Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISBN 978-972-0-68802-6
Pró logo
E de manhã cedo e a á gua imó vel da baı́a brilha como aço polido. As
moradias luxuosas estã o todas ainda profundamente adormecidas, mas
as luzes das piscinas e dos lampiõ es de jardim escoam-se atravé s dos
gradeamentos altos e dos ramos das á rvores.
Um bê bedo com uma garrafa de vinho na mã o percorre a estrada
ao longo da praia. Para diante de uma casa branca com uma longa
varanda voltada para a baı́a. O homem pousa a garrafa com extrema
cautela no meio da rua, depois salta o fosso, trepa as grades de ferro
forjado e introduz-se no jardim.
Atravessa o relvado a cambalear e deté m-se a observar as grandes
janelas, o re lexo das luzes da varanda e as formas indistintas dos
mó veis no interior.
Continua a andar em direçã o à casa, dirige uma saudaçã o a um
anã o de jardim em loiça com meio metro de altura e contorna uma
vedaçã o. Escorrega na borda da piscina e bate com o joelho no chã o,
mas depois recupera o equilı́brio e levanta-se.
A á gua da piscina cintila como um bloco de vidro azul.
O homem para na beira, a oscilar, abre o fecho-é clair das calças e
começa a urinar para a piscina, depois afasta-se a arrastar os pé s até
aos mó veis de exterior azuis e aponta o jato para as almofadas, as
espreguiçadeiras e a mesa redonda.
A urina emana vapor no ar frio.
O homem volta a fechar a braguilha e vislumbra um coelho branco
a saltar atravé s do relvado para depois desaparecer debaixo de um
arbusto.
Regressa em direçã o à casa, a sorrir, e passa junto das portas da
varanda. Apoia-se à vedaçã o, desce para o relvado, estaca e volta para
trá s.
O seu cé rebro obnubilado tenta perceber aquilo que acaba de ver.
Um ser de rosto disforme e vestido de negro estava a olhar para ele.
Nã o consegue perceber se era dentro da casa escura ou se estava a
observá -lo do exterior, re letido nos vidros.
1
Sexta-feira, 26 de agosto
Uma chuva ligeira cai lentamente do cé u escuro. A claridade difusa
do centro da cidade ergue-se até cerca de trinta metros acima dos
telhados. Nã o está vento e as gotas iluminadas formam uma espé cie de
cú pula sobre Djursholm.
Em frente à baı́a de Germaniaviken, ergue-se uma imponente
moradia virada para a á gua imó vel.
Neste preciso instante, no interior da casa, uma jovem mulher
avança circunspecta como um animal selvagem sobre o parquet
envernizado, aproximando-se do tapete persa.
O seu nome é So ia Stefansson.
A apreensã o leva-a a registar todos os detalhes.
No braço de um sofá está um comando preto. Algué m ixou a tampa
das pilhas com ita adesiva. Em cima da mesa, veem-se ligeiras marcas
redondas de copos. Um velho penso rá pido icou colado à s franjas do
tapete.
O chã o atrá s de So ia range, como se algué m a seguisse de divisã o
em divisã o.
No caminho hú mido da chuva, salpicos de á gua molharam-lhe os
saltos altos e as pernas musculosas. Ainda tem pernas de atleta, apesar
de ter deixado de jogar futebol há dois anos.
Sem que o homem que está à espera dela o consiga ver, aperta na
mã o um spray de pimenta. Repete para si mesma que foi ela que se pô s
naquela situaçã o, que está tudo sob controlo, que está ali porque quer.
O homem que lhe abriu a porta parou ao lado de uma poltrona e
segue-a com o olhar, sem qualquer embaraço.
So ia tem um rosto de traços simé tricos, mas as faces sã o ainda
bochechudas como as de uma menina. Traz um vestido azul forte que
lhe deixa os ombros a descoberto. Uma ila de pequenos botõ es
forrados desce-lhe da base do pescoço até ao meio dos seios. O coraçã o
de ouro pendurado na pequena corrente salta-lhe na cavidade da
garganta, ao ritmo do batimento acelerado do coraçã o.
Sabe que pode pedir desculpa, explicar que nã o se sente bem e que
seria melhor voltar para casa. Isso era bem capaz de o irritar, mas teria
de aceitar.
O homem ao lado da poltrona observa-a com um olhar carregado de
um desejo melancó lico que lhe fecha o estô mago de medo.
De repente, tem a sensaçã o de já o ter visto antes; podia ser um dos
diretores do trabalho, ou entã o o pai de algum colega de escola de há
muito tempo.
So ia ica a uma certa distâ ncia, sorri e sente o coraçã o bater
depressa. Nã o tenciona aproximar-se mais até ter decifrado o tom da
sua voz e os seus movimentos.
A mã o com que o homem aperta o encosto da poltrona nã o cria
suspeitas de uma ı́ndole violenta: as unhas estã o bem tratadas e a
aliança simples está gasta ao im de anos e anos de casamento.
– Bela casa – diz So ia, ao mesmo tempo que afasta do rosto uma
madeixa de cabelos brilhantes.
– Obrigado – responde o homem, levantando a mã o da poltrona.
Nã o pode ter muito mais de cinquenta anos, mas os seus
movimentos sã o pesados e resignados, como os de um idoso numa casa
tã o velha quanto ele pró prio.
– Vieste de tá xi? – pergunta, engolindo ostensivamente em seco.
– Sim.
Ficam em silê ncio. Na sala ao lado, o reló gio dá duas pancadas
rá pidas com um tinido ligeiro.
Um pó cor de açafrã o cai sem fazer ruı́do de um lı́rio que loresce
numa jarra.
So ia depressa percebeu que se excita em situaçõ es de grande carga
eró tica. Gosta de ser admirada e de experimentar a sensaçã o de ser a
escolhida, mas nunca se apaixonou verdadeiramente por ningué m.
– Já nos conhecemos? – pergunta.
– Eu lembrar-me-ia – responde o homem, com um sorriso
desprovido de alegria. Tem um cabelo loiro acinzentado, ralo e
penteado para trá s. O rosto lá cido é ligeiramente brilhante e uma ruga
profunda atravessa-lhe a testa.
– Es um colecionador? – pergunta So ia, apontando em direçã o a
uma parede.
– Interesso-me por arte.
Os seus olhos claros observam-na por trá s dos ó culos de massa. Ela
vira-se e deixa cair o spray dentro da carteira, depois aproxima-se de
um grande quadro com uma moldura dourada.
O homem vai ter com ela. Para demasiado perto da rapariga, a
respirar pelo nariz. Quando levanta a mã o para lhe mostrar um dos
quadros, So ia estremece.
– Sé culo dezanove… Carl Gustaf Hellqvist – explica. – Morreu jovem.
Teve uma vida difı́cil, era muito doente e tentaram curá -lo com choques
elé tricos… Mas era um pintor extraordiná rio.
– Fascinante – responde ela, em voz baixa.
– Eu també m acho – diz o homem, ao mesmo tempo que se dirige
para a sala de jantar.
So ia segue-o com o inquietante pressentimento de que ele a está a
atrair passo a passo para uma armadilha, que uma porta se está a
fechar atrá s dela, lenta mas inexoravelmente, e que enormes
engrenagens estã o a bloquear centı́metro a centı́metro a sua via de
fuga.
O salã o majestoso, com ilas de janelas à inglesa viradas para a á gua,
está cheio com demasiados sofá s e vitrines cintilantes.
So ia repara que há dois copos de vinho tinto na beira de uma mesa
brilhante.
– Posso oferecer-te alguma coisa de beber? – pergunta o homem,
voltando-se para ela.
– Preferia um branco, se tiveres – responde a rapariga, com receio
de poder ser drogada.
– Champanhe? – pergunta ele, sem afastar os olhos.
– Aceito, obrigada.
– Mas, claro, champanhe é o ideal – decide ele.
Quando vai a casa de um desconhecido, So ia move-se com
circunspeçã o, porque cada divisã o pode representar uma armadilha e
cada objeto uma arma potencial. Prefere os hoté is, porque na hipó tese
de ter de pedir ajuda há sempre algué m que a pode ouvir.
Enquanto o segue até à cozinha apercebe-se de um ruı́do estranho e
agudo. E impossı́vel localizá -lo. O homem nã o parece reparar nele, mas
So ia deté m-se, vira-se para as janelas escuras e está prestes a dizer
qualquer coisa quando ouve um estalido, como um cubo de gelo que cai
com força num copo.
– Tens a certeza de que nã o está ningué m em casa? – pergunta.
Se acontecesse alguma coisa, bastava-lhe um instante para tirar os
sapatos e desatar a correr em direçã o à porta da entrada. E certamente
muito mais á gil do que ele e, se continuasse a correr, sem parar para
pegar no sobretudo, conseguiria pô r-se a salvo.
Fica à porta da cozinha enquanto o homem tira uma garrafa de
Bollinger do refrigerador de vinhos. Abre-a e enche duas lutes, espera
que a espuma baixe e serve mais um pouco, antes de voltar junto dela.
2
So ia prova o champanhe: o sabor da bebida acaricia-lhe o palato e
as bolhinhas rebentam no copo. Alguma coisa a leva mais uma vez a
voltar os olhos para as janelas da cozinha. Um animal, pensa. Lá fora
está escuro. Vê re letidos nos vidros os contornos nı́tidos da cozinha e
as costas do homem. A superfı́cie lisa do balcã o, o cepo das facas e a
taça cheia de limõ es.
O homem levanta novamente a lute para beber, depois faz um gesto
em direçã o a So ia e a mã o treme-lhe ao de leve.
– Desabotoa um bocadinho o vestido – diz.
So ia esvazia o copo, repara na marca de batom no rebordo e volta a
pousá -lo em cima da mesa antes de fazer deslizar o primeiro botã o para
fora da casa estreita.
– Trazes soutien – diz o homem.
– Sim – responde ela, enquanto desaperta o segundo botã o.
– Que medida?
– Trinta e quatro.
O homem continua a observá -la com um sorriso, e So ia sente
comichã o nas axilas por causa do suor que começa a brotar.
– Que cuecas trazes?
– De seda, azuis…– Posso vê -las?
So ia hesita e ele apercebe-se.
– Desculpa – diz o homem prontamente. – Se calhar, estou a ir
demasiado depressa?
– Primeiro temos de tratar do aspeto econó mico – diz So ia, a tentar
usar um tom de voz decidido e desenvolto.
– Percebo – responde ele secamente.
– Para começar é melhor que…
– Queres que te pague antes – interrompe-a ele, com um laivo de
irritaçã o na voz.
Normalmente, com clientes habituais, é tudo mais simples, à s vezes
agradá vel até ; os clientes novos, pelo contrá rio, põ em-na nervosa.
Começa a pensar em tudo aquilo que poderia acontecer. Voltam-lhe à
ideia episó dios do passado, como daquela vez em que um pai de famı́lia
de Tä by a mordeu no pescoço e depois a fechou na garagem.
So ia publicou anú ncios na Páginas rosa e Raparigasdeestocolmo.se.
Quase nenhuns daqueles que a contratam tê m intençõ es sé rias. Na
maior parte das vezes escrevem ordinarices, promessas de sexo
mirabolante e ameaças de agressõ es e castigos.
Antes de dar inı́cio a uma correspondê ncia, ouve sempre o seu
instinto. Aquela carta estava bem escrita, bastante concreta, mas nã o
desprovida de respeito. Ele tinha assinado Wille, tinha um nú mero de
telefone privado e a direçã o indicava uma zona elegante.
No terceiro e-mail, explicou-lhe o que desejava fazer e quanto estava
disposto a pagar.
Começou entã o a tocar no espı́rito de So ia uma campainha de
alarme.
Se tudo parece demasiado perfeito, alguma coisa está mal. Naquele
meio nã o existem bilhetes de lotaria e, mesmo quando se encontra um,
é sempre melhor deixar fugir uma oportunidade de ouro do que expor-
se a riscos.
No entanto, So ia está ali agora.
O homem regressa e estende-lhe um envelope.
– E su iciente para me deixares ver as cuecas? – pergunta.
A rapariga sorri com segurança, depois agarra delicadamente no
vestido com as duas mã os e levanta-o devagar por cima dos joelhos. A
bainha desliza com um leve ruı́do contra as meias de nylon enquanto
sobe ao longo das coxas, até que ela se deté m a observar o homem.
Ele nã o retribui o olhar; pelo contrá rio, continua a olhar para o
meio das pernas dela, ao mesmo tempo que ela a pouco e pouco vai
levantando o vestido até à cintura. Por baixo dos collants, a seda das
cuecas reluz como madrepé rola.
– Depilaste-te? – pergunta o homem, com uma voz um pouco mais
rouca.
– Fiz uma depilaçã o com cera.
– Integral?
– Sim – limita-se So ia a responder.
– Deve doer – comenta ele, interessado.
– Acabamos por nos habituar – responde ela, assentindo.
– Como a tantas outras coisas na vida – murmura ele.
So ia deixa cair o vestido e, enquanto alisa o tecido sobre as coxas,
limpa as mã os suadas.
Apesar de já ter recebido o dinheiro, sente-se outra vez nervosa.
Talvez seja por causa da quantia.
Pagou-lhe cinco vezes mais do que qualquer outro cliente.
No e-mail, explicou-lhe que estava disposto a pagar
principescamente pela discriçã o e por aquele seu desejo particular,
mas, fosse como fosse, a quantia era muito mais elevada do que o
necessá rio.
Quando lhe escreveu a explicar-lhe o que queria fazer, nã o lhe
pareceu demasiado perigoso.
So ia recorda um homem de olhar assustado que vestia a roupa
interior da mã e e queria que lhe batessem nas virilhas. Pagou-lhe para
ela fazer chichi em cima dele enquanto ele chorava de dor aninhado no
chã o, mas So ia nã o conseguiu, pegou no dinheiro e fugiu.
– As pessoas excitam-se com coisas variadas – diz Wille, com um
sorriso embaraçado. – E impossı́vel obrigar algué m a… E entã o nã o há
outra alternativa senã o pagar. Seja como for, nã o estou à espera de que
gostes daquilo que fazes.
– Depende, mas com um homem terno eu també m consigo ter
prazer – continua ela, a mentir.
No anú ncio, So ia promete obviamente a má xima discriçã o, mas
ainda assim toma as suas precauçõ es. Em casa tem uma agenda onde
anota o nome e a morada das pessoas com quem decide encontrar-se,
de forma a que seja possı́vel seguir alguma pista no caso de ela
desaparecer.
Para alé m do mais, Wille tinha sido cliente de Tamara, antes de ela
sair do circuito, casar e ir viver para Gotemburgo. So ia tem a certeza de
que Tamara teria publicado um aviso no fó rum para acompanhantes, se
Wille nã o fosse um sujeito em condiçõ es.
– Só gostava que tu nã o me achasses asqueroso e nojento – diz o
homem, aproximando-se mais um passo dela. – Quer dizer, tu é s
incrivelmente bonita e jovem… Eu sei perfeitamente que aspeto tenho;
com a tua idade até nem era nada mau, mas…
– També m nã o é s nada mau agora – garante So ia.
Lembra-se de todas as vezes em que ouviu dizer que as
acompanhantes tê m de ser uma espé cie de psicó logas. Mas a maior
parte dos clientes nunca conta nada de pessoal.
– Vamos subir até ao quarto? – pergunta com calma o homem que
dá pelo nome de Wille.
3
Enquanto sobe atrá s do homem a ampla escadaria de madeira,
So ia apercebe-se de que precisa de ir à casa de banho. A alcatifa macia
está presa a cada degrau com umas varas de latã o. A luz do enorme
candeeiro de teto re lete-se sobre o corrimã o envernizado.
Nos primeiros tempos, So ia tinha-se proposto aceitar apenas
clientes exclusivos: aqueles que estivessem dispostos a pagar quantias
elevadı́ssimas por uma noite inteira e aqueles que desejassem
companhia para uma festa ou durante uma viagem.
Naqueles trê s anos em que equilibrou o orçamento como
acompanhante de luxo apareceram-lhe cerca de vinte trabalhos do
gé nero; a maior parte dos seus clientes nã o pede senã o um broche
depois do trabalho, antes de regressar para junto da famı́lia.
No grande quarto iluminado destaca-se uma imponente cama de
casal com uns fantá sticos lençó is de seda cinzentos.
Em cima da mesa de cabeceira da mulher há um romance de Lena
Andersson e um boiã o de um creme caro de mã os; na de Wille há um
iPad desligado, coberto de dedadas.
O homem mostra-lhe as correias de couro negro que já prendeu à s
colunas da cama. So ia repara que nã o sã o novas: a pele está estalada
nas dobras e a cor começa a icar desbotada.
Por duas vezes, o quarto treme e rodopia sobre si mesmo com um
solavanco; So ia observa o homem, que parece alheio a tudo.
Nos cantos da boca tem marcas brancas de pasta de dentes ou de
uma daquelas pastilhas que se dissolvem na boca.
Ouve-se um ruı́do proveniente das escadas; o homem vira-se para o
corredor antes de voltar a olhar para So ia.
– Tens de me garantir que me soltas quando eu te pedir – diz, ao
mesmo tempo que desabotoa a camisa. – Tens de me garantir que nã o
vais tentar roubar-me, nem fugir, agora que te paguei.
– Claro – responde ela.
Wille tem o peito coberto de pelos claros, e é evidente que está a
meter a barriga para dentro enquanto ela olha para ele.
So ia decide que, depois de o ter amarrado, lhe vai pedir para usar a
casa de banho, que dá diretamente para o quarto. A porta está
entreaberta e, atravé s do espelho, vê -se um chuveiro encostado a uma
parede de mosaico dourado.
– Quero que me amarres e demores todo o tempo que precisares,
nã o gosto de violê ncia nem deprevaricaçã o – diz ele.
So ia assente enquanto tira os sapatos e, quando volta a levantar-
se, sente novamente uma ligeira vertigem; cruza por um instante o
olhar do homem antes de levantar o vestido até ao umbigo, com um
crepitar de eletricidade está tica. En ia os polegares sob o elá stico dos
collants e baixa-os. O aperto do tecido em volta das coxas desvanece-se
e as meias caem levemente sobre os tornozelos.
– Se calhar, preferes que seja eu a amarrar-te? – pergunta ele, a
sorrir da sua pró pria piada.
– Nã o, obrigada – responde So ia, ao mesmo tempo que começa a
desabotoar o vestido.
– E bastante confortá vel – brinca o homem, dando um ligeiro puxã o
a uma das correias.
– Eu nã o faço essas coisas – diz ela, com gentileza.
– Nunca experimentei inverter os papé is… Estou disposto a
duplicar o teu pagamento, se aceitares – diz o homem a rir, como se a
simples ideia o deixasse apalermado e eufó rico.
Está a oferecer-lhe mais do que ela ganha em dois meses, mas
deixar-se amarrar é decididamente demasiado perigoso.
– O que dizes? – pergunta-lhe, com um sorriso.
– Nã o – responde So ia, irritada e aliviada ao mesmo tempo.
– OK – diz ele secamente, largando a correia.
A ivela tilinta ao mesmo tempo que a tira de couro ondeia contra a
coluna da cama.
– Queres que tire tudo? – pergunta So ia.
– Espera um instante – diz ele, enquanto a observa com um
estranho olhar inquiridor.
– Importas-te que use a casa de banho?
– Daqui a pouco – responde, e parece que está a tentar conter a
respiraçã o.
Os lá bios de So ia estã o estranhamente frios. Quando levanta uma
mã o para a levar à boca, apercebe-se de que o homem começa a sorrir.
Ele aproxima-se, segura-lhe no queixo, apertando-a com força, e
cospe-lhe na cara.
– Mas o que é que está s a fazer? – exclama So ia, ao mesmo tempo
que é acometida por uma onda de vertigens.
De repente, sente que as pernas começam a ceder e precipita-se
para trá s com uma violê ncia tal que trinca a lı́ngua. Cai de lado, sente a
boca encher-se de sangue e vê o homem, imponente por cima dela, a
desabotoar as calças de veludo.
Nã o tem forças para se arrastar e tentar proteger-se. Pousa uma
face no chã o e descobre uma mosca morta no meio do pó debaixo da
cama. O coraçã o bate-lhe no peito com tanta força que lhe ecoa nos
ouvidos. Percebe que ele a drogou.
Antes de perder os sentidos, So ia pensa que provavelmente o
homem a vai matar e que aquele poderá ser o ú ltimo instante da sua
vida.
4
So ia acorda a tossir de um sonho em que se sentia afogar e
percebe imediatamente onde se encontra. Está amarrada à cama, em
casa do homem que dá pelo nome de Wille: deitada de costas e presa
pelas correias esticadas. Ele apertou-a com força, e So ia tem os
mú sculos dos braços e das pernas contraı́dos, para alé m dos pulsos
dormentes e dos dedos gelados.
Sente a boca seca: a lı́ngua deixou de sangrar, mas está inchada e
dorida.
O vestido subiu até à cintura quando ele lhe abriu as pernas com
força.
Nã o pode ser verdade, pensa.
O homem previu todos os seus movimentos e deitou
antecipadamente a droga numa das garrafas de champanhe.
So ia ouve uma voz no quarto ao lado: uma conversa em tom
pragmá tico, um chefe a dar ordens.
Tenta levantar a cabeça para espreitar pela janela e perceber se é
de noite ou de dia, mas nã o consegue, porque lhe doem demasiado os
braços.
Nã o faz ideia de há quanto tempo ali está e, enquanto pensa nisso, o
homem entra no quarto.
O medo enche o coraçã o de So ia como um veneno. Sente o pâ nico
que lhe invade a cabeça, lhe fecha a garganta e lhe faz galopar o coraçã o.
Aquilo que nã o devia ter acontecido aconteceu.
Procura acalmar-se; deve tentar falar com ele e fazê -lo entender
que escolheu a rapariga errada, mas que está disposta a esquecer tudo
se ele a soltar imediatamente.
Promete a si mesma mudar de vida: trabalha como acompanhante
de luxo há demasiado tempo e acaba por esbanjar todo o dinheiro que
ganha em coisas inú teis.
O homem olha para ela com a mesma avidez de antes. So ia tenta
mostrar-se calma e pensa que, desde o inı́cio, alguma coisa tinha
levantado as suas suspeitas. Mas, em vez de ter dado meia-volta, nã o
ligou ao seu pró prio instinto, cometendo assim um erro crasso e agindo
com o desespero de um heroinó mano.
– Já te disse que nã o gosto disto – declara, com um tom calmo.
– Eu sei – responde ele a sorrir, imó vel, enquanto lhe percorre o
corpo com o olhar.
– Conheço raparigas que gostam. Posso dar-te o contacto delas, se
quiseres.
O homem nã o responde, limita-se a respirar profundamente pelo
nariz e põ e-se aos pé s da cama, entre as pernas dela. So ia começa a
sentir suores frios e prepara-se para a violê ncia e para a dor.
– Isto é uma agressã o. Sabes disso, nã o sabes?
Mais uma vez, ele evita responder, empurra os ó culos para cima do
nariz e observa-a com curiosidade.
– Nã o gosto, nã o quero fazer isto, porque é que me queres
humilhar? – recomeça So ia, mas deté m-se ao sentir tremer a sua
pró pria voz.
Tenta abrandar a respiraçã o. Nã o deve mostrar medo e nã o deve
pô r-se a suplicar. O que teria Tamara feito no seu lugar? Imagina o rosto
sardento da amiga, o sorrisinho maldoso, o olhar duro.
– No meu apartamento tenho uma agenda onde escrevi os teus
dados – diz, olhando o homem nos olhos.
– Que dados? – pergunta ele, com indiferença.
– O teu nome, que é seguramente inventado. Mas també m anotei
este endereço, o teu e-mail, a hora do encontro…
– Obrigado pela informaçã o – diz ele.
O colchã o afunda quando o homem começa a deslizar em cima da
cama em direçã o a ela. Deté m-se nas coxas, agarra-lhe nas cuecas e
puxa-as com força. As costuras gemem sem se rasgarem e So ia sente
uma isgada nas costas, como se estivessem a esticar-se.
O homem puxa outra vez, com as duas mã os. So ia sente uma dor
ardente quando as cuecas se enterram nos lancos, mas as costuras em
volta do elá stico aguentam.
O homem murmura qualquer coisa para si mesmo e deixa-a
sozinha na cama.
O colchã o abana novamente e So ia apercebe-se de que está prestes
a ter uma cã ibra na coxa.
Por um instante, a lembrança de um treino atravessa-lhe a mente: a
sensaçã o de uma cã ibra que está para chegar, uma espé cie de tensã o na
barriga da perna enquanto tenta arrancar os grumos de relva pisada
que se tinham agarrado aos pitons das chuteiras.
Os rostos vermelhos e acalorados das companheiras. O chã o de
madeira dos balneá rios coberto de lama, o cheiro a suor, a loçõ es para o
corpo e a desodorizante.
Como é que aquilo tinha acontecido? Como é que acabara assim?
Esforça-se por nã o chorar; tem a sensaçã o de que mostrar-se
assustada seria fatal.
O homem regressa com uma tesoura de unhas, corta as cuecas de
ambos os lados e tira-lhas.
– Há muitas raparigas disponı́veis para fazer bondage – diz So ia. –
Conheço…
– Nã o me interessam as disponı́veis – interrompe-a o homem, ao
mesmo tempo que atira as cuecas para a cama ao lado dela.
– Nã o, quero dizer, raparigas que se excitam quando as amarram.
– Nã o devias ter vindo – limita-se ele a constatar.
So ia já nã o consegue conter-se e desata a chorar. O terror fá -la
arquear as costas e as correias esticam-se de uma forma brusca,
cortando-lhe a pele. O sangue começa a correr em ios inos ao longo do
antebraço direito.
– Nã o faças isso – implora, a soluçar.
O homem despe a camisa, atira-a para o chã o e desenrola um
preservativo sobre o pé nis meio ereto.
Ajoelha-se na cama e So ia sente o cheiro do lá tex quando ele lhe
en ia na boca aquilo que resta das cuecas. E dominada por um arranco
de ná usea e está prestes a vomitar. Tem a lı́ngua seca e as faces sulcadas
de lá grimas. O homem aperta-lhe um seio atravé s do tecido do vestido,
depois deixas e cair pesadamente em cima dela.
So ia urina-se de medo, sente um luxo quente que alastra por baixo
dela.
Quando ele tenta penetrá -la, ela desvia-se repentinamente de lado
e atinge-o com a anca.
Uma gota de suor escorre da ponta do nariz do homem e cai-lhe na
face.
Ele fecha uma mã o em volta do pescoço dela; ita-a com olhos de
fogo, aperta-lhe a garganta e volta a deitar-se em cima dela. O seu peso
enterra-a no colchã o e a pressã o faz com que ela abra ainda mais as
coxas. Os pulsos ardem-lhe e as colunas da cama rangem.
O homem aperta-lhe a garganta com mais força ainda, e no campo
visual de So ia surgem pontinhos negros. O quarto ica mais escuro e,
nesse preciso momento, a rapariga sente que ele está outra vez a tentar
penetrá -la. Tenta esquivar-se com todas as suas forças, mas é
impossı́vel, vai acontecer, de qualquer maneira. Nã o pode permanecer
no seu pró prio corpo: tem de pensar noutra coisa, desmaiar.
Lembranças repentinas dançam-lhe no espı́rito: as noites frias no
grande campo relvado, a respiraçã o ofegante, a nuvem de vapor em
volta da boca; o silê ncio ao longo das margens do lago e a velha escola
de Bollstanä s.
O treinador aponta para a bola, apita e tudo se cala.
O aperto na garganta desaparece. So ia tosse ligeiramente e aspira
uma lufada de ar, depois pestaneja e ouve uma melodia mecâ nica.
O homem voltou a pô r-se de joelhos. Ela respira com di iculdade e
tem o rosto em chamas.
Algué m está a tocar à porta da entrada.
O homem segura-lhe no queixo, pressiona-lhe a boca com força e
empurra as cuecas mais para o fundo; So ia sente arrancos de vó mito e
respira pelo nariz, porque nã o consegue engolir.
Tocam outra vez.
O homem cospe-lhe em cima e levanta-se da cama. Abotoa as calças
e recupera a camisa antes de sair.
Assim que ele desaparece atravé s da porta, So ia puxa a correia
com a mã o direita, com toda a força possı́vel, sem pensar nas
consequê ncias ou na dor.
Sente uma isgada lancinante quando a mã o escapa da tira de
couro.
As cuecas en iadas na boca impedem-na de gritar.
Parece-lhe que a cabeça icou de repente levı́ssima; está quase a
desmaiar e isgadas profundas de dor atravessam-lhe todo o corpo.
Talvez tenha fraturado o polegar ou rompido um ligamento. A pele
levantou como uma luva virada do avesso e, quando tira as cuecas da
boca, o sangue escorre-lhe ao longo do braço.
Geme em voz alta enquanto tenta histericamente desapertar a
correia que lhe prende a mã o esquerda. Os dedos escorregam, mas
inalmente consegue fazer sair o espigã o do furo. Desen ia rapidamente
a correia da ivela, senta-se e desata os nó s que lhe amarram os
tornozelos.
Sente as pernas instá veis, mas levanta-se, segura a mã o ferida
contra o ventre e dá um passo no tapete espesso. O choque e a dor
deixam-lhe a cabeça a andar à roda e tem os pé s entorpecidos; o vestido
desce-lhe molhado e gé lido sobre as ná degas.
Sai do quarto com cautela e esgueira-se pelo corredor por onde o
homem desapareceu há pouco.
Para antes de chegar à s escadas. Ouve, proveniente do andar de
baixo, uma voz diferente, e pensa que devia pedir ajuda. Nã o consegue
perceber o que o outro homem está a dizer e aproxima-se, cautelosa.
Pendurada no corrimã o da escada está alguma roupa que veio da
lavandaria. Atravé s do plá stico ino, repara num monte de saias
brancas, todas iguais.
Aclara a garganta e prepara-se para gritar quando, de repente,
percebe o que está a acontecer em baixo.
O outro homem nã o está em casa. A sua voz prové m do
intercomunicador. E um rapaz que está ao portã o com alguma coisa
para entregar e que pede para entrar. Wille repete-lhe que volte mais
tarde, interrompe a conversa e regressa à s escadas.
So ia cambaleia, mas consegue manter o equilı́brio. Sente um
formigueiro nos pé s, porque o sangue voltou a correr-lhe nos membros.
Recua sobre o pavimento, que range; ao olhar em volta, descobre ao
fundo do corredor uma divisã o mais ampla, com as paredes cobertas de
retratos. Pensa em correr até lá , abrir uma janela e pedir socorro, mas
percebe que já nã o tem tempo.
5
So ia desloca-se rapidamente ao longo da parede, para lá das
escadas, até chegar à porta ina de um roupeiro; baixa a maçaneta e
puxa-a para si.
Está fechada à chave.
Com cautela, larga a maçaneta e no mesmo momento apercebe-se
de que o homem vem a subir as escadas, sob a luz re letida pelos
prismas de cristal do lustre.
Chegou quase ao topo.
So ia regressa à s escadas e encolhe-se no chã o ao lado do corrimã o,
escondida pelas camisas da lavandaria. Se o homem olhasse naquela
direçã o, vê -la-ia seguramente, mas se seguisse em frente a rapariga
poderia ganhar alguns segundos de vantagem.
A dor na mã o é de tal maneira forte que a faz tremer, e, alé m disso,
a traqueia e a laringe icaram inchadas. Sente necessidade de tossir, de
aclarar a garganta, de beber qualquer coisa.
A escada range sob os passos pesados e cansados de Wille. So ia vê -
o atravé s das pequenas colunas da balaustrada e retrai-se com cautela.
Wille chega ao topo, apoia-se ao corrimã o e continua pelo corredor.
Dirige-se para o quarto sem reparar nas gotas de sangue no chã o.
Lentamente, So ia levanta-se; observa as costas do homem e o
pescoço queimado pelo sol, depois vê -o desaparecer atravé s da porta.
Sem fazer ruı́do, dá a volta à balaustrada e começa a correr escadas
abaixo.
Percebe que ele voltou a sair e que vai atrá s dela.
Os passos que se precipitam pelas escadas duplicam.
So ia protege a mã o ferida com a outra, apertando os dedos
hú midos e entorpecidos.
Sabe apenas que tem de conseguir sair de casa. Corre atravé s do
enorme hall de entrada, e a escada range ruidosamente enquanto o
homem a persegue.
– Assim só me fazes perder tempo – ouve-o gritar.
Corre silenciosamente em direçã o à entrada sobre um tapete ino,
tropeça nuns sapatos rasos, mas manté m o equilı́brio.
O sensor do alarme antirroubo pisca ao lado da porta.
So ia tem tanto sangue nos dedos que a maçaneta lhe escorrega da
mã o; limpa-se ao vestido e volta a tentar, mas está trancada. Tenta
baixá -la, bate na porta com o ombro, mas nã o acontece nada. Dominada
pelo pâ nico, olha em volta à procura das chaves, enquanto tenta
novamente deslocar a maçaneta. Desiste e corre atravé s da porta dupla
que dá acesso ao salã o.
Noutra divisã o, qualquer coisa cai: um objeto metá lico que salta no
parquet.
So ia afasta-se das grandes janelas, cujos vidros negros cintilam; o
seu pró prio re lexo parece uma silhueta escura contra a parede mais
clara.
Sente que o homem está a chegar vindo da direçã o oposta, volta
para trá s e esconde-se atrá s de uma das portas.
– Todas as saı́das estã o fechadas – diz ele em voz alta, ao entrar no
salã o.
So ia susté m a respiraçã o. O coraçã o salta-lhe no peito e a porta
range levemente. O homem deté m-se à entrada: consegue vê -lo pela
frincha ao longo da moldura da porta: tem a boca entreaberta e as faces
suadas.
As pernas recomeçam a tremer-lhe.
O homem avança uns passos, depois para, à escuta. So ia tenta nã o
fazer barulho, mas o medo fá la arquejar demasiado alto.
– Já estou a icar cansado desta brincadeira – diz ele, enquanto
passa adiante.
Pelos sons que lhe chegam, So ia percebe que ele anda à procura
dela, que abre e fecha todas as portas. Em voz alta, garante-lhe que só
quer falar.
Um mó vel raspa no chã o, depois, o silê ncio.
So ia ica à escuta: ouve a sua pró pria respiraçã o, o tique-taque
desolado de um reló gio de parede, o parquet a ranger ao de leve, e mais
nada.
Só um desesperado silê ncio de tú mulo.
Espera mais alguns segundos, para o caso de ouvir os passos dele
aproximarem-se; sabe que pode ser uma armadilha, mas ainda assim
abandona o esconderijo, com a consciê ncia de que aquela poderá ser a
sua ú ltima oportunidade.
Avança cautelosamente pelo salã o. Tudo está imó vel, tudo parece
mergulhado num sono secular. Os mó veis rebuscados e os seus gé meos
escuros re letidos nos painé is de vidro. A sua pró pria igura iluminada
pelo lustre de cristal.
So ia aproxima-se de uma das cadeiras ao lado da mesa brilhante e
tenta pegar nela, mas apercebe-se de que é demasiado pesada. Entã o
arrasta-a, segurando-a pelas costas com a mã o sã . Transporta-a até à
grande porta envidraçada da varanda e, a gemer de dor, obriga-se a
pegar nela també m com a mã o ferida. Agarra nas costas da cadeira
pelos dois lados e dá dois passos a correr, depois roda sobre si mesma e
atira a pesada cadeira contra a porta, com um grito.
A cadeira bate no vidro e faz ricochete. O painel interior desfaz-se e
cai ao chã o, espalhando estilhaços por todo o parquet. Outras placas de
vidro caem e icam bloqueadas contra os painé is ainda intactos.
O alarme dispara, com um ruı́do ensurdecedor.
So ia agarra outra vez na cadeira, sem se importar com as feridas
que está a fazer nos pé s, e está prestes a lançá -la outra vez contra a
portada de vidro quando vê o homem, que vem ao encontro dela desde
a entrada.
Larga a cadeira, corre até à cozinha e inspeciona com o olhar os
azulejos brancos do chã o e os balcõ es em aço inox.
Ele vai atrá s dela com passos medidos.
Na mente de So ia surge uma recordaçã o de um jogo de infâ ncia em
que algué m andava atrá s dela: o cansaço que se sente quando o
perseguidor está pró ximo e já é impossı́vel fugir.
A rapariga encosta-se ao balcã o, deitando abaixo uns ó culos e uma
estranha pulseira.
Nã o sabe o que fazer. Olha para as janelas fechadas da varanda e
atravessa a divisã o até à ilha central, onde estã o pousadas duas
caçarolas luzidias. Abre as gavetas com as mã os a tremer e a respiraçã o
ofegante, e por im repara na ileira de facas.
O homem entra na cozinha; entã o, a rapariga agarra numa das
facas, volta-se para ele e começa a recuar. O homem ita-a, segurando
com ambas as mã os um atiçador sujo de cinza.
A tremer, So ia aponta contra ele a faca de lâ mina larga e percebe
que nã o tem qualquer hipó tese.
Ele vai matá -la com aquele utensı́lio pesado.
O alarme continua a berrar, enquanto os cortes nas plantas dos pé s
lhe ardem e a mã o ferida se tornou já insensı́vel.
– Por favor, para com isso – diz So ia, arquejante, ao mesmo tempo
que recua até embater na ilha.
– Vamos voltar para a cama, juro-te, eu faço o que tu quiseres.
Mostra-lhe a faca, pousa-a no balcã o de aço e tenta dirigir-lhe um
sorriso.
– Vou bater-te, de qualquer maneira – responde o homem.
– Nã o… Por favor – implora a rapariga, sentindo que acaba de
perder o controlo dos mú sculos da face.
– Vou magoar-te muito – diz ele, erguendo o atiçador por cima do
ombro.
– Por favor, eu rendo-me. Eu…
– A culpa é toda tua – interrompe-a o homem e, naquele momento,
deixa cair o atiçador de repente.
O objeto cai pesadamente no pavimento com um ruı́do metá lico. A
fuligem levantada pela ponta rodopia no ar.
O homem sorri de espanto enquanto baixa os olhos para o cı́rculo
de sangue que lhe alastra no peito.
– Que caraças… – geme. Procura com a mã o um ponto de apoio,
falha o balcã o e vacila.
Uma outra mancha de sangue aparece na camisa branca. As feridas
vermelhas desabrocham como chagas no seu corpo.
O homem aperta a mã o contra o peito e começa a arrastar-se em
direçã o à sala de jantar, depois deté m-se e levanta a palma
ensanguentada. Parece aterrorizado como uma criança e tenta dizer
qualquer coisa antes de cair de joelhos.
O sangue esguicha no chã o diante dele.
O alarme continua a tocar, e o ruı́do é insuportá vel.
A superfı́cie polida de uma das caçarolas re lete a cozinha inteira
como um ecrã convexo.
Em frente à s cortinas claras da porta envidraçada, So ia descobre
um homem com uma cabeça de formato estranho.
Tem as pernas afastadas e empunha uma pistola com as duas mã os.
Um passa-montanhas preto cobre-lhe o rosto, com exceçã o da boca e
dos olhos. Pendem-lhe ao longo de uma face madeixas de cabelo, ou
talvez se trate de dois pedaços de um tecido rı́gido.
Wille aperta novamente a mã o contra o peito, mas o sangue
escorre-lhe por entre os dedos e ao longo do antebraço.
A cambalear, So ia volta-se para itar o homem armado que,
mantendo sempre Wille debaixo de mira, tira uma mã o da culatra da
pistola e se inclina rapidamente e apanha dois cartuchos do chã o.
Depois salta, passando à frente de So ia como se ela nã o existisse, e
afasta o atiçador dando-lhe um pontapé com uma bota militar. Agarra
Wille pelos cabelos, puxa-lhe a cabeça para trá s e encosta-lhe a pistola
ao olho direito.
E uma execuçã o, pensa So ia, e como num sonho dirige-se para o
salã o, apoiando as costas à bancada e fazendo deslizar a mã o pela beira.
Passa pelos dois homens, sente um arrepio na espinha e começa a
correr, mas escorrega no sangue. Os pé s perdem a aderê ncia; a rapariga
ica suspensa no ar antes de bater com a nuca no chã o.
Durante alguns instantes, nã o vê mais do que uma densa
obscuridade; depois volta a abrir os olhos.
Apercebe-se de que o intruso ainda nã o disparou: manté m o cano
da pistola encostado com força ao olho fechado de Wille.
So ia sente umas isgadas intensas na nuca.
Diante dos seus olhos tudo ica desfocado, como se o seu campo
visual se turvasse a pouco e pouco. Aquilo que um instante atrá s lhe
tinha parecido tiras de couro na face do intruso surge agora como
penas molhadas e melenas de cabelo sujo.
So ia fecha os olhos, dominada por fortes vertigens, e depois ouve
as vozes dos dois homens por entre as notas estridentes do alarme.
– Espera, espera – implora Wille. – Julgas que sabes tudo, mas nã o é
bem assim.
– Sei que o Ratjen abriu as portas e agora você s vã o todos…
– Quem é o Ratjen? – interrompe-o Wille, num tom agastado.
– E agora você s vã o todos mergulhar no inferno – conclui o homem
mascarado.
Ficam em silê ncio e So ia volta a abrir os olhos. Tudo acontece com
uma desconcertante lentidã o. O intruso mascarado olha para o reló gio e
murmura qualquer coisa ao homem que dá pelo nome de Wille.
Wille nã o diz nada, mas parece entender. O sangue sai em ios do
seu ventre, escorre-lhe ao longo das virilhas e junta-se numa poça no
pavimento.
So ia repara nos ó culos que estã o no chã o, ao lado da base
arranhada do balcã o, muito perto; e ainda mais perto está aquilo que à
primeira vista lhe tinha parecido uma pulseira.
Agora percebe que é um alarme antiagressã o.
Parece uma caixinha de aço com dois botõ es montada numa
pulseira.
O homem mascarado observa a sua vı́tima, imó vel.
So ia estende cautelosamente a mã o e agarra no alarme. Esconde-o
contra o corpo e carrega vá rias vezes nos botõ es.
Nã o acontece nada.
O homem mascarado larga os cabelos de Wille, mas continua a
apontar-lhe a pistola ao olho. Espera um instante e depois prime o
gatilho.
O obturador salta com um ruı́do metá lico. A cabeça de Wille é
projetada para trá s e o sangue esguicha para fora da nuca. Fragmentos
de crâ nio e de massa cinzenta espalham-se pelo chã o e chegam à sala
de jantar, chovendo sobre os encostos das cadeiras, a mesa e a fruteira.
So ia sente gotas quentes salpicarem-lhe os lá bios, depois vê o
cartucho expelido que ressalta no pavimento, a tilintar.
Uma nuvem de fumo cinzento expande-se no ar e o corpo sem vida
de Wille cai ao chã o.
O homem mascarado inclina-se. O reló gio escorrega-lhe pelas
costas da mã o enquanto recupera o cartucho.
Põ e-se de pernas abertas por cima do cadá ver, inclina-se para a
frente, apoia o cano da pistola contra o outro olho de Wille e abana a
cabeça para afastar do rosto as tiras de tecido molhado.
Depois prime novamente o gatilho.
6
O primeiro toque do telefone encriptado confunde-se com o
murmú rio de um regato que, no sonho, atravessa uma densa vegetaçã o.
Um segundo depois, Saga Bauer reemerge do sono e levanta-se da cama
sem se aperceber de que está a arrastar o cobertor atrá s de si.
Corre em direçã o ao armá rio das pistolas só com as cuecas vestidas
e marca um nú mero que já sabe de cor. A luz dos lampiõ es escoa-se
atravé s das tiras das persianas e pousa-lhe sobre as pernas ossudas e as
costas nuas.
Abre rapidamente a porta de aço enquanto ouve as instruçõ es ao
telefone; entretanto, agarra numa bolsa preta e en ia lá dentro uma
Glock.21 com o coldre e cinco carregadores de reserva.
Saga Bauer é comissá ria operativa da Sä po, a Polı́cia de Segurança
sueca, e especializou-se no setor de antiterrorismo.
O sinal particular que a acordou signi ica que foi acionado o có digo
Platina.
Corre em direçã o à entrada e escuta as ú ltimas indicaçõ es, depois
desliga a chamada e mete o telefone na bolsa.
Nã o há tempo a perder.
Veste o fato de pele negra diretamente sobre o corpo nu; sente o
toque frio contra as costas e o peito, en ia os pé s descalços nas botas e
pega no capacete que está em cima da consola, assim como o pesado
colete à prova de bala e as luvas.
Sai do apartamento sem perder um segundo a fechá -lo à chave.
Desce as escadas, transpõ e o portã o e puxa o fecho-é clair até ao
pescoço. Depois, põ e o capacete e en ia lá dentro rapidamente algumas
madeixas dos seus cabelos loiros.
Na Tavastgatan está estacionada uma Triumph Speed Triple com a
panela de escape amassada, o guarda-lamas riscado e o motor de
arranque avariado. Saga chega junto dela a correr, abre o cadeado e
deixa-o no chã o, juntamente com a corrente pesada.
Monta a moto, pressiona o pedal de arranque e parte o mais
depressa possı́vel atravé s da cidade adormecida.
O cé u tem uma cor cinza-clara por causa da luz dos lampiõ es e das
minú sculas gotas de chuva iluminadas.
Saga ignora os semá foros e os sinais de Stop, atinge a velocidade
má xima e ultrapassa um tá xi em Bastugatan.
O motor vibra contra os seus joelhos e essa vibraçã o transmite-se
ao interior das coxas; o ruı́do atravessa o capacete como uma espé cie
de mugido subaquá tico.
A comissá ria Saga Bauer tem um metro e setenta de altura e o
corpo de uma bailarina clá ssica. Foi durante muito tempo uma das
melhores pugilistas do Norte da Europa, mas deixou as competiçõ es há
uns anos.
Tem vinte e nove anos e uma beleza de cortar a respiraçã o, talvez
agora mais do que nunca, com a sua pele clara, o pescoço delicado e os
olhos azuis.
Frequentemente, as pessoas que a encontram pela primeira vez sã o
atingidas por uma sú bita fraqueza, como se sentissem quebrar-se
qualquer coisa dentro delas.
Saga deixa um vazio atrá s de si, quase como o eco de um amor
infeliz.
Os colegas já nem sequer reparam na sua beleza, da mesma forma
que nã o reparariam na de uma irmã .
Por sua vez, Saga nã o presta demasiada atençã o ao seu pró prio
aspeto e nã o se apercebe de que homens e mulheres coram quando
estã o perto dela.
Poucas coisas a irritam mais do que as vezes em que algué m lhe diz
que ela se parece com uma fada das histó rias ou com uma princesa da
Disney.
Um saco de plá stico cheio de ar rodopia diante da moto,
arrancando Saga aos seus pensamentos.
Quando chega a Sö dermä larstrand vira bruscamente à direita; o
pedal de apoio arranha o asfalto, mas ainda assim Saga consegue
manter a trajetó ria, en iando-se debaixo da Centralbron, e sobe a rampa
da autoestrada.
E a primeira vez que lhe acontece estar em serviço durante uma
emergê ncia do có digo Platina. E o nı́vel má ximo de alerta para a
segurança do paı́s na escala da Sä po. Saga sabe que aquela intervençã o
tem prioridade sobre qualquer outra tarefa.
Quando passa diante das torres e vielas estreitas de Gamla Stan e
Riddarholmen é como se voasse no interior de uma lâ mpada escura.
Saga está treinada para enfrentar cená rios do gé nero e sabe que
naquela fase se espera que ela seja capaz de agir com autonomia, sem
se preocupar com as leis em vigor.
Passa diante dos edifı́cios só rdidos em tijolo do Hospital Karolinska
e chega à E4. Força ao má ximo o motor da 900cc de trê s cilindros e
atinge os 220 quiló metros por hora; depois passa por Roslagstull e vira
à esquerda em direçã o à universidade.
O ar frio dá -lhe calma, enquanto recorda as informaçõ es que
recebeu e elabora uma primeira estraté gia de açã o.
Saga sai da autoestrada, acelera na ú ltima parte da curva e segue
por Vendevä gen em direçã o a Djursholm, com a sua vegetaçã o densa e
as moradias imponentes. Os carros estacionados nas alamedas de pedra
estã o cobertos de geada. A luz turquesa das piscinas escoa-se atravé s
das á rvores de fruto e das sebes.
Saga entra numa rotunda demasiado depressa e vira
imediatamente à direita. Antes que o seu cé rebro repare no carro
estacionado, os mú sculos reagem, levando-a a mudar bruscamente de
direçã o. Está quase a cair, mas consegue encontrar um equilı́brio
perfeito entre a energia ciné tica e o seu pró prio peso. A roda traseira
derrapa no asfalto. A moto vai bater com um ruı́do surdo contra um
contentor de lixo em plá stico, antes que Saga consiga recuperar o
controlo, para depois acelerar de novo.
O coraçã o bate-lhe no peito loucamente.
Algué m estacionara um Jaguar logo a seguir à curva, escondido por
uma sebe alta. Mas a sua moto tem o centro de gravidade baixo e é
muito fá cil de controlar.
Provavelmente, foi isso que a salvou.
Percorrendo uma curva ladeada de moradias imponentes, Saga
vislumbra uma sé rie de enormes veleiros. Está bastante inclinada para
a esquerda, mas quando chega perto da á gua aumenta mais uma vez a
velocidade e entra numa reta que atravessa um parque.
7
Quando chega ao endereço que lhe foi facultado, Saga trava, vira
suavemente à direita na pequena alameda e para.
Deixa cair a moto sobre a erva na beira do caminho, abandona o
capacete ali perto e, enquanto avança, en ia o colete à prova de bala e o
coldre.
Passaram treze minutos desde que o telefone a acordou.
Na casa, o alarme ainda está a tocar.
Por um instante, dá por si a desejar que o comissá rio Joona Linna
estivesse ali com ela. Até à quele momento, sempre colaborou com ele
nos casos mais importantes. E o melhor polı́cia que alguma vez
conheceu, para alé m de ser um daqueles que passaram pelos maiores
sacrifı́cios.
Uma vez Saga desiludiu-o por ter feito uma coisa que nã o devia,
mas conseguiu remediar e agora tem a certeza de que ele entendeu.
O pró prio Joona disse que nã o tinha nada para lhe perdoar.
Perderam-se de vista quando o comissá rio foi condenado à prisã o.
Saga tinha muita vontade de o ir visitar, mas sabe que Joona precisa de
refazer a sua vida. Vai precisar de se empenhar muito para convencer
os outros detidos de que é um deles.
Mas agora o có digo Platina foi ativado e Saga Bauer está sozinha.
Mais nenhum agente da Sä po chegou ainda ao local.
Transpõ e o portã o e corre até à porta da casa; en ia um tensor na
fechadura e depois a ponta ina da gazua de pistola. Faz pressã o,
intermitentemente, depois empurra mais para cima a ponta do
mecanismo até que o trinco salta e a maçaneta roda.
A fechadura abre com um clic surdo.
Saga deixa cair as ferramentas ao chã o. Pega na Glock, destrava-a e
abre a porta. O estrondo do alarme abafa qualquer outro som.
Saga examina a entrada e o grande hall, depois regressa a correr ao
alarme junto da porta e insere o có digo que memorizou.
O silê ncio desce sobre a casa, arrastando consigo um peso fatal.
Com a pistola apontada e o dedo no gatilho, avança pelo á trio e
passa pela escadaria que dá acesso ao andar superior. Entra num
grande salã o, examina a porta dupla e a parede à direita, depois avança
com cautela.
Uma das grandes janelas viradas para a á gua foi partida. No chã o
está uma cadeira rodeada por estilhaços de vidro cintilantes.
Saga passa à frente, aproxima-se da porta da cozinha e vê a sua
silhueta re letida e multiplicada pelas numerosas superfı́cies de vidro.
Sangue e fragmentos de crâ nio espalharam-se para fora da cozinha
e salpicaram o chã o, as poltronas e a mesa de apoio.
Saga percorre a divisã o com o olhar, de pistola em riste, depois
avança com cautela e começa a vislumbrar uma parte da cozinha:
prateleiras brancas e bancadas em aço inox.
Para e ica à escuta.
Ouve uma espé cie de tique-taque assustado, como de algué m
sentado completamente imó vel e entretido a bater com as unhas no
tampo da mesa.
Aponta a pistola para a porta da cozinha, depois afasta-se
silenciosamente para o lado e descobre um homem deitado de costas.
Deram-lhe um tiro em cada olho e na barriga.
A caixa craniana já nã o existe.
Por baixo dele formou-se uma poça escura.
Tem as mã os estendidas ao longo dos lancos, como se estivesse a
apanhar sol.
Saga aponta a arma na direçã o dos disparos e inspeciona a cozinha.
As cortinas diante da varanda ondeiam e enfunam em direçã o ao
interior. Os ané is ao longo do varã o tilintam uns contra os outros.
O sangue proveniente do primeiro disparo à cabeça do homem
esguichou para o chã o e algué m o pisou com os pé s descalços.
As pegadas apontam exatamente na direçã o dela.
Volta-se de repente e perscruta mais uma vez a divisã o, de pistola
apontada; depois regressa à porta dupla que dá acesso ao salã o.
Sente um arrepio quando repara, pelo canto do olho, em algué m
que sai a arrastar-se de um esconderijo atrá s de um sofá .
Vira-se no preciso momento em que a igura se levanta. E uma
mulher que traz um vestido azul.
Dá um passo em frente, a cambalear, e entã o Saga aponta-lhe a
pistola ao centro do peito.
– Mã os atrá s da cabeça – grita. – De joelhos, de joelhos!
Saga dá um salto para a frente, mantendo-a sob mira.
– Por favor – murmura a mulher, deixando cair o alarme
antiagressã o.
Ainda tem tempo de lhe mostrar as mã os vazias antes de Saga lhe
dar um pontapé de lado, logo abaixo dos joelhos, fazendo-a escorregar;
a mulher cai ao chã o com um ruı́do surdo, batendo com a anca e depois
com a face e com a tê mpora.
Saga está em cima dela, atinge-a ainda sobre o rim esquerdo,
encosta-lhe a pistola com força à nuca, manté m-na presa ao chã o com o
joelho direito e observa de novo a divisã o.
– Está mais algué m em casa?
– Só o homem que disparou, entrou na cozinha – responde a
mulher, a tentar recuperar o fô lego. –Disparou e foi-se embora…
– Silê ncio – interrompe-a Saga.
Vira-a rapidamente de barriga para baixo e imobiliza-lhe os braços
atrá s das costas. A mulher suporta tudo com uma obediê ncia
inquietante. Saga ata-lhe os pulsos feridos com uma abraçadeira,
levanta-se de repente e regressa à cozinha, passando à frente do
cadá ver do homem.
As cortinas ondeiam, in ladas pelo vento.
Saga aponta a pistola à frente dela e passa por cima de um atiçador
sujo de cinza. Inspeciona o lado esquerdo da cozinha, avança até à ilha e
depois continua até à porta de correr que dá para a varanda.
No painel ixo há um furo redondo feito com uma serra de diamante
e a porta está aberta. Lufadas de ar fresco penetram no interior, fazendo
tilintar os aros das cortinas. Saga sai para a varanda com a pistola
apontada à relva no meio dos canteiros.
A á gua está imó vel e a noite, silenciosa.
Quem se introduz numa casa daquele modo para liquidar um
homem daquela maneira, nã o se demora no local do crime.
Saga regressa para junto da mulher, ata-lhe as pernas com uma
abraçadeira e crava-lhe um joelho no fundo das costas.
– Agora vai ter de responder a algumas perguntas – diz friamente.
– Eu nã o tenho nada a ver com isto. Estava aqui por acaso, nã o vi
nada – murmura a mulher.
Saga nã o pode deixar de lhe baixar o vestido para lhe cobrir as
ná degas nuas antes de se levantar.
Dali a pouco cinco SUV vã o parar em frente à casa, e a Sä po vai
entrar por ali dentro.
– Quantos eram os executores?
– Apenas um. Eu só vi um.
– Consegue descrevê -lo?
– Nã o sei, tinha uma má scara na cara… Nã o vi nada, trazia roupa
preta, luvas… Aconteceu tudo tã o depressa, pensei que també m me ia
matar a mim, pensava…
– OK, espere – interrompe-a Saga.
Aproxima-se do cadá ver. O rosto redondo está su icientemente
intacto para permitir identi icá -lo com facilidade. Tira do bolso o
telefone encriptado, afasta-se alguns passos e liga para o chefe da Sä po.
E de noite, mas ele está à espera daquele telefonema e atende de
imediato.
– O ministro dos Negó cios Estrangeiros morreu – comunica-lhe
Saga.
8
Sete minutos mais tarde, o jardim e a casa sã o invadidos pelos
agentes de um grupo especial da Sä po denominado Electrolux por
causa de uma piada de que já ningué m se lembra.
Nos ú ltimos dois anos, a Sä po aumentou drasticamente o nı́vel de
segurança para os altos cargos do Estado, reforçando as escoltas e
adotando modernos alarmes antiagressã o. Sã o vá rios os nı́veis de
emergê ncia, mas, ao carregar ao mesmo tempo nos dois botõ es da
pulseira, a mulher ativou o có digo Platina.
A cena do crime foi isolada, a vigilâ ncia em volta do centro de
Estocolmo aumentada e organizaram-se barreiras.
Janus Mickelsen chega ao local e aperta a mã o a Saga. E ele que
comanda as operaçõ es dentro da casa, por isso ela põ e-no rapidamente
a par da situaçã o.
Janus, com os seus caracó is arruivados e a barbicha loira, possui
um tosco fascı́nio hippie. Segundo Saga, tem um estilo peace and love,
mas ela sabe perfeitamente que, antes de se juntar à Sä po, Janus era um
militar de carreira. Participou na Operaçã o Atalanta e prestou serviço
em á guas somalis.
Janus põ e um agente de guarda à porta, ainda que ningué m vá fazer
uma lista dos presentes no local do crime. Num caso daquele gé nero,
nã o deve icar qualquer registo de quem entrou na casa depois do
homicı́dio. O có digo Platina prevê que nã o se possa determinar quem
foi alertado ou informado dos acontecimentos e quem nã o foi.
Dois agentes da Sä po vã o imediatamente ter com a jovem deitada
de lado, com os braços e as pernas presos com as abraçadeiras. Tem os
olhos vermelhos por causa das lá grimas, e o rı́mel escorreu-lhe ao
longo da tê mpora.
Um dos dois homens ajoelha-se ao seu lado e prepara uma seringa
com Ketalar. A mulher começa a tremer de medo, mas o outro agente
segura-a enquanto o primeiro lhe injeta a dose no pescoço, diretamente
na veia cava superior.
A mulher ica com o rosto vermelho; deixa cair a cabeça para trá s,
contrai o corpo e depois é vencida pelo efeito do medicamento.
Saga repara que os agentes cortam as abraçadeiras em volta dos
membros da mulher e que depois lhe colocam uma má scara de
oxigé nio. Por im, en iam-na já adormecida num saco para cadá ver e
correm o fecho-é clair. Em seguida, transportam o corpo inanimado até
ao furgã o que a há de levar ao Reformató rio.
As outras quatro equipas já deram inı́cio ao processo de inspeçã o
obrigató ria e documentaçã o detalhada do local do crime. Identi icam
com extrema atençã o marcas de sapatos e impressõ es digitais,
preparam diagramas dos salpicos de sangue, dos orifı́cios das balas e
das trajetó rias dos disparos, recolhem marcas bioló gicas, ibras tê xteis,
cabelos, luidos corporais, fragmentos ó sseos e de amı́gdala, para alé m
de estilhaços de vidro, farpas e lascas de madeira.
– A mulher e os ilhos do ministro estã o a chegar – anuncia Janus. –
O aviã o aterra em Arlanda à s oito e um quarto, e a essa hora tem de
estar tudo limpo.
Para a equipa é necessá rio recuperar todas as informaçõ es numa
ú nica sessã o, porque nã o vai haver mais ocasiõ es para o fazer.
Saga sobe a escada que range e entra no quarto do ministro. Sente-
se um fedor a urina e suor. Nas quatro colunas da cama estã o
amarradas correias de couro. Os lençó is estã o manchados de sangue.
Em cima de uma có moda, à luz dé bil de um expositor de reló gios,
está um chicote de cavaleiro.
Atrá s do vidro, os ponteiros de um Rolex e de um Breguet giram
silenciosamente.
Saga pergunta-se se a mulher do ministro estará ao corrente das
visitas das prostitutas.
Provavelmente nã o.
Talvez evite perguntar-lhe.
Com os anos, apercebemo-nos de que conseguimos tolerar muitas
feridas na nossa autoestima, mas ao mesmo tempo continuamos a
agarrar-nos à quilo que, apesar de tudo, nos dá uma mı́nima sensaçã o
de segurança.
A pró pria Saga continuara a namorar o mú sico de jazz Stefan
Johansson durante anos, até ele a deixar.
Agora, Stefan mudou-se para Paris, toca piano numa banda e tem
uma namorada.
Saga sabe perfeitamente que nã o é fá cil viver com ela, tendo em
conta o seu temperamento irritá vel e a forma como certas situaçõ es
desencadeiam no seu humor reaçõ es excessivas.
Trabalha muito e só tem relaçõ es sexuais quando Stefan anda em
tournée pela Sué cia. Ele liga-lhe a meio da noite e Saga deixa-o dormir
em sua casa. Sabe que ele nã o tenciona deixar a namorada por sua
causa, mas ainda assim aceita ir para a cama com ele.
Regressa ao andar de baixo e vai até junto do cadá ver crivado de
tiros.
A luz dos projetores re lete-se sobre as placas de alumı́nio lavrado.
Parece estar em cima de uma ponte de prata suspensa sobre um mar
ensanguentado.
Saga observa durante muito tempo as palmas das mã os do morto
voltadas para cima, o calo amarelecido sob a aliança e as manchas de
suor na camisa, ao nı́vel das axilas.
Em volta dela, os outros agentes trabalham rá pida e
silenciosamente. Filmam e catalogam todos os detalhes num iPad,
atravé s de um sistema de coordenadas em 3D. Com precisã o mecâ nica,
colam cabelos e ibras num suporte de acetato, enquanto os tecidos
bioló gicos e os fragmentos de crâ nio sã o recolhidos numa sé rie de
provetas que serã o de imediato congeladas para evitar a proliferaçã o de
bacté rias.
Nenhuma das amostras será enviada ao laborató rio forense de
Linkö ping, porque a Sä po, em situaçõ es como esta, recorre a uma
estrutura interna.
Saga aproxima-se da porta da varanda e observa os orifı́cios
redondos nas trê s camadas de vidro espelhado.
Os sensores acú sticos e os contactos magné ticos foram ativados e
izeram disparar o alarme apenas quando algué m atirou a cadeira
contra a janela.
E impossı́vel que tenha sido o assassino.
Saga recorda o rosto aterrorizado da mulher, os pulsos feridos, o
fedor a urina.
Tê -la-iam mantido prisioneira naquela casa?
Dois homens cobrem o chã o com enormes folhas de pelı́cula
té rmica, estendendo-as com um grande rolo de borracha.
Um té cnico informá tico envolve o disco duro do sistema de
vigilâ ncia numa folha de plá stico de bolhas e depois guarda o embrulho
num saco té rmico.
Janus está nervoso: tem os maxilares contraı́dos, as sobrancelhas
quase brancas devido à tensã o da pele e a testa sardenta coberta de
suor.
– Que grande merda… que te parece? – pergunta, aproximando-se
de Saga.
– Nã o sei. Os primeiros tiros no tó rax foram disparados à distâ ncia,
de um â ngulo estranho.
Um io de sangue venoso esguichou do corpo do ministro dos
Negó cios Estrangeiros e escorreu do ventre para o chã o.
A velocidade de um disparo atinge cerca de mil quiló metros por
hora e o projé til deixa vestı́gios de escoriaçõ es à volta do orifı́cio de
entrada. Distinguem-se dois ligeirı́ssimos cı́rculos de pó lvora sobre a
camisa do ministro.
Primeiro, dois tiros à distâ ncia, depois mais dois à queima-roupa.
Saga inclina-se sobre o cadá ver e estuda o orifı́cio de entrada nas
ó rbitas oculares; repara que nã o há nenhuma cratera de impacto.
– Usou um silenciador – murmura.
O assassino devia ter usado um silenciador capaz de reduzir a
pró pria combustã o, porque nã o há vestı́gios da auré ola de queimadura.
Caso contrá rio, os gases expulsos ter-se-iam en iado por baixo da pele,
criando o chamado sinal do funil.
E isso que acontece normalmente.
Saga levanta-se e afasta-se para deixar passar um té cnico, que
esfrega um papel adesivo na cara do morto. Pressiona-o contra os
orifı́cios das balas na tentativa de recuperar as partı́culas de pó , depois
identi ica o centro exato das feridas com um marcador.
– Fê -lo rolar de barriga para baixo depois de morto e a seguir
voltou a pô -lo de costas – diz Saga.
– Porquê ? – pergunta o té cnico, com uma gargalhada. – Porque é
que havia de…
– Silê ncio – interrompe-o Janus.
– Quero ver-lhe as costas – diz Saga.
– Faz o que ela diz.
Toda a gente sabe que o tempo se está a esgotar. Enluvam
apressadamente as mã os do ministro em sacos e colocam-lhe ao lado
um saco para cadá ver. Levantam com cautela o corpo robusto do
homem e estendem-no de bruços em cima do saco. Saga observa os
largos orifı́cios e a abertura esfarelada sobre a nuca.
Estuda a zona em que o ministro estava deitado, encontra os
orifı́cios provocados pelas duas ú ltimas balas e percebe por que razã o o
cadá ver foi deslocado.
– O assassino levou as balas.
– Quem é que se comporta assim? – diz Janus para si mesmo.
– Usou uma semiautomá tica com silenciador… Disparou quatro
tiros, dois dos quais mortais – diz Saga.
Um homem corpulento desloca-se por entre os mó veis do salã o a
borrifar um spray revelador de sangue nos tecidos, enquanto um outro
té cnico reposiciona as poltronas com base nos sinais impressos no
tapete valioso.
– Aqui já terminá mos – exclama Janus, batendo palmas. – Daqui a
dez minutos vamos limpar a casa e, dentro de uma hora, no má ximo,
chegam os vidraceiros e os pintores.
A medida que os outros vã o saindo, o homem corpulento recupera
as placas de alumı́nio do chã o. Assim que todos saı́rem de casa, uma
outra equipa vai entrar para a desinfetar com uma espuma que cheira
intensamente a cloro.
Portanto, o assassino nã o se limitou a recuperar as balas; enquanto
o alarme tocava e a Polı́cia se punha em movimento, també m extraiu os
projé teis do chã o e das paredes. Nem um assassino pro issional de
altı́ssimo nı́vel faria uma coisa do gé nero.
Trata-se de um homicı́dio executado na perfeiçã o; no entanto, o
assassino deixou uma testemunha. Nã o havia como nã o reparar que na
cena do crime estava presente uma outra pessoa que, ainda por cima, o
viu.
– Vou falar com a testemunha – diz Saga, convencida de que a
mulher deveria ser envolvida nas investigaçõ es.
– Já convocá mos os nossos especialistas, como sabes – rebate Janus.
– Preciso de lhe fazer algumas perguntas pessoalmente – replica
Saga, enquanto se dirige para o local onde deixou a moto.
9
No tempo da sua construçã o, no inı́cio da Guerra Fria, o bunker de
Katarinaberget era o maior refú gio antiató mico do mundo. Hoje, a
estrutura é usada como parque de estacionamento, à exceçã o da sala
das má quinas, onde estã o instalados o gerador elé trico e o sistema de
ventilaçã o.
A sala das má quinas é um edifı́cio à parte, escavado na montanha
ao lado do refú gio propriamente dito.
Hoje em dia está à disposiçã o da Sä po.
E aqui que se encontra a prisã o secreta chamada Reformató rio, e é
nas velhas tinas subterrâ neas do gelo que tê m lugar os interrogató rios
mais reservados.
Sã o ainda as primeiras horas da manhã quando Saga Bauer
atravessa Slussen montada na sua moto suja, chegada diretamente da
cena do crime em Djursholm, o fato de pele suado gelado contra o seu
peito. Entra pela porta em arco ao lado da estaçã o de serviço e desce
até à garagem. A acú stica do novo ambiente concentra o rugido do
motor.
Por baixo das barras amarelas e esfoladas acumulou-se lixo, e uns
cabos cortados pendem de um altifalante em forma de funil.
As chapas que cobrem o largo buraco no chã o produzem um ruı́do
metá lico sob os pneus quando Saga transpõ e a entrada antiató mica
com as suas colossais portas de correr.
Desce ao longo de uma rampa de cimento, enquanto os seus
pensamentos se concentram naquele misté rio.
Se a mulher estava envolvida no homicı́dio, por que razã o tinha
entã o ativado o alarme antiagressã o e permanecido no local do crime?
Se, pelo contrá rio, nã o estava, porque é que o assassino deixara
uma testemunha com vida?
Se a mulher tinha alguma coisa a ver com o crime, ou se pura e
simplesmente se encontrava no sı́tio errado no momento errado, para a
Sä po representa, em qualquer caso, uma ameaça à segurança.
Saga trava ligeiramente enquanto vira para descer até à garagem
subterrâ nea.
A identidade da mulher foi veri icada. Chama-se So ia Stefansson e,
ao que parece, prostitui-se esporadicamente, apesar de ningué m ter
ainda con irmado isso.
Aquela informaçã o baseia-se apenas nas suas declaraçõ es e nos
poucos documentos recuperados no seu apartamento.
Talvez nã o fosse mais do que um isco… Será que algué m a ilmou na
cama com o ministro para poder depois chantageá -lo?
Mas entã o porque o mataram?
Saga larga o travã o e entra no nı́vel inferior, quarenta metros
debaixo da terra.
Passa pelos poucos carros estacionados, com os pneus da moto a
chiar no solo. Duas estrias de pó vermelho rodopiam ao longo das
laterais do veı́culo enquanto chega à zona mais interior do parque de
estacionamento. Para e aproxima-se de uma porta pintada de azul.
Passa o cartã o no leitor eletró nico, digita nove algarismos e espera
uns segundos até a porta se abrir para uma zona de controlo.
Fornece novamente a sua identidade e a seguir é registada por um
guarda que lhe pede a arma e as chaves. Depois de ter passado pelo
scanner, transpõ e ainda uma segunda barreira.
Na sala do pessoal, apetrechada com uma pequena cozinha, está
sentada Jeanette Fleming, que trabalha para a Sä po como psicó loga e
especialista em interrogató rios. E uma mulher atraente, de meia-idade,
com os cabelos de um loiro-escuro cortados à pajem.
Jeanette tem um aspeto elegante, como de costume, e está a comer
uma salada de um recipiente de plá stico com a tampa pousada ao lado
da mesa.
– Sabes que nã o me estou a insinuar, mas tu é s incrivelmente bonita
– diz, ao mesmo tempo que espeta o garfo de plá stico na salada. – De
cada vez que te vejo reprimo este impulso… Deve ser uma espé cie de
instinto de autopreservaçã o.
Mete o que sobra da salada no frigorı́ ico e vai atrá s de Saga pelo
corredor, em direçã o aos elevadores.
– Como é que vai o recurso? – pergunta-lhe Saga.
– Responderam-me com um nã o seco.
– Que pena.
Durante oito anos, Jeanette tinha esperado que chegasse para o
marido o momento certo para terem um ilho, mas depois ele deixara-a.
Durante mais trê s anos procurara um parceiro em sites de encontros,
antes de pedir autorizaçã o ao tribunal para a inseminaçã o.
– Nã o sei, se calhar vou à Dinamarca… mas gostava que a criança
falasse sueco – brinca, ao mesmo tempo que entram no elevador.
Carrega no botã o do ú ltimo andar, a porta fecha-se e as
engrenagens põ em-se ruidosamente em movimento.
– Só consegui ler o primeiro relató rio no telemó vel – diz Saga.
– Foram demasiado brutais com ela, assustou-se e fechou-se em si
mesma – explica Jeanette. –Obviamente, foi dada a ordem de usar mã o
pesada.
– Quem? Quem foi que deu essa ordem?
– Nã o faço ideia – responde Jeanette.
Descem rapidamente no elevador. A luz da cabina desliza pelas
á speras paredes rochosas. Por um instante aparece o contrapeso,
depois desaparece por cima das cabeças delas.
– A So ia tem medo de que voltem a fazer-lhe mal… Precisa de
algué m que a ouça, que a proteja. – E quem é que nã o precisa? – brinca
Saga.
O elevador para, e as duas mulheres avançam pelo corredor
despido. Naquela profundidade reina uma penumbra imó vel.
O mé dico-legista identi icou a presença de uma elevada quantidade
de lunitrazepam, um indutor de sono de açã o rá pida, no sangue de
So ia, validando assim a sua versã o. Tem feridas nos pulsos e nos
tornozelos, e hematomas no interior das coxas, e a marca da sua mã o
foi identi icada na cadeira que estilhaçou a janela.
Se a sua versã o fosse con irmada, isso signi icaria que So ia devia
ser considerada parte lesada, com base na lei sobre a prostituiçã o. Fora
vı́tima de abusos e maltratada por um cliente, e deveria falar com a
Polı́cia e com os psicó logos.
No entanto, por estar també m envolvida num grave ataque
terrorista, acabou numa espé cie de zona cinzenta onde as leis normais
e o princı́pio da certeza já nã o tê m valor.
– Acho que é melhor eu esperar na sala do controlo, para começar –
diz Jeanette.
Saga Bauer digita o có digo e abre a porta da velha tina do gelo.
Na enorme divisã o sem janelas a iluminaçã o é muito intensa, e uma
câ mara de vı́deo de circuito fechado regista tudo o que se passa.
Originariamente, a tina devia servir para conter duzentas toneladas
de gelo, com o im de impedir que, em caso de guerra ató mica, a
temperatura no interior do bunker subisse demasiado por causa do
calor dos corpos daqueles que ali se refugiassem.
So ia Stefansson encontra-se no centro da sala, numa estranha
posiçã o, suspensa sobre uma tela de plá stico. Tem os braços amarrados
atrá s das costas à altura dos cotovelos, está esticada para a frente, e a
maior parte do seu peso é suportada por uma corda amarrada a uma
espé cie de guindaste por baixo de uma trave. Tem os ombros em
esforço, o corpo inclinado, e os cabelos sujos cobrem-lhe o rosto.
10
Saga aproxima-se imediatamente de So ia, controla-lhe a
respiraçã o e explica-lhe que a vai descer lentamente até ao chã o, mas
que ela terá de ajudar com as pernas para nã o se magoar.
Saga vai até à roldana, destrava-a e deixa-a girar. O guindaste emite
um tique-taque ao mesmo tempo que So ia desce lentamente. Uma
perna quase se dobra debaixo dela num â ngulo estranho.
– Finque os calcanhares contra o chã o e faça força – ordena Saga.
Os tornozelos da mulher estã o feridos, e Saga recorda as correias
ensanguentadas atadas à s colunas da cama do ministro.
Primeiro lá e agora aqui, sem qualquer contacto com o mundo
exterior, sem qualquer explicaçã o.
So ia deixa-se cair de lado em cima da tela. Respira devagar,
exausta. Sem maquilhagem parece mais jovem, podia ser uma
rapariguinha. Tem as pá lpebras inchadas e os hematomas no pescoço
icaram mais escuros.
Quando Saga lhe liberta os braços dos laços de tecido, So ia treme e
contrai o corpo.
– Nã o me faça mal – suplica, ofegante. – Por favor, eu nã o sei nada.
Saga aproxima-se da parede, faz subir a corda até ao teto e pega
numa cadeira para So ia.
– Chamo-me Saga Bauer, sou comissá ria da Sä po.
– Já chega – suspira a mulher. – Por favor, eu nã o aguento…
– So ia, escute-me… Eu nã o sabia que a tinham tratado assim,
lamento muito, e vou falar disto ao meu superior.
So ia levanta ligeiramente a cabeça do chã o. Tem as faces sulcadas
de lá grimas: tiraram-lhe as joias todas e os cabelos suados colaram-se-
lhe ao rosto pá lido.
Saga experimentou na primeira pessoa o afogamento simulado
durante um treino especial, mas nã o está convencida da sua e icá cia.
Lança um olhar a um balde com um farrapo atirado para a á gua
suja de sangue, e pensa que a ú nica coisa que a tortura é capaz de
revelar sã o os segredos do torturador.
Abre uma garrafa de á gua, ajuda So ia a beber e depois estende-lhe
um pedaço de chocolate.
– Quando é que eu vou poder ir para casa? – sussurra So ia.
– Nã o sei, primeiro vai ter de responder a algumas perguntas – diz
Saga, num tom apologé tico.
– Eu já contei tudo. Nã o iz nada de mal, nã o sei porque é que estou
aqui – diz a rapariga, a chorar.
– Acredito, mas preciso de saber o que estava a fazer naquela casa.
– Eu já disse tudo – geme So ia.
– Diga-me també m a mim – pede Saga com doçura.
So ia ergue lentamente os braços anquilosados para limpar as
lá grimas dos olhos.
– Trabalho como acompanhante de luxo e ele contratou-me –
responde, num io de voz.
– Como? Como é que a contratou?
– Pus um anú ncio e ele escreveu-me um e-mail a dizer-me o que
desejava.
A jovem ergue-se lentamente para se sentar; aceita mais um pedaço
de chocolate, en ia-o na boca e mastiga.
– Tinha um spray de pimenta. Leva-o sempre consigo?
– Sim, apesar de habitualmente os clientes serem bastante
simpá ticos e atenciosos… Aliá s, tenho mais vezes problemas porque
algué m se apaixona por mim do que por encontrar algué m violento.
– Mas nã o há ningué m que saiba aonde a So ia vai ou que possa
intervir se precisar de ajuda?
– Escrevo os nomes e as moradas num caderno… E a Tamara, que é
a minha melhor amiga, já o tinha tido como cliente, e nã o houve
problemas.
– Tamara. Apelido?
– Jensen.
– Onde mora?
– Foi viver para Gotemburgo.
– Tem um nú mero de telefone?
– Sim, mas nã o sei se está ativo.
– Tem mais amigas que trabalhem como acompanhantes?
Saga afasta-se alguns passos, observa So ia e pensa que
provavelmente está a dizer a verdade sobre o seu trabalho.
Nã o há nada que contradiga aquela histó ria, apesar de haver
pouquı́ssimos elementos que a con irmem.
– O que é que sabe acerca do seu cliente?
– Nada… Pagou imenso para eu o amarrar à cama.
– E a So ia amarrou-o?
– Porque é que toda a gente me pergunta o mesmo? Nã o percebo,
nã o estou a mentir. Porque é que havia de mentir?
– Conte-me só o que aconteceu, So ia – diz Saga, tentando cruzar o
seu olhar.
– Drogou-me e amarrou-me à cama.
– Descreva-me a cama.
– Era grande… Nã o me lembro muito bem, que importâ ncia é que
isso tem?
– De que é que falaram?
– De nada; era muito aborrecido.
Os té cnicos já examinaram o computador de So ia, para alé m do
telefone e da agenda com os endereços: nã o sabia que o seu cliente era
o ministro dos Negó cios Estrangeiros sueco, nã o há nada que leve a
suspeitar isso.
Saga observa a boca tensa e o rosto exausto da rapariga. E mais
uma vez assaltada pela suspeita de que ela se está a cingir com
demasiada idelidade à versã o original. E quase como se evitasse certos
pormenores para nã o ser apanhada em falso.
– Quando chegou, viu algum carro do lado de fora do gradeamento?
– Nã o.
– Como é que ele atendeu o intercomunicador, quando tocou?
– Nã o fazia ideia de quem fosse – diz So ia, com a voz quase
quebrada pelo choro. – Percebi que era rico e importante, mas nã o sei
nada, só que dava pelo nome de Wille. Mas quase ningué m usa o seu
verdadeiro nome.
Saga pensa que, se So ia realmente pertencer a alguma organizaçã o
subversiva, jamais vai confessar o que quer que seja. No entanto, se foi
enganada ou obrigada a colaborar, é possı́vel que se abra.
– So ia, eu estou pronta a ouvi-la, se me quiser contar alguma
coisa… Nã o matou ningué m, eu sei, e é por isso que acho que a posso
ajudar. Mas, para o fazer, preciso de saber a verdade.
– Sou acusada de alguma coisa? – pergunta So ia, com descon iança.
– Assistiu ao homicı́dio do ministro dos Negó cios Estrangeiros,
estava amarrada à sua cama, atirou uma cadeira contra a janela da sua
casa e escorregou no seu sangue.
– Nã o sabia… – murmura So ia, empalidecendo.
– Por isso, preciso de respostas… Acho que a enganaram ou
ameaçaram, mas queria saber por si qual era a sua tarefa ontem à noite.
– Nã o tinha tarefa nenhuma, nã o percebo o que quer dizer.
– Se nã o colaborar, nã o poderei ajudá -la – diz Saga, cortando a
conversa, ao mesmo tempo que se levanta da cadeira.
– Nã o se vá embora, por favor – diz a rapariga, com uma voz
carregada de desespero. – Estou atentar ajudar, juro.
11
Saga aproxima-se da porta e agarra na maçaneta, deixando que
So ia lhe implore que nã o se vá embora.
– Se algué m a está a ameaçar, a si ou aos seus familiares, podemos
ajudar – diz Saga, enquanto abre a porta. – Podemos pô r à vossa
disposiçã o uma casa de abrigo e fornecer-vos novas identidades.
Conseguem safar-se.
– Nã o percebo, eu… Quem é que me ameaça? Por que razã o
haveriam de… é uma loucura.
Saga volta a pensar que talvez So ia se encontrasse pura e
simplesmente no sı́tio errado no momento errado. Nesse caso, poré m,
falta perceber por que razã o um assassino pro issional teria deixado
uma testemunha com vida.
E, realmente, ela é uma testemunha; deve ter visto alguma coisa
que possa ser ú til para a investigaçã o. Durante os primeiros
interrogató rios nã o conseguiu fornecer qualquer descriçã o do
assassino. Limitou-se a repetir que tinha uma má scara no rosto e
insistiu no facto de tudo ter acontecido rapidamente.
Saga tem de a levar a recordar algum detalhe concreto, porque até
os pormenores mais marginais podem desencadear uma verdadeira
avalanche e trazer à superfı́cie lembranças apagadas pelo choque.
– Viu o assassino – a irma Saga, voltando-se.
– Mas tinha um passa-montanhas en iado, já disse.
– De que cor eram os olhos dele? – pergunta Saga, voltando a fechar
a porta.
– Nã o sei!
– O formato do nariz?
So ia abana a cabeça. Um corte volta a abrir-se-lhe no lá bio e
recomeça a sangrar.
– O ministro foi ferido, a So ia virou-se e viu o assassino com a
pistola na mã o.
– Só pensava em fugir. Comecei a correr, caı́ e encontrei o alarme
que…
– Espere um instante – interrompe-a Saga. – Quando se virou, qual
era o aspeto do assassino?
– Segurava a pistola com as duas mã os.
– Desta maneira? – pergunta Saga, mostrando-lhe uma posiçã o
idê ntica.
– Sim, mas olhava em frente, para trá s de mim… Nã o lhe importava
que eu estivesse ali, nem sequer sei se me viu. Aconteceu tudo em
poucos segundos; estava atrá s de mim e depois correu para ele,
agarrou-o pelos cabelos e…
So ia cala-se, com a testa franzida e o olhar ixo no vazio, como se
estivesse a rever toda a cena na sua mente.
– Agarrou-o pelos cabelos? – pergunta Saga, docemente.
– O Wille caiu de joelhos depois do segundo disparo… E o assassino
agarrou-o pelos cabelos, depois encostou-lhe a pistola a um olho. Nã o
sei, era tudo tã o irreal…
– Sangrava muito, nã o é verdade?
– A jorros.
– Estava assustado? – prossegue Saga.
– Parecia aterrorizado – murmura So ia. – Pediu mais tempo e disse
que era tudo um engano. Tinha sangue na garganta, por isso era difı́cil
percebê -lo, mas tentou explicar que era um erro, que nã o devia ser
morto.
– Que foi que ele disse exatamente?
– Disse… «Julgas que sabes tudo, mas nã o é bem assim»… E, nesse
momento, o assassino… estava calmı́ssimo, e disse… que abriu a porta…
Espera, disse assim: «O Ratjen abriu as portas… E agora você s vã o todos
mergulhar no inferno… todos.» Foram estas as palavras.
– Ratjen?
– Exato.
– Será que poderia ter pronunciado outro nome?
– Nã o… Isto é … Foi isso que eu ouvi, pelo menos.
– Ficou com a impressã o de que o ministro conhecia esse tal
Ratjen?
– Nã o – responde So ia, fechando os olhos.
– Vá lá , coragem, que mais é que ele disse? – pergunta-lhe Saga.
– Nada, nã o ouvi mais nada.
– Que signi ica o facto de o Ratjen ter aberto as portas?
– Nã o sei.
– Será o Ratjen que vai fazer aquilo? Será ele que os vai fazer a
todos mergulhar no inferno? – pergunta Saga, erguendo a voz.
– Por favor.
– O que é que acha? – pergunta Saga, enquanto se levanta.
– Nã o sei – responde So ia, limpando as lá grimas nas faces.
Saga chega rapidamente à porta e ouve So ia repetir em voz alta
que nã o sabe nada.
12
O motorista prossegue, impassı́vel, enquanto veri ica atravé s do
espelho retrovisor se o carro da segurança continua atrá s deles.
O rugido do motor chega como um zumbido agradá vel ao interior
da carroçaria do Volvo fabricado especialmente para o primeiro-
ministro.
Há um ano que a Sä po decidiu que o chefe do governo sueco deve
viajar a bordo de um carro blindado e reforçado, que pesa quase quatro
toneladas, com um motor de 12 cilindros e 453 cavalos. E um veı́culo
capaz de fazer marcha-atrá s a cem quiló metros por hora, com vidros à
prova de bala.
O primeiro-ministro está sentado no espaçoso sofá de pele que
constitui o assento posterior, com o polegar e o indicador da mã o
esquerda delicadamente apoiados sobre as pá lpebras fechadas. O
casaco do fato azul-escuro está desabotoado e a gravata cor-de-rosa cai
obliquamente sobre a camisa.
Ao lado dele está Saga Bauer, com o fato de motociclista. Nã o teve
tempo de mudar de roupa e, ao im de uma noite e uma manhã inteiras
com o fato vestido começa a sentir calor. Apetecia-lhe abrir o fecho-
é clair, mas conté m-se porque por baixo está nua.
No banco da frente do lado direito está o chefe da Sä po, Verner
Sandé n. Segurando-se com a mã o direita ao encosto do assento, estica o
corpo esguio para trá s, de forma a conseguir olhar para o primeiro-
ministro nos olhos, enquanto o informa da oportuna intervençã o da
Sä po.
Com a sua voz profunda, recapitula a cronologia dos factos, desde a
chegada de Saga Bauer e da organizaçã o dos bloqueios das ruas até à
rá pida inspeçã o da cena do crime e ao imediato relató rio dos té cnicos.
– A casa foi limpa, já nã o restam vestı́gios daquilo que aconteceu
esta noite – conclui Verner.
– Eu só penso nos familiares – diz o primeiro-ministro em voz
baixa, olhando para fora da janela.
– Estamos a ocultar os factos, obviamente é uma questã o que deve
manter-se completamente secreta.
– Acham entã o que a situaçã o é sé ria – diz o primeiro-ministro, ao
mesmo tempo que responde a uma mensagem no telemó vel.
– Sim, algumas circunstâ ncias particulares do caso levaram-nos a
pedir-lhe para se encontrar connosco imediatamente – responde
Verner.
– Como sabem, poré m, esta noite tenho de partir para Bruxelas e
nã o me sobra tempo para tratar deste assunto – explica o primeiro-
ministro.
Saga sente que a pele do fato se colou à s ná degas suadas.
– Estamos a lidar com um assassino pro issional ou
semipro issional, um indivı́duo que cumpre um plano muito bem
de inido – explica ela, enquanto tenta erguer-se ligeiramente.
– A Sä po vê complots em todo o lado – diz o primeiro-ministro,
voltando a prestar atençã o ao telemó vel.
– O assassino usou uma pistola semiautomá tica com um silenciador
capaz de arrefecer os gases de combustã o – explica Saga. – Matou o
ministro dos Negó cios Estrangeiros com um tiro no olho direito e
apanhou a bala; depois debruçou-se sobre o cadá ver, encostou-lhe a
pistola ao olho esquerdo, disparou e apanhou a bala, virou…
– Já percebi, meu Deus – exclama o primeiro-ministro, a olhar para
ela.
– Nã o foi o assassino que fez soar o alarme – continua Saga. – No
entanto, apesar de estar a tocar tã o alto que podia acordar o bairro
inteiro, apesar de a Polı́cia estar prestes a chegar, aquele homem
deteve-se para recuperar as balas cravadas no parquet e nas paredes,
antes de deixar a casa. Sabia onde se encontravam todas as câ maras de
vigilâ ncia; nã o temos uma ú nica imagem dele… E posso garantir-lhe
que os té cnicos nã o vã o encontrar nada que nos permita chegar mais
perto.
Saga cala-se e observa o primeiro-ministro, que bebe um gole de
á gua mineral norueguesa, pousa a pesada garrafa na superfı́cie de
madeira lacada da mesinha e passa uma mã o pela boca.
O carro percorre a grande velocidade a zona das embaixadas e
avança em direçã o à parte norte de Djurgå rden. A esquerda, estendem-
se os extensos relvados do bairro de Gä rdet. No sé culo XVII, aquele local
era uma á rea de treino militar, mas hoje é frequentado apenas por
amantes do jogging e donos de cã es.
– Portanto, foi uma execuçã o? – pergunta o primeiro-ministro, com
uma voz rouca.
– Ainda nã o conhecemos as razõ es, mas podemos admitir a
hipó tese de uma forma de extorsã o. Talvez o assassino quisesse aceder
a informaçõ es reservadas – explica Verner. – Talvez tenha obrigado o
ministro a fornecer uma declaraçã o qualquer diante de uma câ mara de
vı́deo.
– Nada de bom, tanto quanto me parece – suspira o primeiro-
ministro.
– Nã o. Estamos convencidos de que se trata de terrorismo polı́tico,
apesar de, para já , ningué m ter reivindicado a açã o – responde Verner.
– Terrorismo?
– Estava uma prostituta em casa do ministro – diz Saga.
– Aquele homem tinha alguns problemas – responde o chefe do
governo, respirando profundamente pelo nariz aquilino.
– Sim, mas…
– Esqueçam esse aspeto – interrompe-a ele.
Um corvo levanta voo da estrada, algumas folhas caem ao chã o e,
no meio de um campo, vê -se um cavalo cinzento completamente imó vel
sob a chuva ina.
Saga dirige um olhar ao primeiro-ministro. Tem uma expressã o
ausente e a boca contraı́da. Pergunta a si mesma se ele estará a tentar
compreender o que aconteceu. O ministro dos Negó cios Estrangeiros
do seu governo foi assassinado. Talvez nesse preciso instante esteja a
pensar, com uma angú stia crescente, na primeira vez em que ocorreu
algo semelhante.
Num dia sombrio do outono de 2003, a entã o ministra dos
Negó cios Estrangeiros, Anna Lindh, andava a fazer compras com uma
amiga quando foi agredida por um homem armado com uma faca que a
atingiu vá rias vezes nos braços, no peito e na barriga.
A ministra nã o tinha guarda-costas, nem qualquer espé cie de
proteçã o pessoal. Sofreu ferimentos de tal maneira graves que morreu
na mesa de operaçõ es, durante a anestesia, apó s transfusõ es de vá rios
litros de sangue.
Nessa altura, a Sué cia era diferente, um paı́s onde os polı́ticos se
sentiam ainda no direito de defender um ideal de decoro de cariz
socialista.
– Mas esta mulher de quem o ministro abusou – continua Saga,
itando o chefe do governo nos olhos – ouviu uma troca de frases que
nos leva a crer que estamos apenas perante o primeiro de uma sé rie
programada de homicı́dios.
– Homicı́dios? Mas de que raio de homicı́dios é que estã o a falar? –
pergunta o primeiro-ministro em voz alta.
13
O automó vel do chefe do governo desliza pela estreita ponte de
pedra de Djurgå rdsbron, vira imediatamente à esquerda e continua ao
longo do canal. A estrada de gravilha crepita debaixo dos pneus; dois
patos descem até à á gua e afastam-se da margem a nadar.
– O assassino referiu-se a um tal Ratjen, como se se tratasse de uma
espé cie de igura-chave – explica Verner.
– Ratjen? – O primeiro-ministro repete o nome com um ar
interrogativo.
– Achamos que já o identi icá mos. Chama-se Salim Ratjen e está a
cumprir pena por crimes ligados à droga – explica Saga, inclinando-se
para a frente na tentativa de descolar a pele do fato, que se lhe agarrou
à s costas.
– Consideramos que deve haver uma estreita ligaçã o entre os factos
desta noite e o xeque Ayadal-Jahiz, chefe de uma organizaçã o de cariz
terrorista na Sı́ria – acrescenta Verner.
– Estas sã o as ú nicas imagens de Ayad al-Jahiz de que dispomos –
diz Saga, estendendo o telemó vel ao primeiro-ministro.
Numa breve gravaçã o, vê -se o rosto de um homem já de idade, com
uma expressã o simpá tica, de barba grisalha e ó culos. Sorri enquanto
fala e olha diretamente para a objetiva, com o tom de algué m que está a
ensinar alunos atentos.
– Tem salpicos de sangue nos ó culos – murmura o primeiro-
ministro.
O xeque Ayad al-Jahiz conclui o seu breve discurso e abre os braços
num gesto de benevolê ncia.
– O que é que ele disse?
– «Arrastá mos os in ié is com os camiõ es e os jipes até que as cordas
rebentaram… Agora, a nossa tarefa é encontrar os chefes responsá veis
pelos bombardeamentos e crivar as suas faces de balas» – responde
Saga.
A mã o do primeiro-ministro treme quando a passa pela boca.
Estã o a atravessar novamente a ponte de Lilla Sjö tull, em direçã o ao
pequeno porto turı́stico.
– Alé m disso, os serviços de segurança da prisã o de Hall
interceptaram um telefonema do Salim Ratjen para um nú mero nã o
identi icado – conta Verner. – Ouviram falar em á rabe de trê s grandes
celebraçõ es. A primeira é pelo homicı́dio do ministro dos Negó cios
Estrangeiros… A segunda terá lugar na pró xima quarta-feira e a terceira
no dia sete de outubro.
– Meu Deus – murmura o primeiro-ministro.
– Temos quatro dias – diz Verner.
Quando viram bruscamente para regressar à torre de rá dio de
Kaknä s, alguns ramos cobertos de folhas verde-claras roçam o tejadilho
do carro.
– Como é possı́vel que esse Ratjen nã o esteja sob vigilâ ncia? –
pergunta o primeiro-ministro, enquanto tira um lenço de papel do
dispensador na porta do carro.
– Antes disto, nunca teve contactos com nenhuma rede terrorista –
responde Verner.
– Entã o radicalizou-se na cadeia – diz o chefe do governo, limpando
o pescoço.
– Sim, é isso que nó s achamos.
A chuva torna-se mais intensa, e o motorista põ e os limpa-para-
brisas a funcionar. As escovas afastam do vidro as gotas minú sculas
sem fazer ruı́do.
– E acham que uma dessas celebraçõ es… possa ter a ver comigo?
– Temos necessariamente de considerar um risco desse tipo –
responde Saga.
– Portanto, aquilo que estã o a dizer-me é que pode ser que algué m
me mate esta quarta-feira? –pergunta o primeiro-ministro, sem
conseguir esconder o nervosismo.
– Temos de convencer o Ratjen a falar… Temos de descobrir qual o
seu plano antes que seja demasiado tarde – responde Verner.
– De que raio é que estã o à espera?
– Chegá mos à conclusã o de que o Salim Ratjen nã o pode ser
interrogado segundo o processo convencional – tenta explicar Saga. – Já
se recusou a responder quando foi interrogado há cinco anos, e durante
o processo nã o disse uma palavra.
– Merda. Mas você s tê m os vossos mé todos, nã o é verdade?
– Pode demorar meses a dobrar uma pessoa – explica ela.
– Eu tenho um trabalho muito importante – diz o primeiro-
ministro, enquanto esfarrapa o lenço de papel. – Sou casado, tenho dois
ilhos e…
– Lamentamos muito tudo isto – diz Verner.
– E a primeira vez que você s sã o mesmo precisos… Portanto, nã o
me venham dizer que nã o se pode fazer nada.
– Pergunte-me o que vamos fazer – diz Saga.
O primeiro-ministro olha para ela, surpreendido, e alarga um pouco
o nó da gravata.
– O que vamos fazer? – repete.
– Vamos pedir ao motorista que pare e saia do carro.
Chegaram à s esquá lidas cisternas de petró leo de Loudden. O longo
braço do molhe é quase completamente engolido pela chuva cinzenta.
Apesar de o primeiro-ministro apresentar ainda uma expressã o
surpreendida, estica-se para a frente e fala com o motorista.
Chove com mais intensidade; do cé u cai uma chuva escura e fria
que chapinha nas poças. O motorista comunica rapidamente com o
carro da segurança e para exatamente em frente a um depó sito de
combustı́vel.
Atrá s deles, o BMW negro aproxima-se e trava suavemente.
O motorista sai do carro e afasta-se alguns metros. Em poucos
segundos, a chuva escurece o tecido bege da farda.
– Entã o, o que vamos fazer? – pergunta outra vez o primeiro-
ministro, a olhar para Saga.
14
A sombra de uma nuvem corre lentamente sobre a paisagem plana;
atravessa o gradeamento do pá tio, desliza ao longo do relvado
amarelecido e trepa pelo muro de seis metros de altura.
No setor T da prisã o de alta segurança de Kumla, o dia de trabalho
acabou e os detidos acotovelam-se para entrar no minú sculo giná sio ao
fundo do corredor.
Pesos, halteres e outros objetos suscetı́veis de serem usados como
armas sã o proibidos.
Quando Reiner Kronlid e os seus guarda-costas da Irmandade
entram, os detidos afastam-se. Reiner controla totalmente o trá ico de
droga no setor e defende essa posiçã o como um deus cioso.
Sem que Reiner precise de dizer uma palavra, um homem magro
desmonta imediatamente da bicicleta e limpa o assento e o guiador com
um papel.
A luz dos né ones estende-se sobre as paredes descascadas e o ar
torna-se mais pesado com o cheiro do suor e do bá lsamo de tigre.
Os velhos toxicó manos, como de costume, estã o agrupados ao lado
da parede divisó ria em acrı́lico, enquanto dois albaneses do gangue de
Malmö se deslocam devagar junto da mesa de pingue-pongue
desmontada.
De repente, uma nuvem tapa o sol pá lido e ica tudo escuro.
Joona Linna termina uma sé rie de elevaçõ es, depois larga a barra
presa no teto, desce suavemente até ao chã o e lança um olhar atravé s
da janela. A luz poeirenta volta a encher o giná sio. As pupilas dele
contraem-se e, em poucos segundos, os seus olhos cinzentos parecem
duas poças de chumbo fundido.
Joona está bem barbeado e tem os cabelos loiros curtos, quase à
escovinha; a testa franzida e a boca crispada conferem-lhe uma
expressã o sé ria. Veste uma T-shirt azul com as costuras repuxadas
sobre os mú sculos compactos.
– Mais uma sé rie antes de passar ao seguinte – diz-lhe Marko.
Marko é um preso idoso, mas atlé tico, que tomou a seu cargo o
papel de guarda-costas de Joona. Há constantemente fortes tensõ es
entre os vá rios grupos do setor, apesar de naquela fase se ter atingido
uma espé cie de equilı́brio. Ainda assim, Marko segue Joona Linna aonde
quer que este vá .
Um novo detido, com uma cara macilenta de pá ssaro, aproxima-se
do giná sio. Esconde qualquer coisa na mã o encostada ao lado do corpo.
Tem as maçã s do rosto a iladas, os lá bios pá lidos e usa os cabelos inos
apanhados num pequeno rabo de cavalo.
Nã o está com roupa de treino; veste uma camisola cor de ferrugem
que deixa ver o pescoço e o peito tatuados.
Algué m abre a porta e um novelo de pó e cabelos atravessa o
pavimento, empurrado pela corrente de ar.
O homem desengonçado passa por baixo da ú ltima câ mara de
vigilâ ncia ixa no teto, entra no giná sio e para diante de Joona Linna.
Alguns dos presos viraram as costas a Joona e a Marko.
A atmosfera no giná sio torna-se mais tensa e todos se movem com
uma cautela cada vez maior.
Naquele silê ncio, ouve-se a nota aguda produzida pelo aparelho de
ar condicionado.
Joona volta a posicionar-se por baixo da barra, agarra-a com um
salto e iça-se.
Marko ica atrá s dele com os braços musculosos e tatuados
esticados ao longo dos lancos.
Joona sente as tê mporas contraı́rem-se de cada vez que se ergue
para levar o queixo acima da barra.
– Es tu o chui? – pergunta o homem de rosto macilento.
Minú sculos grã os de poeira caem lentamente atravé s do ar imó vel.
O guarda que está atrá s do vidro troca algumas palavras com um dos
detidos e dirige-se para a sala de controlo.
Joona ergue-se outra vez.
– Mais trinta – diz Marko.
O homem de rosto macilento ixa Joona. O suor brilha sobre o ino
lá bio superior, escorre-lhe ao longo das orelhas e mais abaixo sobre as
faces.
– Nã o me escapas, palerma – diz, com um sorriso tenso.
– Nyt pelkään1 – responde Joona, com toda a calma, erguendo-se
novamente.
– Entendes? – diz o homem a rir, trocista. – Entendes o que te estou
a dizer?
Joona apercebe-se de que o recé m-chegado esconde uma faca ao
lado do corpo, uma arma improvisada preparada com um caco de vidro
comprido, envolvido em ita adesiva.
Deve estar a apontar para baixo, pensa Joona. Vai tentar atingir-me
sob as costelas. E praticamente impossı́vel apunhalar algué m com um
pedaço de vidro, mas se o caco for reforçado com uma tala pode
penetrar na carne antes de se partir.
Outros detidos juntam-se do outro lado da parede de acrı́lico, o
olhar carregado de uma curiosidade feroz. Dispõ em-se à frente das
câ maras, lenta e de uma forma aparentemente casual, e a linguagem
corporal revela um entusiasmo contido.
– Es um chui – sibila o homem e depois volta-se a olhar para os
outros. – Sabiam que ele é polı́cia?
– A sé rio? – diz um dos detidos, a rir, enquanto bebe de uma garrafa
de plá stico.
Uma cruz oscila no pescoço de um homem de feiçõ es marcadas. Na
parte interior dos braços tem cicatrizes provocadas por queimaduras
de á cido ascó rbico, usado para diluir a heroı́na.
– Porra, juro-vos – continua o preso de rosto encovado. – Vem da
Polı́cia Criminal, é um porco maldito, um chui de merda.
– OK, isso explica por que razã o toda a gente lhe chama «o Chui» –
diz o homem da garrafa de plá stico, iró nico, a rir baixinho, com o rosto
virado para o chã o.
Joona Linna continua os seus exercı́cios.
Reiner Kronlid manté m-se sentado na bicicleta, com uma expressã o
impassı́vel. Com um olhar imó vel de ré ptil observa a evoluçã o dos
acontecimentos.
Um dos homens de Malmö entra e sobe para a passadeira. O som
rı́tmico da sua corrida e o silvo do tapete enchem a divisã o acanhada.
Joona larga a barra, deixa-se cair no chã o e observa o homem
armado.
– Posso oferecer-te um tó pico de re lexã o? – diz, com o seu
caracterı́stico sotaque inlandê s. – A falsa ignorâ ncia nasce da
sabedoria, a ilusó ria fraqueza nasce…
– Que merda está s para aı́ a dizer? – interrompe-o o outro.
Depois de ter prestado serviço como paraquedista, Joona foi
recrutado para as operaçõ es especiais, fez um treino na Holanda sobre
té cnicas nã o convencionais de combate corpo a corpo e sobre o uso de
armas inovadoras.
O tenente Rinus Advocaat preparou-o para situaçõ es como esta.
Joona sabe exatamente como imobilizar o braço do homem, como lhe
partir a traqueia com uma sé rie de pancadas repetidas e como lhe
arrancar a faca, en iar-lha no pescoço e partir-lhe a ponta.
– Mata o chui – sibila um dos homens da Irmandade e depois
desata a rir. – Nã o tens tomates…
– Está calado – interrompe-o um preso mais jovem.
– Mata-o – repete o outro, a rir.
O recluso de rosto macilento aperta o punhal. Joona ita-o nos olhos
e aproxima-se dele.
Sabe que, em caso de ataque, deverá conter-se para nã o executar a
sé rie de movimentos dos quais o seu corpo conserva ainda intacta a
lembrança.
Deverá limitar-se a bloquear-lhe o braço, arrancar-lhe a faca da
mã o e atirá -lo ao chã o.
Nos quase dois anos que passou na cadeia, conseguiu sempre
manter-se à margem das rixas mais violentas; o seu ú nico objetivo é
cumprir a pena e começar uma nova vida.
Joona vira as costas ao preso do punhal. Enquanto troca algumas
palavras com Marko, continua a vigiar o re lexo do homem atravé s da
janela que dá para o pá tio.
– Eu até podia matar aquele chui – diz o recé m-chegado, inspirando
nervosamente atravé s do nariz ino.
– Nã o podias, nã o – responde-lhe Marko, por cima do ombro de
Joona.
Há dois anos que Rex Mü ller é cozinheiro de um popular programa
da manhã na TV4. Ganhou a medalha de prata na competiçã o Bocuse
d’Or, colaborou com o prestigiado restaurante Fä viken Magasinet do
chef Magnus Nilsson, publicou trê s livros de receitas e, no outono
anterior, assinou um generoso contrato com a cadeia Gruppo F12 para
gerir o restaurante Smak.
Depois de ter passado trê s horas no novo restaurante, deixa o
comando à subchefe Eliza e veste o fato e a camisa azul. Assiste à
inauguraçã o de um hotel em Hö torget, deixa-se fotografar com o
produtor discográ ico Avicii e depois apanha um tá xi até Dalarö para se
encontrar com o seu mais direto colaborador.
David Jordan Andersen – ou DJ, como toda a gente lhe chama – tem
trinta e trê s anos e criou a sociedade de produçã o e comunicaçã o que
adquiriu os direitos televisivos do programa de Rex. Graças a ele, em
trê s anos Rex passou de um dos mais importantes cozinheiros do paı́s a
uma verdadeira celebridade.
Com o tempo, os dois tornaram-se amigos pró ximos.
Neste momento, Rex entra no restaurante do Strand Hotel de
Dalarö , troca um aperto de mã o com DJ e senta-se à frente dele.
– Pensava que a Lyra també m vinha – diz Rex.
– Tinha de ir ter com os amigos da Academia de Arte.
DJ parece uma espé cie de viking moderno, com a barba loira bem
tratada e os olhos azuis.
– Ultimamente acha-me insuportá vel, nã o é ? – pergunta Rex, de
testa franzida.
– Tu está s mesmo insuportá vel, ultimamente – responde DJ, com
toda a sinceridade. – Ningué m te obriga a dar liçõ es aos cozinheiros de
cada vez que vamos a um restaurante.
– Era a brincar.
O empregado chega com as entradas, deté m-se demasiado tempo e
depois, corando, pergunta a Rex se nã o se importa de dar um autó grafo
à equipa da cozinha.
– Depende da comida – responde Rex, com um tom sé rio. – Nã o
suporto quando o creme de limã o sabe a caramelo.
O empregado ica ao lado da mesa, a sorrir com um ar inquieto,
enquanto Rex pega nos talheres e corta um pedaço de espargo
grelhado.
– Vai com calma – sugere DJ, afagando a barba loira.
Rex mergulha o salmã o no creme de limã o. Cheira o aroma, prova e
mastiga com concentraçã o, depois tira uma caneta do bolso e escreve
na parte de trá s do menu: «Os meus louvores ao chef do Strand Hotel de
Dalarö , com os melhores cumprimentos, Rex.»
O empregado agradece e apressa-se a regressar à cozinha com um
sorriso estampado no rosto.
– Está assim tã o bom? – pergunta DJ em voz baixa.
– Nã o está mau – responde Rex.
DJ inclina-se para a frente, enche de á gua o copo de Rex e chega-lhe
o cestinho com o pã o. Rex bebe um gole e observa o enorme iate que
desliza lentamente ao longo do pequeno porto em direçã o ao mar
aberto.
Chegam os pratos com os arenques gratinados, as cebolas salteadas
e o puré de batata.
– Veri icaste se está s livre no pró ximo im de semana? – pergunta
cautelosamente DJ.
– Temos um encontro com os investidores, certo? – pergunta Rex.
DJ e a sua equipa estã o a trabalhar há mais de um ano para
produzir as primeiras peças de uma sé rie de utensı́lios de cozinha
assinados por Rex.
Sã o produtos de ó tima qualidade, de design elegante e preço
acessı́vel. Todos devem poder tornar-se reis da sua pró pria cozinha:
Rex of Kitchen.
– Estava a pensar levá -los a jantar a um bom sı́tio e dar dois dedos
de conversa… E importante que se sintam acarinhados – explica.
Rex assente e corta um pedaço de arenque. Mastiga-o, depois
estica-se para pegar no copo de cerveja de DJ.
– Rex…
– Ningué m vai saber – diz, com uma piscadela de olho.
– Nã o faças isso – replica DJ, num tom irme.
– També m tu? – diz Rex, a sorrir, pousando o copo. – Estou só brio,
mas, honestamente, isto é ridı́culo… Sem me perguntarem nada, estã o
todos convencidos de que eu tenho um problema.
Acabam de comer, pagam e descem até ao molhe onde DJ tem
ancorado o seu barco desportivo, um Ray Sundancer todo arranhado.
Está um im de dia quente e surpreendentemente bonito: a á gua
imó vel, o sol quase a pô r-se, e as nuvens, atingidas pelos seus raios,
assumiram um tom dourado.
Rex e DJ soltam as amarras e afastam-se lentamente do cais,
ondeando na esteira de outra embarcaçã o e avançando com cautela
para lá do estreito. Na margem de bombordo podem ver-se ao longo da
encosta umas estruturas engraçadas que parecem castelos de madeira,
cujas marquises de vidro re letem o cé u do entardecer.
– Como está a tua mã e? – pergunta Rex, enquanto se instala no
assento de cabedal branco ao lado de DJ.
– Para dizer a verdade, está um pouco melhor – responde o outro,
aumentando ligeiramente a velocidade. – Os mé dicos estã o a testar
medicamentos novos e, para já , a coisa está a correr bastante bem.
Quando chegam ao mar aberto, a sua voz é abafada pelo ruı́do do
motor. A espuma branca rodopia atrá s deles, a proa fende a á gua e a
lancha vai de encontro à s ondas. Vã o cada vez mais depressa e, ao im
de pouco tempo, o barco começa a planar a grande velocidade.
Rex levanta-se a cambalear e en ia os skis aquá ticos pousados no
chã o entre os dois assentos.
– Nã o trocas de roupa? – grita-lhe DJ.
– O quê ?
– Vais molhar-te todo.
– Eu nã o vou cair – grita Rex, como resposta.
Começa a desenrolar a corda e sente o telemó vel a vibrar no bolso
interior. E Sammy, e Rex faz sinal a DJ para abrandar.
– Estou?
Ao fundo ouve-se mú sica e vozes.
– Olá , pai – diz Sammy, com a boca demasiado pró xima do aparelho.
– Só te queria perguntar oque vais fazer hoje à noite.
– Onde está s?
– Estou numa festa, mas…
Uma onda levantada por um grande veleiro faz vacilar Rex, que
perde o equilı́brio e cai nas almofadas de cabedal brancas.
– Está s a divertir-te? – pergunta.
– O quê ?
– Estou em Dalarö com o DJ, mas ontem preparei um linguado.
Ainda há , no frigorı́ ico… podes comê -lo frio ou meter o pirex no forno
durante alguns minutos.
– Nã o te ouço – diz Sammy, a rir.
– Eu nã o chego tarde – tenta gritar Rex.
A mú sica alta ecoa atrá s da voz de Sammy, um baixo retumba no
telemó vel e uma mulher grita qualquer coisa com uma voz alegre.
– Vemo-nos mais tarde – diz Rex, mas a chamada já foi
interrompida.
19
A noite já vai longa quando o tá xi desce a Rehnsgatan e para em
frente a um portã o de madeira brilhante. Rex teve de pedir roupa
emprestada a DJ e en iou o fato molhado num saco de lixo. De manhã
cedo esperam-no para uma transmissã o televisiva e já devia estar na
cama há horas.
Entra no á trio e, a tremer, chama o elevador, que nã o se mexe. Dá
um passo em frente e espreita para a caixa. A cabina, bloqueada no
quinto andar, range e vibra. Os cabos ondeiam, e Rex imagina que
algué m está a fazer uma mudança a meio da noite.
Espera ainda alguns instantes e decide subir as escadas, com o saco
da roupa molhada atirado por cima do ombro, como o Pai Natal.
Quando chega a meio, o elevador começa a mexer-se com um ruı́do
metá lico. Cruza-se com ele no terceiro andar e, atravé s do vã o, repara
que está vazio.
Chega ao topo do ú ltimo lanço de escadas, pousa o saco e recupera
o fô lego. Está a meter a chave na fechadura quando o elevador se põ e
outra vez em movimento e sobe até ao andar dele.
– Sammy?
As portas abrem-se, mas o elevador está vazio. Certamente algué m
carregou no botã o do sexto andar e depois saiu.
Rex atravessa o apartamento sem acender a luz; antes de ir dormir,
quer veri icar se Sammy deixou algum pedaço de linguado. Na
semiobscuridade, o parquet tem um re lexo prateado e, para lá das
janelas da marquise, estende-se o tapete de luzes da cidade.
Rex abre o frigorı́ ico. Acabou de constatar que Sammy nã o tocou
no peixe, quando o telemó vel toca.
– Estou? – atende Rex, com uma voz rouca.
Pelo auscultador percebe-se um ruı́do. Mú sica pesada ressoa ao
fundo e algué m está a queixar-se.
– Pai? – ouve dizer com um suspiro.
– Sammy, julguei que estivesses em casa.
– Nã o me sinto muito bem – sussurra o ilho.
– O que foi que aconteceu?
– Perdi as minhas coisas e o Nico está lixado comigo… Nã o sei…
Mas que porra, para já com isso – berra Sammy a algué m, afastando a
boca do telemó vel.
– Sammy, o que é que se passa?
Rex nã o ouve a resposta do ilho: a sua voz é abafada pelo ruı́do de
fundo, um prato parte-se e um homem começa a gritar com outro.
– Sammy? – chama Rex. – Diz-me onde está s, eu vou buscar-te.
– Nã o é preciso…
Ouve-se um baque, como se Sammy tivesse deixado cair o
telemó vel.
– Sammy! – exclama Rex. – Diz-me onde está s!
Um ruı́do, um gargarejo, e depois Rex intui que algué m recuperou o
telemó vel.
– Anda buscar o rapaz antes que ele me dê cabo dos nervos – diz
uma mulher com uma voz profunda.
Com o coraçã o na garganta, Rex anota o endereço, chama um tá xi e
desce as escadas a correr. Quando sai para o ar fresco, liga outra vez a
Sammy, sem no entanto obter qualquer resposta. Já tentou pelo menos
dez vezes, quando o tá xi para diante da porta.
A mulher deu-lhe uma morada de Ostermalm, o bairro mais rico de
Estocolmo, mas o edifı́cio de Kommendö rsgatan nã o é mais do que um
pré dio deteriorado dos anos oitenta.
Ouve-se mú sica alta atrá s de uma porta no primeiro andar, com um
autocolante a dizer «Muita publicidade, obrigado» por cima da abertura
do correio.
Rex toca à campainha, roda a maçaneta, entreabre a porta e
espreita para dentro de um pequeno hall de entrada atulhado com uma
grande quantidade de sapatos. A mú sica reverbera pelas paredes.
Sente-se cheiro a fumo e vinho. O parquet gasto do corredor está
coberto de blusõ es e sobretudos. Rex entra na cozinha e dá uma
olhadela em volta. O balcã o arranhado está cheio de garrafas vazias.
Uma caçarola com restos de um estufado de feijã o, uma pilha de pratos
e uma sé rie de cinzeiros improvisados enchem a bancada.
No chã o está sentado um homem vestido de preto, com o rosto
maquilhado, entretido a beber de uma garrafa de plá stico. Uma
rapariga com uns jeans curtos e um soutien rosa-claro cambaleia até à
bancada, abre uma porta e pega num copo. O cigarro treme-lhe entre os
lá bios apertados, enquanto se concentra, na tentativa de encher o copo
com vinho de pacote.
Ao passar por ela, Rex vê -a deitar a cinza sobre os pratos sujos. A
rapariga sopra um lento io de fumo enquanto o segue com o olhar.
– Eh, cozinheiro, nã o me queres fazer uma omeleta? – pergunta-lhe
a sorrir. – Apetece-me mesmo uma omeleta…
– Sabes onde está o Sammy? – pergunta Rex.
– Acho que sei mais ou menos tudo – responde ela, estendendo-lhe
o copo de vinho.
– Ainda está aqui?
A rapariga assente e tira outro copo do armá rio. Um gato negro
salta para cima da bancada e começa a lamber uma faca suja.
– Eu gostava de ir para a cama com uma celebridade – graceja ela, e
começa a rir sozinha.
Rex afasta uma cadeira para passar para o outro lado da mesa e
sente que a rapariga lhe põ e os braços em volta da cintura. O peso do
seu corpo fá -lo inclinar-se para a frente.
– Vamos acordar a Lena e fazemos a coisa a trê s – murmura,
encostando-lhe o queixo com força à s costas.
Rex pousa o copo de vinho na mesa, afasta as mã os da rapariga e
volta-se a observar o sorriso embriagado no rosto dela.
– Só estou aqui porque vim buscar o meu ilho – explica-lhe, ao
mesmo tempo que desloca o olhar para a sala com a televisã o.
– Olha que eu estava a brincar. Nã o quero sexo, quero amor – diz
ela, e deixa-o ir-se embora.
– Fazias melhor em voltar para casa.
Rex abre caminho entre um cadeirã o e uma espreguiçadeira
dobrada. Dois copos tilintam um contra o outro ao ritmo da mú sica.
– Quero um pai – murmura a rapariga, enquanto ele se afasta em
direçã o à sala.
Num sofá de xadrez está sentado um homem de cabelos compridos
e grisalhos a mostrar a um rapaz como snifar coca. Algué m encontrou
um caixote com luzes de Natal. Há alguns colchõ es encostados à s
paredes. Um homem robusto, com as calças abertas, está sentado com
as costas apoiadas na parede, a arranhar uma guitarra acú stica.
Rex continua a avançar ao longo de um corredor estreito com o
chã o todo riscado. Espreita para dentro de um quarto onde uma mulher
em cuecas está a dormir com o braço tatuado dobrado por cima da cara.
Na cozinha, um homem ri-se e pronuncia algumas palavras em voz
alta.
Rex para a ouvir. Escuta os ruı́dos abafados e suspiros, muito perto.
Espreita outra vez para dentro do quarto e, antes de se voltar, o seu
olhar vai parar novamente ao meio das pernas da mulher.
Uma luz té nue brilha no chã o do lado de fora da casa de banho.
A porta está entreaberta.
Rex afasta-se para o lado e repara numa vassoura metida num
balde apoiado a uma má quina de lavar.
Ouve de novo os suspiros, por isso aproxima-se da casa de banho.
Estica uma mã o, abre a porta com cautela e vê o ilho ajoelhado diante
de um homem com um nariz enorme e rugas profundas dos lados da
boca entreaberta. Sammy tem o rosto suado e dos seus olhos escorre
tinta de rı́mel. Com uma mã o, segura o pé nis ereto do homem e en ia-o
na boca. O brinco com a pé rola negra oscila-lhe sobre a face.
Rex recua um passo; vê o homem passar os dedos por entre os
cabelos oxigenados de Sammy e apertá -los.
Na entrada, está algué m a chorar.
Rex volta-se, regressa à sala e tenta recuperar o fô lego, ao mesmo
tempo que se sente derrubar por uma onda de sentimentos
contraditó rios.
– Meu Deus – suspira, tentando sorrir da sua pró pria reaçã o.
Sammy é maior de idade, e Rex sabe que ele recusa qualquer ró tulo
para a sua sexualidade, mas sente-se terrivelmente embaraçado por ter
assistido à quela cena ı́ntima.
No sofá de xadrez, o homem com os cabelos compridos grisalhos
en iou uma mã o por baixo da T-shirt do rapaz.
Rex precisa de ir para casa dormir. Espera uns segundos, passa uma
mã o pela boca e regressa à casa de banho.
– Sammy? – diz, enquanto se aproxima. – Sammy?
Dentro da casa de banho, qualquer coisa rola a tilintar sobre o
lavató rio. Rex espera mais uns segundos e depois volta a chamar o ilho.
Ao im de poucos instantes, a porta abre-se e Sammy sai, com umas
calças justas e uma camisa à s lores desapertada. Apoia-se com a mã o à
parede. Tem as pá lpebras pesadas e o olhar apagado.
– O que é que está s aqui a fazer? – sussurra.
– Foste tu que me ligaste.
Sammy ergue os olhos, mas nã o parece perceber aquilo que Rex lhe
está a dizer. Tem os olhos sujos de preto e as pupilas dilatadas.
– Que raio se passa aı́? – exclama o homem da casa de banho.
– Já vou… Tenho só de…
Sammy cambaleia e está quase a perder o equilı́brio.
– Vamos para casa – diz Rex.
– Tenho de ir ter com o Nico, vai icar zangado se…
– Falas com ele amanhã – interrompe-o Rex.
– O quê ? O que é que disseste?
– Eu sei que tens a tua vida e nã o me quero armar em pai. Deixo-te
dinheiro para o tá xi, se quiseres icar – diz Rex, tentando suavizar o tom
de voz.
– Eu… se calhar devia dormir.
Rex despe o casaco, pousa-o em cima dos ombros do ilho e
encaminha-o até à porta.
Quando chegam à rua, o cé u começa já a clarear e os pá ssaros
chilreiam alegremente. Sammy move-se em passos lentos e parece
vencido por um cansaço preocupante.
– Consegues aguentar-te em pé , enquanto eu chamo um tá xi? –
pergunta-lhe Rex.
O ilho assente e apoia-se pesadamente na fachada do pré dio. O seu
rosto empalideceu; Sammy en ia um dedo na garganta e inclina a
cabeça para a frente.
– Eu… eu estou…
– Será que nã o podemos simplesmente tentar superar estas trê s
semanas juntos? – sugere Rex.
– O quê ?
O rapaz engole em seco, en ia novamente um dedo na garganta e
sente um arranco de vó mito.
– O que é que se passa, Sammy?
O ilho ergue o rosto, arqueja para encher os pulmõ es de ar e os
olhos reviram-se-lhe nas ó rbitas.
Cai e bate com a cabeça numa caixa de eletricidade.
– Sammy! – grita Rex, enquanto o tenta por novamente de pé .
O ilho perde sangue da ferida e os olhos rolam entre as pá lpebras
semicerradas.
– Olha para mim – diz Rex aos gritos, mas é impossı́vel comunicar
com ele. O corpo do rapaz está completamente inerte.
Rex estende o ilho no chã o, encosta-lhe o ouvido contra o peito e
ouve o coraçã o bater acelerado. A respiraçã o, poré m, é demasiado lenta.
– Santo Deus – exclama, procurando o telemó vel.
Tremem-lhe as mã os enquanto tenta chamar uma ambulâ ncia.
– Nã o morras, nã o podes morrer – suspira, à espera que atendam.
20
Quando o telemó vel toca, Rex estremece e bate com a mã o no braço
rı́gido do banco. Levanta-se e limpa a boca. O cé u do lado de fora das
janelas do hospital está pá lido como uma folha de papel vegetal. Deve
ter adormecido. O casaco que DJ lhe emprestou está enrolado a fazer de
almofada.
Nã o sabe quanto tempo demorou a lavagem gá strica de Sammy.
Encheram vá rias vezes o estô mago do ilho com á gua atravé s de uma
sonda oral e depois aspiraram-na com uma seringa grande. Sammy
agitava debilmente os braços para se libertar do tubo, lamuriando-se
enquanto a mistura de vinho tinto e comprimidos mal digeridos enchia
um saco de plá stico.
O telemó vel continua a tocar; quando Rex levanta o casaco, o
aparelho desliza para fora do bolso, ressalta no banco e desaparece no
chã o.
Rex inclina-se para o procurar e está ainda de gatas quando atende.
– Estou? – sussurra.
– Por favor, Rex – diz a produtora do programa, num tom
impaciente. – Diz-me que está s num tá xi.
– Ainda nã o chegou – improvisa Rex.
E domingo, e ele cozinha em direto na TV4 todos os domingos: é
impossı́vel que se tenha esquecido. Rex nã o faz ideia de que horas sã o.
O chã o de linó leo e as luzes de né on desaparecem de repente
quando se levanta de novo. Apoia-se ao banco e diz que quer as
imagens dos ingredientes no ecrã gigante e um zoom enquanto prepara
os camarõ es no wok.
– Já devias estar na maquilhagem – diz a produtora, impaciente.
– Eu sei – admite Rex. – Mas o que é que eu posso fazer, se o tá xi
nã o chega?
– Chama outro – suspira a mulher, e desliga a chamada.
Ao passar por ele no corredor, uma enfermeira lança-lhe um olhar
indecifrá vel atravé s dos ó culos. Rex encosta-se à parede, olha para o
telemó vel para ver as horas e chama um tá xi.
Pensa no rosto pá lido de Sammy enquanto ingeria carvã o ativado
para evitar que as substâ ncias tó xicas fossem absorvidas pelo intestino.
Rex estava sentado ao lado dele a pô r-lhe uma toalha molhada sobre a
testa suada e a repetir-lhe continuamente que tudo ia correr o melhor
possı́vel. Por volta das seis da manhã , puseram-no a soro e deitaram-no
numa cama, garantindo ao pai que o rapaz estava fora de perigo. Rex
sentou-se num banco no corredor para o poder ouvir no caso de
Sammy chamar por ele.
O telemó vel acordou-o quarenta minutos mais tarde.
Rex aproxima-se por um instante da porta e observa o ilho, que
continua a dormir profundamente. Tem o rosto pá lido e limpo. Uma
ponta do adesivo que cobre o cateter levantou. O tubo e o saco meio
cheio de soro isioló gico brilham à luz do sol. O peito do rapaz ergue-se
ao ritmo regular da sua respiraçã o.
Rex corre até ao elevador e, no momento em que carrega no botã o
verde, recebe a chamada da responsá vel pelas compras da TV4.
– Estou no tá xi – responde, no momento em que o mecanismo se
põ e em movimento.
– Devo icar preocupada? – pergunta Sylvia Lund.
– Fica tranquila… Fizeram confusã o com as chamadas.
– Devias ter entrado na maquilhagem há vinte minutos – diz ela,
com paciê ncia.
– Estou a chegar. Estou quase aı́, o carro já virou em Valhallavä gen.
Rex apoia a testa no espelho e sente-se vencer pelo cansaço
daquela noite insone.
O tá xi está à espera dele à porta do hospital. Rex instala-se no
assento traseiro e fecha os olhos. Tenta dormir durante o breve
percurso, mas só consegue pensar no que aconteceu e no facto de ter de
ligar a Veronica, a mã e de Sammy.
Tanto quanto percebeu, Sammy vai ser acompanhado por um
psicó logo e um assistente social, que deverã o avaliar a natureza da sua
dependê ncia e a sua propensã o para o suicı́dio.
O carro vira e deté m-se diante da entrada da TV4. Rex paga sem
esperar pelo recibo, sai do carro e entra pela porta de vidro.
Sylvia levanta-se de uma das poltronas com uma forma bizarra e
vai ao encontro dele a correr.
Está perfeitamente maquilhada e os cabelos caem-lhe, vaporosos,
sobre os ombros.
– Nã o izeste a barba – diz.
– Ah nã o? Esqueci-me – responde Rex, enquanto passa a mã o pelo
queixo.
– Deixa-me olhar para ti.
O olhar da mulher pousa no casaco amarrotado, nos cabelos
despenteados e nos olhos vermelhos.
– Está s bê bedo – sentencia. – Está s a mentir-me.
– Para com isso. Eu consigo – teima Rex.
– Deixa-me cheirar o teu há lito – pede Sylvia.
– Nã o – responde ele, a sorrir.
– Sinto muito por ti, mas nã o posso fazer nada… A TV4 vai
interromper a tua colaboraçã o, se armas mais alguma.
– Eu sei, já me disseste isso.
– Se nã o fazes o que te digo, nã o te ponho no ar.
Rex ica corado, mas inclina-se e bafeja em direçã o ao rosto de
Sylvia, depois olha-a nos olhos e dirigem-se ambos para a entrada do
pessoal.
Uma jovem mulher chega a correr à porta de vidro que dá acesso
aos estú dios, passa o cartã o pelo leitor e trava a porta com o seu
pró prio corpo para deixar Rex e Sylvia passar.
– Ainda estamos a tempo – diz a mulher, arquejante.
Rex dirige-se para os camarins, mas, de repente, quando se
encontra já na ı́ngreme escada de metal, sente-se mal. Vê -se obrigado a
parar e agarrar-se ao corrimã o antes de continuar.
Passa em frente à sala de refeiçõ es, onde os convidados continuam
à espera, e chega rapidamente ao camarim. No lavató rio, passa a cara e
a boca por á gua, e limpa-se com uma toalha.
Com as mã os a tremer, en ia um fato impecavelmente passado a
ferro, que lhe deixaram pendurado num cabide, e o avental de
cozinheiro.
Quando volta a sair para o corredor, a mulher ainda ali está à
espera; segue-o enquanto ele corre para a sala de maquilhagem.
Rex senta-se na poltrona diante do espelho e tenta conter a
agitaçã o lendo a notı́cia de um enorme aumento na procura de carros
Volvo. Entretanto, uma maquilhadora faz-lhe a barba, enquanto outra
mistura duas bases numa paleta.
A intervalos regulares é anunciado que «o chef Rex partilhará
connosco os seus melhores truques para recuperar de uma bebedeira».
– Nã o preguei olho esta noite – desculpa-se.
– Pois, mas agora nó s tratamos disso – garante-lhe a maquilhadora,
ao mesmo tempo que lhe pressiona uma esponja hú mida contra os
olhos inchados.
Rex pensa novamente em Sammy, nas primeiras palavras que
pronunciou em criança. Era um dia gé lido de outono e o pequeno estava
a brincar no recinto de areia quando de repente levantou os olhos,
bateu no chã o com a mã o, ao seu lado, e disse: «Papá sentado.»
Rex nunca quisera ter ilhos: a gravidez de Veronica nã o fora
programada. Só queria beber, cozinhar e dar umas quecas.
A maquilhadora passa-lhe os dedos pela ponta dos cabelos uma
ú ltima vez para tentar baixá -los.
– Vá -se lá saber porque é que as pessoas icam malucas com os
cozinheiros – diz, em tom de brincadeira.
Rex limita-se a rir e agradece-lhe por lhe ter restituı́do um aspeto
humano; depois dirige-se para o estú dio a correr.
21
A porta insonorizada fecha-se atrá s de Rex. Enquanto entra
silenciosamente no estú dio, repara que a apresentadora, Mia Edwards,
está sentada no sofá a conversar com uma escritora de cabelo cor-de-
rosa.
Com cautela, Rex passa por cima dos cabos e instala-se na cozinha
ao lado do sofá . Um té cnico de som ajeita-lhe o microfone, enquanto ele
veri ica se todos os ingredientes para a massa estã o nos seus lugares, se
a á gua está a ferver e se a manteiga está derretida.
No grande monitor que tem à frente, vê a escritora rir, levantando
as mã os, enquanto correm em rodapé os tı́tulos das ú ltimas notı́cias
referentes à s crı́ticas acesas dirigidas ao conselho de segurança da ONU.
– Tem fome? – pergunta Mia à escritora, depois de ter recebido o
input no auricular. – Espero que sim, porque hoje o Rex preparou uma
coisa verdadeiramente especial.
Os projetores acendem-se e as lentes escuras das câ maras de ilmar
viram-se para ele, precisamente no momento em que está a deitar
azeite na caçarola de cobre martelado.
Rex aumenta o lume e começa a recolher folhas de manjericã o de
um grande vaso, depois para e olha para a câ mara, a sorrir.
– Pode ser que ontem algué m tenha bebido mais do que a conta…
Por isso, hoje vamos preparar um prato retemperador. Tagliatelle com
camarõ es salteados, manteiga derretida com alho, malagueta, azeite e
ervas aromá ticas… Imaginem uma manhã de puro relax… Acordam ao
lado de algué m que espera ser reconhecido… Bem, se realmente nã o se
sentirem com forças para recordar aquilo em que se meteram ontem à
noite, a ú nica coisa de que precisam é comer.
– E adeus à dieta – diz Mia.
– Só hoje, só esta manhã – diz Rex com um sorriso, passando a mã o
pelos cabelos e desfazendo o penteado. – Vale a pena, garanto.
– Nó s acreditamos em ti, Rex.
Mia aproxima-se e ica a vê -lo cortar a malagueta e o alho com
movimentos de faca rapidı́ssimos.
– Se beberam de mais, há que ter cuidado…
– Eu també m sei fazer isso – diz Mia, em tom de brincadeira.
– Mostras-me?
Rex atira a faca ao ar, fazendo-a dar duas voltas, antes de a apanhar
e pousar ao lado da tá bua.
– Nã o – responde ela, a sorrir.
– A minha mulher dizia sempre que eu era um schmuck… Ainda nã o
descobri o que isso signi ica – diz Rex, sorridente, enquanto mexe com a
colher o conteú do da caçarola funda.
– Entã o secaste os camarõ es com papel de cozinha.
– E, como nã o estã o cozidos, é preciso nã o esquecer de juntar uma
boa porçã o de sal – diz Rex, enquanto deita a massa fresca na á gua a
ferver.
Atravé s da nuvem de vapor, os seus olhos descortinam a notı́cia de
ú ltima hora que surgiu no monitor: «O ministro dos Negó cios
Estrangeiros sueco, William Fock, morreu apó s uma breve doença.»
A angú stia aperta-lhe o estô mago com violê ncia e a sua cabeça
esvazia-se completamente. De repente, Rex esquece onde está e aquilo
que as pessoas à sua volta esperam que ele faça.
– Agora també m já se conseguem arranjar camarõ es bioló gicos, nã o
é verdade? – pergunta Mia.
Rex olha para ela e assente, mas sem perceber o que ela lhe está a
dizer. Com mã os tré mulas, agarra no pano que está em cima do balcã o e
limpa a testa com delicadeza, tentando nã o estragar a maquilhagem.
O programa é em direto. Rex sabe que tem de chegar ao im, mas a
ú nica coisa em que consegue pensar é naquilo que fez trê s semanas
antes.
Nã o pode ser verdade.
Agarra-se ao balcã o com uma mã o e sente o suor a escorrer-lhe nas
costas.
– Uma vez disseste que se pode reservar á gua da cozedura e depois
deitá -la na massa, para usar menos azeite – prossegue Mia. – Sim, mas…
– Mas hoje nã o, certo? – diz ela, a sorrir.
Rex olha para as mã os. Apercebe-se de que ainda funcionam, de
que acabaram de aumentar o lume sob a caçarola e que ainda estã o a
espremer limã o em cima dos camarõ es. O sumo esguicha quando
aperta o fruto e algumas gotas vã o parar à beira da taça. Como um io
de pequenas pé rolas de vidro atravessadas pela luz.
– OK – suspira, enquanto na sua mente repete que o ministro dos
Negó cios Estrangeiros morreu apó s uma breve doença.
Estava doente e nada daquilo que eu iz tem já importâ ncia, pensa,
enquanto pega na taça com os camarõ es.
– Agora, só falta saltear os camarõ es – diz, e observa o azeite a
ferver. – Preparados? Um, dois, três…
A câ mara enquadra a ampla caçarola de cobre enquanto Rex, com
um gesto teatral, esvazia a taça e os camarõ es mergulham no azeite com
um crepitar intenso.
– Nã o se esqueçam, lume vivo! Olhem para a cor e escutem…
Reparem como os luidos se evaporam – diz Rex, enquanto vira os
camarõ es.
Espalha uma pitada de sal, que crepita na caçarola. A outra câ mara
ilma-o de frente.
– Esperem alguns segundos. A vossa cara-metade pode deixar-se
icar na cama, porque já está tudo pronto.
Sorri e retira os camarõ es do azeite.
– Tem um aroma fantá stico, quase me tremem os joelhos – diz Mia,
ao mesmo tempo que se debruça sobre o prato.
Rex escorre a massa, despeja-a rapidamente numa caçarola, depois
mistura a manteiga com o alho e a malagueta; acrescenta os camarõ es,
junta uma gota de vinho branco e de vinagre balsâ mico e um pouco de
salsa, para alé m da manjerona e do manjericã o picados.
– E agora levem os pratos para o quarto – diz Rex, olhando
diretamente para a objetiva. – Abram uma garrafa de vinho, se
quiserem continuar debaixo dos cobertores; caso contrá rio, a á gua
també m vai muito bem…
22
O ministro dos Negó cios Estrangeiros morreu, repete Rex para si
mesmo, enquanto sai do estú dio onde os convidados do programa
icaram a comer a massa. Ouve-os gabar o prato no preciso momento
em que empurra a porta insonorizada.
Atravessa em passo rá pido o corredor até ao seu camarim, fecha a
porta à chave e tropeça nos sapatos, depois continua a cambalear até à
casa de banho e vomita na sanita.
Exausto, lava a boca e a cara, estende-se no catre minú sculo e fecha
os olhos.
– Mas que grande merda – murmura, enquanto se abandona à s
recordaçõ es confusas daquela noite de há trê s semanas.
Tinha estado numa festa em Matbaren, onde bebeu demasiado, e
depois convenceu-se de que estava apaixonado por uma mulher que
trabalhava para uma agê ncia de investimentos com um nome ridı́culo.
Quase sempre que se embebedava acabava por passar a noite
acompanhado. Quando lhe corria bem, nã o era a assistente de produçã o
da TV4 ou a ex-mulher de um colega, mas uma perfeita desconhecida,
como aconteceu naquela noite.
Foram de tá xi até casa dela, em Djursholm. Tinha-se separado e o
ilho estava nos Estados Unidos, num programa de intercâ mbio. Rex
beijou-a no pescoço enquanto a mulher desativava o alarme para o
deixar entrar. Um velho golden retriever surgiu do interior da casa e foi
ao encontro deles.
Ambos queriam ir diretos ao assunto, por isso nã o falaram muito. Já
era tarde e ambos sabiam qual a razã o por que Rex ali estava. Ele
escolheu uma garrafa de vinho do grande frigorı́ ico e, agora que pensa
nisso, lembra-se de que se desequilibrou enquanto a abria.
Ela arranjou um prato de queijos e uns crackers em que acabaram
por nã o tocar.
Como se fosse algo inevitá vel, Rex subiu atrá s dela as escadas
alcatifadas até ao quarto principal.
Quando chegaram lá acima, ela acendeu uns candeeiros de parede
que emanavam uma luz difusa e desapareceu na casa de banho.
Quando regressou, trazia uma camisa de noite e um quimono do
mesmo tecido prateado. Abriu a gaveta da có moda e entregou-lhe um
preservativo.
Quis que a penetrasse por trá s, recorda Rex, talvez para nã o ser
obrigada a encará -lo. Pô s-se de gatas, a camisa de noite levantada e os
cabelos compridos caindo-lhe sobre as faces.
A cama antiga começou a ranger, enquanto, na parede, uma
moldura que tinha dentro um anjo bordado abanava.
Estavam ambos demasiado cansados e demasiado bê bedos. Ela nã o
atingiu o orgasmo e nem sequer fez de conta: assim que ele acabou,
limitou-se a murmurar que precisava de dormir, caiu de barriga para
baixo e adormeceu com as coxas abertas.
Rex desceu até à cozinha, serviu-se de um conhaque e folheou o
jornal que acabara de chegar. O ministro dos Negó cios Estrangeiros
tinha feito algumas declaraçõ es idiotas sobre a existê ncia de lobbies
feministas que queriam minar o equilı́brio milená rio das relaçõ es entre
homens e mulheres.
Rex atirou o jornal ao chã o e saiu de casa.
Com uma ideia cları́ssima na cabeça, dirigiu-se a Germaniaviken,
seguindo ao longo da baı́a até à casa do ministro dos Negó cios
Estrangeiros.
Estava demasiado bê bedo para se preocupar com eventuais
sistemas de alarme ou câ maras de vigilâ ncia. O desejo de fazer justiça
levou-o a saltar o gradeamento, atravessar o relvado e subir à varanda.
Qualquer pessoa o podia ter visto: a mulher do ministro que espreitava
pela janela ou um dos vizinhos que passavam pela casa. Para Rex, nada
disso importava; era movido por uma ú nica ideia, que o levou a urinar
na piscina iluminada do ministro. Naquele momento, pareceu-lhe a
coisa mais acertada a fazer, e sorriu com uma expressã o de triunfo
enquanto a urina escorria sobre a á gua azul.
23
Rex ignora o tá xi que parou em frente aos estú dios da TV4 e avança
a pé . Precisa de respirar e de reorganizar as ideias.
Alguns meses antes, teria relaxado com um generoso copo de
whisky, e talvez acabasse por beber dois ou trê s.
Mas agora percorre a movimentada Lidingö vä gen, e está
concentrado em calcular quanto lhe vai custar aquilo que fez quando DJ
lhe liga.
– Viste-me?
– Sim, estiveste fantá stico – diz DJ. – Parecias mesmo bê bedo.
– A Sylvia també m disse isso. Pensava que eu tinha bebido.
– Ah sim? Posso garantir que ontem só bebeste á gua… Uma boa
quantidade de á gua do mar.
– Nã o sei… é incrivelmente ridı́culo que seja obrigado a ingir que
sou alcoó lico para nã o perder o emprego.
– Mas nã o te fará mal se andares um bocadinho mais devagar com…
– Para com isso, nã o estou para aı́ virado – interrompe-o.
– Nã o queria dizer nada de mal – responde DJ, em voz baixa.
Rex suspira e espreita para dentro do gradeamento do enorme
recinto desportivo construı́do para as Olimpı́adas de 1912.
– Já sabes da morte do ministro dos Negó cios Estrangeiros? –
pergunta.
– Claro.
– Tı́nhamos uma relaçã o complicada – diz Rex, enquanto passa pelo
portã o negro.
– Em que sentido?
– Eu nã o gostava dele – responde Rex, ao mesmo tempo que
atravessa o portã o e entra na pista decorrida que rodeia o relvado.
– OK, mas nã o te convé m falar sobre isso agora que ele acabou de
morrer – diz DJ num tom tranquilo.
– Nã o é só isso…
David Jordan ica em silê ncio enquanto Rex, em voz baixa, confessa
o seu crime: trê s semanas antes, bebeu demasiado e urinou na piscina
do ministro. Conclui a con issã o contando-lhe que pegara em todos os
anõ es do jardim – com setenta centı́metros de altura – e os atirara para
a piscina iluminada.
Rex entra no campo de futebol e para no centro.
As tribunas vazias rodeiam-no; entretanto, recorda o facto de
alguns dos anõ es terem icado à superfı́cie e outros terem ido parar ao
fundo, no meio de pequenas bolhas de ar.
– OK – diz DJ, apó s alguns instantes de silê ncio. – Mais algué m está
ao corrente daquilo que izeste?
– Há as câ maras de vigilâ ncia.
– Se rebentar um escâ ndalo, os investidores vã o pô r-se todos de
fora… Tu sabes isso, nã o podes ignorar – diz DJ.
– O que é que eu faço agora? – pergunta Rex, contrito.
– Tens de ir ao funeral – diz DJ lentamente. – Vou tentar arranjar-te
um convite. Transmites umas declaraçõ es em todos os meios de
comunicaçã o social, dizes que o teu melhor amigo morreu. Fala dele e
da sua atividade polı́tica com o má ximo respeito.
– Mas isso vai virar-se contra mim, se aparecerem as imagens das
câ maras de vigilâ ncia – diz Rex.
– Sim, eu sei, mas tenta uma jogada de antecipaçã o e refere desde já
as vossas trocas de comentá rios ordiná rios e as vossas brincadeiras
tolas… Explica que à s vezes passavam das marcas, mas que era apenas a
vossa maneira de estar. Em qualquer caso, nã o faças referê ncia a nada
de especı́ ico: só nos resta esperar que as imagens já nã o existam.
– Obrigado.
– Em concreto, o que é que tu tinhas contra o ministro? – pergunta
DJ, curioso.
– Sempre foi um porco mentiroso, um prepotente… Hei de mijar-lhe
em cima do tú mulo com o ú ltima brincadeira.
– Desde que nã o te ilmem outra vez – diz David Jordan a rir, e
desliga a chamada.
Rex observa um bando de pombas que levantam voo das tribunas;
traçam contra o cé u uma meia circunferê ncia que depois se alonga
numa elipse, antes de se juntarem e voltarem ao chã o.
Querido Joona,
Provavelmente estás a perguntar-te por que razão decidi escrever-te
ao im de todos estes anos. A resposta é simples: nunca tive coragem. Só
agora, que estás na prisão, me atrevo a contactar-te.
Ambos sabemos que seguimos caminhos muito diferentes nas nossas
vidas. O facto de te teres tornado polícia talvez não constituísse uma
surpresa, mas que eu fosse caminhar na direção oposta era pura e
simplesmente inimaginável, como tu bem sabes. Nunca pensei que fosse
esse o meu destino, mas há coisas que acontecem e pronto: escolhemos
um percurso e ele leva-nos a lugares aonde nunca quereríamos ter
chegado.
Hoje sou uma pessoa diferente: tenho uma vida normalíssima, estou
separada e tenho dois ilhos adultos. Há muitos anos que sou jardineira,
mas nunca esquecerei o que é estar preso.
Talvez estejas casado e tenhas muitos ilhos que te visitam
constantemente, mas se te sentires sozinho icarei feliz por te visitar.
Sei que quando nos conhecemos éramos muito jovens e que
andávamos no último ano do liceu, mas nunca deixei de pensar em ti.
Um abraço,
Valeria
Cai o silê ncio: só se ouve o vento e o rumor dos oleados. Parisa
levanta a cabeça e apercebe-se de que o homem loiro a seguiu. Tem a
espingarda encostada ao peito de Anders para libertar Amira dos seus
braços.
– Nã o se brinca com pistolas, meninos – diz, com o seu sotaque
inlandê s.
Anders ita-o, a lito, lambendo o ranho do lá bio superior.
Quando se vira de lado, Parisa acha que a cabeça está prestes a
explodir-lhe. Respira, ofegante, força-se a abrir os olhos e vê Amira
aproximar-se dela com passos incertos para depois cair de joelhos.
– Amira – sussurra.
– Temos de ir embora – diz a irmã . – Levanta-te, vamos!
Parisa nã o consegue mexer-se. Pousa a face sobre o saibro e vê
chegar mais trê s refugiados pelo caminho. Os primeiros sã o um rapaz
magro de olhar sé rio e uma mulher idosa vestida com roupas
tradicionais.
Podiam ser a mã e e o irmã o mais novo, pensa. Se nã o tivessem sido
mortos num bloqueio de estrada no mesmo ano em que ela tinha
fugido.
Atrá s deles, repara num homem vestido com um fato de treino
brilhante.
Parisa sabe que já o viu, mas demora alguns segundos para
perceber que se trata de um jogador de futebol. Salim referia-lho
sempre que havia jogo, porque é originá rio da mesma cidade.
48
Joona tenta avaliar rapidamente a situaçã o, e quando o homem de
barba recomeça a mexer-se aponta-lhe a espingarda.
Deve ter havido um confronto entre a gente dos estaleiros, os
refugiados e Parisa.
A mulher mais velha continua sentada em cima da pilha de baterias
com o seu tricot, enquanto o pai está ajoelhado e manté m as mã os em
cima da cabeça.
– Temos de ir embora – diz Joona.
Trê s refugiados estã o a subir o caminho estreito entre a o icina e os
barcos.
Joona sente retumbar nos ouvidos uma sé rie de tiros e lança um
olhar rá pido em direçã o ao mar antes de se dirigir a Parisa.
– Só aqui estã o estes? – pergunta-lhe, ao reparar que a luz na casa
um pouco mais adiante se apagou.
– Só restavam a minha irmã e aqueles trê s – responde ela.
– Diz-lhes para nos seguirem.
Parisa, arquejante, pronuncia algumas frases rá pidas, e a irmã
repete-as em voz alta aos outros trê s, que se aproximam com um ar
interrogativo. A mulher hesita, mas o rapaz segura-lhe na mã o e tenta
acalmá -la.
– Vamos – diz Joona, apontando a espingarda ao homem ajoelhado.
O rapaz parece querer indicar qualquer coisa, depois diz algumas
palavras e en ia-se por baixo de um barco à vela branco. Ao im de
alguns instantes regressa com a pistola de Parisa. Tem um ar satisfeito e
sacode o pó dos joelhos depois de lhe entregar a arma.
Parisa apoia-se com o braço à s costas da irmã e estica a mã o livre.
A sorrir, o rapaz entra no cone de luz de um holofote, e nesse
mesmo instante a sua cabeça move-se bruscamente para o lado e a
metade direita do rosto desintegra-se.
Todos ouvem o ruı́do do esguicho de sangue, dos tecidos e dos
fragmentos de crâ nio do jovem que se espalham contra o casco
comprido do barco um segundo antes de ouvirem a explosã o de uma
espingarda.
– Sigam-me, sigam-me – grita Joona, tentando levar Parisa e a irmã
em direçã o à grande grua.
O estrondo aumenta como uma avalanche. As violentas rajadas de
ar provocadas pelas pá s de um helicó ptero empurram-nos em todas as
direçõ es, golpeando-os no peito e na garganta.
– Para o chã o – grita Joona, no meio do tumulto.
O helicó ptero das Forças de Intervençã o, escuro contra o cé u negro,
vira por cima deles. Um atirador especial está pendurado do lado de
fora da cabina, preso por cabos, com os pé s apoiados nos patins.
A velha mulher afegã rasteja para baixo dos barcos, enquanto o
jogador de futebol corre com as costas curvadas ao longo do muro em
direçã o à estrada. O homem que Joona atirou ao chã o roda em direçã o à
parede e desaparece no meio da erva alta.
Joona diz a Parisa e à irmã para se esconderem atrá s da grua, pousa
a espingarda no meio da erva ao lado da parede da o icina e tenta ligar
à Sä po.
A linha telefó nica nã o lhe devolve mais do que uma nota vibrante,
mas mesmo assim ele repete, por diversas vezes, que a operaçã o deve
ser interrompida e que no pequeno porto nã o há terroristas.
Anders levanta-se com a ajuda da muleta, aponta para o
helicó ptero, a sorrir, e aproxima-se da á gua. As copas das á rvores
estremecem e o ruı́do do rotor aumenta quando o helicó ptero vira
bruscamente atrá s do per il do bosque para depois voltar para trá s pelo
outro lado, alguns segundos depois, com uma lentidã o singular.
Os quatro re letores na parte inferior do helicó ptero brilham como
tochas brancas.
Joona vislumbra cinco homens da equipa pendurados por baixo do
helicó ptero com o equipamento usado para as operaçõ es de ex iltraçã o.
Todos eles estã o munidos de capacetes, coletes à prova de bala e
espingardas automá ticas.
Como bonecos negros pendurados por um io, mas singularmente
imó veis, aproximam-se do solo.
Enquanto os homens sobrevoam a á gua, as tá buas molhadas do cais
brilham à luz dos re letores.
Anders permanece parado na margem a rir-se e a olhar para o
helicó ptero.
O ruı́do das pá s aumenta ainda mais. Joona tenta novamente ligar à
Sä po, percebe pelo ecrã que algué m está a responder e entã o grita para
o telefone que nã o há terroristas no porto e que a operaçã o deve ser
interrompida.
– Parem imediatamente – repete.
Todos se esconderam, à exceçã o de Anders e da mulher idosa, que
continua sentada sobre a pilha de baterias. Escondido atrá s da
plataforma elevató ria, Joona vê que o helicó ptero se aproxima do chã o e
começa a sobrevoar a estreita faixa de areia.
Sobre a á gua forma-se um cı́rculo de espuma e as ondas sã o
empurradas em direçã o ao pontã o, fazendo-o dar um salto. Os
re letores estreitam a sombra da grua projetada no caminho de saibro e
na parede da o icina.
Uma rajada sú bita faz abanar o helicó ptero; o té cnico de voo tenta
afastar o cabo com o pé para nã o o deixar bater contra a cabina.
O ruı́do do rotor muda e torna-se mais profundo, ao mesmo tempo
que o helicó ptero começa a descer inclinado. Os cinco homens da
equipa oscilam, pendurados nas cordas. O oleado em volta de um barco
levanta-se e desaparece a voar na escuridã o.
Os homens tocam em terra e soltam-se imediatamente, depois
saltam para o lado e correm a proteger-se. O helicó ptero recupera
altitude, vira e afasta-se lentamente.
Ouve-se o tiro de uma arma nas proximidades, e a forte explosã o
ecoa na ilha em frente ao pequeno porto.
O disparo proveio de um ponto atrá s deles. Joona pensa que a Sä po
deve ter enviado mais atiradores, mas depois vê o helicó ptero perder
altitude e percebe o que está a acontecer.
Nas proximidades há mais algué m ligado à imigraçã o ilegal: apagou
a luz em casa e saiu a correr, depois disparou com uma caçadeira contra
o helicó ptero e acabou por atingir o piloto.
Joona observa o rotor abater-se contra a grua. Uma chuva de faı́scas
segue a explosã o ensurdecedora. O helicó ptero salta de lado como uma
borboleta incendiada em contacto com uma chama.
O segundo piloto nã o teve sequer tempo de ativar os seus pró prios
comandos.
O helicó ptero precipita-se para terra e abate-se contra a extensã o
de barcos cobertos com oleados. O ruı́do do rotor que ica preso e da
chapa amolgada faz vibrar o ar.
Seguem-se mais trê s explosõ es rá pidas, depois uma pá partida a
meio salta como uma lecha e passa a poucos milı́metros da cabeça de
Anders, que está ainda na margem.
A pá bate contra a parede de chapa da o icina e desfaz-se em
pedaços.
Uma bola de fogo amarela e ardente enche o cé u durante alguns
segundos. A onda incandescente da explosã o incendeia a erva e o limite
do bosque, e lambe as coberturas dos barcos a toda a volta.
49
Gustav Larsson, no comando da primeira equipa, correu para se
abrigar, juntamente com os dois pares de colegas, atrá s da base de
cimento de uma bomba de gasolina. Ouve um ruı́do sincopado e vê o
helicó ptero perder altitude. Adam lança um grito e levanta-se de um
salto.
– Fica em baixo – grita Gustav.
Adam avança apenas um passo em direçã o ao mar antes de ser
atirado ao chã o pela potente onda de choque da explosã o.
Cai para trá s, batendo com o capacete no solo.
As ondas de calor incendeiam as á rvores a toda a volta.
Lascas e fragmentos do rotor chovem sobre o pequeno porto,
apesar de inicialmente Gustav ouvir apenas um dé bil zumbido, quase o
sussurro de uma brisa ligeira que sopra por entre as folhas.
E quando grita aos outros para icarem no chã o, a sua voz ecoa
apenas dentro dele.
O painel da bomba de gasolina está a arder.
Gustav observa as chamas e imagina a leve crepitaçã o que elas
produzem; depois, de repente, volta a ouvir distintamente os ruı́dos
que o rodeiam, e entã o apercebe-se do caos em que se encontra
mergulhado e dos gritos desesperados de Adam ao lado dele.
– Markus, Markus!
Adam perdeu o irmã o, e a voz quebra-se-lhe quando se levanta.
Antes que Gustav consiga reagir, Adam aperta o gatilho da espingarda.
Esvazia o carregador inteiro a apontar em direçã o aos barcos de luxo na
doca seca, e depois abandona a arma, que ica a oscilar agarrada à
correia.
– Deixa-te estar no chã o, há um atirador – grita Gustav.
Adam tira os ó culos de proteçã o e ica a olhar para o fogo. Os
barcos inclinam-se e ardem, e ouvem-se pequenas explosõ es. Jamal
abandona a sua posiçã o, arrasta Adam para o chã o e segura-o.
Com as mã os tré mulas, Gustav tira do bolso o radiotransmissor e
contacta o chefe da operaçã o, Janus Mickelsen.
Estilhaços de vidro e fragmentos de madeira rodopiam no ar.
A equipa perdeu o helicó ptero e quatro homens.
Gustav recorda as faı́scas que explodiram no escuro no momento
em que o rotor atingiu a grua.
Parecera-lhe que tinham sido geradas pelo toque brilhante de uma
varinha má gica.
Conté m as lá grimas enquanto repete os nomes dos colegas que
receia estarem mortos.
– Os grupos trê s e quatro estã o a chegar, mas você s devem intervir
imediatamente para capturar ou neutralizar os terroristas – diz Janus.
– E o Joona? – pergunta Gustav. – O que aconteceu ao Joona Linna?
– Nã o recebemos mais notı́cias dele desde que chegou ao local –
responde Janus. – Devemos presumir que esteja morto.
– Nã o consigo perceber se há refé ns ou se…
– E prová vel que haja algumas perdas entre os civis – interrompe-o
Janus. – Os reforços estã o achegar, mas tê m de fazer os possı́veis para
deter os terroristas no local e imediatamente… E uma ordem taxativa.
Gustav encerra a comunicaçã o via rá dio, tenta respirar com calma e
observa os homens à volta dele. Jamal morde o lá bio inferior. August
boceja, como de costume, e Sonny tem o olhar inexpressivo de um
pugilista.
Adam está ajoelhado e, por entre as lá grimas, insere um novo
carregador na espingarda automá tica. O irmã o mais velho, Markus, era
o té cnico de voo do helicó ptero, e tinha manobrado o cabo de cima de
maneira a que os rapazes da equipa conseguissem chegar à praia
imediatamente antes de o helicó ptero se precipitar.
– Ouçam-me – começa Gustav, abrindo a arma. – Temos a ordem
taxativa de neutralizar todos os terroristas.
– Quando é que chegam os reforços? – pergunta Jamal.
– Daqui a pouco, mas nó s temos de entrar em açã o imediatamente
– responde Gustav. – Adam, tu icas aqui.
O jovem passa a palma da mã o pelo rosto, olha para ele e abana a
cabeça.
– Eu també m vou – diz, com uma voz rouca. – Estou bem.
– Acho que fazias melhor em nã o te mexer.
– Você s precisam de mim – insiste Adam.
– Entã o vais ser o quarto, e eu sou o ú ltimo – diz Gustav, sentindo
apertar-se-lhe o estô mago por um mau pressentimento. – Jamal, é a tua
vez. Conduz o grupo.
– OK – responde Jamal.
– Nã o corram riscos e tomem atençã o a trezentos e sessenta graus
à vossa volta. Você s conseguem, vamos lá .
Jamal indica a direçã o, levanta-se, mantendo as costas curvas, e
depois corre pela erva em chamas até aos barcos; faz sinal aos outros
para o seguirem e depois prossegue por uma passagem estreita entre
duas ilas de veleiros luxuosos.
Como um ú nico corpo lexı́vel, a equipa avança tentando garantir a
segurança em cada canto. E difı́cil conseguir ter uma visã o completa do
pequeno porto, e antes nã o houve tempo para estudar os mapas. Atrá s
deles erguem-se em direçã o ao cé u as chamas do helicó ptero e dos
barcos incendiados. O fogo constitui uma fonte de luz suplementar, mas
ao mesmo tempo torna oscilantes todos os contornos. As labaredas
re letem-se sobre numerosas superfı́cies metá licas e grandes sombras
tremem sobre os cascos dos barcos para depois desaparecerem de
repente.
Em algum lugar à frente deles está situado um atirador, mas é difı́cil
perceber até que ponto os elementos da equipa estã o expostos. Talvez o
homem armado consiga vê -los nitidamente à claridade das chamas, ou
talvez se confundam com o negro dos barcos e do terreno.
Gustav obriga-se a nã o pensar nos colegas que acabaram de
morrer: precisa de se manter completamente lú cido e concentrado.
O grupo avança com as costas curvadas pela passagem estreita.
Como habitualmente, examinam todos os â ngulos e todas as possı́veis
trajetó rias.
Gustav volta-se para examinar rapidamente a á rea atrá s deles. O
terreno está seco por baixo dos barcos, e o lixo transportado pelo vento
amontoou-se em volta das estruturas de madeira.
O cheiro a queimado é cada vez mais intenso.
As labaredas altas re letem-se sobre os capacetes.
De repente, Jamal faz sinal aos outros para pararem, inclina-se
ligeiramente e pousa a mã o esquerda no antebraço direito: um sinal
convencionado para avisar da presença de inimigos.
Jamal já nã o tem a certeza, mas crê ter entrevisto um rosto pelo
canto do olho.
O coraçã o bate-lhe com tanta força que lhe faz doer o peito.
Baixa-se com lentidã o sobre um joelho e espreita para baixo de um
casco. Talvez se tratasse apenas do re lexo ardente do fogo sobre um
leme branco.
Jamal pousa o dedo no gatilho, avança cautelosamente e tenta
espreitar para lá da parte da frente de um casco arranhado.
No meio de uma mirı́ade de reservató rios e traves, vê a parede de
um edifı́cio de chapa semelhante a um hangar e uma plataforma
elevató ria amarela.
Alguma coisa se move ali perto, por baixo do barco ao lado dele.
Um gato negro foge a correr e o dedo de Jamal treme sobre o
gatilho.
Flocos de cinza ardente caem entre os barcos em seco.
Gustav manté m-se no fundo da ila e vê que Jamal continua a
avançar. Queria dizer-lhe que faria melhor em controlar o lado direito.
Jamal olha para a esquerda. Um oleado azul move-se ao vento e a
á gua escorre para o chã o com um som de campainha.
Subitamente, dois olhos cintilam ao lado do edifı́cio. Jamal desloca
a arma de repente e enquadra um rosto na mira.
Algué m geme ao lado dele. E Adam, que tropeçou numa quilha
saliente. O cano da espingarda bate contra uma estaca com um ruı́do
metá lico.
Jamal nã o sabe como foi possı́vel que o seu dedo tivesse resistido
ao impulso de carregar no gatilho. A adrenalina faz-lhe gelar o sangue
quando se apercebe de que podia ter matado uma velhota com umas
agulhas de tricot nas mã os.
Apoia-se com a mã o a um casco branco e expira.
Gustav vira-se e perscruta novamente a á rea atrá s deles. O fogo
continua a alastrar e farrapos de plá stico em chamas caem na á gua a
crepitar. Uma potente rajada de vento alimenta as lı́nguas de fogo, que
começam a devorar outros barcos numa ú nica vaga.
Jamal faz sinal aos outros para se porem em movimento e Gustav
olha para a frente, para lá dos colegas, em direçã o ao parque de
estacionamento. A esquerda, no meio das ervas daninhas, distingue-se
a velha carcaça de um automó vel. Cardos e arbustos despontam do
motor.
Adam murmura qualquer coisa para si mesmo, depois extrai o
carregador, examina-o e volta a pô -lo no sı́tio com um leve estalido.
Um homem com um fato de treino preto sai de repente de trá s da
carcaça do carro.
Sonny reage imediatamente e dispara seis tiros.
Os projé teis trespassam o peito do homem e o sangue esguicha
para o ar; o braço esquerdo é arrancado, mas ica pendurado no tecido
do casaco e enrola-se como uma echarpe em volta do pescoço do
indivı́duo no momento em que ele cai, rolando sobre si mesmo.
No mesmo instante, Jamal cai ao chã o. Estende-se de lado, como se
tencionasse descansar.
Gustav nã o consegue ver o que aconteceu. Sonny vai ter com ele a
correr, e de repente uma labareda cintila diante deles.
A explosã o do disparo é breve, mas ensurdecedora.
O projé til trespassa o rosto de Sonny e sai pela nuca. Gustav vê o
sangue esguichar sobre Adam. O capacete escorrega para o chã o e o eco
do tiro ainda nã o se apagou quando Sonny cai para trá s.
Gustav atira-se para o chã o e rola para debaixo de um grande barco
à vela. O cheiro da terra enxuta e da erva seca enche-lhe as narinas.
Arrasta-se até um bloco de cimento ao lado da proa e abraça a
espingarda.
Do corpo de Sonny chega um sibilo, quase um assobio ligeiro.
Atravé s da mira, Gustav espreita na direçã o em que lhe pareceu
descortinar a faı́sca. O seu olhar regista o terreno cinzento, alguns
barcos mais pequenos, um caixote de lixo. Todas as coisas tê m um
aspeto plú mbeo e parecem recobertas de pinceladas de cera. A mira
desliza sobre os arbustos baixos, sobre um saco de lixo amarrado e
sobre uma lata de verniz vazia.
Adam está sentado no chã o com Sonny nos braços. Tem o sangue
do colega espalhado por todo o peito.
– Deus do cé u… Sonny – geme.
Gustav treme e respira, e continua a inspecionar a zona atravé s da
mira. As ervas altas estremecem ao vento e a toda a volta os locos de
cinza nã o param de descer. O cheiro do fumo é sufocante. Atrá s dele, os
barcos em chamas implodem. Os cascos chocam uns contra os outros e
os bidõ es de á gua pendurados no oleado que cobre o veleiro por cima
dele começam a abanar.
Com o coraçã o que começa a ribombar aceleradamente no seu
peito, Gustav descortina o cano de uma espingarda atrá s de uma palete
de telhas. Um arbusto irregular abana ao vento, imediatamente atrá s do
atirador.
Gustav limpa o suor das sobrancelhas para conseguir ver melhor,
depois endireita os ó culos de proteçã o. E um ó timo atirador, mas
naquele momento tem a impressã o de estar a tremer demasiado.
Lentamente, regula a mira para focar o ponto em que supõ e que se
encontrará a cabeça do atirador quando este se chegar à frente para
disparar de novo.
– Morreram todos – diz Adam, itando a escuridã o. – Acho que
morreram todos.
A mira de Gustav é sacudida por um pequeno fré mito e desloca-se
para as telhas. Nã o lhe pode responder, naquele momento tem de
manter a concentraçã o.
Tanto ele como Adam estã o expostos.
Gustav sabe que dispõ e de poucos segundos antes de o atirador
voltar a abrir fogo.
Algures, uma mulher está a gritar.
Um bidã o pendurado numa corda oscila em frente à mira.
Gustav observa o cano da espingarda do atirador deslocar-se
ligeiramente para a esquerda, depois uma cabeça ica visı́vel durante
alguns segundos antes de desaparecer outra vez. O cano baixa e para.
Depois volta a aparecer a cabeça, o olho encostado à mira à procura de
um novo alvo.
Com extrema lentidã o, Gustav coloca o ino retı́culo em cruz da
mira no centro do rosto e carrega no gatilho.
A G36 recua contra o seu ombro, e o atirador desaparece. Gustav
fecha os olhos vá rias vezes, a tentar abrandar a respiraçã o. A arma
desapareceu. Por um instante, pensa ter falhado o alvo, mas depois
repara nas gotas de sangue escuro que escorrem dos ramos do arbusto
por trá s do esconderijo.
50
Joona encontra-se ao lado da plataforma elevató ria e está a
observar as lı́nguas de fogo e o fumo negro da cor do petró leo que se
contorcem e sobem para o cé u com uma estranha inquietaçã o.
Parisa abraça a irmã , que se aninhou no chã o com medo. Tem as
mã os apertadas contra as orelhas e chora descontroladamente como
uma criança.
– Pergunte-lhe se está em condiçõ es de correr. Temos de tentar
chegar ao bosque – diz Joona, agitado.
– Só é preciso que encontre a Fatima, a mulher que estava aqui há
pouco – diz Parisa. – Nã o apodemos abandonar. Salvou a minha irmã ,
dizendo a toda a gente que era ilha dela para a deixarem em paz.
– Onde é que ela está , sabe?
– Tinha de ir buscar as coisas dela… Está a ver aquele barco grande
sem oleado? – diz Parisa, indicando-lho.
– E demasiado perigoso.
Subitamente, ouvem-se os disparos de uma arma automá tica: um
carregador inteiro é despejado nas proximidades da margem. Os
projé teis enterram-se num material macio e ressaltam contra as traves
de aço dos suportes dos barcos.
Joona tenta descobrir os homens das Forças de Intervençã o.
Ouvem-se algumas explosõ es dé beis; fragmentos de vidro saltam
pelo ar enquanto os barcos se inclinam.
Joona pega no telefone, liga novamente a Janus e apercebe-se de
que Parisa deixou a irmã lavada em lá grimas e se afastou com a
espingarda de chumbos. Corre com as costas curvadas pelo caminho de
saibro ao longo da fachada da o icina, na direçã o do barco que indicou.
Joona pega na pistola e desloca o slide para trá s.
O fogo que envolve o helicó ptero ergue-se a vibrar e o fumo parece
fundir-se no cé u negro.
Joona vê Parisa abrandar no momento em que se está a aproximar
da esquina da o icina. A sua sombra tem um contorno irregular contra a
parede de chapa ondulada.
A irmã acalmou-se e continua sentada com as mã os contra as
orelhas.
Parisa espreita em direçã o ao mar, apoia-se com a mã o à parede e
prepara-se para correr atravé s de um espaço aberto coberto de saibro,
o ú ltimo troço que a separa do barco.
Joona vê -a sair do fosso e espreitar para o outro lado da esquina. De
repente, o seu corpo é percorrido por um fré mito, depois cai e ica
sentada no chã o com o olhar perdido no vazio.
De repente, cai para trá s, bate com a cabeça no chã o e é arrastada
pelos pé s.
Quase parece que algum animal selvagem a abateu para a levar
para a sua toca.
Com a pistola escondida contra o corpo, Joona corre ao longo da
passagem de saibro ao lado da parede, para e aponta a arma, enquanto
se aproxima da esquina atrá s da qual a mulher desapareceu.
Fica à escuta e sente o sopro do calor fervilhante do fogo bater-lhe
no rosto.
Pedaços de plá stico a arder chovem sobre ele.
Rapidamente, dobra a esquina e inspeciona a zona; vê a rampa de
cimento e as portas de correr da o icina, com cinco metros de altura.
Os troncos dos pinheiros na margem do bosque re letem o brilho
vermelho do fogo.
Vê -se uma roulotte branca atrá s de uma rede de galinheiro, meio
escondida no denso arvoredo.
Joona chega a correr a uma pequena porta de serviço. Baixa a
maçaneta, abre-a e espreita para o interior da o icina.
No escuro, as má quinas reluzem de uma maneira lú gubre; mais
adiante distingue-se um iate a motor azul-escuro com a proa amassada.
Joona entra na o icina rapidamente, inspeciona os cantos mais
pró ximos e corre com o corpo dobrado até um grande torno.
O cheiro de metal, ó leo e solventes impregna o ar.
A porta atrá s de si fecha-se com um estalido.
Atravé s das junturas e das placas das paredes de chapa vislumbra-
se o incê ndio.
Joona avança em direçã o ao barco, inspecionando todos os cantos
perigosos.
Um homem lança um berro, depois grita:
– Es só um animal, nã o é s nada, é s um raio de um animal.
Joona avança a correr, baixa-se e descortina-os ao fundo da o icina.
Parisa está pendurada de cabeça para baixo, com os pé s atados a
uma roldana. O camisolã o pesado desceu-lhe sobre a cabeça. O elá stico
branco do soutien aperta-lhe as costas nuas.
O homem de barba ainda está a perder sangue pela boca. Parisa
tenta ajeitar a camisola, e quando ele lha arranca começa a oscilar.
– Eu corto-te essa cabeça, porra – grita, erguendo o machado.
Joona nã o pode disparar por causa do iate, portanto começa a
correr na direçã o de Parisa e do homem de barba. No escuro, por baixo
do casco, mal consegue vê -los.
Parisa tenta gritar, apesar de ter a boca tapada com ita adesiva. O
homem acompanha-lhe os movimentos, deslocando-se de um lado para
o outro.
– Isto é Guantanamo – grita, e vibra um golpe violento com o
machado.
A lâ mina pesada atinge o ombro da mulher por trá s, enterrando-se
no mú sculo. O corpo de Parisa começa a rodar e o sangue cai no chã o.
Joona corre, ultrapassa alguns barris azuis de ó leo queimado, rola por
baixo do barco e consegue vê -los novamente.
– Afasta-te! – grita.
O homem está atrá s de Parisa e limpa o sangue da barba. Uma
perna das calças de Parisa escorregou-lhe até ao joelho, enquanto ela
continua a rodar e a oscilar para trá s e para a frente, respirando com
di iculdade pelo nariz e tentando proteger-se com as mã os.
– Se nã o atiras esse machado para longe, eu disparo – grita Joona,
afastando-se de lado para identi icar um ponto vulnerá vel para onde
fazer pontaria.
O homem recua alguns passos e ita Parisa, que se abana e faz
tremer a corrente.
– Olha para mim, nã o olhes para ela… Olha para mim e afasta-te –
diz Joona, aproximando-se, com o dedo cautelosamente pousado no
gatilho.
– Merda, sã o só animais – murmura o homem.
– Pousa o machado no chã o.
O homem está prestes a obedecer quando se ouve uma potente
explosã o e uma chuva de bolinhas trespassa o teto de chapa.
Minú sculas esferas de chumbo ressaltam entre o teto e as paredes,
depois vã o perdendo velocidade e caem sobre o pavimento da o icina.
– Nã o te mexas – diz o pai do homem atrá s de Joona, que levanta
entã o a pistola e a mã o livre por cima da cabeça. Ao im de todos
aqueles anos, apesar do ó timo treino, Joona cometeu o mesmo erro que
custou a vida ao pai. Deixou-se arrastar pelos acontecimentos e pela
vontade de salvar algué m, esquecendo-se por alguns segundos de olhar
para trá s das costas.
O ventre de Parisa move-se ao ritmo da sua respiraçã o
aterrorizada. O soutien branco está manchado de sangue e uma poça
escura alastra por baixo dela. O homem de barba está ofegante e tem o
machado apoiado no ombro.
– Deita fora a pistola – diz o pai.
– Pouso-a no chã o?
Joona começa a virar-se e vislumbra a sombra do homem sobre
umas latas de verniz.
– Deita-a fora – responde-lhe.
Joona vira-se lentamente e vê -o, a quatro metros dele. Está ao lado
de um motor diesel pendurado numa grua no teto e tem a espingarda
apontada a ele. Com cautela, Joona baixa a pistola como se estivesse
pronto para se render, enquanto, na realidade, está só à espera do
momento certo para abrir fogo. Vai fazer pontaria exatamente por baixo
do nariz, de forma a destruir instantaneamente a protuberâ ncia anelar
e grande parte do bolbo raquidiano.
– Deixa-te de brincadeiras – avisa o homem.
– Para que lado quer que a atire?
– Devagar… Isto é uma espingarda de pressã o de ar, nã o vou falhar
o alvo.
– Estou a fazer aquilo que me manda – responde Joona.
O rosto do homem endurece e o cano da espingarda desloca-se
ligeiramente para a direita. Um re lexo escuro alarga-se sobre o motor
pendurado na grua.
Joona ouve os passos do ilho atrá s de si, ica imó vel e depois salta
para o lado no momento em que o golpe se abate sobre ele. O machado
falha o alvo, mas a ponta da lâ mina faz-lhe um corte no ombro.
Joona volta-se para o ponto de onde partiu o golpe, en ia o cotovelo
esquerdo de lado no pescoço do ilho e parte-lhe a clavı́cula.
O machado roda no ar, atinge um macaco hidrá ulico e cai a tilintar
sobre o chã o de cimento. Joona aperta o braço em volta do pescoço do
homem, ergue-o de lado e atira-o ao chã o, utilizando-o como escudo
enquanto aponta a pistola ao pai.
O homem já pousou a coronha da espingarda no chã o e en iou o
cano na boca.
– Nã o faça isso – grita Joona.
O velho inclina-se e consegue com alguma di iculdade chegar ao
gatilho. O interior das faces ilumina-se no instante em que se ouve a
explosã o. A cabeça salta para trá s, e fragmentos de crâ nio e massa
cinzenta sã o projetados em direçã o ao teto e voltam a cair no chã o atrá s
dele.
O corpo cai para a frente e a espingarda para o lado.
– Que raio aconteceu? – exclama o ilho.
Joona amarra-lhe rapidamente os braços e as pernas com um
arame grosso, levanta-o e empurra-o contra o motor a diesel.
– Eu mato-te – grita histericamente o ilho do velho.
Joona enrola duas vezes o arame em volta do pescoço peludo do
homem e do eixo robusto do motor, depois pega no comando revestido
de borracha que está em cima de uma mesa coberta de chaves-inglesas
e levanta o motor até que o homem é obrigado a icar em bicos de pé s.
Lá fora ouvem-se tiros de espingarda, seguidos de disparos de
armas automá ticas.
Joona faz descer rapidamente Parisa até ao chã o. Repete-lhe vá rias
vezes que ela se vai safar, depois fá -la virar-se de barriga para baixo,
limpa-lhe apressadamente com as costas da mã o o sangue do ombro e
fecha a ferida com ita adesiva.
– Vai conseguir – diz-lhe, para a tranquilizar.
Acrescenta delicadamente mais algumas camadas de ita adesiva.
Sabe muito bem que nã o vã o aguentar muito tempo, mas se conseguir
levá -la imediatamente para o hospital, a ferida nã o será mortal.
Parisa tenta levantar-se, mas Joona diz-lhe para icar imó vel.
– Eu só queria ir buscar a Fatima – diz ela, tentando normalizar o
ritmo descompassado da respiraçã o.
Põ e-se de joelhos e descansa durante alguns instantes.
Joona ampara-a, e ela treme e vacila por causa da hemorragia; ao
atravessarem a o icina, os joelhos ameaçam ceder por vá rias vezes.
Saem para o ar frio. O pequeno porto está todo a arder e as rajadas
de vento fazem oscilar as chamas.
Joona segura a pistola com uma mã o enquanto sobem o estreito
caminho de saibro ao longo da parte lateral da o icina.
Quando Amira os vê , levanta-se ao lado da plataforma elevató ria e
dirige-se a eles com o rosto cinzento, dominado por uma expressã o
indecifrá vel. Tem um olhar ausente e as pupilas dilatadas. Joona ajuda
Parisa a sentar-se no chã o e põ e-lhe o casaco em volta dos ombros.
Gustav Larsson está no meio do caminho, a pouca distâ ncia deles. O
pesado colete à prova de bala e a espingarda estã o pousados no chã o.
A operaçã o foi interrompida e ele está a informar o comandante,
com a voz quebrada, que a situaçã o está sob controlo e que é necessá ria
a intervençã o de ambulâ ncias e bombeiros. Assente, murmura algumas
frases breves e baixa a mã o que segura o radiotransmissor ao lado do
corpo.
– Já estã o a vir as ambulâ ncias? – grita Joona.
– As primeiras vã o chegar daqui a dez minutos – responde Gustav, a
olhar para ele com olhos vı́treos.
– Muito bem.
– Meu Deus… Sinto muito, sinto muito… Joona, eu falhei.
– Vai icar tudo em ordem.
– Nã o, de maneira nenhuma, nada vai icar em ordem.
Alguns metros mais adiante, a velha está sentada na pilha de
baterias e continua a fazer tricot com uma expressã o desesperada no
rosto. O ilho mais novo está no chã o e tem as mã os amarradas com
uma faixa.
– Deram-nos ordens para intervir imediatamente – diz Gustav,
limpando as lá grimas da face.
– Quem foi?
Ouve-se uma forte explosã o, e Gustav avança um passo.
O tiro ressoa entre as casas, enquanto o fumo do incê ndio se
dissolve no ar.
A velha empunha a pistola de Parisa com as duas mã os. As agulhas
de tricot estã o pousadas no chã o diante dos seus pé s.
Dispara novamente, e Gustav tenta apoiar-se à parede com a mã o. O
sangue escorre-lhe do ventre e de uma ferida no antebraço. Adam, que
já se encontra ao lado da mulher, arranca-lhe a pistola e faz a velha cair
ao chã o, depois parte-lhe o braço à altura do ombro e empurra-a contra
o saibro com a bota.
Quando Gustav começa a cair, Joona segura-o e ajuda-o
delicadamente a deitar-se no chã o. Tem no rosto uma expressã o a lita e
mexe a boca como se estivesse a tentar dizer alguma coisa.
Uma luz elé trica acende-se violentamente diante dos seus olhos:
uma chama oxı́drica distante, composta quase por minú sculas faı́scas
que se espalham em todas as direçõ es e depois desaparecem.
51
Joona esperou duas horas no corredor à porta da sala de operaçõ es
para onde levaram Gustav Larsson, mas ao im da hora de visita os
mé dicos nã o foram ainda capazes de lhe dizer se vai sobreviver.
Agora está a deixar o carro no cimo de Tulegatan; sente o ar fresco
que sobe do parque e recorda que algumas cenas de um romance de
Maj Sjö wall e Per Wahlö ö foram passadas ali, num apartamento virado
para o verde de Vanadislunden.
Enquanto desce a colina em direçã o ao hotel, o efeito da anestesia
local na ferida do ombro começa a desvanecer-se: fecharam-lha com
onze pontos e agora a dor começa a aumentar.
O ombro do blusã o está rasgado, manchado de sangue e
remendado com um pedaço de ita adesiva. Nas narinas sente ainda o
cheiro do fumo, e tem uma ferida na raiz do nariz e arranhõ es nos nó s
dos dedos.
A funcioná ria da receçã o ica a olhar para ele de boca aberta e olhos
arregalados. Joona sabe que está com um aspeto completamente
diferente daquele que tinha no momento em que se apresentou para o
check-in.
– Um dia pesado – diz.
– Percebo – responde a mulher, a rir de uma maneira
descontrolada.
Nã o pode deixar de perguntar se tem mensagens, apesar de
duvidar da possibilidade de Valeria ter ido ter com ele.
A rececionista veri ica primeiro no computador e depois no cacifo
das chaves, mas obviamente nã o há nada.
– Posso perguntar à Sandra – sugere.
– Nã o é preciso – diz Joona rapidamente.
No entanto, é obrigado a esperar enquanto a mulher fala com a
colega. Observa o balcã o vazio, as linhas claras dos riscos no verniz, e
pensa que, pela parte que lhe toca, a missã o está terminada.
Todos eles estavam conscientes de que a in iltraçã o e a operaçã o
eram um tiro no escuro, mas nã o havia alternativas: o tempo de que
dispunham era muito pouco.
Joona fez todos os possı́veis por ajudar a Sä po, e gostaria de poder
dizer a Valeria que, a partir daquele momento, é apenas um recluso
normal a gozar uma licença.
– Nada, sinto muito – diz a mulher, a sorrir, quando regressa. –
Ningué m perguntou por si.
Joona agradece-lhe e sobe até ao quarto. Deixa os sapatos cobertos
de lama em cima de um jornal, depois prepara um banho quente e
mergulha na á gua, mantendo o braço ferido a seco.
O telemó vel está pousado no minú sculo nicho de azulejo o lado da
banheira. Pediu ao mé dico para lhe ligar assim que houvesse notı́cias de
Gustav.
Algumas gotas caem lentamente da torneira e os ané is de á gua
alargam-se sobre a superfı́cie para depois desaparecerem. A tepidez
distende os membros de Joona, e a dor atenua-se.
O signi icado da mensagem de Salim Ratjen era, de facto, muito
simples: a entrada ilegal no paı́s da irmã de Parisa tinha tido lugar antes
do previsto. Transferiram-no de Hall e isolaram-no do mundo exterior
antes que ele tivesse conseguido comunicá -lo à mulher.
O casal de idosos, juntamente com os trê s ilhos, tinha
transformado o estaleiro num ponto de trá ico de seres humanos.
Quando Joona Linna deixou de dar informaçõ es, o chefe da unidade
operativa, Janus Mickelsen, receou perder os contactos com a cé lula
terrorista.
Neutralizar a ameaça sobre a naçã o era uma prioridade absoluta.
Por esse motivo, foi decidido transferir para o pequeno porto o
primeiro grupo de Forças de Intervençã o.
Janus respondeu à s primeiras chamadas de Joona mas – conforme
ele mesmo declarou – nã o conseguiu ouvir mais do que alguns ruı́dos
confusos.
Do helicó ptero, os homens da equipa aperceberam-se da presença
de algumas pessoas ao lado de um edifı́cio de chapa. Dois corpos jaziam
no chã o e um terceiro indivı́duo estava de joelhos. Foram obrigados a
tomar a decisã o mais acertada num ú nico segundo, e depois, quando o
atirador viu atravé s da mira que um homem jovem estava a apontar
uma pistola a uma mulher, abriu fogo.
A equipa nã o podia saber que as duas pessoas deitadas no chã o
eram os homens do estaleiro e que o jovem com a pistola era um
fugitivo do Afeganistã o dos talibã s.
O terceiro ilho do casal foi acordado pelos ruı́dos do lado de fora
da o icina e foi buscar uma caçadeira com mira laser ao armá rio das
armas. Depois deslizou para fora de casa e escondeu-se atrá s de uma
palete cheia de telhas.
Depois que o helicó ptero fez descer a equipa até ao solo, o ilho
começou a disparar e atingiu o piloto no peito.
Os outros elementos da tripulaçã o morreram na explosã o, dois dos
membros da equipa operativa foram mortos durante o con lito armado
e dois refugiados foram atingidos por engano.
No estaleiro nã o havia terroristas.
A operaçã o tinha sido uma catá strofe.
O pai suicidou-se, o ilho do meio foi morto pelos homens da equipa
e a mã e foi presa juntamente com os outros dois ilhos.
O responsá vel operativo, Gustav Larsson, sofreu ferimentos graves
e estava ainda em condiçõ es crı́ticas. Parisa Ratjen, por sua vez, ia
conseguir recuperar sem lesõ es permanentes. A irmã , Amira, e a
refugiada mais velha pediram asilo polı́tico na Sué cia.
Joona emerge da á gua quente, seca-se e telefona a Valeria.
Enquanto o telefone toca, observa a rua. Um grupo de ciganos está a
preparar uns catres no passeio à porta de uma mercearia.
– Julgo ter percebido que nã o vens – diz Joona, quando inalmente
Valeria atende.
– Nã o, é que…
Deté m-se, com um profundo suspiro.
– Em qualquer caso, a minha missã o para a Polı́cia já terminou –
explica-lhe ele.
– Correu bem?
– Eu nã o diria isso.
– Entã o ainda nã o acabaste – diz a mulher, em voz baixa.
– Nã o existem respostas simples, Valeria.
– Percebo, mas sinto necessidade de dar um passo atrá s – diz ela. –
Porque tenho uma vida que funciona, os miú dos, o horto… E nã o
gostaria de te parecer banal, mas sou adulta e em boa verdade as coisas
estã o muito bem assim como estã o, mesmo sem um amor empolgante.
Interrompe-se de novo, Joona percebe que está a chorar. Algué m
liga a televisã o no quarto ao lado.
– Desculpa, Joona – continua Valeria, com um suspiro tré mulo. – Eu
tinha acreditado, mas na realidade as coisas entre nó s nunca iriam
funcionar.
– Quando eu for um horticultor diplomado, espero, em qualquer
caso, poder fazer um está gio contigo – diz ele.
Valeria esboça uma gargalhada rá pida, mas tem a voz quebrada
pelo pranto. Funga antes de responder.
– Manda o pedido, depois logo se vê .
– Vou fazer isso.
Ficam outra vez em silê ncio.
– Agora vai dormir – diz Joona, com um io de voz.
– Está bem.
Desejam boa-noite um ao outro, icam em silê ncio por um instante,
depois despedem-se outra vez e inalmente desligam.
Na rua, um grupo de rapazes sai de um pub e dirige-se a Sveavä gen.
A pensar em como é estranho nã o se encontrar atrá s das grades,
Joona veste-se e sai para o ar fresco da cidade. Grupos de pessoas estã o
ainda sentados à s mesas ao ar livre ao longo de Odengatan. Joona
caminha até à Brasserie Balzac, ocupa uma mesa na rua e consegue
encomendar um linguado em manteiga mesmo antes de a cozinha
fechar.
Os inqué ritos preliminares da Polı́cia vã o prosseguir sem ele.
Ainda nã o foi dita a ú ltima palavra.
O assassino, provavelmente, nã o tem qualquer ligaçã o a
organizaçõ es de cariz terrorista.
A razã o pela qual matou o ministro dos Negó cios Estrangeiros é de
natureza completamente diferente.
E alguma coisa o leva a comportar-se de uma maneira singular:
apesar do excelente treino militar, ica a ver a sua pró pria vı́tima esvair-
se em sangue durante mais de quinze minutos e deixa uma testemunha
com vida.
Sabe onde se encontram as câ maras de vigilâ ncia e usa um passa-
montanhas, mas por qualquer razã o amarrou umas tiras de tecido em
volta da cabeça.
Se nã o tem antecedentes por homicı́dio, naquela sexta-feira à noite
devia ter conseguido ultrapassar os postos de bloqueio. A sua excitaçã o
devia ter aumentado até se transformar numa sensaçã o de
omnipotê ncia, e agora nã o há mais nada que o impeça de atacar
novamente.
52
De um ponto ao fundo do cemité rio de Hammarby, a norte de
Estocolmo, conseguem ver-se as extensõ es de campos e o lago rodeado
de canas amarelecidas.
Apesar de a cidade icar muito pró xima, aqui tudo parece ter
permanecido como era há mil anos.
Disa repousa na ila interna, ao longo de um murete baixo, ao lado
da campa de uma criança que tem a marca de uma pequena mã o sobre
a lá pide. Joona viveu com ela durante muitos anos depois da separaçã o
de Summa, e nã o passa um minuto sem que lhe sinta a falta.
Deita fora as lores murchas, muda a á gua e en ia na jarra o ramo
fresco.
– Sinto muito por nã o ter vindo ter contigo durante tanto tempo –
diz, enquanto apanha as folhas que caı́ram na campa. – Lembras-te de
te ter falado da Valeria, a rapariga por quem eu estava apaixonado no
liceu… Neste ú ltimo ano escrevemos cartas um ao outro e encontrá mo-
nos vá rias vezes, mas agora já nã o sei dizer o que é que vai acontecer
entre nó s.
Uma rapariga passa a cavalo pelo caminho do outro lado do murete.
Dois pá ssaros levantam voo, traçando um arco amplo sobre um enorme
bloco de pedra na margem do bosque.
– A Lumi está a viver em Paris, nã o achas incrı́vel? – continua Joona,
a sorrir. – Dá -se lá bem, ao que parece. Está a trabalhar num projeto
para a escola, um ilme sobre os refugiados em Calais…
Pelo caminho de saibro, um ruı́do chega até ele, e uma igura com
umas brilhantes tranças de cabelo loiro aproxima-se a pé , vinda da
igreja. Para ao lado de Joona e ica alguns instantes em silê ncio.
– Acabei de falar com o mé dico – diz inalmente Saga Bauer. – O
Gustav ainda está sob o efeito da anestesia. Vai sobreviver, mas tem de
ser submetido a vá rias operaçõ es e vã o ser obrigados a amputar-lhe um
braço.
– A coisa mais importante é que se safe.
– Pois – suspira Saga, dando um pontapé no saibro com a sapatilha.
– O que é ?
– O Verner já abafou tudo. O caso inteiro foi declarado top secret e
ningué m pode aceder aos documentos. Caraças, nem sequer posso
consultar os meus relató rios… Se a direçã o viesse a saber do material
que guardei no meu computador pessoal, perdia o emprego… O Verner
impô s um nı́vel de con idencialidade tã o alto que já nem sequer ele
pró prio tem acesso a qualquer dado.
– E quem é que tem, entã o? – pergunta Joona, com um sorriso.
– Ningué m – responde Saga, a sorrir també m, mas a sua expressã o
ica logo sé ria.
Caminham para fora do cemité rio e passam ao lado da pedra rú nica
com as serpentes entrelaçadas e o anjo que está colocada ao lado da
entrada.
– A ú nica coisa que descobrimos, depois da mais importante açã o
antiterrorista da histó ria sueca, é que nada nesta histó ria faz suspeitar
de uma ligaçã o ao terrorismo – diz Saga, parando no parque de
estacionamento.
– O que foi que correu mal? – pergunta Joona.
– O assassino referiu o Ratjen… e nó s ligá mos isso a uma conversa
intercetada pelos serviços de segurança de Hall… Eu li a traduçã o toda,
o Salim Ratjen falava de trê s grandes festas… e a data da primeira
coincidia com a do homicı́dio do ministro William Fock.
– Eu sei.
Saga salta para o assento da moto suja.
– Mas as festas referiam-se simplesmente à chegada à Sué cia dos
parentes do Ratjen – prossegue.– Nada demonstra que se tenha
radicalizado na prisã o, e nã o encontrá mos nenhuma ligaçã o a grupos
islamitas ou a organizaçõ es terroristas.
– E o xeque Ayad al-Jahiz? – pergunta Joona.
– Pois, o xeque – responde Saga, a rir amargamente. – Temos aquela
gravaçã o em que diz que quer descobrir os lı́deres responsá veis pelos
bombardeamentos na Sı́ria para lhes disparar na cara.
– Ao ministro dos Negó cios Estrangeiros dispararam na cara duas
vezes – sublinha Joona.
– Precisamente – prossegue Saga, assentindo. – Mas a ligaçã o,
infelizmente, nã o tem consistê ncia… A direçã o da Sä po já sabia antes da
operaçã o que o xeque Ayad al-Jahiz morreu há quatro anos… Nã o pode
estar em contacto com o Ratjen.
– Mas porquê ?
– A Sä po acabou de obter um aumento do orçamento para manter o
mesmo nı́vel de alerta no futuro.
– Percebo.
– Bem-vindo ao meu mundo – diz Saga, suspirando, e depois põ e a
moto a trabalhar. – Vá lá , anda comigo ao giná sio.
53
O clube de boxe Narva está quase deserto, mas a corrente do saco
produz um ruı́do metá lico ritmado enquanto um homem, certamente
um peso pesado, desfecha golpes violentos contra rostos invisı́veis.
A cada movimento, a poeira rodopia no ar sobre o ringue. Dois
homens mais jovens fazem abdominais, cada um a gemer no seu
colchã o, por baixo da pera rá pida rasgada.
Saga sai do balneá rio com uma camisola de alças cor de vinho, uns
calçõ es pretos e uns sapatos gastos. Para diante de Joona e pede-lhe
para a ajudar com as ligaduras das mã os.
– A tarefa principal dos serviços de segurança de cada paı́s é
assustar os polı́ticos – diz em voz baixa, ao mesmo tempo que lhe
estende um rolo de ligadura.
Joona en ia-lhe a argola no polegar e depois enrola algumas vezes a
faixa elá stica em volta do pulso, estende-a sobre as costas da mã o e
aperta-a nos nó s dos dedos. A cada volta, Saga tenta fechar o punho.
– Do ponto de vista da Sä po, nã o é importante o facto de nã o haver
nenhum terrorista… A ameaça foi, em qualquer caso, neutralizada –
prossegue, enquanto Joona lhe faz passar a faixa por entre os dedos. – E
como os polı́ticos nã o podem admitir que esbanjaram uma quantia tã o
considerá vel dos dinheiros pú blicos para nada, a operaçã o deve ser
considerada um sucesso.
O pugilista aumenta o ritmo das pancadas e os dois homens mais
jovens começam a saltar à corda.
Joona en ia as luvas nas mã os de Saga, aperta os nó s e enrola um
pouco de gaze em volta dos pulsos, por cima dos nó s.
Saga entra no ringue, e entretanto Joona pega em duas luvas
semelhantes a almofadas duras de couro, aperta-as nas mã os e ajuda-a
a treinar-se numa sé rie de combinaçõ es de socos e pontapé s.
– A Sué cia foi salva – diz Saga, assestando um golpe de ensaio na
luva de Joona. – Mas o mé rito nã o é nosso… As pessoas iam entrar em
pâ nico, se descobrissem que a Sä po, na verdade, anda a esbracejar no
escuro.
Joona começa a mover-se em cı́rculo, levantando e baixando as
luvas, enquanto Saga vai atrá s dele a desfechar sé ries complicadas de
ganchos e uppercuts.
Ele contra-ataca empurrando uma das luvas para a frente, mas ela
esquiva-se e inicia uma nova sé rie de golpes tã o fortes que ecoam no
recinto.
Saga baixa os ombros, inclina a cabeça de lado e desfecha uma sé rie
de diretos com o punho esquerdo.
– O Janus e eu vamos continuar com as investigaçõ es, para veri icar
se nã o há nada que tenha a ver com o ministro dos Negó cios
Estrangeiros – diz, ofegante.
Joona inclina as luvas para que ela possa treinar os diretos, depois
atinge-a na face com a luva esquerda, recua e deixa que ela vá atrá s dele
com duas direitas potentes.
– Baixa um pouco o queixo – diz Joona.
– Sou demasiado orgulhosa – responde ela, com um sorriso.
– Mas o que é que vai acontecer, se encontrarem o assassino? –
pergunta Joona, seguindo-a até ao canto azul.
Ela centra as almofadas nas mã os de Joona com quatro golpes
ruidosos e fulminantes.
– A minha tarefa é arranjar maneira de ele nã o confessar o
homicı́dio – responde. – De nã o poder ser associado a ele de nenhuma
maneira, de nã o ser incriminado ou…
– E extremamente perigoso – interrompe-a Joona. – E nã o sabemos
se vai voltar a matar, nã o fazemos ideia de qual será a sua motivaçã o.
– E por isso que eu estou a falar contigo sobre o assunto.
O pugilista parou de treinar, icou imó vel com os braços em volta do
saco e observa Saga com um ar fascinado. Os mais jovens aproximaram-
se do ringue e estã o a ilmá -la com o telemó vel.
– Tens de baixar o queixo.
– Nem pensar.
Saga sai do canto, desfecha um potente gancho direito, faz rodar os
ombros e atira um murro direto ao tó rax de Joona, tã o forte que o
obriga a recuar alguns passos.
– Se eu fosse polı́cia, tentava um caminho diferente – sugere ele.
– Qual? – pergunta Saga, ao mesmo tempo que limpa o suor do
rosto com o antebraço.
– O outro Ratjen.
– Vamos fazer uma pausa – diz ela, estendendo as duas mã os.
– No im de contas, o Salim Ratjen tem um irmã o na Sué cia, nã o é
verdade? – diz Joona, enquanto lhe desenrola a faixa.
– Desde o homicı́dio do ministro que o mantemos sob vigilâ ncia
apertada.
– O que é que descobriram? – pergunta Joona, desapertando os nó s.
– Mora em Skö ve, é professor de liceu e nã o tem nenhum contacto
com o Salim – responde ela, saindo do ringue.
Saga deixa cair as luvas ao chã o e dirige-se ao balneá rio. Quando
regressa, tem a toalha à volta do pescoço e as mã os livres das ligaduras.
Entram num escritó rio minú sculo e Saga abre em cima da
secretá ria o seu portá til de cor verde tropa. As paredes estã o atulhadas
de vitrines cheias de medalhas e taças, recortes de jornais amarelecidos
e fotogra ias emolduradas.
– Nã o sei o que aconteceria se o Verner descobrisse que eu guardei
isto tudo – murmura Saga, clicando numa pasta. – O Absalon Ratjen
mora no 38 A de Lä nsmansgatan, é professor de Matemá tica e Ciê ncias
na Helenaskolan…
Afasta uma madeixa de cabelos que se lhe colou à cara e depois
continua a ler.
– E casado com Kerstin Rö nell, que é professora de giná stica na
mesma escola… e tê m dois ilhos que andam na primá ria.
Levanta-se e baixa a cortina à frente do vidro da porta.
– Obviamente, estamos a intercetar as conversas telefó nicas dele,
assim como as da mulher – diz a Joona. – Controlamos todas as suas
atividades online, e por aı́ fora… Lemos os e-mails, quer no endereço
privado, quer no da escola… A ú nica que vê pornogra ia é a mulher.
– E nã o encontraram nenhuma ligaçã o com o ministro.
– Nã o.
– Com quem é que o Ratjen contactou nas ú ltimas semanas?
Saga limpa a testa e continua a clicar.
– Tirando a rotina… Ora, falou de um encontro com o mecâ nico que
nã o deu em nada…
– Façam uma veri icaçã o.
– E depois temos um e-mail estranho enviado de um computador
sem endereço IP.
– Estranho em que sentido?
Saga volta o computador para Joona e abre uma mensagem de
fundo negro com o texto em carateres brancos: «I’ll eat your dead heart
on the razorback battle ield.»
Quando o metro passa por baixo deles, a luz do candeeiro da
secretá ria tremelica sobre o ecrã sujo.
– «Vou comer-te o coraçã o…» Parece bastante ameaçador – diz
Saga. – Mas pensamos que se trata de algum tipo de gı́ria ligada a uma
competiçã o… O Absalon Ratjen é o responsá vel pelos cursos avançados
de Matemá tica e, como aprofundamento, os alunos dele participam na
First Lego League, uma competiçã o internacional de robô s
telecomandados feitos com Lego.
– Em qualquer caso, levem essa mensagem a sé rio – diz Joona.
– O Janus leva tudo a sé rio… Está a trabalhar a tempo inteiro sobre
este e-mail e sobre a intercetaçã o de um telefonema que… Nã o sabemos
se é uma brincadeira telefó nica ou se algué m se enganou no nú mero…
Só se ouve a respiraçã o do Ratjen e a voz de uma criança a cantar uma
lengalenga.
75
O casco azul-escuro bate com violê ncia nas ondas e a espuma
salpica o para-brisas da cabina do comando. Uma das defensas
retiradas para dentro solta-se da corda e rola sobre o convé s molhado.
– Segura no leme! – diz o capitã o a Joona, saindo da cabina.
A proa da lancha 311 da Guarda Costeira ergue-se mais ainda,
depois começa a planar, aumentando a velocidade.
Atravé s do para-brisas sulcado de á gua, Joona vê o capitã o
atravessar o convé s, recuperar a defensa e amarrá -la com um nó . De
repente, uma onda mais alta atinge a proa e a á gua galga o parapeito; o
capitã o vacila, mas consegue manter o equilı́brio, endireita-se e
regressa à cabina para retomar o leme.
O capitã o tem o cabelo comprido apanhado numa trança, tatuagens
até nos dedos e os olhos bordejados de kajal negro. Os outros homens
da tripulaçã o parecem apreciar a sua imitaçã o do pirata Sparrow e
tratam-no por Jack.
– Chega aos trinta e cinco nó s? – pergunta Joona.
– Se eu puxar bem por ela – responde Jack, com uma gargalhada
que deixa em evidê ncia os caninos tortos.
Põ e uma cara sé ria e aumenta ainda mais a velocidade. Um dos
homens bate palmas e lança um longo assobio.
– Jack – grita um homem de mú sculos potentes que está a limpar
uma pistola. – A esta velocidade, tens de estar atento à Guarda Costeira.
– Sã o tipos duros, ouvi dizer – responde o capitã o.
– Mas nã o tanto como nó s – gritam os outros em coro.
Joona sorri, observando o mar agitado. O vento forte arrasta as
nuvens negras pelo cé u.
Os telemó veis de Oscar e de Caroline estã o desativados, mas Anja
descobriu um post no per il do Instagram da rapariga. Há uma sel ie em
que ela ostenta uma expressã o amuada, e por baixo da imagem foi
inserida a legenda «quality time».
Na fotogra ia está inclinada sobre uma pilha de paletes cinzentas e
por trá s dela vê -se um cartaz vermelho com informaçõ es sobre o cais
de Stavsnä s.
Anja descobriu rapidamente que o meio-irmã o de Oscar possui
uma pequena casa numa ilha do arquipé lago externo, quase em frente a
Stavsnä s.
– Julgo ter entendido que é uma honra dar-te boleia – diz o capitã o,
lançando um rá pido olhar a Joona.
Por baixo dos pé s deles, a coberta do barco treme por causa dos
motores diesel a elevada rotaçã o. A embarcaçã o vira bruscamente em
torno de um grupo de ilhotas de per il aguçado e acaba por icar
paralela à direçã o das ondas, saltando ao ritmo do movimento do mar.
A á gua fustiga a ponte e corre pelos tubos de escoamento.
O capitã o indica atravé s do vidro uma ilha cinzenta e negra que se
materializa na obscuridade sob a forma de uma porçã o de espaço mais
escura.
– Bullerö n nã o é apenas uma das dez mil ilhas nesta zona… Depois
de o pintor Bruno Liljeforster vendido a ilha ao industrial Kreuger,
hó spedes como Zarah Leander, Errol Flynn e Charlie Chaplin
começaram a vir até aqui… precisamente a esta ilhota! E quase só um
monte de rochedos, atravessa-se em meia hora… Na tua opiniã o, o que é
que eles faziam aqui? – pergunta Jack, a piscar o olho com malı́cia.
Aproximam-se rapidamente e o capitã o abranda. Um dos homens
sai da cabina, mantendo as pernas afastadas para se equilibrar, e depois
começa a deixar cair as defensas.
Na ilha nã o se veem luzes. As ondas batem nos rochedos ı́ngremes
no meio de salpicos de espuma e as á rvores esguias dobram-se ao
vento.
– De que é que estamos à espera, exatamente, se é que eu posso
saber? – pergunta o capitã o.
– Estou à procura de uma pessoa que preciso de interrogar –
responde Joona.
Entram no pequeno porto com um molhe de cimento onde a lancha
atraca. O capitã o aproxima-se cautelosamente em marcha-atrá s, mas
mesmo assim raspa na parede e depois começa a deslizar ao longo do
cais do lado de estibordo.
– E essa pessoa… é perigosa? – pergunta Jack, tentando evitar as
ondas.
– Provavelmente está com muito medo – responde Joona, saindo
para o convé s. Entretanto, a tripulaçã o aperta as amarras.
– Queres que vá contigo? – pergunta Jack, saindo da cabina.
– Traz a pistola.
Os dois homens saltam para terra e Jack prende o coldre na cintura
enquanto passam ao lado dos rochedos lisos. Na ilha a escuridã o é
muito mais densa, e a noite parece ainda mais profunda do que no mar
aberto. As ondas batem ritmicamente nos rochedos e as gaivotas
lançam no ar os seus gritos estridentes.
A casa, originalmente uma cabana de pescadores, encontra-se
numa posiçã o isolada em frente a uma baı́a a sul, a uma certa distâ ncia
das outras habitaçõ es.
Contra o cé u escuro, a princı́pio a fachada parece negra, da cor do
sangue coagulado, mas quando os dois homens se aproximam
apercebem-se de que se trata de uma casa tı́pica, de madeira vermelha,
ligada a um armazé m para os barcos construı́do por cima de uma
pala ita sobre a á gua agitada.
Jack para a veri icar a arma, e o vento sacode-lhe a roupa.
A casa foi trancada como se estivesse para haver um furacã o. Do
lado de fora das portas e das janelas foram pregadas tá buas.
Joona e o capitã o avançam para a casa. Das caleiras despontam
tufos de erva, e as plantas tremem com a brisa persistente.
No pá tio estã o amontoadas boias cor de laranja e â ncoras
lutuantes. Nas traseiras da casa encontra-se uma construçã o de metal
que faz lembrar uma baliza, com ganchos ferrugentos na trave.
– Nã o está aqui ningué m – diz Jack.
– Vamos ver – responde Joona, em voz baixa.
Segundo Joona, Oscar e a namorada podiam ter chegado de barco,
que depois teriam escondido no armazé m como numa garagem.
A entrada do lado que dá para o mar é talvez a ú nica que nã o está
trancada.
Joona deixa-se cair ao longo de um rochedo escorregadio ao lado
do armazé m, aproxima-se das tá buas na parte baixa da parede e tenta
espreitar atravé s de uma fenda.
A pouco e pouco, vê surgir uma superfı́cie de á gua ondeante. O
re lexo do cé u move-se, oscilante, entre as paredes enegrecidas.
– Nã o há barco nenhum – constata Joona, e recomeça a subir.
Passa por um depó sito de lenha cheio de toros de bé tula; repara
que o machado está profundamente enterrado no cepo e que no chã o, a
toda a volta, estã o espalhadas lascas de madeira.
Para ao lado do barracã o das ferramentas com as prateleiras para a
lenha. Os interstı́cios entre as achas estã o cheios de serrim. Joona faz
sinal a Jack para parar, aproxima-se cautelosamente da porta e entra.
As ferramentas estã o penduradas ordenadamente na parede; no
centro do pavimento encontra-se uma mesa de trabalho com uma serra,
e ao lado dois cavaletes caı́dos um em cima do outro.
– Acho que estã o aqui – diz Joona, retirando um pé de cabra da
parede.
– Onde? – pergunta Jack.
– Em casa – responde Joona.
– Nã o me parece.
– Pregou as portas e as janelas há pouco.
– Como é que sabes?
– Há dois dias que o vento sopra de oeste… O Oscar serrou as
tá buas aqui dentro e levou-as até à casa… A maior parte do serrim
voou, exceto aquele que está abrigado do vento, aqui, nas fendas.
– Sim, OK – diz Jack. – Tens razã o, se o vento mudasse nã o tinha
icado nada… mas todas asvias de acesso estã o trancadas por fora. Lá
dentro nã o pode estar ningué m, a nã o ser que algué m de fora lhes
tenha dado uma mã o.
Regressam à casa e olham para dentro. Algum serrim icou preso
numa teia de aranha por baixo de uma das janelas fechadas. Joona
agarra nas tá buas e tenta fazer força, depois dirige-se à janela seguinte
e dobra a esquina. Para diante da porta da cozinha e apercebe-se de que
abre para dentro.
As tá buas pregadas por fora nã o servem para nada.
Baixa a maçaneta e tenta empurrar a porta.
Está claramente trancada por dentro.
Oscar e Carolina pregaram as tá buas do lado de fora para dar a
impressã o de que a casa estava inteiramente trancada, depois entraram
e bloquearam a porta por dentro.
76
Os pregos de quatro polegadas gemem quando Joona arranca as
tá buas da porta da entrada. En ia as pontas inas do pé de cabra ao lado
da fechadura e faz força. A ranger, o caixilho da porta parte e a peça
metá lica solta-se.
Joona abre a porta e inspeciona a entrada mergulhada na
penumbra. Com exceçã o da porta da cozinha, todos os outros acessos
estã o trancados pelo lado de fora.
– Polı́cia – grita. – Estamos a entrar em casa!
As suas palavras sã o sugadas pela escuridã o e pelo silê ncio. As
rajadas de vento persistentes varrem o telhado, fazendo rodar o
catavento com uma chiadeira.
Jack começou a respirar mais rapidamente, olha em volta com um
ar nervoso e murmura algumas palavras para si mesmo. Joona pega na
pistola e entra cautelosamente no corredor. Uma boneca com as pernas
abertas num â ngulo estranho está abandonada no tapete. Algué m lhe
borratou a cara com um marcador negro.
Impermeá veis e velhos anoraques estã o pendurados em ganchos
por cima de uma estante de sapatos onde estã o pousadas socas e botas
de borracha.
Joona abre a caixa da eletricidade ao lado da porta e repara que o
interruptor geral está desligado.
– Nã o está cá ningué m – murmura de novo Jack.
Prosseguem até à sala de estar, onde um velho sofá de pele está
colocado em frente a um televisor. No ar completamente imó vel sente-
se um cheiro seco de madeira e pó . As cortinas fechadas das janelas
com as tá buas cruzadas por fora dos vidros re letem-se no ecrã negro
da televisã o.
– Polı́cia – grita novamente Joona. – Precisamos de falar com o
Oscar!
Abre uma porta e entra num quarto onde encontra um beliche com
cobertores e lençó is perfeitamente em ordem. As amplas tá buas do
chã o rangem sob o seu peso. Há um mosquiteiro encostado à parede, e
a icha do candeeiro de pé está desligada. Por cima da cama superior
está pendurado um desenho infantil dani icado pela humidade.
Representa uma rapariga feliz de mã o dada com um esqueleto.
Rex está em frente à cama e olha para fora da janela: para lá do
cruzamento em T e do lago Paktajå kaluobbalah, descortinam-se montes
e vales e uma grande quantidade de pequenos lagos que parecem gotas
de chumbo fundido.
Pega nas meias que estã o em cima da cama, desen ia o anel de
papel de seda e começa a vestir-se para a caça.
Foi DJ quem escolheu pessoalmente o equipamento, acertando nos
tamanhos e optando por uma roupa de ó tima qualidade, dotada de
barreiras olfativas de forma a que os animais nã o notassem a presença
humana, e feita em materiais capazes de abafar os ruı́dos e de os
proteger da á gua e do vento.
Um fré mito de inquietaçã o obriga Rex a voltar-se para a porta. E
como se, de repente, o quarto atrá s dele tivesse icado mais escuro.
Rex en ia o resto da roupa, mete na bolsa os binó culos, o cantil e a
faca, pousa a mã o na maçaneta da porta e, antes de sair para o corredor,
sente de novo um arrepio correr-lhe ao longo das costas.
Para em frente ao quarto 23 e bate à porta. As fechaduras
eletró nicas estã o desativadas, mas pode-se em qualquer caso correr o
fecho do lado de dentro.
– Está aberta – diz uma voz abafada.
Rex entra no pequeno vestı́bulo, passa por cima dos sapatos e
avança até ao quarto espaçoso. Sammy já se vestiu e está a ver televisã o
sentado na cama. Tem o casaco de caça desapertado e pintou os olhos
com rı́mel e uma sombra dourada.
– Fico contente por ires també m – diz Rex.
– També m nã o podia icar aqui sozinho – replica o ilho.
– Porque nã o?
– Já estou cheio de vontade de andar a correr de triciclo pelos
corredores e de me pô r a falar com o meu indicador.
Rex desata a rir; segundo DJ, explica-lhe entã o, é importante que
ele també m vá à caça.
– De certeza que era mais divertido icar aqui a cozinhar – diz
Sammy, enquanto desliga a televisã o.
– Concordo – admite Rex.
– Quem serã o esses ricaços que o DJ convenceu a vir até aqui? –
continua Sammy, e depois pega na bolsa.
Atravessam em silê ncio o corredor frio e ouvem umas gargalhadas
clamorosas e copos a tilintar. No lobby, em frente ao fogo crepitante da
lareira, DJ está a beber whisky com trê s homens vestidos de caçadores.
– Aqui está o Rex – interrompe-os DJ, em voz alta.
Os homens, sentados nas poltronas, icam em silê ncio e voltam-se a
sorrir. Rex desvia-se para o lado, como se tivesse posto o pé num
buraco. Um deles é James Gyllenborg. Rex nunca mais o vira depois da
pancadaria de há trinta anos. James estava nas cavalariças e tinha-lhe
batido nas costas e na nuca com uma tá bua, tinha-lhe dado pontapé s
entre as pernas enquanto ele estava no chã o e por im tinha-lhe cuspido
em cima.
Rex apoia-se a uma das poltronas de pele e apercebe-se de que a
bolsa lhe caiu ao chã o e que a faca deslizou no tapete.
– Pai, o que foi?
– Caiu-me…
Rex apanha a bolsa e a faca, tenta repelir a ná usea e aproxima-se
dos convidados para os cumprimentar. Reconhece os outros dois
homens do tempo de Ludviksberg, mas nã o se lembra dos nomes deles.
– Este é o meu ilho Sammy – diz Rex, engolindo em seco.
– Olá , Sammy – diz James.
Os trê s homens apertam a mã o a Rex sem se levantarem das
poltronas e apresentam-se como James, Kent e Lawrence.
Envelheceram todos.
James Gyllenborg parece envolvido por um vé u cinzento, como se
os anos tivessem apagado toda a cor da sua vida e da sua pele. Rex
lembra-se dele como um rapaz loiro, cheio de vida, com os lá bios inos e
os olhos azuis constantemente irrequietos.
Kent Wrangel é robusto e tem o rosto corado, usa ó culos e um io de
ouro ao pescoço; també m Lawrence von Thurn é corpulento, tem a
barba grisalha e os olhos injetados de sangue.
– Estamos muito felizes por serem precisamente você s a acreditar
neste projeto – diz DJ. – Porque vai ser um verdadeiro sucesso… E
sabem perfeitamente que o Rex acabou de receber o prestigiado pré mio
«O Cozinheiro dos Cozinheiros»!
– Claro que foi totalmente imerecido – comenta Rex, com um
sorriso.
– A tua – diz James, bebendo um gole.
Os outros dois aplaudem com um sorriso satisfeito. Rex tenta
intercetar o olhar de DJ, sem conseguir.
– Eu só queria explicar… que a razã o pela qual requisitei todos os
telemó veis, inclusive o meu, é que este acordo vai ser uma verdadeira
bomba no nosso ambiente – diz DJ, e volta a encher de whisky os copos
dos trê s homens. – E depois da explosã o tudo será mais complicado e
muito mais caro. Por isso, isto é uma espé cie de dark pool… Quer
decidam fechar o acordo ou abandonar o barco, as minhas condiçõ es
sã o estas: qualquer transmissã o de informaçõ es para o exterior deve
ser adiada, de forma a que quem subscrever o acordo esteja em
condiçõ es de contactar livremente com os principais fornecedores.
– Vai ser uma coisa realmente enorme – exclama Kent, estendendo
as pernas.
– DJ, podes chegar aqui um instante? – diz Rex, em voz baixa,
arrastando o amigo com ele.
– E uma excitaçã o, nã o é ? – sussurra DJ, enquanto entram na sala de
jantar.
– O que é que se passa? Mas que raio é que tu está s a tramar? –
continua Rex. – Nã o tenciono meter-me em negó cios com aqueles
porcos da minha antiga escola.
– Julgava… já que se conhecem… Caramba, nã o podia correr
melhor! Quem é que quer saber se naquela altura eram uns imbecis…
Agora estã o cheios de dinheiro!
Rex abana a cabeça, tentando parecer mais calmo do que na
realidade está .
– Devias ter-me dito antes. Devias ter-me informado.
– Honestamente, é quase impossı́vel fazer negó cios na Sué cia sem
tropeçar em gente que frequentou o Ludviksberg – diz DJ.
Entretanto, apercebe-se de que Kent está a vir ao encontro deles
com dois copos de whisky.
DJ vai ter com ele, pega num copo e acompanha-o outra vez em
direçã o à s poltronas.
Rex ica a observá -los da sala de jantar. Sente uma espé cie de
zumbido na cabeça por causa da agitaçã o, e tenta dizer a si mesmo que
deve fazer um esforço para passar a noite. E preciso resistir ainda
durante algumas horas e depois arranjar uma desculpa para que ele e
Sammy possam regressar a casa cedo na manhã seguinte.
Tenta convencer-se de que está a levar avante aquele negó cio
porque isso é importante. Trata-se de uma forma de consolidar a sua
pró pria situaçã o econó mica, no caso de Sylvia se cansar dele de uma
vez por todas.
Rex ita James Gyllenborg, que está a observar a palma da mã o
atravé s da mira da espingarda. Quem sabe se ainda se lembra do que
fez, pergunta a si mesmo.
Provavelmente, naquela altura, tinha maltratado muitas pessoas;
fazia parte dos privilé gios de gente como ele, mas Rex devia ter sido um
dos poucos a nã o aceitar tudo o que acontecia. Foi-se embora
imediatamente, deixou a escola antes do pequeno-almoço no dia
seguinte e nunca mais voltou.
– Ouçam – começa DJ, batendo palmas para chamar a atençã o. –
Muita gente julga que ir à caça numa reserva é um passatempo de
aristocratas… mas, na realidade, as renas que vivem nesta zona sã o
muito mais esquivas do que as selvagens.
Rex avança em direçã o à porta e depois vai ter com os homens ao
lobby enquanto DJ explica as regras.
– Estive na caça à s renas na Noruega – diz Lawrence, com a sua voz
de baixo. – Ficá mos numa cabana durante oito horas sem disparar um
ú nico tiro.
– Mas aqui estamos a falar de caça errante – diz DJ. – Vamos dividir-
nos em pequenos grupos, tentando surpreender as renas. Estuda-se o
terreno, as pegadas… E mesmo excitante… Para nos aproximarmos
temos de estar em silê ncio absoluto e prestar atençã o à direçã o do
vento.
– E depois nã o temos um plano B – acrescenta Rex, com um grande
sorriso. – Se ningué m abater uma rena, nã o vamos ter nada para
cozinhar… E vamos ter de nos contentar com batatas, esta noite.
97
Meia hora mais tarde, ao fundo da grande escadaria da varanda, DJ
distribui armas e muniçõ es.
– Escolhi uma Remington 700 com a coronha sinté tica – explica, ao
mesmo tempo que lhes mostra uma espingarda de um tom verde-
azulado, com o cano negro sem alça de mira.
– Otima arma – murmura Lawrence.
– James, para ti escolhi uma preparada para canhotos – acrescenta
DJ.
– Obrigado.
– Pesa 2,9 quilos, deves aguentar – diz DJ, a sorrir, erguendo uma
caixa castanha. – Vamos usarcartuchos Holland & Holland .375. Só vã o
dispor de vinte.
Atira a caixa a Rex.
– Portanto, façam boa pontaria.
Pegam todos no equipamento e dã o a volta ao hotel. O cé u está
cinzento e nublado, no ar sente-se cheiro de chuva e um vento
persistente varre os arbustos baixos.
DJ orienta-os ao longo de um caminho que sobe a colina, explicando
que os espera uma caminhada de quarenta minutos para chegar aos
portõ es da reserva e à s manjedouras.
– A reserva tem seiscentos e oitenta hectares no total e compreende
vales com bosques, mas també m montanhas despidas, alguns pequenos
lagos, entre os quais o Kratersjö n, e uma parte da parede escarpada da
montanha, a sul, onde deverã o ter muito cuidado.
A paisagem é ı́ngreme, o ar está fresco e hú mido. O cheiro de
bosque, hera e folhas molhadas é muito forte.
– Está s a divertir-te? – pergunta Sammy, com um ligeiro mas
inconfundı́vel tom de desprezo.
– Isto é só trabalho – responde Rex. – Mas estou contente por tu
estares aqui també m.
O ilho dirige-lhe um olhar incré dulo.
– Nã o pareces nada feliz, pai.
– Eu explico-te mais tarde.
– O quê ?
Rex está quase a confessar que nã o aguenta mais e que quer ir
embora o mais depressa possı́vel, quando DJ chega junto deles. Mostra-
lhes como devem carregar as espingardas e como funciona o gatilho de
pressã o direta e o travã o lateral.
– Tudo bem, Sammy? – pergunta-lhe, com um sorriso.
– Desculpa lá , mas eu realmente nã o percebo qual é o sentido de
disparar à s renas dentro de um recinto… Nã o podem fugir… E como o
Hunger Games, mas sem o direito de se defenderem.
– Percebo o que queres dizer – responde pacientemente DJ. – Mas,
por outro lado… se pensares nas criaçõ es intensivas, isto é muito mais
ecoló gico… Trata-se de uma reserva de trê s milhõ es de metros
quadrados.
Rex observa as costas largas de James e de Kent, de espingarda
pendurada ao ombro. Como se tivesse sentido o seu olhar, James volta-
se e estende-lhe um frasquinho de prata. Rex pega nele e passa-o aos
outros trê s, sem beber.
– Como está a Anna? Estava com melhor aspeto, quando nos
encontrá mos na cerimó nia – diz Kent.
– Cresceu-lhe o cabelo mas, segundo os mé dicos, nã o passa deste
outono – responde James. – Aminha mulher tem cancro – explica a Rex.
– Tê m ilhos?
– Sim… um rapaz de vinte anos, que está a estudar Direito em
Harvard… e uma ilha mais pequena, a Elsa… Tem nove anos… Só quer
estar com a mã e, constantemente, nã o faz mais nada.
O grupo contorna a parte lateral de uma montanha. A paisagem por
baixo deles precipita-se sobre um vale profundo, e à frente a vista
estende-se por quiló metros e quiló metros.
– Amanhã vestimos todos as fardas do colé gio, o que é que dizem? –
brinca Lawrence.
– Meu Deus, que nojo – replica Kent, com um suspiro.
– Que grande chatice, a igreja e os almoços de domingo… Meu Deus,
nã o tı́nhamos sobrevivido sem as pizas de micro-ondas e os grogues de
conhaque.
– Ou sem o Wille, que mandava vir o motorista da famı́lia de
Estocolmo com uma caixa de champanhe – acrescenta Kent, a rir, mas
volta imediatamente a icar sé rio.
– Nã o consigo convencer-me do facto de ele e o Teddy estarem
mortos – diz James, em voz baixa.
98
Jeanette Fleming está no meio do caminho estreito ao lado de uma
planta de lilá s a observar as ilas de pequenas moradias em banda
castanhas do outro lado do parque de estacionamento. O travessã o de
prata entre os seus cabelos curtos cintila ao sol. Veste uma saia justa e
traz uma Glock 26 no coldre debaixo do casaco.
Manté m debaixo de olho, à distâ ncia, os colegas da Polı́cia de
Estocolmo à paisana que tocam à porta de uma casa em mau estado ao
fundo da rua.
Foi ali que a Secçã o Operativa localizou o telefone de Sammy.
O rapaz é provavelmente a ú nica pessoa que sabe onde se
encontram Rex e o spree killer David Jordan.
Os colegas esperam alguns instantes, depois voltam a tocar.
Crianças de bicicleta aproximam-se e uma mulher de burka passa a
arrastar um carrinho de compras.
A porta abre-se e Jeanette vê os polı́cias a falar com uma pessoa.
Entram, e a porta fecha-se atrá s deles.
As persianas da janela da cozinha sã o sacudidas pelo vento.
A ú nica tarefa dos colegas é entrar na casa e veri icar se é segura,
para que Jeanette possa levar a cabo, no local, um rá pido interrogató rio
a Sammy.
No momento em que tinha entrado no seu gabinete, Jeanette
reparara na palidez das faces do seu superior na Sä po, e agora recorda
aquele pormenor. Tinha-se convencido de que Anja Larsson era a chefe
da Secçã o Operativa quando ela lhe tinha ligado a comunicar, com uma
voz severa, que Jeanette Fleming devia ser posta à disposiçã o daquele
serviço, com base nos protocolos de colaboraçã o entre as unidades.
Jeanette tinha-se encontrado com os colegas da Polı́cia de
Estocolmo à entrada da igreja da Luz, perto do centro de Hallunda; uma
vez controlada a ligaçã o via rá dio, ao chegar à s moradias em banda
estacionaram no espaço ao lado das garagens baixas.
Jeanette dá a volta à ila de casas e posiciona-se nas traseiras. Ao
contrá rio dos outros pá tios, este está decididamente abandonado. Por
entre as ervas daninhas altas vê -se um velho grelhador, e sobre a
tijoleira partida estã o abandonadas peças ferrugentas de uma bicicleta.
Do lado de dentro das persianas descidas nã o se vislumbra qualquer
movimento.
Jeanette tira o batom da carteira, compõ e a maquilhagem e pensa
que, apesar de ser uma das melhores psicó logas forenses do paı́s, nã o
consegue entender nada de si pró pria.
Tinha participado numa missã o juntamente com Saga Bauer num
restaurante a sudoeste de Nykö ping.
Jeanette ainda nã o consegue capacitar-se daquilo que aconteceu.
Tinham ido parar a um sı́tio frequentado por prostitutas e pelos
seus clientes, e ela achou-se de repente sozinha numa casa de banho
para de icientes com um buraco na parede.
Nã o acreditava que existisse realmente gente capaz de fazer certas
coisas.
Podia ser uma situaçã o deprimente, ou mesmo có mica, mas a
surpresa e o embaraço tinham-se subitamente transformado numa
profunda seriedade, num desejo inesperado, numa excitaçã o
incompreensı́vel.
A relaçã o anó nima durou no má ximo dois minutos, e Jeanette nem
sequer teve tempo de se arrepender antes de ele se vir. Ficou tã o
surpreendida que disse, ofegante, «Para com isso» e retraiu-se, recuou e
bateu com um joelho no chã o. Lavou a boca e as virilhas e sentou-se na
sanita para deixar escorrer o esperma para fora.
De seguida, icou atordoada durante vá rias horas, e desde entã o
continuou a oscilar entre a convicçã o de ser uma estú pida e uma
estranha sensaçã o de liberdade interior.
Por vezes, quando no decurso da sua vida quotidiana lhe acontece
encontrar-se com homens, frequentemente mais velhos e à s vezes feios
e ordiná rios, é devastada pela vergonha e tem de se afastar com as faces
em chamas.
No entanto, de um ponto de vista moral, aquilo que fez nã o é pior
do que encontrar algué m num bar e ir para a cama com essa pessoa;
nã o é pior do que uma ridı́cula fantasia eró tica, e nã o foi sequer uma
relaçã o sexual propriamente dita.
Perguntou a si mesma se, inconscientemente, nã o teria feito aquilo
para castigar o moralista do ex-marido, que tinha medo até do facto de
ela poder masturbar-se, ou a irmã , que em adolescente era desinibida e
promı́scua e que depois se tornou uma mulher perfeita.
Na realidade, acha que teve necessidade de o fazer por si mesma,
para se poder rede inir em segredo, porque teve aquela possibilidade e
porque aquele ato proibido naquele momento a excitou.
Foi quase uma brincadeira, ou assim pareceu.
Desde entã o, esperou a chegada do mal-estar psicoló gico, de uma
qualquer espé cie de puniçã o, mas só no dia anterior a ansiedade se
apoderou dela e a arrasou.
Dois dias atrá s, como todos os anos, tinha-se submetido ao check-up
mé dico exigido pela Sä po. Mediram-lhe a pressã o e tiraram-lhe sangue,
fez um eletrocardiograma e um controlo da tiroide, e no dia seguinte
entrou no site para veri icar os seus valores em relaçã o aos mé dios.
O mé dico só comentaria os resultados em caso de anomalias.
Inicialmente, Jeanette nã o tinha pensado nisso, mas depois o pâ nico
assaltou-a. Sentada diante do computador, com as credenciais para o
acesso, foi assolada pelo terror de ter contraı́do sida.
A ansiedade retumbava-lhe nos ouvidos, apesar de saber que nã o
tinha passado tempo su iciente para que o vı́rus pudesse ser
identi icado.
Os resultados dos exames, alinhados em coluna no ecrã , eram
incompreensı́veis.
E quando se apercebeu de que o mé dico tinha acrescentado um
comentá rio, o medo toldou-lhe a vista.
Teve de ir à casa de banho lavar a cara com á gua fria antes de
conseguir regressar ao computador.
Mas nada tinha a ver com sida.
O ú nico comentá rio presente sugeria-lhe que reparasse no nı́vel de
HCG no sangue: aquele valor sugeria que estava grá vida.
Ainda lhe custa a acreditar.
Durante oito anos esperou que o marido se sentisse pronto para ter
um ilho, mas depois ele deixou-a. Apó s uma sé rie de encontros que a
desiludiram, decidiu fazer um pedido para inseminaçã o. Duas semanas
atrá s, o tribunal recusara-lho de initivamente, e agora está grá vida.
Jeanette sorri ainda, enquanto atende a chamada de um dos colegas
no interior da casa.
99
Jeanette ajusta a pistola ao ombro e chega à porta decré pita da
pequena casa. O mais jovem dos polı́cias vem abrir antes que ela tenha
tempo de tocar, e manda-a entrar para o hall.
– O Sammy nã o está aqui, só encontrá mos o telemó vel – diz o
homem.
Jeanette passa por cima de um par de botas de borracha estragadas
e vai atrá s do colega até ao interior da casa. No corredor há algumas
molduras encostadas à parede e um rolo de tela para pintura está
abandonado no chã o.
A cozinha tresanda a comida de gato e a urina. O lava-loiça está
cheia de pratos sujos e no chã o de linó leo estã o amontoados sacos com
garrafas de vinho.
Vê -se uma espé cie de obra de arte pendurada no candeeiro de teto:
uma dezena de sapatinhos de criança dentro de uma gaiola de rede
vermelha.
Numa cadeira está sentada uma rapariga que tem vestidos apenas
uns calçõ es de desporto. Tem piercings nos dois mamilos e um sol
cinzento-escuro tatuado por cima do umbigo.
Tem umas olheiras profundas, uma erupçã o cutâ nea na testa e um
antebraço engessado.
No chã o, aos pé s dela, está um homem deitado de barriga para
baixo, com as mã os algemadas atrá s das costas.
– Podem tirar-lhe as algemas? – pergunta Jeanette.
O colega inclina-se ao lado do homem:
– Vais icar mais calmo, agora?
– Sim, porra – geme o indivı́duo no chã o. – Juro-te.
O colega põ e-se de có coras, aperta-lhe um joelho contra as costas e
tira-lhe as algemas.
– Põ e-te direito – diz Jeanette.
O homem levanta-se e massaja os pulsos. També m ele está de
tronco nu: é magro e veste uns jeans rasgados de cintura descida. Ao
longo dos có s das calças veem-se os pelos pú bicos escuros. Tem um
rosto bonito, mas marcado, de uma forma surpreendente, por umas
rugas profundas. Olha para ela com uns olhos apagados, como se
estivesse a recuperar de uma bebedeira.
– Senta-te – diz ela.
– Mas que raio está a acontecer? – pergunta o homem, pondo-se à
frente dela.
No centro da mesa de abas está um smartphone preto.
– E o telemó vel do Sammy? – pergunta Jeanette.
O homem olha para o telefone como se só naquele momento
reparasse nele.
– Nã o sei – diz.
– Porque é que está aqui?
– Imagino que ele se tenha esquecido.
– Quando?
O homem encolhe os ombros e inge re letir.
– Ontem.
O indivı́duo, que se chama Nicolas Barowksi, sorri para si mesmo e
coça a barriga.
– Qual é o có digo? – pergunta Jeanette por im.
– Boh – responde ele com uma voz rouca.
Jeanette observa a gaiola com os sapatinhos pendurada no gancho
do candeeiro.
– Es um artista?
– Sim – limita-se Nico a responder.
– E bom? – pergunta Jeanette, em tom de brincadeira, voltada para
a rapariga.
– E mesmo, a sé rio – responde ela, erguendo o queixo.
– Ningué m quer saber… Nã o vejo diferenças entre a minha arte e os
ilmes checoslovacos com orgias – diz Nico, com um ar sé rio.
– Percebo o que queres dizer – responde Jeanette.
– Preferia fazer um monte de ilmes pornográ icos a pintar a ó leo –
continua ele, esticando-se para ela.
– Está s chocada? – pergunta a rapariga, com uma risadinha.
– Porque é que havia de estar? – responde Jeanette.
– A arte nã o é uma coisa bonita – prossegue Nico. – E suja,
perversa…
– Cé us, també m nã o exageres – interrompe-o Jeanette, ingindo-se
incomodada.
Nico sorri, assente e olha-a nos olhos com um ar malicioso.
– Onde está o Sammy? – pergunta Jeanette.
– Nã o sei, nem quero saber – responde ele, continuando a olhar
para ela.
– Está mais apaixonado pelo Sammy do que por mim – diz a
rapariga, e faz um gesto como que para afugentar de um seio qualquer
coisa que a incomoda.
Jeanette levanta-se e aproxima-se de um iPhone pousado no chã o,
ligado à tomada com um carregador branco. Desliga o cabo, repara na
imagem de Andy Warhol na capa e volta-se para Nico.
– Qual é o có digo?
– E privado – responde ele, a coçar a virilha.
– Entã o vou ter de pedir ajuda à Apple – replica Jeanette, em tom de
brincadeira.
– Ziggy – responde Nico, sem perceber a piada.
Nico senta-se molemente com a mã o entre as pernas e observa
Jeanette enquanto ela liga o telefone e veri ica a lista das chamadas. A
mais recente das recebidas prové m do telemó vel de Rex.
– Foi o Rex Mü ller que te mandou catorze coraçõ es esta manhã ?
– Nã o – responde Nico, a rir.
– Foi o Rex que te ligou ontem?
– Nã o – diz Nico, a olhar para as unhas.
– Portanto, o Sammy ligou-te do telefone do pai – conclui Jeanette. –
O que é que te disse? Falaram durante seis minutos.
Nico dá um suspiro profundo.
– Estava zangado por… por causa de um monte de coisas, e disse
que ia para fora com o pai.
– Para onde?
– Nã o sei.
– Deve ter-te dito – insiste Jeanette, enquanto procura um copo
limpo nos mó veis da cozinha.
– Nã o.
– Estava zangado porque tu lhe roubaste o telemó vel?
Nico agita-se na cadeira e coça a testa.
– També m por isso… Mas disse que o pai estava a tentar que ele se
tornasse hé tero obrigando-o a disparar contra umas renas engaioladas.
– Iam juntos à caça?
– Nã o faço ideia – responde Nico secamente, e depois suspira.
– Fazem isso muitas vezes? Vã o juntos à caça com frequê ncia?
– Nem se conhecem. O pai é um idiota e sempre se marimbou nele.
Jeanette esvazia um copo cheio de pontas de cigarro, pega num
pouco de detergente e começa a lavá -lo com os dedos por baixo da
torneira.
– Que mais é que ele disse? – pergunta.
Nico apoia-se nas costas da cadeira, aperta os lá bios e olha para ela.
– Nada, as coisas do costume – responde depois. – Disse que tinha
saudades minhas, que estava sempre a pensar em mim.
Jeanette manté m o dedo por baixo do jato de á gua, enche o copo e
bebe, depois enche-o outra vez e fecha a torneira.
– Podes icar a ver, enquanto eu dou uma queca à Filippa – diz Nico,
com um tom de voz doce, enquanto afaga o seio esquerdo da rapariga.
– Hoje nã o tenho tempo – replica Jeanette, com um sorriso, depois
pega no telemó vel de Sammy que está pousado em cima da mesa e vai-
se embora.
100
O grupo para ao lado de um banco de pedra em frente ao portã o da
reserva, que tem dois metros de altura. DJ serve café de uma garrafa
té rmica, distribui as chá venas fumegantes e olha para os outros com
um sorriso.
Conseguiu conduzir os quatro ú ltimos para uma armadilha, antes
da carni icina.
Matar o primeiro vai requerer uma certa cautela: terá de o fazer de
forma a que os outros nã o fujam.
Perto do im, já nã o será relevante se perceberem o que está a
acontecer e entrarem em pâ nico.
Todos deverã o sangrar e gritar, e sentir que a morte se aproxima e
olha para eles até chegar o momento de a seguirem.
– Vamos organizar-nos em duas equipas por duas zonas – explica. –
Eu, o James e o Kent somos a equipa um… e vamos mover-nos na zona
um. O Lawrence, o Rex e o Sammy, a equipa dois, na zona dois… Está
toda a gente de acordo?
Entrega os mapas à s duas equipas, indica os limites geográ icos, as
linhas de tiro permitidas e as medidas de segurança.
– Vamos interromper a caçada à s dezassete em ponto, e a essa hora
toda a gente retira os cartuchos. Depois disso, ningué m pode disparar,
nem sequer se vir uma rena pela primeira vez. Esperamos dez minutos
e depois encontramo-nos aqui para regressarmos juntos ao hotel… E
nã o se preocupem com o jantar desta noite – acrescenta. – O Rex
prometeu preparar os melhores hambú rgueres do mundo.
– Trouxemos carne picada – diz Rex.
DJ olha para eles, bebe um gole de café e pensa na maneira como
vai conduzir Kent e James até ao topo da montanha nua e deixá -los
morrer em cima daquelas rochas enormes. O seu plano é avançar do
mesmo lado de Kent. Devem seguir o percurso das renas até ao
des iladeiro, onde vã o descansar antes de prosseguir até ao vale.
De entre os homens do grupo, Kent é o que está em piores
condiçõ es fı́sicas: tem excesso de peso e sofre de hipertensã o. Durante a
pausa, DJ vai cumprimentá -lo pelo novo cargo de chanceler da Justiça,
depois vai extrair a faca de caça, abrir-lhe a parte inferior do ventre
lá cido e obrigá -lo a icar em pé na beira da ravina, dizendo-lhe que ao
im de dezanove minutos o vai empurrar para baixo, e que ele ainda vai
estar consciente e capaz de se aperceber de todos os instantes da
queda.
Os homens estudam os mapas, depois apontam para o terreno e
para as montanhas distantes. Rex pousa a espingarda no banco e afasta-
se alguns passos, transpõ e o fosso e começa a urinar ao abrigo do muro.
– Se abaterem um animal, veri iquem se está morto, parem e
marquem o sı́tio no mapa – recorda DJ. – Os machos maiores chegam a
pesar cento e sessenta quilos e tê m chifres enormes.
– Estou numa excitaçã o – diz Kent.
Sammy sopra na chá vena, bebe um gole de café e limpa o batom do
rebordo com o polegar.
– E para ti, nã o há espingarda? – pergunta Lawrence, a olhar para
ele.
– Nã o quero, aliá s, nem sequer percebo como é possı́vel algué m
divertir-se a matar um animal – responde Sammy, baixando os olhos.
– Chama-se caça – diz Kent. – E uma coisa que já existe há bastante
tempo e…
– E os homens a sé rio gostam disso – conclui Sammy, voltando-se
para DJ. – Gostam de extinguir uma vida… e sã o loucos por armas e
carne e sangue… Mas será que acham isto normal?
– Algué m pode dar uma bofetada a este maricas? – exclama Kent,
com um riso trocista.
DJ olha para Rex: fechou a braguilha e aproxima-se atravé s das
ervas altas, depois transpõ e o fosso e chega junto da mesa de pedra.
Nã o faz a mı́nima ideia de que també m ele é uma presa.
Até à quele momento, Carl-Erik Ritter foi o ú nico que causou
problemas a DJ, como um coelho ferido que consegue esconder-se na
toca.
Quando descobriu que Ritter tinha um tumor no fı́gado e estava a
morrer, teve de mudar completamente o plano.
Foi obrigado a dar prioridade a Ritter porque nã o queria que
morresse sozinho.
O novo plano, elaborado à pressa, previa que DJ o fosse procurar ao
bar e o convencesse a segui-lo até à linha do metro de Axelsberg. DJ
tinha chegado da regiã o de Skå ne de manhã cedo, talvez nã o estivesse
completamente concentrado, e nã o considerou a possibilidade de Ritter
o agredir na praça. Tinha sido obrigado a improvisar para encenar um
acidente. Empurrou-o contra a montra e fê -lo partir o vidro com a nuca,
depois obrigou-o a voltar-se e apertou-lhe a garganta contra a borda
a iada, de forma a que lhe cortasse a jugular.
Apesar de DJ lhe ter fechado as bordas da ferida com os polegares,
Ritter perdeu sangue mais depressa do que o previsto. Morreu em
quinze minutos. Por esse motivo, talvez, cortou-lhe o lá bio com a faca
antes de ele perder os sentidos.
– OK, vamos pô r-nos a caminho – diz DJ, sacudindo a chá vena. – O
cé u a leste está a escurecer e talvez o tempo piore esta noite. Kent e
James, venham comigo, o nosso percurso é um pouco mais longo.
101
Depois de ter subido o monte durante algum tempo, o grupo de Rex
consegue ver distintamente a vegetaçã o em baixo, e o bosque que vai
rareando na subida das encostas para depois desaparecer
completamente.
O des iladeiro estende-se como um sulco hú mido entre o planalto
de Rá kkaslá hku e o monte Lulip Guokkil. Todo o vale que parte da
estaçã o de esqui de Riksgrä nsen se assemelha ao casco de uma enorme
canoa com a proa apontada ao lago Torneträ sk.
Sammy pega nos binó culos, tira as tampas inas de plá stico das
lentes e deté m-se a olhar em volta.
Lawrence observa o mapa e conduz o grupo para a concavidade do
terreno, na zona dois. A reserva de caça inclui apenas uma parte do
vale, ou seja, as encostas orientais para alé m da linha das á rvores, até à
tundra subalpina e ao des iladeiro.
De repente, sã o envolvidos por um silê ncio profundo.
Ouve-se apenas o leve roçar produzido pelo equipamento, os
passos que batem no solo e o vento que sopra por entre as folhas.
O caminho lamacento está coberto de pegadas das botas de outros
caçadores. Os ramos dos mirtilos vermelhos batem-lhes nas canelas.
– Como é que vai isso? – diz Rex, a olhar para Sammy, que lhe
responde com um encolher de ombros.
Por entre os troncos incrivelmente brancos das bé tulas cria-se uma
luz da cor da porcelana. O vale é como uma enorme sala sustentada por
colunas com uma cobertura de tecido ondulante.
– Sabes qual é a altura da neve aqui, de inverno?
– Nã o – responde Sammy, em voz baixa.
– Dois metros e meio – diz Rex. – Olha para as á rvores… Os troncos
sã o todos muito mais brancos até à altura de dois metros e meio.
Nã o obté m do ilho qualquer reaçã o, e depois prossegue com um
tom exageradamente pedagó gico:
– Pois é , está s a ver, a razã o é simples: os lı́quenes negros que
crescem na casca nã o sobrevivem por baixo do manto de neve invernal.
– Por favor, podem icar em silê ncio? – pergunta Lawrence,
voltando-se para eles.
– Desculpa – responde Rex, com um sorriso.
– Você s, nã o sei, mas eu quero caçar, é por isso que estou aqui.
En iam-se pelo meio dos arbustos de empetro-negro e chegam a
uma clareira mais luminosa.
– Na verdade, nem me lembro como se usa uma espingarda de caça
– conta Rex a Sammy. – Tirei o porte de arma quando tinha trinta anos…
Olha, de qualquer maneira, é preciso puxar este carreto para trá s para
se en iar um cartucho novo.
Lawrence para e levanta as mã os.
– Vamos separar-nos – diz, indicando o mapa. – Eu vou descer para
o vale e você s continuam neste caminho… ou entã o podem subir por
este lado.
– Está bem – responde Rex, observando a vereda que conduz à
encosta do monte.
– Você s só podem disparar deste lado… e eu do outro – sublinha
Lawrence.
– Claro – responde Rex.
Lawrence dirige-lhes um gesto de cabeça, abandona o caminho e
avança pelo meio das á rvores, descendo a encosta.
– Vim parar a uma gaiola de macacos enfurecidos – murmura Rex,
itando a faca à cintura.
Prosseguem durante mais algum tempo por aquele caminho, mas
depois começam a desviar-se ao longo da encosta do monte. Param ao
im de meio quiló metro, perto de um enorme bloco errá tico. A pedra,
que parece um palá cio de ardó sia maciça, rolou até à quele ponto depois
da dissoluçã o da calota de gelo.
Encostam-se à pedra e bebem á gua do cantil.
Uma lata de cerveja pisada até se tornar um pequeno disco está
abandonada sobre o terreno enxuto, no meio de algumas pedras
redondas.
Rex põ e os ó culos de leitura, abre o mapa e estuda-o durante alguns
instantes antes de conseguir orientar-se.
– Estamos aqui – diz, indicando o mapa.
– Muito bem – responde o ilho, sem olhar.
Rex pega outra vez nos binó culos para tentar identi icar os limites
da zona. De repente, descobre Lawrence mais em baixo. Rex aumenta a
potê ncia e ita-o atravé s dos binó culos: o rosto, coberto de barba, está
tenso numa expressã o concentrada, e tem os olhos reduzidos a uma
fenda. Avança cautelosamente por entre os arbustos do vale, levanta a
espingarda, a seguir ica completamente imó vel, olha pela mira, depois
baixa a arma sem disparar e afasta-se em direçã o ao muro que dá para
os carris da Malmbanan. Rex continua a segui-lo até ele desaparecer,
aninhando-se no meio dos troncos.
– Vamos continuar para cima – diz Rex.
Prosseguem a subir na diagonal ao longo da escarpa. O terreno é
seco, e as bé tulas baixas sã o cada vez mais raras.
– Logo à noite ajudas-me com os hambú rgueres? – pergunta Rex.
Sammy olha em frente com uma expressã o amuada e nã o responde.
Continuam a caminhar até que descobrem trê s renas ao longe. Os
animais espreitam entre uma mancha de á rvores baixas e algumas
rochas grandes.
Aproximam-se com cautela e, depois de terem dado a volta a um
rochedo quase negro, apanham vento pela frente.
Rex baixa-se, levanta a espingarda e enquadra o exemplar macho
atravé s da mira.
A rena levanta a cabeça com os chifres enormes, observa a tundra,
fareja o ar e endireita as orelhas, depois ica imó vel durante alguns
segundos e inalmente recomeça a comer. Avança lentamente enquanto
pasta.
Subitamente, Rex encontra uma linha de tiro perfeita. E um
exemplar grande e magnı́ ico, de pelo cinzento como bronze e o peito
cor de leite.
O retı́culo em cruz da mira oscila exatamente por cima do coraçã o
do animal, mas Rex nã o tem qualquer intençã o de pousar o dedo no
gatilho.
– Espero que encontres um buraco no gradeamento – murmura, e
repara que a rena está outra veza levantar a cabeça.
As orelhas tremem, inquietas.
Ouve-se um forte estalido no momento em que Sammy pisa um
ramo atrá s de Rex. O animal reage imediatamente e foge em direçã o ao
limite do bosque.
Rex baixa a espingarda e cruza o olhar de desa io de Sammy, mas
em vez de se zangar sorri.
– Nã o tencionava disparar – explica.
Sammy encolhe os ombros e continuam os dois atravé s do campo,
subindo ao longo da encosta do monte. Há excrementos dispersos por
entre as lores silvestres. O cé u está mais escuro por cima do Lulip
Guokkil e o vento tornou-se notoriamente mais frio.
– Vai começar a chover – diz Rex.
Continuam a subir e chegam a uma pequena zona plana:
encontram-se numa espé cie de charneca que se estende até à s encostas
escuras e ı́ngremes das montanhas.
– Podes segurar-me na espingarda para eu…
– Nã o quero – riposta Sammy.
– Nã o precisas de icar zangado comigo.
– Agora estou a incomodar-te? Ou sou demasiado chato para os
teus gostos?
Rex nã o responde. Limita-se a fazer um sinal para a frente e a
seguir um trilho que passa por entre dos arbustos densos.
Pensa no seu problema de alcoolismo, em tudo aquilo que estragou,
e está cada vez mais convencido de que nunca mais vai conseguir
reconquistar a con iança de Sammy. Talvez, pelo menos, possa
encontrar-se com ele de vez em quando no restaurante, só para ver
como é que ele está ou para lhe perguntar se, de alguma forma, precisa
de ajuda.
O vento é cada vez mais frio. As folhas secas soltam-se dos arbustos
e voam. O pó levanta-se do chã o.
– Vamos grelhar uns hambú rgueres de trezentos gramas – diz. –
Vamos cortar um pã o caseiro, juntamos umas fatias de queijo de
Vesterhav, ketchup Stokes, mostarda de Dijon… um monte de rú cula,
duas fatias de bacon… pepinos salgados e condimentos à parte…
Depois de terem passado por uma enorme formaçã o rochosa, Rex
sente as primeiras gotas de chuva. O vento intenso faz tremer as ervas,
e parece que animais invisı́veis as atravessam a correr.
– Depois vamos fritar em azeite umas batatas cortadas muito inas
– continua. – Com pimenta preta, e um monte de sal grosso…
Rex avista à distâ ncia um regato que se precipita por entre salpicos
de espuma pela encosta de um monte, e entã o deté m-se. Nã o se lembra
de o ter visto assinalado no mapa, por isso volta-se para pedir uma
opiniã o a Sammy, mas o ilho desapareceu.
– Sammy? – chama em voz alta.
Volta atrá s até ao outro lado da rocha e vê a vereda que desce ao
longo da encosta deserta. As á rvores baixas e os arbustos tremem ao
vento.
– Sammy – grita. – Sammy!
Acelera o passo e olha em volta. Para sul, na direçã o do Lulip
Guokkil, rebentou um violento temporal, e a chuva parece uma cortina
de arame. O vento tornou-se mais intenso, e a tempestade vai chegar a
eles em breve. Rex apressa-se a descer ao longo da encosta. Mais acima,
algumas pedras separam-se do chã o e rolam em direçã o a ele.
– Sammy?
Rex perscruta a encosta da montanha, abandona a vereda e
recomeça a subir. Trepa o mais depressa que pode, ica sem fô lego e as
coxas começam a arder-lhe por causa do á cido lá tico. Transpira
copiosamente e precisa de limpar o rosto. Entretanto, caminha
seguindo o leito seco de um riacho e tropeça numa pedra.
A depressã o está bloqueada por arbustos densos. Rex tem a
sensaçã o de descortinar algué m a esconder-se atrá s de uma pedra mais
alta, por isso afasta-se para o lado.
Continua por uma abertura entre os ramos, baixa a cabeça, mas nã o
consegue evitar um arranhã o na face. A espingarda que traz à s costas
ica presa na vegetaçã o densa, por isso decide abandoná -la. A arma ica
pendurada num ramo, e está ainda a oscilar nas suas costas quando Rex
escorrega e cai para a frente, estica uma mã o para travar a queda e
levanta os olhos.
Nesse instante descobre James ao longe, no alto, entre duas
grandes massas rochosas. Vê -o apontar a espingarda na sua direçã o e
fazer pontaria.
Rex levanta-se, endireita as costas e semicerra os olhos, mas à quela
distâ ncia nã o consegue perceber o que James está a fazer. O re lexo do
sol sobre a lente da mira atinge-lhe os olhos, e entã o levanta a mã o para
se fazer notar.
Vê o relâ mpago amarelo e logo a seguir ouve o tiro.
Rex vacila e ouve o eco ressoar na encosta da montanha. Os
arbustos atrá s dele sã o atravessados por um rumor, alguns ramos
quebram-se, depois ouvem-se os ruı́dos surdos de alguma coisa a cair
ao chã o.
Da sua posiçã o elevada, James aproxima-se a correr, curvado,
depois ajoelha-se e faz pontaria outra vez.
Rex volta-se e descobre uma grande rena. Está a tentar levantar-se,
o sangue sai-lhe em golfadas do peito. O animal está sem forças, volta a
cair de lado e enterra-se no meio dos grandes arbustos. Sacode as patas,
enquanto os grandes chifres se prendem nos ramos mais densos e o
pescoço ica torcido de uma forma estranha.
O animal bufa e muge, luta para se levantar esticando o pescoço.
Ouve-se outro disparo, e a enorme cabeça é empurrada para trá s,
enquanto o corpo cai ao chã o a tremer.
James desce a correr pela encosta em direçã o a Rex e ao animal.
Algumas pedras movem-se em volta dos seus pé s e começam a rolar.
– O que é que está s a fazer, caraças? – grita Rex. – Ficaste
completamente doido?
Sente a agitaçã o crescer na sua pró pria voz, mas nã o consegue
controlar-se. James para, com a respiraçã o ofegante; tem as pupilas
dilatadas e o lá bio superior coberto de suor.
– Enlouqueceste? – repete Rex.
– Abati uma rena – limita-se James a responder.
– Podias ter atingido o meu ilho – grita Rex, levantando uma mã o.
– Você s estã o na minha zona – replica James, com indiferença.
Uma rajada de vento atinge-os, depois começa a cair uma chuva
intensa. As copas do bosque de bé tulas começam a farfalhar, e as gotas
abatem-se no chã o ao longo da encosta do monte.
Quando a chuva começa a cair sobre eles, um estrondo
ensurdecedor propaga-se pelo cé u. Voltam-se ambos.
Por cima das suas cabeças, um foguete de sinalizaçã o vermelho
atravessa as nuvens de temporal. Vira de lado e depois cai lentamente,
quase como se estivesse a desaparecer no fundo de um mar opaco.
102
O temporal alcançou-os e o vento agride-os com rajadas violentas e
bá tegas ofuscantes de chuva.
Quando chegam ao ponto de onde partiu o foguete, Rex descobre o
ilho. Está sentado e encolhido contra o tronco de uma á rvore
juntamente com DJ. As roupas de caça de ambos estã o completamente
encharcadas e a chuva escorre-lhes pelas faces.
– Sammy – grita Rex, a correr em direçã o ao rapaz. – O que
aconteceu? Desapareceste, e eu…
– Escuta – diz DJ, levantando-se. A á gua escorre-lhe da barba loira
pelo casaco e tem os olhos azuis injetados de sangue. – Houve um
acidente… O Kent morreu, caiu no des iladeiro… – Mas o que é que tu
está s a dizer? – grita James, debaixo da chuva torrencial.
– Morreu – grita DJ. – Nã o há mais nada a fazer.
O temporal muda de direçã o, empurrado pelas rajadas intensas. As
roupas dos homens do grupo incham e abanam em volta dos corpos.
– O que é que aconteceu? – pergunta Rex, ofegante.
– A beira é muito perigosa – diz DJ, com os olhos brilhantes. – Se
calhar nã o viu o precipı́cio…Talvez atravé s do mapa nã o tivesse
percebido onde se encontrava.
– Sammy! – exclama Rex. – Desapareceste…
O ilho olha para ele e depois volta a virar a cabeça.
– Caiu – diz o rapaz, com um io de voz.
– Viste-o?
– Está lá em baixo – indica.
Rex e James aproximam-se cautelosamente da beira e olham para
baixo. A chuva desliza-lhes ao longo do pescoço e pelas costas abaixo,
en iando-se nas calças.
– Tenham cuidado – avisa DJ atrá s deles.
No meio da chuva intensa é difı́cil perceber onde acaba o terreno.
Aproximam-se lentamente da beira e veem abrir-se o des iladeiro
profundo. O vento agarra a roupa de James, fazendo-o a vacilar uns
passos para a frente antes de recuperar o equilı́brio.
Rex avança com prudê ncia, tenta encontrar um equilı́brio está vel
com as botas e agarra-se aos arbustos compactos para se debruçar
sobre a beira.
A princı́pio nã o vê nada. Semicerra os olhos e limpa a chuva que lhe
escorre pelo pescoço. O seu olhar percorre á rvores, pedras, troncos e
arbustos. Depois descobre Kent. O corpo jaz a cerca de quarenta e cinco
metros mais abaixo, ao lado da parede do precipı́cio.
– Ainda se mexe – grita James, ao lado dele. – Vou descer até lá
abaixo, tenho de conseguir.
Rex pega nos binó culos, mas para poder levá -los aos olhos tem de
largar o arbusto. Afasta-se de lado sobre a rocha e encosta os binó culos
ao rosto.
O precipı́cio ı́ngreme di iculta-lhe a visã o. Aproxima-se, debruça-se
e descobre uma massa esverdeada. Subitamente, o terreno move-se
debaixo dos seus pé s. Rex agarra-se aos ramos e cai para trá s ao mesmo
tempo que uma placa de musgo e terra comprimida desliza para alé m
da margem e se precipita no des iladeiro.
– Meu Deus – murmura.
O corpo treme-lhe de susto e o seu coraçã o bate ainda loucamente
quando ergue de novo os binó culos, se estica para a frente e regula a
focagem. Apesar de a á gua escorrer sobre as lentes, agora vê
claramente o corpo.
No ponto em que se abateu, e um pouco mais acima, o sangue já foi
quase completamente apagado pela chuva.
Kent está entalado numa fenda: o pescoço deve ter-se partido, uma
vez que a cara está virada para trá s, e tem uma perna dobrada para
cima num â ngulo pouco natural.
Está seguramente morto.
– Temos de chamar um helicó ptero de socorro – grita James, com os
olhos reduzidos a duas issuras sombrias devido ao pâ nico.
– Morreu – diz Rex, e baixa os binó culos.
– Vou descer.
– E demasiado perigoso – grita DJ atrá s deles.
– Vai à merda – murmura James, e depois agacha-se junto da beira.
Lawrence chega, ofegante. Tem os ó culos molhados e fez uma ferida
ao bater em alguma coisa: o tecido pesado das calças está ensopado de
sangue à altura da coxa. Na sua densa barba grisalha en iaram-se
agulhas e minú sculos ramos.
– O que é que aconteceu? – pergunta, arquejante, tentando tirar a
á gua dos olhos.
– O Kent caiu no precipı́cio – responde James.
– E grave?
– Está morto – diz DJ.
– Nã o podemos ter a certeza – grita James, dominado por uma
grande agitaçã o.
– Nã o pode ter sobrevivido à queda – explica DJ a Lawrence,
indicando o precipı́cio.
– Está morto – con irma Rex.
– Cala-te – grita histericamente James.
– Ouçam – diz DJ, levantando a voz. – Vamos regressar ao hotel e
pedir ajuda.
Lawrence afasta-se a abanar a cabeça, senta-se numa pedra com a
espingarda em cima dos joelhos e manté m o olhar ixo à sua frente.
James continua imó vel, com os lá bios pá lidos da raiva e do choque.
– Eu sabia – murmura de si para si.
– Mas agora já nã o podemos fazer nada por ele – diz DJ. –
Precisamos de um telefone.
Rex aproxima-se do ilho e põ e-se de có coras à frente dele, cruzando
inalmente o seu olhar.
– Vamos regressar ao hotel – diz-lhe com ternura.
– Sim, obrigado – murmura Sammy, assentindo.
DJ tenta chamar os outros dois homens à razã o, mas eles nã o lhe
respondem.
– Eu percebo que parece uma coisa terrı́vel abandoná -lo lá em baixo
– prossegue. – Mas temos de pedir ajuda o mais depressa possı́vel.
Sammy levanta-se e Rex ampara-o. DJ indica-lhes a direçã o que
devem seguir para se afastarem do precipı́cio, e entã o pai e ilho
começam a andar.
– Venham – grita DJ. – Com certeza que nã o queremos que haja mais
dois acidentes.
Os dois homens olham para ele, depois começam a caminhar
lentamente. O grupo desloca-se ao longo da encosta do monte e desce
na diagonal para o vale, em direçã o ao hotel e ao Torneträ sk.
– Que caraças, isto é uma loucura – diz James.
A chuva continua a cair com força e a roupa pesa-lhes no corpo.
– Nã o podemos ir para casa? – diz Sammy.
– Lamento muito que tu tenhas sido forçado a assistir a um episó dio
do gé nero – desculpa-se Rex, e volta-se para os outros.
Vê os trê s homens no meio da cortina de chuva. Em cada fosso ou
depressã o formam-se poças, e o terreno parece ferver. As pedras,
atingidas com violê ncia pela chuva, parecem envolvidas por uma densa
luz branca.
– Cuidado para nã o escorregares – diz Rex a Sammy.
– Eu vi-o cair – sussurra o ilho. – Cheguei pelo lado… Aconteceu
antes de começar a chover, tã o depressa que… Caraças, nã o percebo.
– Era melhor nã o ter vindo à caça – diz Rex, sentindo a garganta
apertar-se-lhe com uma intensa angú stia. – Eu acho sempre que tenho
de fazer um monte de coisas, mas nã o sou caçador, e devia ter deixado
isso bem claro desde o inı́cio.
– Es demasiado simpá tico – diz Sammy, com um tom de voz que
denota um grande cansaço.
– Devı́amos ter esperado no hotel – prossegue Rex, afastando um
ramo. – Ficá vamos ali a cozinhar, como tu querias.
– A mã e disse-me que eu nã o estava nos vossos planos, aliá s…
– Escuta – diz Rex. – Eu era incrivelmente imaturo quando nos
conhecemos. Nã o tinha nenhum projeto de ser pai, e era como se
tivesse começado a viver naquela altura.
– Querias que a mã e abortasse? – pergunta o ilho.
– Sammy, tudo mudou quando eu te vi… quando percebi realmente
que tinha um ilho.
– A mã e sempre tentou convencer-me de que tu gostas de mim, mas
que nã o o consegues demonstrar.
– Sempre repeti para mim mesmo que ia estar sempre ao teu lado
nos momentos difı́ceis, mas nunca o iz – diz Rex, engolindo em seco
com di iculdade. – Nunca estive perto de ti.
Fica em silê ncio, porque sente que a sua voz está prestes a quebrar-
se. Tenta ganhar fô lego e recuperar a calma.
– Quero que a tua mã e aceite o lugar em Freetown e que tu venhas
viver comigo, a sé rio… Como é justo que seja – acrescenta por im.
– Eu sei desenrascar-me sozinho – rebate Sammy.
Rex deté m-se e tenta olhar o ilho nos olhos.
– Sammy – diz. – Tu sabes que eu gosto imenso de te ter em casa
comigo, nã o sabes? Já deves ter dado conta disso. Foram os melhores
momentos da minha vida: quando cozinhá mos juntos, quando tocá mos
guitarra…
– Pai, nã o é s obrigado… – replica Sammy.
– Mas eu gosto muito de ti – prossegue Rex, com a voz a tremer. – Es
meu ilho, sinto-me orgulhoso de ti e é s a ú nica coisa no mundo que me
importa realmente.
103
Todo o vale que desce para o Torneträ sk desapareceu debaixo da
chuva. E quase como se a igreja e o velho cemité rio dos operá rios do
caminho de ferro nunca tivessem existido: o mundo é um espaço
cinzento desprovido de profundidade.
Rex e Sammy tê m a roupa encharcada e gelada quando inalmente,
atravé s da chuva densa, vislumbram os contornos do hotel iluminado.
DJ, James e Lawrence já os ultrapassaram há bastante tempo, ao
nı́vel do portã o da reserva. Os trê s homens tinham ido à frente, a um
ritmo regular, e desapareceram ao longo da vereda alagada.
A meio do caminho, Sammy fez uma entorse. O pé inchou-lhe, e na
ú ltima parte do trajeto foi a mancar, apoiando-se ao ombro de Rex.
– Pai, espera – diz Sammy, parando ao pé da escadaria da varanda.
– Dó i-te?
– Nã o é isso… Preciso de te dizer uma coisa, antes de entrarmos…
Eu vi o Kent a cair, mas na verdade pareceu-me que saltou.
– Se calhar foi isso – diz Rex.
– E mais uma coisa… Apesar de eu só o ter visto durante um
segundo antes de desaparecer…Tive tempo de ver o lenço vermelho a
levantar-se no ar.
– Mas…
– Nã o tinha lenço nenhum, pois nã o?
Sobem as escadas em silê ncio, atravessam a entrada e chegam ao
lobby amplo a tentar perceber como tinha sido possı́vel que Kent
estivesse a sangrar antes de cair.
Se calhar aproximou-se do precipı́cio e disparou contra ele mesmo,
pensa Rex.
No chã o de pedra do lobby notam-se as pegadas molhadas dos
outros. As espingardas e o resto do equipamento foram abandonados
em cima da mesa, em frente à lareira.
DJ está no lobby a levantar as almofadas dos sofá s e das poltronas.
– Pediram ajuda? – pergunta Rex.
DJ observa-o com um olhar sombrio.
– Os telemó veis desapareceram – murmura.
– Nã o, deixá mo-los na receçã o – replica Rex.
– Nesse caso, devem ter caı́do – diz DJ, en iando-se atrá s do balcã o.
– Há mais hó spedes no hotel, para alé m de nó s? – pergunta Sammy.
Rex abana a cabeça e, com um arrepio, vira-se para a janela. A
chuva bate nos painé is e escorre ao longo das janelas.
– O que é que fazemos? – pergunta Sammy.
– Tu vais ter de vestir uma roupa seca – diz Rex.
– Ah, isso sim, isso resolve todos os problemas – replica Sammy, e
dirige-se ao quarto.
– Aqui nã o estã o – murmura DJ, enquanto procura no meio das
folhas de registo.
– Nã o temos um telefone ixo? – pergunta Rex.
– Nã o… e para os computadores é precisa uma password – diz DJ,
com um io de voz.
– Eu tenho um iPad na mala – exclama Rex, lembrando-se de
repente. – Achas que há alguma ligaçã o à Internet, aqui?
– Tenta – diz DJ, continuando a procurar debaixo do balcã o.
– OK – suspira Rex, e depois olha na direçã o em que Sammy
desapareceu.
DJ para e observa-o.
– E por causa do Sammy?
– Eu estou a esforçar-me o mais possı́vel, eu… é uma confusã o de
emoçõ es, mas percebo que para ele seja difı́cil con iar e acreditar que,
sem mais nem menos, eu decidi ser pai dele, ao im de todos estes
anos… Vou ser para sempre apenas aquele que o enganou.
Rex ica em silê ncio, depois percorre o corredor e desabotoa o
casaco enquanto se dirige à suı́te.
Quando abre a porta, parece-lhe ouvir algué m a respirar fundo.
Talvez seja o vento que cria uma espé cie de baixa pressã o em certos
aposentos, pensa, enquanto tira as botas na entrada escura.
Atravessa a passagem estreita e entra na sala, depois despe o
casaco e atira-o ao chã o. Apercebe-se entã o da presença de um homem,
no canto, atrá s do candeeiro de pé .
O abat-jour cor de tabaco esconde o rosto do intruso, mas a luz
té nue re lete-se sobre a lâ mina tré mula de uma faca de caça.
– Fica onde está s – ordena uma voz atrá s dele.
Rex volta-se. James Gyllenborg tem a espingarda de caça apontada
a ele.
– Nada de movimentos bruscos – diz. – Deixa-me ver as tuas mã os,
devagar.
– O que é que você s estã o…
– Eu dou-te um tiro. Dou-te um tiro na cara – grita James.
Rex mostra-lhe as mã os vazias, a tentar perceber o que está a
acontecer.
– Mata-o – sussurra Lawrence, do canto atrá s do candeeiro.
– Onde está a tua espingarda? – pergunta James, avançando com o
cano da arma em direçã o a ele.
– Deixei-a no bosque – responde Rex, e entretanto tenta parecer o
mais calmo possı́vel.
– E a faca? – sibila Lawrence. – Onde está a faca?
– No cinto.
James avança um passo e observa-o com um olhar alucinado.
– Abre a ivela e atira-a ao chã o.
– Dá -lhe mas é um tiro – sibila o outro, a bater com os pé s no chã o
de impaciê ncia.
– Estou a desapertar a ivela – diz Rex, com prudê ncia.
– Se izeres alguma coisa estranha, morres – adverte-o James,
encostando-lhe a espingarda ao ombro. – Juro que te dou um tiro. Estou
mesmo com uma grande vontade de te dar um tiro.
– Foi ele que matou o Kent – diz Lawrence, em voz mais alta.
– Nã o façam disparates – implora Rex.
– Cala a boca – berra James.
Rex desaperta a ivela, e o peso da faca faz sair o cinto das presilhas,
arrastando-o para o chã o ao longo da sua perna.
– Empurra-a para mim – ordena James.
Rex dá um pontapé à faca, que no entanto rola sobre a alcatifa
apenas um metro antes de parar.
– Outra vez – diz James, bruscamente.
Rex avança com calma e dá um pontapé à faca, que vai parar ao
lado da poltrona.
– Volta para trá s e ajoelha-te – diz James.
Rex obedece: recua alguns passos e põ e-se de joelhos.
– Dispara já – repete Lawrence. – A direito, na testa.
– Parece que você s estã o convencidos de que eu tenho alguma coisa
a ver com a morte do Kent – começa Rex.
James dá um salto em direçã o a ele e atinge-o no rosto com a
coronha da espingarda, que lhe bate por cima da sobrancelha esquerda.
Rex sente um choque ao longo do pescoço e, durante alguns
segundos, a vista ica ofuscada. Depois cai de lado, com a ferida a arder
e a latejar.
– Estavas na nossa zona – grita James, encostando-lhe o cano à
tê mpora. – Eu dou-te um tiro, percebes? Nã o quero saber do que é que
vai acontecer…
– Dispara, imediatamente! – grita Lawrence, com uma voz
cavernosa.
– Andava à procura do Sammy – geme Rex.
– Onde raio estã o os nossos telefones? – pergunta James,
empurrando-lhe a arma contra a cabeça com mais força.
– Nã o sei, nã o lhes toquei – responde Rex rapidamente. – Mas tenho
um iPad na mala, ao pé da cama, podemos mandar um pedido de
socorro.
– Cala a boca – vocifera James. – Sabes perfeitamente que nã o há
rede aqui…
A porta do corredor abre-se e algué m entra, detendo-se no
pequeno vestı́bulo.
– Pai? – diz Sammy, voltado para a suı́te na penumbra.
– Vai chamar o DJ – grita Rex, antes de ser atingido por uma
segunda pancada.
Cai de costas, levanta a cabeça e apercebe-se de que Lawrence já
chegou à entrada.
– Sammy – diz Rex, arquejante.
Lawrence agarra o rapaz pelos cabelos, arrasta-o com ele por cima
das botas e dos sapatos e agride-o no rosto com o cabo da faca. Depois
empurra-o para o chã o, de barriga para baixo, encavalita-se em cima
dele, vira-lhe a cabeça para trá s e encosta-lhe a lâ mina ao pescoço.
James está com a respiraçã o ofegante, fecha a boca e humedece os
lá bios antes de se pô r de pernas abertas sobre Rex, apontando-lhe a
espingarda à testa.
– Já chega – diz. – Percebeste? Já chega, acabou. Nã o podes acertar
as contas vingando-te, nã o podes mudar nada.
O cano vibra terrivelmente e James trava-o apertando-o contra o
rosto de Rex.
– Nã o sabı́amos o que está vamos a fazer – prossegue James. –
Aconteceu e pronto. Mas percebemos que errá mos. Nã o é ramos má s
pessoas, mas apenas uns estú pidos.
– Nã o tens de pedir desculpa – grita Lawrence, voltado para James.
– O que foi que você s izeram? – pergunta Rex, arquejante.
– Estou a dizer que eu sozinho nunca teria violado ningué m… mas
aquilo nã o era eu, era o Wille… E toda aquela escola do caralho fazia de
conta que nã o se passava nada, nó s sabı́amos, ningué m se importava
com aquilo que nó s fazı́amos na Toca do Coelho.
– Está s a falar da Grace – diz Rex.
– Dispara, já ! – vocifera Lawrence.
James faz rodar a espingarda e atinge repetidamente Rex no rosto,
arrancando-lhe um gemido. A cada pancada, o quarto desaparece da
sua vista, depois volta a aparecer desfocado para desaparecer outra vez,
logo a seguir.
– Pai!
Rex ouve os gritos de Sammy antes de ser atingido novamente, mas
é como se tudo estivesse a acontecer noutro mundo. Dó i-lhe a boca e
um olho.
Está a enterrar-se nas trevas, tenta resistir, mas perde os sentidos.
Quando acorda, a cabeça rebenta-lhe de dor. Tem o rosto coberto de
sangue pegajoso e as feridas ardem-lhe. Como num sonho, vê os dois
homens a rasgar tecido e a amarrar-lhe os braços atrá s das costas.
Ouve-os remexer-lhe na mala e percebe que andam atrá s dos
telemó veis.
104
Quatro agentes de segurança da Timberline Knolls Residential
Treatment Center levaram Saga Bauer até ao portã o, onde icaram à
espera do carro da Polı́cia. Contaram a histó ria da intrusã o aos polı́cias
que tomaram conta dela.
Saga deixou-se cair num banco na cela da decré pita esquadra da
Polı́cia de Lemont, sem poder falar com ningué m.
De tarde, transferiram-na para uma sala de interrogató rios sem
janelas. Nã o foi ainda autorizada a fazer telefonemas, mas uma agente
tomou nota, com uma paciê ncia eivada de sarcasmo, de todos os nomes
e contactos que Saga lhe referiu.
Ao im da tarde, emergiu mais claramente a possibilidade de ela
estar a falar verdade, e entã o os polı́cias envolveram o FBI no processo.
No entanto, como o quartel-general de Roosevelt Road já estava
fechado, levaram-na outra vez para a cela e puseram-na a dormir em
cima de um colchã o de espuma.