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GUARULHOS
2023
MARCELLA STEFANY BATISTA PEREIRA
GUARULHOS
2023
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no
Repositório Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição,
sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou
download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a
fonte.
Do male ao female gaze: uma análise a partir dos olhares em Retrato de uma Jovem em
Chamas/ Marcella Stefany Batista Pereira. – 2023. – 32f.
Título em inglês: From male to female gaze: an analysis based on gazes in Portrait of a Lady
on Fire.
Este artigo tem como intuito analisar os olhares apresentados por Adèle Haenel e
Noémie Merlant em Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), dirigido por Céline
Sciamma com base nas representações do próprio filme e teorias de cinema e
sociais. O objetivo do presente trabalho é explorar as questões de poder do olhar a
partir das relações construídas entre as personagens, fazendo o leitor refletir a
respeito da importância do olhar para o desenvolvimento das relações, sejam elas
românticas, de amizade ou de subserviência, e de clichês do cinema lésbico, a partir
de teorias já existentes como a análise male e female gaze de Laura Mulvey (1989),
questões visuais nas artes por John Berger (1999) e as relações de subsistência da
mulher a partir da obra de Gerda Lerner (2019).
This article aims to analyze the gaze presented by Adèle Haenel and Noémie
Merlant in Portrait of a Lady on Fire (2019), directed by Céline Sciamma based on
the representations of the film itself and cinema and social theories. The objective of
the present work is to explore the issues of the power of the gaze based on the
relationships built between the characters, making the reader reflect on the
importance of the gaze for the development of relationships, whether they be
romantic, friendship or servitude, and of clichés of lesbian cinema, based on existing
theories such as Laura Mulvey's analysis of the male and female gaze (1989), visual
issues in the arts by John Berger (1999) and women's subsistence relationships
based on Gerda Lerner’s work (2019).
1 INTRODUÇÃO 8
2 MALE E FEMALE GAZE 9
3 QUESTÃO DO NU 11
4 OLHARES A PARTIR DA CONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO 13
5 SOPHIE 22
6 CONTO DE ORFEU E EURÍDICE 26
7 A DEPENDÊNCIA DE UM HOMEM PARA DESEMPENHAR UM PAPEL NA
SOCIEDADE 27
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 30
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende analisar os olhares, seja apenas de forma visual ou
como forma de direção na obra cinematográfica francesa Retrato de uma Jovem em
Chamas (2019), de Céline Sciamma, que, com a intenção de falar sobre a história da
arte e mulheres pintoras1 criou este slow burn2 de forma delicada e sensível. A obra
carrega os telespectadores para a região da Bretanha, na França do século XVIII
através de uma imersão melodramática na história das personagens principais.
Dessa forma, o artigo será construído a partir da análise fílmica e com o suporte de
teorias bibliográficas.
O filme ocupa o 30° lugar na lista de melhores filmes de todos os tempos do
British Film Institute, apesar de ser um filme recente. Ele se inicia com Marianne
(Noémie Merlant), uma jovem professora de pintura em sala de aula que é levada de
volta ao passado quando suas alunas resgatam uma de suas pinturas que leva o
título do filme, Retrato de uma Jovem em Chamas. Nesse flashback ela é remetida
ao momento em que é contratada para realizar em segredo um retrato de Héloïse
(Adèle Haenel), prometida em casamento para um nobre milanês após o suicídio de
sua irmã, que seria a noiva inicialmente. Após a tragédia familiar, Héloïse é retirada
de um convento e se torna inevitável que esse matrimônio aconteça, a fim de
restaurar a dignidade financeira da família e, de acordo com sua mãe, para que ela
seja mais feliz em novos ares. Assim, é necessária a pintura de um retrato para que
seu agora noivo conheça sua aparência. Héloïse, porém, assim como sua irmã antes
dela, não está satisfeita com a ideia do casamento, e não se deixa retratar. Segundo
nos conta a mãe de Héloïse, o último pintor a tentar produzir seu retrato desistiu
antes de concluir a tarefa.
Assim, Marianne é apresentada a Héloise não como uma pintora, mas como
uma dama de companhia para os passeios ao longo das falésias da Bretanha, uma
vez que todos tem medo de que ela também opte pelo suicídio para fugir ao
casamento. Torna-se então inevitável uma aproximação das duas personagens,
1
The Women Behind Portrait of a Lady on Fire Believe Their Movie Can Save the World | Disponível
em:
https://www.vulture.com/2020/03/portrait-of-a-lady-on-fire-q-and-a-cline-sciamma-adle-haenel.html.
Acesso em 15/01/2023
2
Termo utilizado para descrever um romance que o desenvolvimento ocorre lentamente, com muita
tensão acumulada até que de fato o relacionamento se solidifique.
8
sendo solidificada uma relação de amizade que acaba se transformando em um
romance com o desenvolver da história. Além da relação entre as duas, elas
desenvolvem uma amizade com Sophie, empregada da casa que se torna fiel
escudeira delas, recebendo esse companheirismo e amizade de forma recíproca.
A partir da construção do filme e da relação entre as personagens, este
trabalho se dividirá em tópicos, iniciando na perspectiva dos olhares e das
discussões em torno deles, assim abordaremos as questões sociais e estéticas de
direção existentes no cinema. Será apresentado de que quais formas o olhar e o
desejo influenciam na forma de representação e visualização das personagens.
Em seguida, será abordado ainda a questão do nu e como as mulheres são
representadas no filme de forma reconfigurada, e questões femininas são
apresentadas de forma natural e direcionadas de forma leve e até mesmo
reconfortantes para quem assiste.
Partindo para o próximo tópico, trataremos da forma como olhar das
personagens guia a relação delas, e como ocorre essa construção a partir da
direção. Também será apresentado a relação de sororidade presente na história e a
forma como a relação de subserviência se transforma a partir da proximidade entre
as personagens.
Além disso, a forma como um conto tradicional é exposto ao decorrer da
história e a sua importância na discussão do olhar será levantada neste trabalho. E,
por último, como é levado em consideração o período que a história se passa em
relação ao patriarcado e a dependência feminina à masculinidade nesse contexto.
Durante todo o texto será abordada e discutida a direção e a inserção de
elementos para a construção da obra e também a presença de cenários pictóricos,
fundamentais para a essência do filme que, por si só, já é uma grande
representação de arte e muitos dos seus frames são peças essenciais para a
análise dos olhares devido a importância deles em tantos momentos.
10
no filme, quanto a que o pintor antes de Marianne realizou, quanto o primeiro dela
que ela mesma destrói com a intenção de refazer apresentam algo em comum: a
falta de rosto, logo, a falta do olhar. No primeiro caso, a figura retratada está de
costas, então com o rosto escondido nas sombras, no segundo o pintor não chegou
a fazer pois Héloïse se recusa a posar, se recusa ser olhada daquela forma e com
tal finalidade e no último caso, Marianne desfaz seu trabalho com a intenção de
retratá-la à sua imagem, não somente seguindo as convenções de pintura e imagem
do período. Em todos os casos, o olhar objetificador é negado.
O female gaze nesse caso se apresenta como uma alternativa ao tradicional e
já conhecido male gaze, mesmo que não seja o oposto, uma vez que o tradicional se
constrói alinhado ao poder e dominação masculina, colocando atores e seus
personagens em papéis degradantes e em posição inferior. Nessa forma de direção,
são histórias predominantemente femininas a partir das vivências das muitas
mulheres da equipe de produção e elenco, que (seguindo o que se espera) mantém
uma coerência ao não retratar suas personagens da maneira como foram tratadas
por tanto tempo na história do cinema.
3 QUESTÃO DO NU
O corpo feminino é constantemente objetificado a partir da perspectiva
masculina, dessa forma na direção do cinema não é diferente. É possível notar essa
extrema sexualização mesmo em filmes lésbicos como Azul é a cor mais quente
(Abdellatif Kechiche, 2013), um filme que também apresenta uma relação de duas
mulheres porém de forma agressiva e sexualizada, de modo em que atrizes relatam
e denunciam ainda anos depois os traumas gerados pelas cenas gravadas e ainda
pela repercussão das imagens. O filme, que apresenta uma cena de sexo de
aproximadamente 7 minutos, que as atrizes relatam terem gravado por mais de 10
dias e terem se sentido completamente expostas, as vezes até mesmo como se
fossem prostitutas3, é um dos primeiros com representação de um romance lésbico
porém feito completamente a partir da perspectiva masculina e a fim de agradar
esse público.
3
Lea Seydoux Says She Felt 'Like A Prostitute' During 'Blue Is The Warmest Color' Sex Scene |
Disponível em: https://www.huffpost.com/entry/lea-seydoux-blue-is-the-warmest-color_n_4056819.
Acesso em 15/01/2023
11
Apesar de existirem cenas que remetem ao sexo em Retrato de uma Jovem
em Chamas, não são cenas que se estendem além do necessário, ou que tenham
uma construção visual degradante para as atrizes pensando no agrado do público
masculino, são cenas que cabem perfeitamente no momento do filme quando se
pensa na relação romântica que está sendo construída ali. Diferente de muitos
outros filmes nos quais ocorre uma “representatividade” lésbica, pois em muitos
desses casos “a mulher está ali para alimentar um apetite, não para ter um apetite
próprio” (BERGER, 1999, p. 57), levando essa representação como forma mais
negativa do que positiva.
A primeira cena indireta acontece após o primeiro beijo delas, quando Héloïse
foge e retorna à casa, e à noite Marianne a procura em seu quarto. Apesar de ter
fugido depois do beijo, Héloïse não recua quando a pintora se aconchega e diz que
pensava que ela não teria medo, ela apenas concorda e informa que conhece os
gestos românticos, e que imaginou todos enquanto pensava nela e a esperava.
Depois dessa cena, elas acordam nuas na cama.
Em uma outra cena, talvez a com maior cunho sexual durante todo o filme,
elas também aparecem nuas, enquanto conversam na cama, demonstrando a
intimidade das duas ali. Elas falam sobre o conteúdo de um pote que está em cima
de Héloïse, enquanto Marianne demonstra curiosidade. A planta, que Héloïse diz ter
comprado em uma festa, tem como finalidade fazer voar e alongar o tempo, assim
Marianne questiona se ela quer tentar naquele momento. Héloïse passa essa
substância em sua axila, enquanto é observada por Marianne e em seguida na da
pintora. O close que se dá nessa parte remete à penetração e assim o erotismo se
faz presente, ainda que não haja nenhuma cena explícita. A substância utilizada por
elas faz com que os olhos de Héloïse mudem de cor a ponto de ficarem
completamente pretos, e Marianne faz essa observação.
A última cena que remete a sexualidade também não é uma cena explícita,
elas apenas estão deitadas juntas. Nessa cena, Marianne faz um mini retrato de
Héloïse, para que guarde para si mesma, e uma das observações feitas por Heloïse
é que a esse ponto a pintora já consegue reproduzir a sua imagem infinitamente. Em
seguida, ela pede um retrato de Marianne para que guarde a imagem além da sua
memória e, naturalmente, pede a imagem do momento: ela, nua ao seu lado. O
pedido é prontamente atendimento e Marianne faz um auto-retrato na página 28 de
12
um livro escolhido por Héloïse, e dessa forma o nu é reconfigurado na estrutura
fílmica, fora das convenções tradicionais, afinal é feito de uma mulher para outra, de
forma natural e não sexualizada.
Figura 1: auto-retrato de Marianne na página 28.
14
Figura 3: Marianne encara o perfil de Héloïse. Figura 4: Héloïse retribui o olhar de
Marianne.
Quando a jovem pintora revela para Héloïse que havia sido contratada para
realizar seu retrato, ela questiona se é por isso o motivo de seus olhares, e a acusa
firmemente de ressaltar as belezas do exílio por se sentir culpada. Nesse momento a
cena é cortada e sai da paisagem da praia e passa para a casa onde passaram seus
últimos dias. Marianne decide mostrar o resultado do quadro para ela, e é claro o
descontentamento e incômodo ao se ver representada daquela forma tão artificial e
não da forma como a sua até então acompanhante a via apesar da construção da
relação delas, chegando até mesmo a questionar se ela a vê daquela forma.
Marianne explica que não somente ela a vê daquela forma, já que existem
regras, convenções e ideias que regem a pintura de retrato, decepcionando Héloïse
que se questiona se não há vida e presença nesse retrato. Ao rebater que a
presença de Héloïse na verdade é constituída por estados passageiros e aspectos
momentâneos, a que foi retratada se mostra incomodada e responde que “Nem tudo
é passageiro. Alguns sentimentos são profundos”, mais uma vez demonstrando seu
descontentamento com algo que foi apresentado. Apesar disso que diz entender que
o retrato não se aproxime dela (afinal, foi pintado sem que ela soubesse e com uma
finalidade que ela nunca desejou) mas que acha triste que não se aproxime da
essência da pintora, quase que desafiando Marianne, que é de fato uma pintora
muito melhor do que se apresentou naquele momento. Marianne questiona o que
16
Héloïse sabe sobre ser próximo a ela, e ironiza sobre não saber que ela era crítica
de arte, ao mesmo tempo que Héloïse rebate dizendo que não sabia sobre seu
ofício de pintora.
contudo, um retrato público pintado deve insistir em manter uma distância
formal. É isso - e não uma falta de habilidade técnica do pintor - que faz com
que em sua maioria os retratos tradicionais pareçam hirtos e rígidos. A
artificialidade está enraizada na própria maneira de ver, porque o assunto do
quadro deve ser divisado simultaneamente de perto e de longe (BERGER,
1999. p. 99).
Apesar dela não ter de fato posado até o momento, é semelhante à situação
referente às convenções de pintura e análise de uma época onde John Berger
aponta que “(...) com o prosseguimento da tradição, a maneira de pintar o rosto de
quem posava tornou-se cada vez mais generalizada. Os traços passaram a ser a
máscara que combinava com a indumentária.” (1999, p. 100)
Após esse momento, que ocorre próximo da metade do filme, Marianne
decide destruir seu trabalho e avisa à mãe de Heloïse que fez isso pois não gostou
do resultado, e que Héloïse também não gostaria. Marianne informa que Heloïse
aceitou posar para ela, chocando até mesmo a própria mãe que questiona o porquê,
mesmo que a resposta não faça diferença para ela. Em uma entrevista para o canal
TIFF4 no youtube, a diretora Celine Sciamma coloca que: “Em todo processo de
reinventar a figura da musa, mostra que não há uma musa. Tem apenas
colaboradoras e mulheres se inspirando de forma mútua.”. Assim, da mesma forma
em que Héloïse estava sendo retratada e inspirando Marianne, acontecia o
contrário, na medida em que Heloïse a estava estimulando a sair da área de
conforto das convenções sociais e partindo para uma pintura mais sincera e de
coração.
Com o avanço da relação delas as cenas mostram também o aprofundamento
dos seus sentimentos e solidificação da união que passam a ter através da
revelação de segredos e desejos (como a vontade de nadar) e demonstrações de
vulnerabilidade que acontecem em conversas rotineiras ou em discussões. A partir
do momento em que Marianne revela ser pintora e estar fazendo seu retrato, se
inicia uma segunda parte dessa relação a partir de uma nova perspectiva do olhar,
esse que já se sentiu traído, culpado, desconfiado passa a ser amoroso. Acontece
4
Céline Sciamma on the Female Gaze in Portrait of a Lady on Fire | TIFF 2020. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=mnbXcJjkc20 Acesso em: 29 nov 2022
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também uma mudança no cenário principal das duas, deixando de ser
predominantemente as falésias e passando para ambientes mais externos.
Com Héloïse aceitando posar, as cenas que mostram esses momentos de
trabalhos refletem também a intimidade delas. A pintura acaba ficando do agrado da
pintora e no agrado da que foi retratada também, uma vez que foi feita com ela
aceitando ser retratada, e em uma posição própria para a realização do trabalho. A
relação das duas transparece em um retrato muito mais bonito que o primeiro, que
passa no olhar de Héloïse o mistério e a desconfiança presente quase que o tempo
inteiro.
Naquele período no qual elas vivem em um mundo particular naquela ilha, os
olhares são seus grandes guias e uma das coisas que mais importa para elas,
juntamente com as memórias que estão sendo criadas a partir desses momentos,
guiados pelas suas próprias perspectivas. Trazendo o questionamento que a própria
Héloise levanta: “Olhe. Se você me olha, para quem estou olhando?”. A
metalinguagem visual poderosa de olhar surge nesse caso.
Porém, não somente nos olhares podemos perceber uma evolução na
relação, mas também nas expressões corporais, como Marianne que no início do
filme pouco sorri, porém com o desenrolar da história em diversos momentos ela
aparece sorrindo com os dentes; e até mesmo na construção visual dos figurinos, a
partir das cores dos vestidos, por exemplo. No primeiro contato das personagens
principais, Marianne veste um vestido vermelho e Héloïse azul, e, apesar dela não
possuir muitas roupas além das do convento (como Sophie informa), o vestido da
tensão entre elas é verde: uma cor oposta ao vermelho de Marianne. Assim, no
momento que a relação se torna mais íntima, quando Marianne a pinta com ela
sendo de fato modelo, posando e ciente do que está acontecendo, elas estão
opostas e complementares.
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Figura 6: Marianne de vermelho e Héloïse de azul escuro.
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Figura 8: página 28 aberta em retrato de Héloïse mais velha
E, por último, destaco a última vez que Marianne vê a mulher que foi sua
modelo por alguns dias. De lados opostos, cada uma com sua própria companhia,
elas vão assistir à mesma orquestra de Vivaldi, e Marianne se emociona obviamente
por vê-la, mas também por vê-la naquele contexto.
Em uma conversa com a Condessa, Marianne tenta convencê-la de deixar
que Héloïse saia para passear sozinha para que assim ela tenha um tempo livre
para pintar, enquanto a mãe pede que convença Héloïse de que a ida a Milão será
algo bom para ela, como é lindo e que lá terá uma vida muito mais agradável e
assim ela tenta fazer nas cenas seguintes. Ao dar a notícia de que poderá passear
sozinha, Marianne diz que ela estará livre e Héloïse questiona se “estar livre é estar
só?” enquanto a encara, para logo em seguida dizer que usará seu dia “livre” para ir
à missa, ouvir música. Nesse momento, Marianne diz considerar as músicas tocadas
em órgãos das igrejas um pouco sombrias e questiona sobre quais músicas ela
conhece, e se nunca ouviu uma orquestra, após a negativa ela demonstra uma peça
que gostou e que descreve como “vivaz” em um piano no seu quarto arranjado e
temporário.
Enquanto toca, elas se encaram e conversam lado a lado no piano. Marianne
descreve a peça para ela e explica que é sobre uma tempestade chegando, e
também descreve o que acontece em cada momento da música tocada. Héloïse
mantém sempre o olhar interessado na pianista, desviando poucas vezes em
direção às teclas. Este é um dos poucos momentos que se tem de fato música no
filme, e ela guia a cena até o momento em que Marianne não se lembra da
21
continuação da música mas esclarece que em Milão ela ouvirá o restante. Após isso,
é possível ver o descontentamento de Héloïse no olhar, pois passará a ser uma
forma de consolo, já que Marianne fala que também terá coisas boas ao chegar lá,
depois disso chega a questionar se Marianne tem certeza que de vez ou outra ela
será consolada.
Assim, ao vê-la sozinha anos depois dos dias em que tiveram uma relação
naquela ilha, aos prantos e ofegante em uma peça que ela apresentou enquanto a
convencia que o casamento seria bom para ela conhecer o mundo e coisas além do
convento, como a música, é possível ver que a música se tornou de fato uma forma
de consolo a ela na cidade. Nessa cena, a partir do momento que Marianne avista
Héloïse do outro lado da ópera, a câmera acompanha como se fosse o olhar
surpreso, porém emocionado e estático de Marianne, que não é vista de volta e ao
revelar essa informação em voz alta, se inicia a música que não é alegre como
Héloïse questiona, e sim vivaz e anuncia a chegada de uma tempestade e a
agitação dos insetos ao perceber isso. A mesma agitação e intensidade com que
Héloïse vivencia a peça, conforme a câmera se aproxima, é perceptível o aumento
da intensidade que está ali, enquanto ela está ofegante e por mais que tente prender
as lágrimas, acaba deixando sair, com o olhar estático na peça, e o nosso nela,
assim como o de Marianne.
Após Héloïse ter tido seu passeio sozinha na praia, ela diz ter de fato gostado
da sensação de liberdade que a solidão lhe proporcionou, mas que apesar de liberta
ainda sentiu a falta da pintora. Da mesma forma que, ainda que sozinha na ópera,
existia nela um sentimento que não se é possível dizer se é a falta, mas com certeza
um pensamento na pessoa que lhe apresentou aquela canção, mesmo que tantos
anos depois do acontecido.
5 SOPHIE
A terceira figura feminina com mais importância nessa história é Sophie, a
empregada da casa há 3 anos que desde a chegada de Marianne se apresenta
solícita e aberta para conhecê-la, ainda que em silêncio. É claro que estava fazendo
seu trabalho, porém seu olhar transparece a curiosidade de receber a moça ali, e faz
de bom grado, direcionando-a para o lugar onde vai se hospedar durante esses dias
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e apresentando para se acomodar e se secar assim que chega na casa,
prontamente servindo um copo de vinho quando é solicitada.
Figura 9: Sophie servindo jantar à Marianne.
Apesar de estar na casa há 3 anos, é evidente que ainda é muito nova e por
isso tem um olhar de menina curiosa, além da timidez. Quando questionada por
Marianne sobre a sua jovem patroa, ela desvia o olhar várias vezes e se contenta
em responder com poucas palavras, para logo em seguida perguntar se a pintora
conseguirá realizar seu trabalho. Apesar de não a conhecer muito bem, demonstra
empatia por ela e também por sua antiga patroa, tanto que esconde o motivo de sua
morte quando questionada pela primeira vez e só fala quando é questionada pela
segunda vez. Quando conta para Marianne que acredita que sua ex-patroa se
suicidou por não ter gritado ao cair do penhasco, ela se mantém firme na sua
postura por conta de sua convicção, apesar da voz baixa e calma de sempre como
forma de respeito não somente a morte, mas também pela figura de autoridade.
Em uma das noites, após Marianne acordar menstruada e com cólicas,
Sophie esquenta pedras para que ela use para melhorar e informa que está
atrasada há três meses. A partir daqui se solidifica uma relação de sororidade e
união feminina das três, prezando o bem estar e os desejos de Sophie, que no caso
é interromper a gravidez. Nesse empenho, as três vão à procura de ervas para fazer
chá, a ajudam em superstições e simpatias como correr, e se pendurar. Quando
retornam à mansão após caçar ervas, é evidente a preocupação e o cuidado delas
com a menina, que chega a desmaiar após ficar pendurada.
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Além das cenas em que ela é o centro, em muitas outras ela aparece como
confidente da pintora e a sua patroa, olhando com atenção para as interações das
duas, como na cena em que jogam cartas. Sua presença é além da figura da criada,
estando em um local de cuidado muitas vezes, pois existe uma preocupação entre
elas, mesmo em momentos nos quais o silêncio reina. A presença de Sophie é como
um guia para as duas, e um ponto de realidade naquele momento em que elas
vivem em sua própria bolha.
Uma das cenas mais marcantes do filme é a da fogueira ao ar livre, quando
vão descobrir se o chá abortivo fez efeito ou se Sophie continua grávida. Esse é,
inclusive, o momento no qual o vestido de Héloïse pega fogo, que é a inspiração
para o quadro que origina o título do filme. É uma das poucas cenas com música no
filme, onde as mulheres aparecem todas cantando e bebendo em volta da fogueira,
numa referência às bruxas, quase que numa sociedade à parte exclusivamente
feminina.
É importante entender que a cultura da mulher nunca é uma subcultura.
Seria até inapropriado definir a cultura de metade da humanidade como
subcultura. As mulheres vivem sua existência social dentro da cultura geral.
Sempre que são limitadas por obstáculos do patriarcado ou segregação em
grupos (o que sempre tem como objetivo a subordinação), transformam
esse obstáculo em complementaridade e o redefinem. Assim, mulheres
vivem uma dualidade – como integrantes da cultura geral e participantes da
cultura da mulher. (LERNER, 2019, p. 395).
Dois dias depois elas três vão à casa da mulher que será responsável por
realizar o aborto e essa é uma das cenas que demonstra que, apesar de tudo, a
união feminina é a base de tudo e principalmente do filme. Ao chegar na casa, é
uma criança que as recebe e que ajuda Sophie a retirar suas vestes, enquanto as
outras duas as observam apreensivas. Ao pé da fogueira da casa, as mulheres
preparam o que será necessário enquanto Sophie se deita na cama ao lado de uma
outra criança menor e um bebê.
Enquanto isso acontece, Marianne desvia o olhar aflita como uma forma de
dissociar a cena que está acontecendo e só volta a olhar quando Héloïse, que o
mantém fixo, pede que se vire. Nesse momento, o bebê que estava na cama junto
de Sophie segura sua mão e brinca com ela, na sua inocência, a conforta um pouco
apesar do momento difícil.
24
Figura 10: Sophie e bebê.
25
Figura 11: Héloïse, Marianne e Sophie à mesa.
26
ele está louco de amor e por isso não resistiu. Ainda nas argumentações, Marianne
defende que ele fez uma escolha: a de manter a lembrança de sua amada, que ele
fez a escolha dos poetas, e não dos apaixonados. E nesse momento Héloïse
termina a leitura e percebe que talvez tenha sido ela que pediu para que ele se
virasse. Aqui, acontece o corte para a próxima cena.
Próximo ao final do filme, quando Marianne se despede das mulheres
presentes na casa e vai embora, acontece uma clara referência a esse trecho, pois
apesar dela sair correndo, ao ouvir a voz de sua amada pedindo para se virar ela o
faz, encontrando Héloïse parada na escada com seu vestido de noiva, imagem que
a vinha perseguindo ao longo da história, tendo em vista que apareceu para ela
como uma miragem em outro momento do filme, na noite após o primeiro beijo
delas, quando Marianne está indo procurar Héloïse em seu quarto, cena que
acontece o primeiro beijo em casa, sem que nenhuma delas fuja. A figura de Héloïse
no vestido de noiva aparece novamente em uma cena em que Marianne está
voltando para o quarto de Héloïse após ter ido buscar água em uma das noites em
que passaram juntas.
Ao se virar para trás na última cena delas juntas, Marianne faz a escolha dos
poetas de manter uma última imagem em sua memória, assim como Héloïse
guardará a imagem da pintora na página 28 de seu livro que conta a história do mito.
Figura 12: Héloïse vestida de noiva na escada.
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7 A DEPENDÊNCIA DE UM HOMEM PARA DESEMPENHAR UM PAPEL NA
SOCIEDADE
Considerando o período histórico que a França passava no meio do século 18
e as questões de gênero numa estrutura social já conhecida, a presença de um
homem era determinante na vida das mulheres ao seu redor, ditando sua vida e
suas possibilidades de escolha, e na história seria praticamente um dos pilares e
extremamente necessária, afinal o retrato só é encomendado devido ao casamento
e só por isso as personagens se conhecem, porém nesse caso a figura masculina
aparece sempre como um background para os acontecimentos.
A apresentação visual da casa da família de Héloïse apresenta uma família
que já teve seus momentos de glória, mas que está em decadência. Isso é
perceptível desde a chegada da pintora na casa pois a fachada está com a pintura
gasta e vidros da janela faltando. Pela forma que Sophie apresenta o que será o
quarto de Marianne por alguns dias – uma sala de recepção nunca usada – é
possível ver como um ambiente improvisado devido à quantidade de cortinas
penduradas para separar o espaço. A pintura gasta também é perceptível na parte
interna da casa, inclusive no “quarto” de Marianne, com pedaços do revestimento
(provavelmente em madeira) faltando.
Figura 13: fachada degradada da casa.
Por esse e outros motivos é importante que o casamento aconteça, seja com
a irmã que já estava prometida ou com a outra que apenas teve que seguir com o
destino da falecida e da família. Com a crise econômica francesa pré Revolução, a
solução de muitas famílias foi algo já conhecido: um casamento arranjado com
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noivos de outros locais, numa tentativa de restauração de poder, principalmente o
aquisitivo. A própria Condessa, mãe de Héloïse, revela ser uma das mulheres com
relacionamento a partir de um casamento arranjado, e por isso ela enfatiza a
importância da realização do retrato e do casamento para a família, como uma
questão de subexistência.
Ainda considerando questões de poder masculino, Marianne, apesar de ser
uma pintora excelente a ponto de ter seu trabalho reconhecido por tantas
personagens em diversos momentos, tem seu trabalho questionado e algumas
práticas censuradas. Nesse período da história as mulheres não poderiam realizar
determinadas tarefas e formas de pintura, como nus masculinos por exemplo, sem
que fossem mal vistas pela sociedade, assim, ela revela para Héloïse que faz em
segredo essa prática.
Em uma das últimas cenas do filme que se passa alguns anos depois da
despedida das protagonistas, Marianne aparece orgulhosa expondo uma de suas
obras em um Salão e quem recebe o elogio é seu pai, nesse momento ela informa
ao senhor que a elogiou que foi ela quem realizou a pintura e que apenas usou o
nome de seu pai para que pudesse estar ali presente, pois claramente sua presença
enquanto mulher não seria esperada ali, visto que “a presença social de uma mulher
é especificamente diferente da do homem” (BERGER, 1999, p. 47)
Apesar dele já ter uma carreira consolidada na pintura, o elogio que recebe é
que a sua pintura estaria “em boa forma”, de maneira que a obra de Marianne se
torna melhor do que a que ele apresentaria. Assim, como destaca Virginia Woolf em
um de seus ensaios: “As mulheres têm servido há séculos como espelhos com
poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho
natural” (WOOLF, 2014, p. 54).
Nesse momento podemos perceber que mesmo com toda sua
“independência” devido ao seu poder de escolha de se casar ou não, ainda sim é
dependente de uma figura masculina, nesse caso o seu pai, que também é pintor.
Em sua obra A criação do Patriarcado de 2019, a autora Gerda Lerner enfatiza que:
“Para as mulheres, a classe é mediada de acordo com seus laços com um homem,
que pode lhe dar acesso a recursos materiais. Mulheres respeitáveis são aquelas
ligadas a um homem.” (LERNER, 2019, p. 28), exemplificando de forma clara a
situação de Marianne e Héloïse.
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O poder de escolha e a falta dele se apresenta em diversos momentos no
filme, desde o fator do casamento, até a escolha de sair ou não sozinha e a
descoberta de que não é uma boa experiência ao sentir a falta da outra, a escolha
de manter ou não um filho, e até mesmo a escolha de olhar ou não para trás a fim
de manter viva uma última memória.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O filme inicia pelo final, com Marianne posando e ensinando suas alunas a
observarem os detalhes, ensinando o olhar de forma atenciosa, como deve ser feito.
A presença e a importância do olhar durante todo o filme foi um dos motivos da
escolha desse tema para o estudo, que com base nas referências bibliográficas e a
análise fílmica feita, se tornou possível perceber que o olhar nesse caso não é guia
somente em bons momentos e motivos, é também uma forma de lembrança, como
acontece em uma cena na qual elas destacam características sobre uma a outra,
suas percepções a partir da observação feita e a primeira coisa a ser destacada é o
olhar sombrio quando se perde um jogo de cartas, seguido por uma lembrança de
riso.
Além disso, o senso crítico e a compreensão de como certas ações são
realizadas na construção de uma relação romântica entre duas mulheres, ou uma
relação de amizade entre duas ou três são fundamentais, de forma que grupos que
já são explorados e marginalizados tenham espaço visível de uma forma agradável.
Apesar de ser uma história de romance, é também uma história de conhecimento,
onde uma jovem recém-saída do convento passa por um processo de
autoconhecimento, ao mesmo tempo que conhece o amor juntamente com a pintora.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.
MULVEY, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema.” In: ______. Visual and
Other Pleasures. London: The Macmillan Press Ltd, 1989. p. 14-26.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. 1 ed. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
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