Você está na página 1de 7

ENGENHARIA AUTOMOTIVA

CARRO COM
FIBRA
O uso de material de origem vegetal na
produção de peças para automóveis é opção
para tornar a indústria mais sustentável

Suzel Tunes

A pontado como um dos principais


res- ponsáveis pela emissão de
gases de efeito estufa, que causam
o aqueci- mento global, o setor de
transportes busca formas de ser
mais sustentável e investe em
produtos e processos de menor
impacto ambiental. A in- dústria
automotiva tem usado uma
alternativa que vem se consolidando
financiado pela FAPESP em 2000 (ver Pesquisa
FAPESP nº 104). Naquela época, Leão investigava
o potencial da fibra de curauá (Ananas
erectifolius), planta nativa da floresta amazônica
que conhecera durante uma pescaria nos rios da
região.
O projeto despertou o interesse da Volkswagen,
que chegou a produzir algumas peças automotivas
com a fibra, e o pesquisador foi convidado a
mi- nistrar palestras sobre o tema para os
engenheiros
materiais compostos desde a década de 1990.
em todo o mundo: o emprego de fibras
naturais, de origem vegetal, na fabricação de A atual par- ceria com a Volkswagen é
peças e aces- sórios. Mais do que um simples herdeira de um projeto
fornecedor de matéria-prima, o Brasil é um dos
centros de pes- quisa e desenvolvimento dessa
tecnologia.
Em agosto, a Universidade Estadual Paulista
(Unesp) firmou convênio com a Volkswagen do
Bra- sil para desenvolver novos compósitos que
incluam em sua formulação fibras vegetais –
compósitos são materiais formados por dois ou
mais componentes, como vidro e metal, com
propriedades superiores às que lhe deram
origem. O objetivo é que esses novos materiais
sejam utilizados em peças do aca- bamento
interno dos automóveis da montadora.
O projeto é liderado pelo engenheiro-agrônomo
Alcides Lopes Leão e pela química Ivana
Cesarino, coordenadores do Laboratório de
Bioprocessos e Biotecnologia da Faculdade de
Ciências Agronô- micas da Unesp, em Botucatu
(SP), e tem duração de 18 meses. Ao final do
período, a multinacional espera contar com
peças mais sustentáveis, em razão da redução
do uso de plástico de origem fóssil em sua
composição, e, sobretudo, com au- tomóveis
mais leves e eficientes do ponto de vista
energético. A principal vantagem da substituição
dos ingredientes minerais por fibras vegetais –
ma- teriais de menor densidade – é a redução do
peso do veículo e, consequentemente, do
consumo de combustível. Algumas limitações,
contudo, ainda precisam ser superadas, como a
Ilustração mostrando baixa resistência das fibras naturais à umidade, a
a fibra de juta em
suscetibilidade a fungos e sua longevidade.
partes de um carro
Leão estuda o uso de fibras vegetais em
da empresa no Brasil e localizaram este ano fazendo buscas na internet”, Segundo o pesquisador, as fibras naturais já são
na Alemanha. Mas a conta o pesquisador. usadas em diferentes tipos de compósitos, em es-
mon- tadora não Agora, para definir a melhor fibra a ser incor- cala reduzida, por alguns fabricantes de automó-
encontrou um porada ao plástico, estão sendo testadas quatro veis no mundo. “A maior consumidora é a alemã
fornecedor regular de opções: coco, juta, sisal e bambu. Vai pesar na de- Mercedes-Benz, que emprega por volta de 30 qui-
curauá e engavetou o cisão a questão do abastecimento, que o pesquisa- los de fibras por veículo. Na Volks, vamos
projeto. Passadas duas dor acredita estar mais bem equacionada. “Como o começar com aproximadamente 8 quilos por
déca- das, Leão foi projeto atual tem alcance global, a Alemanha veículo. Se pensar que ela fabrica 6 milhões de
surpreendido por um pode contar com fornecedores de fibras em diver- carros por ano, o volume pode vir a ser
novo convite. “Eu já não sos países”, considera. Inicialmente as fibras serão significativo”, diz. Nesses materiais compostos, o
tinha contato com incorporadas ao polímero em escala macrométri- polímero funciona como a matriz, responsável por
ninguém da Volks. Eles ca em seis peças que compõem o porta-malas do sua estrutura, e a fibra é o elemento de reforço.
decidiram investir na modelo Polo. Depois, a ideia é trabalhar na escala O uso sozinho da fibra para confeccionar peças
produção de peças com nanométrica. “A incorporação de nanocelulose automotivas não iria conferir
fibras vegetais e me dobra a resistência do compósito”, explica Leão. a resistência de que o material necessita.

PESQUISA FAPESP 323 | 65


Desenvolver materiais de alta performance para
realizado em Düsseldorf, na Alemanha. Já existe
a indústria automotiva a partir de matérias-primas
a perspectiva de desenvolvimento de um novo
regionais é também o propósito de uma equipe
material compósito, possivelmente formulado
das universidades federais da Paraíba (UFPB) e
com fibra de coco, matéria-prima abundante
de Campina Grande (UFCG) e do Instituto
no Brasil. “Os alemães têm interesse em
Frau- nhofer para Tecnologia de Manufatura e
continuar a parceria”, diz Wellen.
Materiais Avançados, com sede em Bremen, na
Alemanha. O projeto é financiado pela
DO CARRO DE SOJA AO FIBROCIMENTO
Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da
A tentativa de utilizar fibras naturais no setor au-
Paraíba (Fapesq) e pelo Mi- nistério da Educação
tomotivo vem de longe. Em 1930, Henry Ford,
e Pesquisa da Alemanha. No Brasil, é coordenado
pio- neiro na produção automotiva em série, criou
pela engenheira de materiais Renate Wellen, do
um material batizado de bioplástico. Sua
Departamento de Engenharia de Materiais da
composição exata é incerta, pois não se guardou
UFPB.
registro da fór- mula, mas em 1941 um protótipo
Os pesquisadores começaram o projeto tra-
produzido com o material ficou conhecido
balhando com fibras de sisal, no Brasil, e linho,
como Soybean Auto, carro de soja. O novo
na Alemanha. “As melhores propriedades
automóvel, contudo, nunca entrou na linha de
foram obtidas com o linho, que se molda
produção da fábrica.
melhor como tecido para ser incorporado ao
De acordo com informações do Benson Ford
compósito por compressão. O objetivo é utilizar
Research Center, instituto de pesquisa mantido
o material na parte interna da porta, escolhida
pelo Henry Ford Museum, a eclosão da
pela alta demanda da indústria e por ser uma
Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
estrutura de menor complexidade”, revela

T
suspendeu toda a produção de automóveis nos
Wellen.
Estados Unidos. Com isso, o experimento do
carro de soja não evoluiu. Depois, o esforço da
al como no projeto da Unesp com a
empresa foi direcionado à recuperação das
Volkswagen, a parceria entre
perdas causadas pela guerra e o automóvel de
brasilei- ros e alemães nasceu de
bioplástico caiu no esquecimento. Para o
buscas na in- ternet. Dessa vez, foi o
engenheiro químico Sandro Amico, coor-
lado brasileiro que tomou a iniciativa.
denador do Grupo de Materiais Compósitos e
Empenhada em desenvolver projetos
Nanocompósitos da Universidade Federal do Rio
na área de fibras vegetais e sabendo
Grande do Sul (UFRGS), outro fator que
do crescente interes- se da Alemanha
contri- buiu para o desinteresse da indústria
pela tecnologia verde, em 2015 a
foi o surgi- mento das fibras de vidro e carbono
pesquisadora da UFPB fez
nas décadas de 1930 a 1950. Ele explica que as
contatos com diversas universidades e
fibras sintéticas apresentavam vantagens como a
institutos de pesquisa germânicos.
elevada rigidez e a maior resistência mecânica a
Desses contatos resultou seu pós-doutorado no
ataques químicos e ambientais – enquanto as
Instituto Fraunhofer de Tecnologia de
naturais eram suscetí- veis à umidade, por
Manufatura e Materiais Avançados de Bremen e o
exemplo. Hoje, esse problema é contornável com
projeto atual. Para Wellen, coordenadora-geral
o tratamento das fibras ou pelo uso de aditivos
de pesquisa da UFPB, a troca de experiência
na formulação do compósito e a preocupação
entre as equipes é um dos aspectos mais
com o meio ambiente trouxe as fibras naturais de
importantes do convênio. “Houve uma melhora
volta ao cenário industrial.
na capacitação dos alunos. Temos dois
Amico trabalha há mais de duas décadas
integrantes da equipe fazendo douto- rado na
com diferentes tipos de fibra. “Hoje há vários
Alemanha.”
exemplos de aplicações que até cinco anos atrás
O novo polímero reforçado com fibras natu-
não existiam e outras que aumentaram de escala”,
rais está em fase de finalização e o protótipo de
atesta o pro- fessor. Como exemplo, ele cita a
uma peça automotiva feita com ele foi apresenta-
madeira plástica conhecida como WPC (wood-
do em outubro na Feira K 2022, maior evento in-
polymer compo- site), que surgiu na década de
ternacional da indústria de plásticos e
1960 e é formada
borracha,
PEÇAS AUTOMOTIVAS FEITAS COM FIBRAS VEGETAIS SÃO
MAIS LEVES E RESULTAM EM MENOR CONSUMO DE COMBUSTÍV

66 | JANEIRO DE 2023
Materiais desenvolvidos na Unesp de Botucatu (em sentido horário,
iniciando com a foto abaixo): componente automotivo fabricado
com biocomposto; corpo de prova elaborado com bambu;
compósito feito com fibra natural submetido a teste de resistência;
suporte para vidros criado com fibra de madeira

portas e janelas e revestimentos. As


fi- bras também são usadas em
elementos estruturais de concreto.
No Brasil, as telhas de
fibrocimento feitas com uma mistura
de cimento e amianto, fibra mineral
reconhecidamen- te cancerígena, foram
proibidas em 2017, abrindo espaço para
novos compósitos de origem vegetal.
Responsável pelo de- senvolvimento de
uma telha de fibroci- mento fabricada
com polpa celulósica patenteada em
2012, o engenheiro civil Holmer
Savastano Junior, da Faculdade de
por serragem de madeira e uma resina polimérica Zootecnia e Engenharia de Alimentos
termoplástica, como o PVC ou polietileno. da Universidade de São Paulo (FZEA-USP), lidera
“Esse material tem feito grande sucesso um projeto para a produção de placas cimentícias
comercial na América do Norte”, afirma. reforçadas por uma estrutura tridimensional (3D)

N
de juta e malva.
a Universidade Tecnológica Federal Segundo o pesquisador, que desde os anos
do Paraná (UTFPR), alunos do 1990 estuda o uso de fibras vegetais na produção
engenhei- ro florestal Ugo Leandro de te- lhas (ver Pesquisa FAPESP no 98), as telas
Belini, do De- partamento de de tecido de juta e malva justapostas e
Desenho Industrial e da Pós- conectadas entre si perpendicularmente formam
graduação em Sustentabilidade uma estrutura que confere leveza com maior
Ambiental Urbana, investigam como resistência mecânica e química do que o produto
elaborar produtos mais sustentáveis, patenteado há 10 anos. O projeto recebe apoio
como luminárias e óculos. Um da FAPESP e da Funda- ção de Amparo à
deles atraiu interesse de uma Pesquisa do Estado do Amazo- nas (Fapeam),
empresa local. por meio de acordo de cooperação científica que
“Em uma pesquisa de trabalho de conclusão de reúne pesquisadores da USP e da Universidade
curso, foi criada uma armação de óculos a par- Federal do Amazonas (Ufam).
tir de um compósito de partículas de bagaço de “A equipe do Amazonas tem expertise em
cana-de-açúcar tingidas com um corante natural, matri- zes poliméricas e nós em camadas de
açafrão, e aglutinadas com resina de fibrocimento. Há uma complementaridade e troca
poliuretano de mamona”, conta Belini. de experiên- cias enriquecedoras”, diz
Segundo uma análise de mercado publicada Savastano. Com a proi- bição do uso de amianto,
em 2020 pela consultoria norte-americana Grand ele vê boas perspectivas de comercialização das
View Research, o mercado de compósitos novas placas. “Como não há mais risco de
produ- zidos com fibra natural cresce no toxicidade, o fibrocimento tem sido considerado
mundo todo. A empresa estima que o setor também para usos internos, em divisórias de
chegue a 2024 avalia- do em US$ 10,9 bilhões. A ambientes, forros e placas de piso, o que pode
área que mais emprega esses materiais é a da elevar a demanda pelo novo produto no setor da
construção civil, que respon- de por mais da construção.” ■
metade da demanda. No exterior, o material
mais consumido é a madeira plástica WPC, Os projetos e o artigo científico consultados para esta reportagem estão
utilizada em pisos, assoalhos, batentes de listados na versão on-line.
PESQUISA FAPESP 323 | 67

Você também pode gostar