Você está na página 1de 12

DOI 10.21680/2446-5674.

2022v9n17ID

Equatorial

ENSAIO VISUAL
v.9 n.17 | jul./dez. 2022
ISSN: 2446-5674

Dossiê: Antropologia e fotografia: experimentações e etnografias

Fotografias “despretensiosas”: as
transformações do toré dos Tapuias
Tarairiús da Lagoa de Tapará durante as
feiras de cultura (2015-2018).

“Unpretentious” photographs: the


transformations of the toré of the Tapuias
Tarairiús from Lagoa de Tapará during the
culture fairs (2015-2018).

Fotografías “sin pretensiones”: las


transformaciones del toré de los Tapuias
Tarairiús de la Lagoa de Tapará durante las
ferias culturales (2015-2018).
Título do texto Ensaio
Visual

Apresentação
Eu começo este ensaio visual com um trecho de fala da liderança e cacica
Francisca Bezerra, durante uma entrevista que realizei com ela no Conselho
Comunitário Indígena de Tapará (CONCINT).

Meu tio dançava o toré, mas eu não participava porque minha família não
permitia. Eles faziam numa casa, era fechado, entre quatro paredes, como se
estivessem fazendo algo de errado. Hoje eu percebo que não é errado. Eles
eram vistos como Catimbozeiros, que fazia mal para o povo, que eram
Xangozeiros. Meu tio foi ficando mais velho e com o tempo faleceu
(entrevista realizada com Francisca Bezerra, 05 de maio de 2018).

A narrativa construída por Francisca sobre o toré, memora através do seu tio,
parte dos duros efeitos do racismo e do genocídio sofrido pelos povos indígenas do
Rio Grande do Norte (CAVIGNAC, 2003). Doravante, hoje é a mesma prática do
toré – anteriormente mal vista – que é trazida em narrativas dos Tapuias Tarairiús
como uma “retomada” e/ou “resgate” das práticas culturais indígenas. O toré compõe
parte de um repertório cultural essencial na reorganização e no fortalecimento da
ancestralidade e da identidade coletiva de Tapará. De forma ampla, o toré tornou-se
uma prática essencial na mobilização dos indígenas do Nordeste: (1) seja como parte
do repertório cultural da reorganização interna de cada povo indígena; (2) como nos
seus usos políticos em diversas situações de resistência (GRÜNEWALD, 2008).
A Lagoa de Tapará é uma das três comunidades do povo Tapuias Tarairiús,
composta em 2018 por 499 indígenas, e localizada no estado do Rio Grande do
Norte, na fronteira da região rural dos municípios de Macaíba e São Gonçalo do
Amarante. Desde 2011 a comunidade de Tapará vem se reorganização
sociopoliticamente como indígenas. Neste percurso, no ano de 2014, o toré foi
incorporado na comunidade como uma prática coletiva de caráter cultural e político;
e apresentado publicamente em 2015, na I Feira Cultural da Lagoa de Tapará. Na
dissertação de Moura (2019), a autora descreve o toré em Tapará como um
movimento em círculo, com uso do maracá, batidas dos pés no chão em harmonia
com as vozes, e uma musicalidade com letras comuns a outros povos indígenas e que
foram adaptadas com a pronuncia do nome “tapuia” e dos espécimes locais da
comunidade. A autora ainda diz que em Tapará o toré é realizado especialmente em

Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022 2


Autor(a)

momentos públicos, ao invés de secreto, e caracterizado majoritariamente pelos


Tapuias Tarairiús como uma prática de significado “político”, “dancistico” e
“lúdico”.
Neste ensaio fotográfico, retrato o toré realizado na feira de cultura entre os
anos de 2015 à 2018. A feira de cultura em Tapará é um evento festivo, político e
cultural que ocorre todos os anos no último domingo do mês de maio. A festividade é
realizado durante todo o dia, em frente ao CONCINT e nela participam indígenas e
não indígenas, sendo alguns desses convidados pela comunidade. No centro do
evento – respectivo ao espaço sob a oca – ocorrem atrações culturais diversas, na qual
se tem o toré, o boi de reis, a capoeira, o forró pé de serra, etc. ademais falas políticas
endereçadas ao público, pelas lideranças indígenas de Tapará e parceiros da
comunidade – como políticos partidários e representantes institucionais. Espalhado
ao redor da festividade, encontra-se barracas com comidas e artesanatos, que são
comercializados e convertidos financeiramente para as famílias da comunidade e para
o CONCINT. Além de encontrarmos barracas que expõe a cultura local, como a
pintura corporal, as plantas medicinais, os inventários e exposições de insetos e
animais da redondeza, e os objetos e brincadeiras indígenas.
Ao longo dos anos, a estrutura da feira de cultura foi sendo alterada, num
constante processo transformativo, negociando-se a permanência, as alternâncias, as
inserções, as idas e vindas da construção do evento: (1) foi criada uma oca em frente
ao CONCINT no ano de 2018; (2) inseriram outras barracas, como a referente as
plantas medicinais, que surge em 2018, mas somente reaparece em 2022; (3) novas
práticas culturais foram adotadas, como por exemplo a corrida de toras; (4) outras
práticas culturais foram transformadas, como o próprio toré. Diante de suas mudanças
a feira de cultura permanece sendo um ato de resistência, visto em sua estratégia de
firmar parcerias, dar visibilidade à comunidade, e também de reafirmar um
pertencimento identitário do coletivo. A feira de cultura que no ano de 2022 está em
sua sexta edição, aparece como efeito, mas também como parte, das “políticas
culturais” (CUNHA, 2016) promovidas e desenvolvidas pelos indígenas Tapuias
Tarairiús.
Dito isso, este ensaio fotográfico é o resultado de incursões as feiras de cultura
de Tapará; sendo uma revisitação do meu acervo pessoal. Em 2015 – no meu
primeiro ano de graduação no curso de ciências sociais – participei da I Feira de
Cultura como atividade de campo da disciplina de “Introdução à Antropologia”. Esse

3 Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022


Título do texto Ensaio
Visual

também tinha sido o primeiro ano da feira de cultura, inicialmente facilitada pelo
grupo Motyrum. Nos anos de 2017 e 2018, já participava da feira de cultura como
bolsista de Iniciação de Pesquisa (IC) pelo projeto “*1”, mas mesmo assim, a
fotografia não foi intencionalmente mobilizada para fins científicos. Anos após eu ter
fotografado estas imagens, (re)observa-las veio a se tornar um esforço reflexivo de
perceber as mudanças da forma, da estética, do maior engajamento dos indígenas, dos
comportamento e dos movimentos do toré durante a feira de cultura de Tapará.
Revisitar as imagens também me faz pensar como as fotografias fizeram parte de
minha pesquisa (*), e como ao longo da minha trajetória de pesquisador reatribuí
significados diferentes as fotos, que um dia foram feitas de forma despretensiosa. A
composição das imagens que se seguem, transversa tempos, construindo uma
etnografia sobre as transformações do toré. Como sugere Godolphim (1995), as
fotografias devem ser montadas para compor uma narrativa etnográfica, buscando ir
além da ilustração.
As fotografias a seguir foram produzidas com uma câmera Nikon D3200 e
lente grande angular AF-S Nikkor 18-55mm, sem uso de editor de imagens.

1
O asterisco foi usado para ocultar informações que identifiquem o autor.

Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022 4


Autor(a)

1. I Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


Início da formação do toré. Foto: *, (31/05/2015).

2. I Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


Ao centro, Francisca Bezerra iniciando a condução do toré. Foto: * (31/05/2015).

5 Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022


Título do texto Ensaio
Visual

3. I Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


As indígenas com braços dados durante o toré. Elas realizam um movimento circular e
centrípeto (ao centro). Foto: * (31/05/2015).

4. I Feira de Cultura da Lagoa de Tapará

Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022 6


Autor(a)

As indígenas realizando o toré. Elas fazem um movimento circular enquanto batem os


pés no chão em harmonia com as vozes. Enquanto no primeiro plano vemos Francisca;
no plano de fundo podemos ver o rosto de Nega. Foto: * (31/05/2015).

5. III Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


Criança indígena dançando o toré, enquanto segura o maracá. Foto: * (28/05/2017).

7 Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022


Título do texto Ensaio
Visual

6. III Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


O pajé Amauri batendo no tambor durante o toré. Foto: * (28/05/2017).

7. III Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


A esquerda está a liderança Zuleide Bezerra e a direita dona Benedita Gerônimo. Ambas
estão segurando o maracá enquanto dançam o toré. Foto: * (28/05/2017).

Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022 8


Autor(a)

8. IV Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


O pajé Amauri preparando as ervas antes de iniciar o toré. O pajé Amauri não é do povo
Tapuias Tarairiús, mas foi convidado para conduzir o toré. Foto: * (27/05/2018).

9. IV Feira de Cultura da Lagoa de Tapará

9 Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022


Título do texto Ensaio
Visual
Indígenas realizando um movimento centrípeto (ao centro) durante o toré. Neste ano, o
toré foi iniciado de braços dados e seguindo um movimento ondulatório em rumo a oca.
Prossegue pela formação do círculo e dos movimentos circulares acompanhado de
batida dos pés no ritmo da música. Foto: * (27/05/2018).

10. IV Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


Em movimento de círculo, o pajé Amauri passa com o fumo pelos Tapuias Tarairiús. O
pajé Amauri usa o fumo como parte do rito de purificação. O fumo somente foi tragado
por alguns indígenas; os outros recusaram. Foto: * (27/05/2018).

Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022 1


0
Autor(a)

11. IV Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


Crianças indígenas participando do toré. As lideranças da comunidade vêm
incentivando a participação e o engajamento das crianças e dos jovens nas práticas
culturais da comunidade e na inserção deles no movimento indígena. Foto: *
(27/05/2018).

1 Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022


1
Título do texto Ensaio
Visual

12. IV Feira de Cultura da Lagoa de Tapará


A esquerda a liderança e cacica Francisca Bezerra, a direita o pajé Amauri. Foto: *
(27/05/2018).

Referências
CAVIGNAC, Julie Antoniette. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no
Rio Grande do Norte. Mneme, Caicó, v. 4, n. 8, p. 1-79, abr./set. 2003.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Políticas culturais e povos indígenas – uma
introdução. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer
(Org.). Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 9-
21.
GODOLPHIM, Nuno. A fotografia como recurso narrativo: problemas sobre a
apropriação da imagem enquanto mensagem antropológica. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 161-185, jul/set. 1995.
GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. As Múltiplas Incertezas do Toré. In:
GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org.). Toré: Regime Encantado do Índio do
Nordeste. Recife: Massangana. p. 13-38.
*
MOURA, Allyne Dayse Macedo de. “Aqui tem sangue e suor de índio”:
resistência, etnicidade e luta política dos Tapuias da Lagoa do Tapará - RN. 2020.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019.

Recebido em xx de xx de xxxx
Aceito em xx de xx de xxxx

Equatorial, Natal, v. 9, n. 17, jul./dez. 2022 1


2

Você também pode gostar