History and/as autobiography: the
essayistic in film and vídeo”, publicado em 1989, Renov já trabalha com o conceito de ensaio
no cinema para pensar casos de filmes em primeira pessoa e delineia a filiação do ensaístico
no cinema com relação ao seu modelo anterior, o ensaio literário. Renov parte
especificamente de Montaigne e Barthes como modelos para identificar os aspectos do ensaio
literário que considera serem frutíferos para analisar certo corpus de filmes e vídeos. Segundo
o autor

Esses trabalhos visuais, assim como a forma do ensaio literário, podem ser
considerados como resistentes a classificações genéricas, abrangendo uma
série de antinomias fechadas: ficção/não-ficção, documentário/avant-garde,
cinema/video. Em modos que podem ser especificados, esses textos são
notáveis pela negociação de três termos ou eixos críticos ao redor e contra os
quais podemos considerar que o efeito-ensaio adquire forma: história,
subjetividade, linguagem. (RENOV, 1989, p.8)

Não seria difícil verificar atualmente o interesse pela aproximação entre o ensaio
literário e os estudos de cinema a partir do trabalho de diversos autores, especialmente nos
estudos dedicados ao cinema documentário. Para ficarmos em apenas algumas referências,
vamos apontar certas considerações colhidas de trabalhos produzidos na década de 1990 e que
foram pioneiros nesse esforço em conceituar o ensaístico no cinema. Seguindo uma ordem
cronológica de publicação, partiremos do texto In the search of the centaur”, de Phillipe
Lopate, publicado inicialmente em 1992 na revista The three penny review, e posteriormente
em 1995, revisto e ampliado, no livro Beyond Document: essays on nonfiction film,
organizado por Charles Warren, por considerar que este é um dos primeiros textos na teoria
do cinema a pensar o termo filme-ensaio como uma categoria explicativa nesse campo de
estudos. Nele, o autor identifica o interesse crescente em torno dessa aproximação do cinema
com a ensaio literário.
148

Eu acho que não é surpreendente essa frequência súbita com a qual o termo
“filme-ensaio” está sendo invocado de modo otimista e vago nos círculos
cinemáticos. Atualmente, há uma busca inexorável na estética fílmica e na
prática do cinema experimental para que o meio se livre da jaula dos
gêneros, e que reflita sobre o mundo de um modo mais responsável e
intelectualmente estimulante. (LOPATE, 1992, p.22)

Embora pioneiro e até hoje bastante lembrado na genealogia deste conceito de


filme-ensaio, este texto de Lopate é bastante especulativo. O próprio autor faz a ressalva de
que escreve de uma posição questionável e que não é um teórico do cinema (1992, p. 19),
apesar de se dedicar a relacionar alguns aspectos que considera serem necessários a um filme
para este ser considerado um filme-ensaio. Consideramos que esta citação particularmente é
interessante pelo fato de que já nos idos dos anos 1990 Lopate identificou uma certa
tendência, ou linha de força, a utilizar o termo filme-ensaio, seja nos círculos da produção,
seja nos da reflexão acadêmica, como pode ser comprovado em diversos textos publicados
posteriormente - que não abordaremos aqui - tanto para pensar o cinema de ficção quanto para
pensar o cinema documentário. No limite, essa tendência identificada teria como efeito
negativo o esvaziamento do poder explicativo do conceito de filme-ensaio, tornando-o apenas
um tema da moda e não um conceito teórico. Entretanto, esta breve passagem nos interessa
em razão de um aspecto determinante: a observação do autor de que estava em curso um
interesse crescente no campo do cinema em livrar-se das contingências associadas aos
gêneros em favor de maior liberdade estética.

Em seguida, buscamos o texto “Zwischen den Bilder/Lesen”, de Christa


Blümlinger, introdução do livro Schreiben Bilder Sprechen: texte zum essayistischen film,
organizado por ela e Constantin Wulff, por ocasião de uma mostra sobre filmes ensaísticos
ocorrida em Viena, em 1992. Aqui utilizamos a versão traduzida para o espanhol, “Leer entre
las imágenes”, presente no livro La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo,
organizado por Antonio Weinrichter e publicado em 2007. Para a autora

Os ensaios fílmicos tem algo provocador, às vezes destrutivo em si: se


rebelam contra o desvio das imagens documentais em direção ao pitoresco
ou o espetacular e duvidam da univocidade da fotografia. Incluem o
espectador no discurso fílmico ao possibilitar, graças a uma montagem “de
ouvido a olho” (Bazin), uma relação recíproca de complemento, colocada
149

em questão entre o plano da imagem e a banda sonora, entre o texto icônico


e o literário. Através de confrontações dinâmicas e uma progressão sinuosa
evita-se que o espectador efetue uma ligação inconsciente entre a imagem e
o som. Sem embargo, não se trata somente da ligação entre o dito (em off) e
o visto senão as mudanças que afetam simultaneamente a imagem e a
linguagem e que devem ser pensadas em uma relação recíproca de matérias.
O visual se converte assim cada vez mais em um complexo audiovisual ou
em uma Sonimage, tal e como Godard nomeou sua produtora. Precisamente
porque no ensaio fílmico se parte de uma justaposição em grande medida
autônoma das duas “vias”, o sistema de significação somente se constitui na
interação destes dois níveis como uma terceira realidade: assim se desenham
imagens legíveis ou mentais (Gilles Deleuze), figuras de pensamento que
desmontam os sistemas de percepção convencionais. No ensaio fílmico se
unem em um processo dialético a visão radical e o trabalho conceitual.
(BLÜMLINGER, 2007, p.53-54)

Podemos notar que o termo é utilizado de forma levemente diferente no texto de


Blümlinger. Ao invés de utilizar filme-ensaio a autora adota ensaios fílmicos, o que lança o
foco mais no processo de realização e em sua fatura do que no filme enquanto um objeto em
si. Com teor mais denso e teórico do que o texto de Lopate, esse texto de Blumlinger nos
interessa particularmente por lançar a reflexão sobre a relação entre realizador – filme -
espectador, chamando a atenção para as relações criativas entre imagem e som, de modo a
suscitarem novas formas de percepção, para além das convenções da linguagem normativa do
cinema de fatura clássica. Tal leitura permite colocar a ênfase nos filmes enquanto casos
individuais, com estratégias e recursos distintos, e não no termo enquanto categoria genérica
de organização material.

Para fechar essas referências iniciais, escolhemos o texto “The Political


Im/perceptible in the Essay Film: Farocki's ‘Images of the World and the Inscription of
War’”, de Nora Alter, publicado em 1996 na revista New German Critique. Onde a autora
aponta que

Hoje, o filme ensaio é comumente descrito como um gênero ou meio de


produção fílmica e consumo localizado nos interstícios do “documentário
versus filme comercial”, “ficção narrativa versus registro histórico”,
“verdade versus fantasia”. Qualquer que seja a definição de características
secundárias que o ensaio possa ter enquanto gênero, uma característica
básica permanece sendo que ele não é precisamente um gênero, desde que se
esforça para existir além das restrições formais, conceituais e sociais. Como
a “heresia” no ensaio literário adorniano, o filme ensaio desrespeita limites
tradicionais, é transgressivo tanto estruturalmente quanto conceitualmente, é
autorrefletido e autorreflexivo. Ele também questiona as posições de sujeito
150

do cineasta e da audiência, assim como o próprio meio audiovisual – seja ele


filme, vídeo ou digital-eletrônico. O filme ensaio é tão internacional quanto é
interdisciplinar. (ALTER, 1996, p. 171).

Nesse texto novamente temos a adoção do termo filme-ensaio, como vimos


anteriormente em Lopate, com quem a autora concorda, ao enfatizar que tal categoria de filme
não é precisamente um gênero. Basta verificarmos que seu argumento de algum modo
desenvolve um apontamento presente em Lopate, o de que havia uma emergência no campo
cinematográfico em se livrar das amarras dos gêneros em direção a uma maior liberdade na
forma e na estilística, de modo a que esta “reflita sobre o mundo de um modo mais
responsável e intelectualmente estimulante.” (LOPATE, 1992, p.22) Porém, o argumento de
Alter é mais desenvolvido e preciso ao enfatizar esse caráter de impropriedade necessário ao
filme como condição para que seja considerado um filme-ensaio, esse seu caráter “herético”
para usar sua alusão ao termo adorniano, evitando que o termo possa ser fechado em uma
nominação de tipo ou objeto específico.

A questão da filiação à teoria literária e particularmente a referência aos termos de


Adorno em relação ao conceito de ensaio aparecem em diversos outros comentaristas que têm
se dedicado a escrever sobre o cinema do ponto de vista ensaístico. Um caso que apresenta de
modo bem didático essa aproximação é o do já citado espanhol Antonio Weinrichter, que em
seu texto “Un concepto fugidio – notas sobre el film-ensayo” promoveu uma exposição muito
clara dos princípios que têm sido trabalhados em textos fundadores desta aproximação entre a
teoria literária e a teoria do cinema e que são referência para o debate. Segundo Weinrichter,

Nisto o ensaio fílmico segue os passos de seu alegado predecessor, o ensaio


literário: não é demais lembar que uma das teorizações mais citadas, a de
Adorno, se pode resumir em um postulado: “a lei formal mais profunda do
ensaio é a heresia”. O difícil encaixe do ensaio nas categorias estabelecidas,
quem sabe a fonte primária da fascinação que exerce nos estudiosos, se
prolonga no caso do cinema para além do mero marco acadêmico da teoria
dos gêneros. Com efeito, a exibição do produto cinematográfico aparece
fortemente compartimentalizada em categorias que são mais de mercado (e
de forma de consumo) que estéticas. E ele coloca o ensaio, um modo que
não é narrativo e tampouco documental, em um limbo que não faz senão
acrescentar as dificuldades de acesso ao mesmo. Enfim, uma consequência
indesejada e quem sabe inevitável da condição herética e heteróclita do
ensaio é que, entre aqueles que se preocupam com estas questões desde a
margem do cinema, tende-se a considerar ensaio toda peça que ensaie uma
forma híbrida (também as novas formas de ficção contaminadas pelo real, e
151

pelo tempo do real). É como se houvesse um desejo de recuperar


positivamente esta confusão de fronteiras e de apropriar-se delas; e com
frequência o fim a que se recorre, o nome que se conjuga, é o do ensaio.
(WEINRICHTER, 2007, p. 12-13).

Em seu texto, Weinrichter trabalha tanto com os termos filme-ensaio quanto com
o de ensaio fílmico, mas não faz isso de modo desavisado. A passagem acima de seu texto
demonstra claramente a valorização do ensaístico como resultado da presença de
determinadas características intrínsecas ao modo de narrar, que remete à tradição literária. Em
relação ao termo filme-ensaio o autor conscientemente associa o risco de uma cristalização
em relação à nomenclatura, como uma espécie de fetiche que esvazia o termo de sua
configuração conceitual, enfraquecendo seu poder explicativo em favor de uma qualidade
apenas de indexação, que seria em si redutora da potencialidade identificada do ensaístico
enquanto relação de um sujeito com uma realidade ou tema determinado por meio de uma
forma expressiva em particular.

Para avançar na reflexão sobre a relação do cinema com o ensaio passaremos para
autores que mais recentemente se dedicaram a aprofundar a reflexão a este respeito. Uma das
primeiras contribuições na academia anglo-saxônica a buscar teorizar essa questão do cinema
ensaístico propriamente foi a de Laura Rascaroli, em seu livro Personal cinema: subjective
cinema and the essay film, publicado em 2009. Para a autora

É importante atestar uma vez mais que heresia e abertura estão entre as
marcas chave do filme ensaio. Seu posicionamento nas encruzilhadas do
“documentário, avant-garde e filme de arte” sugere que devemos resistir à
tentação de teorizar em demasia a forma, ou, pior, cristalizá-la em um
gênero. Sendo ele informal, cético, diverso, disjuntivo, paradoxal,
contraditório, herético, aberto, livre e sem forma, o ensaio verdadeiramente é
a “matrix de todas as possibilidades genéricas”. O ensaio é um campo de
experimentação e idiossincracia, na medida em que podemos aceitar a
perspectiva compreensiva de Edgar Morin: “Falar de filme ensaio, eu
preferiria me referir a atitude de quem tenta (essai - ensaia, mas também
tenta) debater um problema usando todos os meios de que o cinema dispõe,
todos os registros e todos os expedientes. (RASCAROLI, 2009, p.39)

Esta asserção de Rascaroli nos coloca novamente em face à questão de pensar o


ensaio no cerne da forma, como o resultado de uma relação entre um sujeito, diríamos uma
subjetividade, com outro sujeito, tema ou realidade, que também se abre para uma audiência,
152

colocando estes elementos em relação, buscando através da forma expressiva do cinema


entregar um modo de ver e de narrar uma experiência singular do mundo.

Apesar de toda argumentação exposta de que o ensaio caracteriza-se por essa


impropriedade, indefinição, ausência de regras, e outras considerações semelhantes a situá-lo
em uma posição de difícil ou até impossível categorização, e mesmo com a consideração de
Rascaroli sobre “resistir à tentação de teorizar em demasia a forma”, evidentemente não se
invalida a perspectiva de investigação necessária em relação a esta prática no campo da
prática cinematográfica. A teoria do cinema tem avançado na conceituação desta relação entre
o cinema e o ensaio, com algumas contribuições já decisivas para delinear mais precisamente
este domínio específico dentro do campo cinematográfico, algumas das quais foram expostas
brevemente aqui. A fim de encontrar balizas com as quais seguir pensando o ensaístico no
cinema, trabalharemos com considerações do já citado Timothy Corrigan, uma das vozes mais
atuantes em relação ao assunto que estamos tratando aqui no campo da academia anglo-
saxônica. Em seu livro The Essay Film – from Montaigne, after Marker (2011) encontramos
uma definição para circunscrever os filmes ensaísticos assentada em três aspectos: I) o teste
de uma subjetividade expressiva, uma subjetividade ensaística; II) a relação da subjetividade
com a experiência pública e III) o encontro entre uma personalidade aberta e proteica com a
experiência social que produz a atividade do pensamento ensaístico.

Vejamos em detalhe os aspectos elencados por Corrigan, iniciando pelo primeiro


pilar, onde ele enfatiza a subjetividade expressiva ou ensaística:

Subjetividade ensaística – em oposição a muitas definições do ensaio e do


filme-ensaio – referentes não simplesmente à colocação ou posicionamento
de uma consciência individual ante e em experiência, mas a uma consciência
ativa e assertiva que testa, desfaz, ou recria a si mesma através da
experiência, incluindo as experiências da memória, argumento, desejo ativo
e pensamento reflexivo. Incorporadas na ação textual do filme, o sujeito
ensaístico se torna produto de expressões empíricas transformadoras mais do
que simplesmente produtor de expressões (2011, p. 31).

Este pilar tem como foco o sujeito do discurso do filme. O importante a notar aqui
é que ele aponta para uma dimensão ativa do cineasta como articulador das instâncias
expressivas do filme mas em relação com a experiência vivida de modo reflexivo, ou seja, o
filme como expressão de um estar no mundo aberto às vicissitudes dessa experiência de modo
153

a incorporar em seu discurso ou expressão os efeitos dessa dimensão vivida como meio de dar
visibilidade a um processo, resultado de um embate entre a subjetividade desse sujeito e o
momento histórico vivenciado.

Passamos para o segundo pilar, que trata do encontro empírico em uma arena
pública, onde

Mais do que simplesmente trazer a primeiro plano a organização da


subjetividade como tópico, enunciação e recepção, práticas ensaísticas têm
sido mais inovadoras, complexas e definidoras, acredito, no modo como elas
tem problematizado e complicado a subjetividade e sua relação com a
experiência pública, o segundo pilar do ensaio. Essas experiências públicas –
como encontros com lugares, pessoas e eventos – são o que comumente
alinham filmes-ensaio a documentários nos quais essas realidades públicas
comumente prevalecem como o referente a ser revelado. Ainda assim,
filmes-ensaio fundamentalmente distinguem-se de outras estratégias do
documentário como uma forma de expressão e representação que
necessariamente abandonam o eu em favor de eventos, ações e objetos
exteriores a autoridade de suas próprias expressões subjetivas e
representações. Aqui, o encontro ensaístico central com o “dia a dia” como
uma arena de experiência pública descreve tanto uma experiência temporal
como espacial notáveis por suas habilidades presumidas em resistir à
institucionalização pública e à formulação pessoal. (2011, p. 32)

Este pilar tem como foco o contexto e o objeto relativos aos quais o filme se
debruça. Nos moldes do primeiro pilar, podemos dizer que do embate entre o sujeito e a
esfera pública surge o discurso subjetivo que relata essa experiência, mas cujo foco está na
dimensão simbólica que aponta para além da aparência, da concretude, em direção a uma
dimensão mais simbólica e sutil de relação. Trata-se de ver, sentir, perceber pelo filme uma
experiência de mundo que se constrói nessa relação entre sujeito e aspectos socioculturais e
históricos em uma relação espaço temporal determinada sobre a qual o cineasta, através de
seus gestos32 ensaísticos contidos no filme e pelos meios expressivos da imagem e do som e
suas articulações, oferece uma visão original de processos culturais e sociais a partir da sua
experiência singular.

Passando para o terceiro pilar, Corrigan considera que

32
Por gesto ensaístico estamos nos referindo ao ato, ao processo, em sentido lato. O gesto de ensaiar e não o
ensaio enquanto forma exterior.
154

Como uma dimensão chave da política do filme-ensaio, o encontro entre um


eu aberto e mutável e a experiência social produz do pensamento ensaístico
como a terceira característica distintiva desses filmes, uma atividade que
Montaigne anteriormente identificou como o teste das ideias. Tanto a
subjetividade como a experiência são certamente produtos do discurso, e
mais do que estabilizar e harmonizar o encontro entre esses dois discursos, o
ensaístico cria embates e lacunas em cada um e no encontro entre eles como
um espaço que provoca, quando não demanda, pensamento. Assim, uma
parte essencial do encontro ensaístico, como Graham Good o caracterizou,
‘busca ... preservar algo do processo33 do pensar’. (2011, p. 33).

Neste pilar o foco recai sobre o filme como produto resultante da experiência.
Entetanto, não se trata de um produto cujas estratégias narrativas e expressivas remetem a
normas e convenções típicas do universo do cinema mais convencional, já consagradas em
códigos específicos nos domínios do cinema que se estabeleceram no desenvolvimento de sua
tradiação histórica, mas apontam para casos inovadores onde a expressividade do cinema está
a favor de uma experimentação que é não apenas formal, mas que busca expressar uma
dinâmica contida entre a a reflexão e a expressão, como uma prova do processo do pensar,
como uma forma que pensa, materializada nas imagens e sons e suas relações possíveis.

Por fim, é importante assinalar a publicação recente em nosso país de um livro


coletivo totalmente dedicado ao ensaio no cinema. Trata-se de O ensaio no cinema: formação
de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea, organizado por
Francisco Elinaldo Teixeira, professor do Departamento de Cinema da Unicamp. A obra
reúne textos de 14 autores brasileiros e estrangeiros em torno da reflexão e da prática do
filme-ensaio. No texto “Para além dos domínios da ficção, do documentário e do
experimental, o ensaio como formação de um quarto domínio do cinema?”, Teixeira observa,
em relação ao que chama de cine-ensaio, que

Sua errância e distanciamento de categorias habituais como a de gênero,


como se viu, fez com que até agora se mantivesse numa espécie de
flutuação, quando muito, num lugar de passagem entre outros domínios do
cinema, sobretudo, o do documentário e o do experimental.

Mais adiante o autor apresenta a proposta de pensar um outro domínio


cinematográfico onde o ensaio pudesse acomodar-se plenamente.

33
Destaque do original
155

Bem, se o ensaio não se reduz, nem se confunde ou se assimila com nenhum


dos três domínios já clássicos, seria tão impertinente pensá-lo e propô-lo
como formação de um quarto domínio/território do cinema? Formação que
teria seu limiar a partir do cinema moderno e seu adensamento na
contemporaneidade, com toda essa proliferação de filmes ou peças
audiovisuais que nos desafiam quanto à sua ontologia, quanto aos seus
processos, modos e matérias construtivas, assim quanto a como situar tudo
isso, já que diferem e rumam para uma singularização? (TEIXEIRA, 2015,
p. 184).

Diante desta breve exposição de algumas das linhas de força presentes hoje nas
discussões acadêmicas que se debruçam sobre a relação entre o cinema e o ensaio, e após
desenvolver de forma panorâmica uma certa cronologia na evolução de como a questão tem
sido abordada nos estudos de cinema, podemos voltar ao texto de Renov (1989), para afirmar
uma questão que nos parece essencial no entendimento dessa problemática, reconhecendo que
“o uso da adjetivação (‘o ensaístico’) é então preferida por sua indicação de tendência mais do
que o efeito totalizante da forma nominal (‘o ensaio visual’34) poderia sugerir”, (RENOV,
1989, p. 8). Sendo assim, nesta pesquisa nos ocuparemos dos gestos ensaísticos no cinema de
Trinh T. Minh-ha, buscando uma análise dos aspectos inerentes aos processos de realização
dos filmes individualmente e não à tipificação dos filmes como produtos finais
correspondentes a generalizações categóricas.

4.3 A estética da parcialidade

Para pensarmos o que estamos chamando de estética da parcialidade no cinema de


Trinh T. Minh-ha partiremos da noção de “um sentido rigoroso de parcialidade”, emprestada
de Clifford (1986) para, sob sua luz apontar como os filmes da diretora lançam mão de
complexas práticas experimentais que podem ser identificadas com esse sentido apontado na
medida em que partem da utilização de estratégias típicas do campo do cinema documentário,
como a utilização da locução em voz over, o uso de entrevistas e a encenação, geralmente
associadas a modelos mais clássicos, e contribuem para a sua redefinição, apontando
caminhos para uma nova prática cinematográfica.

34
O autor usa aqui a referência geral às artes visuais para contornar a diferenciação que se fazia entre cinema e
vídeo na época em que publicou o artigo. Certamente poderiamos incluir aqui os termos filme-ensaio, ensaio
fílmico e assemelhados.
156

Com as transformações dos paradigmas das ciências humanas como um todo e das
ciências sociais em particular, temos uma série de deslocamentos e movimentos que colocam
sob revisão posições de autoridade no campo dos relatos etnográficos, assim como o fazem no
domínio do cinema documentário. Desde a década de 1980 é crescente o número de filmes
que subvertem as condições de produção mais usuais, fugindo aos padrões e modelos
convencionais para explorar temas e processos que antes estavam subsumidos ou submetidos
a discursos exteriores às suas próprias realidades. Neste período temos o surgimento de filmes
produzidos por grupos indígenas ou étnicos ao redor do mundo, pelas chamadas minorias das
sociedades urbanas, por ativistas de causas diversas. Muitos desses trabalhos são responsáveis
por tornar o cenário do cinema documentário moderno cada vez mais complexo e desafiador,
ao passo que exploram a estética cinematográfica de modo inovador, contribuindo para sua
diversificação estilística promovendo diálogos cada vez mais profícuos entre searas distintas
da expressão cinematográfica. Neste cenário, marcado por formas narrativas diversificadas é
onde acreditamos ser possível falar em uma estética da parcialidade, entendida aqui não como
a ênfase na ausência, o apontamento daquilo que é incompleto, mas, ao contrário, a
parcialidade como o reconhecimento da força das diferenças expressas nas diversas estéticas e
retóricas que não podem ser abarcadas por modelos totalizantes, generalizantes, pois são
múltiplas e complexas. A parcialidade, neste caso, é a expressão da singularidade, da autoria.
A estética da parcialidade é própria aos filmes inventivos e inovadores, que se contrapõem a
modelos e modos predeterminados de narração e retórica cinematográfica para afirmar sua
diferença como valor essencial. Sintoniza-se com a subjetividade ensaística que dá a ver
modos especulativos, experimentais de ser, de perceber e de estar no mundo.

O que estamos querendo demonstrar ao longo deste trabalho é que o cinema de


Trinh T. Minh-ha resulta da experimentação com a forma fílmica, expressa por intermédio de
gestos ensaísticos que ajudam a promover um cinema singular de ampla potência.

Para tornar mais claro o que estamos chamando de estética da parcialidade,


identificaremos, a seguir, quais são os requisitos para a sua configuração; posteriormente
vamos relacioná-los aos gestos ensaísticos encontrados nos filmes da Trinh T. Minh-ha.
157

4.4 Requisitos da estética da parcialidade

A estética da parcialidade no cinema de Trinh T. Minh-ha está relacionada à


provocação de um tensionamento nas práticas hegemônicas do campo do cinema. Nesse
processo, ao colocar em prática o entrelaçamento entre cineasta e filme, cria-se uma abertura
para a descoberta que leva cada filme a se revelar como um procedimento novo de relações e
de experiências entre a cineasta e seus temas e objetos. Os gestos que encaminham esse
percurso são parte e resultado de uma experiência que vai resultar em objetos artísticos que
são a um só tempo estéticos e intelectuais. Ou seja, em filmes como expressão daquilo que
poderíamos chamar de um processo de pensamento.

Para essa busca incessante, renovada a cada filme, a cineasta trabalha de forma
recorrente com a elaboração de três procedimentos centrais, todos relacionados a pensar de
modo crítico a interrelação entre sujeito, objeto e contexto. São eles: i) o “estar entre”, ii) a
abordagem indireta e iii) a busca pelo intervalo. Podemos dizer que eles traduzem a visão
original da cineasta em relação a sua produção intelectual e artística e traduzem princípios que
norteiam seu posicionamento ético e político. Podemos aproximá-los dos termos de Marcus
(1990), apresentados mais acima neste capítulo, quando este apontou os desafios que via em
relação aos relatos dos processos socioculturais nas etnografias contemporâneas, identificando
que tais procedimentos estão relacionados à “problematização do espaço, do tempo e da
perspectiva ou da voz” (MARCUS, 1990, p6). Podemos também trazer novamente aqui os
termos apresentados por Renov, que também utilizamos mais acima, quando destacamos os
aspectos que este via presentes nos filmes ensaísticos mais desafiadores e considerar que
também os procedimentos estão relacionados de forma crítica a eles, girando em torno de
temas da “história, subjetividade, linguagem.” (RENOV, 1989, p.8)

4.4.1 O “estar entre”

Insistimos que os filmes de Trinh T. Minh-ha compõem um corpus muito


interessante para repensarmos a tradição do cinema documentário, conforme apresentamos
nos três capítulos anteriores desta pesquisa. Além do vigor estético e discursivo que cada
filme apresenta, são trabalhos que nos provocam a pensar as relações entre as questões
históricas e sociais que conformam o campo da representação cultural em um sentido mais
amplo, domínio que podemos considerar como uma das linhas de força do documentário.
158

Além dessas questões mais contextuais que nos movem a pensar o cinema documentário em
um período de mudanças sociais profundas, com a emergência de novos sujeitos sociais, de
novos campos disciplinares, do nascimento de novos paradigmas nas ciências e o abandono
de outros, de transições tecnológicas e de reordenamento de questões geopolíticas diversas, a
produção de Trinh T. Minh-ha nos permite avaliar a relação entre teoria e prática de modo
bastante especial.

A cineasta-teórica já declarou que não vê seus filmes apenas como filmes, mas
como expressões tanto intelectuais quanto estéticas, e, podemos acrescentar, estas se
interligam com sua produção teórica no campo da crítica cultural e do feminismo de maneira
exemplar. Do mesmo modo, ela já deixou claro que não se importa com as categorias usuais
com as quais o cinema historicamente dividiu seus domínios, ou seja, não produz a partir das
categorias convencionais de ficção, documentário e experimental. Em uma entrevista para
Scott Macdonald, publicada no livro Framer Framed, ela assevera

Há uma tendência em teorizar sobre35 o cinema, de ver o teorizar como uma


atividade e o filmar como outra, para a qual você pode apontar na teoria.
Esta é uma questão importante para mim porque eu ensino teoria
parcialmente para pessoas que vem à faculdade – em um departamento
universitário de cinema – primordialmente para a realização de filmes. Há
uma tradição anti-teoria que corre profundamente entre algumas das
“pessoas da realização”. O modo como eu tento ensinar promovendo cursos
“ponte” e por enfatizar a indispensabilidade do seu desafio mútuo pode ser
sintetizada em uma velha citação de Marx: que a teoria não pode
desenvolver-se sem estar enraizada na prática, e que a prática não pode se
liberar sem a teoria. Quando alguém começa a teorizar sobre o cinema, ele
começa a se fechar no campo; se torna um campo de especialistas cujo
acesso é ganho através de conhecimento autorizado de um corpo demarcado
de filmes “clássicos” e de modos legitimados de ler e falar sobre filmes. Esta
é a parte que considero a mais estéril na teoria. É necessário para mim
sempre manter em mente que alguém não pode realmente teorizar sobre
cinema, mas apenas com o cinema. É assim que o campo pode permanecer
aberto. (TRINH, 1992, p.122)

Esta declaração da cineasta-teórica nos permite abordar a primeira de suas


qualidades que consideramos centrais na constituição de um corpo de trabalho que elabora e
entrelaça política e poesia, ética e estética, forma e conteúdo, de modo a constituir-se como
um cinema provocativo dos limites entre áreas de saber e campos de atuação. O que podemos

35
Destaques do original
159

depreender dessa posição defendida pela cineasta é a busca por um “lugar entre”, um modo de
ser e estar que se posiciona entre totalidades e polaridades. Para utilizarmos alguns termos
associados à produção fílmica de Trinh vistos anteriormente nesta pesquisa, é o lugar que está
situado entre os movimentos de outside/in e inside/out. Um lugar ciente de sua precariedade e
sua relatividade com relação às posições de autoridade consagradas e em face às quais assume
o desafio de constituir um lugar discursivo onde a força que move essa experiência é a busca
por evidenciar a política da representação.

O “estar entre” pretendido por Trinh T. Minh-ha opõe-se aos modos tradicionais
de discurso, que reforçam lugares de poder e confirmam e reproduzem relações de dominação
e submissão. Busca nuances mais complexas, tentando explorar os diferentes níveis existentes
nas relações e que geralmente são sublimados pelos binarismos normativos das relações
convencionais.

O desafio colocado em relação à busca por essa posição discursiva de “estar


entre” é renovado a cada filme e incessantemente deve lidar com o dilema ligado às decisões
em como abordar um objeto e ao mesmo tempo não restringí-lo a uma forma específica.

4.4.2 A abordagem indireta

A via indireta propõe modos de representação mais complexos do que os modos


de endereçamento direto que são típicos das formas convencionais de documentário. De modo
geral, podemos considerar que a curiosidade do público em relação a um filme documentário
parte de um interesse pela informação, pelo conhecimento, pelo assunto do filme e de seu
desejo de que as suas expectativas sejam correspondidas, tanto em relação ao o quê do filme
quanto ao porque. Nesse caso, para responder às expectativas do espectador o diretor do filme
se serve de estratégias diretas de evidenciação. As estratégias de via indireta enfatizam o
como mais do que o porque ou o quê. Ou seja, o como relativo à forma do filme, à inovação
das operações de relacionamento entre sujeito/cineasta e objeto/tema, que se traduzem em
formas e maneiras de realizar sua mise en scène. Este como é passível de subverter as
expectativas habituais em relação a um determinado gênero propondo ao espectador uma
experiência fílmica desafiadora, em que sua frustração pode se traduzir por uma alteração em
sua percepção da realidade.
160

Em uma entrevista a Homi Bhabha, publicada no livro Cinema interval (1999),


Trinh T. Minh-ha tem a oportunidade de desenvolver aspectos associados a essa noção de
uma via indireta no tom do discurso e da retórica

Há sempre um perigo em assumir um tom e uma posição pela via indireta,


pois alguém pode simplesmente cair no hábito de entender e emudecer a voz
de outro alguém, como o esperado das mulheres: nós deveríamos, afinal de
contas, supostamente respeitar as regras dos modos e da fala adequados ao
feminino, nunca partindo em direção a algo de modo muito agressivo e
muito direto, frequentemente pegando a porta dos fundos, o caminho
discreto para chegar a certas locações e para fazer certos pontos. Mas tal
atitude pode ser assumida de modo submisso, estrategicamente ou
criativamente. Ver através disso é compreender a situação dos povos
marginalizados presos em relações de poder. Nunca se pode ir em direção ao
mandatário de modo direto; para poder emitir sua opinião, deve-se tomar
uma via indireta. A via indireta é suscetível de perturbar os espectadores,
incluindo feministas, que esperam um filme que faça uma declaração
categórica, que entregue uma mensagem política positiva, ou que seja
construído ao redor de uma estória clara. Mas para mim, no contexto do
capitalismo tardio onde a via direta (não confundir com conhecimento
direto) é ultimamente feita para servir a fins reducionistas e consumeristas, é
importante trabalhar com a via indireta e a atenuação, se o significado deve
crescer com cada espectador, e se os interstícios da reinscrição ativa devem
ser mantidos vivos. (TRINH, 1999, p.25)

Nesta declaração da diretora podemos notar a forte relação com os contextos


normativos que a via indireta enseja. Ou seja, como a opção pela via indireta reflete um
desejo de provocar o deslocamento nas expectativas convencionais, promovendo estratégias
que são perturbadoras das forças de poder presentes nas relações, em favor de assumir
estratégias insuspeitas e desafiadoras, que podem dar a ver possibilidades discursivas
obscurecidas pelo pragmatismo habitual dos endereçamentos diretos nas relações de poder.

Uma característica fortemente associada a essa opção pela via indireta que aparece
nos trabalhos de Trinh T. Minh-ha é a utilização de certas categorias epistemológicas
orientais. Evidentemente, sua origem vietnamita e os temas e objetos abordados em seus
filmes (pelo menos seis dos seus oito filmes são realizados em países orientais ou têm relação
direta com questões da tradição oriental) colocam essa questão da temática oriental em
primeiro plano. Entretanto, a adoção desse recurso vai muito além de uma mera tematização
ou figuração. Em diversas passagens de entrevistas ou mesmo na locução em voz over de seus
filmes podemos encontrar referências a doutrinas filosóficas orientais, como o zen-budismo
161

ou o taoísmo, que denotam os modos como a cineasta lida com a relação espaço temporal e
com a dimensão imaterial, valorizando assuntos muitas vezes abstratos para o pensamento
cartesiano ocidental, como temas metafísicos, por exemplo.

A abordagem indireta apresenta necessariamente uma tensão entre forma e


conteúdo. Em certa altura do filme Shoot for the Contents temos o seguinte diálogo entre as
mulheres chinesas que estão em estúdio e cujo diálogo preenche boa parte da banda sonora do
filme:

Voz 2 – “Não, ‘um poeta não toma uma experiência como o ‘conteúdo’ do seu poema e o
empobrece em uma ‘forma’.” Não há poesia se não há exploração da linguagem. ‘Então, a
tarefa do poeta não é apenas dizer algo pela primeira vez, mas também dizer pela milésima
primeira vez, de um modo diferente, aquilo que já foi dito mil vezes.

Voz 1 - Aquilo que é manifestamente ‘real’ para alguns olhos, parece estranhamente rígido e
convencional para outros. Você não captura o espírito vital das coisas em sua aparência
formal, disse Chang Yen-Yuan sobre o período T’ang. Aquilo que parece irreal pode
transmitir a força vital das coisas de modos que nenhum domínio da sua aparência visível é
capaz.”

O texto “The plural void: Barthes and Asia”, é um exemplo muito interessante de
como questões orientais estão na base da formação intelectual e estética da cineasta. Nele
Trinh cita o zen-budismo, os haikais e o taoísmo para explorar a episteme oriental como
complexa em suas formas (ou ausência de forma) simbólicas, dando evidências às origens de
suas escolhas privilegiadas pela via indireta no discurso.

4.4.3 A busca pelo intervalo

O intervalo pode ser tomado como um aspecto intrinsecamente cinematográfico,


uma vez que a essência do cinema está na organização e justaposição de imagens e sons,
através de operações que estendem ou encurtam sua duração, estabelecendo relações entre as
partes, manipulando intervalos de onde se organizam sentidos. Porém, sobre o intervalo
propriamente há pouca reflexão, permanecendo um tópico subsumido ou menosprezado entre
os elementos mais valorizados e mais evidentes da linguagem cinematográfica. Talvez o
aspecto intersticial típico do intervalo, seu aspecto indefinido, uma vez que se situa em
162

posição irregular, precária, geralmente variável, que pode ou não ser encontrada entre polos
determinados, contribua para esse desinteresse aparente pelo intervalo. Diferentemente dos
polos, que geralmente correspondem a posições mais rígidas e determinadas, e portanto
identificáveis, de fácil associação, o intervalo carrega em si uma qualidade típica da
impropriedade, ou seja, o intervalo não existe em absoluto, apenas em relação. Seria, portanto,
uma qualidade aproximada à noção de experimentação e de ensaio, tal como estes estão
esboçados desde sua tradição literária, como categorias do teste, da especulação, do processo,
ou mesmo do pensamento.

Na abertura do livro Cinema Interval, Trinh T. Minh-ha faz uma bela


apresentação de como compreende a categoria intervalo em sua produção utilizando exemplos
do cinema para sua elaboração.

‘Intervalo’: a palavra em si não traz qualquer tremor como ‘paixão’, ‘morte’,


ou ‘amor’. Graças a isso, entretanto, uma relação direta é possível: uma
relação de infinidade assumida em trabalhos que aceitam os riscos de
espaçamento e entram no campo das ressonancias livres – ou, de
substituições indefinidas dentro do encerramento de um trabalho finito. Na
produção cinematográfica, o nome historicamente associado a “teoria dos
intervalos” é Dziga Vertov, cujo Kino-Eye e cine-olho salvaram o cinema do
‘veneno assustador do hábito’. No seu manifesto ‘A revolução dos Kinoks’,
intervalos são a base sobre a qual são construídos as cine-imagens, cine-
documentos, ou cine-poemas, ou seja: ‘sobre um movimento entre as peças,
os frames; sobre as proporções dessas peças entre si, sobre as transições de
um impulso visual para o seguinte.’ Entre, de, para. A elucidação esboçada
por Vertov parece ligar a noção de intervalo primariamente a experimentos
de montagem. Salientar as lacunas entre as imagens dos filmes, constitui a
fundação de um modo de filmar que é decisivamente não-narrativo,
‘improvisado’, e engajado na arte da vida: um estudo visual de eventos,
simultaneamente uma escrita-fílmica de processos vivos, ou como Vertov
também chamou, ‘fragmentos de energia real (como contrária à energia
teatral). Em sua ‘sala de intervalos’ onde ‘frames da verdade’ são
minuciosamente editados, tudo é questão de relações: temporais, espaciais,
rítmicas; relações, como ele específicou, de planos, de velocidade registrada,
de luz e sombra, ou de movimento interno ao quadro. Tal modo de filmar é
obrigado a contar, pelo seu significado e impacto emocional, em cada
imagem distintamente – não por si mesma de forma isolada, mas em suas
interações completas com todas as outras imagens selecionadas. Ao invés de
limitar o escopo do intervalo à edição, entretanto, Vertov clama por usar a
câmera por suas próprias propriedades – estabelecendo uma distinção
entusiasmada entre o olho cinematográfico e o olho humano – que serve para
estender tal noção. Como a montagem e como qualquer (outro) elemento do
filme, cinematografia é em si mesmo uma multiplicidade de intervalos
cinematográficos. (TRINH, 1999, p.xii)
163

Com essa exposição em relação ao intevalo, Trinh T. Minh-ha nos permite pensa-
lo como uma categoria explicativa e não apenas como um aspecto concreto existente na
materialidade do cinema ou como espaço discursivo idealizado. Dito de outro modo, a noção
tal como presente no pensamento da cineasta, contempla uma relação complexa entre um
aspecto da materialidade fílmica – o intevalo como espaço entre as imagens e os sons – e
como aspecto discursivo, um outro espaço de fala.

Mais do que trazer um espaço definitivo para o entendimento, a busca pelo


intevalo significa abrir novos espaços para questionar os modos de entendimento. Ao invés de
ter um determinado centro dominante, cada espaço pode ter seu próprio centro dominante de
onde podemos pensar em identidades, gêneros, formas, estilos, onde a diferença seja uma
força produtiva e não um problema de enquadramento e normatização.

Passaremos a uma análise do filme Shoot for the contents para melhor apresentar
nossos argumentos acerca da estética da parcialidade e como os requisitos necessários a sua
conformação podem ser encontrados nas estratégias de articulação das imagens e dos sons
utilizadas pela cineasta.

4.5 Shoot for the Contents – A (re)aproximação de Trinh T. Minh-ha ao Oriente

Shoot for the Contents ou guessing the contents – algo como adivinhar o conteúdo
– era o nome de um jogo comum nas festas dos ricos e poderosos da antiga China, conduzido
por especialistas e mestres na arte da adivinhação, nos informa Trinh T. Minh-ha em uma das
primeiras falas deste que é o seu quarto filme, realizado em 1991.

O filme apresenta um painel recortado sobre a China moderna para investigar um


universo simbólico a um só tempo complexo e sutil, utilizando de forma inovadora diferentes
estratégias retóricas e narrativas que contribuem para a elaboração de um filme exigente, que
demanda do espectador atenção aos detalhes e opções estéticas operadas pela cineasta, assim
como aos movimentos de mudança e de repetição que, como nos atos do mestre chinês do
jogo de adivinhação – cuja admiração pela acuidade e poética no movimento está expressa na
locução do filme - exploram metáforas e interpretações complexas dos signos do universo.
Como nos lembra nova passagem da locução: “Há um trilhão de Chinas, diria um contador de
história chinês: a China da imaginação das pessoas”.
164

Para melhor tecer uma análise do filme, investigando as opções adotadas nas
estratégias de encenação e de elaboração do discurso, cabe aqui uma pequena lembrança
sobre eventos ocorridos na China no período imediatamente anterior à sua realização. Em
1989, o governo de Deng Xiaoping reprimiu com violência uma manifestação de estudantes e
trabalhadores pró-democracia na Praça da Paz Celestial, evento que ganhou ampla
repercussão internacional e até hoje é tabu no país, tornando-se em boa medida responsável
por certa imagem da China ainda presente no imaginário ocidental contemporâneo, o de um
país militarizado, repressor e totalitarista. O evento é citado diversas vezes no filme, mas
nenhuma imagem ilustrativa ou alusiva a ele é utilizada.

Evidentemente, não é de uma imagem cristalizada ou idealizada da China que o


filme está em busca. A opção da cineasta é a de perscrutar aquilo que pode estar escondido
por entre os rituais da vida cotidiana, investigar os processos de transformação da China
contemporânea, sua modernidade em relação com sua tradição, optando pela via da sutileza.
Para ela, como na literatura, isso requer uma linguagem indireta. Em seu texto “The plural
void: Barthes and Asia”, já citado anteriormente, Minh-ha cita o filósofo e semiólogo francês:
“se você trata uma estrutura indireta de modo direto, ela escapa, se esvazia, ou, ao contrário,
se congela, essencializa” (BARTHES apud MINH-HA, 1982, p.41). Publicado originalmente
em 1982 na revista Sub-stance, e posteriormente incluído no livro When the Moon Waxes
Red, de sua autoria, lançado em 1991, é um texto fundamental para entender a importância da
via indireta na retórica cinematográfica assim como na produção intelectual de Trinh T.Minh-
ha. Um texto que situa as contribuições da episteme oriental para a conformação de sua
postura crítica e artística. A cineasta encontra em alguns textos de Barthes elementos para
desenvolver sua argumentação em relação ao valor das formas e dos conteúdos para a
simbologia oriental, uma relação complexa e multifacetada entre significados e significantes,
diferente da lógica ocidental, que geralmente busca representações literais para a interpretação
dos processos simbólicos a partir dos conteúdos. Para exemplificar como essa valorização da
forma acontece na episteme oriental, Minh-ha traz um exemplo do semiólogo francês em
relação ao Japão. A partir da descrição do valor de um pacote ou envelope para a cultura
japonesa, que não se resume a um mero invólucro para o conteúdo que guarda, mas é ele
próprio um objeto, Barthes defende que
165

Aparentemente é no envelope que o trabalho de fabricação é investido, mas


por essa mesma razão o objeto tende a perder sua existência, se torna uma
miragem: de um envelope a outro, o significado decola e quando é
finalmente fixado ... ele parece insignificante, sem valor, abjeto:...encontrar
o objeto que está no pacote, ou o significado que está no signo, significa
abandoná-lo. (BARTHES, apud Minh-ha, 1982, p.210).

No texto em questão, Minh-ha apoia-se em Barthes para desenvolver seus


argumentos. Nas passagens do semiólogo francês utilizadas estão presentes referências ao
Japão e à China. A imagem do pacote ou envelope para a cultura japonesa como um exemplo
de encontro entre significado e significante que se abre para vazios plurais, indeterminações
ou vias indiretas, pode ser encontrada no filme Shoot for the Contents de forma exemplar e
serve para ilustrar como as questões trabalhadas por Trinh T. Minh-ha em seus textos se
estendem e se potencializam em seus filmes.

Logo no início do filme, duas mulheres chinesas conversam em um estúdio


manejando folhas brancas de papel em um cenário recheado de cubos de papel branco, em
uma imagem que remete claramente à passagem de Barthes sobre a relação entre significado e
significante a partir do envelope para a cultura japonesa. Acreditamos que, de certo modo,
com essa mise-en-scène a diretora está declarando sua posição de que o filme não pode dar
conta do seu assunto de forma absoluta, ou seja, o filme enquanto forma mostra-se de modo
complexo para a interpretação tanto quanto o assunto ou objeto que aborda. Em outras
palavras, o filme não trará apontamentos definitivos sobre a China, por dentro de sua forma
não se encontra apenas um conteúdo fechado, mas tanto forma como conteúdo são objetos
passíveis de elaboração e de interpretação. Não há uma única descrição ou ilustração
específica da China no interior do filme, mas há um filme que aborda a China, explorando de
forma complexa elementos simbólicos dessa realidade cultural diversificada com a qual a
cineasta se relaciona.

Shoot for the Contents é um filme sobre a China elaborado por meio de estratégias
que são utilizadas como que em duplas ou duplicidades, onde cada unidade desse par
acrescenta elementos que complexificam o recurso narrativo como um todo. Vejamos quais
são as principais estratégias operadas por meio desse expediente no filme: i) as imagens –
filmagens da China, realizadas em vídeo e dos Estados Unidos, filmadas em película de 16
mm; ii) as duas mulheres chineses que acabam atuando como locutoras do filme, com
depoimentos em tons e conteúdos distintos; iii) referências e citações do Maoísmo e do
166

Confucionismo como doutrinas que representam as transformações enfrentadas pela China em


seu processo civilizatório entre a tradição e a modernidade; iv) dois entrevistados para falar da
China contemporâna – o cineasta chinês Wu Tian Ming e Clairmont Moore, um marxista
estudioso da China; v) intervenções gráficas – caligrafia dos escritos chineses e do dragão,
símbolo tradicional do país. Entre essas duplas e duplicidades a cineasta busca encontrar um
intervalo por onde seu discurso se elabora e no qual as polaridades são revistas e relativizadas,
em favor de uma abordagem que leva em conta forma e conteúdo.

Essa procura por um intervalo, um caminho entre as dicotomias e as polaridades


típicas dos discursos hegemônicos e conservadores, em busca de um percurso outro está
presente em todos os seus filmes. Entretanto, aqui neste em especial, nos parece assumir plena
forma, como o desenvolvimento de uma estratégia que perpassa toda uma obra, de modo a se
aprimorar a cada filme, se sofisticando e se adensando a cada nova utilização. A
concretização de uma poética da repetição, que se afasta da repetição mecânica em direção a
uma onde a cada nova aparição de uma mesma estratégia há um novo desdobramento, mesmo
que ínfimo e discreto.

Para analisar a maneira com que a cineasta aborda seu objeto pela via indireta,
analisaremos as estratégias que são utilizadas no filme, enfatizando como elas adotam um
caminho entre polaridades, uma opção pelo intervalo – entre extremos, entre posições – para
elaborar um discurso sobre uma realidade cultural específica. Em seu cinema, a posição de
fala, de autoridade, assume-se como um lugar de relatividade, magistralmente definido em seu
conhecido e já citado aforismo falar próximo (speak nearby) - apresentado em Reassemblage,
seu primeiro filme. Ele pode ajudar na interpretação do filme aqui em questão, assim como a
ênfase em um sentido rigoroso de parcialidade em oposição à busca de sentido de objetivação
empreendida pelas formas tradicionais do documentário.

4.5.2 Estratégias da via indireta – Cinema e Vídeo

Como vimos mais acima, as imagens de Shoot for the Contents possuem dois
suportes de naturezas distintas: o vídeo e a película. O filme foi lançado em 1991 e essa
questão do suporte de filmagem, que hoje pode até ser considerada uma questão já superada,
estava na ordem do dia. Sem estabelecer hierarquia entre os suportes, Minh-ha utiliza
magistralmente as idiossincracias das tecnologias do vídeo e do cinema e as qualidades
167

intrínsecas das imagens obtidas em cada uma delas para transitar entre texturas e composições
visuais. As filmagens em vídeo foram feitas pela própria cineasta em uma passagem pela
China e as imagens das entrevistas, das mulheres chinesas e da caligrafia e dos dragões nos
Estados Unidos, contando com o apoio de uma equipe.

As filmagens da China, que mostram vilas rurais, cidades pequenas e espaços


urbanos, têm a característica de estarem sempre em movimento, como que a revelar o olhar da
cineasta, uma viajante atenta aos detalhes das estátuas, dos adornos, das vestimentas, das
madeiras entalhadas nas portas e filigranas das moradias. Filmadas com a câmera na mão, as
imagens passeiam pelas superfícies e encontram os olhares dos moradores e transeuntes
desses espaços. Os planos variam entre tomadas estáticas que enquadram as paisagens e os
ambientes das habitações e planos em movimento com panorâmicas contínuas e movimentos
de aproximação e afastamento por meio dos recursos óticos da câmera e seus movimentos de
zoom.
168

Fig. 66 a 71 – Frames de Shoot for the Contents

Na China encontramos uma cultura em transformação acelerada. Saindo dos


modos de vida rurais chegamos aos espaços urbanos onde a tradição milenar é relembrada e
reencenada por meio de espetáculos teatrais e musicais. O recurso ao vídeo é habilmente
utilizado, explorando texturas, enquadramentos e alterações de velocidade para revelar a
mediação da representação cultural como resultado de uma reinvenção da tradição no aludido
processo de transformação. Do mesmo modo, as imagens das áreas rurais e das pequenas
cidades revelam uma China diversificada social e culturalmente, distante da imagem
plasmada pelos espetáculos tradicionais que remetem a um imaginário milenar da cultura
chinesa. São recorrentes também as imagens de símbolos e de ícones associados à cultura
chinesa ou oriental, como as figuras de Buda ou de dragões e as caligrafias e pinturas. Desse
modo, encontram-se na China contemporânea os sinais da presença da tradição por meio das
referências visuais a seus elementos ancestrais, assim como as evidências da recriação e
reinterpretação dessa tradição por meio de espetáculos e rituais modernos.
169

Fig. 72 a 77 – Frames de Shoot for the Contents

Em certas passagens, a textura do vídeo é aproveitada para obter efeitos visuais


interessantes, como no caso de um espetáculo corporal de dança e teatro, filmado com figuras
em contraluz e a partir de uma tela de TV, o que resultou em uma imagem granulada e
texturizada pelos pixels que formam a imagem. Além disso, a diretora utilizou o recurso de
slow motion, conferindo a essas imagens um aspecto quase abstrato, que lembra as figuras do
teatro de sombras chinês ou mesmo as figuras das caligrafias, cujos desenhos em formação
são recorrentes no desenrolar do filme. Diversos escritos chineses são também filmados
utilizando-se estratégias semelhantes. São passagens que nos lembram da relação entre a
forma – o filme – e o conteúdo – a cultura chinesa – enfatizando como a interpretação desses
elementos não é inequívoca, mas que é resultado de opções estéticas elaboradas pela diretora.
170

Fig. 78 a 81 – Frames de Shoot for the Contents

4.5.3 Encenação e locução

Duas mulheres chinesas conversam sobre diversos aspectos da China enquanto


manejam grandes folhas de papel, que dão origem a cubos translúcidos em um estúdio com
iluminação elaborada. A mais velha chama-se Ying e emigrou da China para os Estados
Unidos, a mais nova chama-se Dewi, é da quarta geração, nascida nas EUA. Por meio desta
encenação a cineasta se revela, uma vez que o texto que as personagens recitam foi por ela
previamente escrito. Uma via indireta e inovadora de usar a locução em voz over. As duas
conversam e dialogam. Uma delas, sempre em tom mais informal, e a outra mais assertiva. O
dispositivo criado pela cineasta explora ao mesmo tempo a locução e a encenação, esta última
percebida principalmente pela voz. Ambas estão atuando enquanto enunciam o texto escrito
pela cineasta. Apenas ao final do filme uma conversa espontânea e mais reflexiva entre as
duas revela que uma delas, a mais jovem, nasceu nos Estados Unidos, e a outra mais velha na
China, tendo emigrado já adulta para os Estados Unidos.
171

Fig. 82 a 85 – Frames de Shoot for the Contents

4.5.4 Confúcio e Mao – tradição e transformação

Tópicos associados ao pensamento e o ideário de Mao Tse-Tung e de Confúcio


atravessam todo o filme e acabam configurando a reflexão acerca das relações entre tradição e
modernidade na China contemporânea. O Maoísmo representando as transformações oriundas
da revolução cultural, e o confucionismo representando a permanência da cultura milenar.
Através dessas duas doutrinas filosóficas históricas podemos pensar em uma série de
polaridades presentes no embate entre a filosofia e ética do confucioanismo em relação direta
com a política e o comunismo do maoísmo, do mesmo modo surgem os embates entre fé e
ceticismo, Império milenar e marxismo. De modo geral, todo o filme se sustenta nesse embate
entre confucionismo e maoísmo que serve como recurso para a cineasta encontrar um
intervalo onde se posicionar e de onde elabora seu discurso fílmico sobre essa realidade
cultural complexa que é a China, em relação à qual ela é estrangeira.

As reflexões sobre a China, animadas por referências a ambas as doutrinas


filosóficas, estão presentes no texto pronunciado pelas mulheres chinesas, assim como na
conversa espontânea que elas entretem ao final do filme. Estão presentes também nas frases
da caligrafia pintada pelo artista chinês residente nos Estados Unidos e ainda nos depoimentos
dos dois entrevistados, o cineasta chinês e o especialista em arte e marxismo que comenta os
eventos da Praça da Paz Celestial. Há, entretanto, uma frase em especial que aparece de modo
recorrente no filme: trata-se do famoso slogan de Mao Tse-Tung “Que flores de todos os tipos
desabrochem, que diversas escolas de pensamento se enfrentem” que foi amplamente
divulgado a partir da década de 1950 no período conhecido como O desabrochar de cem
flores. Naquele momento o partido comunista chinês buscou estimular o desenvolvimento
intelectual a fim de aprimorar as fragilidades do seu próprio sistema: uma política revisionista
172

das concepções originárias do partido comunista que permitiu o desenvolvimento de


diferentes concepções intelectuais dentro do país, inclusive aquelas que eram contrárias ao
regime comunista.

4.5.5 Entrevistas

Como colocamos mais acima, há apenas duas entrevistas em Shoot for the
contents. Uma delas é com o cineasta e produtor chinês Wu Tian Ming, considerado um dos
nomes importantes da quarta geração chinesa, que dirigiu filmes que circularam em festivais
ao redor do mundo, além de ter cumprido um papel importante na renovação do cinema
chinês, promovendo filmes que apostavam na fatura artística em detrimento da fatura
comercial. Dessa safra, a quinta geração chinesa, surgiram nomes como Zhang Yimou, entre
outros, amplamente veiculados em diversas partes do planeta nas décadas seguintes. No
momento da entrevista o cineasta residia nos Estados Unidos, onde foi entrevistado. Essas
informações sobre sua atuação em relação ao cinema chinês não estão presentes no filme e o
seu nome apenas aparece nos créditos finais, sem menção à sua atuação profissional. Em seus
depoimentos ele fala sobre a situação do cinema chinês no período, em relação à censura
promovida pelo estado e limitações enfrentadas pelos cineastas, muitas vezes comparando a
situação na China com a situação nos Estados Unidos.

O interessante a notar em relação a essa entrevista está no modo como ela foi
registrada. O cineasta aparece em três momentos distintos, e em cada um deles há uma mise-
en-scène diferente da entrevista. Como veremos no parágrafo seguinte, em todas elas há uma
estratégia que se serve, de forma singular, do enquadramento e da iluminação para destacar
aspectos determinados que não estão presentes no depoimento de Wu Tiang Ming. A
entrevista é conduzida por Trinh T.Minh-ha, que recebe auxílio de uma tradutora. Os
depoimentos são em chinês e não são legendados. A tradução é consecutiva, pronunciada pela
tradutora.

Na primeira entrevista a diretora Trinh T.Minh-ha está de costas para a câmera ao


lado do cineasta Wu Tiang Ming. Estão em um estúdio com iluminação reduzida e tons
esverdeados, com sombras projetadas ao fundo que lembram folhas da vegetação de um
jardim. Minh-ha é iluminada a partir de sua esquerda com uma luz pontual azul e Ming é
iluminado a partir de sua direita com uma luz pontual vermelha. Ouvimos o depoimento do
173

diretor em chinês e a tradução consecutiva para o inglês por uma voz feminina. A câmera faz
uma leve pan para a direita e vai revelando o rosto da tradutora, que está sentada de frente
para Ming, em posição frontal em relação à câmera. Ela esá com o rosto iluminado por uma
luz pontual amarela. Nesta passagem da entrevista vemos apenas o rosto da tradutora,
enquanto o entrevistado e a diretora permanecem de costas para a câmera. Mesmo quando
ouvimos o depoimento de Ming não vemos seu rosto.

Fig. 86 a 89 – Frames de Shoot for the Contents

Na segunda entrevista, o cineasta está de frente para a câmera, com o rosto


parcialmente encoberto por sombras, contra o fundo esverdeado pela luz reduzida. Um ponto
luminoso azul se projeta sobre sua cabeça. Na parte escura do quadro há dois pontos
coloridos, um azul e um amarelo. Após correção de foco, que passa do rosto de Ming para os
pontos luminosos que estão em primeiro plano no quadro, podemos ver partes dos rostos da
tradutora e da diretora. Desta vez a tradutora está com o rosto iluminado por uma luz
vermelha e a diretora por uma luz amarela. A organização da traduação consecutiva acontece
do mesmo modo. Ouvimos o diretor, apesar de não vermos sua boca, e em seguida a tradução
consecutiva em inglês.
174

Fig. 90 e 91 – Frames de Shoot for the Contents

Na terceira e última aparição do cineasta chinês, a composição se altera mais uma vez.
Uma mancha amarelada preenche parte da tela. Uma correção de foco revela o rosto de Ming,
visto de um ponto de vista lateral, contra um fundo preto. Uma pequena mancha de luz azul e
outra de luz vermelha estão posicionadas acima de sua cabeça. Ele olha diretamente para fora
do quadro pela lateral esquerda. Após correção de foco para o segundo plano do quadro, a
mancha de luz azul revela os olhos da cineasta Trinh T. Minh-ha e a mancha vermelha revela
os olhos da tradutora.

Fig. 92 a 95 – Frames de Shoot for the Contents


175

Essa entrevista com o cineasta Wu Tiang Ming é bastante estetizada, com


cuidadosos detalhes que marcam a composição da imagem. Sua estética elaborada é resultado
de uma utilização magistralmente competente das cores para obter resultados expressivos em
alusão à China. Conforme os trechos da locução do filme nos avisam, as cores vermelha
amarela e azul são associadas ao país por diferentes motivos. O vermelho, cor predominante
na bandeira do país, aparece por conta da ideia ocidental de ameaça vermelha do comunismo.
O amarelo faz referência ao fenótipo das principais etnias chinesas, além de fazer referência a
uma ameaça amarela, tal como vista pelo Ocidente. O azul faz referência aos uniformes dos
trabalhadores durante o período da revolução cultural e das transformações aceleradas pelas
quais o país passou em seu processo de modernização recente.

Nunca é demais ressaltar que a entrevista é um recurso típico do documentário


moderno, facilitada pelas conquistas técnicas surgidas desde o final da década de 1950. Como
estratégia de abordagem dos objetos do filme, a noção mais trivial, vulgarizada pelo
jornalismo televisivo, é de que a entrevista é o meio mais fácil e direto de ter acesso à
informação. As opções de Minh-ha demonstram que o acesso direto não está entre suas
preocupações, pois a obstrução dos rostos de quem fala, a composição visual aproveitando as
sombras para encobrir o depoente e a fragmentação do quadro em imagens recortadas que
revelam outras pessoas em cena além daquela que dá o depoimento, mostram que mesmo
adotando a entrevista como estratégia, a cineasta procura conservar um meio indireto de
acesso a esse personagem. A entrevista em chinês não é legendada e nem dublada, mas os não
falantes do mandarim – a maioria do público do filme certamente – somente tem acesso ao
que fala o cineasta Wu Tiang Ming pela mediação da tradutora. Opções deliberadas da
cineasta para forjar um discurso construído com estratégias indiretas, evitando a busca pelo
sentido totalizante.

O segundo entrevistado do filme é Clairmonte Moore, um negro norte-americano


que fala sobre a situação política da China contemporânea. O filme não apresenta credenciais
para o entrevistado, não ficando claro se ele é professor, ativista ou especialista nas questões
que envolvem o tema, por exemplo. Pelo teor do seu depoimento ficamos cientes de que é
uma pessoa politicamente informada e consciente. Sua presença no filme, na posição de um
entrevistado sobre a China, desafia as expectativas geradas por essa posição de entrevistado:
ou seja, em uma produção convencional seria de se esperar que algum chinês ou um
especialista na China fosse convocado a dar seu depoimento, estratégia que seria a busca por
um acesso mais direto ao assunto, digamos. O fato de Moore ser negro o afasta da posição de
176

alguém que vem da cultura em questão e o andamaneto de seu depoimento nos permite ver
que sua fala não é a de um especialista, mas de um cidadão bem informado historicamente,
politicamente engajado e que sua posição é a de um observador interessado. Ou seja, uma
posição indiretamente associada ao assunto. Outro aspecto relevante a considerar é o
desenvolvimento reflexivo dos seus argumentos, que passam da situação política da China
contemporânea, com referências aos eventos do massacre da Praça da Paz Celestial e aos
erros e acertos do regime comunista, para considerações acerca das relações da China com
países africanos após o término da União Soviética, o papel da mídia norte-americana e seu
próprio papel como entrevistado no filme.

Sua primeira aparição no filme é marcada por algumas evidências sobre essa sua
posição de cidadão bem informado politicamente e sua herança ou interesse pelas raízes
africanas. Enquanto ele já está dando o seu depoimento, em uma panorâmica que sai de uma
estante de livros, preenchida com obras sobre marxismo, política e arte, a câmera vai
descendo, passa por uma máscara africana e chega no entrevistado.

Fig. 96 a 99 – Frames de Shoot for the Contents


177

4.5.6 Intervenções gráficas – caligrafia e dragões

Há muitas imagens da caligrafia chinesa em Shoot for the Contents. Muitas dessas
imagens foram filmadas na China pela própria diretora. Temos imagens de painéis e de
ateliês. Nesses casos, as frases nunca são traduzidas. Vemos a caligrafia como uma espécie de
decoração, nos moldes da experiência ocidental com esses objetos e artefatos orientais que
são ilustrados com a caligrafia ideográfica ou pictográfica oriental. Ou seja, podemos admirar
essa caligrafia como uma espécie de decoração, uma vez que não podemos compreender o
que significam.

Entretanto, em diversas passagens do filme assistimos a um artista desenhando


dragões e escrevendo na caligrafia chinesa utilizando pincéis e tinta sobre papel branco. Há
domínio técnico para desenvolver os desenhos em traços únicos e certeiros, ao mesmo tempo
em que há uma artisticidade clássica. O mesmo acontece com a escrita. Há desenvoltura,
resultado de um conhecimento tradicional e há o resultado com sua configuração também
clássica, remetendo a certas imagens relativas ao oriente com as quais o ocidente acostumou-
se. Nessas passagens, cujas escritas e desenhos são realizados para a filmagem, a caligrafia é
traduzida, especialmente para se estabelecer um jogo de palavras, remetendo ao póprio nome
do filme, que, como vimos, deriva de um jogo milenar de adivinhação. Com o desenrolar da
narrativa, os planos que mostram esse artista vão se abrindo e saimos da tela e seus desenhos
para conhecer seus instrumentos de pintura e relances de seu local de trabalho, tudo
aparentemente típico, com grandes pincéis e recipientes de louça chineses e decoração
oriental no ambiente, com móveis de madeira entalhados. Apenas ao final do filme, em uma
pequena fala respondendo a uma pergunta da cineasta, descobriremos que este senhor que
esteve desenhando e escrevendo estas passagens em seu ateliê está nos Estados Unidos e não
na China, como tudo na imagem poderia levar a crer.
178

Fig. 100 a 107 – frames de Shoot for the contents

O dragão é um elemento recorrente em diversos trechos do filme. Está presente na


locução das mulheres chinesas e nas diversas citações que se faz de passagens ligadas ao
confucionismo e ao maoísmo. Diversos dragões são desenhados para o filme, todos parecidos
e todos diferentes entre si. A cada dragão uma nova representação de um símbolo poderoso e
ancestral na cultura chinesa, como a exemplificar que existem muitas versões da China, a
depender do olhar de cada um. Uma realidade cultural complexa que não cabe em uma
representação única e inequívoca.
179

Fig. 108 a 111 – frames de Shoot for the contents

Os elementos caligráficos feitos nesse ateliê surgem em diversas passagens e


ilustram trechos da locução ou comentam passagens das citações, estabelecendo paralelos
entre os ideários do confucionismo e do maoísmo, por exemplo. Essas passagens são
traduzidas para o inglês na mesma folha em que foram desenhadas. Servem para
complexificar o discurso do filme e não para definir e encerrar o significado dessas escritas.
Em certas passagens a comparação se dá entre a escrita ocidental e a oriental, estabelecendo
jogos de palavras, como o jogo entre o right – left / right – wrong; em outras trazem ditados
ou slogans famosos, como o do florescimento das cem flores, atribuído a Mao.
180

Fig. 112 a 119 – Frames de Shoot for the Contents

Nessa configuração de jogo entre o Oriente e o Ocidente, com o jogo de palavras


e a comparação entre as escritas, com a oscilação entre aquilo que foi filmado na China e
aquilo que é feito para ser filmado em um ateliê nos Estados Unidos, o filme vai revelando
essa via indireta de acessar a China, uma via indeterminada, que não espera encontrar uma
imagem única ou definitiva, mas que resulta de uma experiência vivida na China e uma
experiência com a ideia e a imagem da China que o Ocidente carrega.

Ao final, quando as duas intérpretes conversam espontaneamente e descobrimos


quais são as suas posições relativas à China (Ying - emigrada e Dewi - nascida nas EUA),
181

Dewi pergunta: “Qual seu sentimento sobre a China agora? Após uma resposta de Ying, que
toca no ponto da repressão na Praça da Paz Celestial, Dewi pontua: “Não temos noção de toda
a história da China”. Ying: “Bem, ela é um dragão: todas as mudanças incríveis, e algumas
delas miraculosas – muito muito poderosas.

Em Shoot for the contents, Trinh T. Minh-ha lança mão de uma estética da
parcialidade para elaborar um filme sobre a China contemporânea, promovendo articulações
entre diferentes estratégias de filmagem e de uso de recursos pictóricos e sonoros. O filme
passa das imagens filmadas em película para as imagens filmadas em vídeo, das filmagens em
locação na China para as filmagens em estúdio nos Estados Unidos, das entrevistas em inglês
e chinês para a locução de diferentes mulheres de origem chinesa falando em inglês,
promovendo conexões aparentemente aleatórias que sugerem relações e significações.
Articulam-se não apenas espaços e tempos, mas texturas, cores, movimentos, sonoridades.
Desse modo, a cineasta nos oferece, por meio do cinema, a representação de um mundo a
perceber, que nos chega através da operação de gestos ensaísticos originais e potentes.
182

CAPÍTULO 5

A ARTE DE ENQUADRAR O TEMPO

“A conquista da temporalidade da modernidade, tal como


exemplificada pelo desenvolvimento do cinema, foi a de fundir
racionalidade e contingência, determinação e acaso. Alinhada à
lógica das estatísticas, o cinema funcionou para confirmar a
legibilidade do contingente. A diferença decisiva entre cinema e
fotografia era sua habilidade em inscrever duração, processo
temporal.”
Mary Anne Doane, 2002, p. 208

A proposta deste capítulo é apontar algumas questões associadas à experiência do


tempo em dois dos filmes de Trinh T. Minh-ha. Na primeira parte do capítulo nos
dedicaremos a uma análise do filme The Fourth Dimension (2001) e na segunda parte
apresentaremos uma análise de Forgetting Vietnam (2016), último filme lançado pela
cineasta. No primeiro caso nos dedicaremos a investigar como Minh-ha se lança a uma
jornada individual que resulta em um diário fílmico, onde questões advindas do
tensionamento entre tradição e modernidade surgem por meio de análises de rituais e práticas
cotidianas que oscilam entre o espontâneo e a encenação, evidenciadas no filme por
estratégias de filmagem em primeira pessoa que colocam a cineasta em relação com o tempo
histórico do Japão por ela experimentado. No segundo caso, encontramos um filme que se
configura como uma espécie de ensaio sobre a experiência subjetiva a um só tempo
memorialístico e especulativo, lançando-se a cotejar questões associadas às noções de
memória e esquecimento, presente e passado, experiência pessoal e experiência coletiva. Na
análise deste filme em particular levantamos questões sobre como a experiência de Trinh T.
Minh-ha com instalações desenvolvidas para espaços destinados ao circuito de artes visuais,
como galerias e museus, oferece subsídios para a sua produção filmica mais recente.

Partiremos da proposta de Vivian Sobchack (1992), que buscou elaborar um


método de análise fílmica, com especial atenção ao cinema documentário (SOBCHACK,
183

1999), inspirado na fenomenologia existencial do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty.


Para a autora, tal esforço compreende um trabalho de “descrever e explicar a origem e lócus
da significação e do significado cinematográficos na experiência da visão como uma atividade
existencial corporificada e significativa.” (1992, p. xvii). Sobchack considera que

Mais do que qualquer outro meio de comunicação humana, o cinema se faz


sensualmente e se manifesta sensivelmente como expressão da experiência
pela experiência. Um filme é um ato de ver que se faz visto, um ato de ouvir
que se faz ouvido, um ato de movimento físico e reflexivo que se faz sentido
e entendido reflexivamente. (SOBCHACK, 1992, p.3-4).

O trabalho de Sobchack em lapidar uma metodologia de análise fílmica assentada na


fenomenologia é reconhecido como um dos marcos na busca por trazer tal doutrina filosófica
para fundamentar estudos na área da teoria do cinema, contribuindo para oferecer novas
possibilidades epistemológicas para esse campo de estudos. Malin Wahlberg, que em seu
livro Documentary time: film and phenomenology (2008) realizou um trabalho de revisão das
principais propostas teóricas que buscavam tal intento de aproximação, considera que

Sobchack oferece uma teoria modificada que se opõe à doxa metafísica da


fenomenologia clássica, enquanto reconsidera a percepção como visão
corporificada. Além disso, seu trabalho é uma importante tentativa de
apresentar a fenomenologia existencial como uma alternativa para o modelo
psicanalítico de espectatorialidade e identificação cinemática. (2008, p.15).

Seguindo Sobchack, uma vez que a experiência cinematográfica é corporificada e


inserida no mundo, devemos pensar tal fenômeno através de dois movimentos
complementares: primeiro, como uma experiência de mediação entre consciência e fenômeno.
Poderíamos dizer, entre sujeito e objeto. Uma experiência de percepção por parte de um
sujeito consciente que sente e experimenta o mundo e cuja manifestação expressiva resulta em
matéria fílmica – imagens e sons articulados entre si - que traz esse mundo à existência.
Segundo, como uma experiência mediada de recepção, da experiência de perceber o mundo
por meio das imagens que dele nos são apresentadas. As imagens visíveis de um mundo tanto
quanto a visão elaborada desse mundo. Em termos fenomenológicos esse duplo movimento
184

apresenta os conceitos de noema – os fenômenos da nossa experiência - e noesis - os modos


como percebemos e vivenciamos o mundo.

A experiência fílmica não apenas representa36 e reflete sobre a experiência


perceptiva direta primeira do cineasta pelos recursos dos modos e estruturas
da experiência perceptiva direta e reflexiva, mas também apresenta a
experiência direta e reflexiva de uma existência expressiva e perceptiva
como filme. Na sua presença e atividade de percepção e expressão, o filme
transcende o cineasta para constituir e localizar seu próprio endereçamento,
sua própria experiência perceptiva e expressiva de ser e tornar-se. Do mesmo
modo, a experiência fílmica inclui o espectador expressivo e perceptivo que
deve interpretar e significar o filme como experiência, fazendo isso através
das mesmas estruturas e relações de percepção e expressão que informam o
endereçamento de representação indireta do cineasta e o endereçamento de
apresentação direta do filme. Como um sistema comunicativo, então, o que é
chamado de “experiência fílmica” unicamente abre e expõe o espaço
habitado da experiência direta como uma condição de corporificação
singular e a torna acessível e visível para além da consciência individual que
a vive. Sendo assim, experiência direta e presença existencial no cinema
pertencem ambas ao filme e ao espectador. (SOBCHACK, 1992, p. 9).

Para uma utilização proveitosa da fenomenologia como aporte teórico nos estudos
de cinema, que implica pensar como tais princípios filosóficos podem contribuir para
aprimorar nosso entendimento do filme escolhido para ser objeto de escrutínio, precisamos ir
além das relações apontadas acima e que definem a constituição da experiência fílmica
segundo Sobchak. É necessário um embate direto com o filme, com sua expressividade e
materialidade, a fim de evitar a armadilha da mera abstração teórica que deixa o objeto
fílmico ausente da elaboração conceitual.

A correlação entre o mundo e o ser - entre o corpo-vivido e o mundo-vivido nos


termos de Merleau-Ponty - é essencial na reflexão da fenomenologia existencial. Para o
filósofo, o ser inserido no mundo não é apenas um objeto, não é apenas corpo e matéria, mas
sim um sujeito, que é dotado de subjetividade, que em seu engajamento com esse mundo
tanto agencia como é agenciado.

36
Todos os destaques em itálico presentes nesta citação são do texto original
185

Buscar a essência da percepção é declarar que a percepção é não presumida


verdadeira, mas definida por nós como acesso à verdade. Se agora eu
quisesse, com o idealismo, fundar essa evidência de fato, essa crença
irresistível, em uma evidência absoluta, quer dizer, na absoluta clareza para
mim de meus pensamentos, se eu quisesse reencontrar em mim um
pensamento naturante que formasse a armação do mundo ou o iluminasse do
começo ao fim, eu seria mais uma vez infiel à minha experiência do mundo e
procuraria aquilo que a torna possível em lugar de buscar aquilo que ela é. A
evidência da percepção não é o pensamento adequado ou a evidência
apodítica. O mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu
estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o
possuo, ele é inesgotável. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.14)

Precisamos considerar que além do embate do sujeito com o mundo é importante


ressaltar que no mundo ocorrem encontros entre sujeitos, configurando experiências de trocas,
de onde advém as significações resultantes das experiências no mundo. Para Merlau-Ponty

A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o


extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da
racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional às experiências
nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se
confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não
deve ser posto à parte, transformado em Espírito absoluto ou em mundo no
sentido realista. O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido
que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de
minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas
outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade
que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em
minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (1999,
p.18)

5.1 A experiência do tempo e da temporalidade em The Fourth Dimension

Acreditamos que The fourth dimension é um filme exemplar para desenvolver


uma análise aprofundada de como o cinema pode dar visibilidade à modalidade subjetiva
como conceituada pela fenomenologia existencialista, evidenciando por meio de gestos a
percepção desse sujeito inserido no mundo. Da mesma forma o faz com a modalidade
objetiva, que apresenta esses gestos nos modos expressivos do cinema, para constituir a
imagem de uma experiência de ser e estar no mundo.

Apesar da proeminência das referências a Merleu-Ponty nas propostas de


aproximação entre cinema e fenomenologia nas quais estamos nos baseando nesta pesquisa,
186

para Jenny Chamarette, no livro Time and Matter: temporality, embodied subjectivity and film
experience. Rethinking subjectivity beyond French cinema (2012) - trabalho em que se ocupa
de pensar propostas de análise fílmica sustentadas na fenomenologia - não se trata de escolher
abordagens de linhagens determinadas da corrente fenomenológica da filosofia para tal
empreendimento, atendo-se rigidamente a conceitos e categorias de filósofos específicos, mas
sim de se desenvolver uma abordagem fenomenológica. Para a autora, “esta abordagem é tão
dependente do momento contextual, histórico, plástico, textual, político, material, estético,
relacional e corporificado do encontro fílmico único, como é das numerosas vertentes teóricas
que informam, e coinformam, o momento.” (2012, p.12) Ou seja, esses desdobramentos entre
o concreto e o abstrato evidenciam um método de análise fílmica que emana da matéria
fílmica para o filosófico.

A relação da “atitude cotidiana” com as ontologias abstratas do “pensar o


mundo” é análoga às relações entre fenomenologia e cinema; entre o status
da fenomenologia, como um conjunto estabelecido de discursos filosóficos
que nos permitem pensar o cinema no abstrato, e como uma prática de
engajamento com o fenômeno do cinema, informado por outras
metodologias disciplinares, que atendem ao modo através do qual esses
fenômenos desvelam para além do estritamente cinemático. Fenomenologias
do cinema informam relatos fenomenológicos do cinema, que são
coinformados pelos encontros com o fenômeno. (CHAMARETTE, 2012, p.
3).

Em seu trabalho de revisar e atualizar a relação da fenomenologia com o cinema,


Chamarette se volta a Sobchack, apontando que

O texto intensamente fenomenológico de Sobchack coloca em primeiro


plano o caso da temporalidade da experiência fílmica e uma descrição
“fenomenológica” densa dessa experiência – seus contextos cultural,
tecnológico e histórico, como temas alternativos a outros estritamente
humanos, auto-contidos inseridos nos limites do corpo físico de alguém.
Para ela, a experiência fílmica intersubjetiva e não individual é o assunto
cinemático. (CHAMARETTE, 2012, p.31)
187

Nossa proposta aqui é a de buscar uma aproximação íntima e detida com o filme
The fourth dimension, com sua materialidade, com as estratégias fílmicas adotadas, com o
contexto da produção, a fim de realizar uma “descrição fenomenológica densa” dessa
experiência fílmica. Em particular, nos interessa refletir sobre a expressão do tempo e da
temporalidade no filme. Sobre como ele dá dimensão expressiva a diferentes temporalidades
imbricadas na experiência da cineasta com o Japão contemporâneo, oscilando de modo tanto
sutil quanto complexo entre uma dimensão rural e contemplativa e uma modernidade urbana e
pulsante. Nesse contexto a diretora se situa como sujeito da experiência e do discurso,
evidenciando um modo particular de sentir e de estar no mundo, apresentado e modulado
pelos meios do cinema em uma reflexão instigante sobre a experiência do tempo e a potência
da imagem. Sobre o cinema e o engajamento do sujeito com o mundo.

5.2 A experiência do deslocamento e o deslocamento como experiência

Um longo plano-sequência, inicialmente com a imagem escurecida e com a


visibilidade comprometida pela neblina. Alguns pontos luminosos passam repetidas vezes
pelo quadro, mas não é possível identificar o que são exatamente. Aos poucos fica claro que
são postes de iluminação pública. Notamos a sinalização horizontal e a vertical e percebemos
que vemos uma estrada. Estamos acompanhando um travelling filmado da posição do banco
do passageiro de um carro que trafega aparentemente em horário de amanhecer, ainda com
pouca iluminação natural. Sobre esta imagem os créditos iniciais: The fourth dimension by
Trinh T. Minh-ha.

Sem cortar o plano-sequência do movimento do carro, a montagem passa a fazer


uso de recursos eletrônicos para modificar esse plano que transcorre, diminuindo-o de
tamanho dentro do quadro maior, cujos espaços remanescentes são preenchidos com tela
preta. A imagem menor, com o plano-sequência do movimento pela estrada, passa a se
movimentar pela tela, vertical e horizontalmente até assumir novamente a tela como um todo.
A imagem então sofre reenquadramentos, passando por modificações horizontais e verticais,
que vão se alternando em pleno movimento. Há fluxos ininterruptos de movimento no quadro
– o da imagem do travelling, captada pela câmera e o das mutações do quadro, obtidas na
montagem.
188

Na banda sonora, além do som direto registrado pela câmera – bastante sutil e
discreto – temos uma sonoridade instrumental que se sobrepõe. Ouvimos sons de
instrumentos de cordas sendo experimentados de maneira atípica. Eles são usados quase que
de maneira tátil e percussiva, e vão emitindo sons não-convencionais de suas cordas e
estrutura acústica. A intensidade dos sons varia, indo da calmaria para a explosão. Não são
frases melódicas, mas ritmos e ruídos extraídos aos moldes da escola da música concreta. Em
voz over ouvimos uma voz feminina gritar – Jikandes. Na tela um letreiro: It´s time.

A imagem do plano-sequência do ponto de vista do passageiro do carro toma


novamente a tela toda interrompendo as mutações da montagem eletrônica. O longo travelling
pela estrada continua enquanto assistimos a imagens típicas de um percurso dessa natureza:
túneis, outros carros, pessoas andando no acostamento. Notamos que estamos no Oriente pois
as placas apresentam ideogramas em letreiros luminosos vermelhos. Em voz over a diretora
pergunta: “Diga-me, é o nevoeiro ou sou eu?”

Na tela um texto em inglês apresenta um Haikai de Matsuo Basho, poeta japonês


do século XVII: “O coração do viajante. Nunca se fixou por muito tempo em um mesmo
lugar. Como o fogo portátil37.”

Esta pequena sequência inicial, aparentemente simples, é importante pois sintetiza


e apresenta os fundamentos essenciais deste trabalho. Primeiro, a indicação de que
acompanharemos uma viagem da cineasta, algo assinalado pelo deslocamento através da
estrada e pelo Haikai inscrito na tela. Este foco narrativo será fundamental para Trinh
T.Minh-ha desenvolver sua abordagem em relação ao Japão e moldar a experiência deste seu
estar no mundo que envolve o deslocamento e a transitoriedade. Em segundo lugar, temos o
estatuto das imagens – do Japão em particular - e a representação da experiência subjetiva,
assinalados na imagem encoberta pela neblina, na longa duração do plano-sequência e
indicado na pergunta da diretora, que coloca uma dúvida sobre as imagens. Afinal, a imagem
da realidade está comprometida em função da neblina ou em função da seleção da cineasta?
Poderíamos nos perguntar, existiria essa tal coisa – imagem da realidade – ou tudo dependeria
de uma interpretação, no limite, individual? O que Trinh T.Minh-ha nos entrega com seu
filme é a exposição de suas impressões acerca do Japão contemporâneo, que existe entre a
tradição e a modernidade, que conjuga a encenação e a reencenação de seus rituais, ancestrais

37
No original: Traveler’s heart. Never settled long in one place. Like a portable fire. Basho.
189

e modernos, para forjar uma cultura onde a imbricação de temporalidades distintas marca a
sua experiência cultural contemporânea.

O filme é atravessado pela experiência do deslocamento. Após a entrada na cidade


conduzida pelo carro, a cineasta percorre espaços urbanos de diferentes modos, o que marca
uma experiência diversificada de observação e de vivência, assim como uma experiência
diversificada do tempo e do olhar. Aos moldes de um flâneur, a cineasta percorre o espaço
público a pé e depara-se com diversas manifestações das rotinas cotidianas típicas da vida
moderna - como o exercício na academia, observado da rua através da janela, ou mães
alimentando seus filhos fora de casa, escolhendo a comida no tradicional bentô (tipo de
marmita japonesa), enquanto acompanham um espetáculo com touros em um estádio. Em
certa passagem na locução em voz over a cineasta profere: Por que viajar? Se não for para
entrar em contato com o ordinário de modos não –ordinários?

O olhar detido nos tempos mortos ou nas ações intermediárias ou aparentemente


desinteressantes do cotidiano revelam uma postura interessada e curiosa da cineasta, que
passeia pelo Japão urbano atenta aos sinais de sua modernidade, enquanto também reflete
sobre a presença da sua tradição. Um corpo que se movimenta pela cidade, obsevando a vida
e revelando sinais de uma cultura em movimento. O encontro com a alteridade por meio de
uma experiência fílmica reveladora de complexas sutilezas subsumidas na velocidade da vida
cotidiana.

Fig 120 e 121 – Frames de The Fourth Dimension


190

Para Trinh T.Minh-ha não basta ver a presença da tradição ou os sinais da


modernidade evidente no Japão por onde circula, mas sim perscrutar um intervalo possível
entre essas polaridades, um intervalo que permite o deslocamento das simbologias e
significações que impregnam nossa consciência a priori. A cineasta percebe temporalidades
distintas que demarcam um processo sociocultural, apresentadas no filme por meio de
flagrantes da vida cotidiana, que servem de substrato para a reflexão que elabora acerca da
experiência do tempo neste lugar em particular. As imagens acima ilustram essas diferentes
experiências. Por um lado, os letreiros em neon que preenchem a paisagem urbana, refletidas
nas águas do rio, que representam a intensidade da vida na cidade por meio da velocidade
incessante das luzes. Por outro, um jovem que concentra-se em sua leitura, sentado à beira do
rio, diante de um monumento alusivo à tradição milenar japonesa. No intervalo entre a
velocidade e a contemplação está situada a cineasta, que vive uma experiência em relação a
esse processo cultural dinâmico, apresentada pelo filme.

Na articulação das imagens com os sons e, muito importante, com o texto


reflexivo da cineasta lido em voz over pela própria, o filme elabora um potente ensaio fílmico
sobre a experiência do deslocamento, tomando o deslocamento como pedra de toque na sua
elaboração reflexiva sobre a experiência vivida nesse processo e apresentada pela elaboração
de sua subjetividade no filme. Um deslocamento que define a experiência de ir além das
aparências. Uma etnografia densa e discreta de uma cultura complexa e milenar
operacionalizada pelos meios do cinema.

5.3 Trens e tambores – percepção e consciência

Em The fourth dimension, é marcante a presença do trem como modulador da


experiência do deslocamento e do tempo no Japão contemporâneo, demarcando o ritmo em
diversas etapas do filme. Há o tempo da viagem, marcado pela imobilidade dos corpos em
relação à velocidade constante da máquina, em movimento inequívoco, programado, em
direção certeira. Tal situação cotidiana marca a vivência de uma recorrência, cuja dimensão
de experiência ordinária pode ser percebida nas imagens das garotas que dormem no vagão
durante a viagem. Tempo passageiro e movimento constante. Por outro lado, há o tempo do
olhar da cineasta viajante, marcado pela contemplação das paisagens através das janelas dos
trens. O tempo de uma subjetividade marcada pelo deslocamento, físico e subjetivo, expressa
por imagens que buscam subverter o ordinário, por entre os recortes das janelas e portas, para
191

além das aparências. Diversas imagens destacam reflexos em vidros de janelas e superfícies,
criando imagens sobrepostas em camadas. Não sabemos se estamos observando o objeto
diretamente ou sua imagem. O extraordinário percebido no cotidiano.

Fig 122 a 125 – Frames de The Fourth Dimension

Tambores também são elementos recorrentes em The fourth dimension e, assim


como os trens, têm papel importante para demarcar o ritmo do filme. Diretamente ligados a
diversos rituais que são enfocados pelas lentes de Trinh T. Minh-ha, eles expressam passagens
entre tradição e modernidade que marcam o processo civilizatório da cultura milenar japonesa
e sua modernização acelerada em tempos relativamente recentes. Eles estão presentes nas
manifestações diversas e desfiles que são acompanhados pelas ruas, desde um quase-samba
batucado espontaneamente por um grupo de jovens que se diverte no espaço público,
expressando uma influência ocidental que marca a experiência cultural do Japão
contemporâneo, até em desfiles ensaiados que tomam as ruas da cidade para apresentar
espetáculos grandiosos de reencenação dos signos da tradição cultural oriental.
192

A música é outro elemento sonoro que joga um papel significativo no filme,


contribuindo para sobrepor camadas de tempos históricos e de temporalidades diversas à
experiência de deslocamento e vivência que o filme registra e elabora em suas formas
expressivas. Registradas em som direto durante desfiles e apresentações, a música dos
tambores convoca a dimensão da tradição para eventos contemporâneos celebratórios de
elementos associados à identidade nacional, onde a performance assume caráter ritualístico e
catártico. No espaço público, jovens ensaiam passos de Hip Hop, vestindo roupas tipicamente
ocidentais. Cenas dos intervalos entre a tradição e a modernidade.

Fig 126 e 127 – Frames de The Fourth Dimension

5.4 Rituais tecnológicos modulando a experiência

Assim como em seus filmes anteriores, em The fourth dimension, a cineasta


concentra praticamente todas as atividades da produção, afirmando sua dimensão autoral. Ela
dirige, fotografa, escreve, narra e monta. A novidade aqui é que este é o primeiro filme de
Trinh T. Minh-ha realizado inteiramente em equipamento digital. A utilização de tal aparato
não apenas definiu plenamente o modo de filmar, mas levou a cineasta a assumir
esteticamente as possibilidades expressivas desse tipo de equipamento, possibilitando um
arranjo narrativo pessoal bastante original. O resultado é uma fatura fílmica que atravessa e
reinventa diferentes tipos de filmes, como os travelogues e os road movies, oferecendo um
trabalho original para o campo do cinema de não-ficção, contribuindo para a renovação da
estilística cinematográfica.
193

As características tecnológicas da câmera, que permitem agilidade, mobilidade e


portabilidade, são utilizadas para potencializar o olhar da cineasta, que divaga a observar
situações e personagens em seu itinerário pelo país. Os movimentos de lente são praticamente
incessantes no filme. De forma recorrente, a cineasta utiliza-se do zoom-in e do zoom-out
como recurso narrativo e estratégia de abordagem do objeto. Tal dinâmica de movimento, que
está presente no filme de forma transversal, nos leva a pensar em uma estética do digital. Uma
estética pós-fotográfica, em que não estamos lidando mais com uma sucessão de imagens
individuais animadas pelo aparato cinematográfico, restituindo o movimento dos corpos e das
coisas no mundo, mas sim um tipo de imagem em que tudo é puro movimento, fluxo em que
não existe unidade estática. Um cinema do tempo, e não do movimento.

A utilização da câmera na mão confere ao filme uma dinâmica visual muito


interessante, alinhada à experiência da viagem solitária e próxima ao aspecto de uma escrita
pessoal. Uma escrita marcada por fragmentos visuais, como se fossem pequenas anotações
recolhidas durante a viagem, as quais são potencializadas pela montagem e pela articulação
com a locução e com a trilha sonora, que se somam ao som direto registrado pela câmera. Um
cinema que trabalha com a concepção do tempo da reflexão, do pensamento.

5.5 Presença e subjetividade

A cineasta que empunha a câmera é também a que escreve o texto da locução, que
fala na voz over e que opera a montagem, exercendo um cinema de escrita pessoal, em que
estão interrelacionadas a experiência da viagem e a reflexão teórica sobre a viagem. Dito de
outro modo, o filme apresenta a experiência que evidencia um engajamento no mundo
centrado na presença, na corporeidade, uma experiência sensorial que usa as qualidades
legíveis do pensamento cognitivo para dar sentido ao mundo com o qual o corpo se põe em
contato por meio do tempo. “Como corpos humanos, estamos sujeitos ao tempo; a
possibilidade de pensamento é governada por uma atenção dirigida e uma presença
relacionada ao tempo. Presença em temporalidades – um evento, um momento, uma duração
– são pré-condições para sensação, experiência, e conhecimento” (CHAMARETTE, 2012, p.
22).

Trinh T. Minha-ha não aparece visualmente no filme, exceto por um breve


momento em que filma a chegada de um trem à estação, aparecendo na imagem como um
194

reflexo pouco evidente. Entretanto, podemos dizer que as imagens revelam sua presença a
partir de alguns gestos, primeiro dela própria – como o movimento de zoom-in com a câmera
que fecha na imagem sobre o corpo de uma garota que dorme no metrô. É como se o olhar da
cineasta se potencializasse com o recurso tecnológico e pudesse exercer uma aproximação
quase física com o objeto de interesse para onde dirige seu olhar. Ou então com gestos de
outros corpos com os quais ela se relaciona e que evidenciam sua presença atrás da câmera,
como no caso dos jovens monges budistas que caminham em direção à saída do templo, até
que o último monge da fila vira-se para olhar diretamente para a cineasta, revelando
curiosidade e uma troca intercultural centrada no olhar. Ser objeto do olhar, assim como
exercer plenamente esse olhar, que se constrói na cena e para o filme.

Fig 128 e 129 – Frames de The Fourth Dimension

The fourth dimension pode ser visto como a apresentação das anotações – visuais
e escritas - de uma viagem, que resultam na elaboração de um caderno de viagem ou um
caderno de campo fílmico, a um só tempo parte do processo e seu produto. Tal caderno se
apropria do método etnográfico de investigação para construir uma etnografia experimental
no cinema. Nesse sentido, a produção de Trinh T. Minh-ha expande as possibilidades da
etnografia para além dos seus domínios tradicionais, apresentando o caderno de campo como
possibilidade de elaboração e de exposição de outras formas de conhecimento que assumam
um sentido rigoroso de parcialidade e poética da narrativa pessoal. Um caderno de campo
fílmico que apresenta uma visão singular sobre a arte de enquadrar o tempo.
195

5.6 Relembrar para esquecer - Forgetting Vietnam

Forgetting Vietnam é o mais recente filme dirigido por Trinh T. Minh-ha. Foi
lançado no final de 2015 e realizado por ocasião dos quarenta anos do fim da gerra que
assolou o país de 1955 a 1975, funcionando como forma de homenagem aos sobreviventes. O
filme apresenta-se como uma meditação sobre o país, sobre a identidade nacional, sobre os
processos de ocupação e exploração pelos quais passou, sobre a guerra e suas consequências
para a nação.

O filme utiliza imagens do Vietnã registradas pela cineasta em dois períodos


distintos. As primeiras filmadas em vídeo Hi-8 em 1995 e outras filmadas em HDV em 2012.
As imagens são todas acompanhadas de som direto. Não há qualquer locução no filme.
Apenas em poucas passagens ouvimos resíduos de conversas e depoimentos de anônimos,
pronunciados em vietnamita ou outro dialeto local, que são transcritos em inglês na tela. O
discurso que usualmente poderia ser lido em uma locução em voz over, neste filme é
apresentado pelo recurso dos letreiros, que utiliza provérbios populares vietnamitas,
transcrições de pequenas conversas entre populares anônimos, citações de autores diversos –
ocidentais ou orientais – trechos de mitos ancestrais e textos assertivos, questionadores e
aforísticos da própria cineasta. Os letreiros são usados como um recurso visual e não apenas
informativo. Frequentemente as palavras se deslocam pela tela acompanhando o sentido do
movimento de seu significado, por exemplo, a palavra “abandonar” se desloca pela tela na
horizontal, da esquerda para a direita, e retorna a se deslocar da direita para a esquerda. Os
letreiros que descrevem o mito do dragão na origem do país, quando o encontro entre dois
destes, um descendente e um ascendente, teria dado origem à geografia da costa e das
montanhas do país, também faz o movimento correspondente a cada um. O nome Ha Long,
correspondente ao dragão descendente, move-se descendo a tela, de cima para baixo. O nome
Thang Long, do dragão ascendente, move-se subindo a tela, de baixo para cima. Os letreiros
são usados de modo bastante ativo, com diferentes posições, transições, cores e movimentos,
nunca repetindo um uso automático e meramente funcional. Os letreiros tem função estética e
retórica.

Neste caso a cineasta lança mão de estratégias visuais que nos permitem retomar
questões associadas a noção de uma estética do digital, a exemplo do que vimos mais acima
no caso do filme The fourth dimension. Forgetting Vietnam é um filme cuja visualidade é
praticamente toda arranjada na montagem digital, onde esta tem o papel de não apenas
196

realizar operações típicas da montagem cinematográfica, como a justaposição das sequências,


mas a de experimentar possibilidades de composição com a sobreposição de camadas de
imagens e textos em uma articulação quase topográfica do quadro cinematográfico.
197

Fig 130 a 141 – Frames de Forgetting Vietnam

De certo modo a cineasta traz para este filme experiências de montagem que são
cada vez mais recorrentes em ambientes extra-cinematográficos, como os museus e galerias
de arte, onde a projeção das imagens em espaços de circulação e visitação coloca a questão da
espacialidade e a da recepção das imagens em nova ordem de relação. Trinh T. Minh-ha
desenvolveu instalações multimídia anteriormente38 e essa experiência de problematização
das imagens em relação com o espaço de algum modo reverbera neste filme, impulsionada
pelas facilidades e possibilidades do aparato digital de montagem. São questões que aqui nos
fazem pensar também na relação entre campos artísticos distintos. Mais precisamente,
relações entre os domínios do cinema e os domínios das artes visuais. Consideramos que este
filme da cineasta catalisa no cinema algumas experiências que ela conduziu em instalações
multimídia, promovendo no filme uma série de experiências de composição visual que se
inspiram por trabalhos artísticos que propõem outros experimentos sensoriais para o público
que não aqueles tradicionalmente encontrados na recepção tradicional do filme projetado na
tela de cinema em uma sala escura de projeção (ou mesmo na exibição em telas menores em
ambientes outros, como as telas de TV e aquelas utlizadas pelos projetores de vídeo/DVD).

38
Minh-ha produziu as seguintes instalações multimídia: Nothing But Ways (Yerba Buena Center for the Arts,
São Francisco, Estados Unidos, 1999), The Desert is Watching (Kyoto Art Biennale, Kyoto, Japão, 2003),
L’Autre marche (The Other Walk) (Musée du Quai Branly, Paris, França, 2006-09) e Old Land New Waters (3rd
Guangzhou Triennale 2008; Okinawa Prefectural Fine Arts Museum, Okinawa, Japão, 2007 & 2009).
198

Não nos deteremos em exposições específicas relacionadas às instalações de Trinh


T. Minh-ha, mesmo porque não teríamos competência para fazer isso aqui, uma vez que não
tivemos a oportunidade de acompanhar tais obras nos espaços para os quais foram iniciamente
planejadas, apesar de termos tido acesso aos vídeos retirados dessas instalações. Porém,
tiraremos algum proveito da análise que algumas fotografias dessas instalações podem
suscitar quando cotejadas com o caso específico do filme Forgetting Vietnam, assim como
usaremos as descrições das instalações que estão disponíveis no site de Trinh T. Minh-ha para
desenvolvermos nossos argumentos.

Inicialmente, vejamos fotografias da instalação Nothing but ways, de Trinh T.


Minh-ha e Lynn Marie Kirby, exibida no Yerba Buena Center for the Arts, em São Francisco,
em 1999.

Fig 142 a 145 – Fotografias da instalação Nothing but ways

Segundo o site de Trinh T. Minh-ha: “uma instalação multimídia em larga escala


feita em tributo ao amor à poesia, com foco no trabalho de doze poetisas. Um encontro da
poesia feita na tela cinemática, a instalação apresenta os componentes básicos de ambos os
meios para oferecer uma experiência espacial da tela/página. O evento é também uma
199

caminhada para a obra através de passagens de palavras e um jogo relativo às atividades de


refletir, projetar e vibrar que definem o processo criativo de escrita e leitura.39”

Um dos aspectos notáveis aqui, além da evidente presença de elementos que são
recorrentes em filmes de Trinh T. Minh-ha, como o protagonismo feminino, é a importância
da palavra. Se colocarmos as instalações em perspectiva com relação aos filmes, podemos
dizer de sua importância no conjunto da obra de Trinh T. Minh-ha, seja ela escrita ou falada.
Nossas análises fílmicas apresentadas até aqui já colocaram bastante ênfase em como essa
valorização da palavra está entre as estratégias centrais da expressão artística de Minh-ha. As
fotos da instalação permitem ver que a palavra, além da sua utilização poética, tem uma
apresentação visual importante e uma relação com o espaço decisiva para a proposta de corpo
que a obra propõe. Ou seja, a palavra como recurso e operador da poesia, apreendida e
experimentada no espaço, por uma relação não somente visual, mas de uma sensação
corpórea, quase tátil. Uma relação entre o corpo do público e o corpo da obra.

É verdade que o uso da palavra sobreposta às imagens em seus filmes antecede a


essa experiência com as instalações, uma vez que essa primeira instalação é de 1999 e o uso
intensivo de sobreposições de palavras sobre imagens já tinha acontecido no filme Surname
Viet Given Name Nam, de 1989. Esta parece ser mais uma amostra de como a produção de
Minh-ha se vale de fluxos de trabalho que atravessam não apenas áreas disciplinares, mas
também práticas artísticas, como apontamos mais no início de nossa pesquisa em relação aos
filmes iniciais da diretora. São estratégias recorrentes que marcam sua produção, passando do
cinema para as instalações e voltando ao cinema. Há certa recorrência no recurso, mas
também inovação, pois, como também já defendemos anteriormente, o estilo de Trinh T.
Minh-ha é marcado por aquilo que chamamos de poética da repetição, de um retorno que se
reinventa, se altera, mesmo que de modo ínfimo, evitando a reiteração mecânica e automática.

A seguir, vejamos algumas imagens da instalação The desert is watching,


participante da Kyoto Art Biennale, em 2003.

39
http://trinhminh-ha.com/nothing-but-ways/
200

Fig 146 e 147 – Esboço e fotografias da instalação The desert is watching

Fig 148 – Esboço da instalação The desert is watching


201

A descrição do site: “No deserto, tudo se move. Nada é sempre o mesmo. Assistir
a luz viajar pelo penhasco, ou testemunhar um lago mudando sua lozalização minuto a
minuto com o movimento do vento através da superfície infinita do sal, alguém tem que se
inserir em um lugar e se tornar um deserto. Po outro lado, no deserto, nada se move. A força
do céu domina. Alguém caminha em direção ao silêncio da morte e vê ondas de montanhas,
rochas e areia sem movimento. [...] A instalação é a primeira manifestação de um projeto
maior em andamento cuja realização se dará em diferentes formas em diferentes locações e
circunstâncias. Tal como configurada aqui, os espectadores não verão nenhuma foto ou
imagem de vídeo até que entrem no espaço. A estrutura de tecido serve como um dispositivo
de gradiente para desacelerar o acesso visual. É apenas quando o público alcança a segunda
metade da sala (ou antes se forem mais altos) e quando suas cabeças tocarem o tecido que
eles encontram, veem, e experimentam imagens do deserto. A intervenção do público – tanto
se emergem sobre o horizonte da estrutura de tecido ou se permanecem parcialmente presos
nela – determina o modo como enxergam. As sequências em vídeo, instáveis, mutantes,
compostas de longas e ininterruptas panorâmicas todas se movendo na mesma direção,
oferecem um panorama do deserto em suas aparições sazonais. As sequências são projetadas
em pares simultaneamente em ambos os lados da parede. As imagens de slide estáveis são
tambem projetadas em pares como duplos, sendo uma imagem original e outra o seu reflexo
invertido, próximas umas das outrs na parede mais distante da entrada. Elas são mostradas
em lentas dissoluções como imagens de miragem que jogam com a relação entre o corpo e a
paisagem.40”

Por mais precário que seja lançar mão da descrição acima e das fotos presentes
no site de Trinh T. Minh-ha para travar um contato com a instalação, acreditamos que isso nos
permite pelo menos ilustrar alguns elementos associados à sua produção artística que são
importantes para levarmos a cabo a análise do filme aqui proposta. Fica claro, pela descrição,
como a instalação propõe uma experiência em que a sensorialidade está associada a uma
presença física do público, sendo este convocado a uma relação com o espaço, permeado por
imagens que ali ocupam lugares criando uma espécie de topografia pelas imagens técnicas,
construindo um campo de visão amplo.

Essa relação entre o cinema e as artes visuais, ou mais precisamente os novos


arranjos do cinema e do audiovisual em espaços anteriormente dedicados a outras formas de

40
http://trinhminh-ha.squarespace.com/the-desert-is-watching/
202

manifestação artística, como é o caso dos museus ou das galerias de arte, tem suscitado
diversas questões e ocupado pesquisadores e teóricos. Entre algumas das questões centrais
nessa relação podemos destacar aquelas que se propõem a problematizar como as convenções
do cinema têm sido utilizadas por artistas que trabalham com o audiovisual e que produzem
especificamente para esse circuito de artes visuais. Segundo Philippe Dubois (2014, p.138)

Um dos princípios recorrentes nesse domínio é de fato a transposição das


formas temporais41 do cinema (especialmente toda dinâmica ligada à
montagem) para a disposição espacial na exposição. Assim, podemos
compreender a verdadeira fascinação dos artistas do pós-cinema pela figura
da multitela como o lugar mesmo da operação da transferência do tempo
para o espaço. A copresença, segundo as disposições específicas de várias
telas de projeção na galeria, pode ser pensada como uma espécie de
transposição direta no espaço, das figuras de montagem (temporal) do
cinema. A multitela é assim muito frequentemente tratada como uma forma
de montagem espacializada.

Longe de querermos nos aprofundar nesse debate, que evidentemente exigiria


outros esforços, outro quadro teórico, outras hipóteses, não cabendo aqui nesta pesquisa, esta
querela entre os dispositivos e formas audiovisuais - para usar um termo de Raymond Bellour,
tema ao qual dedicou um livro inteiro42, utilizando justamente este título ao qual fizemos
referência – pode trazer alguns pontos importantes que nos ajudarão em nossa análise do
filme Forgetting Vietnam. Voltemos, portanto, à citação de Dubois para dela recuperarmos a
ideia de que, quando utilizadas em espaços de galerias e museus como parte de uma
instalação, a articulação entre as imagens animadas assume um caráter de montagem
espacializada. Uma montagem entre imagens cuja fruição por parte do público precisa levar
em conta mais a questão de sua disposição no espaço, pois mesmo sua recepção depende da
posição desse receptor nesse local, podendo proporcionar diferentes experiências de acordo
com diferentes posições (ou mesmo da altura dessa pessoa, como destaca a descrição da
instalação The desert is watching que incluímos mais acima). Podemos dizer, então, que esta
instalação nos mostra como a questão do espaço por onde serão projetadas as imagens é
elemento definidor das estratégias discursivas em uma instalação que se vale de imagens em
movimento em um espaço não-convencional de recepção, levando o artista que lança mão

41
Os destaques em itálico desta citação são todos do original
42
La querelle des dispositifs: cinèma, installations – expositions (Paris: P.O.L., 2012)
203

dessas estratégias a considerar outras possibilidades de relação entre as imagens que não
apenas aquelas existentes nas condições propriamente de uma montagem cinematográfica,
onde o filme como produto acabado opera articulações de construção de tempo e espaço na
justaposição das imagens e sequências em uma relação temporal progressiva.

A instalação seguinte de Minh-ha, intitulada L´autre march, foi produzida a convite do


museu do Quai Branly, em Paris, como parte das obras presentes em sua inauguração, ficando
disponível de 2006 a 2009. Segundo o site de Trinh T. Minh-ha: “Imagens de culturas da
Ásia, África, Oceania e América são selecionadas e estruturadas ritmicamente de modo a
atuar na percepção do visitante e prepará-lo em sua jornada pelo museu por entre os
ambientes visuais e materiais das culturas do mundo. [...] A passagem do outro para si
mesmo, o caminho tomado entre sons, imagens e aforismos, ou entre o dito e o visto ao longo
da rampa é uma caminhada iniciática que atravessa diversas culturas da Ásia, África,
Oceania e América. A cada passo dado, relações entre passagem, passante e tempo passado
são mutuamente ativadas. Questões levantadas por meio da experiência sensual podem
incitar o visitante a refletir sobre suas atividades como espectador-pesquisador-visitante. [...]
A instalação se revela em 28 sequências visuais autônomas, com aforismos que se alternam
em doze diferentes linguagens aparecendo e desaparecendo de modo intermitente (via 19
projetores) nas laterais e no piso.43”

43
http://trinhminh-ha.com/lautre-marche-the-other-walk/
204

Fig 149 a 152 – Fotografias e esboço da instalação L´autre march

Fig 153 – Diagramas conceituais da instalação L´autre march


205

Fig 154 – Diagramas conceituais da instalação L´autre march

Esta instalação teve maior magnitude e permitiu que Trinh T. Minh-ha


aprofundasse a utilização de estratégias que já tinha experimentado em suas duas experiências
anteriores com instalações: o uso das palavras e a relação do espaço e da presença física do
espectador com as imagens projetadas. Ao que nos parece, nesta instalação a artista pôde
radicalizar suas estratégias de problematização acerca da descrição e da representação
cultural, utilizando os meios sensoriais das imagens animadas, das luzes das projeções, dos
sons e dos espaços para criar uma experiência ampla e profunda de relação com a alteridade.

E por último Old Land New Waters, a mais atual experiência de Trinh T. Minh-ha
com instalações, foi desenvolvida em 2007 para o museu de belas artes da prefeitura de
Okinawa, Japão, e depois participou em 2008 da 3ª trienal de artes de Guangzhou, na China.
Segundo o site: “Uma instalação em vídeo composta por duas sequências: Dât (terra), com
aproximadamente 7 minutos, e Nuoc (água) com aproximadamente 11 minutos – os dois
elementos referem-se a ‘país’ (dât nuoc) em vietnamita, e evocam os espíritos ancestrais dos
povos do céu e da terra em uma era de rápida globalização. As duas sequências devem ser
projetadas simultaneamente e de modo contínuo em duas grandes telas no mesmo espaço,
206

justapostas próximas uma a outra com um intervalo ao meio (que pode ser uma entrada, por
exemplo, e as duas sequências poderiam ser projetadas nos lados esquerdo e direito da
entrada)44.”

Fig 155 – Fotografia da instalação Old land and new waters

Utilizando duas projeções simultâneas com vídeos distintos, um dedicado às


águas e outro dedicado à terra, Minh-ha toca na questão do tempo e do espaço enquanto uma
construção da linguagem audiovisual, mas também na questão do tempo e do espaço enquanto
uma condição da recepção, uma vez que temos a simultaneidade da recepção de imagens e
sequências distintas, exibidas em telas diferentes, separadas uma da outra e projetadas em
looping. Para onde o espectador deve olhar? Ou para onde o espectador pode olhar? A relação
do tempo e do espaço na construção do objeto fílmico propriamente e a relação do tempo e do
espaço na conformação de um espectador.

Nesta instalação Trinh T. Minh-ha utilizou imagens realizadas no Vietnã que


depois fariam parte também de Forgettin Vietnam. Aliás, não apenas imagens, mas
praticamente a íntegra dos vídeos da instalação está contida no filme. Isso nos coloca diante
de uma questão interessante. Até aqui tivemos a chance de apontar questões relacionadas às
modificações nas estratégias de utilização das imagens em movimento quando da passagem
do espaço tradicional do cinema para os espaços dedicados às artes visuais. Seja no caso do

44
http://trinhminh-ha.com/old-land-new-waters/
207

reaproveitamento de imagens originais dos filmes em instalações, seja na produção de novas


imagens para serem exibidas originalmente nesses espaços. Mas e quando acontece o caminho
contrário? Ou seja, quando as imagens e operações de montagem vindas das experiências das
instalações e exposições voltam para o cinema em sua forma fílmica tradicional, destinada à
exibição em salas escuras, sendo um único foco de atenção numa relação temporal
determinada?

Para Dominique Paini, que tem se dedicado a pesquisar as relações entre cinema e
artes visuais, a relação entre esses campos ocorre em via de mão dupla. Temos um movimento
vindo do campo do cinema para as artes visuais, tanto no que diz respeito às práticas
operacionais quanto aos aspectos estéticos, como há um movimento contrário, que vem do
campo das artes visuais para o cinema, devolvendo questões também da

Essas experiências retroagiram sobre o cinema e fizeram com que os


cineastas redescobrissem alguns procedimentos esquecidos de escrita
cinematográfia. Por exemplo, antes de 1990, nenhum cineasta se arriscava a
usar câmera lenta no cinema. A intervenção sobre a própria imagem estava
absolutamente “proibida” desde os formalistas dos anos 1920. O cinema
estava submetido a sua dominante de ontologia realista e ao princípio
prioritário de reproduzir o real. Nos anos 1990, o cinema asiático chega com
força à Europa, enriquecido por essa extraordinária contribuição dos
trabalhos de artistas plásticos contemporâneos herdeiros, em certos casos, da
corrente Fluxus, que utilizava o vídeo sob a forma de projeção ou em
monitores. O mais “histórico” desses artistas é Nam June Paik, que fez com
que se reencontrasse a validade, a legitimidade estética da câmera lenta, da
dilatação, da decomposição, na desconstrução das imagens.

Há um retorno da solicitação da acuidade sensorial do espectador, que não


deixa de lembrar o que o cinema era em sua origem, antes de começar a
contar histórias. Os primeiros fimes, quase sem histórias, privilegiavam a
acuidade sensorial. Hoje, buscam-se a dilatação do tempo e a sensação
contra o sentido. Estranhamente, nos cineastas extremamente comerciais,
inclusive e principalmente no contexto hollywoodiano ou no de Hong Kong,
há uma procura deliberada da sensação contra o sentido.

Hoje, em termos puramente plásticos, o cinema recoloca a sensação no


comando. Também é uma busca de ruptura da distância entre a imagem e o
espectador, ao passo que o cinema clássico havia instaurado uma distância
bem temperada. Por fim, um fime projetado em loop também tem tendência
a se tornar quadro na mesma medida de sua infiitude. Nesse cinema que se
expõe, algo participa da natureza de um devir-pintura paradoxal, enquanto os
pintores freqüentemente recorreram ao cinema contra o academismo na
pintura, contra a própria pintura (Fernand Léger, Marcel Duchamp...).
(PAINI, Dominique, 2008, p.33-34)
208

5.7 Revisitar o passado, reencontrar a memória

Forgetting Vietnam é um filme de reencontro com a memória em dois


movimentos, a memória coletiva nacional e a memória da própria cineasta, que vive a
diáspora ocasionada pelo período da guerra. Duplo movimento de memória que se encaminha
para um terceiro como resultado do próprio filme, um movimento de esquecimento e de
descoberta.

Novamente, como em filmes anteriores da diretora, Forgetting Vietnam se


constrói a partir de duplas ou pares, para encontrar entre esses polos intervalos e novas
possibilidades de interpretação sobre manifestações culturais que são apresentados pelo filme.
Intervalos surgidos do movimento de mudança inerente a qualquer processo cultural que não
pode ser cristalizado em dicotomias polarizadas, mas que existe na dinâmica de
tensionamento entre as posições limiares. Primeiramente, o Vietnã é apresentado partindo de
duas qualidades geográficas essenciais, a água e a terra. Entre as duplas sobre as quais a
cineasta elabora seu discurso estão a relação da tradição com a modernidade, a espiritualidade
e a política e o passado e o presente do país.

O movimento de abandonar e retornar que move o filme inicia-se pela água, com
o trânsito entre as embarcações. Acompanhamos o novo circuito de turismo que invade o país
e também acompanhamos os modos tradicionais de vida que se constituem em moradias
flutuantes e nos deslocamentes incessantes pelas vias aquáticas. Muito do que o filme
apresenta das configurações tradicionais do Vietnã depende e está conformado por sua relação
com a água. Sobre imagens das embarcações que levam turistas pelas áreas da encosta do
Vietnã que são preenchidas de rochas, cavernas e montanhas, somos apresentados a mitos
ancestrais que explicam a origem das áreas alagadas, dos rios e mares a partir da presença do
dragão e suas lágrimas. Ainda sobre as águas e a presença cada vez maior de turistas,
especula-se sobre a modernidade e o presente em relação com a tradição e o passado.
209

Fig 156 a 161 – Frames de Forgetting Vietnam

Em certa passagem do filme um letreiro indica que, para esquecermos, primeiro


precisamos nos lembrar quem somos. Tal é o movimento da cineasta em retorno a suas
origens, retorno a uma memória afetiva que se abre para refletir sobre o presente e especular
sobre o futuro. De forma reflexiva, os letreiros especulam, propõem questões, indagações. As
reflexões passeiam por questões relativas ao capitalismo e ao socialismo até chegaram às
marcas indeléveis da guerra. Como o filme se constrói com imagens de diferentes texturas e
resoluções, filmadas em períodos históricos diferentes, há uma série de paralelos estabelecida
na montagem, para dar conta do eterno processo de mudança pela qual o país passa.

O segundo elemento que direciona as reflexões é a terra, que também concentra a


permanência do mundo ancestral, tradicional e guarda marcas do processo de modernização.
Diversas passagens fazem menção a como as marcas da guerra são presentes na terra, lugares
de memória e esquecimento. Pela terra acompanhamos um deslocamento das maiores cidades
para cidades menores no interior. Enquanto nas cidades maiores, como a antiga Sai Gon, hoje
chamada de Ho Chi-Min, as marcas da ocidentalização são mais evidentes, com o ritmo e a
desordem típicas de grandes centros urbanos ocidentais. Nas cidades menores, interioranas, o
ritmo contemplativo e a vida espiritualizada parecem ter maior presença.
210

Em um certo sentido, o filme configura-se como um filme de montagem. Uma


meditação de Trinh T. Minh-Ha sobre o seu país de origem, elaborada sobre um material
bruto filmado por ela anteriormente, sobre o qual ela se debruça em uma ilha de edição,
conformando um discurso ensaístico sobre a memória e o esquecimento, a partir do Vietnã e
de sua história nacional. Através do filme, Minh-ha revisita seu país de origem ao mesmo
tempo em que revisita sua memória.

Um aspecto interessante do filme é como a diretora utiliza os recursos digitais de


montagem. Há o recurso dos letreiros, como já apontamos acima, e há também o uso de
sobreposições de imagem, de alterações de tamanho, de movimentos e de congelamentos da
imagem. Recursos já presentes em filmes anteriores, pelo menos desde Surname Viet Given
Name Nam, que também utilizou os letreiros de forma original naquele momento. Este é o
terceiro filme realizado por Trinh T. Minh-ha que foi todo filmado com câmeras de vídeo45.
Anteriormente tivemos The fourth Dimension (2001) e Night Passage (2004). Em cada um
deles a cineasta mergulhou em uma experiência com a tecnologia, buscando explorar as
possibilidades estéticas que cada equipamento, cada materialidade tecnológica poderia
possibilitar. Se em The Fourth Dimension acompanhamos um diário pessoal de viagem pelo
Japão, uma escrita pessoal feita com a câmera, e em Night Passage acompanhamos uma
viagem experimental por um mundo dos sonhos (o filme será abordado mais detidamente no
capítulo seguinte), aqui, em Forgetting Vietnam, temos uma experiência plenamente obtida na
montagem; mais propriamente através dos recursos digitais da montagem.

45
Shoot for the Contents tem filmagens em vídeo feitas na China e filmagens em película nos Estados Unidos.
211

Fig 162 a 169 – Frames de Forgetting Vietnam

A utilização de alguns dos procedimentos, como a sobreposição de janelas e


movimentos e recortes nas imagens, pode remeter a experimentos da videoarte dos anos 1990,
deixando a impressão de uma estética ultrapassada e banal. Entretanto, uma das características
mais essenciais dos trabalhos fílmicos de Minh-ha e que aqui parece essencial, é a experiência
com o tempo e com a duração. Dizendo de outra maneira: à primeira vista, o filme parece ter
uma estética eletrônica que remete a produtos triviais e usos vulgares da tecnologia,
poderíamos dizer até amadores ou maneiristas, porém, com o desenrolar do filme, o
verdadeiro sentido se impõe e essa impressão inicial dissipa-se em favor de uma experiência
mais profunda, que encontra entre as imagens e os sons seu lugar discursivo.

Forgetting Vietnam tem relação direta com as experiências de Trinh T. Minh-ha


com as instalações. Como apontamos mais acima, o filme inclui praticamente na íntegra as
imagens das duas sequências das projeções da instalação Old Land New Waters, algumas
dessas sequências estão intocadas, inseridas no filme exatamente como estão no vídeo
212

projetado na instalação. É o caso principalmente de sequências que usam sobreposições de


janelas. Também há uma retomada de conceitos e frases que são retrabalhadas, algumas
reconstruídas com novas imagens a fim de obter o mesmo sentido, como é o caso dos letreiros
que fazem alusão aos dragões que percorrem os movimentos contrários, um ascendente e
outro descendente, que no filme são remontados com imagens mais recentes e de melhor
qualidade. Outras ideias são estendidas no filme, lançando mão das possibilidades da
narrativa fílmica possível nesse formato onde a atenção do espectador está mais concentrada
do que no caso da projeção da parede da galeria ou do museu. Podemos dizer que o filme é
quase uma prolongação da instalação, trazendo para o circuito do cinema aspectos
desenvolvidos nos espaços extra-cinematográficos.

A principal operação da montagem que Forgetting Vietnam adota e que se refere a


características mais presentes nas instalações é a ideia de uma montagem espacializada,
conforme definição de Philipe Dubois presente na citação que incluímos mais acima. A
utilização expressiva dos letreiros animados e das janelas sobrepostas e moventes pela tela
evidencia a adoção do quadro como moldura, dentro da qual se opera uma distribuição de
outras imagens – entre textos e imagens filmadas – de modo espacial, quase topográfico.
Outro elemento que podemos associar a essa experiência das instalações é a não utilização da
locução em voz over, recurso que, como insistimos aqui nesta pesquisa, é uma estratégia
utilizada largamente pela cineasta e de modo muito original na maior parte de sua filmografia.
Foi um recurso central em todos os seus filmes anteriores e aqui deliberadamente abandonado
em favor de uma retórica mais visual, algo que, nos parece, pode ser aproximado da
experiência de Minh-ha em suas instalações, fortemente centradas nas palavras escritas e nas
imagens simultâneas.

O resultado é um discurso complexo, com diversas camadas de significado,


exigente da atenção do espectador para além da aparência e da forma. Um discurso ensaístico
cujo resultado vem de uma radical aproximação entre forma e conteúdo. Na verdade, não há
distinção entre forma e conteúdo, ambos são interdependentes, estão sempre em relação e esse
processo coloca o filme como resultado de uma experiência que é da própria cineasta
enquanto realizadora, e é também do espectador, enquanto alguém que experiencia a recepção
do filme. De certo modo, na produção fílmica de Trinh T. Minh-ha temos a expressão clara de
sua postura enquanto artista e intelectual, que reflete sua formação, sua trajetória de vida.
Uma postura que demonstra que toda separação, seja entre saberes, entre áreas artísticas ou de
conhecimento, é sempre questionável.
213

CAPÍTULO 6

UM OUTRO LUGAR DENTRO DO AQUI

“Tanto no cinema quanto na fotografia não posso, ao mesmo tempo,


enquadrar em plano aberto e em plano fechado, filmar de perto e de
longe, desacelerar e acelerar (tirar uma mesma foto com um longo
tempo de exposição e uma instantaneamente): a opção por um valor
descarta os outros, os parâmetros são intolerantes, é o domínio de um
sistema paradigmático.
Desde os primeiros filmes dos irmãos Lumière, esses pares foram
fixados de uma vez por todas, inalteráveis, e os encontramos
exatamente assim, desde então, em todas as tomadas que procedem da
cinematografia: perto/longe, fechado/aberto, rápido/lento, fixo/móvel,
focado/desfocado, claro/escuro, inteiro/cortado ... A começar pela
principal conjunção disjuntiva: dentro/fora ... Tais são os marcos da
cartografia do cinema.”
COMOLLI, 2008, p.137-138

6.1 O movimento inside/out

Ao contrário do que desenvolvemos até aqui em relação aos filmes do movimento


que a cineasta define como outside/in, aproximados ao que convencionou-se chamar de
documentários, os filmes que abordaremos neste capítulo realizam o movimento contrário,
definido pela cineasta como inside/out, identificados com um espaço entre o cinema narrativo
e o experimental de modo mais amplo. São filmes muito interessantes e provocativos, mas
que para serem analisados mais adequadamente seria necessário que nos aprofundássemos em
um outro arcabouço teórico a fim de dar conta das relações estéticas propostas por estes
trabalhos. Desse modo, as análises que apresentaremos serão mais descritivas do que
analíticas propriamente, mas cumprem o intutito de possibilitar que nossa pesquisa ofereça ao
menos um panorama completo da produção cinematográfica da cineasta Trinh T. Minh-ha.
Em outro espaço e em momento oportuno estes filmes poderão ser objeto de uma investigação
mais aprofundada e articulada, como bem merecem.
214

6.2 Os artifícios do cinema - A Tale of Love

A tale of love (1995) foi codirigido por Jean-Paul Bourdier, habitual colaborador
da cineasta. Trata-se de um filme inspirado em um tradicional poema de amor vietnamita
intitulado The tale of Kieu, de autoria de Nguyen Du, datado do início do século XIX. É um
filme de ficção, com um roteiro de cenas previamente elaboradas, com diálogos e posições de
cena marcadas, interpretado por atores, mas elaborado nos limites das convenções do cinema
narrativo em franco diálogo com a experimentação visual. Visualmente o filme adota o uso de
uma paleta de cores primárias saturadas e enquadramentos e encenações que provocam a
desnaturalização do espaço cênico em uma narrativa elíptica que transcende o rigor da
estrutura do filme de ficção convencional em favor de uma estrutura mais poética e alusiva ao
tema do amor e do estado de espírito da personagem principal.

Após uma citação do conto original de Nguyen Du inscrita na tela e sobre a qual
ouvimos um cântico tradicional vietnamita, a cena inicial mostra a protagonista correndo por
um campo, em uma composição visual que destaca o contraste entre o céu azul, o amarelo da
vegetação e a roupa vermelha da personagem que corre cruzando a tela. Corte para um close
da protagonista utilizando o non lá, típico chapéu vietnamita, com o rosto iluminado com luz
artificial vermelha, com marcas de sombra proeminentes. Novo corte e vemos um lençol
emaranhado sobre uma cama envolta em um véu armado. Uma voz chama pelo nome da
protagoniosta, Kieu. Do lençol emaranhado levanta-se a protagonista, que está nessa cama,
como que protegida ou isolada nesse microambiente existente no interior do véu e, que pode
ser tomado como uma alusão ao seu ambiente interior, de onde vem a força da imaginação
que inspira sua escrita.
215

Fig 170 a 173 – frames de A tale of love

Estas imagens iniciais dão o tom do filme e apresentam as premissas com as quais
ele vai desenvolver sua narrativa, tanto visual quanto dramática. Visualmente, as cores são
fortes, em tons primários e o uso de sombras e luzes artificialmente arranjadas se faz presente.
Narrativamente, temos a passagem pelo onírico, o universo simbólico subjetivo da
personagem, e a passagem pelo universo da sua vida cotidiana, onde ela relaciona-se com as
outras personagens e onde exerce sua atividade de escrita.

Nesta versão fílmica o poema foi deslocado para os Estados Unidos


contemporâneo, acompanhando a vida de uma jovem vietnamita imigrada que enfrenta
situações entre a tradição e as obrigações da vida na sociedade norte-americana enquanto
busca e reflete sobre o amor, revezando-se entre o desejo de ser escritora e o compromisso
com o trabalho provisório como modelo fotográfica. São poucos os personagens em cena:
Kieu, a jovem vietnamita que transita entre os costumes da tradição e as exigências da vida
moderna em uma cultura estrangeira; sua tia, que a hospeda e oferece a presença dos hábitos,
dos modos e da língua vietnamita; o fotógrafo Alikan, com quem Kieu trava uma relação
contraditória, entre a colaboração profissional como modelo e o flerte amoroso e erótico;
Juliet, uma colega de trabalho, também vietnamita, editora com quem trava as reflexões sobre
o estado de coisas em relação a vida e ao amor.

Em A Tale of Love os enquadramentos e movimentos de câmera são equilibrados


e convencionais. O ritmo da montagem é bastante lento, oferecendo ao filme uma fluidez
quase contemplativa, diferenciando radicalmente esta experiência fílmica das produções
anteriores da cineasta. O filme evidencia o caráter artificial de sua construção, adotando
diversos elementos para desnaturalizar sua encenação. A direção de arte utiliza as cores dos
figurinos e elementos de cena para criar composições que enfatizam a artificialidade e aposta
em um desenho de luz que reforça o aspecto estetizado desse recurso. As atuações e os
216

diálogos não buscam verossimilhança ou realismo, ao contrário, apostam na acentuação do


artifício para criar uma ambientação onde o visual e o sonoro provoquem uma experiência
para o espectador que é resultado de uma dissimulação estética consciente, que joga com a
sugestão simbólica. Com efeito, a montagem articula as sequências de modo a não haver uma
relação direta entre as cenas, para não resultar em situações de causa e efeito. Passamos de
cenas alusivas a situações oníricas, que expressam o universo subjetivo da protagonista, para
cenas de sua rotina na moradia com a tia, ou no escritório com sua editora. Diversos planos
situam a protagonista em seu espaço de escrita, onde ela fica posicionada entre véus, como
que reservada a seu universo pessoal e imaginário, de onde surgem as situações alegóricas que
seguimos em cenas seguintes, como a expressar desventuras amorosas, lembranças da
infância ou desejos íntimos.
217

Fig 174 a 181 – Frames de A Tale of Love

Este é um filme com requinte metalinguístico, algo que fica evidenciado diversas
vezes em sua narrativa. O elemento mais decisivo neste sentido é o fato de o poema que o
inspira ser citado pela personagem, assim como este ser responsável por animar reflexões
acerca do amor no desenrolar diegético. Além disso há outros elementos, como o personagem
fotógrafo, que em algumas de suas falas elabora sobre o papel do olhar na interpretação da
realidade e sobre a atuação e a performance que sempre estão presentes em situações de
fotografia (poderíamos dizer de filmagem).

Em A Tale of Love Trinh T.Minh-ha opera com o cinema em outra chave de


interpretação da realidade, nesse movimento que ela descreve como sendo o de um fluxo no
sentido de inside/out, ou do interior para fora. Um movimento elaborado na subjetividade da
cineasta para entregar um produto simbólico que surge para expressar uma imaginação, um
imaginário. Diversos temas presentes em filmes anteriores da cineasta estão presentes aqui,
como o protagonismo feminino, a problematização do olhar, do voyeurismo e questões de
identidade. Neste caso, temas tratados na chave da ficção, utilizando os meios do cinema para
expor pela saturação do artifício sua potência como recurso de expressão artística, operando
conscientemente dentro de um meio bastante codificado como o cinema narrativo de longa-
metragem. Com efeito, a cineasta revela autorreflexividade nas escolhas e nos modos com que
conduz a narrativa. Assim, ela passa por questões como o amor como leit motiv narrado no
universo diegético pelas personagens e questões como a constituição da identidade no mundo
contemporâneo, narradas pelas alusões e simbolismos do filme.

Assim como nas obras anteriores da cineasta, as tensões entre polaridades


também estão presentes em A tale of love. A protagonista, Kieu, homônima da personagem do
poema, transita entre o universo da palavra, na sua atuação como escritora, em busca de
profundidade e significação, e o universo da imagem, em sua atuação como modelo
fotográfica, objeto de desejo erótico e fetichista. Como já dissemos anteriormente, há no filme
o trânsito entre o sonho e a realidade, revelado por diversas alegorias construídas pela cineasta
218

para elaborar um filme que aparentemente - e apenas no nível da aparência mesmo - joga na
chave do kitsch e do simulacro, mas que em essência, é um filme que opera em um intervalo
entre as expressões cinematográficas convencionais e alegóricas, entre o cinema como desejo
de interpretar os sonhos e o cinema como desejo de interpretar a realidade.

6.3 Radicalidade e experimentação - Night Passage

Night Passage não é um filme fácil com o qual se relacionar. É um caso isolado
dentro da filmografia da cineasta, que pode ser associado a filmes raros na história do cinema.
Daqueles filmes que propõem uma experiência única, que não pode ser reproduzida ou
repetida com facilidade. De todos os trabalhos da cineasta este é o mais radical em suas
apostas. Aparentemente distante de convenções cinematográficas das searas com as quais
Trinh T. Minh-ha vinha se relacionando até então, articula relações com diversas atividades
artísticas de modo muito livre, incorporando elementos que remetem à performance em
diversas de suas expressões, elementos do teatro, passando pela música, as artes corporais, a
poesia. Em relação a cada uma dessas expressões as referências não são simples ou
convencionais. São ecos das mais variadas atividades de vanguarda nesses campos da arte,
todas articuladas de forma livre, utilizando o filme como uma espécie de suporte para a
expressão artística de vanguarda, sem toma-lo como uma forma experimental em seus
próprios meios expressivos, mas como um veículo da experiência estética em sua plenitude.
Este é um caso fora do escopo da nossa pesquisa aqui desenvolvida e, conforme adiantamos
mais acima neste capítulo, passaremos a uma análise panorâmica, quase descritiva do filme, a
fim de incluir em nosso trabalho referências a todos os trabalhos cinematográficos de Trinh T.
Minh-ha disponíveis até o momento da conclusão de nossa pesquisa.

Como já dito, o filme é co-dirigido por Trinh T. Minh-ha e Jean-Paul Bourdier,


escrito e montado por Minh-ha, com direção de arte e desenho de luz de Bourdier e fotografia
de Kathleen Beeler, que fotografou anteriormente as cenas de Surname Viet Given Name Nam
(1989) que foram realizadas nos Estados Unidos, e A Tale of Love (1995). Foi realizado em
homenagem ao livro Milky Way Railroad, escrito em 1927 por Miyazawa Kenji, publicado
apenas em 1934. É um clássico da literatura de ficção no Japão e já foi adaptado para o
cinema em uma versão de animação realizada em 1985 por Gisaburô Sugii, além de ter
versões para musicais e para teatro. Trata da história de um garoto que embarca ao lado de um
amigo em um trem para uma viagem pela Via Láctea sem destino definido e na qual
219

encontram diversos personagens peculiares. No filme de Minh-ha, as personagens que


embarcam no trem são duas amigas, Kyra, que nos conduz inicialmente pela estória, e Nabi,
que une-se à amiga juntamente com o garoto Shin.

Aqui nesta versão não há propriamente um enredo a nos conduzir, apenas uma
trama muito tênue. A viagem das amigas e do garoto se faz a partir de uma espécie de sonho
acordado, ou de visão metafísica em uma associação com temas de experiências entre a vida e
a morte conduzidas pela ligação da amizade. Nessa jornada das amigas e do garoto, elas vão
se deparando com personagens e experiências diversas, que são apresentados por meio de
performances distintas, com apresentações musicais, teatrais, declamação de textos e danças.
Um filme que propõe uma experiência complexa e heterogênea entre o visual, o verbal e o
musical. Olhos e ouvidos em relação interdependente.
220

Fig 182 a 189 – Frames de Night Passage

Apontamos mais acima que, aparentemente, o filme está distante das outras
produções da cineasta. No entanto, se aprofundarmos um pouco mais nossa reflexão, talvez
cheguemos à conclusão de que essa primeira impressão é realmente apenas uma aparência.
Em essência, o filme radicaliza em sua proposta alegórica e simbólica, mas trabalha sobre
temas que são recorrentes na produção fílmica de Trinh T. Minh-ha. Aqui estão presentes a
preocupação com a luz, com a sonoridade, com o corpo, com a performance. A construção do
discurso fílmico se dá por outros meios, mas a problematização desses elementos pode ser
aproximada das preocupações que mobilizam a cineasta em toda a sua produção fílmica,
independente do campo com o qual ela está em diálogo. O caso radical de Night Passage
serve para complexificar uma filmografia que em si é bastante desafiadora.

Além das performances que atravessam o filme, há outros elementos que também
podem ser encontrados em obras anteriores, como tópicos associados à tecnologia e à
construção discursiva como proposta autorreflexiva. Os rituais tecnológicos aparecem aqui
como uma espécie de constante, em uma perspectiva quase evolucionista, passando por salas
de máquinas industriais antigas, maquinários associados ao trem e ao movimento, até chegar a
salas tecnológicas ligadas a recursos da imagem e da visão. A exploração dos recursos digitais
221

na elaboração da imagem e do som, resultado da experiência que a cineasta trava com a


tecnologia no próprio ato da filmagem e da montagem, muitas vezes remete a efeitos que
podem ser considerados vulgares dado o uso recorrente destes em universos triviais da
produção de imagens no campo televisivo e do vídeo corporativo, como o uso de efeitos de
transição e de recortes nas imagens. Em termos sonoros, o filme faz uso incessante de
pontuação musical, com ruídos e sonoridades diversas preenchendo a banda sonora, com
trabalho cuidadoso de desenho sonoro realizado na pós-produção.

Um elemento a destacar na proposta de Night Passage é o modo como as


performances são inseridas na diegese. O filme utiliza o que poderíamos considerar como
estratégias de documentação no seio de um filme experimental. Podemos dizer que as
performances acontecem ao vivo para a câmera, ou seja, que o filme documenta estas
performances, em uma mise-en-scène que perturba os limites entre o experimental, o ficcional
e o documental. Isso fica mais evidente nas cenas em que temos performances musicais
acontecendo. Em duas cenas distintas existem músicos em cena, participando da encenção,
executando a música diretamente na cena, enquanto as atrizes percorrem o espaço cênico
interagindo com a situação. Assim, temos mais um exemplo da complexidade das opções
artísticas da cineasta e o deslocamento das estratégias entre searas cinematográficas distintas.
222

Fig 190 a 195 – Frames de Night Passage

Night passage e A tale of love são filmes em que Trinh T. Minh-ha pôde desenvolver
sua proposta artística em direções antes pouco exploradas. Permitiram que a cineasta
explorasse de novas formas em seu cinema relações com outras formas artísticas que fazem
parte de seu universo simbólico e de sua formação como artista, especialmente a música e a
literatura. Transitando por entre o experimental e o narrativo, a cineasta explora as
possibilidades expressivas da literatura e da música na construção de sua diegese, explorada
pela cineasta como um trânsito entre a imaginação e a realidade. Um fluxo de performances
artísticas que atravessa convenções e domínios cinematográficos para explorar intervalos
onde possa habitar e desenvolver sua proposta artística pelo cinema.
223

CONCLUSÃO

“Posso dizer que não é apenas o formato das flores e frutos de uma
planta que importa, mas também a seiva que os percorre”

Trinh T.Minh-ha

Inicialmente, quando pensamos o projeto inicial que deu origem a esta


pesquisa, pretendíamos cotejar a produção fílmica e a produção teórica de Trinh T.Minh-ha
buscando, em primeiro lugar, enfatizar como ambas as facetas de sua produção dialogam em
favor de uma postura ética, estética e política que orienta e define as opções discursivas de sua
produção artística e intelectual. A partir daí, aspirávamos também situar a cineasta-teórica em
relação à tradição do documentário a fim de destacar suas possíveis contribuições conceituais
para a teoria do cinema, particularmente do documentário, e, sobretudo, contribuições
estéticas em relação às estratégias presentes nesse domínio cinematográfico. Embalava-nos a
certeza de que seus filmes têm contribuições substanciais a oferecer para a renovação das
formas expressivas do cinema, podendo ser tomados como exemplos que provocam o
pensamento e tensionam as relações entre arte e ciência, prática e teoria. Porém, no decorrer
da pesquisa, o trabalho de cotejo entre a produção fílmica e teórica da cineasta foi perdendo
espaço para um diálogo cada vez mais presente com ideias vindas de outros autores e de
diversos campos do conhecimento, com a vantagem de neste novo percurso termos
encontrado relações não previstas anteriormente, o que ampliou substancialmente os objetivos
inicialmente propostos. No entanto, podemos notar em certas passagens que esse interesse
pelos textos da cineasta-autora está mantido no escopo do trabalho, ainda que com menor
importância, em função de nosso foco ter se direcionado decisivamente para os filmes, com os
quais buscamos estabelecer contato mais direto. Consideramos que o trabalho escrito da
cineasta ainda merece uma análise mais aprofundada, seja isoladamente em relação a
determinadas obras, ou de modo mais amplo em relação ao conjunto dos seus escritos, seja,
ainda, em relação com a sua produção fílmica. Infelizmente os rumos de nossa pesquisa não
224

permitiram desenvolver tal aproximação satisfatoriamente aqui e a proposta fica aqui como
sugestão para trabalhos futuros.

Por outro lado, como resultado de nossa opção em nos debruçarmos sobre os filmes
como material primário de nossa pesquisa acreditamos que estamos oferecendo algumas
observações pertinentes principalmente em relação ao campo do cinema documentário,
destacando como uma filmografia tão desafiadora como a de Trinh T. Minh-ha nos permite
repensar toda uma tradição, oferecendo novas perspectivas sobre aspectos essenciais à prática
desse domínio cinematográfico. E o faz a partir de questões como a relação entre sujeito e
objeto, a problematização de posições de poder e reflexões sobre identidade e alteridade, entre
outros tópicos que são desafiados pela produção crítica da cineasta. Além, é claro, de ser um
cinema que utiliza de modo inovador as principais estratégias narrativas típicas dessa seara
cinematográfica, contribuindo substancialmente para uma reavaliação e revalorização do uso
da entrevista, das articulações da montagem e, principalmente, da locução em voz over.

Dito isto, gostaríamos de retomar à alegação de que o cinema de Trinh T. Minh-ha


provoca o pensamento, desenvolvida mais precisamente no quarto capítulo da tese. Conforme
nos lembra Aumont (2008, p.23), “o cinema não é uma língua, mas serve para pensar. Ou é
um modo de pensar.” E ainda, como o autor afirma mais adiante, “ele é, como as outras
filosofias, inventor – e até mesmo operador46 - de conceitos.” Buscando desenvolver seu
argumento acerca da relação entre o cinema e o pensamento, Aumont vai defender que “não
se trata mais de dizer que o filme pensa, porém, mais modestamente, que ele é um meio eficaz
de transmissão ou até mesmo de elaboração do pensamento” (2008, p.24). Esta nos parece ser
uma questão importante que acreditamos ter abordado de modo eficiente em nossa pesquisa:
entendemos que o cinema de Trinh T.Minh-ha é um cinema que inventa e opera conceitos.
Seu cinema é uma expressão possível do cinema como modo de pensar.

Seu famoso aforismo “Eu não pretendo falar sobre, apenas falar próximo”, não se
restringe a uma declaração de princípios, mas pode ser tomado como um conceito importante
que muito revela sobre as relações de poder que estão em jogo no ato de filmagem de um
documentário, sobre as relações entre quem filma e quem é filmado. Pode ser tomado como
um novo estrato discursivo no campo do cinema documentário, que dá visibilidade a lugares
sociais antes esquecidos, que não estavam em posições hegemônicas de poder, traz à tona
questões antes negligenciadas, como aquelas relativas aos chamados grupos minoritários ou

46
Itálico do original
225

que sofrem de algum tipo de discriminação, seja racial, de gênero ou social. Neste quesito,
Trinh T. Minh-ha reúne uma série de predicados que parecem situá-la em uma posição
peculiar, a de acumular o lugar de diversos Outros: ser mulher – em oposição a hegemonia
masculina nas posições de comando no campo do cinema; ser asiática trabalhando com
cinema independente nos Estados Unidos – em oposição a normas e convenções rígidas de
uma área produtiva fortemente marcada pelo corporativismo e pelo modelo industrial bastante
codificado, por exemplo.

Outra contribuição importante de Trinh T. Minh-ha são os conceitos de Outside/In e


Inside/Out, com os quais ela pensa sua produção cinematográfica em referência à dicotomia a
que tradicionalmente chamamos de documentário e de ficção. Podemos encontrar aqui ecos
de sua produção acadêmica, abrangendo temas como a questão pós-colonial, o feminismo e a
política cultural, os quais são abordados a partir de problematizações sobre posições de
autoridade e de identidade. Essa sua postura busca enfatizar esse movimento de deslocamento
e de passagens entre o dentro e o fora como meio de questionar relações de poder
historicamente constituídas. Para a cineasta, o cinema é uma forma de experiência e de
expressão original que não se enquadra nas contingências das normas e padrões
convencionais e os dois movimentos expressos por esses conceitos, que são opostos e
complementares, permitem a liberdade necessária para que a expressão autoral prevaleça em
detrimento das normatizações associadas a gêneros específicos de cinema. A liberdade
artística como fator fundamental para que o cinema possa ser explorado em toda sua potência
estética.

Esse novo estrato discursivo a que fizemos menção mais acima se diferencia daqueles
mais convencionais encontrados na tradição do documentário - como sabemos,
principalmente os tradicionais falar sobre ou falar por – e parte considerável de nossa
pesquisa se dedicou a investigar as estratégias narrativas utilizadas pela cineasta. Tais
estratégias se utilizam de modo original das possibilidades da banda sonora, demonstrando
como os protocolos recorrentes da tradição do cinema de não-ficção são passíveis de suscitar
modos narrativos inovadores, contribuindo para uma expansão das possibilidades criativas do
campo do documentário e para uma compreensão mais complexa da posição deste no campo
das formas expressivas contemporâneas. Entretanto, tais posições não são apenas típicas dessa
tradição cinematográfica em particular, mas podem também ser associadas a outras formas de
discurso sobre a diferença cultural. Aqui passamos a abordar um ponto importante que
226

desenvolvemos em nosso terceiro capítulo em particular: as relações da produção fílmica de


Trinh T. Minh-ha com a antropologia.

Reasssemblage – from the firelight to the screen e Naked Spaces – living is round, os
dois primeiros filmes da cineasta, dialogam fortemente com o domínio do cinema
antropológico: foram filmados em sociedades distantes dos grandes centros urbanos
modernos; registram povos e modos de vida distintos daqueles que detém os poderes
hegemônicos no mundo ocidental contemporâneo; enfatizam aspectos culturais como
trabalhos manuais, cerimônias, habitações, rituais. Ou seja, evocam expectativas em certos
meios sociais e intelectuais, especialmente no campo da antropologia, domínio no qual a
recepção desses filmes foi problemática. Em diversos textos escritos por antropólogos, a
cineasta e esses filmes – especialmente Reassemblage – foram atacados e acusados, entre
outras coisas, de abordarem superficialmente os métodos da antropologia e de serem
desinformados sobre a teoria antropológica. Consideramos que essa recepção crítica negativa
reflete uma incompreensão fundamental em relação aos filmes de Trinh T. Minh-ha: a de que
estes podem ser enquadrados sob nomenclaturas e gêneros específicos. Seus filmes não se
conformam em limites rígidos e normativos. Ao contrário. Eles borram fronteiras e irrompem
bordas entre práticas e áreas distintas. E isso não acontece de modo gratuito ou esquemático,
mas é diretamente ligado à sua postura ética, estética e política, que foi forjada justamente
entre-áreas de conhecimento, incitando convenções e tradições, deslocando estratégias
discursivas de um campo a outro, subvertendo cânones e renovando tradições. Foi isso que
buscamos demonstrar no decorrer da tese. Prova de que há uma incompreensão fundamental
em relação à sua obra é o fato de que é recorrente que ela seja citada como cineasta-
antropóloga, coisa que efetivamente ela não é; ou de seus filmes serem considerados
exemplos de filmes etnográficos experimentais, na tentativa de inseri-la em uma tradição
cinematográfica específica, à sua revelia.

Aqui ganha força a noção de intervalo como uma categoria explicativa dessa postura
desafiadora. O intervalo é o espaço avesso às polarizações, aquele que está situado de modo
intermediário em relação às dicotomias, mas cuja existência promove o tensionamento desses
polos face aos quais está situado sem se fixar em um ponto determinado. Existe aqui uma
certa impropriedade que configura a potência da noção de intervalo. O fato de o intervalo não
estar definido claramente em uma posição única o transforma em um espaço múltiplo. Um
espaço aberto à invenção, aberto à inovação.
227

Acreditamos que essa noção de intervalo é fundamental para compreendermos a


relação do cinema de Trinh T. Minh-ha com a antropologia. A cineasta deixou bastante claro
em diversos textos e mais diretamente na locução de seus dois primeiros filmes que considera
a antropologia uma disciplina dominada por uma ideologia alinhada a posições hegemônicas
de poder, que refletem lugares historicamente ocupados por homens brancos ocidentais.
Entretanto, apesar de toda crítica que tece em relação a essa disciplina, o cinema de Trinh
T.Minh-ha tem uma clara relação com questões antropológicas, inegavelmente. Não apenas
com temas antropológicos, mas uma identificação com métodos antropológicos. Todavia, essa
relação e identificação não se dão de modo a um alinhamento ou mesmo de uma mera
negação. O que o cinema de Trinh T. Minh-ha nos revela é uma outra relação com a
antropologia. Uma outra relação do cinema com a antropologia. Não se trata de uma
antropologia visual e, diríamos, não se trata de um cinema documentário que toca em temas
antropológicos, mas sim de um cinema que nos permite problematizar a antropologia. Um
cinema que utiliza os métodos e instrumentos essenciais dessa disciplina – o trabalho de
campo e seu caderno de anotações, a interpretação e a descrição etnográficas – de modo
inovador e subversivo, permitindo que o filme demonstre por meio de sua forma expressiva
resultados de descrição etnográfica que de outro modo não poderiam ser desenvolvidos. Dito
de outra forma, o cinema expressa através de estratégias de evocação do intangível aquilo que
outras estratégias focadas no inteligível teriam dificuldade ou seriam incapazes de
desenvolver. Podemos dizer, ainda, que seu cinema apresentou contribuições para a
antropologia que a própria disciplina ainda estava em busca de consolidar com seus próprios
esforços e instrumentos metodológicos.

No desenvolver de nossa pesquisa insistimos em argumentos que remetiam ao


Seminário Writing Cultures pois acreditamos que este foi um ponto de virada importante para
a antropologia com o qual o cinema de Trinh T. Minh-ha teve notável simultaneidade, e com
o qual guarda importantes similaridades. Isso acontece sobretudo nas questões que ambos
problematizam, e na originalidade de suas contribuições, tanto para o campo da teoria social
quanto para o campo artístico do cinema. Tal posição original entre essas duas áreas -
antropologia e cinema - é possível dada a posição intervalar em que Trinh T. Minh-ha produz.
Estando posicionada entre polaridades já marcadas por tradições consolidadas sem se alinhar
ou opor a nenhuma delas, Minh-ha pode transitar com desenvoltura e liberdade entre os pólos,
tensionando-os de modo original e inovador. Dessa dinâmica surge o que apresentamos como
sendo a estética da parcialidade no cinema da cineasta. Uma estética que adota um “sentido
228

rigoroso de parcialidade”, tal como proposto por James Clifford. (1986). Uma estética que
assume sua radical parcialidade como força criativa para negar as dicotomias e as formas de
representação cristalizadas em discursos de poder que refletem tradições historicamente
dominantes.

Sendo assim, podemos dizer que a maior parte das críticas oriundas do campo da
antropologia direcionadas à cineasta e a seus filmes, especialmente nesse início da sua
filmografia, são equivocadas pois exercem tal questionamento buscando situá-la em campos
disciplinares. Exigem, portanto, algo que está negado de modo intrínseco na sua produção,
tanto intelectual quanto artística: a conformação a modelos, cânones, convenções, práticas,
paradigmas. O cinema de Trinh T. Minh-ha é desafiador, pois resulta de uma postura de
descoberta permanente, que elabora seu discurso e sua expressividade ciente das estratégias
recorrentes nas áreas com as quais dialoga e não tenta meramente desconstruí-las, mas sim
expandir suas possibilidades a partir de novas perspectivas que se abrem para expressar
modos originais de ser, estar e perceber o mundo, como já tivemos chance de apresentar no
decorrer desta tese.

A aproximação do cinema de Trinh T. Minh-ha com a antropologia enquanto


disciplina parece nos revelar que seu cinema pode ser tomado como um caso que antecipa
questões que surgiriam posteriormente e que são resultantes do trânsito de técnicas e métodos
entre áreas de conhecimento. Podemos considerar o movimento de adoção de técnicas
etnográficas pelo campo das artes, assinalado na literatura dedicada ao tema como
ethnographic turn e o movimento de adoção de estratégias narrativas e expressivas do mundo
das artes na etnografia, conhecido como art turn. Novamente devido ao caráter de
posicionamento no intervalo, a produção da cineasta dialoga com ambos os movimentos.
Enquanto artista que se expressa principalmente pela forma cinematográfica, Minh-ha é um
exemplo notável dessa virada etnográfica nas artes. Por outro lado, se entendermos que seu
cinema é um meio de operar conceitos, como defendemos mais acima, podemos também
considerar que sua filmografia pode ser um exemplo notável de uma virada artística em
relatos etnográficos, pois poderíamos dizer que se trata de uma cineasta que adotou técnicas
etnográficas para desenvolver seus filmes, sem entretanto ser uma antropóloga estritamente
versada nos padrões epistemológicos dessa disciplina. Mesmo que seja difícil definir os
limites entre as práticas exercidas pela cineasta, algo que podemos admitir é que Trinh
T.Minh-ha é antes uma artista do que uma teórica. Sua formação inicial em composição
229

musical, com estudos em diversos instrumentos, e sua formação em literatura comparada nos
levam a essa inferência.

Recentemente foi possível notar um interesse renovado e revigorado pela aproximação


entre tipos de cinema mais experimentais com a antropologia, tanto em textos acadêmicos
quanto em realizações audiovisuais. Podemos inserir aqui como exemplo o trabalho do
Sensory Ethnographic Lab – SEL, núcleo de estudos e pesquisas de antropologia localizado
em Harvard, comandado pelo antropólogo Lucien Castaign-Taylor, que vem se notabilizando
por adotar métodos experimentais de investigação incorporando práticas da performance
corporal, instalações audiovisuais, recursos sonoros e narrativas audiovisuais para realizar
uma antropologia experimental que adota a sensorialidade como objeto essencial da descrição
etnográfica em um mundo em transformação. Filmes como People’s Park (2012), constituído
por um único plano-sequência em um parque urbano na China, ou Leviathan (2012), filmado
com dezenas de pequenas câmeras de vídeo chamadas de câmeras de pontos de vista,
apresentando a pesca em alto mar, utilizam os recursos cinematográficos a fim de explorar os
limites das estratégias típicas do cinema documentário em favor da exploração de uma
experiência sensorial desse encontro com a diferença cultural que promove uma experiência
estética radical por meio do filme. Estão em jogo aqui questões essenciais ao cinema, como a
duração do plano, o ponto de vista e o enquadramento. Outro exemplo, vindo do sentido
oposto na relação entre antropologia e cinema, é o do cineasta Ben Russel, oriundo do
domínio das artes visuais e do cinema experimental. Seus filmes têm se destacado por adotar
métodos tradicionais e temas comuns ao trabalho antropológico em conjugação com uma
abordagem de experimentação visual vinda do mundo das artes. Greetings to the Ancestors
(2014), por exemplo, filmado entre a Suazilândia e a África do Sul, explora as estruturas das
tradições míticas desses países para abordar temas como a transcendência, através de imagens
psicodélicas das paisagens da África. Nesse quesito, consideramos que o cinema de Trinh T.
Minh-ha pode ser entendido como uma produção pioneira na proposta de inovar os modos de
ver e ouvir, ao passo em que renovou as formas de expressar conceitos e teorias, podendo ser
tomado como uma espécie de precursora de relação profícua entre cinema experimental e
antropologia. Para trabalhar nessa seara o conceito de etnografia experimental, surgido no
campo da antropologia e trazido para os estudos de cinema por Catherine Russel, nos serviu
sobremaneira para testar nossas hipóteses acerca do cinema de Trinh T. Minh-ha.

Outra contribuição importante que consideramos poder ser associada ao cinema da


cineasta está relacionada a propostas da teoria feminista do cinema. Em certo sentido,
230

podemos notar em sua produção fílmica questões caras ao feminismo de modo geral, como
evidenciar o protagonismo das mulheres e problematizar a questão do olhar e da
representação do corpo feminino, assim como das relações de poder e submissão ensejadas
por esses atos. Entretanto, um elemento que nos parece central é a maneira seus filmes
materializam questões levantadas desde os anos 1970 por autoras que se dedicaram a pensar o
que poderia ser um cinema realizado por mulheres. Em síntese, a busca por um outro cinema,
um cinema que de forma radical se recusasse a seguir fórmulas e modelos hegemônicos que
representam discursos e estéticas fortemente associadas ao corporativismo e ao sexismo
encontrados nos modelos comerciais e industriais de cinema.

Procurando encontrar este “outro” cinema, ou um contra-cinema - como colocou


Claire Johnston (1976) - a questão da experimentação estética impõe-se decisivamente. Não
seria possível pensá-lo de maneira alinhada aos modelos narrativos convencionais. Seria
necessário pensá-lo a partir de propostas estéticas desafiadoras, mais alinhadas a
experimentações de vanguarda. Neste sentido, a aproximação com o campo das artes ganha
relevância decisiva pelo fato de neste último a experimentação ser necessidade praticamente
intrínseca ao próprio ato do artista, como recurso para fustigar concepções pré-determinadas e
alinhadas a tradições consolidadas. Em termos de cinema, poderíamos destacar uma série de
diretoras notáveis cujas filmografias estão marcadas por filiações com o campo das artes
experimentais, de Maya Deren a Su Friederich, como brevemente desenvolvemos no primeiro
capítulo desta tese.

Nessa relação entre arte e cinema, Trinh T. Minh-ha aparece como um exemplo
importante, pois reúne de forma radical as características necessárias para que a concepção de
um cinema tal como pensado pela teoria feminista do cinema possa se tornar realidade. Sua
filmografia é marcada por experimentações estéticas que não são meramente formais, mas que
estão a favor de encontrar novas estratégias narrativas. Como insistimos no decorrer desta
pesquisa, seu cinema desafia rótulos, padrões, modelos e convenções, de forma a pensar o
cinema como experiência original. A filmografia de Trinh T. Minh-ha afirma uma
experimentação de cinema feminista que materializa no corpo fílmico demandas do campo
teórico. Seus filmes guardam uma coerência interna importante em relação a essa postura de
experimentação.

Trinh T. Minh-ha encontrou no uso da locução em voz over um dos principais agentes
de sua estratégia para problematizar a tradição do cinema documentário. Utilizando de forma
231

extremamente original este recurso que é um dos cânones do paradigma clássico do cinema de
não–ficção, os filmes da diretora nos permitem ver como o cinema é uma forma expressiva
potente e como o documentário é um domínio que ainda pode ser explorado de forma criativa.
As estratégias de uso da locução são diversificadas e originais: da voz over reflexiva de
Reassemblage, passando pela polifonia de vozes de Naked Spaces, pela encenação de
Surname Viet Given Name Nam, pelas duplas de vozes de Shoot for the Contents, pela voz
lírica e pessoal de The Fourth Dimension até a ausência de locução em Forgetting Vietnam, o
recurso da voz over é um vetor central na elaboração do cinema da cineasta, sem nunca ser
repetitivo ou convencional.

A locução em voz over concentra duas linhas de força da produção de Trinh T. Minh-
ha. Primeiro, a importância da palavra, que em todas as suas dimensões, da escrita à falada,
permite à cineasta desenvolver uma postura ensaística que transita entre o literário e o
cinematográfico. Da palavra lida ao modelo de um diário de campo em Reassemblage, para a
ausência da palavra falada aos moldes de uma reflexão digressiva do pensamento em
Forgetting Vietnam, notamos os diferentes usos de um mesmo recurso. O uso criativo da
locução nos filmes da cineasta ganha maior importância se considerarmos que este é um
recurso fundamental do cinema documentário, geralmente tomado como uma estratégia já
cristalizada, com convenções bastante rígidas a serem seguidas (lembremos dos modelos de
documentário clássicos) e que no seu cinema ganham dimensão expressiva central,
subvertendo expectativas recorrentes e demonstrando a inegável existência desse outro
cinema que a teoria feminista do cinema desejava.

A segunda linha de força associada à locução, ou mais precisamente aos recursos


sonoros dos filmes da cineasta, é o elemento musical. A locução dos filmes nunca é feita de
modo sistemático, como uma normatização ou padronização que segue modelos específicos,
como por exemplo a locução de filmes de propaganda. Em seus filmes cada nuance na voz
ocorre por interesse da cineasta. São organizados detalhadamente para que efeitos expressivos
distintos sejam obtidos. Por exemplo, a polifonia de vozes de Naked Spaces, com três
tonalidades e nuances distintas nas leituras, não se organizam apenas de modo a que sejam
apenas uma somatória de vozes diferentes, mas estão diretamente associadas ao teor das
palavras e sentenças que são proferidas, como tivemos a oportunidade de apresentar no sexto
capítulo da tese. Nesse caso temos uma voz grave, que profere sentenças mais assertivas
colhidas do trabalho de campo na África, enunciando provérbios populares ou máximas de
pensadores africanos, outra mais aguda, que traz citações de autores ocidentais, e uma
232

terceira, em tom médio, que narra em primeira pessoa e relata sensações e observações
pessoais.

O uso da voz no cinema de Trinh T. Minh-ha tem nuances típicas do campo musical,
como a preocupação com o timbre e a tonalidade. Estes aspectos, que nos remetem às origens
da formação acadêmica da cineasta, estão presentes não apenas no ambiente sonoro dos
filmes, mas em toda sua produção cinematográfica. Nesse aspecto, notamos que podemos
sintetizar três categorias que são oriundas do campo musical e que são decisivas para se
pensar o cinema da cineasta, pois se estendem do ambiente sonoro para os filmes como
objetos individuais tanto quanto para a sua filmografia de modo amplo. São elas as noções de
ritmo, duração e ressonância. Cada uma dessas noções está presente em todos os seus filmes e
podem ser percebidas pelos modos com que a cineasta as utiliza em suas estratégias
narrativas.

Acreditamos que em nossa pesquisa conseguimos uma aproximação importante com a


filmografia da cineasta, buscando analisar sua produção tanto em perspectiva histórica quanto
em uma verticalização individual com cada filme. Assim, oferecemos uma investigação do
conjunto de sua produção cinematográfica que servirá como um primeiro contato com o seu
cinema para interessados que queiram se aventurar no universo desta notável
artista/intelectual.

Entretanto, temos ciência de que, infelizmente, nesta pesquisa em particular não


conseguimos desenvolver plenamente certos tópicos importantes, como é o caso desse caráter
musical presente em sua produção, sistematizado nas categorias de ritmo, duração e
ressonância. O aprofundamento e aperfeiçoamento desta análise esta por ser feito em futuras
pesquisas. Esperamos que esta nossa contribuição possa ser inspiradora para gerar esses novos
estudos.
233

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1935. 35 mm, 25 mins. Preto e branco. Sonoro.

Jean Rouch. Os mestres loucos. França, Les films de la Pléiade, 1955. 16 mm ampliado para
35 mm, 36 mins. Colorido. Sonoro.

_________. Eu, um Negro. França, Les films de la Pléiade, 1958. 35 mm, 70 mins. Colorido.
Sonoro.

_________. Crônica de um verão. França, Les films de la Pléiade, 1959. 35 mm, 85 mins.
Preto e branco. Sonoro.

_________. Jaguar. França, Les films de la Pléiade, 1964. 35 mm, 110 mins. Colorido.
Sonoro.

J.P. Sniadecki & Libbie Dina Cohn, People’s Park. Estados Unidos, Harvard Sensory
Ethnography Lab, 2012. DCP, 78 mins. Colorido. Sonoro.

Laura Mulvey & Peter Wollen. Riddles of the Sphynx. Reino Unido, British Film Institute,
1977. 16 mm, 92 min. Colorido. Sonoro.

Lucien Castaing-Taylor & Véréna Paravel, Leviathan. Estados Unidos, Harvard Sensory
Ethnography Lab, 2012. HD, 87 mins. Colorido. Sonoro.
243

Marilú Mallet, Unfinished Diary. Canadá e França, 1982. 50 mins. Preto e branco. Sonoro.

Maya Deren. Divine Horsemen: the living gods of Haiti. Estados Unidos, 1953. 16 mm, 52
mins. Preto e branco. Sonoro.

Michelle Citron. Daughter Rites. Estados Unidos, Iris Films, 1980. 35 mm, 49 mins.
Colorido. Sonoro.

Raoul Ruiz, De grands événements et des gens ordinaires. França, Institut National de
L’Audiovisuel (INA), 1978. 16 mm, 65 mins. Colorido. Sonoro.

Robert Flaherty, Nanook, o esquimó. Estados Unidos e França, Les frères Revillon & Pathé
Exchange, 1922. 35 mm, 78 mins. Preto e Branco. Sonoro.

Shirley Clarke. Bridges-go-round. Estados Unidos, 1958. 16 mm, 04 mins. Colorido. Sonoro.

____________. The cool world. Estados Unidos, Wiseman Film Productions, 1964. 16 mm
ampliado para 35 mm, 105 mins. Preto e Branco. Sonoro.

____________. Robert Frost: A Lover's Quarrel With the World. Estados Unidos, WGBH,
1963. 35 mm, 41 mins. Preto e branco. Sonoro.

Su Friedrich. The Ties that Bind. Estados Unidos, Downstream productions, 1985. 16 mm, 55
mins. Preto e branco. Sonoro.

__________. Sink or Swin. Estados Unidos, Downstream productions, 1990. 16 mm, 48


mins. Preto e branco. Sonoro. (1990)

__________. Hide and seek. Estados Unidos, Downstream productions & Independent
Television Service, 1996. 16 mm, 57 mins. Preto e branco. Sonoro.

Trinh T. Minh-ha. Reassemblage – from the firelight to the screen. Estados Unidos, Women
Makes Movies, 1982. 16 mm, 40 mins. Colorido. Sonoro.

_______________. Naked Spaces – living is round. Estados Unidos, Women Makes Movies,
1982. 16 mm, 40 mins. Colorido. Sonoro.
_______________. Surname Viet given name Nam. Estados Unidos, Women Makes Movies,
1989. 16 mm, 108 mins. Colorido. Sonoro.
_______________. Shoot for the contents. Estados Unidos, Women Makes Movies, 1991. 16
mm, 102 mins. Colorido. Sonoro.
244

_______________. A tale of love. Estados Unidos, Women Makes Movies, 1995. 35 mm, 108
mins. Colorido. Sonoro.
_______________. The fourth dimension. Estados Unidos, Women Makes Movies, 2001. DV,
108 mins. Colorido. Sonoro.
_______________. Night passage. Estados Unidos, Women Makes Movies, 2003. DV, 108
mins. Colorido. Sonoro.

_______________. Forgetting Vietnam. Estados Unidos, Women Makes Movies, 1995. DV,
108 mins. Colorido. Sonoro.

Yvonne Rainer. Journeys from Berlin/71. Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha
Ocidental, Beard’s Fund Inc & Center for Advanced Visual Studies & Center for Public
Cinema & Deutscher Akadenischer Austauschdienst & Massachusetts Institute of
Technology (MIT) & New York State Council on the Arts & Rockefeller Foundation,
1980. 35 mm, 125 mins. Preto e branco e Colorido. Sonoro.

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