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INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2016
GUSTAVO SORANZ GONÇALVES
CAMPINAS
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPEAM
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180
G586c GonO cinema de Trinh T. Minh-ha : intervalos entre antropologia, cinema e artes
visuais / Gustavo Soranz Gonçalves. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.
Título em outro idioma: The cinema of Trinh T. Minh-ha : intervals between anthropology,
cinema and visual arts
Palavras-chave em inglês:
Trinh, T. Minh-Ha (Thi Minh-Ha), 1952-
Documentary films Anthropology
Experimental films
Ethnographic films
Área de concentração: Multimeios
Titulação: Doutor em Multimeios
Banca examinadora:
Mauro Luiz Rovai
Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau
Fernão Pessoa Ramos
Francisco Elinaldo Teixeira
Marcius César Soares Freire
Data de defesa: 31-08-2016
Programa de Pós-Graduação: Multimeios
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO
MEMBROS:
DATA: 31.08.2016
Para Michelle, Clara e Theo,
Aos meus pais, Fernando e Vera, que me receberam de volta em casa após mais
de uma década, sem quem eu não teria conseguido fazer nada.
Às colegas Tânia Brandão, Jônia Quedma e Edilene Mafra, pelo apoio durante
essa jornada, o que permitiu que eu me ausentasse das funções institucionais
para poder me dedicar ao doutoramento.
Ao amigo Erlan Souza, pelo estímulo, leitura e comentários de parte desta tese.
Trinh T. Minh-ha é uma cineasta e intelectual vietnamita, radicada nos Estados Unidos desde
os anos 1970. Possui formação acadêmica multidisciplinar, com estudos na área de
composição musical, de etnomusicologia e de literatura comparada. Nas últimas décadas tem
atuado com destaque em diversos campos da produção artística e também da produção
acadêmica. Realizou oito filmes, entre médias e longas-metragens, montou cinco instalações
multimídia e publicou quatorze livros, entre obras artísticas, coletâneas de roteiros e
entrevistas e ensaios teóricos.
Seus filmes provocam as convenções de diferentes searas fílmicas, transitando nos intervalos
entre o documentário, o filme etnográfico, o cinema experimental e o cinema narrativo. Em
sua produção, tanto intelectual quanto fílmica, encontramos questões que atravessam de um
campo a outro, subvertendo as fronteiras e criando intersecções entre a teoria e a prática de
modo a questionar os lugares determinados entre saberes, relacionando as artes e as ciências
de modo inovador. Seus temas de interesse giram em torno das formas de representação da
diferença cultural, a condição feminina e questões de identidade.
Para investigar uma produção tão desafiadora e questionadora dos cânones tradicionais das
áreas com as quais dialoga, nosso referencial teórico está constituído a partir de contribuições
vindas do campo da antropologia, da teoria do cinema e das artes.
Trinh T. Minh-ha is a filmmaker and Vietnamese intellectual, rooted in the United States
since the 1970s has multidisciplinary academic education with studies in musical
composition, ethnomusicology and comparative literature. In recent decades it has worked
prominently in various fields of artistic production and also the academic production. Held
eight films, including medium and feature films, he has set up five multimedia installations
and published fourteen books, including works of art, collections of scripts and interviews and
theoretical essays.
His films provoke the conventions of different filmic cornfields, moving in ranges between
documentary, ethnographic film, experimental cinema and narrative cinema. In its production,
both intellectual and filmic, we find issues that cross from one field to another, subverting the
boundaries and creating intersections between theory and practice in order to question the
places determined between knowledge, relating the arts and innovative way science . His
topics of interest revolve around the forms of representation of cultural difference, the female
condition and identity issues.
Our research focuses on his films proposing a dual relationship of movement: a first that
comes from theory toward the movies, to investigate how innovative strategies used in your
movie dialogue with social theory, to think other milestones in the relationship between
cinema and anthropology. The second part of the film toward the film theory, specifically the
theory dedicated to documentary cinema, to analyze how his films can help to expand the
debate on the cinematic domain by offering unique and challenging contributions from the
essential pillars of this kind of cinema, which are those linked to filming strategies and the
relationship between who films and who is filmed. We understand his films as exemplary
cases that allow us to think the documentary film us in his poetic fullness and contribute in an
original way in relation to what may be the great documentary tradition of contribution to the
cinema, the ethical question.
To investigate a production so challenging and questioning the traditional canons of the areas
with which dialogue, our theoretical framework is formed from contributions coming from the
field of anthropology, film theory and the arts.
Introdução 12
Conclusão 223
INTRODUÇÃO
A primeira vez que lemos o nome de Trinh T. Minh-ha foi em um plano de curso
da disciplina Metodologias de pesquisa e antropologia visual: cinema e vídeo, ministrada
pelo professor Marcius Freire, no Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp1.
O nome da cineasta está presente na 11ª sessão, intitulada Por uma poética da descrição em
etnocinematografia, que indica o filme Naked Spaces – living is round (1985) como parte do
conteúdo da aula e textos da cineasta na bibliografia. Um dos textos indicados é o “The
Totalizing Quest of Meaning”, primeiro ao qual tivemos acesso mais ou menos nesse período,
antes mesmo de termos a chance de assistir a um filme dirigido pela cineasta. Nesse momento
ainda não eramos alunos do Programa e tínhamos chegado ao plano de curso após uma
pesquisa na internet, interessados em conhecer mais sobre cinema documentário. O plano de
aula nos interessou, em especial a sessão que indicava o trabalho de Trinh T. Minh-ha. Após
nos tornarmos alunos regulares do Programa de Pós-Graduação em Multimeios, cursamos
esta disciplina em 2012.
1
Esse plano especificamente está depositado na página do Programa na internet nos arquivos relacionados aos
planos do ano de 2002
13
aos filmes. Havia uma sensação de frustração por lermos análises e descrições sem ter a
chance de assistir aos trabalhos. Dificuldade esta que permaneceria ainda por algum tempo. O
circuito de vídeo doméstico basicamente era dedicado ao cinema de ficção comercial, com
raras e honrosas iniciativas de distribuição de cinema diferente do modelo hegemônio norte-
americano e a TV paga ainda engatinhava na oferta de filmes desses tipos. Entretanto, a
internet começava a abrir novas possibilidades de acesso aos filmes com as redes de
compartilhamento de arquivos P2P2. Isso provocou uma revolução e esta pesquisa tem grande
débito para com essa realidade. Participando de fóruns e grupos especializados em troca de
filmes não comerciais, tivemos acesso a um universo cinematográfico que não estava
facilmente disponível no Brasil, além de ter acesso também a textos e livros que não estavam
(ou ainda não estão, na maior parte dos casos) traduzidos para o português.
2
P2P – é a sigla em inglês para o termo peer to peer, que se refere a um protocolo de trocas de arquivos pela
internet.
3
O trabalho de legendagem ficou a cargo do Laboratório de Imagem e Som – LISA, da USP
14
4
Devemos esta oportunidade a Carla Maia e Luis Felipe Flores, curadores da mostra e organizadores do
catálogo.
5
O filme está atualmente percorrendo o circuito de festivais. Em março de 2016 estreou na competição
internacional do festival Cinema du Reel, em Paris.
6
Por produção fílmica estamos considerando os trabalhos realizados para serem exibidos em cinema, sejam
captados em vídeo ou película. Não estamos incluindo os trabalhos retirados das instalações, que não foram
objeto de análise detida neste trabalho.
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Ano de 2017
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Seus filmes são distribuídos pela Woman Make Movies8, pequena distribuidora de
cinema independente localizada em Nova York e não tiveram circulação comercial no Brasil.
Nas redes de troca de arquivo pela internet, o único que está disponível com legendas em
português é Reassemblage. Talvez isso explique o porquê de este ser seu filme mais
conhecido no país e sobre o qual mais se fez referência em textos acadêmicos aqui
publicados.
No decorrer dos últimos quatro anos em que levamos a cabo esta pesquisa,
percorremos diversos eventos acadêmicos no país, apresentando o progresso de nossos
8
http://www.wmm.com/
16
O acesso aos textos ajuda a iluminar seus filmes e vice-versa Entretanto, optamos
por não nos basearmos em seus textos de modo central na elaboração desta nossa pesquisa.
Tentamos manter certa distância a fim de garantir maior originalidade em nossas análises
sobre sua produção fílmica. Apoiamo-nos em seus textos ou entrevistas em momentos
pontuais, especialmente em passagens que ajudam a elucidar determinado elemento
relacionado ao processo criativo da cineasta, evitando buscar referências que fossem
associadas a processos de interpretação dos filmes propriamente. Ainda que tenha existido tal
intenção de distanciamento, este pode não ter sido plenamente conseguido, evidentemente. O
atravessamento entre textos e filmes é tão determinante que uma tal posição de separação fica
praticamente inviabilizada, uma vez que se tenha tido acesso a ambas as facetas de produção
de Trinh T. Minh-ha.
No primeiro capítulo da tese nos debruçamos sobre duas questões essenciais para
uma análise consequente do cinema de Trinh T. Minh-ha. A primeira delas é a questão do
feminismo, preponderantemente ligada ao âmbito da temática e das relações entre sujeito e
objeto apontadas pelos filmes, mas orientadora das dimensões éticas e estéticas que movem a
cineasta em sua produção tanto fílmica quanto acadêmica. Contribuições da teoria feminista
do cinema nos ajudaram a definir as balizas para pensar a produção fílmica da cineasta a
partir de uma relação com as formas e estratégias hegemônicas de cinema a partir do
pressuposto de que o cinema feminista tem de desafiar as formas convencionais a fim de
afirmar sua diferença como valor essencial. Este amparo teórico nos permitiu pensar o
cinema de Trinh T. Minh-ha para além da ideia de um cinema experimental pela questão da
forma e inseriu seu cinema em um campo maior de disputas, onde a busca de formação da
diferença deve dar conta de uma relação entre forma e conteúdo, entre ética e estética. A
segunda questão é a utilização da dimensão sonora, especialmente da voz - mas também do
silêncio, das músicas e dos ruídos - como recurso central em sua criação cinematográfica,
assunto que reaparece em capítulos posteriores de modo recorrente, às vezes secundário, às
vezes como aposta central no argumento, confirmando como tal estratégia narrativa é decisiva
para conformar sua postura autoral.
peculiar assumida pelo seu cinema nos leva à questão da reflexividade, termo constantemente
evocado em esforços de problematização das categorias de representação simbólica tanto
clássicas quanto modernas, central em processos contemporâneos dedicados a repensar os
problemas da antropologia enquanto disciplina e do cinema enquanto prática artística.
Apresentamos também uma breve distinção entre as duas principais vertentes da teoria do
cinema documentário, a cognitivista-analítica e a pós-estruturalista. Concentrando nossos
esforços na vertente pós-estruturalista, partimos do conceito de poética do documentário, a
reunião das funções ou modalidades essenciais desse tipo de cinema, tal como apontadas por
Michael Renov (2007) para apoiar nossa reflexão sobre o cinema de Trinh T. Minh-ha.
Em busca de outros marcos teóricos e outros modelos de análise para o estudo dos
filmes de Trinh T. Minh-ha, no quinto capítulo nos dedicamos a análises dos filmes The
fourth dimension (2001) e Forgetting Vietnam (2016), a partir de uma abordagem
20
No sexto e último capítulo passamos a uma análise dos filmes da diretora que se
encaixam sob os termos do movimento por ela intitulado de inside/out, algo aproximado ao
que comumente chamamos de cinema de ficção ou cinema narrativo. São eles: A Tale of Love
(1995) e Night Passage (2004). São análises mais pontuais e superficiais, pois se distanciam
dos casos que mais nos interessam nesta pesquisa, fartamente abordados nos capítulos
anteriores, que são os filmes que dialogam mais fortemente com a tradição e com a teoria do
cinema documentário, campo no qual buscamos delimitar nossas hipóteses e no qual
investimos nossos esforços, amparados por certo instrumental teórico e analítico. De todo
modo, a inclusão desses dois últimos filmes nos permitiu uma análise completa da filmografia
da cineasta.
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CAPÍTULO 1
A vietnamita Trinh T. Minh-ha, radicada nos Estados Unidos desde os anos 1970,
tem atuado proficuamente em diversos campos do conhecimento, transitando com
desenvoltura entre manifestações artísticas tão diferentes quanto a poesia, a música e o
cinema e, no campo intelectual mais estritamente acadêmico, sua produção se destaca naquilo
que tem sido genericamente chamado de estudos pós-coloniais, abordando temas de interesse
dos estudos culturais, do feminismo, da retórica, da antropologia e do cinema. Com efeito, sua
produção transita entre todas essas áreas do conhecimento, sempre desafiando normas e
convenções historicamente consolidadas, deslocando teorias e epistemologias, provocando
revisões e renovações que colocam tanto seus textos como seus filmes em sintonia fina com
diferentes movimentos de questionamento e problematização de cânones acadêmicos e
artísticos diversos. Consideramos que seus textos e filmes compõem um corpus rico em
densidade intelectual, que desafia limites e paradigmas convencionais das formas expressivas
com as quais ela dialoga, com atravessamentos que evidenciam uma postura ética e estética
que instiga e promove a reflexão acerca dos modos de narração, das relações de poder, das
formas de representação da alteridade, da atitude política e da experiência estética no mundo
contemporâneo.
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Neste capítulo iremos abordar dois tópicos que são muito importantes na
produção de Trinh T. Minh-ha. O primeiro deles é a questão do feminismo, que atravessa toda
sua produção intelectual e artística, sendo um dos aspectos mais importantes na configuração
de sua postura crítica e, também, central em sua produção fílmica, como veremos ao longo
dos diversos capítulos. O segundo tópico é a questão da banda sonora na obra fílmica da
cineasta. Com maior acuidade, buscaremos trabalhar sobre a utilização da voz como estratégia
central no seu cinema.
Uma vez que alguns textos importantes da teoria feminista do cinema dedicaram-
se a problematizar o aparato cinematográfico, entendemos que trilhar esse caminho nos levará
naturalmente em direção ao nosso segundo tópico de interesse, que, como apontamos acima, é
a análise do som nos filmes, mais precisamente as estratégias relacionadas ao uso da voz.
Como veremos, alguns dos textos sobre os quais apoiaremos nossa argumentação foram
produzidos nesse espectro e sob a luz das questões previamente levantadas pela investigação
na teoria feminista do cinema.
Entretanto, com o passar das décadas e em sintonia com as disputas e avanços do movimento
feminista, algumas cineastas exemplares foram responsáveis por trabalhos importantes para
inserir no campo da produção artística as questões relevantes para as mulheres e também para
problematizar a produção artística de um ponto de vista feminino. O caminho para que
algumas mulheres pudessem assumir posições de comando na produção cinematográfica,
especialmente na função de diretoras, demandou tempo e avanços dentro da indústria do
cinema. Geralmente ocupando lugares secundários nas produções, em posições consideradas
mais adequadas ao que seria o papel da mulher (são conhecidos os casos das mulheres
montadoras, cuja função evocava uma associação com o ato de costurar típico de uma ideia
pré-concebida de certo universo doméstico feminino) ou em posições cuja visibilidade estava
fortemente marcada por papéis sociais já legitimados pela ideologia dominante (como o lugar
das atrizes no star system), algumas superaram os desafios impostos pelas questões sexistas e
passaram para postos de comando prioritariamente reservados para os homens.
pelas artes performáticas, pela poesia e pelo cinema. Sua atuação estendeu-se ao diálogo com
o campo da antropologia, quando, em 1947, ela foi contemplada com uma bolsa da
Guggenheim Foundation Fellowship que a permitiu realizar três visitas ao Haiti entre 1947 e
1954. De tais visitas resultaram a publicação de um livro, gravações de áudio, a realização de
filmagens da pesquisa sobre os rituais da tradição religiosa haitiana do vodu que deram
origem ao filme Divine Horsemen: the living gods of Haiti, de 1953.
A inglesa Laura Mulvey é uma das principais vozes na teoria feminista do cinema,
com trabalhos incontornáveis em se tratando dessa temática. Seu texto Prazer visual e cinema
narrativo, escrito em 1973 e publicado na revista Screen em 1975, continua sendo uma
referência fundamental para as questões desse interesse, mesmo décadas após sua primeira
publicação. Além de vasta produção de interesse na teoria de cinema, Mulvey também
produziu alguns filmes ao lado de Peter Wollen, com destaque para Riddles of the Sphynx, de
1977, considerado um dos mais importantes filmes experimentais ingleses dessa década. O
trabalho explora questões da representação feminina, o lugar da maternidade dentro da
sociedade patriarcal e relações entre mãe e filha. Cabe notar que Mulvey e Wollen são dois
proeminentes teóricos do cinema, cujo trabalho intelectual emerge nesse período em que a
própria teoria do cinema ainda avançava nos terrenos da investigação acadêmica e buscava
consolidar suas bases e referências.
Para Mulvey
Desta constatação surge o quadro teórico que vai sustentar a consolidação de uma
teoria feminista do cinema, assentada sobre os pilares da investigação do signo, a partir de
contribuições da semiologia, e do inconsciente na representação, a partir de contribuições da
psicanálise. Somado a isso, o interesse em desvendar o aparato cinematográfico é marcado
fortemente pela contribuição de Louis Althusser e sua investigação dos aparatos ideológicos
do estado.
Para Claire Johnston - outra autora fundamental para delinear as bases do que
viria se consolidar como uma teoria feminista do cinema – o cinema feminista deveria propor
um cinema engajado no campo da estética, que utilizasse, crítica e conscientemente, a forma
do filme e explorasse outros modos de articulação entre os diversos elementos que compõem
sua linguagem. Em seu texto Women’s cinema as counter-cinema, publicado inicialmente em
1973, Johnston toca diretamente na questão da forma fílmica como reflexo de uma ideologia.
período histórico em que a teoria feminista do cinema surge. As contendas da arena política
apontavam para o desenvolvimento de uma consciência crítica em relação à forma fílmica em
que esta se configurava como resultado de mentalidades forjadas pelo pensmento “burguês
masculino”, cujos contornos exigiam novas estratégias por parte das diretoras mulheres
quanto ao dispositivo cinematográfico e seus efeitos na audiência.
identidade e raça. Um exemplo dessa vertente é The cool world (1964), que narra de forma
realista as dificuldades de ser um jovem afro-americano crescendo no ambiente urbano das
grandes cidades. A cineasta ganhou um Oscar pelo documentário Robert Frost: A Lover's
Quarrel With the World (1963) e teve filmes que circularam por importantes festivais como o
Festival Internacional de Veneza.
Retornando a exemplos de cineastas que têm relação mais direta com as questões
feministas no cenário norte-americano, podemos citar o caso de Su Friedrich, cujos filmes
transitam entre estratégias do cinema narrativo, do documentário e do experimental, com
trabalhos que refletem sobre sua vida pessoal e, abordam temas relacionados ao universo
feminino desde uma perspectiva homossexual, mantendo um produção regular desde o final
da década de 1970 até os dias atuais. Podemos citar entre seus trabalhos mais importantes The
Ties that Bind (1985), um documentário sobre sua mãe, que emigrou da Alemanha para os
Estados Unidos, tendo crescido sob o regime nazista e os horrores da guerra; Sink or Swin
(1990), um filme sobre questões da sua infância que moldaram o modo de ver as relações
familiares, a paternidade e as relações de trabalho e lazer, a partir das memórias e eventos
relacionados a um pai ausente e a conformação de seu lado afetivo; Hide and seek (1996), um
filme sobre a homossexualidade na adolescência vivida na década de 1960, elaborado a partir
da utilização de estratégias ficcionais, articulação de material de arquivo – filmes científicos e
educacionais – e lembranças pessoais.
No cenário europeu, por sua vez, temos o caso seminal da cineasta francesa Agnès
Varda, que tem vasta e importantíssima produção, desde o final dos anos 1950. Seus filmes
iniciais são associados à Novelle Vague, passando para uma produção extensa com trânsito
frequente entre o cinema narrativo e o documentário, com diversos exemplos de filmes
inovadores na maneira como relacionam a esfera privada com a esfera pública em estratégias
ensaísticas que problematizam o documentário de um ponto de vista da experiência pessoal da
cineasta. Outro nome europeu importante de ser lembrado é o da cineasta belga Chantal
Akerman, que também tem filmes importantes, tanto no campo do cinema narrativo como no
campo do documentário. Nesse segundo caso, com filmes mais afeitos a discutir as temáticas
feministas.
modo poético e pessoal de locução em voz over, algo ampliado em seus últimos
documentários, como é o caso de Les glaneurs et la glaneuse (2000), onde a diretora assume
uma visão em primeira pessoa para refletir sobre o ato de catar ou recolher (batatas, imagens),
imbricando a experiência pessoal com a experiência pública. Entre outros casos de interesse,
Chantal Akerman, por sua vez, dirigiu o filme News from home (1977), no qual utilizou a
locução em voz over de modo central para realizar um filme intimista rememorando cartas
trocadas com sua mãe. Ao fazer isso, estabelece relações entre a experiência privada e o
espaço público de modo bastante poético e original, construindo, através do cinema, uma
ponte entre Nova York e Bruxelas.
audiência com o realismo cinematográfico. Nesta relação entre voz e corpo, as possibilidades
criativas desse encontro ficam sacrificadas e o som adquire mero caráter de reprodução, na
qual a voz necessita estar ancorada em um determinado corpo e este em um determinado
espaço para reforçar o efeito mimético de um realismo cinematográfico.
9
No sexto capítulo desta pesquisa, na análise do filme Naked Spaces, também fazemos referência a essa questão
da diferenciação entre voz off e voz over.
34
ainda mais poderosa em silêncio. A solução então não é banir a voz, mas
construir outras10 políticas. (DOANE, 1983, p. 471)
Em outro texto, intitulado “Ideology and the practice of sound editing and
mixing”, publicado em 1980, Mary Ann Doane trata das questões ideológicas do aparato
cinematográfico relativos à edição e à mixagem do som no cinema de modo mais amplo e não
apenas em relação ao uso da voz. Nesse trabalho ela reforça os argumentos sobre o uso
normativo do som no cinema hegemônico de ficção, mas chama a atenção para uma questão
problemática que pode emergir na relação do som com a imagem.
10
Ênfase do original
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e as fronteiras entre disciplinas e práticas expressivas. Além disso, seu percurso criativo
revela um diálogo profícuo entre a teoria e a produção artística. Seus filmes foram objeto de
interesse da teoria feminista do cinema e ajudaram a moldar seus argumentos em um diálogo
de mão dupla que se estabeleceu entre a artista, que, informada pela teoria, incorporou a
reflexão sobre as políticas da representação em suas obras. No mundo acadêmico, suas
proposições conceituais e a grande variedade da sua expressão artística sugerem modos
instigantes de se repensar o empreendimento teórico.
Tal uso da banda sonora acabou tornando-se uma das forças estéticas do filme. O
caráter disjuntivo da montagem de Reassemblage e de Naked Spaces nos remete diretamente
ao princípio da continuidade visual, da transparência e da identificação, que são aspectos
centrais para o cinema narrativo, mas que são também buscados pelo cinema de cunho
etnográfico convencional, por exemplo, seara com a qual estes filmes da diretora dialogam
claramente. Com este princípio o filme desnaturaliza a representação dos corpos, do espaço e
da ação que registra no Senegal, chamando a atenção para a política da representação e não
para o tema. Ao assumir a disjunção como princípio narrativo radical, Reassemblage
posiciona-se de modo a questionar as presunções dos modelos convencionais de cinema,
especialmente dos modelos clássicos de documentário. Seguindo o pensamento de Mulvey
(1977), trata-se de um exemplo contundente de que um cinema de vanguarda estética e
política só pode existir enquanto contraponto ao modelo hegemônico.
11
Para entrevistas mais focadas nos três primeiros filmes da diretora ver Framer Framed (1992)
40
O uso de música pré-gravada aparece em The Fourth Dimension (2001) e Night Passage
(2004)
Passando para a dimensão do som, vamos nos dedicar ao tema a partir de dois
aspectos: os sons gravados em campo e utilizados de modo não sincrônico com a imagem na
montagem, e a utilização de músicas.
O primeiro caso, dos sons não-sincrônicos, está mais fortemente presente nos dois
filmes iniciais da cineasta, mas em menor escala também aparecem nos demais. Nos casos
dos filmes realizados na África, os sons registrados em campo são utilizados de modo a
compor uma sonoridade rítmica, afastando-se de uma função que poderia ser ilustrativa ou de
contextualização. Temos sons de trabalhos manuais, como o pilar do alimento pelas mulheres,
sons de insetos, de falas, cantos de trabalho e cânticos rituais. Entretanto, nenhum deles se
oferece como suporte para a imagem, sendo trabalhados de forma autônoma. Mesmo quando
os sons são relativos à imagem, como no caso das mulheres que estão trabalhando no pilão, o
som não é sincrônico e o que prevalece é o ritmo da montagem, da articulação entre imagem e
som, e não a ilustração ou a descrição, seja da imagem em relação ao som ou vice-versa.
Nesses casos, os sons são trabalhados como na música concreta, ou seja, uma composição
41
Logo no início do filme, quando Kyra sai do seu local de trabalho, temos a
primeira situação onde a música está sendo interpretada diretamente na cena, como parte da
diegese. Kyra sai de bicicleta do galpão onde trabalha. O som da flauta começa. Ela cruza
com um homem e uma mulher, que estão por ali em frente ao galpão, sentados. A música da
flauta tocando uma melodia. O homem chama Kyra, que retorna ao encontro deles. A câmera
acompanha Kyra em uma panorâmica horizontal e enquadra os três no plano: Kyra, o homem
e a flautista. Kyra e o homem começam a conversar sobre problemas, sonhos e os caminhos
da vida. A flautista toca seu instrumento pontuando o diálogo entre os atores. O plano
permanece o mesmo, sem decupagem. Os três em cena simultaneamente. Após a conversa,
Kyra levanta-se e caminha para a bicicleta, a câmera a acompanha em uma panorâmica
horizontal, deixando o homem e a flautista fora do quadro. A flautista retoma a melodia que
preenche a cena da saída de Kyra. Em outra cena mais adiante, já dentro do trem que faz a
“passagem noturna”, Kyra, Nabi e Shin encontram-se com dois contadores de história em um
dos vagões. Um deles conta histórias cantando a capella. Mais adiante as três personagens
estão em outro espaço, um ambiente aberto, brincando com cores e formas desenhadas no
chão, quando seguem uma linha colorida fazendo a passagem para outro espaço maior, onde
um baterista está tocando uma bateria eletrônica, sendo acompanhado por um percussionista.
Algumas pessoas sentadas ao redor assistindo. Novamente sem decupagem, apenas um plano
de câmera. Neste caso o plano começa fechado no baterista e vai se abrindo em zoom out,
incluindo todos em cena. Kyra brinca com uma bola metálica dançando ao som da música.
Nabi passeia de patins, em movimentos circulares ao redor. Shin brinca com o projetor de luz.
Lentamente as personagens vão saindo do quadro, no que são acompanhados pela câmera em
uma panorâmica lateral, até chegarem a uma figura humana desenhada no chão com pontos
luminosos. O som da bateria e da percussão permanece. A última cena que apresenta música
inserida na diegese acontece em uma sala de jantar, local em que as personagens
confraternizam com algumas pessoas à mesa. Ao chegar à sala, as personagens recebem
captadores que são colocados no rosto. Ao fundo temos um grupo de música eletrônica
experimental, com uma série de equipamentos eletrônicos ligados. Os músicos vão compondo
em interação com a cena, incorporando os sons gerados pelos captadores do rosto de cada
ator. Movimentos físicos se transformam em sons manipulados eletronicamente dentro da
própria diegese do filme.
Love, the Fourth Dimension e Night Passage. O trabalho do grupo resulta de uma
improvisação bastante livre, utilizando instrumentos adaptados, como o piano ‘preparado12’,
nos moldes dos instrumentos de músicos de vanguarda como John Cage. O trabalho com este
grupo é baseado na improvisação e busca trazer para o campo sonoro a mesma liberdade e
inventividade almejada no campo visual. O grupo trabalha de modo bastante experimental,
sem seguir estruturas musicais definidas, como seria esperado de uma música no sentido
convencional. Como um grupo de vanguarda tampouco vê limites entre o que é ruído e o que
é música, abusando das sonoridades dissonantes. Para R. Murray Schaffer, um importante
teórico no campo musical,
1.4.2 A voz
12
Objetos estranhos ao piano são inseridos nas cordas do piano, como parafusos e moedas, a fim de obter novas
e inusitadas sonoridades
13
Exposições mais detalhadas de observações sobre o uso da locução em seus filmes estão desenvolvidas no
sexto capítulo desta tese, dedicado às análises fílmicas.
44
Vamos recorrer a Mary Ann Doane, buscando seus argumentos em favor daquilo
que chamou de a política da voz, no texto “A voz no cinema: a articulação de corpo e
espaço”. Para a autora, o documentário clássico trabalha para confinar a voz over em uma
única voz, que ao lado da sincronização entre imagem e som, atua como forma de buscar
obter um efeito homogeneizante, de unidade. Como já vimos em diversas passagens, o que
interessa para Trinh T. Minh-ha é trabalhar na multiplicidade, buscar a diferença na
multiplicidade. Esta busca pode ser traduzida em seus diferentes filmes nas estratégias de
locução adotadas, por exemplo no uso de duas vozes distintas, como em Shoot for the
contents, ou mesmo três vozes distintas, como em Naked Spaces. “Isto implica não apenas
aumentar o número de vozes, mas radicalmente mudar o relacionamento delas para com a
imagem, efetuando uma disjunção entre som e significado, fazendo prevalecer aquilo que
Barthes define como o’grão’ da voz sobre e contra sua expressividade ou poder de
representação.” (DOANE, 1983, p.472-473)
Em último lugar, devemos ressaltar que nos filmes de Trinh T. Minh-ha a locução,
mesmo quando não é feita por ela própria, é carregada de sotaque. Nos filmes da cineasta
praticamente todas as locuções em voz over são em inglês. Com excessão das duas entrevistas
de Shoot for the Contents e de alguns outros personagens aqui e ali, quase sempre são
mulheres que falam. Em praticamente todos esses casos o inglês não é a língua materna de
quem fala e as vozes são frágeis e delicadas. Desse modo, as vozes carregam dois elementos –
sotaque e fragilidade - que perturbam as normas daquilo que o modelo convencional
normatizou como sendo esperado do recurso da locução em voz over: a locução masculina, de
voz grave e assertiva. Para Barthes (1977), a voz não é pessoal, não é original, porém ao
mesmo tempo é individual: ela tem um corpo que ouvimos, que não tem identidade civil, não
tem personalidade, mas tem mesmo assim um corpo separado. Acima de tudo, a voz carrega
diretamente o simbólico, acima do inteligível, o expressivo.
Pela voz há a afirmação da diferença de seu cinema, protagonizado por mulheres, não
raro em situações de deslocamento, de diáspora, que refletem a experiência intercultural a
partir dos intervalos e dos cruzamentos entre culturas, lugares e instâncias de poder.
45
CAPÍTULO 2
TRINH T. MINH-HA:
Tradition14, organizado por Lewis Jacobs, publicado em 1971, o livro Non-fiction Film: a
critical history, de Richard Barsam, de 1973, e o livro A History of the Non-fiction Film, de
Eric Barnouw, publicado em 1974, trabalhos que foram fundamentais para a compreensão do
que se convencionou chamar a tradição do documentário. A interseção entre o cinema e as
ciências sociais, tema que particularmente nos interessa para pensar os filmes de Trinh
T.Minh-ha, tem no livro Principles of Visual Anthropology, organizado por Paul Hockings e
publicado em 1974, um marco por reunir artigos e ensaios que se debruçam sobre assuntos
pertinentes ao documentário de cunho antropológico, com questões relativas à
problematização da representação da alteridade, a relação entre cineasta e sujeitos filmados e
a relação do cinema com a pesquisa etnográfica.
Na década de 1980 temos o período que é marcado por certo adensamento nos
estudos teóricos sobre o cinema documentário, com destaque na produção anglo-saxônica
para o livro Ideology and the Image: social representation in the cinema and other media, de
Bill Nichols, publicado em 1981, que reúne artigos escritos em diferentes períodos e sobre
temas que vão do cinema narrativo de ficção ao filme etnográfico. Nele podemos notar por
parte do autor um interesse crescente relativo ao cinema documentário, evidenciado na
organização interna da obra, que conta com três capítulos dedicados a esse domínio
cinematográfico.15 Tal interesse se concretizaria na publicação pelo mesmo autor de outras
obras fundamentais para a teoria do cinema documentário nas décadas seguintes, com os
livros Representing Reality (1991), Blurred Boundaries: questions of meaning in
contemporary culture (1994) e Introduction to Documentary (2001). A esses trabalhos de
Nichols, devemos unir o livro Theorizing Documentary, organizado por Michael Renov em
1993, como exemplo cabal de que os estudos de cinema estavam consolidando um corpus
teórico específico, que avançava nas questões pertinentes aos domínios do filme de não-
ficção, considerando suas especificidades e diferenças em relação aos cânones do cinema
narrativo de ficção.
14
No caso de livros que não foram traduzidos para o português, optamos em manter a grafia da publicação
original. Os livros que foram traduzidos para o português estão grafados com o título do lançamento comercial
no Brasil. O mesmo vale para os títulos dos filmes.
15
Capítulo 6 – The documentary film and principles of exposition; capítulo 7 – Frederick Wiseman’s
documentaries: theory and structure e capítulo 8 – Documentary, criticism, and the ethnographic film.
47
posição peculiar. Consideramos que tal peculiaridade reside no fato de Trinh T.Minh-ha
sempre ter ocupado um espaço próprio entre a teoria e a prática cinematográficas,
constituindo-se como uma presença que conjuga indistintamente ambas as atividades; uma
posição polivalente, situada em um intervalo, um interstício, existente entre as polaridades
típicas dos protocolos das áreas por onde Minh-ha transita. Em seus filmes e textos teóricos -
poderíamos dizer seus ensaios audiovisuais ou escritos - notamos o movimento dialógico
entre os polos, perceptível em sua teoria atuante e em sua prática reflexiva, de modo que
disciplinas acadêmicas, gêneros cinematográficos e formas expressivas são provocados em
seus limites e convenções.
Para manter a relação da linguagem com a visão aberta, alguém teria que
tomar a diferença entre ambos como a própria linha de partida para discurso
e escrita, mais do que um obstáculo lamentável a ser superado. O intervalo,
mantido criativamente, permite que as palavras coloquem em movimento
energias adormecidas e ofereça, como impasse, a passagem de um espaço
(visual, musical, verbal, mental, físico) para outro. (1999, p.xi)
16
Reassemblage seria objeto de nova e mais aprofundada análise desenvolvida por Nichols para explorar seu
modo reflexivo de documentário no livro Introduction to documentary (1991)
49
vem antes e outra que vem depois. Há simultaneamente uma atividade artística provocadora e
instigante no campo do cinema, e uma prática reflexiva aguda e articulada na produção
intelectual.
2.1 Cineasta-teórica
17
I do not intend to speak about, just speak nearby.
52
18
Burton credita a Bill Nichols “numerosas críticas e sugestões no desenvolvimento desse paradigma”,
resultando em aprimoramento da proposta final. Sobre isso, ver a nota 1 do capítulo Toward a History of Social
Documentary in Latin America, presente na coletânea The Social Documentary in Latin America (BURTON,
1990)
54
Diary (Marilú Mallet, 1982). Nichols retoma a tipologia proposta por Burton e a desenvolve
em seu Representing Reality (1991), onde ainda trabalha apenas com os quatro modos por ela
já assinalados. Neste seu primeiro esforço em descrever os modos de representação do
documentário, Nichols assim se refere ao modo reflexivo de representação,
19
Itálicos do texto original
57
2.2 Reflexividade
Jay Ruby, antropólogo norte-americano ligado aos estudos do cinema com viés
antropológico e etnográfico, escreveu sobre a reflexividade no cinema documentário, com
foco mais propriamente no que ele denomina de cinema antropológico, em textos publicados
desde meados da década de 1970 e que circularam em versões revistas posteriormente,
inclusive em publicações ligadas aos estudos de cinema, especificamente dedicadas ao
documentário. Seu texto “The Image Mirrored: reflexivity and the documentary film”,
publicado inicialmente no Journal of the University Film Association, em 1977, foi
republicado posteriormente na coletânea New Challenges for Documentary, organizada por
Alan Rosenthal e John Corner, em 1988. O texto “Exposing Yourself: reflexivity,
anthropology, and film”, publicado inicialmente em 1980, foi revisto e republicado em 2000,
na coletânea Picturing Culture: explorations of film and anthropology, que reuniu textos de
sua autoria. Ambos os textos são próximos entre si e apresentam pequenas variações e
58
revisões dos argumentos, sem maiores novidades entre as versões, sendo a publicada em 2000
a mais desenvolvida.
Para Ruby,
Esta passagem permite ver como Ruby estava informado sobre as questões
emergentes acerca da autoconsciência do antropólogo como alguém que agencia uma prática
de sentido relativa a alteridade. Uma condição que deveria ser evidenciada em favor de uma
prática reflexiva, adequada a questões epistemológicas importantes da disciplina naquele
momento, de modo que essa disciplina pudesse legitimar seus processos como científicos.
Tais preocupações avançavam desde a década de 1950 e teriam no seminário Writing Culture
(1982) um ponto culminante para colocar a chamada “virada linguística” em evidência na
antropologia, reunindo argumentos em favor da problematização dos processos da escrita
etnográfica, enaltecendo seu caráter estético e poético. Voltaremos a este tópico mais adiante.
ir além, como faz Williams, em direção a uma etnotopia que não abolirá a
experiência, o corpo e o conhecimento do seu ventre, mas os afirmará.
(1994, p.69)
deixar clara sua postura de falar próximo, uma postura ética que será traduzida decisivamente
na estética do filme. Situada justamente na abertura, essa passagem tem em si a potência de
uma declaração de princípios definidora de um lugar de discurso sobre a alteridade, lugar esse
que está longe de ser convencional. Trata-se de uma postura alinhada a essa parcela de mundo
com a qual ela irá entreter sua experiência fílmica. De algum modo, a cineasta está ela própria
posicionada no eixo dessa parcela que, definida como subdesenvolvida por força dos
discursos hegemônicos, tornou-se objeto de descrições que ignoram suas especificidades em
favor de generalizações e objetificações. Ao buscar falar próximo – e não sobre ou em nome
de -, a cineasta relativiza seu discurso de modo a refletir sobre as posições de autoridade
tipicamente encontradas nas representações tradicionais da cultura. Assim como nesse filme,
temos no livro Woman, Native, Other – writing postcoloniality and feminism, publicado por
Minh-ha em 1989, uma importante contribuição surgida nesse momento de evidência de
movimentos de renovação nos estudos culturais, propondo novos problemas e novas
interpretações para temas como a questão da identidade, do feminismo e da etnicidade.
No âmbito dos estudos de cinema Trinh T. Minh-ha tem, como já vimos, sua
produção cinematográfica frequentemente associada à categoria da reflexividade. Para ela,
20
Nestas aspas Trinh cita RUBY, Jay. “Exposing Yourself: reflexivity, anthropology and film”.
65
Aqui, Minh-ha deixa clara sua crítica em relação à postura que elenca
procedimentos técnicos ou narrativos que são tomados como meios de legitimar a
reflexividade como instância científica central tornando-a uma camisa de força ou um
maneirismo, destituindo-a de dimensão crítica ou, mais precisamente, desvinculando-a de
uma posição autocrítica. Segundo seus argumentos, a reflexividade, desse modo, serve como
mais um instrumento para coletar e categorizar, autorizando o sistema que compreende as
forças e autoridades do discurso a exercerem sua prerrogativa de representação da cultura de
um lugar construído como legítimo para tal. Segundo ela,
Tendo em vista muito do que já foi apresentado até aqui em relação ao cinema de
Trinh T. Minh-ha, não é difícil notar como os pressupostos com os quais ela trabalha estão
adequados à vertente pós-estruturalista. Isso pode ser respaldado pela seguinte colocação de
Ramos, que toca em um dos pontos centrais relacionados ao seu cinema, que é a questão da
reflexividade, tema sobre o qual trabalhamos mais acima neste capítulo.
Como se sabe, Michael Renov é, ao lado de Bill Nichols, um dos expoentes dos
estudos de cinema documentário na academia anglo-saxônica na vertente pós-estruturalista.
Seu nome está diretamente ligado aos principais eventos dedicados ao gênero e sua
contribuição pode ser percebida fortemente pelo trabalho junto à coleção de livros da Visible
Evidence, série que ele coorganiza como resultado dos eventos homônimos dedicados aos
estudos do documentário. Além desse trabalho que tem resultado em uma importante
institucionalização desse campo de estudos, Renov tem uma proposição muito interessante
69
para pensar a tradição dessa seara cinematográfica, que consideramos a mais produtiva para a
análise da produção fílmica de Trinh T. Minh-ha. Renov trabalha com a noção de modos,
modalidades ou funções do documentário, que podem ser identificados por certas linhas de
força que podem ser pensadas de forma isolada ou conjugada, fornecendo um instrumental
eficiente para se pensar filmes que são formalmente instigantes e que se utilizam de
estratégias narrativas originais e desafiadoras.
Para Renov, duas intercessões principais poderiam ser suscitadas entre esses
locais: uma que se dá na passagem do “real” histórico para o pró-fílmico, ou seja, que se dá
no ato da filmagem – o que inclui a relação entre câmera e sujeitos filmados – e a passagem
para o registro das imagens técnicas. E ele continua, (1986, p.72), “tais questões –
performance para a câmera e os efeitos intrusivos do processo de filmagem – constituem um
locus de mediação, uma fonte em potencial de intercessão dentro da identidade tida como
definitiva do comportamento cotidiano e o material pró-fílmico.”
Para Renov, a evolução estética do gênero é marcada por essas modalidades, modos
ou funções. Acreditamos que esta noção de uma poética do documentário pode ser muito útil
para nos oferecer ferramentas para posicionar os filmes de Trinh T. Minh-ha como elementos
destacados de trabalhos que se constroem decisivamente em uma outra relação entre ética e
estética, que não a tipicamente evidenciada nos modos convencionais de representação da
realidade.
72
CAPÍTULO 3
Sabemos que as relações entre o cinema e a antropologia têm uma longa história.
Conforme já registrou Marc Henri Piault, o processo histórico das sociedades centrais do
ocidente no final do século XIX, com as diversas invenções e inovações tecnológicas
surgidas, aliadas a uma nova ideologia científica, de práticas acumulativas e analíticas,
colocam este como um “século de convergências incríveis” (2002, p.15), convergências estas
que nos levam a observar uma série de paralelismos entre cinema e antropologia, presentes
desde seus marcos de origem. O autor destaca o ano de 1888 como o de várias
simultaneidades importantes. Nesse ano, Franz Boas, crítico dos determinismos biológicos e
73
O terceiro par de análises aproxima dois grupos distintos. Por um lado o grupo de
antropólogos liderados por Radcliff Brown e, por outro, o grupo de cineastas liderado por
John Grierson. Nesse período histórico, por volta de 1930, já temos a completa separação do
que se convencionou chamar de cinema documentário e do que se definiu como etnografia
científica, cada qual com seus métodos e práticas profissionais já estabelecidos, entretanto,
compartilhando uma abordagem semelhante sobre a sociedade, onde a ênfase está nas ações
das pessoas em prol de um bem coletivo, suprimindo sua individualidade.
Ainda quanto à relação entre cinema e antropologia, Piault enfatiza que o cinema
se
75
21
Nesta pesquisa utilizaremos as definições de etnografia e antropologia tal como as definiu Levi-Strauss,
segundo quem “a etnografia consiste na observação e análise de grupos humanos tomados em sua especificidade
(muitas vezes escolhidos entre os mais diferentes do nosso, mas por razões teóricas e práticas que nada têm a ver
com a natureza da pesquisa), visando a restituição, tão fiel quanto possível, do modo de vida de cada um deles. A
etnologia, por sua vez, utiliza de modo comparativo (e com finalidades que haveremos de determinar adiante) os
documentos apresentados pela etnografia. Com essas definições, a etnografia assume o mesmo sentido em todos
os países, e a etnologia corresponde aproximadamente ao que se entende, nos países anglo-saxões (em que o
termo etnologia está caindo em desuso), por antropologia social e cultural (sendo que a antropologia social se
dedica basicamente ao estudo das instituições consideradas como sistemas de representação, e a antropologia
cultural ao das técnicas, eventualmente também das instituições, consideradas como técnicas a serviço da vida
social)” LEVIS-STRAUSS, Claude, in: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 14.
76
uma linha diretiva de como tal processo deveria se dar. Uma experiência seminal no uso das
imagens técnicas no trabalho de campo do antropólogo, “que deu origem à primeira pesquisa
antropológica a se servir sistematicamente da fotografia e do cinema como instrumentos tanto
na coleta de dados quanto na divulgação de seus resultados” (FREIRE, 2012, p.129), foi
aquele conduzido por Margaret Mead e Gregory Bateson, em Bali, que resultou na publicação
do livro Balinese Character: a photographic analysis, publicado em 1942. Para Marcius
Freire,
Para levar a cabo essa pesquisa, seus autores deixaram de lado os caminhos
tantas vezes trilhados da narrativa escrita na descrição etnográfica e se
dedicaram a “mostrar” aquilo que estavam estudando ao mesmo tempo em
que comentavam e complementavam o que mostravam. (2012, p. 140)
Os anos 1950 são um marco decisivo para compreender o movimento que levou a
antropologia enquanto disciplina a problematizar seus métodos de trabalho de campo, agora
desenvolvidos em novos e mais próximos territórios de pesquisa e com realidades culturais
complexas, emergentes desde o segundo pós-guerra e marcados pela descolonização de países
africanos, entre outros movimentos importantes. Um nome a se destacar nesse contexto é o de
Clifford Geertz, considerado um dos fundadores de uma vertente na antropologia conhecida
como Antropologia Interpretativa, que se dedica a estudar a cultura como sistema simbólico.
disciplina. Seu filme Os mestres loucos (1955), sobre um ritual de possessão conduzido pelos
Hauka, em Accra, na Costa do Ouro, África Ocidental, foi o primeiro de sua filmografia a
causar impacto tanto nos meios acadêmicos como nos cinematográficos, com recepção
contraditória entre esses campos.
Rouch foi um dos mais notáveis cineastas a produzir nas fronteiras entre a arte e a
ciência, provocando os limites dessas diferentes formas expressivas sem impor convenções a
priori, de modo a garantir a liberdade que a experiência da filmagem poderia oferecer e,
dando espaço para o subjetivo em lugares onde se presumia o objetivo como princípio
normativo. Em outros importantes filmes, tais como Eu, um Negro (1958), Crônica de um
verão (1959) e Jaguar (1964), por exemplo, o cineasta vai explorar os elementos da
imaginação e da fabulação, seus e de seus personagens/colaboradores, como linhas de força
no processo de representação cultural, utilizando estratégias fílmicas de abordagem que
promoviam o encontro intercultural, a reflexão sobre a alteridade e a etnografia sobre novas
bases, com novos meios, em um mundo que passava por transformações. Em Rouch
encontramos um defensor ardoroso e um pioneiro ousado do cinema como meio original de
investigação da realidade.
Arrisco-me a dizer que mais do que nunca palavras, faladas e escritas, foram
usadas para disputar o valor, recusar fundos e rejeitar esses projetos mais do
que os próprios esforços para conduzí-los. Departamento após departamento
e projeto de pesquisa após projeto de pesquisa falharam em incluir filmagens
e insistem em continuar o desesperadamente inadequado tomar notas de uma
era anterior, enquanto o comportamento que o filme poderia ter capturado e
preservado por séculos (preservado para o júbilo dos descendentes daqueles
que dançaram um ritual pela última vez e para a iluminação de futuras
gerações de cientistas das humanidades) desaparece – desaparecem bem em
frente aos olhos de todos. Por quê? O que há de errado? (1974, p. 4-5)
79
Trinh T. Minh-ha teceu críticas severas aos cânones da antropologia que não passaram
incólumes, acusada de ter uma leitura bastante superficial da teoria antropológica e de fazer
críticas descontextualizadas em seus filmes. Para Alexander Moore, Trinh T Minh-ha
considera a antropologia como uma prática masculina, “mas ela ignora uma antiga e pioneira
tradição de mulheres antropólogas, e essas gigantes ancestrais recentes como Ruth Benedict e
Margaret Mead” (p.77, 1990). Focando suas críticas nos trabalhos teóricos de Trinh T Minh-
ha, ele considera que seus textos são como performances escritas. “Não são elaborados para
serem levados a sério, dissecados e debatidos nos moldes da civilização central, questão por
questão de modo a render algum julgamento. Mas há questões levantadas, implícita e
explicitamente” (MOORE, p.77, 1990).
Com a análise de que o trabalho escrito de Trinh T. Minh-ha não se adequa ao que
seria um modelo de crítica de uma certa civilização central, Moore levanta um dos pontos
centrais no trabalho da autora, que, por um lado, está na raiz da originalidade de seu
pensamento e, por outro, na base das críticas que recebe. Ao observar o percurso de formação
intelectual da autora, notamos a importância de uma formação multicultural, desde sua origem
no Vietnã, com passagens pela França, Estados Unidos e Senegal, para a consolidação de uma
postura de impureza radical, forjada por estudos em diferentes áreas do conhecimento, como
os estudos literários, a antropologia, o cinema, os estudos de gênero e os estudos culturais.
Desse lugar híbrido, entre-áreas, surgem seus argumentos críticos em relação a estruturas
canônicas, destacadas como equivocadas e antiquadas em seus textos. Aqui devemos pensar
81
categoria como “um termo expandido no qual ‘cultura’ é representada de muitas perspectivas
diferentes, fragmentadas e mediadas.” (RUSSELL, 1999, p. xii). Para ela,
Trinh T. Minh-ha tem sido uma das mais proeminentes cineastas entre casos
recentes que emprega uma prática radical de cinema em um meio
especificamente etnográfico. Suas críticas escritas das convenções da
objetividade etnográfica foram catalisadoras no repensar e na renovação da
prática do documentário. A crítica mais convincente de Trinh em relação ao
filme etnográfico está no modo em que ele implica uma divisão do mundo
entre aqueles ‘lá fora’ (os temas da etnografia) e aqueles ‘aqui dentro’ (na
sala de cinema, olhando para eles). Ela argumenta que as premissas da
verdade e veracidade do documentário perpetuam uma dualidade cartesiana
entre mente e matéria na qual o Outro é objetivado e o cineasta e sua
audiência são os sujeitos da percepção. Uma concepção mais fluída de
realidade é necessária para transcender esse paradigma, uma na qual o
significado não esteja ‘fechado’ mas no qual a representação liberte-se e
possa evadir. É a alteriadade da realidade mesma que argumenta ela, deve
ser reconceitualizada, embora ofereça poucas dicas de como isso pode ser
colocado na prática (do cinema). (1999, p.4).
Apesar de destacar Trinh T. Minh-ha como sendo uma cineasta que pratica uma
relação importante entre a teoria social e a experimentação formal, curiosamente, Russell não
se debruça especificamente sobre nenhum filme da diretora para desenvolver suas análises
fílmicas e sustentar sua argumentação relativa ao conceito de etnografia experimental no
cinema. Ao invés disso, opta por abordar filmes diversos mais diretamente associados à noção
84
de cinema experimental em suas diversas facetas, desde Eadweard Muybridge até Bill Viola,
passando por filmes de Luís Buñuel, Chantal Akerman, Jonas Mekas, Maya Deren e Peter
Kubelka, entre outros.
Segundo Russell, Trinh T. Minh-ha é uma das cineastas que mais se destaca no
desenvolvimento de uma prática de cinema radical com contornos especificamente
etnográficos, desenvolvendo em seus filmes críticas severas às formas de representação
cultural, denunciando discursos que defendem uma pretensa objetividade e lógica cartesiana,
que não seriam capazes de dar conta da complexidade da multiplicidade de formas de vida
social que procuram explorar.
No campo dos estudos de cinema, ainda hoje, o filme Reassemblage segue sendo
um exemplo destacado de trabalhos que apostam na reflexão crítica sobre a representação
cultural no audiovisual, ou mesmo na dificuldade desta representação se dar de modo objetivo
85
ou avalizado por critérios de cientificidade, como os desejados por certas vertentes do campo
do cinema etnográfico, desejosas de que as práticas fílmicas de representação cultural
respondam a critérios próprios ao campo da antropologia escrita mais tradicional.
Essa posição polivalente ocupada pela cineasta-teórica à qual temos nos referido
aqui nesta pesquisa pode ser percebida não apenas em relação a atividades distintas nos
campos da prática artística e da atividade intelectual, mas também, e especialmente, entre
áreas de conhecimento. Um dos movimentos recentes no campo epistemológico que tem
ressonância das discussões que estamos apresentando aqui, e em relação ao qual Trinh T.
Minh-ha pode ser situada como uma referência seminal, pode ser percebido na confluência
entre os campos da antropologia e da arte, notadamente em casos de práticas artísticas
experimentais que se valem de metodologias vindas do campo das ciências sociais.
Podemos dizer que este movimento de aproximação entre arte e antropologia tem
relação com o já citado Seminário Writing Culture, tão presente aqui em nossa pesquisa,
ainda que os efeitos do Seminário tenham afetado mais diretamente o domínio da escrita
etnográfica, sem exercer muita influência na esfera da antropologia visual. Para Arnd
Schneider, um antropólogo que tem se dedicado a estudos na confluência entre a arte
experimental e a antropologia,
Um dos livros que reuniu textos que propunham, de diferentes pontos de vista,
uma aproximação produtiva entre a teoria da arte e a teoria antropológica foi o The Traffic in
Culture: refiguring art and anthropology, organizado por George Marcus e Fred Myers,
publicado em 1995. Praticamente dez anos após o Seminário ocorrido no Novo México,
novamente George Marcus está associado a um esforço em ampliar as fronteiras e a
porosidade da teoria social para que se abra em diálogo com outras áreas. Nos anos seguintes
Marcus ainda estaria vinculado a diversos outros trabalhos que reuniram textos que
atravessavam as áreas da antropologia e da arte, constituindo um esforço de transversalidade
disciplinar, apontando possibilidades de repensar paradigmas e encontrar novos caminhos
metodológicos para as disciplinas.
Um dos conceitos centrais para abordar a discussão recente surgida nesse cenário
é o de virada etnográfica, surgido no texto “O artista como etnógrafo”, de Hal Foster,
publicado inicialmente em uma versão curta no livro The traffic in culture (1995) e ampliado
para o livro O retorno do real: a vanguarda no final do século XX, do próprio autor. Nesse
texto, Foster elabora sua proposição de interpretar a relação entre prática artística e teoria
cultural a partir da noção de artista como etnógrafo, apoiando-se em Walter Benjamin e seu
texto “O autor como produtor”. Substituindo questões relacionadas a classes sociais e
exploração capitalista presentes em Benjamin por questões de identidade e alteridade
relacionadas ao pós-colonialismo, o autor elabora categorias como “pressuposto realista” e
“fantasia primitivista” para pensar a representação cultural em cenários complexos
emergentes. A grande contribuição de Foster nesse texto é a de problematizar o que ficou
conhecido como a virada etnográfica na arte, conceituação que ganhou certa influência nos
anos seguintes. Foster observa, não sem ironia, que
Ao pensar alguns dos efeitos dessa virada etnográfica sobre o trabalho artístico
Foster destaca que
Esse efeito de “um modo horizontal de trabalhar” identificado por Foster, nos
parece aproximado do aforisma “falar próximo” de Minh-ha. Esse lugar de fala pretendido
pela cineasta se estabelece em oposição aos modelos convencionais, como já insistimos aqui
nessa pesquisa, forjando um outro lugar de fala, um lugar que ocupa um novo intervalo
espacial, que reposiciona sujeito e objeto em uma relação horizontal, sem implicação
hierárquica de poder.
ser percebido nos filmes, voltaremos a esses tópicos mais adiante nas análises fílmicas
específicas no decorrer de nossa pesquisa, mas cabe aqui dizer que podemos notar isso na
montagem fragmentada de Reassemblage, também na fragmentação espacial e de vozes
presentes em Naked Spaces; na descontinuidade das personagens de Surname Viet Given
Name Nam, oscilando entre a história coletiva e a memória pessoal. São casos em que os
filmes e suas estratégias de filmagem representam um mundo a construir, organizado por
meio de uma montagem discursiva. Em outros casos, como na colagem de imagens da China
contemporânea de Shoot for the contents, assim como nas conexões descontínuas entre
tradição e modernidade no Japão em The fourth dimension e por último nas passagens entre
tempos e lugares diferentes de Forgetting Vietnam, temos exemplos de filmes operando
estratégias retóricas em busca de oferecer um mundo a perceber, organizado por meio de uma
montagem de correspondências. Tais estratégias das montagens baseadas na descontinuidade
propostas por Amiel vão ao encontro dos estratagemas apontados por Marcus (1999) como
necessários para que sejam elaboradas novas formas de representação da alteridade e da
experiência cultural, que apontamos mais acima: i) problematizar o espaço; ii) problematizar
o tempo; iii) problematizar a perspectiva/voz; iv) apropriação dialógica de conceitos e
dispositivos narrativos, v) bifocalidade como distância da alteridade e vi) justaposição crítica
e contemplação de possibilidades alternativas na narrativa. Seus filmes são o exemplo
contundente de como o cinema pode ser um meio expressivo singular para elaborar formas
críticas e reflexivas de representação e interpretação do mundo.
Esses tópicos nos parecem muito produtivos para pensar uma prática cinematográfica
que se faz no intervalo entre a antropologia e o cinema. Consideramos que são pontos muito
91
adequados para se pensar a produção fílmica de Trinh T. Minh-ha e a fim de desenvolver essa
hipótese apoiada pelos argumentos de Marcus, passamos a seguir a uma análise fílmica de
Reassemblage.
Trechos do roteiro do filme foram publicados no livro Framer Framed, que reúne
também roteiros de outros filmes da cineasta, além de fotogramas, sketches, storyboards e
algumas entrevistas publicadas anteriormente em revistas acadêmicas ou realizadas por
ocasião de exibições de seus filmes em festivais e universidades. Na ficha técnica de
Reassemblage disponível no livro temos a informação de que a produção é conduzida por
Jean-Paul Bordieur e pela diretora, que, por sua vez, assina sozinha a direção, a fotografia, o
roteiro e a montagem. O coprodutor, Jean-Paul Bordieur, é um parceiro frequente em outras
obras da cineasta. Ele assina a produção de todos os seus filmes, sendo que em Surname Viet
Given Name Nam (1989), Shoot for the Contents (1991) e A Tale of Love (1995) assina
também o desenho de luz. A parceria ainda acontece em livros, fotografias e instalações.
Este foi o primeiro filme em 16 mm realizado por Trinh T. Minh-ha, que havia
produzido alguns curtas-metragens em 8 mm anteriormente. De certo modo, o filme inaugura
uma obra que vai se pautar pela discussão e problematização do lugar de discursos de
autoridade e de poder, com críticas a diferentes disciplinas e formas de representação cultural.
Partindo da realização cinematográfica, com filmes que desafiam as convenções narrativas
hegemônicas das tradições com as quais dialoga (documentário, filme etnográfico,
experimental), em direção aos textos teóricos, sua obra vai manter um diálogo permanente
entre essas manifestações, entre seus filmes e textos, entre a práxis e a teoria. Seu trabalho vai
23
No original: a film by Trinh T. Minh-ha
92
O filme é construído com o uso extensivo de locução em voz over, cujo texto foi
escrito e lido pela própria cineasta. Não há, nos comentários, uma única descrição das
imagens que acompanhamos em tela. A locução é construída com diferentes estratégias, por
vezes assertiva, por vezes evasiva, questionadora ou hesitante. Ela tem uma inflexão bastante
introspectiva, e como resultado final, temos uma narração que convoca o espectador à
reflexão e evoca certa poesia.
no Senegal?” Panorâmica horizontal mostra um caminho entre as árvores, sem niguém à vista.
Aqui chegamos aos dois minutos e trinta e cinco segundos de filme.
Além das repetições de estratégias sonoras que têm uma função rítmica estrutural
no filme, algumas frases e proposições proclamadas pela diretora na voz over se repetem em
diferentes trechos de Reassemblage, não de modo apenas reiterativo ou cumulativo, mas de
forma a provocar no espectador um novo nível de reflexão sobre a questão, uma espécie de
releitura. Elas refletem a postura da diretora em evitar as descrições que definem significados
únicos para os aspectos culturais e sociais observados. Na impossibilidade de produzir um
significado único, fechado, as repetições colocam e problematizam os temas de forma
complexa e diversificada. Por exemplo, próximo ao final do filme, temos o retorno de duas
assertivas que estavam presentes na sequência inicial que descrevemos anteriormente. A
primeira delas é aquela que já nos foi dado mencionar: “Menos de vinte anos foram
suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definissem como
subdesenvolvidas”, que retorna sobre imagens de um garoto negro desnudo, vestindo apenas
dois colares de miçangas bastante grandes para o seu tamanho que se encontra encostado nas
pernas de uma mulher adulta, chorando e carregando uma boneca branca sem pernas e braços.
Após a locução entram sons da ação dos pilões sendo batidos, momento em que o garoto é
95
mostrado chorando. A sequência de imagens apresenta diferentes planos do garoto, que ora
focam a boneca em suas mãos, ora focam o rosto do garoto chorando, são editadas em jump
cut, enfatizando o distanciamento do espectador em relação à cena. Aqui essa locução não é
mais recebida como havia sido no início do filme. Naquele momento ela teve a função de
introduzir genericamente o tema do filme como sendo o de crítica à objetivação dos discursos
sobre a alteridade. Já aqui a crítica se assevera e, na associação com a imagem do garoto,
reflete não apenas sobre a dificuldade na representação de aspectos da vida cultural, mas faz
uma crítica aos danos e resquícios do colonialismo. Imagem e som associados constróem uma
crítica ao empreendimento colonial branco e ocidental do qual os países africanos foram
vítimas.
A segunda assertiva é aquela a que já nos referimos algumas vezes: “Eu não
pretendo falar sobre. Apenas falar ao lado”, praticamente uma afirmação de princípios da
diretora no início do filme, que evita uma posição de poder típica de documentários clássicos,
que se pretendem a falar sobre seu tema. Do mesmo modo, ela não pretende assumir a
96
possibilidade de falar por esse Outro, nem mesmo sugere que o filme possa “dar voz” a esse
outro, postura considerada paternalista pela diretora (Trinh, 1994). Trinh T. Minh-ha busca se
colocar em posição similar àquela do objeto de sua mirada, um lugar que, manifestamente não
seria um lugar de poder ou de autoridade, que ela questiona severamente, mas um lugar de
relação aproximada, de uma relação percebida, que afeta a percepção de quem relata e afeta a
postura de quem é representado nos discursos. Essa assertiva retorna mais ao final do filme,
após algumas sentenças nas quais a diretora questiona os anseios por objetividade, questiona
os discursos que buscam copiar meticulosamente a realidade e ainda as polaridades
construídas em torno do que seria a dificuldade em conciliar criatividade e objetividade. Essa
sequência desenvolve e amadurece uma das questões centrais para a diretora, que é
problematizar as polarizações e os cânones típicos das representações culturais mais
tradicionais, ao passo em que prepara o espectador para receber a assertiva “Apenas fale ao
lado”. Esta agora já é recebida com mais densidade pelo público, que, a essa altura, já recebeu
uma série de imagens e reflexões sobre os efeitos danosos do colonialismo na África, sobre os
problemas das classificações impostas e dos preconceitos, além de críticas sobre a etnologia e
o documentário como meios pretensamente reconhecidos e autorizados a apresentar o Outro.
remetente à mulher, nesta passagem: “Em diversas histórias a mulher é descrita como aquela
que possui o fogo. Apenas ela sabia como fazer fogo. Ela o guarda em diversos lugares. No
final de uma vara que ela usa para cavar o chão, por exemplo. Nas suas unhas ou em seus
dedos.”
Há um elemento em especial que atravessa todo o filme, desde o seu início até seu
final, insistentemente, que perturba especialmente as expectativas convencionais próprias aos
documentários de fatura clássica. São recorrentes os olhares em direção à câmera. Olhares que
impedem qualquer impressão de ilusionismo ou de objetividade. Estes denunciam a presença
da diretora em campo, sem, no entanto, evidenciar tal presença por meio de uma imagem sua.
O que se evidencia é uma relação que está posta. Uma relação assimétrica, pois esta que filma
porta um equipamento que é apontado aos sujeitos que são objeto de seu olhar. Alguém,
exterior àquela situação que observamos pelo filme, está presente e provoca a reação daqueles
sujeitos filmados. Todos olham: homens e mulheres. Velhos, adultos, jovens, crianças. Eles
reagem devolvendo seus olhares, seus sorrisos, sua desconfiança, sua permissão, sua
proximidade, sua adesão e sua indiferença. São olhares que permitem perceber diversos
momentos dessa relação que se estabelece entre cineasta e sujeitos filmados. Há olhares
espontâneos, flagrantes de instantes inesperados, quando o sujeito filmado devolve o olhar
percebendo a câmera que o acompanha silenciosamente. Há olhares deliberados, posados,
quando os sujeitos filmados estão abertamente em relação com a câmera, atuando ativamente
nessa relação.
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102
Ainda que exista essa relação assimétrica, a inclusão desses olhares remetidos
diretamente para a câmera parece confirmar aquela intenção declarada desde o início do filme
de que a diretora pretende “falar ao lado”. Assim, assistimos a uma série de eventos
cotidianos, filmados por alguém que está ali ao lado acompanhando o desenrolar desses
eventos e que não se furta de incluir no filme a reação à sua presença. Ao final, importa mais
o modo como o filme se constrói do que propriamente o tema sobre o qual pretende falar. E
para isso, a devolução dos olhares é fundamental para dar a ver uma relação que revele sua
ética por meio de uma estética politicamente comprometida com princípios e valores
associados ao desvelamento das relações de poder e de exploração usualmente subsumidas
nos discursos hegemônicos. Se quisermos utilizar os termos de Marcus (1999) que apontamos
mais acima, essa remissão do olhar dos sujeitos filmados para a câmera representa a opção da
diretora por uma bifocalidade como distância da alteridade.
desvendem a conversa. Aqui Trinh T. Minh-ha constrói uma passagem que ilustra a ideia de
que qualquer tentativa de tradução seria parcial, uma vez que não poderia dar conta da
complexidade da vida que observa. Enquanto olhamos para a tela preta e ouvimos a
conversação em uma língua que não conhecemos, passamos a nos questionar sobre a
dificuldade de toda e qualquer tradução, pois, não há tradução sem uma recontextualização,
sobretudo se considerarmos a tradução de culturas fortemente centradas na oralidade, com
nuances que vão da conversação para os cantos e assobios até chegar aos gritos. Aqui, as
vozes dos senegaleses deixam de trazer um significado, deixam de relatar algo, que teria sido
recortado e selecionado (por um antropólogo ou cineasta) e passam a figurar apenas como
sonoridade, como ritmo e entonação. A possibilidade da interpretação está descartada em
favor de uma possibilidade de experimentação na mostração da cultura do Outro. A
experimentação de padrões rítmicos, de entonações, de cores, de movimentos.
Drama, de 1977 a 1980, localizados em Dakar, capital do Senegal. Como resultado das
filmagens nos países africanos pelos quais passou, ela finalizou seus dois primeiros filmes. O
primeiro com imagens de áreas rurais apenas do Senegal e o segundo com imagens também
do Mali e de Burkina Faso.
devido a esse trabalho de montagem, mas também pelas assertivas e declarações da cineasta
na locução.
inflexão é sutil e frágil, quase introspectiva, em oposição à “voz cheia e suave em tom e
timbre”. Ademais, seu comentário é feito em inglês, que não é sua língua materna, o que
deixa sua exposição verbal carregada de sotaque. A relação de alteridade entre filmador e
filmado característica do documentário clássico sofre, aqui, um revés, visto que os dois
elementos de mostração do outro são, ambos, Outro.
1) Proposições assertivas – trechos em que a cineasta realiza afirmações enfáticas, que são
importantes para indicar como ela se posiciona em relação ao seu tema e seu objeto, sem as
necessidades de fazer afirmações objetivas para isso, como na passagem inicial, “menos de
vinte anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definissem como
subdesenvolvidas”. Assim, podemos inferir que ela escolheu falar a partir do ponto de vista
dos princípios do pós-colonialismo. O mesmo pode ser percebido nesta outra passagem:
“filmar na África significa para muitos de nós imagens cheias de cores, mulheres de seios
desnudos, danças exóticas e ritos temerosos. O incomum”, afirmação sobre a qual vai
construir uma série de contrapontos visuais no filme para exercer uma crítica sobre a
representação da África encontrada tradicionalmente no cinema.
2) Aforismos – importantes para marcar a postura ética segundo a qual pautou suas decisões
na elaboração do filme. Nesta categoria temos a famosa sentença “Eu não pretendo falar
sobre. Apenas falar próximo”, onde busca fazer uma afirmação de princípios e opor-se ao
típico “falar sobre” das representações culturais tradicionais. Outro exemplo está no trecho:
“documentário porque a realidade é organizada em uma explicação de si mesma”, quando
Trinh T. Minh-ha direciona sua crítica para as formas clássicas de documentários descritivos e
informativos, marcados pela pretensão da objetividade vinda da observação externa ao
processo cultural que está sendo descrito.
estão sendo vistas pelo espectador. Esta opção reforça a postura de enfatizar que a realidade é
mais complexa e intrigante do que é possível conceber em uma descrição ou representação,
seja ela escrita ou visual. Como já vimos, logo no início do filme temos a passagem “em
Enampor, Andre Manga diz que seu nome está listado em um livro de informações para
turistas. Sobre a entrada da sua casa há uma placa escrita à mão que diz ´trezentos e cinquenta
francos´. Um fato antropológico vazio”, trecho que nos leva a refletir sobre a questão da
intersubjetividade presente no trabalho de campo. Em outra passagem, mais adiante, ela
descreve a seguinte cena: “um etnólogo e sua esposa ginecologista voltaram por duas semanas
a uma vila onde eles realizaram trabalho de campo no passado. Ele se define como uma
pessoa que ficou bastante tempo na vila, tempo o suficiente, para estudar a cultura de um
grupo étnico. Tempo, conhecimento e segurança. `Se você não ficou tempo suficiente em um
lugar você não é um etnólogo`, ele diz. Mais tarde ao anoitecer, um círculo de homens se
reúne em frente à casa onde o etnólogo e sua esposa ginecologista estão. Um dos aldeões está
contando uma estória, outro está tocando música em seu alaúde improvisado, o etnólogo está
dormindo ao lado do seu gravador de áudio que está ligado. Ele pensa que exclui valores
pessoais. Ele tenta ou acredita, mas como ele pode ser um Fulani? Isso é objetividade.” Aqui
temos uma cena que descreve uma relação que implica em lugares de poder determinados,
que buscam se legitimar por critérios que seriam validados por suas pretensas cientificidade e
objetividade.
5) Repetições e reformulações – O filme tem uma estética baseada na repetição, algo notado
visivelmente em sua estrutura narrativa, na articulação das imagens com os sons. Porém, é
sobretudo na utilização do comentário que a repetição adquire maior significação. Não se trata
de uma repetição mecânica, automática. Está mais relacionada a um retorno a um argumento
prévio para repensá-lo, confrontá-lo novamente para melhor poder apresentá-lo novamente. É
mais propriamente uma reformulação, como se acompanhássemos o próprio ato de reflexão
da cineasta, que indaga mais uma vez seu objeto e não só, mas se questiona novamente.
Acompanhamos o amadurecimento de questões e problemas com os quais a cineasta trava um
embate. Assim acontece com as principais passagens da locução, como aquela a que já nos
referimos e que está colocada justo no início do filme: “menos de vinte anos foram suficientes
para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definam como subdesenvolvidas”, assim como
com a questão “Eu não pretendo falar sobre. Apenas falar ao lado”, que retorna mais ao final,
já resumida e ressignificada, apenas com a frase “falar sobre”. As reformulações configuram-
se como anotações de um processo de reflexão, a exposição de uma elaboração intelectual de
interpretação de uma realidade cultural. Ao optar por esse procedimento, a cineasta está como
que a desvelar as convenções da construção de narrativas etnográficas.
Em seu já citado ensaio Notes on (Field)notes, James Clifford traz para o centro
de sua reflexão os cadernos de campo, deslocando o foco sobre a atividade da descrição
etnográfica do seu texto final para a etapa de sua gênese ainda no trabalho de campo, quando
começa a tomar forma por meio de anotações, registros e descrições de processos culturais.
Para Clifford, “cadernos de campo são cercados por lenda e frequentemente certo sigilo. Eles
são registros íntimos, cheios de significados – temos dito – apenas para o seu escritor.” (1990,
p. 52). Segundo o autor, não há definição exata sobre o que constitui um caderno de campo. O
trabalho de campo, seu lugar de origem, pode incorporar diferentes fontes de informação e de
evidências sobre as quais o antropólogo se debruçará para elaborar sua etnografia, que, ao
final, será o resultado de um processo de generalizações, sínteses e teorização. “O trabalho de
campo é um conjunto complexo de experiências históricas, políticas e intersubjetivas que
fogem das metáforas de participação, observação, iniciação, harmonia, indução, aprendizado,
e assim por diante, frequentemente adotadas para explicá-lo.” (CLIFFORD, 1990, p. 53).
110
Na figura 01 temos a primeira das fotografias citadas por Clifford em seu ensaio,
um registro da etnógrafa Joan Larcom, na ilha de Malekula, Vanuatu. Conforme podemos
notar na fotografia, ela está sob uma tenda, entre mulheres e crianças, olhando para um papel
que tem em mãos. Duas mulheres olham diretamente para fora do quadro na direção oposta à
da etnógrafa. Uma delas tem em seu colo um garoto, que olha atentamente para as mãos da
111
etnógrafa, que seguram papel e caneta. Um garoto, posicionado logo à sua frente, olha
diretamente para a câmera, assim como outro menino que está de pé ao fundo da cena.
Por fim, a figura 03 apresenta a terceira fotografia, que mostra o famoso etnógrafo
Bronislaw Malinowski trabalhando em uma mesa sob uma tenda nas ilhas Trobriand. Ele está
de perfil, aparentemente concentrado em seu trabalho no que parece ser uma máquina de
112
escrever. Ao fundo alguns garotos estão ajoelhados e homens estão de pé, do lado de fora da
tenda. Há uma clara separação entre o etnógrafo, na penumbra da tenda, e os nativos da ilha,
que estão do lado de fora, observando-o.
Para Clifford, essas três fotografias “dizem muito sobre as ordens e desordens do
trabalho de campo”. (1990, p. 51). Para detalhar sua proposta de reflexão, ele vai propor a
definição de três diferentes momentos no trabalho de campo. Optamos em transcrever aqui as
considerações do autor sobre esses momentos, deixando para compará-las mais adiante com
nossas proposições relacionadas ao texto da locução de Reassemblage.
Eu imagino que a foto de Joan Larcom olhando para suas notas registra uma
pausa (talvez por apenas um instante) no fluxo do discurso social, um
momento de abstração (ou distração) quando o observador-participante anota
113
uma frase ou palavra mnemônica para fixar uma observação ou para recordar
algo que alguém acabou de dizer. A foto também pode representar um
momento quando a etnógrafa se refere a alguma lista prioritária de questões,
traços de personalidade, ou hipóteses – uma relação pessoal de “notas e
consultas”. Porém, mesmo que a inscrição seja simplesmente uma questão
de, como dizemos, “tomar uma nota mental”, o fluxo da ação e do discurso
foi interrompido, direcionado para a escrita. (CLIFFORD, 1990, p. 51)
Como enfatiza o próprio autor em seu texto, a descrição destes momentos foi um
exercício de abstração, uma vez que eles não existem em estado puro, separados, mas acabam
por se misturar e se alternar nas sequências de encontros e mudanças que acontecem no
trabalho de campo. Tal exercício foi necessário para levar adiante a proposta que ele colocava
114
no texto sobre o qual estamos nos apoiando, quando buscava lançar uma reflexão sobre o
processo de elaboração do caderno de campo, ao invés de analisar etnografias escritas já
finalizadas. Aqui em nossa proposta servirão de apoio para a análise do filme Reassemblage.
cozida, resultando em um filme que não pode ser enquadrado em uma definição rígida, que se
apresenta em “preparo”, para usar mais uma vez a metáfora do autor.
Com a opção por uma locução ensaística para o filme, contendo características de momentos
de inserção no campo, Trinh T. Minh-ha estaria também realizando uma crítica às formas
convencionais de etnografia, formas estas que geralmente se apresentam apenas em suas
formulações finais, já acabadas, relegando aos arquivos pessoais o processo de escrita, o
processo de formulação. Com essa estratégia a diretora expõe o seu caderno de campo no
filme, trazendo para o primeiro plano o seu processo de elaboração. contribuindo assim para a
revisão das práticas de escrita etnográficas, que encontram no processo fílmico um terreno
fértil para a experimentação.
Togo e Senegal. Parte do material obtido no Senegal já tinha resultado no seu primeiro filme,
analisado mais acima. Diversas são as aproximações possíveis entre esses dois filmes
realizados pela cineasta na África Ocidental. De modo sucinto podemos dizer que Naked
Spaces retoma a postura crítica de Reassemblage em relação a formas de representação
cultural, como o cinema documentário e a antropologia, enfatizando aspectos por ela
considerados como enraizados na cultura ocidental que seriam típicos de vieses orientados à
perpetuação de instâncias de poder, à manutenção de domínios e disciplinas que se
prevalecem de polaridades cristalizadas – tais como a noção de civilizado e primitivo, por
exemplo. Entretanto, no caso deste segundo filme, o faz de outra maneira, menos direta nas
assertivas críticas que endereça diretamente a disciplinas ou práticas específicas, sendo mais
complexo, compondo um trabalho que valoriza diferentes formas de racionalidade expressas,
sobretudo, em uma construção sofisticada da voz over. Diferentemente do primeiro filme, há,
em Naked Spaces, a valorização de tempos mais lentos que se constroem por meio de planos
mais longos cujos contornos produzem sentidos que sublinham aspectos como a questão do
espaço e das moradias nas vilas rurais e tribais. Através deles, os diferentes países, os
diferentes povos, as diferentes regiões da África Ocidental nos são apresentados. Sem nunca
lançar mão de argumentos descritivos em relação as imagens, somos apresentados a uma
diversidade de modos de vida, de cores e de movimentos que expressam a complexidade
social dos “povos da Terra24”. Nossa atenção é convocada a ações típicas da cultura material,
como o trabalho de arar a terra, tecer o algodão ou peneirar a farinha. Não obstante, o objetivo
do filme não é descrever, fazer uma etnocinematografia desses elementos. Não como o faria
um filme etnográfico convencional, por exemplo. É interessante notar como a cineasta busca
romper com as posições entre os “de dentro” e os “de fora”, filmando recorrentemente as
moradias e vilas a partir do ponto de vista interno das casas, lançando um olhar para o espaço
comum a partir do ambiente privado, construindo um mosaico sobre esses lugares e modos de
vida.
24
Fazemos aqui uma referência ao comentário em voz over do filme que abre com essa expressão: “People of
the Earth”.
117
Este segundo filme é menos radical em sua forma fílmica. Menos fragmentado e
disjuntivo do que Reassemblage, por exemplo. Aqui, a opção foi por uma estrutura circular
que valoriza o movimento, algo que pode ser notado pela recorrência de panorâmicas e pela
organização de sua estrutura geral, que se inicia e se encerra pelo Senegal. Nas imagens de
Naked Spaces os povos africanos estão quase sempre em movimento, em danças e rituais,
como a comprovar o provérbio “movimento é vida”. Há, neste caso, uma problematização do
espaço operada por meio da justaposição de diferentes lugares de moradia, de trabalho, de
celebração, espaços compartilhados e privados, de culturas diferentes, povos diferentes.
Diferentes entre si e diferentes da cineasta que os filma.
A despeito do uso recorrente dos termos voz off e voz over de forma praticamente
intercambiável no Brasil, cabe aqui inicialmente uma consideração de cunho conceitual. Para
Fernão Ramos,
119
Uma diferenciação mais precisa entre voz over e voz off pode ser encontrada no
livro Invisible storytellers: voice-over narration in american fiction film, de Sarah Kozloff
(1988), que, como o próprio nome aponta, estudou o uso da locução em voz over no cinema
de fição norte-americano. Entretanto, não fez isso sem antes passar por outras formas de uso
desta estratégia no cinema, como o caso do cinema documentário. Para Kozloff,
De acordo com Kozloff (1988), podemos notar que a prática da narração em voz
over no cinema certamente é tributária de experiências anteriores levadas a cabo em outros
veículos, como a locução radiofônica, por exemplo. No rádio podemos localizar experiências
como o Mercury Theater nos anos 1920, programa ligado à narrativa romanesca – que
revelaria Orson Welles - e a série The march of time, noticioso que começa nas ondas
radiofônicas em 1931, tornando-se um cinejornal em 1935. A prática nos cinejornais foi
decisiva para o desenvolvimento desse formato. As dificuldades técnicas dos primeiros
equipamentos de registro sonoro, pesados, desajeitados e com problemas de ruído na captação
120
expandindo suas possibilidades. São bastante conhecidos os casos de Song of Ceylon (Basil
Wright, 1934), Night Mail (Harry Watt e Basil Wright, 1935) e Coal Face (Alberto
Cavalcanti, 1936), trabalhos deste período que utilizam a banda sonora, sobretudo a locução
em voz over, de modo criativo e original, destacando-se do modelo convencional da estrutura
meramente expositiva.
Em Naked Spaces, o trabalho com a voz over vai além do que poderíamos
considerar uma locução meramente poética ou lírica, ou mesmo subjetiva ou pessoal, e
apresenta uma construção mais complexa, sendo realizada por três diferentes vozes, todas
femininas. Cada uma das vozes tem uma característica peculiar em relação à sua inflexão e
entonação. A voz número 1 - com leitura mais grave - é aquela que profere as sentenças
assertivas, citando declarações anônimas colhidas no trabalho de campo, provérbios populares
e trabalhos de escritores africanos. Entre os autores citados estão Ogotemmeli, velho caçador
cego Dogon que foi interlocutor de Marcel Griaule; Amadou Hampate Ba, escritor do Mali
reconhecido por trabalhar sobre a tradição oral de seu país; Birago Diop, escritor e poeta
senegalês que trabalha sobre o folclore de seu país; Boubou Hama, escritor e historiador
nigeriano; Victor Aboya, nativo de Gana que foi informante de Robert Sutherland Rattray, um
dos primeiros pesquisadores africanistas, além de outros autores africanos citados por John
25
Termo usado no texto original. Exemplo do uso intercambiável dos termos off e over no Brasil ao qual nos
referimos mais acima.
122
Como observa Trinh T. Minh-ha (1992), a utilização das três vozes oferece uma
série de combinações. A primeira combinação é musical, com os tons grave, agudo e médio.
Outra é cultural e racial, pois temos uma voz negra, outra branca e outra asiática26. As três
vozes apresentam estilos diferentes, sendo a primeira assertiva/não discursiva, a segunda não
assertiva/irônica e a terceira não-assertiva/vulnerável. Três modos distintos de elaborar o
discurso do filme por meio das narrações em voz over. As citações lidas são identificadas nos
créditos finais de Naked Spaces, mas só é possível saber a referência exata de cada uma delas
por meio do roteiro do filme, publicado pela diretora no livro Framer framed (1992).
Nesses dois primeiros filmes o trabalho de Trinh T. Minh-ha com o texto e com a
locução é muito importante para a elaboração do discurso crítico da cineasta. São mesmo
decisivos para afirmar os princípios da cineasta em sua busca por um lugar discursivo
construído no intervalo entre usos convencionais de estratégias narrativas típicas do cinema
documentário, como a locução em voz over, por exemplo. As imagens, por sua vez, trazem a
visão de uma cultura viva, que nos é apresentada mediada pela cineasta, e é esta mediação
propriamente que é o objeto dos filmes. A locução em voz over é a instância onde a cineasta
elabora sua reflexividade. A banda sonora é o lugar de fala da diretora, da exposição de sua
posição política. A locução não constrói um discurso sobre as imagens que acompanhamos,
não se preocupa em nos narrar o vivido naqueles países africanos, a cultura que estamos
visualizando nos corpos, espaços e ações.
26
Esta informação está no roteiro do filme, publicado no livro Framer framed.
123
mais fragmentada em Reassemblage e mais elíptica em Naked Spaces. A cultura, a vida que
nos aparece diante dos olhos não pode ser reduzida a um discurso, cristalizada nas imagens de
um filme.
Em Naked Spaces a cineasta expande sua ação. O retorno ao material bruto das
filmagens na África se dá em uma nova abordagem, mais ampla e complexa, resultando em
um trabalho formalmente mais ambicioso do que Reassemblage. Dada a complexa tessitura da
narração em voz over, sua polifonia vocal, a problematização da perspectiva e da voz,
poderíamos dizer que o campo sonoro do filme Naked Spaces adquire certa autonomia em
relação à imagem. Por meio das estratégias de elaboração da locução, somos apresentados à
posição ideológica e política da cineasta. Como vimos mais acima, a voz-over implica uma
“outra relação de tempo-espaço, o tempo e espaço do discurso” (KOZLOFF, 1988, p. 3),
instância de exposição da teoria de Trinh T. Minh-ha. A exposição de um pensamento por
meio de sua expressão artística. Arte e ciência, cinema e antropologia, são convocados a
dialogar e manifestam-se articulados pela cineasta em sua expressão cinematográfica.
Encontro do fazer artístico com a teoria social. Poderíamos dizer que como forma inovadora
de perscrutar um determinado espaço, uma determinada cultura, com meios expressivos
poderosos proporcionados pelas articulações possíveis entre as imagens animadas e os sons,
temos uma etnografia experimental pelo cinema.
A voz over em Naked Spaces se opõe claramente ao modelo clássico de voz over tal
como consagrado na tradição documentária. Esta se utiliza geralmente de uma única voz,
masculina, proferida em tom monocórdico, sem inflexões subjetivas, com um texto que
demonstra onisciência sobre o mundo acerca do qual profere suas sentenças. Ao invés disso,
no filme aqui em questão, Trinh T. Minh-ha, optou por trabalhar a construção de uma voz
over polifônica, que incorpora diferentes vozes, cada uma delas com uma característica
singular, com entonações e inflexões diferenciadas, todas lidas por mulheres. Não há um texto
único, um saber absoluto que discorre sobre as imagens, comentando-as ou sendo por elas
ilustrado. Em Naked Spaces o texto nunca ilustra as imagens.
O trabalho de voz over em Naked Spaces apresenta grande coerência com a noção
de polifonia tal como concebida na musicologia, onde polifonia é entendida como uma
técnica compositiva que produz uma textura sonora específica, onde duas ou mais vozes se
desenvolvem preservando um caráter melódico e rítmico individualizado. A opção pelo uso
das três vozes diferenciadas na locução, a partir de textos bastante distintos (ora a citação de
autores africanos, ora de autores da cultura ocidental e ora observações pessoais da própria
cineasta, como vimos anteriormente), parece confirmar isso. Não é apenas no uso da locução
em voz over que o filme estabelece uma estrutura rítmica e musical para o filme, mas também
com a utilização dos sons musicais dos rituais e danças, das falas dos aldeões, dos silêncios,
que juntamente com a locução compõem uma tessitura sonora complexa.
Com essa estratégia de utilização de uma voz over polifônica Trinh T. Minh-ha
parece buscar um meio de construir um documentário sobre uma determinada realidade
125
cultural, no caso comunidades rurais da África ocidental, com foco especial em sua
cosmologia e seus habitats, que fuja das armadilhas que ela mesma questiona nos modelos
mais convencionais de documentário. Ao invés de se utilizar de falas de personagens que
vivem nas vilas e aldeias por onde filmou, orquestrando-as a seu bel prazer em uma moviola,
conferindo um ordenamento no qual a realidade empiricamente observada serve de material
para o discurso da própria diretora, em uma clara imposição de lugares de poder que ela tanto
questiona em seus textos e filmes, ela busca construir seus argumentos por meio da locução
em voz over que, ao invés disso, deixa de lado completamente o registro da fala daqueles que
são filmados. Quando a fala ou os cânticos são registrados eles não são traduzidos, entram
para compor a tessitura sonora musical que é elaborada pela diretora com os registros sonoros
feitos em campo por ela própria.
As imagens mostram uma cultura dinâmica e em movimento, que não pode ser
cristalizada em um discurso objetivo, descritivo. A dinâmica visual, o ritmo e as cores se
articulam com as três possibilidades de discurso verbal, que trazem para a composição
diferentes argumentos e asserções sobre o mundo e a vida, construindo um filme complexo e
polifônico, que utiliza como estratégia central, de modo original e criativo, a voz over.
3.15 Surname Viet Given Name Nam – modos de narrar a história e a nação
Dirigido, escrito e montado por Trinh T. Minh-ha em 1989, o filme Surname Viet
Given Name Nam apresenta depoimentos de mulheres vietnamitas sobre a condição feminina
no país no período do pós-guerra dos anos 1970/1980, colhidos do livro Vietnâm, un peuple,
des voix, de Mai Thu Van, publicado em francês em 1983. O filme reencena em forma de
entrevistas em primeira pessoa alguns dos depoimentos colhidos pelo livro utilizando, para a
interpretação, mulheres vietnamitas que vivem nos Estados Unidos. Sobre o livro, a própria
diretora do filme relata que
Nascida na Nova Caledônia, ela (a autora) faz parte de uma segunda geração
de exilados, pois sua mãe havia sido mandada para lá à força para trabalhar
em minas de níquel porque sua vila estava entre aquelas que se levantaram
em rebelião contra os colonialistas franceses. Mai chegou a Paris aos vinte e
três anos para trabalhar e estudar e foi ao Vietnã em 1978 para pesquisar
mulheres vietnamitas, o que resultou no livro mencionado. Sendo marxista,
ela pousou em Hanói com uma “pletora de imagens de mulheres libertadas
126
elementos na sua composição. No plano sonoro há duas locuções distintas em inglês em voz
over, sendo uma delas realizada pela própria Trinh T. Minh-ha e uma terceira voz cantando
inglês. No plano visual, além das imagens dos depoimentos, temos imagens de arquivo do
situações de entrevista, por diversas vezes os letreiros, que trazem o mesmo conteúdo do que
Com o progresso do filme, certos detalhes, aos poucos, vão evidenciando que as
entrevistas não são exatamente o que parecem. Uma das personagens muda o teor do
depoimento. Outra retira os óculos e olha para a câmera, como alguém que terminou de fazer
uma passagem combinada. Outra aparece andando de um lado para o outro do quadro dando
seu depoimento, com postura totalmente diferente daquela que vinha sendo acompanhada até
aquele momento em seus depoimentos anteriores. Seu comportamento é o de alguém que
ensaia seu texto, texto este que se sobrepõem à imagem, mostrando que não se trata de um
depoimento original que foi transcrito para os letreiros, mas sim o contrário, que é um texto
anterior, ensaiado para o depoimento em vídeo. Temos então a confirmação de que as
entrevistas que vínhamos acompanhando são todas elas encenadas. Uma certa unidade que
vinha sendo apresentada se rompe e somos levados a uma nova relação com essas
personagens. Há uma descontinuidade deliberada nos discursos.
130
A partir deste ponto temos então novos depoimentos das mesmas mulheres que,
agora sim, depõem sobre suas vidas atuais. Esta segunda parte apresenta tomadas menos
preparadas, mais “naturalistas”, com menos estetização, realizadas em locação com luz
natural, com menor variação de câmera em relação aos ângulos e enquadramentos, o que
acaba por ressaltar o caráter produzido das tomadas da primeira parte do filme. Nestas
entrevistas as mulheres respondem a questões sobre porque aceitaram participar do trabalho
encenando as entrevistas e decidem como gostariam de ser representadas no filme. As demais
estratégias – utilização de imagens de arquivo, entonação de cânticos e de provérbios
populares, locuções etc – permanecem e a elas se somam filmagens das mulheres
entrevistadas em suas vidas cotidianas em uma comunidade vietnamita dos Estados Unidos.
O filme marca uma aproximação da cineasta a um universo com o qual ela tem
ligação íntima, sua origem vietnamita, diferentemente dos seus filmes anteriores, que se
dedicaram a objetos de interesse distantes de sua história pessoal pregressa.27 Tal opção
colocou a cineasta em posição de ter de encontrar um distanciamento ainda maior em relação
ao seu tema do que aquele observado em seus dois primeiros filmes para que, assim, pudesse
mais abertamente questionar sua posição de autoridade relacionada à sua própria cultura, pois,
27
Reassemblage – filmado no Senegal e Naked Spaces – filmado em países da África Ocidental
131
cabe lembrar, discutir a representação cultural e posições de autoridade nos discursos é uma
linha de força no trabalho de Trinh T. Minh-ha, e aqui neste caso não é diferente.
análise mais profícua e aprofundada dos filmes de Trinh T. minh-ha, poderíamos pensar sua
obra como um todo, incluindo seus textos e não apenas seus filmes, considerando que há
questões que perpassam ambos, de modo a se estenderem e se aprofundarem em um
movimento de análise, reflexão e demonstração que se adensa e reflete uma postura ética e
estética marcada por um posicionamento politico entre áreas de conhecimento e de prática.
Evidentemente este não é o lugar para tal empreendimento. Centraremos aqui nossos esforços
na exposição de um ponto essencial sobre o filme, o uso das entrevistas como estratégia
central de elaboração de sua crítica – ao discurso da história oficial e ao discurso da
representação no cinema documentário clássico .
Quando o filme apresenta claramente que os textos estão sendo ensaiados pelas
mulheres, as imagens evidenciam a dimensão de elaboração e dissimulação das entrevistas até
aqui exibidas. O filme assume suas estratégias em sua dimensão ficcionalizante. Ao optar por
esse recurso, Trinh T. Minh-ha nos alerta que uma entrevista – estratégia recorrente no
documentário moderno e, frequentemente valorizada por ser considerada como um meio de
acesso direto a uma determinada realidade cultural pode ser ensaiada, encenada, roteirizada,
dirigida, dissimulada.28
Entretanto, essa dimensão ficcional não está presente apenas na encenação das
entrevistas, que de certo ponto em diante é clara e evidente. Na segunda metade do filme,
quando passamos para os depoimentos das mulheres que atuaram na encenação, que agora se
28
Mais de vinte anos depois deste filme de Trinh T. Minh-ha, Eduardo Coutinho usou procedimento semelhante
em seu filme Jogo de Cena (2007).
133
revelam como vietnamitas vivendo nos Estados Unidos, como vimos, temos uma nova
dimensão ficcionalizante. Uma vez que as entrevistadas são provocadas a dizer como
gostariam de ser representadas no filme, passamos para a dimensão da autoficção por parte
dessas mulheres em condição diaspórica. Desse modo, o filme questiona profundamente a
estratégia da entrevista como um modo de acesso a uma realidade cultural, à identidade
cultural. Essa estratégia que embaralha o estatuto das imagens acaba por minar a
autenticidade e a autoridade da não-ficção como acesso privilegiado ao mundo histórico.
Com cerca de uma hora de duração temos a entrevista que revela mais claramente
o dispositivo da encenação no filme. Assistimos a uma das mulheres caminhando de um lado
para o outro no quadro, que permanece estático, com um recorte na escala de um plano
próximo, enquanto ela é filmada lateralmente e repassa o trecho do seu depoimento, como que
em um ensaio, por vezes saindo do enquadramento, para então retornar. Sua fala está
relacionada à necessidade de desmistificar a imagem idealizada da mulher, ilustrada com a
história de varredoras de rua que foram usadas em uma reunião para servirem a uma
encenação orquestrada por homens para construir uma ilusão sobre sua real imagem. Letreiros
sobrepostos à imagem da mulher revelam o texto que ela está lendo, realçando seu caráter de
elaboração prévia. Neste momento, temos uma locução, realizada pela própria diretora,
sobreposta à fala da mulher que ensaia e que neste ponto já está fora de quadro, que diz: “E
eu teria que afirmar essa incerteza: uma entrevista traduzida é um objeto escrito ou falado?”
(Trinh, 1992, p. 73). As reflexões da diretora sobre a entrevista continuam: “Entrevista: um
dispositivo antiquado do documentário. A verdade é selecionada, renovada, deslocada e o
discurso é sempre tático” (ibid., p. 73); “ao escolher a mais direta e espontânea forma de
pronunciação e documentação, eu me encontro mais perto da ficção” (ibid, p. 78). Estas
passagens não apenas explicitam a crítica da cineasta em relação ao uso da entrevista como
lançam luzes sobre as estratégias formais usadas. O fato de serem proferidas no trecho do
filme que evidencia a encenação da primeira série de entrevistas ressalta esse caráter
construído, mas também nos faz pensar sobre o caráter ficcional que pode ser observado nas
entrevistas da segunda parte, dada a dimensão da autoficção que as questões colocadas pela
cineasta busca expor.
135
O gesto ensaístico original do filme, ou seja a forma como utiliza seus elementos
formais e expressivos de modo a elaborar um discurso ensaístico, é o de trabalhar na
exposição do seu espaço negativo, existente ao redor ou entre as imagens, tal como na pintura
ou nas artes gráficas. Ou seja, no filme, a ênfase não está diretamente nas entrevistas
encenadas, reencenadas ou autoencenadas – seu caráter de dissimulação fica evidenciado de
136
um ponto em diante no filme – mas nesse espaço que existe para além do plano orientado ao
objeto – seja ele coisa ou sujeito, um espaço discursivo onde posições de autoridade são
problematizadas e práticas de sentido são tensionadas a partir de um amplo repertório
expressivo e reflexivo. A dissimulação essencial de Surname Viet Given Name Nam está em
nos fazer ver a entrevista como estratégia problemática, enquanto nos induz a pensar na
complexidade presente na representação do mundo histórico, que se expande para esse espaço
negativo e que não é neutro, mas um lugar de articulação discursiva crítica e reflexiva.
CAPÍTULO 4
A parcialidade rigorosa que tenho enfatizado aqui pode ser uma fonte de
pessimismo para alguns leitores. Mas também não é uma liberação
reconhecer que ninguém pode continuar a escrever sobre outros como se
estes fossem textos ou objetos distintos? E não poderia a visão de uma
etnografia complexa, problemática, parcial, levar, não ao seu abandono, mas
a maneiras mais sutis e concretas de escrita e leitura, a novas concepções de
cultura como interativas e históricas? (1986, p.25)
uma ciência cultural realista elaborada no ocidente”, e que não incluiu em seu escopo de
análise e investigação formas narrativas que estavam surgindo a partir de esforços de autores
ligados ao oriente ou a realidades pós-coloniais, como Edward Said, por exemplo. E
principalmente, ele reconhece que não considerou como áreas de inovação na escrita “os
gêneros ‘paraetnográficos’ da história oral, do romance não-ficcional, o ‘novo jornalismo’, a
literatura de viagem e o filme documentário”. (2011, p.60)
Nossa proposta neste capítulo é partir das observações de Clifford sobre essas
outras áreas de escrita e estender suas reflexões especificamente para o campo do
documentário, preenchendo uma lacuna apontada pelo próprio autor. Observar como o cinema
documentário tem exemplos que podem sustentar essa tese de que novas formas emergentes
de narrar processos culturais ocorreram fora do campo da antropologia, com contribuições
originais para problemas que a própria disciplina estava colocando em relação a seus
processos mais autênticos, como o trabalho de campo e sobretudo a escrita de relatos
etnográficos. Simultaneamente, esses trabalhos contribuíam para renovar a prática do cinema
documentário em relação à sua tradição histórica, incorporando e dialogando com questões
conceituais relacionadas a formas discursivas advindas do campo dos estudos literários. Dessa
forma, pretendemos aprofundar argumentos que apresentamos no capítulo anterior.
Evidenciar que o seu cinema está sintonizado com as reflexões que emergiram no
Seminário Writing Culture é um dos interesses deste capítulo. Entretanto, o ponto mais
importante está em enfatizar que o trabalho da cineasta antecipa tais questões. Poderíamos
mesmo dizer que o cinema antecede problemas que a antropologia passava a levantar e que
oferece reflexões complexas e profundas sobre tais questões, colocando-o não apenas como
meio de representação de interrogações temáticas dos diversos campos das ciências humanas
e sociais, mas, também, que ele oferece respostas originais e sofisticadas. Somado a isso, nos
interessa situar a produção da cineasta em relação a uma vertente importante dos estudos de
cinema na contemporaneidade que busca aproximar o cinema do ensaio literário. Faz isso ao
realizar filmes que propõem experiências inovadoras e que distanciam-se das convenções e
domínios já estabelecidos e conformados na história e tradição cinematográficas.
Já nos foi dado ressaltar neste trabalho que as proposições de Trinh T. Minh-ha
sobre o documentário levantam questões importantes para irmos além da crítica em relação
aos padrões clássicos desse tipo de cinema e pensarmos a constituição do documentário
moderno. Sabemos que desde o final dos anos 1950 ele já vinha demonstrando importante
inovação estilística através do trabalho de uma plêiade de cineastas exemplares que
contribuíram para que tal inovação acontecesse.
o mundo histórico. Suas críticas não são elaboradas para afirmar uma oposição a um modelo
hegemônico, mas para reconhecer estruturas e definições que são resultado de práticas de
poder (quem define, quem nomeia, quem aponta, quem filma – para ela posições que
expressam poder predominantemente branco, ocidental, masculino). Sua crítica procura
demonstrar que o significado não se encerra no que é dito ou mostrado. O que muitas vezes é
tomado como verdade em formas clássicas de cinema documentário não passa de uma
construção, elaborada por um sujeito histórico, que opera meios expressivos sofisticados para
elaborar uma retórica sobre o mundo.
Vamos a uma breve descrição de cada um dos requisitos sugeridos por Marcus:
(1990):
Uma vez feitos esses apontamentos a partir da teoria social, cumpre aqui verificar
também como o campo dos estudos de cinema passou a lidar com as mesmas questões
advindas desse quadro de mudanças amplo em um mundo que passava por transformações.
Assim fazendo, somos levados a pensar tais questões nesse intervalo entre a teoria social e a
teoria do cinema, local de onde consideramos que a prática cinematográfica de Trinh T.Minh-
ha ganha relevância. Em se tratando dos estudos de cinema, esse período coloca em evidência
o interesse em problematizar filmes desafiadores a partir da categoria literário do ensaio.
29
Aqui utilizamos a tradução para o espanhol, presente na coletânea La forma que piensa. Tentativas en torno al
cine-ensayo, organizada por Antônio Weinchiter (2007)
146
30
Aqui utilizamos como referência a tradução para o inglês, publicada na revista Film Comment na edição de
julho/agosto de 2003.
31
Para uma boa cronologia de textos dedicados às relações entre o ensaio e o cinema ver WEINRICHTER
(2007).
147
proeminência que passaria a ter nas décadas seguintes, é importante considerar que diversos
autores já trabalhavam com essa noção do ensaístico para pensar o cinema documentário,
alguns de modo indireto, como é o caso de Bill Nichols em relação à categoria de
autorreflexividade, por exemplo.
Esses trabalhos visuais, assim como a forma do ensaio literário, podem ser
considerados como resistentes a classificações genéricas, abrangendo uma
série de antinomias fechadas: ficção/não-ficção, documentário/avant-garde,
cinema/video. Em modos que podem ser especificados, esses textos são
notáveis pela negociação de três termos ou eixos críticos ao redor e contra os
quais podemos considerar que o efeito-ensaio adquire forma: história,
subjetividade, linguagem. (RENOV, 1989, p.8)
Não seria difícil verificar atualmente o interesse pela aproximação entre o ensaio
literário e os estudos de cinema a partir do trabalho de diversos autores, especialmente nos
estudos dedicados ao cinema documentário. Para ficarmos em apenas algumas referências,
vamos apontar certas considerações colhidas de trabalhos produzidos na década de 1990 e que
foram pioneiros nesse esforço em conceituar o ensaístico no cinema. Seguindo uma ordem
cronológica de publicação, partiremos do texto In the search of the centaur”, de Phillipe
Lopate, publicado inicialmente em 1992 na revista The three penny review, e posteriormente
em 1995, revisto e ampliado, no livro Beyond Document: essays on nonfiction film,
organizado por Charles Warren, por considerar que este é um dos primeiros textos na teoria
do cinema a pensar o termo filme-ensaio como uma categoria explicativa nesse campo de
estudos. Nele, o autor identifica o interesse crescente em torno dessa aproximação do cinema
com a ensaio literário.
148
Eu acho que não é surpreendente essa frequência súbita com a qual o termo
“filme-ensaio” está sendo invocado de modo otimista e vago nos círculos
cinemáticos. Atualmente, há uma busca inexorável na estética fílmica e na
prática do cinema experimental para que o meio se livre da jaula dos
gêneros, e que reflita sobre o mundo de um modo mais responsável e
intelectualmente estimulante. (LOPATE, 1992, p.22)
Em seu texto, Weinrichter trabalha tanto com os termos filme-ensaio quanto com
o de ensaio fílmico, mas não faz isso de modo desavisado. A passagem acima de seu texto
demonstra claramente a valorização do ensaístico como resultado da presença de
determinadas características intrínsecas ao modo de narrar, que remete à tradição literária. Em
relação ao termo filme-ensaio o autor conscientemente associa o risco de uma cristalização
em relação à nomenclatura, como uma espécie de fetiche que esvazia o termo de sua
configuração conceitual, enfraquecendo seu poder explicativo em favor de uma qualidade
apenas de indexação, que seria em si redutora da potencialidade identificada do ensaístico
enquanto relação de um sujeito com uma realidade ou tema determinado por meio de uma
forma expressiva em particular.
Para avançar na reflexão sobre a relação do cinema com o ensaio passaremos para
autores que mais recentemente se dedicaram a aprofundar a reflexão a este respeito. Uma das
primeiras contribuições na academia anglo-saxônica a buscar teorizar essa questão do cinema
ensaístico propriamente foi a de Laura Rascaroli, em seu livro Personal cinema: subjective
cinema and the essay film, publicado em 2009. Para a autora
É importante atestar uma vez mais que heresia e abertura estão entre as
marcas chave do filme ensaio. Seu posicionamento nas encruzilhadas do
“documentário, avant-garde e filme de arte” sugere que devemos resistir à
tentação de teorizar em demasia a forma, ou, pior, cristalizá-la em um
gênero. Sendo ele informal, cético, diverso, disjuntivo, paradoxal,
contraditório, herético, aberto, livre e sem forma, o ensaio verdadeiramente é
a “matrix de todas as possibilidades genéricas”. O ensaio é um campo de
experimentação e idiossincracia, na medida em que podemos aceitar a
perspectiva compreensiva de Edgar Morin: “Falar de filme ensaio, eu
preferiria me referir a atitude de quem tenta (essai - ensaia, mas também
tenta) debater um problema usando todos os meios de que o cinema dispõe,
todos os registros e todos os expedientes. (RASCAROLI, 2009, p.39)
Este pilar tem como foco o sujeito do discurso do filme. O importante a notar aqui
é que ele aponta para uma dimensão ativa do cineasta como articulador das instâncias
expressivas do filme mas em relação com a experiência vivida de modo reflexivo, ou seja, o
filme como expressão de um estar no mundo aberto às vicissitudes dessa experiência de modo
153
a incorporar em seu discurso ou expressão os efeitos dessa dimensão vivida como meio de dar
visibilidade a um processo, resultado de um embate entre a subjetividade desse sujeito e o
momento histórico vivenciado.
Passamos para o segundo pilar, que trata do encontro empírico em uma arena
pública, onde
Este pilar tem como foco o contexto e o objeto relativos aos quais o filme se
debruça. Nos moldes do primeiro pilar, podemos dizer que do embate entre o sujeito e a
esfera pública surge o discurso subjetivo que relata essa experiência, mas cujo foco está na
dimensão simbólica que aponta para além da aparência, da concretude, em direção a uma
dimensão mais simbólica e sutil de relação. Trata-se de ver, sentir, perceber pelo filme uma
experiência de mundo que se constrói nessa relação entre sujeito e aspectos socioculturais e
históricos em uma relação espaço temporal determinada sobre a qual o cineasta, através de
seus gestos32 ensaísticos contidos no filme e pelos meios expressivos da imagem e do som e
suas articulações, oferece uma visão original de processos culturais e sociais a partir da sua
experiência singular.
32
Por gesto ensaístico estamos nos referindo ao ato, ao processo, em sentido lato. O gesto de ensaiar e não o
ensaio enquanto forma exterior.
154
Neste pilar o foco recai sobre o filme como produto resultante da experiência.
Entetanto, não se trata de um produto cujas estratégias narrativas e expressivas remetem a
normas e convenções típicas do universo do cinema mais convencional, já consagradas em
códigos específicos nos domínios do cinema que se estabeleceram no desenvolvimento de sua
tradiação histórica, mas apontam para casos inovadores onde a expressividade do cinema está
a favor de uma experimentação que é não apenas formal, mas que busca expressar uma
dinâmica contida entre a a reflexão e a expressão, como uma prova do processo do pensar,
como uma forma que pensa, materializada nas imagens e sons e suas relações possíveis.
33
Destaque do original
155
Diante desta breve exposição de algumas das linhas de força presentes hoje nas
discussões acadêmicas que se debruçam sobre a relação entre o cinema e o ensaio, e após
desenvolver de forma panorâmica uma certa cronologia na evolução de como a questão tem
sido abordada nos estudos de cinema, podemos voltar ao texto de Renov (1989), para afirmar
uma questão que nos parece essencial no entendimento dessa problemática, reconhecendo que
“o uso da adjetivação (‘o ensaístico’) é então preferida por sua indicação de tendência mais do
que o efeito totalizante da forma nominal (‘o ensaio visual’34) poderia sugerir”, (RENOV,
1989, p. 8). Sendo assim, nesta pesquisa nos ocuparemos dos gestos ensaísticos no cinema de
Trinh T. Minh-ha, buscando uma análise dos aspectos inerentes aos processos de realização
dos filmes individualmente e não à tipificação dos filmes como produtos finais
correspondentes a generalizações categóricas.
34
O autor usa aqui a referência geral às artes visuais para contornar a diferenciação que se fazia entre cinema e
vídeo na época em que publicou o artigo. Certamente poderiamos incluir aqui os termos filme-ensaio, ensaio
fílmico e assemelhados.
156
Com as transformações dos paradigmas das ciências humanas como um todo e das
ciências sociais em particular, temos uma série de deslocamentos e movimentos que colocam
sob revisão posições de autoridade no campo dos relatos etnográficos, assim como o fazem no
domínio do cinema documentário. Desde a década de 1980 é crescente o número de filmes
que subvertem as condições de produção mais usuais, fugindo aos padrões e modelos
convencionais para explorar temas e processos que antes estavam subsumidos ou submetidos
a discursos exteriores às suas próprias realidades. Neste período temos o surgimento de filmes
produzidos por grupos indígenas ou étnicos ao redor do mundo, pelas chamadas minorias das
sociedades urbanas, por ativistas de causas diversas. Muitos desses trabalhos são responsáveis
por tornar o cenário do cinema documentário moderno cada vez mais complexo e desafiador,
ao passo que exploram a estética cinematográfica de modo inovador, contribuindo para sua
diversificação estilística promovendo diálogos cada vez mais profícuos entre searas distintas
da expressão cinematográfica. Neste cenário, marcado por formas narrativas diversificadas é
onde acreditamos ser possível falar em uma estética da parcialidade, entendida aqui não como
a ênfase na ausência, o apontamento daquilo que é incompleto, mas, ao contrário, a
parcialidade como o reconhecimento da força das diferenças expressas nas diversas estéticas e
retóricas que não podem ser abarcadas por modelos totalizantes, generalizantes, pois são
múltiplas e complexas. A parcialidade, neste caso, é a expressão da singularidade, da autoria.
A estética da parcialidade é própria aos filmes inventivos e inovadores, que se contrapõem a
modelos e modos predeterminados de narração e retórica cinematográfica para afirmar sua
diferença como valor essencial. Sintoniza-se com a subjetividade ensaística que dá a ver
modos especulativos, experimentais de ser, de perceber e de estar no mundo.
Para essa busca incessante, renovada a cada filme, a cineasta trabalha de forma
recorrente com a elaboração de três procedimentos centrais, todos relacionados a pensar de
modo crítico a interrelação entre sujeito, objeto e contexto. São eles: i) o “estar entre”, ii) a
abordagem indireta e iii) a busca pelo intervalo. Podemos dizer que eles traduzem a visão
original da cineasta em relação a sua produção intelectual e artística e traduzem princípios que
norteiam seu posicionamento ético e político. Podemos aproximá-los dos termos de Marcus
(1990), apresentados mais acima neste capítulo, quando este apontou os desafios que via em
relação aos relatos dos processos socioculturais nas etnografias contemporâneas, identificando
que tais procedimentos estão relacionados à “problematização do espaço, do tempo e da
perspectiva ou da voz” (MARCUS, 1990, p6). Podemos também trazer novamente aqui os
termos apresentados por Renov, que também utilizamos mais acima, quando destacamos os
aspectos que este via presentes nos filmes ensaísticos mais desafiadores e considerar que
também os procedimentos estão relacionados de forma crítica a eles, girando em torno de
temas da “história, subjetividade, linguagem.” (RENOV, 1989, p.8)
Além dessas questões mais contextuais que nos movem a pensar o cinema documentário em
um período de mudanças sociais profundas, com a emergência de novos sujeitos sociais, de
novos campos disciplinares, do nascimento de novos paradigmas nas ciências e o abandono
de outros, de transições tecnológicas e de reordenamento de questões geopolíticas diversas, a
produção de Trinh T. Minh-ha nos permite avaliar a relação entre teoria e prática de modo
bastante especial.
A cineasta-teórica já declarou que não vê seus filmes apenas como filmes, mas
como expressões tanto intelectuais quanto estéticas, e, podemos acrescentar, estas se
interligam com sua produção teórica no campo da crítica cultural e do feminismo de maneira
exemplar. Do mesmo modo, ela já deixou claro que não se importa com as categorias usuais
com as quais o cinema historicamente dividiu seus domínios, ou seja, não produz a partir das
categorias convencionais de ficção, documentário e experimental. Em uma entrevista para
Scott Macdonald, publicada no livro Framer Framed, ela assevera
35
Destaques do original
159
depreender dessa posição defendida pela cineasta é a busca por um “lugar entre”, um modo de
ser e estar que se posiciona entre totalidades e polaridades. Para utilizarmos alguns termos
associados à produção fílmica de Trinh vistos anteriormente nesta pesquisa, é o lugar que está
situado entre os movimentos de outside/in e inside/out. Um lugar ciente de sua precariedade e
sua relatividade com relação às posições de autoridade consagradas e em face às quais assume
o desafio de constituir um lugar discursivo onde a força que move essa experiência é a busca
por evidenciar a política da representação.
O “estar entre” pretendido por Trinh T. Minh-ha opõe-se aos modos tradicionais
de discurso, que reforçam lugares de poder e confirmam e reproduzem relações de dominação
e submissão. Busca nuances mais complexas, tentando explorar os diferentes níveis existentes
nas relações e que geralmente são sublimados pelos binarismos normativos das relações
convencionais.
Uma característica fortemente associada a essa opção pela via indireta que aparece
nos trabalhos de Trinh T. Minh-ha é a utilização de certas categorias epistemológicas
orientais. Evidentemente, sua origem vietnamita e os temas e objetos abordados em seus
filmes (pelo menos seis dos seus oito filmes são realizados em países orientais ou têm relação
direta com questões da tradição oriental) colocam essa questão da temática oriental em
primeiro plano. Entretanto, a adoção desse recurso vai muito além de uma mera tematização
ou figuração. Em diversas passagens de entrevistas ou mesmo na locução em voz over de seus
filmes podemos encontrar referências a doutrinas filosóficas orientais, como o zen-budismo
161
ou o taoísmo, que denotam os modos como a cineasta lida com a relação espaço temporal e
com a dimensão imaterial, valorizando assuntos muitas vezes abstratos para o pensamento
cartesiano ocidental, como temas metafísicos, por exemplo.
Voz 2 – “Não, ‘um poeta não toma uma experiência como o ‘conteúdo’ do seu poema e o
empobrece em uma ‘forma’.” Não há poesia se não há exploração da linguagem. ‘Então, a
tarefa do poeta não é apenas dizer algo pela primeira vez, mas também dizer pela milésima
primeira vez, de um modo diferente, aquilo que já foi dito mil vezes.
Voz 1 - Aquilo que é manifestamente ‘real’ para alguns olhos, parece estranhamente rígido e
convencional para outros. Você não captura o espírito vital das coisas em sua aparência
formal, disse Chang Yen-Yuan sobre o período T’ang. Aquilo que parece irreal pode
transmitir a força vital das coisas de modos que nenhum domínio da sua aparência visível é
capaz.”
O texto “The plural void: Barthes and Asia”, é um exemplo muito interessante de
como questões orientais estão na base da formação intelectual e estética da cineasta. Nele
Trinh cita o zen-budismo, os haikais e o taoísmo para explorar a episteme oriental como
complexa em suas formas (ou ausência de forma) simbólicas, dando evidências às origens de
suas escolhas privilegiadas pela via indireta no discurso.
posição irregular, precária, geralmente variável, que pode ou não ser encontrada entre polos
determinados, contribua para esse desinteresse aparente pelo intervalo. Diferentemente dos
polos, que geralmente correspondem a posições mais rígidas e determinadas, e portanto
identificáveis, de fácil associação, o intervalo carrega em si uma qualidade típica da
impropriedade, ou seja, o intervalo não existe em absoluto, apenas em relação. Seria, portanto,
uma qualidade aproximada à noção de experimentação e de ensaio, tal como estes estão
esboçados desde sua tradição literária, como categorias do teste, da especulação, do processo,
ou mesmo do pensamento.
Com essa exposição em relação ao intevalo, Trinh T. Minh-ha nos permite pensa-
lo como uma categoria explicativa e não apenas como um aspecto concreto existente na
materialidade do cinema ou como espaço discursivo idealizado. Dito de outro modo, a noção
tal como presente no pensamento da cineasta, contempla uma relação complexa entre um
aspecto da materialidade fílmica – o intevalo como espaço entre as imagens e os sons – e
como aspecto discursivo, um outro espaço de fala.
Passaremos a uma análise do filme Shoot for the contents para melhor apresentar
nossos argumentos acerca da estética da parcialidade e como os requisitos necessários a sua
conformação podem ser encontrados nas estratégias de articulação das imagens e dos sons
utilizadas pela cineasta.
Shoot for the Contents ou guessing the contents – algo como adivinhar o conteúdo
– era o nome de um jogo comum nas festas dos ricos e poderosos da antiga China, conduzido
por especialistas e mestres na arte da adivinhação, nos informa Trinh T. Minh-ha em uma das
primeiras falas deste que é o seu quarto filme, realizado em 1991.
Para melhor tecer uma análise do filme, investigando as opções adotadas nas
estratégias de encenação e de elaboração do discurso, cabe aqui uma pequena lembrança
sobre eventos ocorridos na China no período imediatamente anterior à sua realização. Em
1989, o governo de Deng Xiaoping reprimiu com violência uma manifestação de estudantes e
trabalhadores pró-democracia na Praça da Paz Celestial, evento que ganhou ampla
repercussão internacional e até hoje é tabu no país, tornando-se em boa medida responsável
por certa imagem da China ainda presente no imaginário ocidental contemporâneo, o de um
país militarizado, repressor e totalitarista. O evento é citado diversas vezes no filme, mas
nenhuma imagem ilustrativa ou alusiva a ele é utilizada.
Shoot for the Contents é um filme sobre a China elaborado por meio de estratégias
que são utilizadas como que em duplas ou duplicidades, onde cada unidade desse par
acrescenta elementos que complexificam o recurso narrativo como um todo. Vejamos quais
são as principais estratégias operadas por meio desse expediente no filme: i) as imagens –
filmagens da China, realizadas em vídeo e dos Estados Unidos, filmadas em película de 16
mm; ii) as duas mulheres chineses que acabam atuando como locutoras do filme, com
depoimentos em tons e conteúdos distintos; iii) referências e citações do Maoísmo e do
166
Para analisar a maneira com que a cineasta aborda seu objeto pela via indireta,
analisaremos as estratégias que são utilizadas no filme, enfatizando como elas adotam um
caminho entre polaridades, uma opção pelo intervalo – entre extremos, entre posições – para
elaborar um discurso sobre uma realidade cultural específica. Em seu cinema, a posição de
fala, de autoridade, assume-se como um lugar de relatividade, magistralmente definido em seu
conhecido e já citado aforismo falar próximo (speak nearby) - apresentado em Reassemblage,
seu primeiro filme. Ele pode ajudar na interpretação do filme aqui em questão, assim como a
ênfase em um sentido rigoroso de parcialidade em oposição à busca de sentido de objetivação
empreendida pelas formas tradicionais do documentário.
Como vimos mais acima, as imagens de Shoot for the Contents possuem dois
suportes de naturezas distintas: o vídeo e a película. O filme foi lançado em 1991 e essa
questão do suporte de filmagem, que hoje pode até ser considerada uma questão já superada,
estava na ordem do dia. Sem estabelecer hierarquia entre os suportes, Minh-ha utiliza
magistralmente as idiossincracias das tecnologias do vídeo e do cinema e as qualidades
167
intrínsecas das imagens obtidas em cada uma delas para transitar entre texturas e composições
visuais. As filmagens em vídeo foram feitas pela própria cineasta em uma passagem pela
China e as imagens das entrevistas, das mulheres chinesas e da caligrafia e dos dragões nos
Estados Unidos, contando com o apoio de uma equipe.
4.5.5 Entrevistas
Como colocamos mais acima, há apenas duas entrevistas em Shoot for the
contents. Uma delas é com o cineasta e produtor chinês Wu Tian Ming, considerado um dos
nomes importantes da quarta geração chinesa, que dirigiu filmes que circularam em festivais
ao redor do mundo, além de ter cumprido um papel importante na renovação do cinema
chinês, promovendo filmes que apostavam na fatura artística em detrimento da fatura
comercial. Dessa safra, a quinta geração chinesa, surgiram nomes como Zhang Yimou, entre
outros, amplamente veiculados em diversas partes do planeta nas décadas seguintes. No
momento da entrevista o cineasta residia nos Estados Unidos, onde foi entrevistado. Essas
informações sobre sua atuação em relação ao cinema chinês não estão presentes no filme e o
seu nome apenas aparece nos créditos finais, sem menção à sua atuação profissional. Em seus
depoimentos ele fala sobre a situação do cinema chinês no período, em relação à censura
promovida pelo estado e limitações enfrentadas pelos cineastas, muitas vezes comparando a
situação na China com a situação nos Estados Unidos.
O interessante a notar em relação a essa entrevista está no modo como ela foi
registrada. O cineasta aparece em três momentos distintos, e em cada um deles há uma mise-
en-scène diferente da entrevista. Como veremos no parágrafo seguinte, em todas elas há uma
estratégia que se serve, de forma singular, do enquadramento e da iluminação para destacar
aspectos determinados que não estão presentes no depoimento de Wu Tiang Ming. A
entrevista é conduzida por Trinh T.Minh-ha, que recebe auxílio de uma tradutora. Os
depoimentos são em chinês e não são legendados. A tradução é consecutiva, pronunciada pela
tradutora.
diretor em chinês e a tradução consecutiva para o inglês por uma voz feminina. A câmera faz
uma leve pan para a direita e vai revelando o rosto da tradutora, que está sentada de frente
para Ming, em posição frontal em relação à câmera. Ela esá com o rosto iluminado por uma
luz pontual amarela. Nesta passagem da entrevista vemos apenas o rosto da tradutora,
enquanto o entrevistado e a diretora permanecem de costas para a câmera. Mesmo quando
ouvimos o depoimento de Ming não vemos seu rosto.
Na terceira e última aparição do cineasta chinês, a composição se altera mais uma vez.
Uma mancha amarelada preenche parte da tela. Uma correção de foco revela o rosto de Ming,
visto de um ponto de vista lateral, contra um fundo preto. Uma pequena mancha de luz azul e
outra de luz vermelha estão posicionadas acima de sua cabeça. Ele olha diretamente para fora
do quadro pela lateral esquerda. Após correção de foco para o segundo plano do quadro, a
mancha de luz azul revela os olhos da cineasta Trinh T. Minh-ha e a mancha vermelha revela
os olhos da tradutora.
alguém que vem da cultura em questão e o andamaneto de seu depoimento nos permite ver
que sua fala não é a de um especialista, mas de um cidadão bem informado historicamente,
politicamente engajado e que sua posição é a de um observador interessado. Ou seja, uma
posição indiretamente associada ao assunto. Outro aspecto relevante a considerar é o
desenvolvimento reflexivo dos seus argumentos, que passam da situação política da China
contemporânea, com referências aos eventos do massacre da Praça da Paz Celestial e aos
erros e acertos do regime comunista, para considerações acerca das relações da China com
países africanos após o término da União Soviética, o papel da mídia norte-americana e seu
próprio papel como entrevistado no filme.
Sua primeira aparição no filme é marcada por algumas evidências sobre essa sua
posição de cidadão bem informado politicamente e sua herança ou interesse pelas raízes
africanas. Enquanto ele já está dando o seu depoimento, em uma panorâmica que sai de uma
estante de livros, preenchida com obras sobre marxismo, política e arte, a câmera vai
descendo, passa por uma máscara africana e chega no entrevistado.
Há muitas imagens da caligrafia chinesa em Shoot for the Contents. Muitas dessas
imagens foram filmadas na China pela própria diretora. Temos imagens de painéis e de
ateliês. Nesses casos, as frases nunca são traduzidas. Vemos a caligrafia como uma espécie de
decoração, nos moldes da experiência ocidental com esses objetos e artefatos orientais que
são ilustrados com a caligrafia ideográfica ou pictográfica oriental. Ou seja, podemos admirar
essa caligrafia como uma espécie de decoração, uma vez que não podemos compreender o
que significam.
Dewi pergunta: “Qual seu sentimento sobre a China agora? Após uma resposta de Ying, que
toca no ponto da repressão na Praça da Paz Celestial, Dewi pontua: “Não temos noção de toda
a história da China”. Ying: “Bem, ela é um dragão: todas as mudanças incríveis, e algumas
delas miraculosas – muito muito poderosas.
Em Shoot for the contents, Trinh T. Minh-ha lança mão de uma estética da
parcialidade para elaborar um filme sobre a China contemporânea, promovendo articulações
entre diferentes estratégias de filmagem e de uso de recursos pictóricos e sonoros. O filme
passa das imagens filmadas em película para as imagens filmadas em vídeo, das filmagens em
locação na China para as filmagens em estúdio nos Estados Unidos, das entrevistas em inglês
e chinês para a locução de diferentes mulheres de origem chinesa falando em inglês,
promovendo conexões aparentemente aleatórias que sugerem relações e significações.
Articulam-se não apenas espaços e tempos, mas texturas, cores, movimentos, sonoridades.
Desse modo, a cineasta nos oferece, por meio do cinema, a representação de um mundo a
perceber, que nos chega através da operação de gestos ensaísticos originais e potentes.
182
CAPÍTULO 5
Para uma utilização proveitosa da fenomenologia como aporte teórico nos estudos
de cinema, que implica pensar como tais princípios filosóficos podem contribuir para
aprimorar nosso entendimento do filme escolhido para ser objeto de escrutínio, precisamos ir
além das relações apontadas acima e que definem a constituição da experiência fílmica
segundo Sobchak. É necessário um embate direto com o filme, com sua expressividade e
materialidade, a fim de evitar a armadilha da mera abstração teórica que deixa o objeto
fílmico ausente da elaboração conceitual.
36
Todos os destaques em itálico presentes nesta citação são do texto original
185
para Jenny Chamarette, no livro Time and Matter: temporality, embodied subjectivity and film
experience. Rethinking subjectivity beyond French cinema (2012) - trabalho em que se ocupa
de pensar propostas de análise fílmica sustentadas na fenomenologia - não se trata de escolher
abordagens de linhagens determinadas da corrente fenomenológica da filosofia para tal
empreendimento, atendo-se rigidamente a conceitos e categorias de filósofos específicos, mas
sim de se desenvolver uma abordagem fenomenológica. Para a autora, “esta abordagem é tão
dependente do momento contextual, histórico, plástico, textual, político, material, estético,
relacional e corporificado do encontro fílmico único, como é das numerosas vertentes teóricas
que informam, e coinformam, o momento.” (2012, p.12) Ou seja, esses desdobramentos entre
o concreto e o abstrato evidenciam um método de análise fílmica que emana da matéria
fílmica para o filosófico.
Nossa proposta aqui é a de buscar uma aproximação íntima e detida com o filme
The fourth dimension, com sua materialidade, com as estratégias fílmicas adotadas, com o
contexto da produção, a fim de realizar uma “descrição fenomenológica densa” dessa
experiência fílmica. Em particular, nos interessa refletir sobre a expressão do tempo e da
temporalidade no filme. Sobre como ele dá dimensão expressiva a diferentes temporalidades
imbricadas na experiência da cineasta com o Japão contemporâneo, oscilando de modo tanto
sutil quanto complexo entre uma dimensão rural e contemplativa e uma modernidade urbana e
pulsante. Nesse contexto a diretora se situa como sujeito da experiência e do discurso,
evidenciando um modo particular de sentir e de estar no mundo, apresentado e modulado
pelos meios do cinema em uma reflexão instigante sobre a experiência do tempo e a potência
da imagem. Sobre o cinema e o engajamento do sujeito com o mundo.
Na banda sonora, além do som direto registrado pela câmera – bastante sutil e
discreto – temos uma sonoridade instrumental que se sobrepõe. Ouvimos sons de
instrumentos de cordas sendo experimentados de maneira atípica. Eles são usados quase que
de maneira tátil e percussiva, e vão emitindo sons não-convencionais de suas cordas e
estrutura acústica. A intensidade dos sons varia, indo da calmaria para a explosão. Não são
frases melódicas, mas ritmos e ruídos extraídos aos moldes da escola da música concreta. Em
voz over ouvimos uma voz feminina gritar – Jikandes. Na tela um letreiro: It´s time.
37
No original: Traveler’s heart. Never settled long in one place. Like a portable fire. Basho.
189
e modernos, para forjar uma cultura onde a imbricação de temporalidades distintas marca a
sua experiência cultural contemporânea.
além das aparências. Diversas imagens destacam reflexos em vidros de janelas e superfícies,
criando imagens sobrepostas em camadas. Não sabemos se estamos observando o objeto
diretamente ou sua imagem. O extraordinário percebido no cotidiano.
A cineasta que empunha a câmera é também a que escreve o texto da locução, que
fala na voz over e que opera a montagem, exercendo um cinema de escrita pessoal, em que
estão interrelacionadas a experiência da viagem e a reflexão teórica sobre a viagem. Dito de
outro modo, o filme apresenta a experiência que evidencia um engajamento no mundo
centrado na presença, na corporeidade, uma experiência sensorial que usa as qualidades
legíveis do pensamento cognitivo para dar sentido ao mundo com o qual o corpo se põe em
contato por meio do tempo. “Como corpos humanos, estamos sujeitos ao tempo; a
possibilidade de pensamento é governada por uma atenção dirigida e uma presença
relacionada ao tempo. Presença em temporalidades – um evento, um momento, uma duração
– são pré-condições para sensação, experiência, e conhecimento” (CHAMARETTE, 2012, p.
22).
reflexo pouco evidente. Entretanto, podemos dizer que as imagens revelam sua presença a
partir de alguns gestos, primeiro dela própria – como o movimento de zoom-in com a câmera
que fecha na imagem sobre o corpo de uma garota que dorme no metrô. É como se o olhar da
cineasta se potencializasse com o recurso tecnológico e pudesse exercer uma aproximação
quase física com o objeto de interesse para onde dirige seu olhar. Ou então com gestos de
outros corpos com os quais ela se relaciona e que evidenciam sua presença atrás da câmera,
como no caso dos jovens monges budistas que caminham em direção à saída do templo, até
que o último monge da fila vira-se para olhar diretamente para a cineasta, revelando
curiosidade e uma troca intercultural centrada no olhar. Ser objeto do olhar, assim como
exercer plenamente esse olhar, que se constrói na cena e para o filme.
The fourth dimension pode ser visto como a apresentação das anotações – visuais
e escritas - de uma viagem, que resultam na elaboração de um caderno de viagem ou um
caderno de campo fílmico, a um só tempo parte do processo e seu produto. Tal caderno se
apropria do método etnográfico de investigação para construir uma etnografia experimental
no cinema. Nesse sentido, a produção de Trinh T. Minh-ha expande as possibilidades da
etnografia para além dos seus domínios tradicionais, apresentando o caderno de campo como
possibilidade de elaboração e de exposição de outras formas de conhecimento que assumam
um sentido rigoroso de parcialidade e poética da narrativa pessoal. Um caderno de campo
fílmico que apresenta uma visão singular sobre a arte de enquadrar o tempo.
195
Forgetting Vietnam é o mais recente filme dirigido por Trinh T. Minh-ha. Foi
lançado no final de 2015 e realizado por ocasião dos quarenta anos do fim da gerra que
assolou o país de 1955 a 1975, funcionando como forma de homenagem aos sobreviventes. O
filme apresenta-se como uma meditação sobre o país, sobre a identidade nacional, sobre os
processos de ocupação e exploração pelos quais passou, sobre a guerra e suas consequências
para a nação.
Neste caso a cineasta lança mão de estratégias visuais que nos permitem retomar
questões associadas a noção de uma estética do digital, a exemplo do que vimos mais acima
no caso do filme The fourth dimension. Forgetting Vietnam é um filme cuja visualidade é
praticamente toda arranjada na montagem digital, onde esta tem o papel de não apenas
196
De certo modo a cineasta traz para este filme experiências de montagem que são
cada vez mais recorrentes em ambientes extra-cinematográficos, como os museus e galerias
de arte, onde a projeção das imagens em espaços de circulação e visitação coloca a questão da
espacialidade e a da recepção das imagens em nova ordem de relação. Trinh T. Minh-ha
desenvolveu instalações multimídia anteriormente38 e essa experiência de problematização
das imagens em relação com o espaço de algum modo reverbera neste filme, impulsionada
pelas facilidades e possibilidades do aparato digital de montagem. São questões que aqui nos
fazem pensar também na relação entre campos artísticos distintos. Mais precisamente,
relações entre os domínios do cinema e os domínios das artes visuais. Consideramos que este
filme da cineasta catalisa no cinema algumas experiências que ela conduziu em instalações
multimídia, promovendo no filme uma série de experiências de composição visual que se
inspiram por trabalhos artísticos que propõem outros experimentos sensoriais para o público
que não aqueles tradicionalmente encontrados na recepção tradicional do filme projetado na
tela de cinema em uma sala escura de projeção (ou mesmo na exibição em telas menores em
ambientes outros, como as telas de TV e aquelas utlizadas pelos projetores de vídeo/DVD).
38
Minh-ha produziu as seguintes instalações multimídia: Nothing But Ways (Yerba Buena Center for the Arts,
São Francisco, Estados Unidos, 1999), The Desert is Watching (Kyoto Art Biennale, Kyoto, Japão, 2003),
L’Autre marche (The Other Walk) (Musée du Quai Branly, Paris, França, 2006-09) e Old Land New Waters (3rd
Guangzhou Triennale 2008; Okinawa Prefectural Fine Arts Museum, Okinawa, Japão, 2007 & 2009).
198
Um dos aspectos notáveis aqui, além da evidente presença de elementos que são
recorrentes em filmes de Trinh T. Minh-ha, como o protagonismo feminino, é a importância
da palavra. Se colocarmos as instalações em perspectiva com relação aos filmes, podemos
dizer de sua importância no conjunto da obra de Trinh T. Minh-ha, seja ela escrita ou falada.
Nossas análises fílmicas apresentadas até aqui já colocaram bastante ênfase em como essa
valorização da palavra está entre as estratégias centrais da expressão artística de Minh-ha. As
fotos da instalação permitem ver que a palavra, além da sua utilização poética, tem uma
apresentação visual importante e uma relação com o espaço decisiva para a proposta de corpo
que a obra propõe. Ou seja, a palavra como recurso e operador da poesia, apreendida e
experimentada no espaço, por uma relação não somente visual, mas de uma sensação
corpórea, quase tátil. Uma relação entre o corpo do público e o corpo da obra.
39
http://trinhminh-ha.com/nothing-but-ways/
200
A descrição do site: “No deserto, tudo se move. Nada é sempre o mesmo. Assistir
a luz viajar pelo penhasco, ou testemunhar um lago mudando sua lozalização minuto a
minuto com o movimento do vento através da superfície infinita do sal, alguém tem que se
inserir em um lugar e se tornar um deserto. Po outro lado, no deserto, nada se move. A força
do céu domina. Alguém caminha em direção ao silêncio da morte e vê ondas de montanhas,
rochas e areia sem movimento. [...] A instalação é a primeira manifestação de um projeto
maior em andamento cuja realização se dará em diferentes formas em diferentes locações e
circunstâncias. Tal como configurada aqui, os espectadores não verão nenhuma foto ou
imagem de vídeo até que entrem no espaço. A estrutura de tecido serve como um dispositivo
de gradiente para desacelerar o acesso visual. É apenas quando o público alcança a segunda
metade da sala (ou antes se forem mais altos) e quando suas cabeças tocarem o tecido que
eles encontram, veem, e experimentam imagens do deserto. A intervenção do público – tanto
se emergem sobre o horizonte da estrutura de tecido ou se permanecem parcialmente presos
nela – determina o modo como enxergam. As sequências em vídeo, instáveis, mutantes,
compostas de longas e ininterruptas panorâmicas todas se movendo na mesma direção,
oferecem um panorama do deserto em suas aparições sazonais. As sequências são projetadas
em pares simultaneamente em ambos os lados da parede. As imagens de slide estáveis são
tambem projetadas em pares como duplos, sendo uma imagem original e outra o seu reflexo
invertido, próximas umas das outrs na parede mais distante da entrada. Elas são mostradas
em lentas dissoluções como imagens de miragem que jogam com a relação entre o corpo e a
paisagem.40”
Por mais precário que seja lançar mão da descrição acima e das fotos presentes
no site de Trinh T. Minh-ha para travar um contato com a instalação, acreditamos que isso nos
permite pelo menos ilustrar alguns elementos associados à sua produção artística que são
importantes para levarmos a cabo a análise do filme aqui proposta. Fica claro, pela descrição,
como a instalação propõe uma experiência em que a sensorialidade está associada a uma
presença física do público, sendo este convocado a uma relação com o espaço, permeado por
imagens que ali ocupam lugares criando uma espécie de topografia pelas imagens técnicas,
construindo um campo de visão amplo.
40
http://trinhminh-ha.squarespace.com/the-desert-is-watching/
202
manifestação artística, como é o caso dos museus ou das galerias de arte, tem suscitado
diversas questões e ocupado pesquisadores e teóricos. Entre algumas das questões centrais
nessa relação podemos destacar aquelas que se propõem a problematizar como as convenções
do cinema têm sido utilizadas por artistas que trabalham com o audiovisual e que produzem
especificamente para esse circuito de artes visuais. Segundo Philippe Dubois (2014, p.138)
41
Os destaques em itálico desta citação são todos do original
42
La querelle des dispositifs: cinèma, installations – expositions (Paris: P.O.L., 2012)
203
dessas estratégias a considerar outras possibilidades de relação entre as imagens que não
apenas aquelas existentes nas condições propriamente de uma montagem cinematográfica,
onde o filme como produto acabado opera articulações de construção de tempo e espaço na
justaposição das imagens e sequências em uma relação temporal progressiva.
43
http://trinhminh-ha.com/lautre-marche-the-other-walk/
204
E por último Old Land New Waters, a mais atual experiência de Trinh T. Minh-ha
com instalações, foi desenvolvida em 2007 para o museu de belas artes da prefeitura de
Okinawa, Japão, e depois participou em 2008 da 3ª trienal de artes de Guangzhou, na China.
Segundo o site: “Uma instalação em vídeo composta por duas sequências: Dât (terra), com
aproximadamente 7 minutos, e Nuoc (água) com aproximadamente 11 minutos – os dois
elementos referem-se a ‘país’ (dât nuoc) em vietnamita, e evocam os espíritos ancestrais dos
povos do céu e da terra em uma era de rápida globalização. As duas sequências devem ser
projetadas simultaneamente e de modo contínuo em duas grandes telas no mesmo espaço,
206
justapostas próximas uma a outra com um intervalo ao meio (que pode ser uma entrada, por
exemplo, e as duas sequências poderiam ser projetadas nos lados esquerdo e direito da
entrada)44.”
44
http://trinhminh-ha.com/old-land-new-waters/
207
Para Dominique Paini, que tem se dedicado a pesquisar as relações entre cinema e
artes visuais, a relação entre esses campos ocorre em via de mão dupla. Temos um movimento
vindo do campo do cinema para as artes visuais, tanto no que diz respeito às práticas
operacionais quanto aos aspectos estéticos, como há um movimento contrário, que vem do
campo das artes visuais para o cinema, devolvendo questões também da
O movimento de abandonar e retornar que move o filme inicia-se pela água, com
o trânsito entre as embarcações. Acompanhamos o novo circuito de turismo que invade o país
e também acompanhamos os modos tradicionais de vida que se constituem em moradias
flutuantes e nos deslocamentes incessantes pelas vias aquáticas. Muito do que o filme
apresenta das configurações tradicionais do Vietnã depende e está conformado por sua relação
com a água. Sobre imagens das embarcações que levam turistas pelas áreas da encosta do
Vietnã que são preenchidas de rochas, cavernas e montanhas, somos apresentados a mitos
ancestrais que explicam a origem das áreas alagadas, dos rios e mares a partir da presença do
dragão e suas lágrimas. Ainda sobre as águas e a presença cada vez maior de turistas,
especula-se sobre a modernidade e o presente em relação com a tradição e o passado.
209
45
Shoot for the Contents tem filmagens em vídeo feitas na China e filmagens em película nos Estados Unidos.
211
CAPÍTULO 6
A tale of love (1995) foi codirigido por Jean-Paul Bourdier, habitual colaborador
da cineasta. Trata-se de um filme inspirado em um tradicional poema de amor vietnamita
intitulado The tale of Kieu, de autoria de Nguyen Du, datado do início do século XIX. É um
filme de ficção, com um roteiro de cenas previamente elaboradas, com diálogos e posições de
cena marcadas, interpretado por atores, mas elaborado nos limites das convenções do cinema
narrativo em franco diálogo com a experimentação visual. Visualmente o filme adota o uso de
uma paleta de cores primárias saturadas e enquadramentos e encenações que provocam a
desnaturalização do espaço cênico em uma narrativa elíptica que transcende o rigor da
estrutura do filme de ficção convencional em favor de uma estrutura mais poética e alusiva ao
tema do amor e do estado de espírito da personagem principal.
Após uma citação do conto original de Nguyen Du inscrita na tela e sobre a qual
ouvimos um cântico tradicional vietnamita, a cena inicial mostra a protagonista correndo por
um campo, em uma composição visual que destaca o contraste entre o céu azul, o amarelo da
vegetação e a roupa vermelha da personagem que corre cruzando a tela. Corte para um close
da protagonista utilizando o non lá, típico chapéu vietnamita, com o rosto iluminado com luz
artificial vermelha, com marcas de sombra proeminentes. Novo corte e vemos um lençol
emaranhado sobre uma cama envolta em um véu armado. Uma voz chama pelo nome da
protagoniosta, Kieu. Do lençol emaranhado levanta-se a protagonista, que está nessa cama,
como que protegida ou isolada nesse microambiente existente no interior do véu e, que pode
ser tomado como uma alusão ao seu ambiente interior, de onde vem a força da imaginação
que inspira sua escrita.
215
Estas imagens iniciais dão o tom do filme e apresentam as premissas com as quais
ele vai desenvolver sua narrativa, tanto visual quanto dramática. Visualmente, as cores são
fortes, em tons primários e o uso de sombras e luzes artificialmente arranjadas se faz presente.
Narrativamente, temos a passagem pelo onírico, o universo simbólico subjetivo da
personagem, e a passagem pelo universo da sua vida cotidiana, onde ela relaciona-se com as
outras personagens e onde exerce sua atividade de escrita.
Este é um filme com requinte metalinguístico, algo que fica evidenciado diversas
vezes em sua narrativa. O elemento mais decisivo neste sentido é o fato de o poema que o
inspira ser citado pela personagem, assim como este ser responsável por animar reflexões
acerca do amor no desenrolar diegético. Além disso há outros elementos, como o personagem
fotógrafo, que em algumas de suas falas elabora sobre o papel do olhar na interpretação da
realidade e sobre a atuação e a performance que sempre estão presentes em situações de
fotografia (poderíamos dizer de filmagem).
para elaborar um filme que aparentemente - e apenas no nível da aparência mesmo - joga na
chave do kitsch e do simulacro, mas que em essência, é um filme que opera em um intervalo
entre as expressões cinematográficas convencionais e alegóricas, entre o cinema como desejo
de interpretar os sonhos e o cinema como desejo de interpretar a realidade.
Night Passage não é um filme fácil com o qual se relacionar. É um caso isolado
dentro da filmografia da cineasta, que pode ser associado a filmes raros na história do cinema.
Daqueles filmes que propõem uma experiência única, que não pode ser reproduzida ou
repetida com facilidade. De todos os trabalhos da cineasta este é o mais radical em suas
apostas. Aparentemente distante de convenções cinematográficas das searas com as quais
Trinh T. Minh-ha vinha se relacionando até então, articula relações com diversas atividades
artísticas de modo muito livre, incorporando elementos que remetem à performance em
diversas de suas expressões, elementos do teatro, passando pela música, as artes corporais, a
poesia. Em relação a cada uma dessas expressões as referências não são simples ou
convencionais. São ecos das mais variadas atividades de vanguarda nesses campos da arte,
todas articuladas de forma livre, utilizando o filme como uma espécie de suporte para a
expressão artística de vanguarda, sem toma-lo como uma forma experimental em seus
próprios meios expressivos, mas como um veículo da experiência estética em sua plenitude.
Este é um caso fora do escopo da nossa pesquisa aqui desenvolvida e, conforme adiantamos
mais acima neste capítulo, passaremos a uma análise panorâmica, quase descritiva do filme, a
fim de incluir em nosso trabalho referências a todos os trabalhos cinematográficos de Trinh T.
Minh-ha disponíveis até o momento da conclusão de nossa pesquisa.
Aqui nesta versão não há propriamente um enredo a nos conduzir, apenas uma
trama muito tênue. A viagem das amigas e do garoto se faz a partir de uma espécie de sonho
acordado, ou de visão metafísica em uma associação com temas de experiências entre a vida e
a morte conduzidas pela ligação da amizade. Nessa jornada das amigas e do garoto, elas vão
se deparando com personagens e experiências diversas, que são apresentados por meio de
performances distintas, com apresentações musicais, teatrais, declamação de textos e danças.
Um filme que propõe uma experiência complexa e heterogênea entre o visual, o verbal e o
musical. Olhos e ouvidos em relação interdependente.
220
Apontamos mais acima que, aparentemente, o filme está distante das outras
produções da cineasta. No entanto, se aprofundarmos um pouco mais nossa reflexão, talvez
cheguemos à conclusão de que essa primeira impressão é realmente apenas uma aparência.
Em essência, o filme radicaliza em sua proposta alegórica e simbólica, mas trabalha sobre
temas que são recorrentes na produção fílmica de Trinh T. Minh-ha. Aqui estão presentes a
preocupação com a luz, com a sonoridade, com o corpo, com a performance. A construção do
discurso fílmico se dá por outros meios, mas a problematização desses elementos pode ser
aproximada das preocupações que mobilizam a cineasta em toda a sua produção fílmica,
independente do campo com o qual ela está em diálogo. O caso radical de Night Passage
serve para complexificar uma filmografia que em si é bastante desafiadora.
Além das performances que atravessam o filme, há outros elementos que também
podem ser encontrados em obras anteriores, como tópicos associados à tecnologia e à
construção discursiva como proposta autorreflexiva. Os rituais tecnológicos aparecem aqui
como uma espécie de constante, em uma perspectiva quase evolucionista, passando por salas
de máquinas industriais antigas, maquinários associados ao trem e ao movimento, até chegar a
salas tecnológicas ligadas a recursos da imagem e da visão. A exploração dos recursos digitais
221
Night passage e A tale of love são filmes em que Trinh T. Minh-ha pôde desenvolver
sua proposta artística em direções antes pouco exploradas. Permitiram que a cineasta
explorasse de novas formas em seu cinema relações com outras formas artísticas que fazem
parte de seu universo simbólico e de sua formação como artista, especialmente a música e a
literatura. Transitando por entre o experimental e o narrativo, a cineasta explora as
possibilidades expressivas da literatura e da música na construção de sua diegese, explorada
pela cineasta como um trânsito entre a imaginação e a realidade. Um fluxo de performances
artísticas que atravessa convenções e domínios cinematográficos para explorar intervalos
onde possa habitar e desenvolver sua proposta artística pelo cinema.
223
CONCLUSÃO
“Posso dizer que não é apenas o formato das flores e frutos de uma
planta que importa, mas também a seiva que os percorre”
Trinh T.Minh-ha
permitiram desenvolver tal aproximação satisfatoriamente aqui e a proposta fica aqui como
sugestão para trabalhos futuros.
Por outro lado, como resultado de nossa opção em nos debruçarmos sobre os filmes
como material primário de nossa pesquisa acreditamos que estamos oferecendo algumas
observações pertinentes principalmente em relação ao campo do cinema documentário,
destacando como uma filmografia tão desafiadora como a de Trinh T. Minh-ha nos permite
repensar toda uma tradição, oferecendo novas perspectivas sobre aspectos essenciais à prática
desse domínio cinematográfico. E o faz a partir de questões como a relação entre sujeito e
objeto, a problematização de posições de poder e reflexões sobre identidade e alteridade, entre
outros tópicos que são desafiados pela produção crítica da cineasta. Além, é claro, de ser um
cinema que utiliza de modo inovador as principais estratégias narrativas típicas dessa seara
cinematográfica, contribuindo substancialmente para uma reavaliação e revalorização do uso
da entrevista, das articulações da montagem e, principalmente, da locução em voz over.
Seu famoso aforismo “Eu não pretendo falar sobre, apenas falar próximo”, não se
restringe a uma declaração de princípios, mas pode ser tomado como um conceito importante
que muito revela sobre as relações de poder que estão em jogo no ato de filmagem de um
documentário, sobre as relações entre quem filma e quem é filmado. Pode ser tomado como
um novo estrato discursivo no campo do cinema documentário, que dá visibilidade a lugares
sociais antes esquecidos, que não estavam em posições hegemônicas de poder, traz à tona
questões antes negligenciadas, como aquelas relativas aos chamados grupos minoritários ou
46
Itálico do original
225
que sofrem de algum tipo de discriminação, seja racial, de gênero ou social. Neste quesito,
Trinh T. Minh-ha reúne uma série de predicados que parecem situá-la em uma posição
peculiar, a de acumular o lugar de diversos Outros: ser mulher – em oposição a hegemonia
masculina nas posições de comando no campo do cinema; ser asiática trabalhando com
cinema independente nos Estados Unidos – em oposição a normas e convenções rígidas de
uma área produtiva fortemente marcada pelo corporativismo e pelo modelo industrial bastante
codificado, por exemplo.
Esse novo estrato discursivo a que fizemos menção mais acima se diferencia daqueles
mais convencionais encontrados na tradição do documentário - como sabemos,
principalmente os tradicionais falar sobre ou falar por – e parte considerável de nossa
pesquisa se dedicou a investigar as estratégias narrativas utilizadas pela cineasta. Tais
estratégias se utilizam de modo original das possibilidades da banda sonora, demonstrando
como os protocolos recorrentes da tradição do cinema de não-ficção são passíveis de suscitar
modos narrativos inovadores, contribuindo para uma expansão das possibilidades criativas do
campo do documentário e para uma compreensão mais complexa da posição deste no campo
das formas expressivas contemporâneas. Entretanto, tais posições não são apenas típicas dessa
tradição cinematográfica em particular, mas podem também ser associadas a outras formas de
discurso sobre a diferença cultural. Aqui passamos a abordar um ponto importante que
226
Reasssemblage – from the firelight to the screen e Naked Spaces – living is round, os
dois primeiros filmes da cineasta, dialogam fortemente com o domínio do cinema
antropológico: foram filmados em sociedades distantes dos grandes centros urbanos
modernos; registram povos e modos de vida distintos daqueles que detém os poderes
hegemônicos no mundo ocidental contemporâneo; enfatizam aspectos culturais como
trabalhos manuais, cerimônias, habitações, rituais. Ou seja, evocam expectativas em certos
meios sociais e intelectuais, especialmente no campo da antropologia, domínio no qual a
recepção desses filmes foi problemática. Em diversos textos escritos por antropólogos, a
cineasta e esses filmes – especialmente Reassemblage – foram atacados e acusados, entre
outras coisas, de abordarem superficialmente os métodos da antropologia e de serem
desinformados sobre a teoria antropológica. Consideramos que essa recepção crítica negativa
reflete uma incompreensão fundamental em relação aos filmes de Trinh T. Minh-ha: a de que
estes podem ser enquadrados sob nomenclaturas e gêneros específicos. Seus filmes não se
conformam em limites rígidos e normativos. Ao contrário. Eles borram fronteiras e irrompem
bordas entre práticas e áreas distintas. E isso não acontece de modo gratuito ou esquemático,
mas é diretamente ligado à sua postura ética, estética e política, que foi forjada justamente
entre-áreas de conhecimento, incitando convenções e tradições, deslocando estratégias
discursivas de um campo a outro, subvertendo cânones e renovando tradições. Foi isso que
buscamos demonstrar no decorrer da tese. Prova de que há uma incompreensão fundamental
em relação à sua obra é o fato de que é recorrente que ela seja citada como cineasta-
antropóloga, coisa que efetivamente ela não é; ou de seus filmes serem considerados
exemplos de filmes etnográficos experimentais, na tentativa de inseri-la em uma tradição
cinematográfica específica, à sua revelia.
Aqui ganha força a noção de intervalo como uma categoria explicativa dessa postura
desafiadora. O intervalo é o espaço avesso às polarizações, aquele que está situado de modo
intermediário em relação às dicotomias, mas cuja existência promove o tensionamento desses
polos face aos quais está situado sem se fixar em um ponto determinado. Existe aqui uma
certa impropriedade que configura a potência da noção de intervalo. O fato de o intervalo não
estar definido claramente em uma posição única o transforma em um espaço múltiplo. Um
espaço aberto à invenção, aberto à inovação.
227
rigoroso de parcialidade”, tal como proposto por James Clifford. (1986). Uma estética que
assume sua radical parcialidade como força criativa para negar as dicotomias e as formas de
representação cristalizadas em discursos de poder que refletem tradições historicamente
dominantes.
Sendo assim, podemos dizer que a maior parte das críticas oriundas do campo da
antropologia direcionadas à cineasta e a seus filmes, especialmente nesse início da sua
filmografia, são equivocadas pois exercem tal questionamento buscando situá-la em campos
disciplinares. Exigem, portanto, algo que está negado de modo intrínseco na sua produção,
tanto intelectual quanto artística: a conformação a modelos, cânones, convenções, práticas,
paradigmas. O cinema de Trinh T. Minh-ha é desafiador, pois resulta de uma postura de
descoberta permanente, que elabora seu discurso e sua expressividade ciente das estratégias
recorrentes nas áreas com as quais dialoga e não tenta meramente desconstruí-las, mas sim
expandir suas possibilidades a partir de novas perspectivas que se abrem para expressar
modos originais de ser, estar e perceber o mundo, como já tivemos chance de apresentar no
decorrer desta tese.
musical, com estudos em diversos instrumentos, e sua formação em literatura comparada nos
levam a essa inferência.
podemos notar em sua produção fílmica questões caras ao feminismo de modo geral, como
evidenciar o protagonismo das mulheres e problematizar a questão do olhar e da
representação do corpo feminino, assim como das relações de poder e submissão ensejadas
por esses atos. Entretanto, um elemento que nos parece central é a maneira seus filmes
materializam questões levantadas desde os anos 1970 por autoras que se dedicaram a pensar o
que poderia ser um cinema realizado por mulheres. Em síntese, a busca por um outro cinema,
um cinema que de forma radical se recusasse a seguir fórmulas e modelos hegemônicos que
representam discursos e estéticas fortemente associadas ao corporativismo e ao sexismo
encontrados nos modelos comerciais e industriais de cinema.
Nessa relação entre arte e cinema, Trinh T. Minh-ha aparece como um exemplo
importante, pois reúne de forma radical as características necessárias para que a concepção de
um cinema tal como pensado pela teoria feminista do cinema possa se tornar realidade. Sua
filmografia é marcada por experimentações estéticas que não são meramente formais, mas que
estão a favor de encontrar novas estratégias narrativas. Como insistimos no decorrer desta
pesquisa, seu cinema desafia rótulos, padrões, modelos e convenções, de forma a pensar o
cinema como experiência original. A filmografia de Trinh T. Minh-ha afirma uma
experimentação de cinema feminista que materializa no corpo fílmico demandas do campo
teórico. Seus filmes guardam uma coerência interna importante em relação a essa postura de
experimentação.
Trinh T. Minh-ha encontrou no uso da locução em voz over um dos principais agentes
de sua estratégia para problematizar a tradição do cinema documentário. Utilizando de forma
231
extremamente original este recurso que é um dos cânones do paradigma clássico do cinema de
não–ficção, os filmes da diretora nos permitem ver como o cinema é uma forma expressiva
potente e como o documentário é um domínio que ainda pode ser explorado de forma criativa.
As estratégias de uso da locução são diversificadas e originais: da voz over reflexiva de
Reassemblage, passando pela polifonia de vozes de Naked Spaces, pela encenação de
Surname Viet Given Name Nam, pelas duplas de vozes de Shoot for the Contents, pela voz
lírica e pessoal de The Fourth Dimension até a ausência de locução em Forgetting Vietnam, o
recurso da voz over é um vetor central na elaboração do cinema da cineasta, sem nunca ser
repetitivo ou convencional.
A locução em voz over concentra duas linhas de força da produção de Trinh T. Minh-
ha. Primeiro, a importância da palavra, que em todas as suas dimensões, da escrita à falada,
permite à cineasta desenvolver uma postura ensaística que transita entre o literário e o
cinematográfico. Da palavra lida ao modelo de um diário de campo em Reassemblage, para a
ausência da palavra falada aos moldes de uma reflexão digressiva do pensamento em
Forgetting Vietnam, notamos os diferentes usos de um mesmo recurso. O uso criativo da
locução nos filmes da cineasta ganha maior importância se considerarmos que este é um
recurso fundamental do cinema documentário, geralmente tomado como uma estratégia já
cristalizada, com convenções bastante rígidas a serem seguidas (lembremos dos modelos de
documentário clássicos) e que no seu cinema ganham dimensão expressiva central,
subvertendo expectativas recorrentes e demonstrando a inegável existência desse outro
cinema que a teoria feminista do cinema desejava.
terceira, em tom médio, que narra em primeira pessoa e relata sensações e observações
pessoais.
O uso da voz no cinema de Trinh T. Minh-ha tem nuances típicas do campo musical,
como a preocupação com o timbre e a tonalidade. Estes aspectos, que nos remetem às origens
da formação acadêmica da cineasta, estão presentes não apenas no ambiente sonoro dos
filmes, mas em toda sua produção cinematográfica. Nesse aspecto, notamos que podemos
sintetizar três categorias que são oriundas do campo musical e que são decisivas para se
pensar o cinema da cineasta, pois se estendem do ambiente sonoro para os filmes como
objetos individuais tanto quanto para a sua filmografia de modo amplo. São elas as noções de
ritmo, duração e ressonância. Cada uma dessas noções está presente em todos os seus filmes e
podem ser percebidas pelos modos com que a cineasta as utiliza em suas estratégias
narrativas.
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