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© Ewa-Marie Rundquist

Lars Kepler é o pseudónimo de uma dupla de escritores de sucesso na


Suécia: Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril. O Hipnotista,
primeiro volume da saga, alcançou um enorme sucesso internacional e foi
adaptado ao cinema pela mão do realizador Lasse Hallström. Depois de
cinco volumes, chega agora O Caçador.
Para mais informações sobre os autores, visite o site
www.larskepler.com
O caçador
Lars Kepler
Publicado em Portugal por
Porto Editora
Divisã o Editorial Literá ria – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt
Tı́tulo original:
Kaninjägaren
© 2016, Lars Kepler
Traduçã o: Regina Valente
Design da capa: Hummingbirds
Imagens da capa: Love Lanné r
1.ª ediçã o em papel: abril de 2018

ISBN 978-972-0-68802-6
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E de manhã cedo e a á gua imó vel da baı́a brilha como aço polido. As
moradias luxuosas estã o todas ainda profundamente adormecidas, mas
as luzes das piscinas e dos lampiõ es de jardim escoam-se atravé s dos
gradeamentos altos e dos ramos das á rvores.
Um bê bedo com uma garrafa de vinho na mã o percorre a estrada
ao longo da praia. Para diante de uma casa branca com uma longa
varanda voltada para a baı́a. O homem pousa a garrafa com extrema
cautela no meio da rua, depois salta o fosso, trepa as grades de ferro
forjado e introduz-se no jardim.
Atravessa o relvado a cambalear e deté m-se a observar as grandes
janelas, o re lexo das luzes da varanda e as formas indistintas dos
mó veis no interior.
Continua a andar em direçã o à casa, dirige uma saudaçã o a um
anã o de jardim em loiça com meio metro de altura e contorna uma
vedaçã o. Escorrega na borda da piscina e bate com o joelho no chã o,
mas depois recupera o equilı́brio e levanta-se.
A á gua da piscina cintila como um bloco de vidro azul.
O homem para na beira, a oscilar, abre o fecho-é clair das calças e
começa a urinar para a piscina, depois afasta-se a arrastar os pé s até
aos mó veis de exterior azuis e aponta o jato para as almofadas, as
espreguiçadeiras e a mesa redonda.
A urina emana vapor no ar frio.
O homem volta a fechar a braguilha e vislumbra um coelho branco
a saltar atravé s do relvado para depois desaparecer debaixo de um
arbusto.
Regressa em direçã o à casa, a sorrir, e passa junto das portas da
varanda. Apoia-se à vedaçã o, desce para o relvado, estaca e volta para
trá s.
O seu cé rebro obnubilado tenta perceber aquilo que acaba de ver.
Um ser de rosto disforme e vestido de negro estava a olhar para ele.
Nã o consegue perceber se era dentro da casa escura ou se estava a
observá -lo do exterior, re letido nos vidros.
1
Sexta-feira, 26 de agosto
Uma chuva ligeira cai lentamente do cé u escuro. A claridade difusa
do centro da cidade ergue-se até cerca de trinta metros acima dos
telhados. Nã o está vento e as gotas iluminadas formam uma espé cie de
cú pula sobre Djursholm.
Em frente à baı́a de Germaniaviken, ergue-se uma imponente
moradia virada para a á gua imó vel.
Neste preciso instante, no interior da casa, uma jovem mulher
avança circunspecta como um animal selvagem sobre o parquet
envernizado, aproximando-se do tapete persa.
O seu nome é So ia Stefansson.
A apreensã o leva-a a registar todos os detalhes.
No braço de um sofá está um comando preto. Algué m ixou a tampa
das pilhas com ita adesiva. Em cima da mesa, veem-se ligeiras marcas
redondas de copos. Um velho penso rá pido icou colado à s franjas do
tapete.
O chã o atrá s de So ia range, como se algué m a seguisse de divisã o
em divisã o.
No caminho hú mido da chuva, salpicos de á gua molharam-lhe os
saltos altos e as pernas musculosas. Ainda tem pernas de atleta, apesar
de ter deixado de jogar futebol há dois anos.
Sem que o homem que está à espera dela o consiga ver, aperta na
mã o um spray de pimenta. Repete para si mesma que foi ela que se pô s
naquela situaçã o, que está tudo sob controlo, que está ali porque quer.
O homem que lhe abriu a porta parou ao lado de uma poltrona e
segue-a com o olhar, sem qualquer embaraço.
So ia tem um rosto de traços simé tricos, mas as faces sã o ainda
bochechudas como as de uma menina. Traz um vestido azul forte que
lhe deixa os ombros a descoberto. Uma ila de pequenos botõ es
forrados desce-lhe da base do pescoço até ao meio dos seios. O coraçã o
de ouro pendurado na pequena corrente salta-lhe na cavidade da
garganta, ao ritmo do batimento acelerado do coraçã o.
Sabe que pode pedir desculpa, explicar que nã o se sente bem e que
seria melhor voltar para casa. Isso era bem capaz de o irritar, mas teria
de aceitar.
O homem ao lado da poltrona observa-a com um olhar carregado de
um desejo melancó lico que lhe fecha o estô mago de medo.
De repente, tem a sensaçã o de já o ter visto antes; podia ser um dos
diretores do trabalho, ou entã o o pai de algum colega de escola de há
muito tempo.
So ia ica a uma certa distâ ncia, sorri e sente o coraçã o bater
depressa. Nã o tenciona aproximar-se mais até ter decifrado o tom da
sua voz e os seus movimentos.
A mã o com que o homem aperta o encosto da poltrona nã o cria
suspeitas de uma ı́ndole violenta: as unhas estã o bem tratadas e a
aliança simples está gasta ao im de anos e anos de casamento.
– Bela casa – diz So ia, ao mesmo tempo que afasta do rosto uma
madeixa de cabelos brilhantes.
– Obrigado – responde o homem, levantando a mã o da poltrona.
Nã o pode ter muito mais de cinquenta anos, mas os seus
movimentos sã o pesados e resignados, como os de um idoso numa casa
tã o velha quanto ele pró prio.
– Vieste de tá xi? – pergunta, engolindo ostensivamente em seco.
– Sim.
Ficam em silê ncio. Na sala ao lado, o reló gio dá duas pancadas
rá pidas com um tinido ligeiro.
Um pó cor de açafrã o cai sem fazer ruı́do de um lı́rio que loresce
numa jarra.
So ia depressa percebeu que se excita em situaçõ es de grande carga
eró tica. Gosta de ser admirada e de experimentar a sensaçã o de ser a
escolhida, mas nunca se apaixonou verdadeiramente por ningué m.
– Já nos conhecemos? – pergunta.
– Eu lembrar-me-ia – responde o homem, com um sorriso
desprovido de alegria. Tem um cabelo loiro acinzentado, ralo e
penteado para trá s. O rosto lá cido é ligeiramente brilhante e uma ruga
profunda atravessa-lhe a testa.
– Es um colecionador? – pergunta So ia, apontando em direçã o a
uma parede.
– Interesso-me por arte.
Os seus olhos claros observam-na por trá s dos ó culos de massa. Ela
vira-se e deixa cair o spray dentro da carteira, depois aproxima-se de
um grande quadro com uma moldura dourada.
O homem vai ter com ela. Para demasiado perto da rapariga, a
respirar pelo nariz. Quando levanta a mã o para lhe mostrar um dos
quadros, So ia estremece.
– Sé culo dezanove… Carl Gustaf Hellqvist – explica. – Morreu jovem.
Teve uma vida difı́cil, era muito doente e tentaram curá -lo com choques
elé tricos… Mas era um pintor extraordiná rio.
– Fascinante – responde ela, em voz baixa.
– Eu també m acho – diz o homem, ao mesmo tempo que se dirige
para a sala de jantar.
So ia segue-o com o inquietante pressentimento de que ele a está a
atrair passo a passo para uma armadilha, que uma porta se está a
fechar atrá s dela, lenta mas inexoravelmente, e que enormes
engrenagens estã o a bloquear centı́metro a centı́metro a sua via de
fuga.
O salã o majestoso, com ilas de janelas à inglesa viradas para a á gua,
está cheio com demasiados sofá s e vitrines cintilantes.
So ia repara que há dois copos de vinho tinto na beira de uma mesa
brilhante.
– Posso oferecer-te alguma coisa de beber? – pergunta o homem,
voltando-se para ela.
– Preferia um branco, se tiveres – responde a rapariga, com receio
de poder ser drogada.
– Champanhe? – pergunta ele, sem afastar os olhos.
– Aceito, obrigada.
– Mas, claro, champanhe é o ideal – decide ele.
Quando vai a casa de um desconhecido, So ia move-se com
circunspeçã o, porque cada divisã o pode representar uma armadilha e
cada objeto uma arma potencial. Prefere os hoté is, porque na hipó tese
de ter de pedir ajuda há sempre algué m que a pode ouvir.
Enquanto o segue até à cozinha apercebe-se de um ruı́do estranho e
agudo. E impossı́vel localizá -lo. O homem nã o parece reparar nele, mas
So ia deté m-se, vira-se para as janelas escuras e está prestes a dizer
qualquer coisa quando ouve um estalido, como um cubo de gelo que cai
com força num copo.
– Tens a certeza de que nã o está ningué m em casa? – pergunta.
Se acontecesse alguma coisa, bastava-lhe um instante para tirar os
sapatos e desatar a correr em direçã o à porta da entrada. E certamente
muito mais á gil do que ele e, se continuasse a correr, sem parar para
pegar no sobretudo, conseguiria pô r-se a salvo.
Fica à porta da cozinha enquanto o homem tira uma garrafa de
Bollinger do refrigerador de vinhos. Abre-a e enche duas lutes, espera
que a espuma baixe e serve mais um pouco, antes de voltar junto dela.
2
So ia prova o champanhe: o sabor da bebida acaricia-lhe o palato e
as bolhinhas rebentam no copo. Alguma coisa a leva mais uma vez a
voltar os olhos para as janelas da cozinha. Um animal, pensa. Lá fora
está escuro. Vê re letidos nos vidros os contornos nı́tidos da cozinha e
as costas do homem. A superfı́cie lisa do balcã o, o cepo das facas e a
taça cheia de limõ es.
O homem levanta novamente a lute para beber, depois faz um gesto
em direçã o a So ia e a mã o treme-lhe ao de leve.
– Desabotoa um bocadinho o vestido – diz.
So ia esvazia o copo, repara na marca de batom no rebordo e volta a
pousá -lo em cima da mesa antes de fazer deslizar o primeiro botã o para
fora da casa estreita.
– Trazes soutien – diz o homem.
– Sim – responde ela, enquanto desaperta o segundo botã o.
– Que medida?
– Trinta e quatro.
O homem continua a observá -la com um sorriso, e So ia sente
comichã o nas axilas por causa do suor que começa a brotar.
– Que cuecas trazes?
– De seda, azuis…– Posso vê -las?
So ia hesita e ele apercebe-se.
– Desculpa – diz o homem prontamente. – Se calhar, estou a ir
demasiado depressa?
– Primeiro temos de tratar do aspeto econó mico – diz So ia, a tentar
usar um tom de voz decidido e desenvolto.
– Percebo – responde ele secamente.
– Para começar é melhor que…
– Queres que te pague antes – interrompe-a ele, com um laivo de
irritaçã o na voz.
Normalmente, com clientes habituais, é tudo mais simples, à s vezes
agradá vel até ; os clientes novos, pelo contrá rio, põ em-na nervosa.
Começa a pensar em tudo aquilo que poderia acontecer. Voltam-lhe à
ideia episó dios do passado, como daquela vez em que um pai de famı́lia
de Tä by a mordeu no pescoço e depois a fechou na garagem.
So ia publicou anú ncios na Páginas rosa e Raparigasdeestocolmo.se.
Quase nenhuns daqueles que a contratam tê m intençõ es sé rias. Na
maior parte das vezes escrevem ordinarices, promessas de sexo
mirabolante e ameaças de agressõ es e castigos.
Antes de dar inı́cio a uma correspondê ncia, ouve sempre o seu
instinto. Aquela carta estava bem escrita, bastante concreta, mas nã o
desprovida de respeito. Ele tinha assinado Wille, tinha um nú mero de
telefone privado e a direçã o indicava uma zona elegante.
No terceiro e-mail, explicou-lhe o que desejava fazer e quanto estava
disposto a pagar.
Começou entã o a tocar no espı́rito de So ia uma campainha de
alarme.
Se tudo parece demasiado perfeito, alguma coisa está mal. Naquele
meio nã o existem bilhetes de lotaria e, mesmo quando se encontra um,
é sempre melhor deixar fugir uma oportunidade de ouro do que expor-
se a riscos.
No entanto, So ia está ali agora.
O homem regressa e estende-lhe um envelope.
– E su iciente para me deixares ver as cuecas? – pergunta.
A rapariga sorri com segurança, depois agarra delicadamente no
vestido com as duas mã os e levanta-o devagar por cima dos joelhos. A
bainha desliza com um leve ruı́do contra as meias de nylon enquanto
sobe ao longo das coxas, até que ela se deté m a observar o homem.
Ele nã o retribui o olhar; pelo contrá rio, continua a olhar para o
meio das pernas dela, ao mesmo tempo que ela a pouco e pouco vai
levantando o vestido até à cintura. Por baixo dos collants, a seda das
cuecas reluz como madrepé rola.
– Depilaste-te? – pergunta o homem, com uma voz um pouco mais
rouca.
– Fiz uma depilaçã o com cera.
– Integral?
– Sim – limita-se So ia a responder.
– Deve doer – comenta ele, interessado.
– Acabamos por nos habituar – responde ela, assentindo.
– Como a tantas outras coisas na vida – murmura ele.
So ia deixa cair o vestido e, enquanto alisa o tecido sobre as coxas,
limpa as mã os suadas.
Apesar de já ter recebido o dinheiro, sente-se outra vez nervosa.
Talvez seja por causa da quantia.
Pagou-lhe cinco vezes mais do que qualquer outro cliente.
No e-mail, explicou-lhe que estava disposto a pagar
principescamente pela discriçã o e por aquele seu desejo particular,
mas, fosse como fosse, a quantia era muito mais elevada do que o
necessá rio.
Quando lhe escreveu a explicar-lhe o que queria fazer, nã o lhe
pareceu demasiado perigoso.
So ia recorda um homem de olhar assustado que vestia a roupa
interior da mã e e queria que lhe batessem nas virilhas. Pagou-lhe para
ela fazer chichi em cima dele enquanto ele chorava de dor aninhado no
chã o, mas So ia nã o conseguiu, pegou no dinheiro e fugiu.
– As pessoas excitam-se com coisas variadas – diz Wille, com um
sorriso embaraçado. – E impossı́vel obrigar algué m a… E entã o nã o há
outra alternativa senã o pagar. Seja como for, nã o estou à espera de que
gostes daquilo que fazes.
– Depende, mas com um homem terno eu també m consigo ter
prazer – continua ela, a mentir.
No anú ncio, So ia promete obviamente a má xima discriçã o, mas
ainda assim toma as suas precauçõ es. Em casa tem uma agenda onde
anota o nome e a morada das pessoas com quem decide encontrar-se,
de forma a que seja possı́vel seguir alguma pista no caso de ela
desaparecer.
Para alé m do mais, Wille tinha sido cliente de Tamara, antes de ela
sair do circuito, casar e ir viver para Gotemburgo. So ia tem a certeza de
que Tamara teria publicado um aviso no fó rum para acompanhantes, se
Wille nã o fosse um sujeito em condiçõ es.
– Só gostava que tu nã o me achasses asqueroso e nojento – diz o
homem, aproximando-se mais um passo dela. – Quer dizer, tu é s
incrivelmente bonita e jovem… Eu sei perfeitamente que aspeto tenho;
com a tua idade até nem era nada mau, mas…
– També m nã o é s nada mau agora – garante So ia.
Lembra-se de todas as vezes em que ouviu dizer que as
acompanhantes tê m de ser uma espé cie de psicó logas. Mas a maior
parte dos clientes nunca conta nada de pessoal.
– Vamos subir até ao quarto? – pergunta com calma o homem que
dá pelo nome de Wille.
3
Enquanto sobe atrá s do homem a ampla escadaria de madeira,
So ia apercebe-se de que precisa de ir à casa de banho. A alcatifa macia
está presa a cada degrau com umas varas de latã o. A luz do enorme
candeeiro de teto re lete-se sobre o corrimã o envernizado.
Nos primeiros tempos, So ia tinha-se proposto aceitar apenas
clientes exclusivos: aqueles que estivessem dispostos a pagar quantias
elevadı́ssimas por uma noite inteira e aqueles que desejassem
companhia para uma festa ou durante uma viagem.
Naqueles trê s anos em que equilibrou o orçamento como
acompanhante de luxo apareceram-lhe cerca de vinte trabalhos do
gé nero; a maior parte dos seus clientes nã o pede senã o um broche
depois do trabalho, antes de regressar para junto da famı́lia.
No grande quarto iluminado destaca-se uma imponente cama de
casal com uns fantá sticos lençó is de seda cinzentos.
Em cima da mesa de cabeceira da mulher há um romance de Lena
Andersson e um boiã o de um creme caro de mã os; na de Wille há um
iPad desligado, coberto de dedadas.
O homem mostra-lhe as correias de couro negro que já prendeu à s
colunas da cama. So ia repara que nã o sã o novas: a pele está estalada
nas dobras e a cor começa a icar desbotada.
Por duas vezes, o quarto treme e rodopia sobre si mesmo com um
solavanco; So ia observa o homem, que parece alheio a tudo.
Nos cantos da boca tem marcas brancas de pasta de dentes ou de
uma daquelas pastilhas que se dissolvem na boca.
Ouve-se um ruı́do proveniente das escadas; o homem vira-se para o
corredor antes de voltar a olhar para So ia.
– Tens de me garantir que me soltas quando eu te pedir – diz, ao
mesmo tempo que desabotoa a camisa. – Tens de me garantir que nã o
vais tentar roubar-me, nem fugir, agora que te paguei.
– Claro – responde ela.
Wille tem o peito coberto de pelos claros, e é evidente que está a
meter a barriga para dentro enquanto ela olha para ele.
So ia decide que, depois de o ter amarrado, lhe vai pedir para usar a
casa de banho, que dá diretamente para o quarto. A porta está
entreaberta e, atravé s do espelho, vê -se um chuveiro encostado a uma
parede de mosaico dourado.
– Quero que me amarres e demores todo o tempo que precisares,
nã o gosto de violê ncia nem deprevaricaçã o – diz ele.
So ia assente enquanto tira os sapatos e, quando volta a levantar-
se, sente novamente uma ligeira vertigem; cruza por um instante o
olhar do homem antes de levantar o vestido até ao umbigo, com um
crepitar de eletricidade está tica. En ia os polegares sob o elá stico dos
collants e baixa-os. O aperto do tecido em volta das coxas desvanece-se
e as meias caem levemente sobre os tornozelos.
– Se calhar, preferes que seja eu a amarrar-te? – pergunta ele, a
sorrir da sua pró pria piada.
– Nã o, obrigada – responde So ia, ao mesmo tempo que começa a
desabotoar o vestido.
– E bastante confortá vel – brinca o homem, dando um ligeiro puxã o
a uma das correias.
– Eu nã o faço essas coisas – diz ela, com gentileza.
– Nunca experimentei inverter os papé is… Estou disposto a
duplicar o teu pagamento, se aceitares – diz o homem a rir, como se a
simples ideia o deixasse apalermado e eufó rico.
Está a oferecer-lhe mais do que ela ganha em dois meses, mas
deixar-se amarrar é decididamente demasiado perigoso.
– O que dizes? – pergunta-lhe, com um sorriso.
– Nã o – responde So ia, irritada e aliviada ao mesmo tempo.
– OK – diz ele secamente, largando a correia.
A ivela tilinta ao mesmo tempo que a tira de couro ondeia contra a
coluna da cama.
– Queres que tire tudo? – pergunta So ia.
– Espera um instante – diz ele, enquanto a observa com um
estranho olhar inquiridor.
– Importas-te que use a casa de banho?
– Daqui a pouco – responde, e parece que está a tentar conter a
respiraçã o.
Os lá bios de So ia estã o estranhamente frios. Quando levanta uma
mã o para a levar à boca, apercebe-se de que o homem começa a sorrir.
Ele aproxima-se, segura-lhe no queixo, apertando-a com força, e
cospe-lhe na cara.
– Mas o que é que está s a fazer? – exclama So ia, ao mesmo tempo
que é acometida por uma onda de vertigens.
De repente, sente que as pernas começam a ceder e precipita-se
para trá s com uma violê ncia tal que trinca a lı́ngua. Cai de lado, sente a
boca encher-se de sangue e vê o homem, imponente por cima dela, a
desabotoar as calças de veludo.
Nã o tem forças para se arrastar e tentar proteger-se. Pousa uma
face no chã o e descobre uma mosca morta no meio do pó debaixo da
cama. O coraçã o bate-lhe no peito com tanta força que lhe ecoa nos
ouvidos. Percebe que ele a drogou.
Antes de perder os sentidos, So ia pensa que provavelmente o
homem a vai matar e que aquele poderá ser o ú ltimo instante da sua
vida.
4
So ia acorda a tossir de um sonho em que se sentia afogar e
percebe imediatamente onde se encontra. Está amarrada à cama, em
casa do homem que dá pelo nome de Wille: deitada de costas e presa
pelas correias esticadas. Ele apertou-a com força, e So ia tem os
mú sculos dos braços e das pernas contraı́dos, para alé m dos pulsos
dormentes e dos dedos gelados.
Sente a boca seca: a lı́ngua deixou de sangrar, mas está inchada e
dorida.
O vestido subiu até à cintura quando ele lhe abriu as pernas com
força.
Nã o pode ser verdade, pensa.
O homem previu todos os seus movimentos e deitou
antecipadamente a droga numa das garrafas de champanhe.
So ia ouve uma voz no quarto ao lado: uma conversa em tom
pragmá tico, um chefe a dar ordens.
Tenta levantar a cabeça para espreitar pela janela e perceber se é
de noite ou de dia, mas nã o consegue, porque lhe doem demasiado os
braços.
Nã o faz ideia de há quanto tempo ali está e, enquanto pensa nisso, o
homem entra no quarto.
O medo enche o coraçã o de So ia como um veneno. Sente o pâ nico
que lhe invade a cabeça, lhe fecha a garganta e lhe faz galopar o coraçã o.
Aquilo que nã o devia ter acontecido aconteceu.
Procura acalmar-se; deve tentar falar com ele e fazê -lo entender
que escolheu a rapariga errada, mas que está disposta a esquecer tudo
se ele a soltar imediatamente.
Promete a si mesma mudar de vida: trabalha como acompanhante
de luxo há demasiado tempo e acaba por esbanjar todo o dinheiro que
ganha em coisas inú teis.
O homem olha para ela com a mesma avidez de antes. So ia tenta
mostrar-se calma e pensa que, desde o inı́cio, alguma coisa tinha
levantado as suas suspeitas. Mas, em vez de ter dado meia-volta, nã o
ligou ao seu pró prio instinto, cometendo assim um erro crasso e agindo
com o desespero de um heroinó mano.
– Já te disse que nã o gosto disto – declara, com um tom calmo.
– Eu sei – responde ele a sorrir, imó vel, enquanto lhe percorre o
corpo com o olhar.
– Conheço raparigas que gostam. Posso dar-te o contacto delas, se
quiseres.
O homem nã o responde, limita-se a respirar profundamente pelo
nariz e põ e-se aos pé s da cama, entre as pernas dela. So ia começa a
sentir suores frios e prepara-se para a violê ncia e para a dor.
– Isto é uma agressã o. Sabes disso, nã o sabes?
Mais uma vez, ele evita responder, empurra os ó culos para cima do
nariz e observa-a com curiosidade.
– Nã o gosto, nã o quero fazer isto, porque é que me queres
humilhar? – recomeça So ia, mas deté m-se ao sentir tremer a sua
pró pria voz.
Tenta abrandar a respiraçã o. Nã o deve mostrar medo e nã o deve
pô r-se a suplicar. O que teria Tamara feito no seu lugar? Imagina o rosto
sardento da amiga, o sorrisinho maldoso, o olhar duro.
– No meu apartamento tenho uma agenda onde escrevi os teus
dados – diz, olhando o homem nos olhos.
– Que dados? – pergunta ele, com indiferença.
– O teu nome, que é seguramente inventado. Mas també m anotei
este endereço, o teu e-mail, a hora do encontro…
– Obrigado pela informaçã o – diz ele.
O colchã o afunda quando o homem começa a deslizar em cima da
cama em direçã o a ela. Deté m-se nas coxas, agarra-lhe nas cuecas e
puxa-as com força. As costuras gemem sem se rasgarem e So ia sente
uma isgada nas costas, como se estivessem a esticar-se.
O homem puxa outra vez, com as duas mã os. So ia sente uma dor
ardente quando as cuecas se enterram nos lancos, mas as costuras em
volta do elá stico aguentam.
O homem murmura qualquer coisa para si mesmo e deixa-a
sozinha na cama.
O colchã o abana novamente e So ia apercebe-se de que está prestes
a ter uma cã ibra na coxa.
Por um instante, a lembrança de um treino atravessa-lhe a mente: a
sensaçã o de uma cã ibra que está para chegar, uma espé cie de tensã o na
barriga da perna enquanto tenta arrancar os grumos de relva pisada
que se tinham agarrado aos pitons das chuteiras.
Os rostos vermelhos e acalorados das companheiras. O chã o de
madeira dos balneá rios coberto de lama, o cheiro a suor, a loçõ es para o
corpo e a desodorizante.
Como é que aquilo tinha acontecido? Como é que acabara assim?
Esforça-se por nã o chorar; tem a sensaçã o de que mostrar-se
assustada seria fatal.
O homem regressa com uma tesoura de unhas, corta as cuecas de
ambos os lados e tira-lhas.
– Há muitas raparigas disponı́veis para fazer bondage – diz So ia. –
Conheço…
– Nã o me interessam as disponı́veis – interrompe-a o homem, ao
mesmo tempo que atira as cuecas para a cama ao lado dela.
– Nã o, quero dizer, raparigas que se excitam quando as amarram.
– Nã o devias ter vindo – limita-se ele a constatar.
So ia já nã o consegue conter-se e desata a chorar. O terror fá -la
arquear as costas e as correias esticam-se de uma forma brusca,
cortando-lhe a pele. O sangue começa a correr em ios inos ao longo do
antebraço direito.
– Nã o faças isso – implora, a soluçar.
O homem despe a camisa, atira-a para o chã o e desenrola um
preservativo sobre o pé nis meio ereto.
Ajoelha-se na cama e So ia sente o cheiro do lá tex quando ele lhe
en ia na boca aquilo que resta das cuecas. E dominada por um arranco
de ná usea e está prestes a vomitar. Tem a lı́ngua seca e as faces sulcadas
de lá grimas. O homem aperta-lhe um seio atravé s do tecido do vestido,
depois deixas e cair pesadamente em cima dela.
So ia urina-se de medo, sente um luxo quente que alastra por baixo
dela.
Quando ele tenta penetrá -la, ela desvia-se repentinamente de lado
e atinge-o com a anca.
Uma gota de suor escorre da ponta do nariz do homem e cai-lhe na
face.
Ele fecha uma mã o em volta do pescoço dela; ita-a com olhos de
fogo, aperta-lhe a garganta e volta a deitar-se em cima dela. O seu peso
enterra-a no colchã o e a pressã o faz com que ela abra ainda mais as
coxas. Os pulsos ardem-lhe e as colunas da cama rangem.
O homem aperta-lhe a garganta com mais força ainda, e no campo
visual de So ia surgem pontinhos negros. O quarto ica mais escuro e,
nesse preciso momento, a rapariga sente que ele está outra vez a tentar
penetrá -la. Tenta esquivar-se com todas as suas forças, mas é
impossı́vel, vai acontecer, de qualquer maneira. Nã o pode permanecer
no seu pró prio corpo: tem de pensar noutra coisa, desmaiar.
Lembranças repentinas dançam-lhe no espı́rito: as noites frias no
grande campo relvado, a respiraçã o ofegante, a nuvem de vapor em
volta da boca; o silê ncio ao longo das margens do lago e a velha escola
de Bollstanä s.
O treinador aponta para a bola, apita e tudo se cala.
O aperto na garganta desaparece. So ia tosse ligeiramente e aspira
uma lufada de ar, depois pestaneja e ouve uma melodia mecâ nica.
O homem voltou a pô r-se de joelhos. Ela respira com di iculdade e
tem o rosto em chamas.
Algué m está a tocar à porta da entrada.
O homem segura-lhe no queixo, pressiona-lhe a boca com força e
empurra as cuecas mais para o fundo; So ia sente arrancos de vó mito e
respira pelo nariz, porque nã o consegue engolir.
Tocam outra vez.
O homem cospe-lhe em cima e levanta-se da cama. Abotoa as calças
e recupera a camisa antes de sair.
Assim que ele desaparece atravé s da porta, So ia puxa a correia
com a mã o direita, com toda a força possı́vel, sem pensar nas
consequê ncias ou na dor.
Sente uma isgada lancinante quando a mã o escapa da tira de
couro.
As cuecas en iadas na boca impedem-na de gritar.
Parece-lhe que a cabeça icou de repente levı́ssima; está quase a
desmaiar e isgadas profundas de dor atravessam-lhe todo o corpo.
Talvez tenha fraturado o polegar ou rompido um ligamento. A pele
levantou como uma luva virada do avesso e, quando tira as cuecas da
boca, o sangue escorre-lhe ao longo do braço.
Geme em voz alta enquanto tenta histericamente desapertar a
correia que lhe prende a mã o esquerda. Os dedos escorregam, mas
inalmente consegue fazer sair o espigã o do furo. Desen ia rapidamente
a correia da ivela, senta-se e desata os nó s que lhe amarram os
tornozelos.
Sente as pernas instá veis, mas levanta-se, segura a mã o ferida
contra o ventre e dá um passo no tapete espesso. O choque e a dor
deixam-lhe a cabeça a andar à roda e tem os pé s entorpecidos; o vestido
desce-lhe molhado e gé lido sobre as ná degas.
Sai do quarto com cautela e esgueira-se pelo corredor por onde o
homem desapareceu há pouco.
Para antes de chegar à s escadas. Ouve, proveniente do andar de
baixo, uma voz diferente, e pensa que devia pedir ajuda. Nã o consegue
perceber o que o outro homem está a dizer e aproxima-se, cautelosa.
Pendurada no corrimã o da escada está alguma roupa que veio da
lavandaria. Atravé s do plá stico ino, repara num monte de saias
brancas, todas iguais.
Aclara a garganta e prepara-se para gritar quando, de repente,
percebe o que está a acontecer em baixo.
O outro homem nã o está em casa. A sua voz prové m do
intercomunicador. E um rapaz que está ao portã o com alguma coisa
para entregar e que pede para entrar. Wille repete-lhe que volte mais
tarde, interrompe a conversa e regressa à s escadas.
So ia cambaleia, mas consegue manter o equilı́brio. Sente um
formigueiro nos pé s, porque o sangue voltou a correr-lhe nos membros.
Recua sobre o pavimento, que range; ao olhar em volta, descobre ao
fundo do corredor uma divisã o mais ampla, com as paredes cobertas de
retratos. Pensa em correr até lá , abrir uma janela e pedir socorro, mas
percebe que já nã o tem tempo.
5
So ia desloca-se rapidamente ao longo da parede, para lá das
escadas, até chegar à porta ina de um roupeiro; baixa a maçaneta e
puxa-a para si.
Está fechada à chave.
Com cautela, larga a maçaneta e no mesmo momento apercebe-se
de que o homem vem a subir as escadas, sob a luz re letida pelos
prismas de cristal do lustre.
Chegou quase ao topo.
So ia regressa à s escadas e encolhe-se no chã o ao lado do corrimã o,
escondida pelas camisas da lavandaria. Se o homem olhasse naquela
direçã o, vê -la-ia seguramente, mas se seguisse em frente a rapariga
poderia ganhar alguns segundos de vantagem.
A dor na mã o é de tal maneira forte que a faz tremer, e, alé m disso,
a traqueia e a laringe icaram inchadas. Sente necessidade de tossir, de
aclarar a garganta, de beber qualquer coisa.
A escada range sob os passos pesados e cansados de Wille. So ia vê -
o atravé s das pequenas colunas da balaustrada e retrai-se com cautela.
Wille chega ao topo, apoia-se ao corrimã o e continua pelo corredor.
Dirige-se para o quarto sem reparar nas gotas de sangue no chã o.
Lentamente, So ia levanta-se; observa as costas do homem e o
pescoço queimado pelo sol, depois vê -o desaparecer atravé s da porta.
Sem fazer ruı́do, dá a volta à balaustrada e começa a correr escadas
abaixo.
Percebe que ele voltou a sair e que vai atrá s dela.
Os passos que se precipitam pelas escadas duplicam.
So ia protege a mã o ferida com a outra, apertando os dedos
hú midos e entorpecidos.
Sabe apenas que tem de conseguir sair de casa. Corre atravé s do
enorme hall de entrada, e a escada range ruidosamente enquanto o
homem a persegue.
– Assim só me fazes perder tempo – ouve-o gritar.
Corre silenciosamente em direçã o à entrada sobre um tapete ino,
tropeça nuns sapatos rasos, mas manté m o equilı́brio.
O sensor do alarme antirroubo pisca ao lado da porta.
So ia tem tanto sangue nos dedos que a maçaneta lhe escorrega da
mã o; limpa-se ao vestido e volta a tentar, mas está trancada. Tenta
baixá -la, bate na porta com o ombro, mas nã o acontece nada. Dominada
pelo pâ nico, olha em volta à procura das chaves, enquanto tenta
novamente deslocar a maçaneta. Desiste e corre atravé s da porta dupla
que dá acesso ao salã o.
Noutra divisã o, qualquer coisa cai: um objeto metá lico que salta no
parquet.
So ia afasta-se das grandes janelas, cujos vidros negros cintilam; o
seu pró prio re lexo parece uma silhueta escura contra a parede mais
clara.
Sente que o homem está a chegar vindo da direçã o oposta, volta
para trá s e esconde-se atrá s de uma das portas.
– Todas as saı́das estã o fechadas – diz ele em voz alta, ao entrar no
salã o.
So ia susté m a respiraçã o. O coraçã o salta-lhe no peito e a porta
range levemente. O homem deté m-se à entrada: consegue vê -lo pela
frincha ao longo da moldura da porta: tem a boca entreaberta e as faces
suadas.
As pernas recomeçam a tremer-lhe.
O homem avança uns passos, depois para, à escuta. So ia tenta nã o
fazer barulho, mas o medo fá la arquejar demasiado alto.
– Já estou a icar cansado desta brincadeira – diz ele, enquanto
passa adiante.
Pelos sons que lhe chegam, So ia percebe que ele anda à procura
dela, que abre e fecha todas as portas. Em voz alta, garante-lhe que só
quer falar.
Um mó vel raspa no chã o, depois, o silê ncio.
So ia ica à escuta: ouve a sua pró pria respiraçã o, o tique-taque
desolado de um reló gio de parede, o parquet a ranger ao de leve, e mais
nada.
Só um desesperado silê ncio de tú mulo.
Espera mais alguns segundos, para o caso de ouvir os passos dele
aproximarem-se; sabe que pode ser uma armadilha, mas ainda assim
abandona o esconderijo, com a consciê ncia de que aquela poderá ser a
sua ú ltima oportunidade.
Avança cautelosamente pelo salã o. Tudo está imó vel, tudo parece
mergulhado num sono secular. Os mó veis rebuscados e os seus gé meos
escuros re letidos nos painé is de vidro. A sua pró pria igura iluminada
pelo lustre de cristal.
So ia aproxima-se de uma das cadeiras ao lado da mesa brilhante e
tenta pegar nela, mas apercebe-se de que é demasiado pesada. Entã o
arrasta-a, segurando-a pelas costas com a mã o sã . Transporta-a até à
grande porta envidraçada da varanda e, a gemer de dor, obriga-se a
pegar nela també m com a mã o ferida. Agarra nas costas da cadeira
pelos dois lados e dá dois passos a correr, depois roda sobre si mesma e
atira a pesada cadeira contra a porta, com um grito.
A cadeira bate no vidro e faz ricochete. O painel interior desfaz-se e
cai ao chã o, espalhando estilhaços por todo o parquet. Outras placas de
vidro caem e icam bloqueadas contra os painé is ainda intactos.
O alarme dispara, com um ruı́do ensurdecedor.
So ia agarra outra vez na cadeira, sem se importar com as feridas
que está a fazer nos pé s, e está prestes a lançá -la outra vez contra a
portada de vidro quando vê o homem, que vem ao encontro dela desde
a entrada.
Larga a cadeira, corre até à cozinha e inspeciona com o olhar os
azulejos brancos do chã o e os balcõ es em aço inox.
Ele vai atrá s dela com passos medidos.
Na mente de So ia surge uma recordaçã o de um jogo de infâ ncia em
que algué m andava atrá s dela: o cansaço que se sente quando o
perseguidor está pró ximo e já é impossı́vel fugir.
A rapariga encosta-se ao balcã o, deitando abaixo uns ó culos e uma
estranha pulseira.
Nã o sabe o que fazer. Olha para as janelas fechadas da varanda e
atravessa a divisã o até à ilha central, onde estã o pousadas duas
caçarolas luzidias. Abre as gavetas com as mã os a tremer e a respiraçã o
ofegante, e por im repara na ileira de facas.
O homem entra na cozinha; entã o, a rapariga agarra numa das
facas, volta-se para ele e começa a recuar. O homem ita-a, segurando
com ambas as mã os um atiçador sujo de cinza.
A tremer, So ia aponta contra ele a faca de lâ mina larga e percebe
que nã o tem qualquer hipó tese.
Ele vai matá -la com aquele utensı́lio pesado.
O alarme continua a berrar, enquanto os cortes nas plantas dos pé s
lhe ardem e a mã o ferida se tornou já insensı́vel.
– Por favor, para com isso – diz So ia, arquejante, ao mesmo tempo
que recua até embater na ilha.
– Vamos voltar para a cama, juro-te, eu faço o que tu quiseres.
Mostra-lhe a faca, pousa-a no balcã o de aço e tenta dirigir-lhe um
sorriso.
– Vou bater-te, de qualquer maneira – responde o homem.
– Nã o… Por favor – implora a rapariga, sentindo que acaba de
perder o controlo dos mú sculos da face.
– Vou magoar-te muito – diz ele, erguendo o atiçador por cima do
ombro.
– Por favor, eu rendo-me. Eu…
– A culpa é toda tua – interrompe-a o homem e, naquele momento,
deixa cair o atiçador de repente.
O objeto cai pesadamente no pavimento com um ruı́do metá lico. A
fuligem levantada pela ponta rodopia no ar.
O homem sorri de espanto enquanto baixa os olhos para o cı́rculo
de sangue que lhe alastra no peito.
– Que caraças… – geme. Procura com a mã o um ponto de apoio,
falha o balcã o e vacila.
Uma outra mancha de sangue aparece na camisa branca. As feridas
vermelhas desabrocham como chagas no seu corpo.
O homem aperta a mã o contra o peito e começa a arrastar-se em
direçã o à sala de jantar, depois deté m-se e levanta a palma
ensanguentada. Parece aterrorizado como uma criança e tenta dizer
qualquer coisa antes de cair de joelhos.
O sangue esguicha no chã o diante dele.
O alarme continua a tocar, e o ruı́do é insuportá vel.
A superfı́cie polida de uma das caçarolas re lete a cozinha inteira
como um ecrã convexo.
Em frente à s cortinas claras da porta envidraçada, So ia descobre
um homem com uma cabeça de formato estranho.
Tem as pernas afastadas e empunha uma pistola com as duas mã os.
Um passa-montanhas preto cobre-lhe o rosto, com exceçã o da boca e
dos olhos. Pendem-lhe ao longo de uma face madeixas de cabelo, ou
talvez se trate de dois pedaços de um tecido rı́gido.
Wille aperta novamente a mã o contra o peito, mas o sangue
escorre-lhe por entre os dedos e ao longo do antebraço.
A cambalear, So ia volta-se para itar o homem armado que,
mantendo sempre Wille debaixo de mira, tira uma mã o da culatra da
pistola e se inclina rapidamente e apanha dois cartuchos do chã o.
Depois salta, passando à frente de So ia como se ela nã o existisse, e
afasta o atiçador dando-lhe um pontapé com uma bota militar. Agarra
Wille pelos cabelos, puxa-lhe a cabeça para trá s e encosta-lhe a pistola
ao olho direito.
E uma execuçã o, pensa So ia, e como num sonho dirige-se para o
salã o, apoiando as costas à bancada e fazendo deslizar a mã o pela beira.
Passa pelos dois homens, sente um arrepio na espinha e começa a
correr, mas escorrega no sangue. Os pé s perdem a aderê ncia; a rapariga
ica suspensa no ar antes de bater com a nuca no chã o.
Durante alguns instantes, nã o vê mais do que uma densa
obscuridade; depois volta a abrir os olhos.
Apercebe-se de que o intruso ainda nã o disparou: manté m o cano
da pistola encostado com força ao olho fechado de Wille.
So ia sente umas isgadas intensas na nuca.
Diante dos seus olhos tudo ica desfocado, como se o seu campo
visual se turvasse a pouco e pouco. Aquilo que um instante atrá s lhe
tinha parecido tiras de couro na face do intruso surge agora como
penas molhadas e melenas de cabelo sujo.
So ia fecha os olhos, dominada por fortes vertigens, e depois ouve
as vozes dos dois homens por entre as notas estridentes do alarme.
– Espera, espera – implora Wille. – Julgas que sabes tudo, mas nã o é
bem assim.
– Sei que o Ratjen abriu as portas e agora você s vã o todos…
– Quem é o Ratjen? – interrompe-o Wille, num tom agastado.
– E agora você s vã o todos mergulhar no inferno – conclui o homem
mascarado.
Ficam em silê ncio e So ia volta a abrir os olhos. Tudo acontece com
uma desconcertante lentidã o. O intruso mascarado olha para o reló gio e
murmura qualquer coisa ao homem que dá pelo nome de Wille.
Wille nã o diz nada, mas parece entender. O sangue sai em ios do
seu ventre, escorre-lhe ao longo das virilhas e junta-se numa poça no
pavimento.
So ia repara nos ó culos que estã o no chã o, ao lado da base
arranhada do balcã o, muito perto; e ainda mais perto está aquilo que à
primeira vista lhe tinha parecido uma pulseira.
Agora percebe que é um alarme antiagressã o.
Parece uma caixinha de aço com dois botõ es montada numa
pulseira.
O homem mascarado observa a sua vı́tima, imó vel.
So ia estende cautelosamente a mã o e agarra no alarme. Esconde-o
contra o corpo e carrega vá rias vezes nos botõ es.
Nã o acontece nada.
O homem mascarado larga os cabelos de Wille, mas continua a
apontar-lhe a pistola ao olho. Espera um instante e depois prime o
gatilho.
O obturador salta com um ruı́do metá lico. A cabeça de Wille é
projetada para trá s e o sangue esguicha para fora da nuca. Fragmentos
de crâ nio e de massa cinzenta espalham-se pelo chã o e chegam à sala
de jantar, chovendo sobre os encostos das cadeiras, a mesa e a fruteira.
So ia sente gotas quentes salpicarem-lhe os lá bios, depois vê o
cartucho expelido que ressalta no pavimento, a tilintar.
Uma nuvem de fumo cinzento expande-se no ar e o corpo sem vida
de Wille cai ao chã o.
O homem mascarado inclina-se. O reló gio escorrega-lhe pelas
costas da mã o enquanto recupera o cartucho.
Põ e-se de pernas abertas por cima do cadá ver, inclina-se para a
frente, apoia o cano da pistola contra o outro olho de Wille e abana a
cabeça para afastar do rosto as tiras de tecido molhado.
Depois prime novamente o gatilho.
6
O primeiro toque do telefone encriptado confunde-se com o
murmú rio de um regato que, no sonho, atravessa uma densa vegetaçã o.
Um segundo depois, Saga Bauer reemerge do sono e levanta-se da cama
sem se aperceber de que está a arrastar o cobertor atrá s de si.
Corre em direçã o ao armá rio das pistolas só com as cuecas vestidas
e marca um nú mero que já sabe de cor. A luz dos lampiõ es escoa-se
atravé s das tiras das persianas e pousa-lhe sobre as pernas ossudas e as
costas nuas.
Abre rapidamente a porta de aço enquanto ouve as instruçõ es ao
telefone; entretanto, agarra numa bolsa preta e en ia lá dentro uma
Glock.21 com o coldre e cinco carregadores de reserva.
Saga Bauer é comissá ria operativa da Sä po, a Polı́cia de Segurança
sueca, e especializou-se no setor de antiterrorismo.
O sinal particular que a acordou signi ica que foi acionado o có digo
Platina.
Corre em direçã o à entrada e escuta as ú ltimas indicaçõ es, depois
desliga a chamada e mete o telefone na bolsa.
Nã o há tempo a perder.
Veste o fato de pele negra diretamente sobre o corpo nu; sente o
toque frio contra as costas e o peito, en ia os pé s descalços nas botas e
pega no capacete que está em cima da consola, assim como o pesado
colete à prova de bala e as luvas.
Sai do apartamento sem perder um segundo a fechá -lo à chave.
Desce as escadas, transpõ e o portã o e puxa o fecho-é clair até ao
pescoço. Depois, põ e o capacete e en ia lá dentro rapidamente algumas
madeixas dos seus cabelos loiros.
Na Tavastgatan está estacionada uma Triumph Speed Triple com a
panela de escape amassada, o guarda-lamas riscado e o motor de
arranque avariado. Saga chega junto dela a correr, abre o cadeado e
deixa-o no chã o, juntamente com a corrente pesada.
Monta a moto, pressiona o pedal de arranque e parte o mais
depressa possı́vel atravé s da cidade adormecida.
O cé u tem uma cor cinza-clara por causa da luz dos lampiõ es e das
minú sculas gotas de chuva iluminadas.
Saga ignora os semá foros e os sinais de Stop, atinge a velocidade
má xima e ultrapassa um tá xi em Bastugatan.
O motor vibra contra os seus joelhos e essa vibraçã o transmite-se
ao interior das coxas; o ruı́do atravessa o capacete como uma espé cie
de mugido subaquá tico.
A comissá ria Saga Bauer tem um metro e setenta de altura e o
corpo de uma bailarina clá ssica. Foi durante muito tempo uma das
melhores pugilistas do Norte da Europa, mas deixou as competiçõ es há
uns anos.
Tem vinte e nove anos e uma beleza de cortar a respiraçã o, talvez
agora mais do que nunca, com a sua pele clara, o pescoço delicado e os
olhos azuis.
Frequentemente, as pessoas que a encontram pela primeira vez sã o
atingidas por uma sú bita fraqueza, como se sentissem quebrar-se
qualquer coisa dentro delas.
Saga deixa um vazio atrá s de si, quase como o eco de um amor
infeliz.
Os colegas já nem sequer reparam na sua beleza, da mesma forma
que nã o reparariam na de uma irmã .
Por sua vez, Saga nã o presta demasiada atençã o ao seu pró prio
aspeto e nã o se apercebe de que homens e mulheres coram quando
estã o perto dela.
Poucas coisas a irritam mais do que as vezes em que algué m lhe diz
que ela se parece com uma fada das histó rias ou com uma princesa da
Disney.
Um saco de plá stico cheio de ar rodopia diante da moto,
arrancando Saga aos seus pensamentos.
Quando chega a Sö dermä larstrand vira bruscamente à direita; o
pedal de apoio arranha o asfalto, mas ainda assim Saga consegue
manter a trajetó ria, en iando-se debaixo da Centralbron, e sobe a rampa
da autoestrada.
E a primeira vez que lhe acontece estar em serviço durante uma
emergê ncia do có digo Platina. E o nı́vel má ximo de alerta para a
segurança do paı́s na escala da Sä po. Saga sabe que aquela intervençã o
tem prioridade sobre qualquer outra tarefa.
Quando passa diante das torres e vielas estreitas de Gamla Stan e
Riddarholmen é como se voasse no interior de uma lâ mpada escura.
Saga está treinada para enfrentar cená rios do gé nero e sabe que
naquela fase se espera que ela seja capaz de agir com autonomia, sem
se preocupar com as leis em vigor.
Passa diante dos edifı́cios só rdidos em tijolo do Hospital Karolinska
e chega à E4. Força ao má ximo o motor da 900cc de trê s cilindros e
atinge os 220 quiló metros por hora; depois passa por Roslagstull e vira
à esquerda em direçã o à universidade.
O ar frio dá -lhe calma, enquanto recorda as informaçõ es que
recebeu e elabora uma primeira estraté gia de açã o.
Saga sai da autoestrada, acelera na ú ltima parte da curva e segue
por Vendevä gen em direçã o a Djursholm, com a sua vegetaçã o densa e
as moradias imponentes. Os carros estacionados nas alamedas de pedra
estã o cobertos de geada. A luz turquesa das piscinas escoa-se atravé s
das á rvores de fruto e das sebes.
Saga entra numa rotunda demasiado depressa e vira
imediatamente à direita. Antes que o seu cé rebro repare no carro
estacionado, os mú sculos reagem, levando-a a mudar bruscamente de
direçã o. Está quase a cair, mas consegue encontrar um equilı́brio
perfeito entre a energia ciné tica e o seu pró prio peso. A roda traseira
derrapa no asfalto. A moto vai bater com um ruı́do surdo contra um
contentor de lixo em plá stico, antes que Saga consiga recuperar o
controlo, para depois acelerar de novo.
O coraçã o bate-lhe no peito loucamente.
Algué m estacionara um Jaguar logo a seguir à curva, escondido por
uma sebe alta. Mas a sua moto tem o centro de gravidade baixo e é
muito fá cil de controlar.
Provavelmente, foi isso que a salvou.
Percorrendo uma curva ladeada de moradias imponentes, Saga
vislumbra uma sé rie de enormes veleiros. Está bastante inclinada para
a esquerda, mas quando chega perto da á gua aumenta mais uma vez a
velocidade e entra numa reta que atravessa um parque.
7
Quando chega ao endereço que lhe foi facultado, Saga trava, vira
suavemente à direita na pequena alameda e para.
Deixa cair a moto sobre a erva na beira do caminho, abandona o
capacete ali perto e, enquanto avança, en ia o colete à prova de bala e o
coldre.
Passaram treze minutos desde que o telefone a acordou.
Na casa, o alarme ainda está a tocar.
Por um instante, dá por si a desejar que o comissá rio Joona Linna
estivesse ali com ela. Até à quele momento, sempre colaborou com ele
nos casos mais importantes. E o melhor polı́cia que alguma vez
conheceu, para alé m de ser um daqueles que passaram pelos maiores
sacrifı́cios.
Uma vez Saga desiludiu-o por ter feito uma coisa que nã o devia,
mas conseguiu remediar e agora tem a certeza de que ele entendeu.
O pró prio Joona disse que nã o tinha nada para lhe perdoar.
Perderam-se de vista quando o comissá rio foi condenado à prisã o.
Saga tinha muita vontade de o ir visitar, mas sabe que Joona precisa de
refazer a sua vida. Vai precisar de se empenhar muito para convencer
os outros detidos de que é um deles.
Mas agora o có digo Platina foi ativado e Saga Bauer está sozinha.
Mais nenhum agente da Sä po chegou ainda ao local.
Transpõ e o portã o e corre até à porta da casa; en ia um tensor na
fechadura e depois a ponta ina da gazua de pistola. Faz pressã o,
intermitentemente, depois empurra mais para cima a ponta do
mecanismo até que o trinco salta e a maçaneta roda.
A fechadura abre com um clic surdo.
Saga deixa cair as ferramentas ao chã o. Pega na Glock, destrava-a e
abre a porta. O estrondo do alarme abafa qualquer outro som.
Saga examina a entrada e o grande hall, depois regressa a correr ao
alarme junto da porta e insere o có digo que memorizou.
O silê ncio desce sobre a casa, arrastando consigo um peso fatal.
Com a pistola apontada e o dedo no gatilho, avança pelo á trio e
passa pela escadaria que dá acesso ao andar superior. Entra num
grande salã o, examina a porta dupla e a parede à direita, depois avança
com cautela.
Uma das grandes janelas viradas para a á gua foi partida. No chã o
está uma cadeira rodeada por estilhaços de vidro cintilantes.
Saga passa à frente, aproxima-se da porta da cozinha e vê a sua
silhueta re letida e multiplicada pelas numerosas superfı́cies de vidro.
Sangue e fragmentos de crâ nio espalharam-se para fora da cozinha
e salpicaram o chã o, as poltronas e a mesa de apoio.
Saga percorre a divisã o com o olhar, de pistola em riste, depois
avança com cautela e começa a vislumbrar uma parte da cozinha:
prateleiras brancas e bancadas em aço inox.
Para e ica à escuta.
Ouve uma espé cie de tique-taque assustado, como de algué m
sentado completamente imó vel e entretido a bater com as unhas no
tampo da mesa.
Aponta a pistola para a porta da cozinha, depois afasta-se
silenciosamente para o lado e descobre um homem deitado de costas.
Deram-lhe um tiro em cada olho e na barriga.
A caixa craniana já nã o existe.
Por baixo dele formou-se uma poça escura.
Tem as mã os estendidas ao longo dos lancos, como se estivesse a
apanhar sol.
Saga aponta a arma na direçã o dos disparos e inspeciona a cozinha.
As cortinas diante da varanda ondeiam e enfunam em direçã o ao
interior. Os ané is ao longo do varã o tilintam uns contra os outros.
O sangue proveniente do primeiro disparo à cabeça do homem
esguichou para o chã o e algué m o pisou com os pé s descalços.
As pegadas apontam exatamente na direçã o dela.
Volta-se de repente e perscruta mais uma vez a divisã o, de pistola
apontada; depois regressa à porta dupla que dá acesso ao salã o.
Sente um arrepio quando repara, pelo canto do olho, em algué m
que sai a arrastar-se de um esconderijo atrá s de um sofá .
Vira-se no preciso momento em que a igura se levanta. E uma
mulher que traz um vestido azul.
Dá um passo em frente, a cambalear, e entã o Saga aponta-lhe a
pistola ao centro do peito.
– Mã os atrá s da cabeça – grita. – De joelhos, de joelhos!
Saga dá um salto para a frente, mantendo-a sob mira.
– Por favor – murmura a mulher, deixando cair o alarme
antiagressã o.
Ainda tem tempo de lhe mostrar as mã os vazias antes de Saga lhe
dar um pontapé de lado, logo abaixo dos joelhos, fazendo-a escorregar;
a mulher cai ao chã o com um ruı́do surdo, batendo com a anca e depois
com a face e com a tê mpora.
Saga está em cima dela, atinge-a ainda sobre o rim esquerdo,
encosta-lhe a pistola com força à nuca, manté m-na presa ao chã o com o
joelho direito e observa de novo a divisã o.
– Está mais algué m em casa?
– Só o homem que disparou, entrou na cozinha – responde a
mulher, a tentar recuperar o fô lego. –Disparou e foi-se embora…
– Silê ncio – interrompe-a Saga.
Vira-a rapidamente de barriga para baixo e imobiliza-lhe os braços
atrá s das costas. A mulher suporta tudo com uma obediê ncia
inquietante. Saga ata-lhe os pulsos feridos com uma abraçadeira,
levanta-se de repente e regressa à cozinha, passando à frente do
cadá ver do homem.
As cortinas ondeiam, in ladas pelo vento.
Saga aponta a pistola à frente dela e passa por cima de um atiçador
sujo de cinza. Inspeciona o lado esquerdo da cozinha, avança até à ilha e
depois continua até à porta de correr que dá para a varanda.
No painel ixo há um furo redondo feito com uma serra de diamante
e a porta está aberta. Lufadas de ar fresco penetram no interior, fazendo
tilintar os aros das cortinas. Saga sai para a varanda com a pistola
apontada à relva no meio dos canteiros.
A á gua está imó vel e a noite, silenciosa.
Quem se introduz numa casa daquele modo para liquidar um
homem daquela maneira, nã o se demora no local do crime.
Saga regressa para junto da mulher, ata-lhe as pernas com uma
abraçadeira e crava-lhe um joelho no fundo das costas.
– Agora vai ter de responder a algumas perguntas – diz friamente.
– Eu nã o tenho nada a ver com isto. Estava aqui por acaso, nã o vi
nada – murmura a mulher.
Saga nã o pode deixar de lhe baixar o vestido para lhe cobrir as
ná degas nuas antes de se levantar.
Dali a pouco cinco SUV vã o parar em frente à casa, e a Sä po vai
entrar por ali dentro.
– Quantos eram os executores?
– Apenas um. Eu só vi um.
– Consegue descrevê -lo?
– Nã o sei, tinha uma má scara na cara… Nã o vi nada, trazia roupa
preta, luvas… Aconteceu tudo tã o depressa, pensei que també m me ia
matar a mim, pensava…
– OK, espere – interrompe-a Saga.
Aproxima-se do cadá ver. O rosto redondo está su icientemente
intacto para permitir identi icá -lo com facilidade. Tira do bolso o
telefone encriptado, afasta-se alguns passos e liga para o chefe da Sä po.
E de noite, mas ele está à espera daquele telefonema e atende de
imediato.
– O ministro dos Negó cios Estrangeiros morreu – comunica-lhe
Saga.
8
Sete minutos mais tarde, o jardim e a casa sã o invadidos pelos
agentes de um grupo especial da Sä po denominado Electrolux por
causa de uma piada de que já ningué m se lembra.
Nos ú ltimos dois anos, a Sä po aumentou drasticamente o nı́vel de
segurança para os altos cargos do Estado, reforçando as escoltas e
adotando modernos alarmes antiagressã o. Sã o vá rios os nı́veis de
emergê ncia, mas, ao carregar ao mesmo tempo nos dois botõ es da
pulseira, a mulher ativou o có digo Platina.
A cena do crime foi isolada, a vigilâ ncia em volta do centro de
Estocolmo aumentada e organizaram-se barreiras.
Janus Mickelsen chega ao local e aperta a mã o a Saga. E ele que
comanda as operaçõ es dentro da casa, por isso ela põ e-no rapidamente
a par da situaçã o.
Janus, com os seus caracó is arruivados e a barbicha loira, possui
um tosco fascı́nio hippie. Segundo Saga, tem um estilo peace and love,
mas ela sabe perfeitamente que, antes de se juntar à Sä po, Janus era um
militar de carreira. Participou na Operaçã o Atalanta e prestou serviço
em á guas somalis.
Janus põ e um agente de guarda à porta, ainda que ningué m vá fazer
uma lista dos presentes no local do crime. Num caso daquele gé nero,
nã o deve icar qualquer registo de quem entrou na casa depois do
homicı́dio. O có digo Platina prevê que nã o se possa determinar quem
foi alertado ou informado dos acontecimentos e quem nã o foi.
Dois agentes da Sä po vã o imediatamente ter com a jovem deitada
de lado, com os braços e as pernas presos com as abraçadeiras. Tem os
olhos vermelhos por causa das lá grimas, e o rı́mel escorreu-lhe ao
longo da tê mpora.
Um dos dois homens ajoelha-se ao seu lado e prepara uma seringa
com Ketalar. A mulher começa a tremer de medo, mas o outro agente
segura-a enquanto o primeiro lhe injeta a dose no pescoço, diretamente
na veia cava superior.
A mulher ica com o rosto vermelho; deixa cair a cabeça para trá s,
contrai o corpo e depois é vencida pelo efeito do medicamento.
Saga repara que os agentes cortam as abraçadeiras em volta dos
membros da mulher e que depois lhe colocam uma má scara de
oxigé nio. Por im, en iam-na já adormecida num saco para cadá ver e
correm o fecho-é clair. Em seguida, transportam o corpo inanimado até
ao furgã o que a há de levar ao Reformató rio.
As outras quatro equipas já deram inı́cio ao processo de inspeçã o
obrigató ria e documentaçã o detalhada do local do crime. Identi icam
com extrema atençã o marcas de sapatos e impressõ es digitais,
preparam diagramas dos salpicos de sangue, dos orifı́cios das balas e
das trajetó rias dos disparos, recolhem marcas bioló gicas, ibras tê xteis,
cabelos, luidos corporais, fragmentos ó sseos e de amı́gdala, para alé m
de estilhaços de vidro, farpas e lascas de madeira.
– A mulher e os ilhos do ministro estã o a chegar – anuncia Janus. –
O aviã o aterra em Arlanda à s oito e um quarto, e a essa hora tem de
estar tudo limpo.
Para a equipa é necessá rio recuperar todas as informaçõ es numa
ú nica sessã o, porque nã o vai haver mais ocasiõ es para o fazer.
Saga sobe a escada que range e entra no quarto do ministro. Sente-
se um fedor a urina e suor. Nas quatro colunas da cama estã o
amarradas correias de couro. Os lençó is estã o manchados de sangue.
Em cima de uma có moda, à luz dé bil de um expositor de reló gios,
está um chicote de cavaleiro.
Atrá s do vidro, os ponteiros de um Rolex e de um Breguet giram
silenciosamente.
Saga pergunta-se se a mulher do ministro estará ao corrente das
visitas das prostitutas.
Provavelmente nã o.
Talvez evite perguntar-lhe.
Com os anos, apercebemo-nos de que conseguimos tolerar muitas
feridas na nossa autoestima, mas ao mesmo tempo continuamos a
agarrar-nos à quilo que, apesar de tudo, nos dá uma mı́nima sensaçã o
de segurança.
A pró pria Saga continuara a namorar o mú sico de jazz Stefan
Johansson durante anos, até ele a deixar.
Agora, Stefan mudou-se para Paris, toca piano numa banda e tem
uma namorada.
Saga sabe perfeitamente que nã o é fá cil viver com ela, tendo em
conta o seu temperamento irritá vel e a forma como certas situaçõ es
desencadeiam no seu humor reaçõ es excessivas.
Trabalha muito e só tem relaçõ es sexuais quando Stefan anda em
tournée pela Sué cia. Ele liga-lhe a meio da noite e Saga deixa-o dormir
em sua casa. Sabe que ele nã o tenciona deixar a namorada por sua
causa, mas ainda assim aceita ir para a cama com ele.
Regressa ao andar de baixo e vai até junto do cadá ver crivado de
tiros.
A luz dos projetores re lete-se sobre as placas de alumı́nio lavrado.
Parece estar em cima de uma ponte de prata suspensa sobre um mar
ensanguentado.
Saga observa durante muito tempo as palmas das mã os do morto
voltadas para cima, o calo amarelecido sob a aliança e as manchas de
suor na camisa, ao nı́vel das axilas.
Em volta dela, os outros agentes trabalham rá pida e
silenciosamente. Filmam e catalogam todos os detalhes num iPad,
atravé s de um sistema de coordenadas em 3D. Com precisã o mecâ nica,
colam cabelos e ibras num suporte de acetato, enquanto os tecidos
bioló gicos e os fragmentos de crâ nio sã o recolhidos numa sé rie de
provetas que serã o de imediato congeladas para evitar a proliferaçã o de
bacté rias.
Nenhuma das amostras será enviada ao laborató rio forense de
Linkö ping, porque a Sä po, em situaçõ es como esta, recorre a uma
estrutura interna.
Saga aproxima-se da porta da varanda e observa os orifı́cios
redondos nas trê s camadas de vidro espelhado.
Os sensores acú sticos e os contactos magné ticos foram ativados e
izeram disparar o alarme apenas quando algué m atirou a cadeira
contra a janela.
E impossı́vel que tenha sido o assassino.
Saga recorda o rosto aterrorizado da mulher, os pulsos feridos, o
fedor a urina.
Tê -la-iam mantido prisioneira naquela casa?
Dois homens cobrem o chã o com enormes folhas de pelı́cula
té rmica, estendendo-as com um grande rolo de borracha.
Um té cnico informá tico envolve o disco duro do sistema de
vigilâ ncia numa folha de plá stico de bolhas e depois guarda o embrulho
num saco té rmico.
Janus está nervoso: tem os maxilares contraı́dos, as sobrancelhas
quase brancas devido à tensã o da pele e a testa sardenta coberta de
suor.
– Que grande merda… que te parece? – pergunta, aproximando-se
de Saga.
– Nã o sei. Os primeiros tiros no tó rax foram disparados à distâ ncia,
de um â ngulo estranho.
Um io de sangue venoso esguichou do corpo do ministro dos
Negó cios Estrangeiros e escorreu do ventre para o chã o.
A velocidade de um disparo atinge cerca de mil quiló metros por
hora e o projé til deixa vestı́gios de escoriaçõ es à volta do orifı́cio de
entrada. Distinguem-se dois ligeirı́ssimos cı́rculos de pó lvora sobre a
camisa do ministro.
Primeiro, dois tiros à distâ ncia, depois mais dois à queima-roupa.
Saga inclina-se sobre o cadá ver e estuda o orifı́cio de entrada nas
ó rbitas oculares; repara que nã o há nenhuma cratera de impacto.
– Usou um silenciador – murmura.
O assassino devia ter usado um silenciador capaz de reduzir a
pró pria combustã o, porque nã o há vestı́gios da auré ola de queimadura.
Caso contrá rio, os gases expulsos ter-se-iam en iado por baixo da pele,
criando o chamado sinal do funil.
E isso que acontece normalmente.
Saga levanta-se e afasta-se para deixar passar um té cnico, que
esfrega um papel adesivo na cara do morto. Pressiona-o contra os
orifı́cios das balas na tentativa de recuperar as partı́culas de pó , depois
identi ica o centro exato das feridas com um marcador.
– Fê -lo rolar de barriga para baixo depois de morto e a seguir
voltou a pô -lo de costas – diz Saga.
– Porquê ? – pergunta o té cnico, com uma gargalhada. – Porque é
que havia de…
– Silê ncio – interrompe-o Janus.
– Quero ver-lhe as costas – diz Saga.
– Faz o que ela diz.
Toda a gente sabe que o tempo se está a esgotar. Enluvam
apressadamente as mã os do ministro em sacos e colocam-lhe ao lado
um saco para cadá ver. Levantam com cautela o corpo robusto do
homem e estendem-no de bruços em cima do saco. Saga observa os
largos orifı́cios e a abertura esfarelada sobre a nuca.
Estuda a zona em que o ministro estava deitado, encontra os
orifı́cios provocados pelas duas ú ltimas balas e percebe por que razã o o
cadá ver foi deslocado.
– O assassino levou as balas.
– Quem é que se comporta assim? – diz Janus para si mesmo.
– Usou uma semiautomá tica com silenciador… Disparou quatro
tiros, dois dos quais mortais – diz Saga.
Um homem corpulento desloca-se por entre os mó veis do salã o a
borrifar um spray revelador de sangue nos tecidos, enquanto um outro
té cnico reposiciona as poltronas com base nos sinais impressos no
tapete valioso.
– Aqui já terminá mos – exclama Janus, batendo palmas. – Daqui a
dez minutos vamos limpar a casa e, dentro de uma hora, no má ximo,
chegam os vidraceiros e os pintores.
A medida que os outros vã o saindo, o homem corpulento recupera
as placas de alumı́nio do chã o. Assim que todos saı́rem de casa, uma
outra equipa vai entrar para a desinfetar com uma espuma que cheira
intensamente a cloro.
Portanto, o assassino nã o se limitou a recuperar as balas; enquanto
o alarme tocava e a Polı́cia se punha em movimento, també m extraiu os
projé teis do chã o e das paredes. Nem um assassino pro issional de
altı́ssimo nı́vel faria uma coisa do gé nero.
Trata-se de um homicı́dio executado na perfeiçã o; no entanto, o
assassino deixou uma testemunha. Nã o havia como nã o reparar que na
cena do crime estava presente uma outra pessoa que, ainda por cima, o
viu.
– Vou falar com a testemunha – diz Saga, convencida de que a
mulher deveria ser envolvida nas investigaçõ es.
– Já convocá mos os nossos especialistas, como sabes – rebate Janus.
– Preciso de lhe fazer algumas perguntas pessoalmente – replica
Saga, enquanto se dirige para o local onde deixou a moto.
9
No tempo da sua construçã o, no inı́cio da Guerra Fria, o bunker de
Katarinaberget era o maior refú gio antiató mico do mundo. Hoje, a
estrutura é usada como parque de estacionamento, à exceçã o da sala
das má quinas, onde estã o instalados o gerador elé trico e o sistema de
ventilaçã o.
A sala das má quinas é um edifı́cio à parte, escavado na montanha
ao lado do refú gio propriamente dito.
Hoje em dia está à disposiçã o da Sä po.
E aqui que se encontra a prisã o secreta chamada Reformató rio, e é
nas velhas tinas subterrâ neas do gelo que tê m lugar os interrogató rios
mais reservados.
Sã o ainda as primeiras horas da manhã quando Saga Bauer
atravessa Slussen montada na sua moto suja, chegada diretamente da
cena do crime em Djursholm, o fato de pele suado gelado contra o seu
peito. Entra pela porta em arco ao lado da estaçã o de serviço e desce
até à garagem. A acú stica do novo ambiente concentra o rugido do
motor.
Por baixo das barras amarelas e esfoladas acumulou-se lixo, e uns
cabos cortados pendem de um altifalante em forma de funil.
As chapas que cobrem o largo buraco no chã o produzem um ruı́do
metá lico sob os pneus quando Saga transpõ e a entrada antiató mica
com as suas colossais portas de correr.
Desce ao longo de uma rampa de cimento, enquanto os seus
pensamentos se concentram naquele misté rio.
Se a mulher estava envolvida no homicı́dio, por que razã o tinha
entã o ativado o alarme antiagressã o e permanecido no local do crime?
Se, pelo contrá rio, nã o estava, porque é que o assassino deixara
uma testemunha com vida?
Se a mulher tinha alguma coisa a ver com o crime, ou se pura e
simplesmente se encontrava no sı́tio errado no momento errado, para a
Sä po representa, em qualquer caso, uma ameaça à segurança.
Saga trava ligeiramente enquanto vira para descer até à garagem
subterrâ nea.
A identidade da mulher foi veri icada. Chama-se So ia Stefansson e,
ao que parece, prostitui-se esporadicamente, apesar de ningué m ter
ainda con irmado isso.
Aquela informaçã o baseia-se apenas nas suas declaraçõ es e nos
poucos documentos recuperados no seu apartamento.
Talvez nã o fosse mais do que um isco… Será que algué m a ilmou na
cama com o ministro para poder depois chantageá -lo?
Mas entã o porque o mataram?
Saga larga o travã o e entra no nı́vel inferior, quarenta metros
debaixo da terra.
Passa pelos poucos carros estacionados, com os pneus da moto a
chiar no solo. Duas estrias de pó vermelho rodopiam ao longo das
laterais do veı́culo enquanto chega à zona mais interior do parque de
estacionamento. Para e aproxima-se de uma porta pintada de azul.
Passa o cartã o no leitor eletró nico, digita nove algarismos e espera
uns segundos até a porta se abrir para uma zona de controlo.
Fornece novamente a sua identidade e a seguir é registada por um
guarda que lhe pede a arma e as chaves. Depois de ter passado pelo
scanner, transpõ e ainda uma segunda barreira.
Na sala do pessoal, apetrechada com uma pequena cozinha, está
sentada Jeanette Fleming, que trabalha para a Sä po como psicó loga e
especialista em interrogató rios. E uma mulher atraente, de meia-idade,
com os cabelos de um loiro-escuro cortados à pajem.
Jeanette tem um aspeto elegante, como de costume, e está a comer
uma salada de um recipiente de plá stico com a tampa pousada ao lado
da mesa.
– Sabes que nã o me estou a insinuar, mas tu é s incrivelmente bonita
– diz, ao mesmo tempo que espeta o garfo de plá stico na salada. – De
cada vez que te vejo reprimo este impulso… Deve ser uma espé cie de
instinto de autopreservaçã o.
Mete o que sobra da salada no frigorı́ ico e vai atrá s de Saga pelo
corredor, em direçã o aos elevadores.
– Como é que vai o recurso? – pergunta-lhe Saga.
– Responderam-me com um nã o seco.
– Que pena.
Durante oito anos, Jeanette tinha esperado que chegasse para o
marido o momento certo para terem um ilho, mas depois ele deixara-a.
Durante mais trê s anos procurara um parceiro em sites de encontros,
antes de pedir autorizaçã o ao tribunal para a inseminaçã o.
– Nã o sei, se calhar vou à Dinamarca… mas gostava que a criança
falasse sueco – brinca, ao mesmo tempo que entram no elevador.
Carrega no botã o do ú ltimo andar, a porta fecha-se e as
engrenagens põ em-se ruidosamente em movimento.
– Só consegui ler o primeiro relató rio no telemó vel – diz Saga.
– Foram demasiado brutais com ela, assustou-se e fechou-se em si
mesma – explica Jeanette. –Obviamente, foi dada a ordem de usar mã o
pesada.
– Quem? Quem foi que deu essa ordem?
– Nã o faço ideia – responde Jeanette.
Descem rapidamente no elevador. A luz da cabina desliza pelas
á speras paredes rochosas. Por um instante aparece o contrapeso,
depois desaparece por cima das cabeças delas.
– A So ia tem medo de que voltem a fazer-lhe mal… Precisa de
algué m que a ouça, que a proteja. – E quem é que nã o precisa? – brinca
Saga.
O elevador para, e as duas mulheres avançam pelo corredor
despido. Naquela profundidade reina uma penumbra imó vel.
O mé dico-legista identi icou a presença de uma elevada quantidade
de lunitrazepam, um indutor de sono de açã o rá pida, no sangue de
So ia, validando assim a sua versã o. Tem feridas nos pulsos e nos
tornozelos, e hematomas no interior das coxas, e a marca da sua mã o
foi identi icada na cadeira que estilhaçou a janela.
Se a sua versã o fosse con irmada, isso signi icaria que So ia devia
ser considerada parte lesada, com base na lei sobre a prostituiçã o. Fora
vı́tima de abusos e maltratada por um cliente, e deveria falar com a
Polı́cia e com os psicó logos.
No entanto, por estar també m envolvida num grave ataque
terrorista, acabou numa espé cie de zona cinzenta onde as leis normais
e o princı́pio da certeza já nã o tê m valor.
– Acho que é melhor eu esperar na sala do controlo, para começar –
diz Jeanette.
Saga Bauer digita o có digo e abre a porta da velha tina do gelo.
Na enorme divisã o sem janelas a iluminaçã o é muito intensa, e uma
câ mara de vı́deo de circuito fechado regista tudo o que se passa.
Originariamente, a tina devia servir para conter duzentas toneladas
de gelo, com o im de impedir que, em caso de guerra ató mica, a
temperatura no interior do bunker subisse demasiado por causa do
calor dos corpos daqueles que ali se refugiassem.
So ia Stefansson encontra-se no centro da sala, numa estranha
posiçã o, suspensa sobre uma tela de plá stico. Tem os braços amarrados
atrá s das costas à altura dos cotovelos, está esticada para a frente, e a
maior parte do seu peso é suportada por uma corda amarrada a uma
espé cie de guindaste por baixo de uma trave. Tem os ombros em
esforço, o corpo inclinado, e os cabelos sujos cobrem-lhe o rosto.
10
Saga aproxima-se imediatamente de So ia, controla-lhe a
respiraçã o e explica-lhe que a vai descer lentamente até ao chã o, mas
que ela terá de ajudar com as pernas para nã o se magoar.
Saga vai até à roldana, destrava-a e deixa-a girar. O guindaste emite
um tique-taque ao mesmo tempo que So ia desce lentamente. Uma
perna quase se dobra debaixo dela num â ngulo estranho.
– Finque os calcanhares contra o chã o e faça força – ordena Saga.
Os tornozelos da mulher estã o feridos, e Saga recorda as correias
ensanguentadas atadas à s colunas da cama do ministro.
Primeiro lá e agora aqui, sem qualquer contacto com o mundo
exterior, sem qualquer explicaçã o.
So ia deixa-se cair de lado em cima da tela. Respira devagar,
exausta. Sem maquilhagem parece mais jovem, podia ser uma
rapariguinha. Tem as pá lpebras inchadas e os hematomas no pescoço
icaram mais escuros.
Quando Saga lhe liberta os braços dos laços de tecido, So ia treme e
contrai o corpo.
– Nã o me faça mal – suplica, ofegante. – Por favor, eu nã o sei nada.
Saga aproxima-se da parede, faz subir a corda até ao teto e pega
numa cadeira para So ia.
– Chamo-me Saga Bauer, sou comissá ria da Sä po.
– Já chega – suspira a mulher. – Por favor, eu nã o aguento…
– So ia, escute-me… Eu nã o sabia que a tinham tratado assim,
lamento muito, e vou falar disto ao meu superior.
So ia levanta ligeiramente a cabeça do chã o. Tem as faces sulcadas
de lá grimas: tiraram-lhe as joias todas e os cabelos suados colaram-se-
lhe ao rosto pá lido.
Saga experimentou na primeira pessoa o afogamento simulado
durante um treino especial, mas nã o está convencida da sua e icá cia.
Lança um olhar a um balde com um farrapo atirado para a á gua
suja de sangue, e pensa que a ú nica coisa que a tortura é capaz de
revelar sã o os segredos do torturador.
Abre uma garrafa de á gua, ajuda So ia a beber e depois estende-lhe
um pedaço de chocolate.
– Quando é que eu vou poder ir para casa? – sussurra So ia.
– Nã o sei, primeiro vai ter de responder a algumas perguntas – diz
Saga, num tom apologé tico.
– Eu já contei tudo. Nã o iz nada de mal, nã o sei porque é que estou
aqui – diz a rapariga, a chorar.
– Acredito, mas preciso de saber o que estava a fazer naquela casa.
– Eu já disse tudo – geme So ia.
– Diga-me també m a mim – pede Saga com doçura.
So ia ergue lentamente os braços anquilosados para limpar as
lá grimas dos olhos.
– Trabalho como acompanhante de luxo e ele contratou-me –
responde, num io de voz.
– Como? Como é que a contratou?
– Pus um anú ncio e ele escreveu-me um e-mail a dizer-me o que
desejava.
A jovem ergue-se lentamente para se sentar; aceita mais um pedaço
de chocolate, en ia-o na boca e mastiga.
– Tinha um spray de pimenta. Leva-o sempre consigo?
– Sim, apesar de habitualmente os clientes serem bastante
simpá ticos e atenciosos… Aliá s, tenho mais vezes problemas porque
algué m se apaixona por mim do que por encontrar algué m violento.
– Mas nã o há ningué m que saiba aonde a So ia vai ou que possa
intervir se precisar de ajuda?
– Escrevo os nomes e as moradas num caderno… E a Tamara, que é
a minha melhor amiga, já o tinha tido como cliente, e nã o houve
problemas.
– Tamara. Apelido?
– Jensen.
– Onde mora?
– Foi viver para Gotemburgo.
– Tem um nú mero de telefone?
– Sim, mas nã o sei se está ativo.
– Tem mais amigas que trabalhem como acompanhantes?
Saga afasta-se alguns passos, observa So ia e pensa que
provavelmente está a dizer a verdade sobre o seu trabalho.
Nã o há nada que contradiga aquela histó ria, apesar de haver
pouquı́ssimos elementos que a con irmem.
– O que é que sabe acerca do seu cliente?
– Nada… Pagou imenso para eu o amarrar à cama.
– E a So ia amarrou-o?
– Porque é que toda a gente me pergunta o mesmo? Nã o percebo,
nã o estou a mentir. Porque é que havia de mentir?
– Conte-me só o que aconteceu, So ia – diz Saga, tentando cruzar o
seu olhar.
– Drogou-me e amarrou-me à cama.
– Descreva-me a cama.
– Era grande… Nã o me lembro muito bem, que importâ ncia é que
isso tem?
– De que é que falaram?
– De nada; era muito aborrecido.
Os té cnicos já examinaram o computador de So ia, para alé m do
telefone e da agenda com os endereços: nã o sabia que o seu cliente era
o ministro dos Negó cios Estrangeiros sueco, nã o há nada que leve a
suspeitar isso.
Saga observa a boca tensa e o rosto exausto da rapariga. E mais
uma vez assaltada pela suspeita de que ela se está a cingir com
demasiada idelidade à versã o original. E quase como se evitasse certos
pormenores para nã o ser apanhada em falso.
– Quando chegou, viu algum carro do lado de fora do gradeamento?
– Nã o.
– Como é que ele atendeu o intercomunicador, quando tocou?
– Nã o fazia ideia de quem fosse – diz So ia, com a voz quase
quebrada pelo choro. – Percebi que era rico e importante, mas nã o sei
nada, só que dava pelo nome de Wille. Mas quase ningué m usa o seu
verdadeiro nome.
Saga pensa que, se So ia realmente pertencer a alguma organizaçã o
subversiva, jamais vai confessar o que quer que seja. No entanto, se foi
enganada ou obrigada a colaborar, é possı́vel que se abra.
– So ia, eu estou pronta a ouvi-la, se me quiser contar alguma
coisa… Nã o matou ningué m, eu sei, e é por isso que acho que a posso
ajudar. Mas, para o fazer, preciso de saber a verdade.
– Sou acusada de alguma coisa? – pergunta So ia, com descon iança.
– Assistiu ao homicı́dio do ministro dos Negó cios Estrangeiros,
estava amarrada à sua cama, atirou uma cadeira contra a janela da sua
casa e escorregou no seu sangue.
– Nã o sabia… – murmura So ia, empalidecendo.
– Por isso, preciso de respostas… Acho que a enganaram ou
ameaçaram, mas queria saber por si qual era a sua tarefa ontem à noite.
– Nã o tinha tarefa nenhuma, nã o percebo o que quer dizer.
– Se nã o colaborar, nã o poderei ajudá -la – diz Saga, cortando a
conversa, ao mesmo tempo que se levanta da cadeira.
– Nã o se vá embora, por favor – diz a rapariga, com uma voz
carregada de desespero. – Estou atentar ajudar, juro.
11
Saga aproxima-se da porta e agarra na maçaneta, deixando que
So ia lhe implore que nã o se vá embora.
– Se algué m a está a ameaçar, a si ou aos seus familiares, podemos
ajudar – diz Saga, enquanto abre a porta. – Podemos pô r à vossa
disposiçã o uma casa de abrigo e fornecer-vos novas identidades.
Conseguem safar-se.
– Nã o percebo, eu… Quem é que me ameaça? Por que razã o
haveriam de… é uma loucura.
Saga volta a pensar que talvez So ia se encontrasse pura e
simplesmente no sı́tio errado no momento errado. Nesse caso, poré m,
falta perceber por que razã o um assassino pro issional teria deixado
uma testemunha com vida.
E, realmente, ela é uma testemunha; deve ter visto alguma coisa
que possa ser ú til para a investigaçã o. Durante os primeiros
interrogató rios nã o conseguiu fornecer qualquer descriçã o do
assassino. Limitou-se a repetir que tinha uma má scara no rosto e
insistiu no facto de tudo ter acontecido rapidamente.
Saga tem de a levar a recordar algum detalhe concreto, porque até
os pormenores mais marginais podem desencadear uma verdadeira
avalanche e trazer à superfı́cie lembranças apagadas pelo choque.
– Viu o assassino – a irma Saga, voltando-se.
– Mas tinha um passa-montanhas en iado, já disse.
– De que cor eram os olhos dele? – pergunta Saga, voltando a fechar
a porta.
– Nã o sei!
– O formato do nariz?
So ia abana a cabeça. Um corte volta a abrir-se-lhe no lá bio e
recomeça a sangrar.
– O ministro foi ferido, a So ia virou-se e viu o assassino com a
pistola na mã o.
– Só pensava em fugir. Comecei a correr, caı́ e encontrei o alarme
que…
– Espere um instante – interrompe-a Saga. – Quando se virou, qual
era o aspeto do assassino?
– Segurava a pistola com as duas mã os.
– Desta maneira? – pergunta Saga, mostrando-lhe uma posiçã o
idê ntica.
– Sim, mas olhava em frente, para trá s de mim… Nã o lhe importava
que eu estivesse ali, nem sequer sei se me viu. Aconteceu tudo em
poucos segundos; estava atrá s de mim e depois correu para ele,
agarrou-o pelos cabelos e…
So ia cala-se, com a testa franzida e o olhar ixo no vazio, como se
estivesse a rever toda a cena na sua mente.
– Agarrou-o pelos cabelos? – pergunta Saga, docemente.
– O Wille caiu de joelhos depois do segundo disparo… E o assassino
agarrou-o pelos cabelos, depois encostou-lhe a pistola a um olho. Nã o
sei, era tudo tã o irreal…
– Sangrava muito, nã o é verdade?
– A jorros.
– Estava assustado? – prossegue Saga.
– Parecia aterrorizado – murmura So ia. – Pediu mais tempo e disse
que era tudo um engano. Tinha sangue na garganta, por isso era difı́cil
percebê -lo, mas tentou explicar que era um erro, que nã o devia ser
morto.
– Que foi que ele disse exatamente?
– Disse… «Julgas que sabes tudo, mas nã o é bem assim»… E, nesse
momento, o assassino… estava calmı́ssimo, e disse… que abriu a porta…
Espera, disse assim: «O Ratjen abriu as portas… E agora você s vã o todos
mergulhar no inferno… todos.» Foram estas as palavras.
– Ratjen?
– Exato.
– Será que poderia ter pronunciado outro nome?
– Nã o… Isto é … Foi isso que eu ouvi, pelo menos.
– Ficou com a impressã o de que o ministro conhecia esse tal
Ratjen?
– Nã o – responde So ia, fechando os olhos.
– Vá lá , coragem, que mais é que ele disse? – pergunta-lhe Saga.
– Nada, nã o ouvi mais nada.
– Que signi ica o facto de o Ratjen ter aberto as portas?
– Nã o sei.
– Será o Ratjen que vai fazer aquilo? Será ele que os vai fazer a
todos mergulhar no inferno? – pergunta Saga, erguendo a voz.
– Por favor.
– O que é que acha? – pergunta Saga, enquanto se levanta.
– Nã o sei – responde So ia, limpando as lá grimas nas faces.
Saga chega rapidamente à porta e ouve So ia repetir em voz alta
que nã o sabe nada.
12
O motorista prossegue, impassı́vel, enquanto veri ica atravé s do
espelho retrovisor se o carro da segurança continua atrá s deles.
O rugido do motor chega como um zumbido agradá vel ao interior
da carroçaria do Volvo fabricado especialmente para o primeiro-
ministro.
Há um ano que a Sä po decidiu que o chefe do governo sueco deve
viajar a bordo de um carro blindado e reforçado, que pesa quase quatro
toneladas, com um motor de 12 cilindros e 453 cavalos. E um veı́culo
capaz de fazer marcha-atrá s a cem quiló metros por hora, com vidros à
prova de bala.
O primeiro-ministro está sentado no espaçoso sofá de pele que
constitui o assento posterior, com o polegar e o indicador da mã o
esquerda delicadamente apoiados sobre as pá lpebras fechadas. O
casaco do fato azul-escuro está desabotoado e a gravata cor-de-rosa cai
obliquamente sobre a camisa.
Ao lado dele está Saga Bauer, com o fato de motociclista. Nã o teve
tempo de mudar de roupa e, ao im de uma noite e uma manhã inteiras
com o fato vestido começa a sentir calor. Apetecia-lhe abrir o fecho-
é clair, mas conté m-se porque por baixo está nua.
No banco da frente do lado direito está o chefe da Sä po, Verner
Sandé n. Segurando-se com a mã o direita ao encosto do assento, estica o
corpo esguio para trá s, de forma a conseguir olhar para o primeiro-
ministro nos olhos, enquanto o informa da oportuna intervençã o da
Sä po.
Com a sua voz profunda, recapitula a cronologia dos factos, desde a
chegada de Saga Bauer e da organizaçã o dos bloqueios das ruas até à
rá pida inspeçã o da cena do crime e ao imediato relató rio dos té cnicos.
– A casa foi limpa, já nã o restam vestı́gios daquilo que aconteceu
esta noite – conclui Verner.
– Eu só penso nos familiares – diz o primeiro-ministro em voz
baixa, olhando para fora da janela.
– Estamos a ocultar os factos, obviamente é uma questã o que deve
manter-se completamente secreta.
– Acham entã o que a situaçã o é sé ria – diz o primeiro-ministro, ao
mesmo tempo que responde a uma mensagem no telemó vel.
– Sim, algumas circunstâ ncias particulares do caso levaram-nos a
pedir-lhe para se encontrar connosco imediatamente – responde
Verner.
– Como sabem, poré m, esta noite tenho de partir para Bruxelas e
nã o me sobra tempo para tratar deste assunto – explica o primeiro-
ministro.
Saga sente que a pele do fato se colou à s ná degas suadas.
– Estamos a lidar com um assassino pro issional ou
semipro issional, um indivı́duo que cumpre um plano muito bem
de inido – explica ela, enquanto tenta erguer-se ligeiramente.
– A Sä po vê complots em todo o lado – diz o primeiro-ministro,
voltando a prestar atençã o ao telemó vel.
– O assassino usou uma pistola semiautomá tica com um silenciador
capaz de arrefecer os gases de combustã o – explica Saga. – Matou o
ministro dos Negó cios Estrangeiros com um tiro no olho direito e
apanhou a bala; depois debruçou-se sobre o cadá ver, encostou-lhe a
pistola ao olho esquerdo, disparou e apanhou a bala, virou…
– Já percebi, meu Deus – exclama o primeiro-ministro, a olhar para
ela.
– Nã o foi o assassino que fez soar o alarme – continua Saga. – No
entanto, apesar de estar a tocar tã o alto que podia acordar o bairro
inteiro, apesar de a Polı́cia estar prestes a chegar, aquele homem
deteve-se para recuperar as balas cravadas no parquet e nas paredes,
antes de deixar a casa. Sabia onde se encontravam todas as câ maras de
vigilâ ncia; nã o temos uma ú nica imagem dele… E posso garantir-lhe
que os té cnicos nã o vã o encontrar nada que nos permita chegar mais
perto.
Saga cala-se e observa o primeiro-ministro, que bebe um gole de
á gua mineral norueguesa, pousa a pesada garrafa na superfı́cie de
madeira lacada da mesinha e passa uma mã o pela boca.
O carro percorre a grande velocidade a zona das embaixadas e
avança em direçã o à parte norte de Djurgå rden. A esquerda, estendem-
se os extensos relvados do bairro de Gä rdet. No sé culo XVII, aquele local
era uma á rea de treino militar, mas hoje é frequentado apenas por
amantes do jogging e donos de cã es.
– Portanto, foi uma execuçã o? – pergunta o primeiro-ministro, com
uma voz rouca.
– Ainda nã o conhecemos as razõ es, mas podemos admitir a
hipó tese de uma forma de extorsã o. Talvez o assassino quisesse aceder
a informaçõ es reservadas – explica Verner. – Talvez tenha obrigado o
ministro a fornecer uma declaraçã o qualquer diante de uma câ mara de
vı́deo.
– Nada de bom, tanto quanto me parece – suspira o primeiro-
ministro.
– Nã o. Estamos convencidos de que se trata de terrorismo polı́tico,
apesar de, para já , ningué m ter reivindicado a açã o – responde Verner.
– Terrorismo?
– Estava uma prostituta em casa do ministro – diz Saga.
– Aquele homem tinha alguns problemas – responde o chefe do
governo, respirando profundamente pelo nariz aquilino.
– Sim, mas…
– Esqueçam esse aspeto – interrompe-a ele.
Um corvo levanta voo da estrada, algumas folhas caem ao chã o e,
no meio de um campo, vê -se um cavalo cinzento completamente imó vel
sob a chuva ina.
Saga dirige um olhar ao primeiro-ministro. Tem uma expressã o
ausente e a boca contraı́da. Pergunta a si mesma se ele estará a tentar
compreender o que aconteceu. O ministro dos Negó cios Estrangeiros
do seu governo foi assassinado. Talvez nesse preciso instante esteja a
pensar, com uma angú stia crescente, na primeira vez em que ocorreu
algo semelhante.
Num dia sombrio do outono de 2003, a entã o ministra dos
Negó cios Estrangeiros, Anna Lindh, andava a fazer compras com uma
amiga quando foi agredida por um homem armado com uma faca que a
atingiu vá rias vezes nos braços, no peito e na barriga.
A ministra nã o tinha guarda-costas, nem qualquer espé cie de
proteçã o pessoal. Sofreu ferimentos de tal maneira graves que morreu
na mesa de operaçõ es, durante a anestesia, apó s transfusõ es de vá rios
litros de sangue.
Nessa altura, a Sué cia era diferente, um paı́s onde os polı́ticos se
sentiam ainda no direito de defender um ideal de decoro de cariz
socialista.
– Mas esta mulher de quem o ministro abusou – continua Saga,
itando o chefe do governo nos olhos – ouviu uma troca de frases que
nos leva a crer que estamos apenas perante o primeiro de uma sé rie
programada de homicı́dios.
– Homicı́dios? Mas de que raio de homicı́dios é que estã o a falar? –
pergunta o primeiro-ministro em voz alta.
13
O automó vel do chefe do governo desliza pela estreita ponte de
pedra de Djurgå rdsbron, vira imediatamente à esquerda e continua ao
longo do canal. A estrada de gravilha crepita debaixo dos pneus; dois
patos descem até à á gua e afastam-se da margem a nadar.
– O assassino referiu-se a um tal Ratjen, como se se tratasse de uma
espé cie de igura-chave – explica Verner.
– Ratjen? – O primeiro-ministro repete o nome com um ar
interrogativo.
– Achamos que já o identi icá mos. Chama-se Salim Ratjen e está a
cumprir pena por crimes ligados à droga – explica Saga, inclinando-se
para a frente na tentativa de descolar a pele do fato, que se lhe agarrou
à s costas.
– Consideramos que deve haver uma estreita ligaçã o entre os factos
desta noite e o xeque Ayadal-Jahiz, chefe de uma organizaçã o de cariz
terrorista na Sı́ria – acrescenta Verner.
– Estas sã o as ú nicas imagens de Ayad al-Jahiz de que dispomos –
diz Saga, estendendo o telemó vel ao primeiro-ministro.
Numa breve gravaçã o, vê -se o rosto de um homem já de idade, com
uma expressã o simpá tica, de barba grisalha e ó culos. Sorri enquanto
fala e olha diretamente para a objetiva, com o tom de algué m que está a
ensinar alunos atentos.
– Tem salpicos de sangue nos ó culos – murmura o primeiro-
ministro.
O xeque Ayad al-Jahiz conclui o seu breve discurso e abre os braços
num gesto de benevolê ncia.
– O que é que ele disse?
– «Arrastá mos os in ié is com os camiõ es e os jipes até que as cordas
rebentaram… Agora, a nossa tarefa é encontrar os chefes responsá veis
pelos bombardeamentos e crivar as suas faces de balas» – responde
Saga.
A mã o do primeiro-ministro treme quando a passa pela boca.
Estã o a atravessar novamente a ponte de Lilla Sjö tull, em direçã o ao
pequeno porto turı́stico.
– Alé m disso, os serviços de segurança da prisã o de Hall
interceptaram um telefonema do Salim Ratjen para um nú mero nã o
identi icado – conta Verner. – Ouviram falar em á rabe de trê s grandes
celebraçõ es. A primeira é pelo homicı́dio do ministro dos Negó cios
Estrangeiros… A segunda terá lugar na pró xima quarta-feira e a terceira
no dia sete de outubro.
– Meu Deus – murmura o primeiro-ministro.
– Temos quatro dias – diz Verner.
Quando viram bruscamente para regressar à torre de rá dio de
Kaknä s, alguns ramos cobertos de folhas verde-claras roçam o tejadilho
do carro.
– Como é possı́vel que esse Ratjen nã o esteja sob vigilâ ncia? –
pergunta o primeiro-ministro, enquanto tira um lenço de papel do
dispensador na porta do carro.
– Antes disto, nunca teve contactos com nenhuma rede terrorista –
responde Verner.
– Entã o radicalizou-se na cadeia – diz o chefe do governo, limpando
o pescoço.
– Sim, é isso que nó s achamos.
A chuva torna-se mais intensa, e o motorista põ e os limpa-para-
brisas a funcionar. As escovas afastam do vidro as gotas minú sculas
sem fazer ruı́do.
– E acham que uma dessas celebraçõ es… possa ter a ver comigo?
– Temos necessariamente de considerar um risco desse tipo –
responde Saga.
– Portanto, aquilo que estã o a dizer-me é que pode ser que algué m
me mate esta quarta-feira? –pergunta o primeiro-ministro, sem
conseguir esconder o nervosismo.
– Temos de convencer o Ratjen a falar… Temos de descobrir qual o
seu plano antes que seja demasiado tarde – responde Verner.
– De que raio é que estã o à espera?
– Chegá mos à conclusã o de que o Salim Ratjen nã o pode ser
interrogado segundo o processo convencional – tenta explicar Saga. – Já
se recusou a responder quando foi interrogado há cinco anos, e durante
o processo nã o disse uma palavra.
– Merda. Mas você s tê m os vossos mé todos, nã o é verdade?
– Pode demorar meses a dobrar uma pessoa – explica ela.
– Eu tenho um trabalho muito importante – diz o primeiro-
ministro, enquanto esfarrapa o lenço de papel. – Sou casado, tenho dois
ilhos e…
– Lamentamos muito tudo isto – diz Verner.
– E a primeira vez que você s sã o mesmo precisos… Portanto, nã o
me venham dizer que nã o se pode fazer nada.
– Pergunte-me o que vamos fazer – diz Saga.
O primeiro-ministro olha para ela, surpreendido, e alarga um pouco
o nó da gravata.
– O que vamos fazer? – repete.
– Vamos pedir ao motorista que pare e saia do carro.
Chegaram à s esquá lidas cisternas de petró leo de Loudden. O longo
braço do molhe é quase completamente engolido pela chuva cinzenta.
Apesar de o primeiro-ministro apresentar ainda uma expressã o
surpreendida, estica-se para a frente e fala com o motorista.
Chove com mais intensidade; do cé u cai uma chuva escura e fria
que chapinha nas poças. O motorista comunica rapidamente com o
carro da segurança e para exatamente em frente a um depó sito de
combustı́vel.
Atrá s deles, o BMW negro aproxima-se e trava suavemente.
O motorista sai do carro e afasta-se alguns metros. Em poucos
segundos, a chuva escurece o tecido bege da farda.
– Entã o, o que vamos fazer? – pergunta outra vez o primeiro-
ministro, a olhar para Saga.
14
A sombra de uma nuvem corre lentamente sobre a paisagem plana;
atravessa o gradeamento do pá tio, desliza ao longo do relvado
amarelecido e trepa pelo muro de seis metros de altura.
No setor T da prisã o de alta segurança de Kumla, o dia de trabalho
acabou e os detidos acotovelam-se para entrar no minú sculo giná sio ao
fundo do corredor.
Pesos, halteres e outros objetos suscetı́veis de serem usados como
armas sã o proibidos.
Quando Reiner Kronlid e os seus guarda-costas da Irmandade
entram, os detidos afastam-se. Reiner controla totalmente o trá ico de
droga no setor e defende essa posiçã o como um deus cioso.
Sem que Reiner precise de dizer uma palavra, um homem magro
desmonta imediatamente da bicicleta e limpa o assento e o guiador com
um papel.
A luz dos né ones estende-se sobre as paredes descascadas e o ar
torna-se mais pesado com o cheiro do suor e do bá lsamo de tigre.
Os velhos toxicó manos, como de costume, estã o agrupados ao lado
da parede divisó ria em acrı́lico, enquanto dois albaneses do gangue de
Malmö se deslocam devagar junto da mesa de pingue-pongue
desmontada.
De repente, uma nuvem tapa o sol pá lido e ica tudo escuro.
Joona Linna termina uma sé rie de elevaçõ es, depois larga a barra
presa no teto, desce suavemente até ao chã o e lança um olhar atravé s
da janela. A luz poeirenta volta a encher o giná sio. As pupilas dele
contraem-se e, em poucos segundos, os seus olhos cinzentos parecem
duas poças de chumbo fundido.
Joona está bem barbeado e tem os cabelos loiros curtos, quase à
escovinha; a testa franzida e a boca crispada conferem-lhe uma
expressã o sé ria. Veste uma T-shirt azul com as costuras repuxadas
sobre os mú sculos compactos.
– Mais uma sé rie antes de passar ao seguinte – diz-lhe Marko.
Marko é um preso idoso, mas atlé tico, que tomou a seu cargo o
papel de guarda-costas de Joona. Há constantemente fortes tensõ es
entre os vá rios grupos do setor, apesar de naquela fase se ter atingido
uma espé cie de equilı́brio. Ainda assim, Marko segue Joona Linna aonde
quer que este vá .
Um novo detido, com uma cara macilenta de pá ssaro, aproxima-se
do giná sio. Esconde qualquer coisa na mã o encostada ao lado do corpo.
Tem as maçã s do rosto a iladas, os lá bios pá lidos e usa os cabelos inos
apanhados num pequeno rabo de cavalo.
Nã o está com roupa de treino; veste uma camisola cor de ferrugem
que deixa ver o pescoço e o peito tatuados.
Algué m abre a porta e um novelo de pó e cabelos atravessa o
pavimento, empurrado pela corrente de ar.
O homem desengonçado passa por baixo da ú ltima câ mara de
vigilâ ncia ixa no teto, entra no giná sio e para diante de Joona Linna.
Alguns dos presos viraram as costas a Joona e a Marko.
A atmosfera no giná sio torna-se mais tensa e todos se movem com
uma cautela cada vez maior.
Naquele silê ncio, ouve-se a nota aguda produzida pelo aparelho de
ar condicionado.
Joona volta a posicionar-se por baixo da barra, agarra-a com um
salto e iça-se.
Marko ica atrá s dele com os braços musculosos e tatuados
esticados ao longo dos lancos.
Joona sente as tê mporas contraı́rem-se de cada vez que se ergue
para levar o queixo acima da barra.
– Es tu o chui? – pergunta o homem de rosto macilento.
Minú sculos grã os de poeira caem lentamente atravé s do ar imó vel.
O guarda que está atrá s do vidro troca algumas palavras com um dos
detidos e dirige-se para a sala de controlo.
Joona ergue-se outra vez.
– Mais trinta – diz Marko.
O homem de rosto macilento ixa Joona. O suor brilha sobre o ino
lá bio superior, escorre-lhe ao longo das orelhas e mais abaixo sobre as
faces.
– Nã o me escapas, palerma – diz, com um sorriso tenso.
– Nyt pelkään1 – responde Joona, com toda a calma, erguendo-se
novamente.
– Entendes? – diz o homem a rir, trocista. – Entendes o que te estou
a dizer?
Joona apercebe-se de que o recé m-chegado esconde uma faca ao
lado do corpo, uma arma improvisada preparada com um caco de vidro
comprido, envolvido em ita adesiva.
Deve estar a apontar para baixo, pensa Joona. Vai tentar atingir-me
sob as costelas. E praticamente impossı́vel apunhalar algué m com um
pedaço de vidro, mas se o caco for reforçado com uma tala pode
penetrar na carne antes de se partir.
Outros detidos juntam-se do outro lado da parede de acrı́lico, o
olhar carregado de uma curiosidade feroz. Dispõ em-se à frente das
câ maras, lenta e de uma forma aparentemente casual, e a linguagem
corporal revela um entusiasmo contido.
– Es um chui – sibila o homem e depois volta-se a olhar para os
outros. – Sabiam que ele é polı́cia?
– A sé rio? – diz um dos detidos, a rir, enquanto bebe de uma garrafa
de plá stico.
Uma cruz oscila no pescoço de um homem de feiçõ es marcadas. Na
parte interior dos braços tem cicatrizes provocadas por queimaduras
de á cido ascó rbico, usado para diluir a heroı́na.
– Porra, juro-vos – continua o preso de rosto encovado. – Vem da
Polı́cia Criminal, é um porco maldito, um chui de merda.
– OK, isso explica por que razã o toda a gente lhe chama «o Chui» –
diz o homem da garrafa de plá stico, iró nico, a rir baixinho, com o rosto
virado para o chã o.
Joona Linna continua os seus exercı́cios.
Reiner Kronlid manté m-se sentado na bicicleta, com uma expressã o
impassı́vel. Com um olhar imó vel de ré ptil observa a evoluçã o dos
acontecimentos.
Um dos homens de Malmö entra e sobe para a passadeira. O som
rı́tmico da sua corrida e o silvo do tapete enchem a divisã o acanhada.
Joona larga a barra, deixa-se cair no chã o e observa o homem
armado.
– Posso oferecer-te um tó pico de re lexã o? – diz, com o seu
caracterı́stico sotaque inlandê s. – A falsa ignorâ ncia nasce da
sabedoria, a ilusó ria fraqueza nasce…
– Que merda está s para aı́ a dizer? – interrompe-o o outro.
Depois de ter prestado serviço como paraquedista, Joona foi
recrutado para as operaçõ es especiais, fez um treino na Holanda sobre
té cnicas nã o convencionais de combate corpo a corpo e sobre o uso de
armas inovadoras.
O tenente Rinus Advocaat preparou-o para situaçõ es como esta.
Joona sabe exatamente como imobilizar o braço do homem, como lhe
partir a traqueia com uma sé rie de pancadas repetidas e como lhe
arrancar a faca, en iar-lha no pescoço e partir-lhe a ponta.
– Mata o chui – sibila um dos homens da Irmandade e depois
desata a rir. – Nã o tens tomates…
– Está calado – interrompe-o um preso mais jovem.
– Mata-o – repete o outro, a rir.
O recluso de rosto macilento aperta o punhal. Joona ita-o nos olhos
e aproxima-se dele.
Sabe que, em caso de ataque, deverá conter-se para nã o executar a
sé rie de movimentos dos quais o seu corpo conserva ainda intacta a
lembrança.
Deverá limitar-se a bloquear-lhe o braço, arrancar-lhe a faca da
mã o e atirá -lo ao chã o.
Nos quase dois anos que passou na cadeia, conseguiu sempre
manter-se à margem das rixas mais violentas; o seu ú nico objetivo é
cumprir a pena e começar uma nova vida.
Joona vira as costas ao preso do punhal. Enquanto troca algumas
palavras com Marko, continua a vigiar o re lexo do homem atravé s da
janela que dá para o pá tio.
– Eu até podia matar aquele chui – diz o recé m-chegado, inspirando
nervosamente atravé s do nariz ino.
– Nã o podias, nã o – responde-lhe Marko, por cima do ombro de
Joona.

«Já estou com medo», em inlandê s. (N. da T.)



15
Passaram vinte e trê s meses desde que o tribunal de Estocolmo
condenou o comissá rio Joona Linna por ter ajudado um preso a evadir-
se. Joona fora conduzido à entrada de segurança da prisã o de Kumla
com correntes nos pulsos, nos tornozelos e na cintura.
Os agentes da guarda prisional encarregados do transporte
tomaram conta dos seus poucos objetos pessoais, da ordem de prisã o e
dos documentos de identi icaçã o. Depois, conduziram-no a um gabinete
para fazerem o registo, obrigaram-no a despir-se e a deixar uma
amostra de urina para os testes toxicoló gicos; a seguir entregaram-lhe
roupa nova, lençó is e uma escova de dentes.
Ao im de cinco semanas de inqué ritos, foi mandado para o setor T,
em vez da prisã o de alta segurança de Saltvik, onde normalmente vã o
parar os polı́cias condenados. Deveria passar os anos seguintes numa
cela de seis metros por seis, com o pavimento de linó leo, um lavabo e
uma janelinha munida de vidro à prova de bala e barras de ferro.
Durante os primeiros oito meses, Joona trabalhou com os outros
detidos na grande lavandaria. Travou conhecimento com muitos dos
homens do segundo andar e contou a todos eles que tinha trabalhado
para a Polı́cia Criminal e que fora condenado. Sabia que era impossı́vel
esconder o seu passado. Quando um novo preso chega a um setor, os
outros pedem logo a um familiar para obter uma có pia da sentença.
Joona tem boas relaçõ es com quase todos os grupos do setor, mas
manté m-se afastado da Irmandade e do seu chefe, Reiner Kronlid. A
Irmandade está ligada a grupos de extrema-direita, oferece proteçã o
aos peixes graú dos encerrados na prisã o e dedica-se ao trá ico de droga
nos maiores estabelecimentos prisionais.
Depois do verã o, Joona reuniu um grupo de dezanove detidos
interessados em prosseguir estudos a vá rios nı́veis. Juntos criaram um
cı́rculo para se apoiarem uns aos outros, e até agora só dois tinham
desistido.
A monotonia da rotina prisional faz com que todo o
estabelecimento pareça uma espé cie de reló gio lentı́ssimo. Todas as
portas das celas sã o abertas à s oito da manhã e fechadas à s oito da
noite. Cada salto do ponteiro anula um pedacinho da vida dos detidos.
Assim que a fechadura automá tica dispara de manhã , Joona sai da
cela para ir tomar um duche e o pequeno-almoço, antes da avalanche de
detidos nas gé lidas passagens subterrâ neas que, como uma espé cie de
rede de esgotos, ligam as vá rias secçõ es da prisã o.
Os homens prosseguem para lá do cruzamento onde em tempos
havia um ponto de trá ico de drogas, esperam que as portas se abram e
continuam pela passagem subterrâ nea.
Os supersticiosos rapazes de Malmö tocam com a ponta dos dedos
no mural que representa Zlatan Ibrahimović , antes de desaparecerem
em direçã o à o icina onde se dedicam à pintura com tinta em pó .
O grupo do estudo dirige-se para a biblioteca. Joona chegou a meio
de um curso de horticultura, e Marko foi inalmente admitido ao ensino
secundá rio. O queixo tremera-lhe ao anunciar que se ia inscrever no
liceu.
No estabelecimento prisional, este poderia ser um dia como
qualquer outro. Mas nã o para Joona, que está prestes a encontrar-se
com Valeria de Castro. Logo a seguir, a sua vida dará uma volta
imprevista e perigosa.
Joona prepara a mesa na sala de visitas, dispondo pratos e
chá venas, alisa um dos guardanapos e liga a cafeteira elé trica na
kitchenette.
Quando ouve o tilintar das chaves do lado de fora da porta, levanta-
se da cadeira e sente o coraçã o bater mais depressa.
Valeria veste uma camisa azul-escura com pintas brancas e uns
jeans pretos. Os cabelos encaracolados e escuros estã o apanhados e
caem em suaves espirais.
Entra, para diante de Joona e levanta os olhos.
A porta fecha-se com um estalido da fechadura.
Olham um para o outro durante bastante tempo antes de
sussurrarem um cumprimento.
– Sempre que te vejo, tenho uma sensaçã o estranha – diz Valeria,
com a voz ainda velada de timidez.
Observa Joona com olhos luminosos, depois o seu olhar desliza
para os chinelos com o logó tipo da guarda prisional, para a T-shirt
cinzento-azulada com mangas beges e para as calças demasiado largas
e gastas ao nı́vel dos joelhos.
– Nã o te posso oferecer grande coisa – diz ele. – Umas bolachas com
compota e café .
– Aceito as bolachas – responde Valeria, ajeitando os jeans antes de
se sentar numa das cadeiras.
– Sã o bastante boas – diz ele, com um sorriso que lhe faz realçar as
covinhas nas faces.
– Como é que consegues ser tã o bonito?
– E tudo mé rito da roupa – brinca Joona.
– Pois é – diz ela a rir.
– Obrigado pela carta. Chegou ontem – diz Joona, sentando-se do
outro lado da mesa.
– Desculpa se me estiquei mais do que devia – murmura Valeria,
corando ligeiramente.
Joona esboça um sorrisinho malicioso e ela desata a rir, baixando os
olhos por um instante.
– A propó sito, é pena que te tenham revogado a licença… – diz.
Reprime um sorriso, e a pele no queixo ica enrugada.
– Volto a tentar daqui a trê s meses… Ou entã o peço uma licença de
saı́da por bom comportamento– explica Joona.
– Vai correr tudo bem – assente Valeria, enquanto estende uma mã o
em direçã o à dele.
– Ontem falei com a Lumi – prossegue Joona. – Tinha acabado de ler
o Crime e Castigo em francê s… Foi divertido; estivemos a falar de livros
e até me esqueci de que estava neste lugar… até nos interromperem.
– Nã o me lembrava de falares assim tanto.
– Mas, se dividires a conversa toda por duas semanas, dá poucas
palavras por hora.
Uma madeixa de cabelo desliza ao longo da face de Valeria, e ela
afasta-a com um movimento de cabeça. Tem uma té nue camada de base
acobreada no rosto, olheiras e profundas rugas de expressã o no canto
dos olhos. Sob as unhas curtas vê -se terra.
– Primeiro, podı́amos pedir bolos na pastelaria – diz Joona,
enquanto serve o café .
– E eu tenho de começar a ter cuidado com a linha, para quando tu
saı́res – diz ela, passando uma mã o pela barriga.
– Está s mais bonita do que nunca.
– Devias ter-me visto ontem – continua Valeria, a rir, e toca com os
dedos compridos numa margarida esmaltada que tem pendurada num
iozinho amarrado ao pescoço. – Fui até Saltsjö bad e estive à chuva a
preparar o terreno para as plantas… – Cerejeiras japonesas, certo?
– Escolhi um tipo que dá lores brancas aos milhares, é incrı́vel… é
como se uma tempestade de neve se abatesse precisamente sobre
aquela á rvore minú scula no meio de maio.
Joona observa as chá venas e os guardanapos azuis. A luz do dia
derrama-se sobre a mesa em largas faixas.
– A propó sito, como vai o estudo?
– E muito interessante.
– Parece-te estranho o facto de teres recomeçado a estudar? –
pergunta Valeria, enquanto dobra o guardanapo.
– Sim, no sentido positivo.
– Mas tens a certeza de que nã o queres voltar para a Polı́cia?
Joona assente e vira-se para a janela. Por entre as barras
horizontais vê -se o vidro sujo. As costas da cadeira rangem quando se
apoia e rememora o ú ltimo inverno em Nattavaara.
– Em que está s a pensar? – pergunta ela, num tom sé rio.
– Em nada – responde Joona em voz baixa.
– Está s a pensar na Summa – constata Valeria.
– Nã o.
– Por causa daquilo que eu disse sobre a tempestade de neve.
Joona encontra os olhos cor de â mbar de Valeria e assente; é como
se ela tivesse a estranha capacidade de lhe ler os pensamentos.
– Nã o há nada mais silencioso do que a neve quando amaina o
vento – diz Joona. – Sabes, a Lumie eu icá mos ao lado dela, segurá mos-
lhe na mã o…
Recorda a insó lita calma que descera sobre a sua mulher antes de
morrer, e a imobilidade total que tinha vindo a seguir.
Valeria debruça-se sobre a mesa e afaga o rosto de Joona sem dizer
uma palavra. Atravé s do tecido ino da T-shirt adivinha-se a tatuagem
no ombro direito.
– Nó s vamos sair desta, certo? – diz, num io de voz.
– Nó s vamos sair desta – assente Joona.
– E nã o me vais partir o coraçã o, pois nã o?
– Nã o.
16
Depois da visita de Valeria, Joona sente ainda uma alegria
adocicada. Sempre que ela o vai visitar, é como se lhe devolvesse um
pedaço de vida.
A cela é pequena, mas se se posicionar entre a escrivaninha e o
lavató rio tem espaço su iciente para treinar alguns movimentos de
boxe e aperfeiçoar as té cnicas militares de combate. Move-se
lentamente e de forma sistemá tica a pensar nas in initas planı́cies
holandesas onde recebeu o treino.
Nã o sabe há quanto tempo está a treinar, mas o cé u escureceu e o
muro amarelo para lá das barras já nã o se vê . De repente, a fechadura
salta e a porta abre-se.
Dois guardas que nunca viu aparecem à porta e itam-no com um ar
preocupado.
Joona supõ e que se trate de uma busca: pode ter acontecido
qualquer coisa, talvez uma tentativa de evasã o que de alguma forma
esteja relacionada com ele.
– O teu advogado está à tua espera – diz um deles.
– Porquê ? – pergunta Joona.
Sem lhe responderem, en iam-lhe as algemas e levam-no para fora
da cela.
– Eu nã o pedi nenhum encontro.
Descem juntos as escadas e avançam pelo corredor. Um guarda
passa por eles rapidamente num segway e desaparece ao longe.
Talvez tenham descoberto que Valeria usa os documentos da irmã
para o visitar, pensa Joona. També m ela, em tempos, esteve na cadeia, e
nã o se poderia encontrar com ele tantas vezes se nã o tivessem
arranjado aquela soluçã o.
O estilo e a tonalidade das pinturas nas paredes vã o mudando. Nos
limites dos feixes de luz dos candeeiros nota-se o cimento á spero.
Os guardas conduzem Joona atravé s das portas de segurança e
pontos de controlo. Tê m de mostrar vá rias vezes os documentos que
autorizam a passagem do recluso. As fechaduras saltam à medida que
avançam no interior de uma secçã o que Joona nã o conhece. Ao fundo do
corredor, dois homens vigiam uma porta.
Joona reconhece imediatamente os agentes de segurança da Sä po.
Nã o olham para ele de frente e limitam-se a abrir-lhe a porta.
A divisã o, imersa na penumbra, está vazia, com exceçã o de duas
cadeiras de plá stico. Um indivı́duo ocupa já uma delas.
Joona ica parado no meio da sala.
A luz do candeeiro nã o atinge o rosto do homem, mas deté m-se na
dobra das calças e nos sapatos pretos com a biqueira coberta de lama.
Alguma coisa cintila na sua mã o direita.
Quando a porta se fecha atrá s de Joona, o homem levanta-se, dá um
passo em direçã o à luz e volta a meter os ó culos de leitura no bolso.
Só entã o Joona lhe consegue distinguir a cara.
E o primeiro-ministro sueco.
Nã o se lhe veem os olhos e a sombra do nariz desce-lhe como uma
pincelada negra sobre a boca.
– Este encontro nunca teve lugar – diz o primeiro-ministro, com a
sua caracterı́stica voz rouca. –Eu nã o me encontrei consigo e você nã o
se encontrou comigo; aconteça o que acontecer, dirá que esteve com o
advogado de defesa.
– O seu motorista nã o fuma – diz Joona.
– Nã o – responde o outro, surpreendido.
Com um ar a lito, o primeiro-ministro leva a mã o direita ao nó da
gravata antes de continuar.
– A noite passada, o ministro dos Negó cios Estrangeiros foi
assassinado em sua casa. Segundo aversã o o icial que vai ser
transmitida, terá falecido apó s uma doença breve, mas na realidade
trata-se de um ataque terrorista.
O primeiro-ministro tem o nariz aquilino brilhante de suor e os
olhos marcados por profundas olheiras. A pulseira de couro do alarme
antiagressã o desliza-lhe para as costas da mã o enquanto aproxima a
outra cadeira de Joona.
– Joona Linna – diz –, vou fazer-lhe uma proposta bastante insó lita:
uma oferta que é vá lida apenas aqui e agora.
– Diga.
– Um detido da prisã o de Hall vai ser transferido para Kumla e
levado para o seu setor. Chama-se Salim Ratjen: foi condenado por
crimes de droga, mas absolvido de uma acusaçã o de homicı́dio… Ao que
parece, tem uma posiçã o central… Pode até ser o chefe dos terroristas
que assassinaram o ministro dos Negó cios Estrangeiros.
– Tem algum relató rio?
– Claro – responde o primeiro-ministro, ao mesmo tempo que lhe
estende uma pequena pasta.
Joona instala-se na cadeira de plá stico e agarra nos papé is com as
mã os algemadas. As costas da cadeira rangem quando se encosta.
Enquanto lê , repara que o primeiro-ministro espreita continuamente o
telemó vel.
Passa em revista o exame da cena do crime, as conclusõ es do
laborató rio e a transcriçã o do interrogató rio em que a testemunha
conta que ouviu o homicida dizer que Ratjen tinha aberto as portas do
inferno. O relató rio termina com uma listagem de nú meros de telefone,
para alé m da hipó tese de uma ligaçã o com o xeque Ayad al-Jahiz e o seu
convite para apanhar os lı́deres ocidentais e crivar-lhes os rostos de
balas.
– Há muitas lacunas – diz Joona, devolvendo-lhe a pasta.
– E apenas um primeiro relató rio, vai ser preciso efetuar
veri icaçõ es e…
– Lacunas intencionais – interrompe-o Joona.
– Nã o sei de nada – responde o primeiro-ministro, ao mesmo
tempo que volta a meter o telemó vel no bolso interior do casaco.
– Há mais vı́timas?
– Nã o.
– Há algum indı́cio que sugira que tenham sido planeados outros
atentados?
– Nã o me parece.
– Porquê precisamente o ministro dos Negó cios Estrangeiros?
– Porque fazia parte de uma iniciativa de cooperaçã o europeia
contra o terrorismo.
– O que é que eles alcançaram ao matá -lo?
– Encontramo-nos perante um ataque dirigido ao pró prio coraçã o
da democracia – continua o primeiro-ministro. – E eu quero ter as
cabeças dos terroristas numa porra de uma bandeja de prata, desculpe
a expressã o… Trata-se de justiça, trata-se de reagir de uma maneira
decidida… Nã o podemos permitir-lhes que nos assustem… Foi por isso
que lhe vim perguntar se estaria disposto a in iltrar-se na organizaçã o
de Salim Ratjen de dentro da prisã o.
– Já percebi, e agradeço-lhe a con iança. Criei uma existê ncia
bastante tranquila aqui, e acho queo senhor compreende isso. Nã o foi
fá cil: conhecem o meu passado, mas com o tempo aprenderam a con iar
em mim.
– Estamos a falar da segurança da naçã o.
– Eu já nã o sou polı́cia.
– A Sä po tem condiçõ es para lhe conseguir a liberdade condicional,
se aceitar.
– Nã o me interessa.
– Tal como ela tinha previsto – diz o primeiro-ministro.
– A Saga Bauer?
– Disse que você nã o ia aceitar uma oferta da parte da Sä po… Por
isso vim aqui pessoalmente.
– Eu até podia considerar a hipó tese de aceitar, se nã o soubesse que
me estã o a esconder elementos decisivos.
– O que é que há para esconder? A Sä po acha que o Joona pode
ajudar a descobrir os contactos de Salim Ratjen fora da prisã o.
– Lamento que tenha vindo até aqui para nada – diz Joona, ao
mesmo tempo que se levanta e se aproxima da porta.
– Posso conseguir a suspensã o da pena – replica o primeiro-
ministro voltado para Joona, já de costas.
– E necessá ria uma decisã o do governo – responde ele, voltando-se.
– Eu sou o primeiro-ministro.
– Enquanto eu nã o tiver a certeza de que disponho de todas as
informaçõ es, serei obrigado a recusar – responde Joona.
– Como é que pode a irmar que sabe aquilo que ignora? – pergunta
o primeiro-ministro, com evidente irritaçã o.
– Sei que o senhor está aqui quando na realidade deveria
encontrar-se em Bruxelas para a reuniã o do Conselho Europeu – diz
Joona. – Li que deixou de fumar há oito anos, mas, a julgar pelo cheiro
da roupa e pela lama nos sapatos, vejo que retomou o vı́cio.
– A lama nos sapatos?
– O senhor é um homem atencioso e, como o seu motorista nã o
fuma, saiu do carro e foi para abeira da estrada.
– Mas…
– Reparei que olhou para o telemó vel onze vezes, mas nã o
respondeu a nenhuma mensagem… Por isso, sei que no relató rio falta
qualquer coisa, já que nada leva a suspeitar que haja uma urgê ncia
particular.
Pela primeira vez, o chefe do governo ica sem palavras. Leva a mã o
ao queixo e parece mergulhar nos seus pró prios pensamentos.
– Parece que planearam uma sé rie de homicı́dios – diz, por im.
– Uma sé rie? – repete Joona.
– A Sä po eliminou esse detalhe do relató rio, mas parece que, para
começar, se tratará de trê s homicı́dios… E o pró ximo deverá ter lugar já
na pró xima quarta-feira… A urgê ncia tem a ver com este motivo.
– Os alvos sã o polı́ticos?
– Provavelmente.
– Pensa ser um deles, nã o é verdade? – pergunta Joona.
– Isso nã o é relevante, poderia ser qualquer pessoa – apressa-se a
responder o primeiro-ministro.– Mas, uma vez que me convenceram de
que envolvê -lo nisto é a nossa melhor alternativa, quero ouvi-lo dizer
que aceita… Se obtiver informaçõ es que nos permitam deter estes
terroristas, arranjarei maneira de lhe devolver a liberdade.
– Isso é impossı́vel – responde Joona.
– Ouça: tem de o fazer – diz o primeiro-ministro, e Joona percebe
pela sua voz que está aterrorizado.
– Se convencer a Sä po a colaborar seriamente comigo… prometo
encontrar os responsá veis.
– Mas tem de o conseguir antes de quarta-feira, entendeu isso? E
nesse dia que o pró ximo vai ser morto – suspira o primeiro-ministro.
17
O caçador de coelhos caminha nervosamente para a frente e para
trá s no grande contentor, sob a luz de né on que desce obliquamente do
teto. A vibraçã o dos passos no pavimento de metal reverbera ao longo
das paredes.
O homem estaca diante de uma sé rie de caixotes abertos e de um
grande bidã o de gasolina, comprime os dedos da mã o direita contra a
tê mpora e tenta respirar mais devagar.
Veri ica o telemó vel.
Nenhuma mensagem, nada.
Regressa ao seu arsenal e pisa um mapa plasti icado de Djursholm
atirado para o chã o.
Em cima de uma secretá ria arranhada acumulou pistolas velhas e
novas, para alé m de facas e espingardas desmontadas. Algumas armas
sã o antigas e estã o estragadas, enquanto outras ainda se encontram nas
suas embalagens originais.
Sobre a mesa vê -se uma grande confusã o de utensı́lios ferrugentos
e velhos frascos de compota cheios de molas e percursores,
carregadores de reserva, rolos de sacos de lixo pretos, ita adesiva
prateada, sacos com atilhos brilhantes, alguns machados e uma faca
Emerson de lâ mina larga com a ponta a iada como uma lecha.
Ao longo da parede empilhou caixas com vá rios tipos de muniçõ es.
Por cima de trê s delas veem se fotogra ias de trê s pessoas.
Muitas das caixas estã o ainda fechadas, mas a tampa de uma
embalagem de cartuchos de 5,56x45mm foi destapada, e sobre uma
outra distinguem-se marcas de dedos ensanguentados.
O caçador de coelhos en ia uma caixa de balas de nove milı́metros
num saco de plá stico de supermercado já gasto, pega num machado de
cabo curto, examina-o e en ia-o també m no saco, depois deixa cair tudo
ao chã o com um ruı́do metá lico.
Estica a mã o, agarra numa das pequenas fotogra ias e posiciona-a
na beira da barra de metal que corre ao longo das paredes interiores do
contentor, mas a foto cai imediatamente.
Endireita-a com delicadeza e observa aquele rosto sorridente: a
boca satisfeita, os cabelos despenteados e uma orelha atravessada pela
luz. Inclina-se para itar o indivı́duo nos olhos e pensa que lhe vai
arrancar as pernas e icar a vê -lo rastejar como um caracol no seu
pró prio sangue.
Depois, assistirá à s tentativas desesperadas do ilho para salvar o
pai, amarrando-lhe qualquer coisa em volta das pernas; talvez o deixe
até tentar estancar a hemorragia antes de se chegar à frente para o
esventrar.
A fotogra ia cai outra vez e en ia-se no meio das armas.
O caçador de coelhos dá um grito e derruba a secretá ria, fazendo
rolar pelo chã o pistolas, facas e muniçõ es.
Os frasquinhos de vidro icam feitos em cacos. Estilhaços e peças
espalham-se pelo chã o.
O caçador de coelhos encosta-se à parede, ofegante, e de repente
volta-lhe à memó ria a velha á rea industrial entre a autoestrada e a
depuradora. A tipogra ia offset e o armazé m tinham ardido, e nos
espaços entre as paredes das caves encontravam-se muitas tocas de
coelhos.
Da primeira vez que estendeu a rede, dez coelhos pequenos icaram
presos nas malhas. Estavam todos moribundos, mas quando os esfolou
ainda respiravam.
Agora, está outra vez calmo e concentrado. Sabe que nã o pode
ceder à raiva e que nã o pode mostrar à luz o seu verdadeiro rosto, nem
sequer quando está sozinho.
Sã o horas de ir embora.
Lambe os lá bios, depois apanha do chã o uma faca e duas pistolas,
uma Spring ield Operator e uma Glock. 19 suja de lama. Depois, introduz
no saco mais uma caixa de muniçõ es e quatro carregadores de reserva.
O caçador de coelhos desliga o cabo da lâ mpada da bateria de
automó vel e sai para o frio ar noturno. Fecha a porta do contentor,
corre o ferrolho e bloqueia-o com um cadeado, depois atravessa as
ervas altas até ao carro. Quando abre o porta-bagagens, saem de lá
centenas de moscas. Atira o saco com as armas para junto do saco de
lixo cheio de carne putrefacta, fecha a bagageira e volta-se para o
bosque.
O caçador de coelhos move-se sempre em silê ncio, perscruta a
escuridã o por entre os troncos altos, recorda o rosto impresso na
fotogra ia minú scula e tenta afastar aquela ladainha da cabeça.
18
Na sede do Exé rcito de Salvaçã o, no nú mero 69 de
Ostermalmsgatan, está a decorrer um almoço privado. Doze pessoas
juntaram trê s pequenas mesas e estã o agora sentadas tã o perto umas
das outras que conseguem distinguir claramente o cansaço e a tristeza
patentes nos respetivos rostos. A luz do dia afaga os mó veis de madeira
clara e a tapeçaria que representa os apó stolos a pescar.
A uma das cabeceiras da mesa está sentado Rex Mü ller, que veste
um blazer e umas calças de cabedal pretas. Tem cinquenta e dois anos e
um aspeto cativante, apesar das rugas na testa e dos papos por baixo
dos olhos.
Quando pousa a chá vena de café no pires e passa a mã o pelos
cabelos, todos olham para ele.
– Chamo-me Rex e normalmente ico em silê ncio, a ouvir – começa,
mas depois sorri, preocupado. – Para ser honesto, nã o sei o que querem
que eu diga.
– Explica-nos por que razã o está s aqui – sugere uma mulher com o
rosto marcado pela tristeza.
– Sou bastante bom a cozinhar – continua Rex, aclarando a voz. – E
na minha á rea é preciso saber tudo sobre vinhos, cervejas, bebidas
brancas, destilados, licores, e por aı́ adiante… Nã o sou alcoó lico; se
calhar bebo um bocadinho de mais e à s vezes faço coisas estú pidas,
embora nã o se deva acreditar em tudo aquilo que se lê nos jornais.
Deté m-se, depois sorri para os outros com os olhos semicerrados.
Mas estã o todos à espera de que ele continue.
– Estou aqui porque o meu chefe me obrigou a vir, se quiser manter
o trabalho… E eu gosto do meu trabalho.
Rex estava à espera de os fazer sorrir, mas olham todos para ele em
silê ncio.
– Tenho um ilho crescido, já anda no ú ltimo ano do liceu… E uma
das coisas de que me devia arrepender na vida, para ser franco, é de
nã o ter sido um bom pai. Aliá s, nã o fui sequer um pai. Claro, estive
sempre presente em aniversá rios e coisas do gé nero, mas… Na
realidade, eu nã o queria ter ilhos, nã o era su icientemente maduro
para…
A voz quebra-se-lhe a meio da frase e, com espanto, apercebe-se de
que os olhos estã o a encherse-lhe de lá grimas.
– OK, sou um idiota, certamente já perceberam – diz, em voz baixa,
depois inspira profundamente. – A questã o é esta… a minha ex é uma
mulher fantá stica. Nã o há muita gente que diga isso da ex-mulher, mas a
Veronica é mesmo fantá stica… E agora foi escolhida pela UNICEF para
desenvolver um projeto importante em prol da assistê ncia mé dica
gratuita na Serra Leoa, mas ponderou a hipó tese de recusar, como de
resto sempre fez.
Rex dirige aos outros um sorriso pesaroso.
– E perfeita para este trabalho… Por isso, disse-lhe que estou a
tentar icar só brio e que o Sammy pode icar comigo nas semanas em
que ela está fora… E, como frequento os vossos encontros, ela
convenceu-se de que estou inalmente a tornar-me responsá vel, e agora
vai partir para um primeiro reconhecimento em Freetown.
Passa novamente a mã o pelos cabelos negros e despenteados e
estica-se para a frente.
– O Sammy nã o tem andado lá muito bem. Certamente sou eu o
responsá vel, nã o sei, vive uma vida diferente da minha… E eu nã o tenho
ilusõ es de conseguir reconstruir esta relaçã o, mas tenho mesmo
vontade de o conhecer um pouco melhor.
– Obrigada por teres partilhado isto connosco – diz uma mulher em
voz baixa.

Há dois anos que Rex Mü ller é cozinheiro de um popular programa
da manhã na TV4. Ganhou a medalha de prata na competiçã o Bocuse
d’Or, colaborou com o prestigiado restaurante Fä viken Magasinet do
chef Magnus Nilsson, publicou trê s livros de receitas e, no outono
anterior, assinou um generoso contrato com a cadeia Gruppo F12 para
gerir o restaurante Smak.
Depois de ter passado trê s horas no novo restaurante, deixa o
comando à subchefe Eliza e veste o fato e a camisa azul. Assiste à
inauguraçã o de um hotel em Hö torget, deixa-se fotografar com o
produtor discográ ico Avicii e depois apanha um tá xi até Dalarö para se
encontrar com o seu mais direto colaborador.
David Jordan Andersen – ou DJ, como toda a gente lhe chama – tem
trinta e trê s anos e criou a sociedade de produçã o e comunicaçã o que
adquiriu os direitos televisivos do programa de Rex. Graças a ele, em
trê s anos Rex passou de um dos mais importantes cozinheiros do paı́s a
uma verdadeira celebridade.
Com o tempo, os dois tornaram-se amigos pró ximos.
Neste momento, Rex entra no restaurante do Strand Hotel de
Dalarö , troca um aperto de mã o com DJ e senta-se à frente dele.
– Pensava que a Lyra també m vinha – diz Rex.
– Tinha de ir ter com os amigos da Academia de Arte.
DJ parece uma espé cie de viking moderno, com a barba loira bem
tratada e os olhos azuis.
– Ultimamente acha-me insuportá vel, nã o é ? – pergunta Rex, de
testa franzida.
– Tu está s mesmo insuportá vel, ultimamente – responde DJ, com
toda a sinceridade. – Ningué m te obriga a dar liçõ es aos cozinheiros de
cada vez que vamos a um restaurante.
– Era a brincar.
O empregado chega com as entradas, deté m-se demasiado tempo e
depois, corando, pergunta a Rex se nã o se importa de dar um autó grafo
à equipa da cozinha.
– Depende da comida – responde Rex, com um tom sé rio. – Nã o
suporto quando o creme de limã o sabe a caramelo.
O empregado ica ao lado da mesa, a sorrir com um ar inquieto,
enquanto Rex pega nos talheres e corta um pedaço de espargo
grelhado.
– Vai com calma – sugere DJ, afagando a barba loira.
Rex mergulha o salmã o no creme de limã o. Cheira o aroma, prova e
mastiga com concentraçã o, depois tira uma caneta do bolso e escreve
na parte de trá s do menu: «Os meus louvores ao chef do Strand Hotel de
Dalarö , com os melhores cumprimentos, Rex.»
O empregado agradece e apressa-se a regressar à cozinha com um
sorriso estampado no rosto.
– Está assim tã o bom? – pergunta DJ em voz baixa.
– Nã o está mau – responde Rex.
DJ inclina-se para a frente, enche de á gua o copo de Rex e chega-lhe
o cestinho com o pã o. Rex bebe um gole e observa o enorme iate que
desliza lentamente ao longo do pequeno porto em direçã o ao mar
aberto.
Chegam os pratos com os arenques gratinados, as cebolas salteadas
e o puré de batata.
– Veri icaste se está s livre no pró ximo im de semana? – pergunta
cautelosamente DJ.
– Temos um encontro com os investidores, certo? – pergunta Rex.
DJ e a sua equipa estã o a trabalhar há mais de um ano para
produzir as primeiras peças de uma sé rie de utensı́lios de cozinha
assinados por Rex.
Sã o produtos de ó tima qualidade, de design elegante e preço
acessı́vel. Todos devem poder tornar-se reis da sua pró pria cozinha:
Rex of Kitchen.
– Estava a pensar levá -los a jantar a um bom sı́tio e dar dois dedos
de conversa… E importante que se sintam acarinhados – explica.
Rex assente e corta um pedaço de arenque. Mastiga-o, depois
estica-se para pegar no copo de cerveja de DJ.
– Rex…
– Ningué m vai saber – diz, com uma piscadela de olho.
– Nã o faças isso – replica DJ, num tom irme.
– També m tu? – diz Rex, a sorrir, pousando o copo. – Estou só brio,
mas, honestamente, isto é ridı́culo… Sem me perguntarem nada, estã o
todos convencidos de que eu tenho um problema.
Acabam de comer, pagam e descem até ao molhe onde DJ tem
ancorado o seu barco desportivo, um Ray Sundancer todo arranhado.
Está um im de dia quente e surpreendentemente bonito: a á gua
imó vel, o sol quase a pô r-se, e as nuvens, atingidas pelos seus raios,
assumiram um tom dourado.
Rex e DJ soltam as amarras e afastam-se lentamente do cais,
ondeando na esteira de outra embarcaçã o e avançando com cautela
para lá do estreito. Na margem de bombordo podem ver-se ao longo da
encosta umas estruturas engraçadas que parecem castelos de madeira,
cujas marquises de vidro re letem o cé u do entardecer.
– Como está a tua mã e? – pergunta Rex, enquanto se instala no
assento de cabedal branco ao lado de DJ.
– Para dizer a verdade, está um pouco melhor – responde o outro,
aumentando ligeiramente a velocidade. – Os mé dicos estã o a testar
medicamentos novos e, para já , a coisa está a correr bastante bem.
Quando chegam ao mar aberto, a sua voz é abafada pelo ruı́do do
motor. A espuma branca rodopia atrá s deles, a proa fende a á gua e a
lancha vai de encontro à s ondas. Vã o cada vez mais depressa e, ao im
de pouco tempo, o barco começa a planar a grande velocidade.
Rex levanta-se a cambalear e en ia os skis aquá ticos pousados no
chã o entre os dois assentos.
– Nã o trocas de roupa? – grita-lhe DJ.
– O quê ?
– Vais molhar-te todo.
– Eu nã o vou cair – grita Rex, como resposta.
Começa a desenrolar a corda e sente o telemó vel a vibrar no bolso
interior. E Sammy, e Rex faz sinal a DJ para abrandar.
– Estou?
Ao fundo ouve-se mú sica e vozes.
– Olá , pai – diz Sammy, com a boca demasiado pró xima do aparelho.
– Só te queria perguntar oque vais fazer hoje à noite.
– Onde está s?
– Estou numa festa, mas…
Uma onda levantada por um grande veleiro faz vacilar Rex, que
perde o equilı́brio e cai nas almofadas de cabedal brancas.
– Está s a divertir-te? – pergunta.
– O quê ?
– Estou em Dalarö com o DJ, mas ontem preparei um linguado.
Ainda há , no frigorı́ ico… podes comê -lo frio ou meter o pirex no forno
durante alguns minutos.
– Nã o te ouço – diz Sammy, a rir.
– Eu nã o chego tarde – tenta gritar Rex.
A mú sica alta ecoa atrá s da voz de Sammy, um baixo retumba no
telemó vel e uma mulher grita qualquer coisa com uma voz alegre.
– Vemo-nos mais tarde – diz Rex, mas a chamada já foi
interrompida.
19
A noite já vai longa quando o tá xi desce a Rehnsgatan e para em
frente a um portã o de madeira brilhante. Rex teve de pedir roupa
emprestada a DJ e en iou o fato molhado num saco de lixo. De manhã
cedo esperam-no para uma transmissã o televisiva e já devia estar na
cama há horas.
Entra no á trio e, a tremer, chama o elevador, que nã o se mexe. Dá
um passo em frente e espreita para a caixa. A cabina, bloqueada no
quinto andar, range e vibra. Os cabos ondeiam, e Rex imagina que
algué m está a fazer uma mudança a meio da noite.
Espera ainda alguns instantes e decide subir as escadas, com o saco
da roupa molhada atirado por cima do ombro, como o Pai Natal.
Quando chega a meio, o elevador começa a mexer-se com um ruı́do
metá lico. Cruza-se com ele no terceiro andar e, atravé s do vã o, repara
que está vazio.
Chega ao topo do ú ltimo lanço de escadas, pousa o saco e recupera
o fô lego. Está a meter a chave na fechadura quando o elevador se põ e
outra vez em movimento e sobe até ao andar dele.
– Sammy?
As portas abrem-se, mas o elevador está vazio. Certamente algué m
carregou no botã o do sexto andar e depois saiu.
Rex atravessa o apartamento sem acender a luz; antes de ir dormir,
quer veri icar se Sammy deixou algum pedaço de linguado. Na
semiobscuridade, o parquet tem um re lexo prateado e, para lá das
janelas da marquise, estende-se o tapete de luzes da cidade.
Rex abre o frigorı́ ico. Acabou de constatar que Sammy nã o tocou
no peixe, quando o telemó vel toca.
– Estou? – atende Rex, com uma voz rouca.
Pelo auscultador percebe-se um ruı́do. Mú sica pesada ressoa ao
fundo e algué m está a queixar-se.
– Pai? – ouve dizer com um suspiro.
– Sammy, julguei que estivesses em casa.
– Nã o me sinto muito bem – sussurra o ilho.
– O que foi que aconteceu?
– Perdi as minhas coisas e o Nico está lixado comigo… Nã o sei…
Mas que porra, para já com isso – berra Sammy a algué m, afastando a
boca do telemó vel.
– Sammy, o que é que se passa?
Rex nã o ouve a resposta do ilho: a sua voz é abafada pelo ruı́do de
fundo, um prato parte-se e um homem começa a gritar com outro.
– Sammy? – chama Rex. – Diz-me onde está s, eu vou buscar-te.
– Nã o é preciso…
Ouve-se um baque, como se Sammy tivesse deixado cair o
telemó vel.
– Sammy! – exclama Rex. – Diz-me onde está s!
Um ruı́do, um gargarejo, e depois Rex intui que algué m recuperou o
telemó vel.
– Anda buscar o rapaz antes que ele me dê cabo dos nervos – diz
uma mulher com uma voz profunda.
Com o coraçã o na garganta, Rex anota o endereço, chama um tá xi e
desce as escadas a correr. Quando sai para o ar fresco, liga outra vez a
Sammy, sem no entanto obter qualquer resposta. Já tentou pelo menos
dez vezes, quando o tá xi para diante da porta.
A mulher deu-lhe uma morada de Ostermalm, o bairro mais rico de
Estocolmo, mas o edifı́cio de Kommendö rsgatan nã o é mais do que um
pré dio deteriorado dos anos oitenta.
Ouve-se mú sica alta atrá s de uma porta no primeiro andar, com um
autocolante a dizer «Muita publicidade, obrigado» por cima da abertura
do correio.
Rex toca à campainha, roda a maçaneta, entreabre a porta e
espreita para dentro de um pequeno hall de entrada atulhado com uma
grande quantidade de sapatos. A mú sica reverbera pelas paredes.
Sente-se cheiro a fumo e vinho. O parquet gasto do corredor está
coberto de blusõ es e sobretudos. Rex entra na cozinha e dá uma
olhadela em volta. O balcã o arranhado está cheio de garrafas vazias.
Uma caçarola com restos de um estufado de feijã o, uma pilha de pratos
e uma sé rie de cinzeiros improvisados enchem a bancada.
No chã o está sentado um homem vestido de preto, com o rosto
maquilhado, entretido a beber de uma garrafa de plá stico. Uma
rapariga com uns jeans curtos e um soutien rosa-claro cambaleia até à
bancada, abre uma porta e pega num copo. O cigarro treme-lhe entre os
lá bios apertados, enquanto se concentra, na tentativa de encher o copo
com vinho de pacote.
Ao passar por ela, Rex vê -a deitar a cinza sobre os pratos sujos. A
rapariga sopra um lento io de fumo enquanto o segue com o olhar.
– Eh, cozinheiro, nã o me queres fazer uma omeleta? – pergunta-lhe
a sorrir. – Apetece-me mesmo uma omeleta…
– Sabes onde está o Sammy? – pergunta Rex.
– Acho que sei mais ou menos tudo – responde ela, estendendo-lhe
o copo de vinho.
– Ainda está aqui?
A rapariga assente e tira outro copo do armá rio. Um gato negro
salta para cima da bancada e começa a lamber uma faca suja.
– Eu gostava de ir para a cama com uma celebridade – graceja ela, e
começa a rir sozinha.
Rex afasta uma cadeira para passar para o outro lado da mesa e
sente que a rapariga lhe põ e os braços em volta da cintura. O peso do
seu corpo fá -lo inclinar-se para a frente.
– Vamos acordar a Lena e fazemos a coisa a trê s – murmura,
encostando-lhe o queixo com força à s costas.
Rex pousa o copo de vinho na mesa, afasta as mã os da rapariga e
volta-se a observar o sorriso embriagado no rosto dela.
– Só estou aqui porque vim buscar o meu ilho – explica-lhe, ao
mesmo tempo que desloca o olhar para a sala com a televisã o.
– Olha que eu estava a brincar. Nã o quero sexo, quero amor – diz
ela, e deixa-o ir-se embora.
– Fazias melhor em voltar para casa.
Rex abre caminho entre um cadeirã o e uma espreguiçadeira
dobrada. Dois copos tilintam um contra o outro ao ritmo da mú sica.
– Quero um pai – murmura a rapariga, enquanto ele se afasta em
direçã o à sala.
Num sofá de xadrez está sentado um homem de cabelos compridos
e grisalhos a mostrar a um rapaz como snifar coca. Algué m encontrou
um caixote com luzes de Natal. Há alguns colchõ es encostados à s
paredes. Um homem robusto, com as calças abertas, está sentado com
as costas apoiadas na parede, a arranhar uma guitarra acú stica.
Rex continua a avançar ao longo de um corredor estreito com o
chã o todo riscado. Espreita para dentro de um quarto onde uma mulher
em cuecas está a dormir com o braço tatuado dobrado por cima da cara.
Na cozinha, um homem ri-se e pronuncia algumas palavras em voz
alta.
Rex para a ouvir. Escuta os ruı́dos abafados e suspiros, muito perto.
Espreita outra vez para dentro do quarto e, antes de se voltar, o seu
olhar vai parar novamente ao meio das pernas da mulher.
Uma luz té nue brilha no chã o do lado de fora da casa de banho.
A porta está entreaberta.
Rex afasta-se para o lado e repara numa vassoura metida num
balde apoiado a uma má quina de lavar.
Ouve de novo os suspiros, por isso aproxima-se da casa de banho.
Estica uma mã o, abre a porta com cautela e vê o ilho ajoelhado diante
de um homem com um nariz enorme e rugas profundas dos lados da
boca entreaberta. Sammy tem o rosto suado e dos seus olhos escorre
tinta de rı́mel. Com uma mã o, segura o pé nis ereto do homem e en ia-o
na boca. O brinco com a pé rola negra oscila-lhe sobre a face.
Rex recua um passo; vê o homem passar os dedos por entre os
cabelos oxigenados de Sammy e apertá -los.
Na entrada, está algué m a chorar.
Rex volta-se, regressa à sala e tenta recuperar o fô lego, ao mesmo
tempo que se sente derrubar por uma onda de sentimentos
contraditó rios.
– Meu Deus – suspira, tentando sorrir da sua pró pria reaçã o.
Sammy é maior de idade, e Rex sabe que ele recusa qualquer ró tulo
para a sua sexualidade, mas sente-se terrivelmente embaraçado por ter
assistido à quela cena ı́ntima.
No sofá de xadrez, o homem com os cabelos compridos grisalhos
en iou uma mã o por baixo da T-shirt do rapaz.
Rex precisa de ir para casa dormir. Espera uns segundos, passa uma
mã o pela boca e regressa à casa de banho.
– Sammy? – diz, enquanto se aproxima. – Sammy?
Dentro da casa de banho, qualquer coisa rola a tilintar sobre o
lavató rio. Rex espera mais uns segundos e depois volta a chamar o ilho.
Ao im de poucos instantes, a porta abre-se e Sammy sai, com umas
calças justas e uma camisa à s lores desapertada. Apoia-se com a mã o à
parede. Tem as pá lpebras pesadas e o olhar apagado.
– O que é que está s aqui a fazer? – sussurra.
– Foste tu que me ligaste.
Sammy ergue os olhos, mas nã o parece perceber aquilo que Rex lhe
está a dizer. Tem os olhos sujos de preto e as pupilas dilatadas.
– Que raio se passa aı́? – exclama o homem da casa de banho.
– Já vou… Tenho só de…
Sammy cambaleia e está quase a perder o equilı́brio.
– Vamos para casa – diz Rex.
– Tenho de ir ter com o Nico, vai icar zangado se…
– Falas com ele amanhã – interrompe-o Rex.
– O quê ? O que é que disseste?
– Eu sei que tens a tua vida e nã o me quero armar em pai. Deixo-te
dinheiro para o tá xi, se quiseres icar – diz Rex, tentando suavizar o tom
de voz.
– Eu… se calhar devia dormir.
Rex despe o casaco, pousa-o em cima dos ombros do ilho e
encaminha-o até à porta.
Quando chegam à rua, o cé u começa já a clarear e os pá ssaros
chilreiam alegremente. Sammy move-se em passos lentos e parece
vencido por um cansaço preocupante.
– Consegues aguentar-te em pé , enquanto eu chamo um tá xi? –
pergunta-lhe Rex.
O ilho assente e apoia-se pesadamente na fachada do pré dio. O seu
rosto empalideceu; Sammy en ia um dedo na garganta e inclina a
cabeça para a frente.
– Eu… eu estou…
– Será que nã o podemos simplesmente tentar superar estas trê s
semanas juntos? – sugere Rex.
– O quê ?
O rapaz engole em seco, en ia novamente um dedo na garganta e
sente um arranco de vó mito.
– O que é que se passa, Sammy?
O ilho ergue o rosto, arqueja para encher os pulmõ es de ar e os
olhos reviram-se-lhe nas ó rbitas.
Cai e bate com a cabeça numa caixa de eletricidade.
– Sammy! – grita Rex, enquanto o tenta por novamente de pé .
O ilho perde sangue da ferida e os olhos rolam entre as pá lpebras
semicerradas.
– Olha para mim – diz Rex aos gritos, mas é impossı́vel comunicar
com ele. O corpo do rapaz está completamente inerte.
Rex estende o ilho no chã o, encosta-lhe o ouvido contra o peito e
ouve o coraçã o bater acelerado. A respiraçã o, poré m, é demasiado lenta.
– Santo Deus – exclama, procurando o telemó vel.
Tremem-lhe as mã os enquanto tenta chamar uma ambulâ ncia.
– Nã o morras, nã o podes morrer – suspira, à espera que atendam.
20
Quando o telemó vel toca, Rex estremece e bate com a mã o no braço
rı́gido do banco. Levanta-se e limpa a boca. O cé u do lado de fora das
janelas do hospital está pá lido como uma folha de papel vegetal. Deve
ter adormecido. O casaco que DJ lhe emprestou está enrolado a fazer de
almofada.
Nã o sabe quanto tempo demorou a lavagem gá strica de Sammy.
Encheram vá rias vezes o estô mago do ilho com á gua atravé s de uma
sonda oral e depois aspiraram-na com uma seringa grande. Sammy
agitava debilmente os braços para se libertar do tubo, lamuriando-se
enquanto a mistura de vinho tinto e comprimidos mal digeridos enchia
um saco de plá stico.
O telemó vel continua a tocar; quando Rex levanta o casaco, o
aparelho desliza para fora do bolso, ressalta no banco e desaparece no
chã o.
Rex inclina-se para o procurar e está ainda de gatas quando atende.
– Estou? – sussurra.
– Por favor, Rex – diz a produtora do programa, num tom
impaciente. – Diz-me que está s num tá xi.
– Ainda nã o chegou – improvisa Rex.
E domingo, e ele cozinha em direto na TV4 todos os domingos: é
impossı́vel que se tenha esquecido. Rex nã o faz ideia de que horas sã o.
O chã o de linó leo e as luzes de né on desaparecem de repente
quando se levanta de novo. Apoia-se ao banco e diz que quer as
imagens dos ingredientes no ecrã gigante e um zoom enquanto prepara
os camarõ es no wok.
– Já devias estar na maquilhagem – diz a produtora, impaciente.
– Eu sei – admite Rex. – Mas o que é que eu posso fazer, se o tá xi
nã o chega?
– Chama outro – suspira a mulher, e desliga a chamada.
Ao passar por ele no corredor, uma enfermeira lança-lhe um olhar
indecifrá vel atravé s dos ó culos. Rex encosta-se à parede, olha para o
telemó vel para ver as horas e chama um tá xi.
Pensa no rosto pá lido de Sammy enquanto ingeria carvã o ativado
para evitar que as substâ ncias tó xicas fossem absorvidas pelo intestino.
Rex estava sentado ao lado dele a pô r-lhe uma toalha molhada sobre a
testa suada e a repetir-lhe continuamente que tudo ia correr o melhor
possı́vel. Por volta das seis da manhã , puseram-no a soro e deitaram-no
numa cama, garantindo ao pai que o rapaz estava fora de perigo. Rex
sentou-se num banco no corredor para o poder ouvir no caso de
Sammy chamar por ele.
O telemó vel acordou-o quarenta minutos mais tarde.
Rex aproxima-se por um instante da porta e observa o ilho, que
continua a dormir profundamente. Tem o rosto pá lido e limpo. Uma
ponta do adesivo que cobre o cateter levantou. O tubo e o saco meio
cheio de soro isioló gico brilham à luz do sol. O peito do rapaz ergue-se
ao ritmo regular da sua respiraçã o.
Rex corre até ao elevador e, no momento em que carrega no botã o
verde, recebe a chamada da responsá vel pelas compras da TV4.
– Estou no tá xi – responde, no momento em que o mecanismo se
põ e em movimento.
– Devo icar preocupada? – pergunta Sylvia Lund.
– Fica tranquila… Fizeram confusã o com as chamadas.
– Devias ter entrado na maquilhagem há vinte minutos – diz ela,
com paciê ncia.
– Estou a chegar. Estou quase aı́, o carro já virou em Valhallavä gen.
Rex apoia a testa no espelho e sente-se vencer pelo cansaço
daquela noite insone.
O tá xi está à espera dele à porta do hospital. Rex instala-se no
assento traseiro e fecha os olhos. Tenta dormir durante o breve
percurso, mas só consegue pensar no que aconteceu e no facto de ter de
ligar a Veronica, a mã e de Sammy.
Tanto quanto percebeu, Sammy vai ser acompanhado por um
psicó logo e um assistente social, que deverã o avaliar a natureza da sua
dependê ncia e a sua propensã o para o suicı́dio.
O carro vira e deté m-se diante da entrada da TV4. Rex paga sem
esperar pelo recibo, sai do carro e entra pela porta de vidro.
Sylvia levanta-se de uma das poltronas com uma forma bizarra e
vai ao encontro dele a correr.
Está perfeitamente maquilhada e os cabelos caem-lhe, vaporosos,
sobre os ombros.
– Nã o izeste a barba – diz.
– Ah nã o? Esqueci-me – responde Rex, enquanto passa a mã o pelo
queixo.
– Deixa-me olhar para ti.
O olhar da mulher pousa no casaco amarrotado, nos cabelos
despenteados e nos olhos vermelhos.
– Está s bê bedo – sentencia. – Está s a mentir-me.
– Para com isso. Eu consigo – teima Rex.
– Deixa-me cheirar o teu há lito – pede Sylvia.
– Nã o – responde ele, a sorrir.
– Sinto muito por ti, mas nã o posso fazer nada… A TV4 vai
interromper a tua colaboraçã o, se armas mais alguma.
– Eu sei, já me disseste isso.
– Se nã o fazes o que te digo, nã o te ponho no ar.
Rex ica corado, mas inclina-se e bafeja em direçã o ao rosto de
Sylvia, depois olha-a nos olhos e dirigem-se ambos para a entrada do
pessoal.
Uma jovem mulher chega a correr à porta de vidro que dá acesso
aos estú dios, passa o cartã o pelo leitor e trava a porta com o seu
pró prio corpo para deixar Rex e Sylvia passar.
– Ainda estamos a tempo – diz a mulher, arquejante.
Rex dirige-se para os camarins, mas, de repente, quando se
encontra já na ı́ngreme escada de metal, sente-se mal. Vê -se obrigado a
parar e agarrar-se ao corrimã o antes de continuar.
Passa em frente à sala de refeiçõ es, onde os convidados continuam
à espera, e chega rapidamente ao camarim. No lavató rio, passa a cara e
a boca por á gua, e limpa-se com uma toalha.
Com as mã os a tremer, en ia um fato impecavelmente passado a
ferro, que lhe deixaram pendurado num cabide, e o avental de
cozinheiro.
Quando volta a sair para o corredor, a mulher ainda ali está à
espera; segue-o enquanto ele corre para a sala de maquilhagem.
Rex senta-se na poltrona diante do espelho e tenta conter a
agitaçã o lendo a notı́cia de um enorme aumento na procura de carros
Volvo. Entretanto, uma maquilhadora faz-lhe a barba, enquanto outra
mistura duas bases numa paleta.
A intervalos regulares é anunciado que «o chef Rex partilhará
connosco os seus melhores truques para recuperar de uma bebedeira».
– Nã o preguei olho esta noite – desculpa-se.
– Pois, mas agora nó s tratamos disso – garante-lhe a maquilhadora,
ao mesmo tempo que lhe pressiona uma esponja hú mida contra os
olhos inchados.
Rex pensa novamente em Sammy, nas primeiras palavras que
pronunciou em criança. Era um dia gé lido de outono e o pequeno estava
a brincar no recinto de areia quando de repente levantou os olhos,
bateu no chã o com a mã o, ao seu lado, e disse: «Papá sentado.»
Rex nunca quisera ter ilhos: a gravidez de Veronica nã o fora
programada. Só queria beber, cozinhar e dar umas quecas.
A maquilhadora passa-lhe os dedos pela ponta dos cabelos uma
ú ltima vez para tentar baixá -los.
– Vá -se lá saber porque é que as pessoas icam malucas com os
cozinheiros – diz, em tom de brincadeira.
Rex limita-se a rir e agradece-lhe por lhe ter restituı́do um aspeto
humano; depois dirige-se para o estú dio a correr.
21
A porta insonorizada fecha-se atrá s de Rex. Enquanto entra
silenciosamente no estú dio, repara que a apresentadora, Mia Edwards,
está sentada no sofá a conversar com uma escritora de cabelo cor-de-
rosa.
Com cautela, Rex passa por cima dos cabos e instala-se na cozinha
ao lado do sofá . Um té cnico de som ajeita-lhe o microfone, enquanto ele
veri ica se todos os ingredientes para a massa estã o nos seus lugares, se
a á gua está a ferver e se a manteiga está derretida.
No grande monitor que tem à frente, vê a escritora rir, levantando
as mã os, enquanto correm em rodapé os tı́tulos das ú ltimas notı́cias
referentes à s crı́ticas acesas dirigidas ao conselho de segurança da ONU.
– Tem fome? – pergunta Mia à escritora, depois de ter recebido o
input no auricular. – Espero que sim, porque hoje o Rex preparou uma
coisa verdadeiramente especial.
Os projetores acendem-se e as lentes escuras das câ maras de ilmar
viram-se para ele, precisamente no momento em que está a deitar
azeite na caçarola de cobre martelado.
Rex aumenta o lume e começa a recolher folhas de manjericã o de
um grande vaso, depois para e olha para a câ mara, a sorrir.
– Pode ser que ontem algué m tenha bebido mais do que a conta…
Por isso, hoje vamos preparar um prato retemperador. Tagliatelle com
camarõ es salteados, manteiga derretida com alho, malagueta, azeite e
ervas aromá ticas… Imaginem uma manhã de puro relax… Acordam ao
lado de algué m que espera ser reconhecido… Bem, se realmente nã o se
sentirem com forças para recordar aquilo em que se meteram ontem à
noite, a ú nica coisa de que precisam é comer.
– E adeus à dieta – diz Mia.
– Só hoje, só esta manhã – diz Rex com um sorriso, passando a mã o
pelos cabelos e desfazendo o penteado. – Vale a pena, garanto.
– Nó s acreditamos em ti, Rex.
Mia aproxima-se e ica a vê -lo cortar a malagueta e o alho com
movimentos de faca rapidı́ssimos.
– Se beberam de mais, há que ter cuidado…
– Eu també m sei fazer isso – diz Mia, em tom de brincadeira.
– Mostras-me?
Rex atira a faca ao ar, fazendo-a dar duas voltas, antes de a apanhar
e pousar ao lado da tá bua.
– Nã o – responde ela, a sorrir.
– A minha mulher dizia sempre que eu era um schmuck… Ainda nã o
descobri o que isso signi ica – diz Rex, sorridente, enquanto mexe com a
colher o conteú do da caçarola funda.
– Entã o secaste os camarõ es com papel de cozinha.
– E, como nã o estã o cozidos, é preciso nã o esquecer de juntar uma
boa porçã o de sal – diz Rex, enquanto deita a massa fresca na á gua a
ferver.
Atravé s da nuvem de vapor, os seus olhos descortinam a notı́cia de
ú ltima hora que surgiu no monitor: «O ministro dos Negó cios
Estrangeiros sueco, William Fock, morreu apó s uma breve doença.»
A angú stia aperta-lhe o estô mago com violê ncia e a sua cabeça
esvazia-se completamente. De repente, Rex esquece onde está e aquilo
que as pessoas à sua volta esperam que ele faça.
– Agora també m já se conseguem arranjar camarõ es bioló gicos, nã o
é verdade? – pergunta Mia.
Rex olha para ela e assente, mas sem perceber o que ela lhe está a
dizer. Com mã os tré mulas, agarra no pano que está em cima do balcã o e
limpa a testa com delicadeza, tentando nã o estragar a maquilhagem.
O programa é em direto. Rex sabe que tem de chegar ao im, mas a
ú nica coisa em que consegue pensar é naquilo que fez trê s semanas
antes.
Nã o pode ser verdade.
Agarra-se ao balcã o com uma mã o e sente o suor a escorrer-lhe nas
costas.
– Uma vez disseste que se pode reservar á gua da cozedura e depois
deitá -la na massa, para usar menos azeite – prossegue Mia. – Sim, mas…
– Mas hoje nã o, certo? – diz ela, a sorrir.
Rex olha para as mã os. Apercebe-se de que ainda funcionam, de
que acabaram de aumentar o lume sob a caçarola e que ainda estã o a
espremer limã o em cima dos camarõ es. O sumo esguicha quando
aperta o fruto e algumas gotas vã o parar à beira da taça. Como um io
de pequenas pé rolas de vidro atravessadas pela luz.
– OK – suspira, enquanto na sua mente repete que o ministro dos
Negó cios Estrangeiros morreu apó s uma breve doença.
Estava doente e nada daquilo que eu iz tem já importâ ncia, pensa,
enquanto pega na taça com os camarõ es.
– Agora, só falta saltear os camarõ es – diz, e observa o azeite a
ferver. – Preparados? Um, dois, três…
A câ mara enquadra a ampla caçarola de cobre enquanto Rex, com
um gesto teatral, esvazia a taça e os camarõ es mergulham no azeite com
um crepitar intenso.
– Nã o se esqueçam, lume vivo! Olhem para a cor e escutem…
Reparem como os luidos se evaporam – diz Rex, enquanto vira os
camarõ es.
Espalha uma pitada de sal, que crepita na caçarola. A outra câ mara
ilma-o de frente.
– Esperem alguns segundos. A vossa cara-metade pode deixar-se
icar na cama, porque já está tudo pronto.
Sorri e retira os camarõ es do azeite.
– Tem um aroma fantá stico, quase me tremem os joelhos – diz Mia,
ao mesmo tempo que se debruça sobre o prato.
Rex escorre a massa, despeja-a rapidamente numa caçarola, depois
mistura a manteiga com o alho e a malagueta; acrescenta os camarõ es,
junta uma gota de vinho branco e de vinagre balsâ mico e um pouco de
salsa, para alé m da manjerona e do manjericã o picados.
– E agora levem os pratos para o quarto – diz Rex, olhando
diretamente para a objetiva. – Abram uma garrafa de vinho, se
quiserem continuar debaixo dos cobertores; caso contrá rio, a á gua
també m vai muito bem…
22
O ministro dos Negó cios Estrangeiros morreu, repete Rex para si
mesmo, enquanto sai do estú dio onde os convidados do programa
icaram a comer a massa. Ouve-os gabar o prato no preciso momento
em que empurra a porta insonorizada.
Atravessa em passo rá pido o corredor até ao seu camarim, fecha a
porta à chave e tropeça nos sapatos, depois continua a cambalear até à
casa de banho e vomita na sanita.
Exausto, lava a boca e a cara, estende-se no catre minú sculo e fecha
os olhos.
– Mas que grande merda – murmura, enquanto se abandona à s
recordaçõ es confusas daquela noite de há trê s semanas.
Tinha estado numa festa em Matbaren, onde bebeu demasiado, e
depois convenceu-se de que estava apaixonado por uma mulher que
trabalhava para uma agê ncia de investimentos com um nome ridı́culo.
Quase sempre que se embebedava acabava por passar a noite
acompanhado. Quando lhe corria bem, nã o era a assistente de produçã o
da TV4 ou a ex-mulher de um colega, mas uma perfeita desconhecida,
como aconteceu naquela noite.
Foram de tá xi até casa dela, em Djursholm. Tinha-se separado e o
ilho estava nos Estados Unidos, num programa de intercâ mbio. Rex
beijou-a no pescoço enquanto a mulher desativava o alarme para o
deixar entrar. Um velho golden retriever surgiu do interior da casa e foi
ao encontro deles.
Ambos queriam ir diretos ao assunto, por isso nã o falaram muito. Já
era tarde e ambos sabiam qual a razã o por que Rex ali estava. Ele
escolheu uma garrafa de vinho do grande frigorı́ ico e, agora que pensa
nisso, lembra-se de que se desequilibrou enquanto a abria.
Ela arranjou um prato de queijos e uns crackers em que acabaram
por nã o tocar.
Como se fosse algo inevitá vel, Rex subiu atrá s dela as escadas
alcatifadas até ao quarto principal.
Quando chegaram lá acima, ela acendeu uns candeeiros de parede
que emanavam uma luz difusa e desapareceu na casa de banho.
Quando regressou, trazia uma camisa de noite e um quimono do
mesmo tecido prateado. Abriu a gaveta da có moda e entregou-lhe um
preservativo.
Quis que a penetrasse por trá s, recorda Rex, talvez para nã o ser
obrigada a encará -lo. Pô s-se de gatas, a camisa de noite levantada e os
cabelos compridos caindo-lhe sobre as faces.
A cama antiga começou a ranger, enquanto, na parede, uma
moldura que tinha dentro um anjo bordado abanava.
Estavam ambos demasiado cansados e demasiado bê bedos. Ela nã o
atingiu o orgasmo e nem sequer fez de conta: assim que ele acabou,
limitou-se a murmurar que precisava de dormir, caiu de barriga para
baixo e adormeceu com as coxas abertas.
Rex desceu até à cozinha, serviu-se de um conhaque e folheou o
jornal que acabara de chegar. O ministro dos Negó cios Estrangeiros
tinha feito algumas declaraçõ es idiotas sobre a existê ncia de lobbies
feministas que queriam minar o equilı́brio milená rio das relaçõ es entre
homens e mulheres.
Rex atirou o jornal ao chã o e saiu de casa.
Com uma ideia cları́ssima na cabeça, dirigiu-se a Germaniaviken,
seguindo ao longo da baı́a até à casa do ministro dos Negó cios
Estrangeiros.
Estava demasiado bê bedo para se preocupar com eventuais
sistemas de alarme ou câ maras de vigilâ ncia. O desejo de fazer justiça
levou-o a saltar o gradeamento, atravessar o relvado e subir à varanda.
Qualquer pessoa o podia ter visto: a mulher do ministro que espreitava
pela janela ou um dos vizinhos que passavam pela casa. Para Rex, nada
disso importava; era movido por uma ú nica ideia, que o levou a urinar
na piscina iluminada do ministro. Naquele momento, pareceu-lhe a
coisa mais acertada a fazer, e sorriu com uma expressã o de triunfo
enquanto a urina escorria sobre a á gua azul.
23
Rex ignora o tá xi que parou em frente aos estú dios da TV4 e avança
a pé . Precisa de respirar e de reorganizar as ideias.
Alguns meses antes, teria relaxado com um generoso copo de
whisky, e talvez acabasse por beber dois ou trê s.
Mas agora percorre a movimentada Lidingö vä gen, e está
concentrado em calcular quanto lhe vai custar aquilo que fez quando DJ
lhe liga.
– Viste-me?
– Sim, estiveste fantá stico – diz DJ. – Parecias mesmo bê bedo.
– A Sylvia també m disse isso. Pensava que eu tinha bebido.
– Ah sim? Posso garantir que ontem só bebeste á gua… Uma boa
quantidade de á gua do mar.
– Nã o sei… é incrivelmente ridı́culo que seja obrigado a ingir que
sou alcoó lico para nã o perder o emprego.
– Mas nã o te fará mal se andares um bocadinho mais devagar com…
– Para com isso, nã o estou para aı́ virado – interrompe-o.
– Nã o queria dizer nada de mal – responde DJ, em voz baixa.
Rex suspira e espreita para dentro do gradeamento do enorme
recinto desportivo construı́do para as Olimpı́adas de 1912.
– Já sabes da morte do ministro dos Negó cios Estrangeiros? –
pergunta.
– Claro.
– Tı́nhamos uma relaçã o complicada – diz Rex, enquanto passa pelo
portã o negro.
– Em que sentido?
– Eu nã o gostava dele – responde Rex, ao mesmo tempo que
atravessa o portã o e entra na pista decorrida que rodeia o relvado.
– OK, mas nã o te convé m falar sobre isso agora que ele acabou de
morrer – diz DJ num tom tranquilo.
– Nã o é só isso…
David Jordan ica em silê ncio enquanto Rex, em voz baixa, confessa
o seu crime: trê s semanas antes, bebeu demasiado e urinou na piscina
do ministro. Conclui a con issã o contando-lhe que pegara em todos os
anõ es do jardim – com setenta centı́metros de altura – e os atirara para
a piscina iluminada.
Rex entra no campo de futebol e para no centro.
As tribunas vazias rodeiam-no; entretanto, recorda o facto de
alguns dos anõ es terem icado à superfı́cie e outros terem ido parar ao
fundo, no meio de pequenas bolhas de ar.
– OK – diz DJ, apó s alguns instantes de silê ncio. – Mais algué m está
ao corrente daquilo que izeste?
– Há as câ maras de vigilâ ncia.
– Se rebentar um escâ ndalo, os investidores vã o pô r-se todos de
fora… Tu sabes isso, nã o podes ignorar – diz DJ.
– O que é que eu faço agora? – pergunta Rex, contrito.
– Tens de ir ao funeral – diz DJ lentamente. – Vou tentar arranjar-te
um convite. Transmites umas declaraçõ es em todos os meios de
comunicaçã o social, dizes que o teu melhor amigo morreu. Fala dele e
da sua atividade polı́tica com o má ximo respeito.
– Mas isso vai virar-se contra mim, se aparecerem as imagens das
câ maras de vigilâ ncia – diz Rex.
– Sim, eu sei, mas tenta uma jogada de antecipaçã o e refere desde já
as vossas trocas de comentá rios ordiná rios e as vossas brincadeiras
tolas… Explica que à s vezes passavam das marcas, mas que era apenas a
vossa maneira de estar. Em qualquer caso, nã o faças referê ncia a nada
de especı́ ico: só nos resta esperar que as imagens já nã o existam.
– Obrigado.
– Em concreto, o que é que tu tinhas contra o ministro? – pergunta
DJ, curioso.
– Sempre foi um porco mentiroso, um prepotente… Hei de mijar-lhe
em cima do tú mulo com o ú ltima brincadeira.
– Desde que nã o te ilmem outra vez – diz David Jordan a rir, e
desliga a chamada.
Rex observa um bando de pombas que levantam voo das tribunas;
traçam contra o cé u uma meia circunferê ncia que depois se alonga
numa elipse, antes de se juntarem e voltarem ao chã o.

Quando Rex entra no quarto do hospital, Sammy está sentado na


cama feita a esfregar o cabelo com uma toalha.
– Linda maquilhagem, pai – diz, com uma voz rouca.
– Pois – responde Rex. – Venho dos estú dios.
Aproxima-se da cama. As imagens confusas da lavagem gá strica e a
angú stia pela morte do ministro ameaçam derrubá -lo de um momento
para o outro. Repete mentalmente que a ú nica coisa a fazer agora é
manter a calma e evitar juı́zos.
– Como está s? – pergunta timidamente.
– Mais ou menos – responde Sammy. – Dó i-me a garganta. Assim
como se algué m me tivesse en iado um tubo lá dentro.
– Quando voltarmos para casa, faço-te uma sopa.
– Por pouco nã o encontraste o mé dico… Ao que parece, tenho de
falar com um assistente social antes de me poder ir embora.
– Marcaram-te um encontro?
– Chega à uma.
– Entã o ainda tenho tempo para estar com o DJ – diz Rex, que
entretanto se lembrou de um encontro dos Alcoó licos Anó nimos dali a
meia hora. – Mas volto aqui logo a seguir… e depois vamos de tá xi para
casa.
– Obrigado.
– Sammy, precisamos de ter uma conversa.
– OK – diz o ilho, fechando-se imediatamente em si mesmo.
– Nunca mais quero ser obrigado a assistir a uma cena do gé nero –
começa Rex.
– Deve ter sido muito mau para ti… – diz Sammy, voltando-se para o
outro lado.
– Sim – responde Rex.
– O pai é uma celebridade – diz Sammy, com um sorrisinho
maldoso. – O pai é um cozinheiro famoso da televisã o e nã o quer ser
obrigado a contemplar o falhanço do seu ilho, um maricas que se pinta
e…
– Nã o quero saber nada disso – interrompe-o Rex.
– Só tens de aguentar durante estas semanas – conclui o ilho.
– Ainda nã o perdi as esperanças de que possamos divertir-nos
juntos… Mas tens de me prometer que vais tentar.
Sammy arqueia as sobrancelhas.
– O quê ? Tentar fazer o quê ? Está s a falar do Nico?
– Isto nã o é uma discussã o de tipo moral – explica Rex. – Nã o tenho
nenhuma opiniã o que valha alguma coisa, acho apenas que à s vezes o
amor vem ao teu encontro.
– Quem é que está a falar de amor? – murmura Sammy.
– O sexo, entã o.
– Estavas apaixonado pela mã e? – pergunta Sammy.
– Nã o sei, era muito imaturo – responde Rex, com honestidade. –
Mas ao im de todos estes anos percebi que devia ter icado ao lado
dela… Gostaria de poder passar a minha vida com ela e contigo.
– Sinceramente… Eu tenho dezanove anos. Nã o percebo, pai. O que
queres de mim?
– Para começar, chega de lavagens gá stricas.
Sammy levanta-se lentamente e vai pendurar a toalha.
– Pensava que o Nico ia ter atençã o a quantas pastilhas me dava –
diz, voltando para trá s. – Mas tomei demasiadas.
– Tem mais cuidado, daqui para a frente.
– Sou fraco… e tenho o direito a sê -lo – protesta Sammy.
– Nesse caso, vais cair a pique… Nã o há espaço para a fraqueza.
– OK, pai.
– Sammy, nã o é uma ideia minha… E a forma como as coisas
funcionam.
O rapaz apoia-se ao caixilho da porta com os braços cruzados. Tem
as faces vermelhas e engole com di iculdade.
– Basta que nã o faças nada de perigoso – diz Rex.
– Porque nã o? – murmura Sammy.
24
Nenhuma organizaçã o terrorista reivindicou ainda o homicı́dio,
mas segundo os analistas da Sä po nã o há nada de estranho nisso,
considerando o cará cter particular do atentado. Por trá s do assassinato
do ministro dos Negó cios Estrangeiros está a vontade de assustar um
grupo restrito de polı́ticos de primeiro plano e nã o a de aterrorizar a
totalidade da populaçã o.
A avaliaçã o das aná lises té cnicas e de mais de dez mil relató rios de
laborató rio prossegue durante aquele domingo. Todos os dados
con irmam o assassino como um pro issional. Nã o deixou impressõ es
digitais nem vestı́gios bioló gicos, nã o abandonou projé teis ou cá psulas
e nã o aparece em nenhuma das gravaçõ es das câ maras de vigilâ ncia.
Os té cnicos conseguiram recolher vá rias marcas dos seus sapatos,
mas trata-se de um modelo vendido em todo o mundo e a aná lise do
material residual nã o produziu qualquer resultado.
Saga Bauer está sentada, juntamente com o responsá vel pelo
inqué rito, Janus Mickelsen, e com os seus colaboradores de maior
con iança, numa das salas de reuniõ es no ú ltimo andar do quartel-
general da Sä po, em Solna. Janus tem vestida uma T-shirt com padrã o
batique verde-claro. As suas sobrancelhas quase brancas icam
ligeiramente rosadas quando se concentra.
Como é ó bvio, as medidas de segurança nos edifı́cios mais
importantes foram incrementadas e reforçada a segurança das
personalidades mais relevantes. No entanto, é claro para toda a gente
que aqueles esforços nã o serã o su icientes.
A tensã o na sala é grande.
Salim foi mandado para o isolamento na prisã o de Hall, enquanto
aguardam a transferê ncia para o setor de Joona. Ningué m acredita
verdadeiramente que, isolando-o, se possam impedir outros
homicı́dios: apesar de Salim nã o ter condiçõ es para transmitir novas
ordens, é possı́vel que os primeiros trê s atentados tenham já sido
planeados.
De momento, todos con iam no trabalho de in iltraçã o de Joona. Se
por qualquer razã o ele falhar, nã o resta senã o esperar para descobrir o
que vai acontecer na quarta-feira.
– Temos pela frente um assassino que plani ica todos os seus
movimentos ao mais ı́n imo pormenor… Nã o comete erros, nã o se deixa
envolver, nã o tem medo – diz um dos homens.
– Nesse caso, nã o devia ter deixado uma testemunha com vida –
replica Saga.
– Ou entã o pode tratar-se apenas de um proxeneta convencido de
que desta vez o ministro exagerou – diz Janus, a sorrir, ao mesmo tempo
que afasta uma madeixa de caracó is do rosto com um sopro.
Jeanette e Saga interrogaram a testemunha mais trê s vezes, mas
nã o surgiu nada de novo. A mulher repetiu a sua versã o dos factos e
nada indica que esteja a mentir; durante esse tempo, poré m, foi
impossı́vel veri icar se se trata realmente de uma prostituta.
Ningué m naquele meio conhece So ia, mas durante o dia os
té cnicos conseguiram localizar Tamara Jensen, aparentemente a ú nica
pessoa capaz de con irmar a sua histó ria.
Tamara era um dos contactos do telemó vel de So ia. Depois de
terem localizado o seu telemó vel no interior de trê s estaçõ es de rá dio
base, os té cnicos determinaram a sua posiçã o exata: Tamara move-se
dentro de uma á rea limitada, um pouco a sudoeste de Nykö ping.
Nã o se casou, nem se mudou para Gotemburgo, como a irmava
So ia.
O seu anú ncio consta ainda de um site que se gaba de fornecer
acompanhantes de luxo para serviços exclusivos na regiã o de
Estocolmo. A fotogra ia retrata uma mulher com cerca de vinte e cinco
anos, olhos vivos e penteado elegante. Na apresentaçã o, a jovem oferece
uma companhia re inada para receçõ es ou viagens, noites inteiras e
pacotes especiais para ins de semana.

Saga Bauer lê as indicaçõ es da estrada, enquanto Jeanette Fleming


conduz o BMW cinzento escuro a 140 km por hora. As duas mulheres
dã o-se bem, apesar de serem muito diferentes, tanto de temperamento
como de aspeto. Jeanette prendeu a franja com um gancho prateado e
veste uma saia azul com um casaco de linho branco, collants e sapatos
de salto raso.
Conversam enquanto comem rebuçados de alcaçuz salgados que
vã o tirando de um saquinho pousado ao lado da alavanca das
mudanças.
Saga está a contar que na noite anterior Stefan, o seu ex, bê bedo,
lhe mandou um SMS de Copenhaga a pedir-lhe para ir ter com ele ao
hotel.
– Qual é o mal? – diz Jeanette, enquanto tira outro rebuçado.
Saga ri-se e depois observa, pensativa, os armazé ns industriais que
des ilam do lado de fora da janela.
– E um idiota, e eu nã o consigo perceber como é que me convenceu
a ir para a cama com ele – continua Saga, em voz baixa.
– Sinceramente – prossegue Jeanette, tamborilando com os dedos
no volante –, quem é que quer saber das questõ es de princı́pio. Esta é a
tua vida, a ú nica que tens, e ainda por cima é s solteira.
– Essa é a tua opiniã o de psicó loga? – graceja Saga.
– E aquilo que eu penso – responde a outra, a olhar para ela.
A noite já vai longa quando chegam ao Nykö pingsbro, um
restaurante construı́do como um viaduto por cima da autoestrada e que
está aberto toda a noite.
Jeanette dá vá rias voltas ao parque de estacionamento até
encontrarem o velho Saab de Tamara. Estacionam de forma a bloquear-
lhe o carro e depois entram no restaurante.
Um homem com um tabuleiro cheio de comida paga e pede para
validar o bilhete do parque de estacionamento. A mulher na caixa diz-
lhe aos gritos para o pô r bem à vista no vidro traseiro do carro.
O restaurante está quase vazio. Saga e Jeanette caminham
cautelosamente por entre as mesas, mas de Tamara nã o há qualquer
sinal. Passam diante de uma piscina de bolas, sem nenhuma criança
dentro. As pequenas bolas permanecem imó veis contra um painel de
vidro ao lado de um cartaz verde com informaçõ es para turistas.
– OK, vamos voltar lá para fora – diz Jeanette, em voz baixa.
A á rea de serviço encontra-se na total obscuridade. Está frio, e Saga
fecha o blusã o de pele enquanto passam pelo meio dos bancos e das
mesas. Algumas gralhas saltitam entre os contentores a transbordar de
lixo.
Saga e Jeanette dirigem-se para a zona de descanso reservada aos
camionistas, quando um camiã o azul aparece diante delas. O terreno
vibra sob o seu peso. O camiã o vira e estaciona atrá s do ú ltimo veı́culo.
Do lado da ponte onde se encontram as duas mulheres estã o
estacionados dezanove camiõ es TIR, para lá dos quais se estende a
densa escuridã o de um bosque de abetos. O ruı́do da autoestrada chega
em vagas até elas, como o som das ondas a morrer na areia.
Pelo meio dos TIR, a escuridã o torna-se mais densa e o ar está
extremamente quente. O cheiro a combustı́vel mistura-se com o fedor a
fumo e urina. O metal sobreaquecido geme. Agua suja goteja dos pneus
de duas rodas gigantescas.
Algué m atira um saco de lixo para debaixo de um reboque, depois
regressa à cabina, fecha a porta e aciona o alarme antifurto.
Aqui e ali, cigarros acesos cintilam na escuridã o.
Saga e Jeanette avançam por entre os enormes camiõ es. O asfalto
está coberto de manchas de ó leo e lixo. No chã o, veem-se maços de
tabaco, sacos do Burger King, beatas e uma revista pornográ ica toda
rasgada.
Saga inclina-se, espreita por baixo de um reboque e observa
algumas pessoas que se movem pelo meio dos camiõ es mais adiante.
Algué m está a urinar contra um pneu, um outro indivı́duo fala em voz
baixa e um cã o ladra atrá s de uma porta fechada.
Um TIR coberto de longos riscos de sujidade começa a andar ao
lado delas; o condutor dá umas aceleradelas para aumentar a pressã o
do ar e a temperatura do motor. As luzes traseiras iluminam um monte
de lixo e garrafas vazias no limite do bosque.
Saga inclina-se outra vez para espreitar por baixo de um chassis e
vê uma mulher saltar de uma cabina para o chã o. Distingue nitidamente
as suas pernas inas enquanto se afasta a bambolear no alto das
sandá lias de cunha.
25
Saga e Jeanette começam a correr em direçã o à mulher de sandá lias
de cunha no preciso momento em que, com um rugido, o camiã o sujo
abandona o estacionamento. O veı́culo tem alguma di iculdade em fazer
a curva e passa tã o perto das duas mulheres que as obriga a
encostarem-se a outro camiã o para nã o serem atropeladas.
Os pneus enormes rolam com um som estridente sobre o asfalto.
No ar, ica uma nuvem de fumo acre. Jeanette tosse, tentando nã o
fazer muito barulho.
Mais adiante, um homem lança uns gritos e emite um longo
assobio.
Depois de terem avançado para lá do outro veı́culo, Saga e Jeanette
descobrem a mulher das sandá lias de cunha. Tem a mã o fechada em
concha à frente de um cigarro. A chama do isqueiro ilumina-lhe o rosto.
Nã o é Tamara. Tem os olhos vermelhos e rugas profundas que lhe
descem dos lados do nariz até aos cantos da boca. Os cabelos sã o inos e
loiros, com a raiz completamente grisalha. Veste um top muito justo e
uma saia de camurça.
A mulher está ao lado de um camiã o polaco a dizer qualquer coisa
aos homens na cabina. Aspira profundamente o cigarro e de repente
cambaleia para trá s, arriscando-se a cair no espaço entre a cabina e o
atrelado. Saga e Jeanette ouvem os homens explicar-lhe em inglê s que
nã o querem fazer sexo. Tentam ser simpá ticos e dizem-lhe que só
querem telefonar aos ilhos, desejar-lhes boa-noite e em seguida
dormir.
A mulher responde com um gesto irritado e continua a andar. Tinha
acabado de bater à porta de outro camiã o quando Saga e Jeanette
chegam junto dela.
– Desculpe, sabe onde podemos encontrar a Tamara Jensen? –
pergunta Saga.
A mulher volta-se rigidamente e afasta os cabelos da cara.
– A Tamara? – repete, com voz rouca.– Eu devo-lhe dinheiro – diz
Jeanette.
– Bem… se quiser eu dou-lho, pode con iar em mim – responde a
mulher, sem conseguir reprimir um sorriso.
Saga desata a rir-se.
– Ela anda por aqui?
A mulher indica as traseiras do restaurante.
– Eu vou veri icar – diz Saga.
Jeanette ica no meio dos camiõ es a olhar para a colega que se
afasta por entre aqueles veı́culos enormes, uma silhueta esguia contra
as luzes do restaurante.
– Posso perguntar-lhe uma coisa? – diz, voltada para a prostituta.
– Olhe, eu já encontrei Jesus – responde instintivamente a mulher,
cambaleando de novo.
De repente, o motor do camiã o ao lado ruge. Com um solavanco, o
enorme veı́culo começa a avançar, emanando um forte odor a gasó leo. A
ú ltima roda do atrelado passa por cima de uma garrafa, que se
estilhaça, atirando cacos em vá rias direçõ es. Jeanette sente uma picada
na canela. Passa uma mã o pelos collants rasgados, observa as pontas
dos dedos e veri ica que estã o manchadas de sangue. Quando se
levanta, a prostituta desapareceu.
Saga passa adiante do restaurante e contorna o pequeno edifı́cio
que conté m as casas de banho e os chuveiros reservados aos
camionistas. Por entre os ramos das á rvores, distingue-se a concha
amarela no letreiro da bomba de gasolina. As traseiras daquela
estrutura estã o cheias de lixo, pacotes de leite, tiras de papel higié nico e
restos de comida que os pá ssaros e outros animais arrastaram por ali.
Tamara está sentada no chã o, encostada à parede, com um saco de
congelaçã o encostado ao nariz e à boca.
– Tamara?
A mulher dobra o saco e baixa-o lentamente. Revira os olhos e
deixa escapar um profundo suspiro.
– Chamo-me Saga Bauer e gostava de lhe falar da sua melhor amiga,
a So ia Stefansson.
Tamara olha para Saga, enquanto um io de saliva lhe escorre ao
longo do queixo. Tem os cabelos sujos, o rosto macilento e indiferente,
como se tivesse perdido a consciê ncia.
– Este é o meu melhor amigo – responde, erguendo ligeiramente o
saco.
– Mas eu sei que conhece a So ia.
Tamara tem um ataque de tosse. Está prestes a cair para o lado,
mas segura-se com uma mã o e inspira profundamente do saco.
– So ia – murmura, assentindo ligeiramente.
– E uma acompanhante, nã o é verdade?
– Julga que é melhor do que as outras, mas é só uma estú pida que
nã o percebe uma porra. – Os olhos fecham-se-lhe e a cabeça descai-lhe
sobre o peito.
– O que é que ela nã o percebe?
– As vantagens da pro issã o.
– Alguma vez a viu com um cliente?
Tamara suspira e volta a abrir os olhos. Apercebe-se de que um
preservativo apertado com um nó se lhe colou ao tornozelo, tira-o e
deita-o ao chã o.
– Tenho um sabor a merda na boca – diz, ao mesmo tempo que
levanta os olhos para Saga. – Se me quiser oferecer alguma coisa de
beber, podemos conversar.
– Está bem.
Tamara volta a tossir, levanta-se com di iculdade e lança um olhar a
Saga.
E muito magra, tem as mã os e as faces cobertas de arranhõ es e os
lá bios secos e gretados. Sobre
a testa enrugada pende um travessã o do qual caı́ram já quase todas
as pedras coloridas.
Nada nela faz lembrar a mulher sorridente do site da Internet.
Tamara começa a andar, a cabeça vacilante. Quando entram no
restaurante, estaca por um momento, hesita como se já nã o se
lembrasse onde se encontra, mas depois aproxima-se do balcã o.
– Quero um batido de chocolate… e batatas fritas com ketchup… e
uma Pepsi grande com… com gelatina – diz, ao mesmo tempo que pega
num saquinho de rebuçados e o pousa em frente à caixa.

Jeanette Fleming avança na direçã o em que lhe parece que a


prostituta desapareceu, a rasar os camiõ es. Perto do limite do bosque,
no meio dos TIR, a escuridã o é tal que precisa de esticar os braços para
encontrar o caminho. O ar está impregnado de vapores de gasolina, e
alguns camiõ es emanam calor como cavalos suados. Passa diante de
uma cabina com umas cortinas de riscas descidas.
De repente, descobre a mulher. Está um pouco mais à frente: cospe
no chã o enquanto bate a uma porta, segurando-se na enorme roda da
frente.
– Onde trabalhava antes? – pergunta-lhe Jeanette, quando chega
junto dela.
– Em sı́tios requintados.
– Alguma vez teve clientes em Djursholm?
– Escolho só os melhores – murmura a mulher.
A porta abre-se e um homem robusto de ó culos e barba rala
começa a observá -las. Atira um beijo a Jeanette e depois olha para a
prostituta com um ar impaciente.
– O que é que tu queres? – pergunta o homem.
– Quero saber se precisas de companhia – responde a mulher.
– Es demasiado feia – diz ele, mas sem fechar a porta.
– Eu nã o sou feia – responde ela, com calma, apesar de ser evidente
que o homem pretende humilhá -la.
– E onde é que tu nã o é s feia?
A mulher levanta o top para lhe mostrar os seios pá lidos.
– E eu ainda ia ter de te pagar por essa coisa? – diz ele, mas ainda
assim faz-lhe sinal para ela entrar.
26
Jeanette vê a mulher subir à cabina e fechar a porta atrá s dela. Fica
uns instantes à espera, na escuridã o, e depois ouve as molas do assento
que começam a ranger.
Os faró is de um carro varrem o terreno e as sombras retraem-se de
repente. Um ruı́do de gargalhadas e de mú sica abafada chega até ela,
proveniente da outra ponta da á rea de descanso.
Algures, uma mulher grita com uma voz irada e enrouquecida pelo
á lcool.
Jeanette espreita por baixo do atrelado do camiã o. Mais adiante,
algué m atira um cigarro ao chã o. A brasa espalha-se no asfalto antes de
uma pancada de tacã o a apagar. De repente, descortina um movimento
na direçã o oposta. Parece-lhe que algué m está a avançar de gatas para
ela, insinuando-se por baixo dos camiõ es e dos reboques. Um arrepio
desce-lhe ao longo da espinha e obriga-a a dirigir-se para o restaurante.
Um TIR aproxima-se da á rea de descanso, mas para com um som
estridente para a deixar passar e emite um sopro de ar potente. Uma
corrente tilinta por baixo do camiã o. Jeanette nã o consegue ver os olhos
do motorista e atravessa a estrada, cortando os intensos feixes de luz
dos faró is.
Quando está mais perto do restaurante, vira-se, mas nã o vem
ningué m a segui-la.
Abranda o passo e pensa que faria melhor em tirar os collants
rasgados e passar a ferida na perna por á gua antes de ligar a Saga.
Vai até à s casas de banho, mas estã o todas ocupadas. O sangue
coagulou em volta da ferida e escorreu pela perna.
Uma pesada porta de metal abre-se e, de uma das casas de banho,
sai uma mulher com os cabelos pintados de loiro. Tem o telemó vel no
ouvido e grita que está ocupada com um cliente e que nã o pode fazer
tudo ao mesmo tempo.
Depois afasta-se em direçã o aos camiõ es a gesticular
aparatosamente.
Na porta, um papel escrito à mã o avisa que a casa de banho está
fora de serviço, mas Jeanette entra na mesma e fecha-se lá dentro.
E uma casa de banho para de icientes, com inas paredes divisó rias
em chapa. Os apoios brancos estã o dobrados e no chã o há um botã o de
alarme iluminado.
Jeanette despe os collants rasgados e deita-os fora. O balde do lixo
está cheio de preservativos usados, o chã o coberto de papel higié nico
molhado e as paredes todas escritas.
Jeanette vê -se ao espelho e tira o blush da bolsa, depois estica-se
sobre o lavató rio e repara que está algué m na casa de banho ao lado:
um corpo que se move num espaço limitado.
Enquanto espalha o blush, vê re letido no espelho um buraco na
parede que comunica com a outra casa de banho, a cerca de um metro
de altura. Talvez antes ali estivesse preso um suporte de papel higié nico
que atrapalhasse os movimentos. Volta a meter o blush na carteira e
vira-se. Nesse momento, repara que a parede parece inclinar-se.
Algué m se encostou a ela do outro lado.
Ouve-se um barulho e uma nota dobrada ao meio escorrega até ao
chã o, caı́da do buraco. Depois, qualquer coisa desliza contra a parede.
Jeanette prepara-se para falar quando um enorme pé nis sai pelo buraco
à frente dela.
E uma situaçã o tã o absurda que sente vontade de rir.
Recorda que leu em algum sı́tio que os clubes de swing em França
tê m aposentos como aqueles.
O homem do outro lado pensa que ela é uma prostituta.
E uma loucura. Jeanette permanece imó vel por um instante. Engole
em seco, observa o pé nis e sente o coraçã o bater-lhe com força no peito.
Depois, lança um olhar à porta, para veri icar se está fechada.
Lentamente, estica uma mã o e fecha-a em volta do membro quente
e grosso.
Aperta-o ligeiramente e sente-o icar rı́gido e inchado entre os seus
dedos; mexe a mã o delicadamente para trá s e para a frente e depois
larga-o.
Nã o sabe por que está a fazer aquilo; no entanto, inclina-se e mete-
o na boca, suga-o docemente e sente-o crescer e endurecer. Para a
recuperar fô lego, en ia uma mã o entre as pernas, baixa as cuecas e tira-
as, enquanto afaga o pé nis ereto.
Procura nã o respirar com demasiado ruı́do e pensa que deveria
parar com aquilo imediatamente e que perdeu a cabeça. Os batimentos
do coraçã o pulsam-lhe nas tê mporas. Volta-se e apoia-se com a mã o ao
lavató rio. Com as pernas a tremer, levanta-se em bicos de pé s, inclina o
pé nis do homem e en ia-o por trá s. Com um gemido, observa
novamente a fechadura. A parede range quando Jeanette é empurrada
para a frente. Segura-se com força ao lavató rio e empurra as ná degas
para trá s, contra o metal gelado.
Saga está sentada em frente a Tamara num dos recantos do
restaurante. A mulher drogada come batatas fritas que tira de um prato
com ketchup na beira. Um io de muco transparente brilha-lhe por baixo
do nariz. Lá fora corre o trâ nsito da autoestrada: luzes brancas numa
direçã o, vermelhas na outra.
– Conhece bem a So ia Stefansson? – pergunta Saga.
Tamara encolhe os ombros e sorve o batido pela palhinha; tem as
faces encovadas e a testa tensa e pá lida.
– Até refresca o cé rebro – suspira, inalmente, largando a palhinha.
Mergulha com muita atençã o as batatas fritas no ketchup e come-as, a
rir-se sozinha.
– Dizes-me outra vez quem é s?
– Sou uma amiga da So ia – explica Saga.
– Ah, pois.
– E possı́vel que ela faça de conta que é prostituta?
– Fazer de conta? Mas o que é que está s para aı́ a dizer? Uma vez
izemos um trabalho juntas num quarto de arrumos… Ela levou por
trá s… Achas que era a fazer de conta?
De repente, o rosto de Tamara apaga-se, como que perdida num
torvelinho de recordaçõ es.
– Porque é que a Tamara já nã o está no circuito de Estocolmo? –
pergunta Saga.
– Tu també m podias fazer carreira, sabes… Eu tenho contactos, fui
modelo de roupa interior…mas sem cuecas – diz Tamara, rindo-se para
si mesma.
– A Tamara teve um cliente em Djursholm, um sujeito com uma
grande casa perto do mar. E possı́vel que desse pelo nome de Wille.
– Talvez – diz Tamara, enquanto mastiga as batatas fritas de boca
aberta.
– Lembra-se dele?
– Nã o – responde Tamara, e depois boceja. Limpa as mã os à saia e
esvazia a bolsa em cima da mesa.
Sobre a toalha de plá stico caem uma escova, um rolo de saquinhos
de plá stico, um batom, um coto de lá pis para os olhos, preservativos e
um perfume da Victoria’s Secret. Saga repara em trê s ampolas castanhas
de petidina, uma droga capaz de causar uma forte dependê ncia. Tamara
tira um Valium de um blister que conté m dez comprimidos azuis e
engole-o com um pouco de Pepsi.
Saga espera pacientemente que a mulher acabe de meter tudo na
bolsa, depois mostra-lhe a fotogra ia do ministro dos Negó cios
Estrangeiros.
– Que grande chato – diz Tamara, e depois tapa a boca.
– Enquanto estava com ele fez algum telefonema?
– A sé rio… Estava agitado e bebeu imenso, continuava a dizer que
os chuis deviam estar alerta…. Repetiu aquilo para aı́ uma centena de
vezes.
Tamara desata a rir.
– Que a Polı́cia devia estar alerta?
– Exato… E que havia um homem com duas caras que andava atrá s
dele.
– Andava atrá s dele em que sentido?
– Nã o lhe perguntei.
Tamara volta a mergulhar as batatas no ketchup.
– O que signi ica com duas caras?
– Nã o sei, estava bê bedo… Talvez quisesse dizer que tem dupla
personalidade – sugere Tamara.
– Que mais é que ele disse sobre esse homem?
– Nada. Nã o era nada de importante, só conversa.
– Ia encontrar-se com ele?
– Nã o sei, nã o disse mais nada… Eu só queria pô -lo à vontade e
entã o pedi-lhe para me falar de todos aqueles quadros nas paredes.
– Foi violento consigo?
– Foi um senhor – responde Tamara secamente.
Pega no saco de rebuçados, levanta-se e caminha para a saı́da, a
cambalear. Saga prepara-se para ir atrá s dela, quando o telemó vel toca.
No ecrã aparece o nome do colega Janus Mickelsen. Carrega na tecla
verde com o indicador e encosta o telemó vel ao ouvido.
– Bauer – diz.
– Examiná mos todas as gravaçõ es das câ maras de vigilâ ncia no
disco duro do ministro… treze câ maras durante dois meses, quase vinte
mil horas de gravaçõ es – comunica-lhe Janus.
– Vê -se o assassino? Entrou em casa para fazer um
reconhecimento?
– Nã o, mas numa das gravaçõ es vê -se claramente outra pessoa…
Precisas de dar uma vista de olhos a isto. Liga-me quando estiveres à
porta do escritó rio e eu desço para abrir.
Saga sabe que Janus é bipolar e compreende que acabou de entrar
na fase manı́aca: por qualquer razã o, deve ter-se esquecido de tomar os
remé dios.
– Sabes que horas sã o? – pergunta.
– Quero lá saber – resmunga ele.
– Preciso de dormir, vemo-nos amanhã – diz ela, num tom calmo.
– Dormir – repete Janus, depois desata a rir quando adivinha o
pensamento da colega. – Estou ó timo, Saga, apenas concentrado, tal
como tu.
Saga dirige-se para o estacionamento. Observa o trá fego em baixo, a
ampla autoestrada cinzenta que se desenrola na escuridã o, e depois
telefona a Jeanette.
Ao que parece, So ia é mesmo uma prostituta; provavelmente
contou a verdade e nã o está de maneira nenhuma envolvida no
homicı́dio.
Mas, nesse caso, porque foi poupada?, interroga-se Saga, no
momento em que para em frente ao carro; tem a nı́tida sensaçã o de que
nenhum deles faz ainda a mı́nima ideia daquilo que o assassino
realmente pretende.
27
Em Cedergatan, fora da cidade de Helsingborg, surge uma grande
casa particular com a fachada pintada de branco e o telhado de palha
clara. As primeiras horas da manhã envolveram o esplê ndido jardim
numa bruma cinzenta, mas das janelas do andar inferior espalha-se
uma luz amarela.
A casa faz lembrar um fragmento de â mbar encastoado num
al inete de prata.
Nils Gilbert acorda sobressaltado. Deve ter adormecido na cadeira
de rodas. Tem o rosto corado e o coraçã o bate-lhe com força no peito. O
sol ainda nã o se levantou sobre as copas das á rvores, e a casa e o
parque estã o mergulhados na sombra. O jardim parece ainda um té trico
alé m-tú mulo.
Tenta perceber se Ali já chegou e se já foi buscar o carrinho e a pá à
arrecadaçã o.
Quando se aproxima da porta da cozinha para deixar entrar um
pouco de ar, ouve um ruı́do estranho. O barulho parece provir da sala
de estar; deve ser a gata que quer sair, pensa Nils.
– Lizzy?
O ruı́do cessa de repente. Nils ica à escuta durante alguns instantes
e depois deixa-se cair contra o encosto.
As mã os começam a tremer-lhe sobre os braços da cadeira. As
pernas abanam, desencadeando uma dança insensata a que ningué m
gostaria de assistir.
Tinha tentado esconder o mais possı́vel os sintomas de Parkinson:
o braço rı́gido, o pé que era obrigado a arrastar, as alteraçõ es na
caligra ia que, por im, se tornara tã o minú scula que era agora ilegı́vel,
mesmo para ele pró prio.
Nã o queria que Eva se apercebesse.
Mas, a inal, tinha sido ela a morrer primeiro, e já iam trê s anos. Nã o
perceberam que se tratava de um enfarte, nã o sabiam que nas mulheres
os sintomas podiam ser diferentes.
Há semanas que se queixava de exaustã o.
Era sá bado, e ela acabava de chegar do centro comercial de Vä la
carregada de sacos. Começou a respirar com di iculdade e a sentir um
peso no peito. Disse, a sorrir, que devia ter apanhado uma constipaçã o
com os locos de neve.
Quando se sentou no sofá , tinha as faces pá lidas e sulcadas de suor.
Deitou-se, e, quando ele lhe perguntou se queria ver televisã o, já
estava morta.
Agora restavam apenas ele e a gata, Lizzy.
As vezes passam-se semanas inteiras sem que Nils fale com
ningué m. De vez em quando, é assaltado pelo receio de ter perdido a
voz.
Uma das poucas pessoas com quem tem algum contacto é a
rapariga que trata da piscina. Anda por ali de jeans e a parte de cima de
um biquı́ni dourado, e ica nervosa quando ele tenta falar com ela.
Da primeira vez em que lhe dirigiu a palavra, ela olhou para Nils
como se ele tivesse noventa anos ou sofresse de uma de iciê ncia
mental.
Os estafetas que lhe entregam as compras estã o sempre com
pressa, pedem-lhe para assinar o recibo e vã o-se embora rapidamente.
E a isioterapeuta, uma mulher antipá tica de seios enormes, só pensa
no trabalho: dá -lhe ordens secas e faz de conta que nã o percebe as suas
tentativas de encetar uma conversa.
Só o rapaz iraniano da empresa de jardinagem parece ter algum
tempo para lhe dedicar. As vezes, Ali entra em casa para tomar uma
chá vena de café .
Na realidade, é só por causa dele que Nils continua a ter a piscina a
funcionar, apesar de nunca ter tido coragem para lhe sugerir que fosse
dar duas braçadas.
Ali trabalha duramente, com as costas a destilar suor.
Nils sabe que o chama com demasiada frequê ncia, e é por isso que
o jardim está como está : os arbustos bem podados, as sebes
perfeitamente alinhadas, os arcos cobertos de trepadeiras verdes e os
caminhos de pedras impecá veis.
Há silê ncio, há sempre tanto silê ncio ali.
Nils sente um arrepio. Pousa as mã os nos comandos, empurra e
puxa as alavancas em direçõ es opostas, depois faz girar a cadeira e
aproxima-se da jukebox.
Comprou-a há vinte anos: uma Seeburg original, construı́da pelo
sueco Sjö berg.
Em tempos, mudava os discos, batia à má quina de escrever as
etiquetas novas e metia-as por baixo do vidro.
Recupera a moeda e en ia-a na ranhura: ouve-a deslizar no
mecanismo e pô -lo a funcionar, para depois cair outra vez na caixa.
Durante todos aqueles anos, usou sempre a mesma moeda de uma
coroa.
Com a mã o tré mula, carrega nos botõ es C e 7. A má quina emite um
zumbido, vai buscar o single e coloca-o no prato.
Nils afasta-se e escuta a inimitá vel entrada de Stargazer, com o
rapidı́ssimo solo de bateria. Relembra o dia em que, no im dos anos
setenta, vira os Rainbow na Konserthuset de Estocolmo.
A banda começou com mais de uma hora de atraso, mas quando
Ronnie James Dio apareceu e começou a cantar Kill the King, o pú blico
lançou-se em direçã o ao palco como uma vaga.
Nils aproxima-se das grandes janelas. Todas as tardes baixa os
estores do lado de fora dos grandes painé is de vidro virados a oeste
para proteger os quadros da luz intensa.
Atravé s do tecido de nylon, o jardim parece ainda mais escuro e
cinzento.
Ali deve achar que aquele lugar é uma espé cie de representaçã o
plá stica daquilo que signi ica nã o ter ilhos ou netos.
Nils sabe que a casa é um edifı́cio de aspeto pretensioso, que o
jardim está excessivamente tratado e a piscina sempre deserta.
A sua empresa desenvolveu dispositivos eletró nicos avançados no
campo da aeroná utica, componentes para os radares e para os sistemas
de pilotagem eletró nica. Nils tinha ó timas relaçõ es com o governo e
durante quase vinte anos conseguiu exportar produtos utilizá veis quer
no campo militar, quer no â mbito civil.
De repente, um arrepio corre-lhe ao longo do braço.
No meio da mú sica alta, parece-lhe ouvir uma criança recitar uma
lengalenga.
Roda a cadeira e desloca-se até à entrada.
A voz prové m do andar de cima, que está agora fechado. Aproxima-
se das escadas onde nã o põ e o pé há muitos anos e repara que a porta
do quarto está aberta.
A mú sica na jukebox acaba e a seguir, com um ruı́do surdo e um
zumbido, o disco volta ao seu lugar no meio dos outros. Depois, cai o
silê ncio.
Nils começou a ter medo do escuro seis meses antes, depois de um
pesadelo relacionado com a mulher. Ela regressara do reino dos mortos,
mas era obrigada a permanecer numa posiçã o ereta porque um tronco
aguçado lhe atravessava o corpo, desde a virilha até à cabeça.
Estava zangada porque ele nã o izera nada para a ajudar, porque
nã o tinha ligado para o hospital.
O pau ensanguentado chegava ao chã o, e Eva era obrigada a andar
de forma bizarra, com as pernas abertas, para ir atrá s dele.
Nils pousa as mã os nos joelhos: tremem e abanam, erguendo-se
numa sé rie de movimentos exagerados que nã o signi icam nada.
Quando ica quieto, Nils aperta a correia por cima das coxas para
nã o escorregar da cadeira no caso de os tremores recomeçarem.
Vai até à sala e olha em volta. Está tudo como é habitual: o
candeeiro de teto, os tapetes persas, a mesa de má rmore e o divã em
estilo gustaviano que Eva trouxera de casa dos pais.
Mas o telefone já nã o está em cima da mesa.
As vezes, a presença de Eva é de tal maneira palpá vel que é como se
a irmã mais velha dela se tivesse apropriado de uma chave e andasse
por ali, só para o assustar; pelo menos é o que Nils pensa.
Está a regressar à cozinha quando, pelo canto do olho, vislumbra
um rá pido movimento. Vira a cabeça de repente e parece-lhe
descortinar um vulto no espelho antigo, antes de perceber, como tantas
outras vezes, que deve tratar-se apenas da mancha de humidade no
vidro.
– Lizzy? – chama, num io de voz.
Ouve um ruı́do metá lico que prové m de uma gaveta na cozinha,
depois passos. Nils estaca, com o coraçã o na garganta, gira a cadeira e
volta a ver diante dos olhos o sangue que escorre pelo pau no meio das
pernas de Eva.
Sem fazer ruı́do, empurra as manetes para a frente e aproxima-se
das grandes janelas da varanda, as rodas chiando ao de leve no parquet.
Agora, Eva está a atravessar a cozinha de pernas abertas, o pau
arranha os azulejos, traçando uma estria de sangue, e vai bater contra a
soleira da sala de jantar.
De novo aquela estú pida lengalenga.
Deve ser o rá dio que icou ligado na cozinha.
O apoio para os pé s da cadeira de rodas choca contra a porta de
vidro com um ligeiro tilintar.
Nils olha para a porta fechada da sala de jantar re letida no vidro,
contra o jardim.
As mã os tremem-lhe, e a rigidez do pescoço torna-lhe difı́cil
esticar-se para a frente e carregar no botã o dos estores.
Com um zumbido, a tela de nylon levanta-se como a cortina de um
palco, revelando as cores mais claras do jardim ao alvorecer.
As espreguiçadeiras icaram lá fora e as agulhas de abetos
in iltraram-se por entre as pregas das almofadas. A iluminaçã o da
piscina está apagada, mas da á gua erguem-se nuvens de vapor.
Quando o estore se enrolar completamente, Nils poderá abrir a
porta e deslizar lá para fora. Vai esperar Ali no jardim para lhe pedir
que inspecione a casa e confessar-lhe-á que tem medo do escuro e que
todas as noites deixa as luzes acesas, e talvez lhe pague mais para ele
icar algum tempo a fazer-lhe companhia.
A tremer, faz rodar a chave na fechadura. Ouve-se um clic, e Nils
baixa a maçaneta e entreabre a porta alguns milı́metros.
Recua, olha na direçã o da sala de jantar e vê que a porta se abre
lentamente por causa da corrente de ar.
Empurra a cadeira de rodas o mais rapidamente possı́vel, empina-a
e apercebe-se de um vulto que se aproxima dele por trá s.
Quando a cadeira assenta no pavimento de pedra, ouve passos
pesados nas suas costas e sente uma lufada de ar fresco no rosto.
– Ali, é s tu? – grita, com a voz raiada de medo, dando um impulso
para a frente. – Ali!
O jardim está mergulhado em silê ncio e o barracã o das ferramentas
está fechado. A neblina matinal paira sobre o terreno. As folhas dos
juncos ao pé do lago vibram ao vento.
Tenta girar a cadeira, mas uma das rodas icou entalada na fenda
entre duas placas de pedra. Nils quase nã o consegue respirar. Tenta
parar as tremuras apertando as mã os contra as axilas.
Vindo de casa, algué m o segue; Nils vira-se para trá s.
E um homem encapuzado, com uma bolsa negra na mã o. Aproxima-
se dele com o rosto coberto, como um carrasco.
Nils pressiona os comandos, sem conseguir desbloquear as rodas
da cadeira.
Prepara-se para chamar outra vez Ali, quando sente um lı́quido
gelado ser-lhe despejado sobre a cabeça e escorrer-lhe pelos cabelos,
pelo pescoço, pelo rosto e pelo peito.
Demora apenas alguns segundos a perceber que se trata de
gasolina.
Aquilo que lhe parecera uma bolsa negra é a inal o depó sito do
corta-relvas, e o homem mascarado está a regá -lo com combustı́vel.
– Espere, por favor, eu tenho muito dinheiro… Prometo, é todo seu
– diz Nils, ofegante, ao mesmo tempo que os vapores o fazem tossir.
O homem encapuzado gira à volta dele e esvazia-lhe o depó sito no
peito. Depois atira-o ao chã o, em frente à cadeira de rodas.
– Meu Deus, por favor… Eu faço o que você quiser…
O homem tira uma caixa de fó sforos do bolso e pronuncia algumas
frases incompreensı́veis, palavras que lhe saem da boca no meio de um
ataque histé rico e que caem como moedas cintilantes num poço dos
desejos.
– Nã o faça isso, nã o faça isso, nã o faça isso…
Nils tenta abrir a correia apertada sobre as coxas, mas percebe que
está torcida e demasiado esticada. Abana-a e puxa-a com as duas mã os.
Sem a mı́nima pressa, o homem acende um fó sforo e atira-lho para os
joelhos.
O ar à volta de Nils é subitamente sugado, como depois de um salto
de paraquedas.
O anjo da morte agita as suas terrı́veis asas à volta dele.
O pijama e o cabelo começam a arder.
E, atravé s dos re lexos azuis, Nils vê o homem encapuzado afastar-
se das labaredas quentes.
A lengalenga infantil ressoa na sua cabeça enquanto as chamas
crescem em volta. Os pulmõ es de Nils já nã o encontram ar: é como se
estivesse a afogar-se, depois de repente chega a dor, total e envolvente.
Nunca imaginara que alguma coisa pudesse ser tã o terrı́vel.
Encolhe-se em posiçã o fetal, e, à distâ ncia, intui o ruı́do do metal
quando a cadeira começa a torcer-se com o calor.
Antes de perder os sentidos, Nils apenas consegue pensar que é o
mesmo ruı́do da jukebox quando vai buscar um novo disco.
28
Quando os guardas prisionais na sala de controlo sã o informados
de que o detido de Hall já transpô s o cruzamento das passagens
subterrâ neas e se dirige ao pavilhã o D, a atmosfera torna-se de repente
elé trica.
Atravé s do vidro à prova de bala, reparam que Joona Linna, ao
contrá rio do que é habitual, está a tomar o pequeno-almoço na mesma
mesa que Reiner Kronlid, o lı́der da Irmandade. Falam os dois durante
alguns instantes, depois Joona levanta-se e, levando consigo a chá vena e
a torrada, vai sentar-se na mesa ao lado.
– Que raio é que ele está a tramar? – pergunta um dos guardas.
– Talvez tenha descoberto alguma coisa sobre o tipo novo.
– Ou entã o é por causa daquela histó ria da licença.
– Teve ontem o OK – a irma o terceiro. – Para ele, é a primeira vez.
Joona lança um olhar aos trê s guardas que o observam por detrá s
da parede de vidro, depois volta-se para Sumo e faz-lhe a mesma
pergunta que acabou de dirigir a Reiner Kronlid.
– O que é que eu posso fazer por ti amanhã ?
Sumo está preso há oito anos por duplo homicı́dio, com a
consciê ncia de que tudo aconteceu por causa de um mal-entendido.
Tem o rosto devastado pelo sofrimento e um ar constantemente infeliz,
como se tivesse acabado de chorar e estivesse a tentar recompor-se e
controlar a voz.
– Compra uma rosa… a mais bonita que encontrares, leva-a à Outi e
diz-lhe que ela é a minha rosa… e també m que sinto muito… que sinto
muito por lhe ter estragado a vida.
– Nã o queres que ela te venha visitar? – pergunta Joona, olhando-o
nos olhos.
Sumo limita-se a abanar a cabeça e deixa vaguear o olhar em
direçã o à janela; observa o gradeamento cinzento encimado pelo arame
farpado e, mais adiante, a monotonia do muro amarelo sujo.
Joona dirige-se ao outro homem sentado à mesa. Trata-se de Luka
Bogdani, um homem baixo cujos falhanços existenciais se cristalizaram
numa expressã o altiva.
– E por ti?
Luka estica-se para a frente e murmura:
– Quero que veri iques se o meu irmã o já começou a gastar o meu
dinheiro.
– O que é que eu lhe devo perguntar?
– Nã o, porra, nã o faças perguntas. Veri ica o dinheiro, conta-o.
Devem ser seiscentas mil coroas exatas.
– Sabes perfeitamente que eu nã o posso fazer isso – responde
Joona. – Eu quero sair daqui, e aquele dinheiro é fruto de um roubo.
Se…
– Chui de merda – sibila Luka, entornando a chá vena de café .
Joona continua a andar de mesa em mesa. Pergunta a todos o que
pode fazer por eles durante o seu dia de licença. Memoriza todas as
mensagens e todos os pedidos, enquanto espera a chegada de Salim
Ratjen.
Joona tinha explicado ao primeiro-ministro que precisava de uma
licença de trinta e seis horas a partir de segunda-feira para conseguir
abordar Ratjen.
– Mas assim nã o lhe vã o sobrar muitas horas na prisã o para
descobrir quem é verdadeiramente Salim – argumentou o primeiro-
ministro, na defensiva.
Joona garantiu que o tempo limitado nã o era uma desvantagem,
mas um pré -requisito indispensá vel.
Antes de sair da sala das visitas, Joona perguntou quais eram os
limites a respeitar, em caso de emergê ncia. O primeiro-ministro
respondeu com uma tremura nos cantos da boca:
– Se conseguir deter os terroristas, nã o há limites.
Reiner Kronlid levanta-se da mesa, passa nervosamente uma mã o
pela boca e olha para o corredor e para as portas blindadas. Fica imó vel,
com o pescoço rı́gido, depois lambe os lá bios e senta-se outra vez.
Todos os presentes na mesa da Irmandade se debruçam quando ele
começa a falar.
Joona repara que, do outro lado do vidro à prova de bala, a luz no
corredor se divide em dois feixes, e uma tré mula linha vertical cinzenta
começa a alongar-se, dividindo-se depois em trê s iguras distintas.
A fechadura salta para deixar entrar os dois guardas com o novo
recluso, Salim Ratjen.
O agente de guarda assente quando um dos colegas lhe estende um
documento para assinar.
Salim Ratjen tem o rosto redondo e sagaz. Os cabelos sã o inos e
estã o penteados para trá s, e os bigodes atravessados por riscos de
pelos precocemente embranquecidos.
Traz os objetos pessoais num saco cinzento do estabelecimento
prisional e nã o cruza o olhar com ningué m.
Um dos guardas acompanha-o à cela e depois novamente à cozinha
e ao refeitó rio.
Salim senta-se no lugar livre ao lado de Magnus Duva, com uma
tigela e uma chá vena de café .
Joona levanta-se e vai sentar-se em frente a Salim, depois volta-se
para Magnus e pergunta-lhe o que pode fazer por ele durante a licença.
– Vai a casa da minha irmã e arranca-lhe o nariz – implora Magnus.
– Manda-te dinheiro todos os meses – replica Joona.
– Nã o te esqueças de ilmar tudo – diz o outro, a sorrir.
Salim escuta-os com os olhos baixos, enquanto come locos de aveia
com leite coalhado.
Reiner e dois dos seus homens posicionam-se diante do vidro da
sala de controlo e começam a falar para impedir a visibilidade nos
poucos segundos necessá rios.
Os outros dois homens da Irmandade atravessam a cantina. Um
deles ostenta no antebraço uma tatuagem que representa um lobo
rodeado de arame farpado retorcido. O outro tem uma ligadura suja em
volta de uma mã o.
E o sı́tio errado para um homicı́dio, pensa Joona, voltando-se para
Salim Ratjen.
– Falas sueco? – pergunta-lhe.
– Sim – responde Salim, sem levantar os olhos.
Os dois homens passam pela ú ltima mesa, atrá s das costas de
Joona, e prosseguem em direçã o à s casas de banho.
– Talvez já tenhas percebido que tenho uma licença daqui a pouco e
estou a perguntar a todos os do corredor se posso fazer alguma coisa
por eles, quando estiver lá fora… Nã o nos conhecemos, mas
provavelmente vais icar aqui durante algum tempo, por isso pergunto-
te a ti també m.
– Obrigado, mas sei desenrascar-me sozinho – responde Ratjen, em
voz baixa.
– Porque eu sou um ka ir?
– Exato.
A colher de plá stico cinzenta treme na mã o sardenta de Salim.
Duas cadeiras raspam no chã o, e do outro lado os rapazes de
Malmö levantam-se.
Imre, o dos dentes de ouro, tem quase dois metros de altura,
enquanto Darko faz lembrar um mineiro sexagená rio.
Os homens de Reiner começam a queixar-se em voz alta do café
aguado. Falam dirigindo-se à parede de vidro.
– Nã o nos podem lixar desta maneira – grita um deles. – Antes de
chegarem os albaneses, havia café que chegasse para toda a gente!
Do outro lado, os dois guardas começam a preparar-se para intervir
e para os acalmar.
Os homens da Irmandade que passaram por trá s de Joona
regressam ao corredor e aproximam-se de Salim. Levantam o carapuço
para cima da cabeça e viram as costas à s câ maras.
Nã o estã o armados, só querem assustá -lo.
Joona permanece sentado. Percebeu que estã o prestes a atacar.
Salim controlava grande parte do trá ico de droga em Hall, e Reiner
Kronlid precisa de o aterrorizar ou matar imediatamente para nã o
perder o controlo do espaço.
– Vais começar a trabalhar na lavandaria, mas se quiseres també m
podes optar por estudar – diz Joona, com uma voz calma. – Temos um
cı́rculo de estudos… Se calhar nã o te interessa, mas este ano trê s de nó s
receberam um diploma e…
O primeiro dos homens agride Salim, fazendo derrubar a cadeira. O
recé m-chegado cai de lado, enquanto tenta proteger-se com a mã o. Os
pratos vã o parar ao chã o e o leite entorna-se.
Salim tenta levantar-se, mas o segundo homem dá -lhe um pontapé
no peito, empurrando-o para trá s, contra as cadeiras pouco distantes.
Salim cai com a perna direita estendida, e a sola do sapato traça um
risco no chã o.
Joona continua no seu lugar a beber o café .
Entretanto, os homens de Malmö , mais altos do que os outros um
palmo, chegam ao local do desacato. Com calma, repelem os membros
da Irmandade, falando albanê s com um sorriso nos lá bios.
Os guardas já entraram no refeitó rio e estã o agora a separar os dois
grupos.
Salim levanta-se. Tenta mostrar-se indiferente e esconder o medo;
massaja o cotovelo dorido e volta a sentar-se.
Joona estende-lhe um guardanapo de papel.
– Obrigado.
– Acho que te caiu um bocado de leite na camisa.
Salim limpa a nó doa e volta a dobrar o guardanapo. Joona suspeita
que a agressã o tenha sido uma manobra de diversã o.
Lança um olhar a Reiner para decifrar as suas intençõ es e espera
que arranque um novo ataque.
Os guardas estã o a falar com os dois agressores, os quais a irmam
que foi Salim que os provocou.
A situaçã o acalmou há já algum tempo, quando outros guardas
entram armados de cassetetes e gá s lacrimogé neo.
Joona sabe que a ú nica possibilidade de se in iltrar na rede de Salim
antes de quarta-feira é aproveitar o facto de o detido ter sido
transferido de Hall sem pré -aviso.
Na antiga prisã o, tinha organizado um sistema de proteçã o e de
comunicaçã o com o exterior.
Como é ó bvio, estava consciente do risco de ser descoberto, mas
nã o tinha previsto uma transferê ncia repentina.
Se realmente liderou o grupo terrorista a partir da cadeia, agora, de
repente, foi posto fora do jogo.
Sendo o chefe operativo dos atentados, Salim precisa de arranjar o
quanto antes um mensageiro que lhe permita abrir um novo canal de
comunicaçã o.
A serem corretas as informaçõ es da Sä po, e se de facto é Salim que
tem de dar luz verde para o homicı́dio de quarta-feira, a situaçã o do
homem é desesperante.
Joona observa Salim, enquanto este continua sentado com uma
mã o à volta da chá vena.
Apercebe-se de que sobre a superfı́cie escura do café se formou um
cı́rculo mais claro.
– Eu nã o bebia isso – diz Joona.
– Tens razã o – responde Salim.
Dá graças a Deus pela comida e levanta-se.
Joona diz-lhe para re letir sobre a proposta de se juntar ao cı́rculo
de estudos.
Agora tê m todos dez minutos para se prepararem antes de se
dirigirem ao posto de trabalho na lavandaria, na o icina ou na
biblioteca.
Quando Joona chega à cela, apercebe-se de que que foi revistada: a
cama está desfeita, as roupas estã o espalhadas pelo chã o e algué m lhe
pisou as cartas, os livros e as fotogra ias.
Entra e volta a pendurar na parede a fotogra ia da ilha, Lumi, toca-
lhe com um dedo no contorno da face e começa a pô r as coisas em
ordem.
Apanha as cartas e alisa-as; no momento em que lhe vem parar à
mã o a primeira carta que Valeria lhe escreveu, para e lembra-se de que,
quando a recebeu, estava a passar o dia de Natal no estabelecimento
prisional. Os reclusos almoçaram, sem bebidas alcoó licas, e a seguir o
Pai Natal entrou no setor.
«Oh, oh, oh! Há por aqui algum menino mau?», exclamava.
A primeira carta de Valeria pareceu-lhe um presente fantá stico,
quando, naquela noite, se sentou na cela para a ler.

Querido Joona,
Provavelmente estás a perguntar-te por que razão decidi escrever-te
ao im de todos estes anos. A resposta é simples: nunca tive coragem. Só
agora, que estás na prisão, me atrevo a contactar-te.
Ambos sabemos que seguimos caminhos muito diferentes nas nossas
vidas. O facto de te teres tornado polícia talvez não constituísse uma
surpresa, mas que eu fosse caminhar na direção oposta era pura e
simplesmente inimaginável, como tu bem sabes. Nunca pensei que fosse
esse o meu destino, mas há coisas que acontecem e pronto: escolhemos
um percurso e ele leva-nos a lugares aonde nunca quereríamos ter
chegado.
Hoje sou uma pessoa diferente: tenho uma vida normalíssima, estou
separada e tenho dois ilhos adultos. Há muitos anos que sou jardineira,
mas nunca esquecerei o que é estar preso.
Talvez estejas casado e tenhas muitos ilhos que te visitam
constantemente, mas se te sentires sozinho icarei feliz por te visitar.
Sei que quando nos conhecemos éramos muito jovens e que
andávamos no último ano do liceu, mas nunca deixei de pensar em ti.
Um abraço,
Valeria

Joona volta a dobrar a carta e arruma-a juntamente com as outras,


depois apanha os lençó is do chã o e sacode-os. Nem se atreve a pensar
que, graças à tarefa que lhe foi con iada pelo primeiro-ministro, poderá
obter a suspensã o da pena.
Se começasse a fantasiar sobre a liberdade, a prisã o e a sensaçã o de
impotê ncia tornar-se-iam insustentá veis. Começaria a sonhar que ia ter
com Lumi a Paris, que se encontraria com Valeria, que ia visitar o
tú mulo de Disa, no cemité rio de Hammarby, ou o de Suma, que repousa
mais a norte.
Enquanto faz a cama, afasta aquelas fantasias do espı́rito. Dobra o
lençol por baixo do colchã o, bate na almofada e volta a pô -la no lugar.
29
Ao im de trê s horas de estudo, Joona e Marko saem da biblioteca e
percorrem os subterrâ neos para ir almoçar.
O sistema de segurança da prisã o de Kulma baseia-se no conceito
de limitar o espaço e as ocasiõ es de contacto entre os presos.
Tanto quanto possı́vel, os detidos deslocam-se sozinhos, mas sã o
controlados de secçã o em secçã o para impedir que eventuais revoltas
se estendam de uma unidade a outra. Ocasionalmente, pode acontecer
que se desencadeie uma rixa, mas nesse caso consome-se no pró prio
sı́tio onde se acendeu.
Chegam ao cruzamento em T, onde Salim e os rapazes de Malmö
aguardam que a porta se abra. Imre carrega mais uma vez no botã o.
Salim observa o velho mural que remonta aos anos oitenta: uma
praia de areia branca com uma jovem mulher em biquı́ni.
– Enquanto você s lavam vinte toneladas de cuecas e lençó is, eu
estou a fazer o liceu – diz Marko, a sorrir.
Em vez de lhe responder, Salim escreve «fuck you» com um pedaço
de lá pis nas costas da mulher.
Depois do almoço, os presos dispõ em de uma hora para passear no
pá tio. E o ú nico tempo que passam ao ar livre, durante o qual podem
sentir o vento no rosto, seguir uma borboleta com os olhos, se for verã o,
ou partir ao pontapé o gelo que se formou sobre as poças, no inverno.
Ao sair, Joona repara que Salim está sozinho, encostado ao
gradeamento prateado.
O pá tio nã o é particularmente grande: é fechado em dois lados
pelos edifı́cios da prisã o e nos outros dois pelo gradeamento. Por fora
encontra-se o muro, e depois a vedaçã o eletri icada.
A maior parte dos detidos está a fumar, enquanto alguns grupos
conversam aqui e ali. Habitualmente Joona aproveita para correr, mas
hoje caminha com Marko, tentando manter Salim debaixo de olho sem
se aproximar demasiado.
Da fá brica da Procordia, na zona industrial para alé m do muro,
chega o eco de uma ventoinha ruidosa.
Joona e Marko passam diante da estufa vazia com os painé is de
plá stico riscados. Reiner posiciona-se ao lado da rede de voleibol,
voltando-se para uma das câ maras de vigilâ ncia. Os outros membros da
Irmandade reuniram-se e estã o a discutir.
Joona sabe perfeitamente que há o risco de um confronto, e já disse
a Marko para ir avisar os guardas caso aconteça alguma coisa.
Entram no espaço iluminado pela luz do sol que consegue passar
por cima do muro, e as suas sombras compridas estendem-se até
chegarem a Salim Ratjen, que permanece imó vel, encostado ao
gradeamento.
Marko para a acender um cigarro. Joona prossegue à direita e está
prestes a passar à frente de Ratjen quando este dá um passo em direçã o
a ele.
– Porque é que me queres fazer um favor? – pergunta-lhe, itando
Joona com os seus olhos castanho-claros e uma expressã o severa.
– Porque assim, quando eu voltar, estará s em dı́vida comigo –
responde Joona seriamente.
– Porque é que eu haveria de con iar em ti?
– Nã o é s obrigado a fazê -lo – rebate Joona, retomando a marcha.
Rolf, um membro da Irmandade, avança para eles. Reiner faz saltar
a bola no chã o e grita qualquer coisa aos dois homens que atacaram
Ratjen durante o pequeno-almoço.
– Eu sei quem tu é s, Joona Linna – diz Salim Ratjen.
– Ainda bem – responde Joona, parando junto dele.
– Foram duros contigo, no tribunal.
– Devo pedir-te para icares longe de mim – diz Joona. – Nã o faço
grupo com ningué m, nem contigo nem com outros quaisquer.
– Desculpa – diz Salim, sem se mexer.
Joona repara que os dois homens da Irmandade começam a
percorrer o caminho de saibro, levantando uma nuvem de pó .
Marko olha nervosamente para a direita e depois aproxima-se de
Joona.
Reiner passa a bola a Rolf, que logo lha devolve.
A nuvem de pó do caminho sobe lentamente à luz do sol. Reiner
segura na bola com as duas mã os e aproxima-se de Salim.
– O Reiner vai atacar daqui a pouco – diz Joona.
Volta-se e vê os outros dois homens aproximarem-se pelo lado
oposto. Ambos trazem armas escondidas.
Levantam nuvens de pó ao pisar o caminho, riem entre eles e vã o-
se aproximando.
Marko foi bloqueado por alguns homens da Irmandade. Agarraram-
no pelos ombros, seguram-no e fazem de conta que é uma brincadeira.
Os albaneses de Malmö estã o a fumar junto dos guardas.
O pó forma uma nuvem mais densa sobre o pá tio e os guardas
começam a suspeitar de que está a acontecer alguma coisa.
Joona dá alguns passos em direçã o a Rolf e levanta as mã os na
tentativa de o acalmar.
– Pousa a arma – diz.
Rolf empunha uma chave de fendas a iada, uma simples arma de
corte, o que reduz sensivelmente as suas possibilidades de ataque.
Joona imagina que vai tentar atirar-se à garganta do outro e atingilo da
direita, por baixo do braço esquerdo.
Reiner segura ainda a bola com uma mã o enquanto se aproxima
das costas de Salim. Na outra tenta esconder a lâ mina de uma faca.
Joona recua para obrigar Rolf a segui-lo.
Marko liberta-se, chama os guardas e apanha uma pancada violenta
do peito.
Salim ouve o grito e volta-se. A bola atinge-o no rosto, obrigando-o
a recuar um passo, mas consegue ainda assim agarrar o braço armado
de Reiner. Afasta a lâ mina, mas tropeça e cai contra o gradeamento.
E um ataque bem mais agressivo do que Joona imaginara.
Rolf murmura qualquer coisa e desfere um golpe com a chave de
fendas. Joona roda para o lado, apara o golpe e agarra a manga do
casaco do agressor por trá s. Com força, en ia-lhe o cotovelo sob a axila,
de baixo para cima. E um golpe de tal maneira violento que parte o
ú mero de Rolf e faz com que a cabeça do osso encaixe na cavidade da
omoplata.
Rolf vacila para a frente, a gemer por causa da fratura, a chave de
fendas cai ao chã o e o braço do homem oscila, preso graças aos
mú sculos e aos ligamentos.
Um dos indivı́duos no caminho de saibro salta para a frente,
brandindo um bastã o improvisado, feito de parafusos e porcas en iados
numa barra.
Joona tenta aparar o golpe, mas é demasiado tarde. O bastã o atinge-
o nas costas e uma dor horrı́vel explode-lhe na omoplata. Cai para a
frente, de joelhos, levanta-se a tossir e quase nã o consegue evitar a
pancada seguinte; inclina a cabeça e o toque ligeiro da arma rasa-lhe a
nuca e continua em frente.
Joona agarra no braço que empunha o bastã o; aproveitando o
lanço, puxa o homem para si, atinge-o na anca, fá -lo cair de costas,
depois baixa-se e en ia-lhe um joelho na caixa torá cica.
Rolf continua a cambalear, a segurar o ombro com um ar confuso e
a gemer de dor.
Salim está no chã o. Apoiando-se com a mã o a sangrar, levanta-se.
Marko chega a correr, para ofegante junto de Joona e limpa-lhe o
sangue da boca.
– Eu assumo a culpa – diz.
– Nã o é preciso – responde Joona.
– Nã o há problema – diz o outro, a arquejar. – Tu tens a licença para
gozar, tens de estar com a Valeria.
Quando Joona se aproxima de Salim Ratjen, o pó começa a assentar.
Reiner atira a faca ao chã o e bate em retirada.
Os rapazes de Malmö aproximam-se pelo outro lado. Os guardas
falam com grande agitaçã o atravé s dos transmissores-recetores.
Joona conduz Salim ao grupo dos rapazes de Malmö , que se divide
em dois para os deixar passar e depois cerra ileiras de novo.
Marko aproxima-se do homem que Joona fez cair de costas,
empurra-o outra vez para o chã o e atinge-o no rosto até que os guardas
lhe batem com os cassetetes.
Cai ao chã o e enrosca-se sobre si mesmo. Os guardas continuam a
bater-lhe, enquanto ele tenta proteger a face e a nuca, mas eles só
param quando Marko perde os sentidos.
– Sinto muito – diz Salim a Joona.
– Diz isso ao Marko.
– Vou fazê -lo.
Salim perde sangue do braço e da mã o, mas nem se digna a olhar
para as feridas.
– Os movimentos do Reiner sã o difı́ceis de prever – diz Joona. – Nã o
sei o que é que ele quer de ti, mas é melhor icares longe dele.
Veem os guardas chegar ao pá tio com macas.
– O que é que vais fazer durante a licença? – pergunta-lhe Salim.
– Vou procurar um emprego.
– Onde?
– Na Polı́cia Criminal – responde Joona.
Salim desata a rir, mas a sua expressã o ica outra vez sé ria quando
o olhar lhe cai sobre Reiner, ao lado da rede de voleibol.
– Está s mesmo convencido de que te vã o deixar sair? – pergunta
Salim de repente.
– O Marko vai assumir a culpa.
– Será que posso pedir-te um favor?
– Se tiver tempo de to fazer.
Salim esfrega o nariz e dá um passo em direçã o a Joona.
– Precisava mesmo que desses um recado à minha mulher – diz em
voz baixa.
– Que recado?
– Tem de ligar para um certo nú mero e perguntar por Amira.
– Mais nada?
– Mudou de operadora, por isso terá s de ir a casa dela. Mora fora de
Estocolmo, em Bandhagen,no n.° 10 de Gnestavä gen.
– E porque é que ela haveria de me deixar entrar?
– Dizes-lhe que tens um recado da parte de da gawand halak, que
sou eu. Signi ica o rapaz do vizinho – responde Salim, com um rá pido
sorriso. – A Parisa é uma rapariga tı́mida, mas se lhe explicares que tens
um recado da parte de da gawand halak, ela deixa-te entrar… E quando
entrares, vai oferecer-te chá e tu vais aceitar… Vais ter é de esperar que
ela leve para a mesa azeitonas e pã o antes de lho transmitires.
30
David Jordan descalça os sapatos enquanto fala ao telemó vel com o
diretor do telejornal da TV4.
O diretor explica-lhe que está a preparar uma reportagem especial
sobre o ministro dos Negó cios Estrangeiros para a ediçã o das dez da
noite.
DJ sai do hall e entra na sala de jantar. O re lexo intenso do mar
agitado espalha-se na divisã o atravé s das vidraças.
– Sabias que o Rex Mü ller e o ministro eram velhos amigos? –
pergunta DJ.
– A sé rio?
– E acho que… aliá s, tenho a certeza de que o Rex está disposto a
colaborar, se precisarem deum ponto de vista mais pessoal –
acrescenta, deixando deslizar o olhar ao longo dos rochedos até ao
molhe.
– Seria fantá stico.
– Entã o eu digo-lhe para te ligar.
– O mais depressa possı́vel – pede o diretor.
A espuma das ondas rebenta contra o molhe, o barco estica as
amarras e as defensas saltam sobre a superfı́cie da á gua.
Uma vez concluı́do o telefonema, DJ manda um SMS a Rex
explicando-lhe que o diretor mordeu o isco, mas que é melhor esperar
uns quarenta minutos antes de lhe ligar, para nã o parecer demasiado
entusiasmado.
DJ já escreveu uma sé rie de textos que Rex poderá publicar nas
redes sociais. E quase certo que os posts, juntamente com a entrevista
na televisã o, irã o evitar o escâ ndalo. Se se vier a descobrir que Rex
urinou na piscina do ministro, o gesto será interpretado como uma
ú ltima brincadeira entre amigos. Rex dirá que tem a certeza de que o
ministro deu uma boa gargalhada depois de ter visto as imagens das
câ maras de vigilâ ncia, ao regressar da nataçã o matutina.
DJ continua à janela. Os pensamentos atropelam-se-lhe na mente.
Tratou do problema de Rex, agora precisa de se dedicar aos seus. Nos
ú ltimos tempos, aconteceram muitas coisas na sua vida das quais nã o
pode falar a ningué m.
Rex ouvi-lo-ia, certamente, mas a tarefa de DJ é ajudar o amigo, nã o
descarregar em cima dele as suas pró prias preocupaçõ es.
Regressa à cozinha, deté m-se diante de uma pasta de cabedal preta
pousada no tampo de má rmore da bancada e pensa que deverá pelo
menos dar uma vista de olhos ao seu conteú do antes de tomar uma
decisã o.
As ondas carregadas de espuma na baı́a estã o iluminadas como
vidro lı́quido.
David Jordan estica a mã o direita e tenta abrir o fecho da pasta, mas
nã o consegue. E demasiado duro, e os seus dedos estã o demasiado
fracos. Um cansaço colossal abate-se sobre ele, e o pescoço quase nã o
consegue segurar a cabeça.
En ia as mã os exaustas nos bolsos, encontra o frasco de moda inil e
despeja os comprimidos em cima da bancada. Deixa cair o frasco vazio,
que ressalta no chã o, depois põ e um comprimido na boca e engole-o.
Já nã o consegue fechar a boca, mas sente o comprimido deslizar-lhe
pela garganta. Tenta relaxar; deita-se de lado, fecha os olhos, mas
continua a vislumbrar os raios de sol atravé s das pá lpebras
entreabertas.
Quando acorda no chã o, meia hora mais tarde, a luz intensa do sol
faz-lhe pulsar o coraçã o de uma forma angustiante.
David Jordan sofre de narcolepsia com cataplexia há seis anos. E
uma perturbaçã o sé ria, mas nã o mortal. Quando se a lige ou está
assustado, acontece-lhe por vezes perder subitamente o controlo de
certos grupos musculares e ser vı́tima de ataques de sono.
A narcolepsia é causada pela carê ncia de uma hormona especı́ ica
no cé rebro que regula a alternâ ncia entre sono e vigı́lia.
Segundo o mé dico, foi provavelmente uma infeçã o de estreptococos
que desencadeou a doença, embora DJ costume dizer que teve a ver
com uma experiê ncia secreta em que participou durante o serviço
militar.
Ergue-se até icar sentado e sente a boca completamente seca; com
a cabeça a andar à roda, levanta-se, apoiando uma mã o no chã o, e olha
para o mar. Uma das defensas foi atirada para o molhe, e a toda a volta
as ondas rebentam com salpicos de espuma branca.
Tenta acalmar-se antes de regressar à pasta de cabedal.
Com as mã os tré mulas, abre o fecho e extrai o conteú do.
Folheia os documentos relacionados com Carl-Erik Ritter. Quando
vê a fotogra ia, o seu coraçã o dispara e um zumbido insinua-se-lhe nos
ouvidos.
Tentando controlar-se, concentra-se e começa a ler.
Ao im de alguns minutos, é obrigado a pousar os documentos.
Aproxima-se entã o do aparador e serve-se de um copo de Macallan.
Esvazia-o e enche-o de novo.
Pensa na mã e e cerra os olhos com força para conter as lá grimas.
Como ilho nã o é exemplar; trabalha demasiado e é raro visitá -la.
A mã e está doente e DJ sabe-o; mas ainda tem di iculdade em aceitar
os seus piores momentos.
Envergonha-se por icar assim tã o mal depois de cada visita.
Habitualmente ela nã o lhe dirige a palavra, nem sequer olha para
ele, ica imó vel na cama a itar a janela.
Durante toda a infâ ncia de David Jordan, a mã e tinha sido tratada
por causa de uma depressã o unipolar, estados alucinató rios e
comportamentos autodestrutivos. Um ano antes, fora transferida para
uma clı́nica especializada no tratamento de traumas psiquiá tricos
permanentes.
Ali, diagnosticaram-lhe a depressã o, associada a uma perturbaçã o
de stress pó s-traumá tico cró nica. Mudaram-lhe completamente a
medicaçã o e revolucionaram a terapia.
Da ú ltima vez que a foi visitar, ela nã o icou deitada na cama num
estado catató nico; pelo contrá rio, pegou nas lores que DJ lhe levou e
pô -las numa jarra, com as mã os tré mulas. A doença e os medicamentos
tinham-na feito envelhecer precocemente.
Sentaram-se a uma mesinha no quarto dela a tomar chá em
chá venas de porcelana e comeram uns inı́ssimos biscoitos de gengibre.
A senhora repetiu vá rias vezes que lhe devia ter preparado um
jantar em condiçõ es, e todas as vezes ele respondeu que já tinha
comido.
Um vé u de pequenas gotas de chuva cobria a janela.
Quando DJ lhe perguntou como estava e se os medicamentos novos
eram melhores, o olhar dela tornou-se tı́mido e embaraçado, e as mã os
começaram a mexer-se, inquietas, sobre os botõ es do casaco.
– Sinto muito, nã o fui boa mã e – disse.
– Claro que foste.
DJ sabia que aquilo se devia aos novos medicamentos, mas era a
primeira vez em muitos anos que ela lhe dirigia diretamente a palavra.
Sempre a olhar para ele, explicou-lhe, com o ar de quem declama,
que as suas tentativas de suicı́dio, quando ele era pequeno, tinham a ver
com um trauma.
– Já começaste a conversar com o psicoterapeuta sobre o acidente? –
perguntou DJ.
– O acidente? – repetiu ela, a sorrir.
– Mã e, tu sabes que é s doente, que à s vezes nã o conseguias tratar de
mim e que eu tive de ir viver com a avó .
Lentamente, a senhora pousou a chá vena no pires, e depois falou-lhe
de uma violaçã o horrı́vel.
Em voz baixa, descreveu-lhe o episó dio inteiro.
Por vezes, os fragmentos das lembranças possuı́am uma
objetividade fria, para depois se tornarem quase delirantes.
Mas de repente David Jordan percebeu que tudo aquilo fazia
sentido.
A mã e nunca se tinha deixado ver nua quando ele era pequeno, mas
ainda assim ele vira-lhe as coxas e o peito devastados.
– Nunca o denunciei – sussurrou ela.
– Mas…
E agora DJ está outra vez a recordar a maneira como ela, a mã o ina
diante da boca, se desfez em lá grimas e pronunciou o nome de Carl-Erik
Ritter.
Ficou corado, tentou falar, mas foi surpreendido pelo mais violento
ataque de narcolepsia de que alguma vez foi vı́tima.
DJ acordou no chã o, com a mã e a afagar-lhe as faces: incapaz de
acreditar no que ouvira.
Durante toda a sua vida de adulto tinha culpabilizado a mã e pela
sua incapacidade de lutar contra a angú stia.
Um acidente de carro pode ser uma experiê ncia terrı́vel, mas ela
salvara-se e sobrevivera.
Naquele dia, DJ teve diante dos olhos toda a sua fragilidade.
Apercebeu-se de que o seu corpo envelhecido sentia ainda medo e nã o
parava de se proteger instintivamente, preparando-se para a violê ncia e
para a dor.
As vezes sentia-se bem e conseguia gerir a famı́lia, mas depois, de
repente, precipitava-se num buraco negro e nunca mais conseguia
tomar conta dele.
Sente uma tremenda pena.
Apesar de saber que é inú til, localizou Carl-Erik Ritter para o poder
olhar nos olhos. Talvez seja su iciente. Talvez nã o precise sequer de lhe
perguntar se re letiu sobre aquilo que fez e se tomou consciê ncia da dor
que causou.
Enquanto Carl-Erik Ritter continuou a viver a sua vida, a violaçã o
transformara a mã e numa pessoa aterrorizada, vı́tima de depressõ es e
fantasias suicidas.
E possı́vel que negue tudo. O crime aconteceu há muitos anos e já
prescreveu. Mas, pelo menos, vai saber que DJ está ao corrente do que
aconteceu.
E como Carl-Erik Ritter nã o arrisca nada do ponto de vista judicial,
talvez esteja disposto a falar e a pedir desculpa por ter sido um homem
tã o perverso.
DJ pensa continuamente naquele encontro.
Volta a olhar para a fotogra ia e observa outra vez o rosto do
homem.
David Jordan sabe que, provavelmente, aquele encontro nã o lhe vai
dar qualquer alı́vio, mas agora é necessá rio pô r im à queles
pensamentos.
31
Sã o quase onze horas da noite e um vento frio sopra por entre os
edifı́cios em volta da estaçã o de metro de Axelsberg. David Jordan
atravessa a praça em direçã o ao El Bocado, o restaurante onde Carl-Erik
Ritter costuma passar os serõ es.
DJ tenta respirar normalmente. Sabe que as emoçõ es demasiado
intensas podem causar-lhe um ataque de narcolepsia, mas o
comprimido que tomou em casa deverá mantê -lo acordado durante
vá rias horas.
Do outro lado da praça, um bê bedo está a gritar com o cã o.
O bairro é inteiramente dominado por pré dios enormes em mau
estado e um centro comercial de tijolos vermelhos. O subú rbio foi
construı́do entre os anos sessenta e setenta no â mbito do Programa
Milhã o, que tinha como objetivo criar precisamente um milhã o de
novas habitaçõ es num perı́odo de dez anos.
DJ observa o quiosque, o salã o de cabeleireiro e a lavandaria ao
lado do restaurante.
Atrá s do vidro do quiosque, onde está pendurado um cartaz
desbotado que celebra uma vitó ria de totoloto, vê -se uma grade negra.
Ao lado do cabeleireiro, duas mulheres dos seus quarenta anos
acabam de fumar um cigarro, depois apagam a beata e voltam a entrar
no restaurante.
No viaduto por cima da praça, veı́culos pesados passam a grande
velocidade, com um ruı́do ensurdecedor, e um sopro de vento faz
rodopiar o lixo do McDonald’s em volta de um contentor a transbordar.
David Jordan inspira fundo, abre a porta do restaurante e entra na
penumbra e no ruı́do. Sente-se o cheiro de fritos e de roupa molhada.
Nas paredes brancas ao lado das mesas estã o penduradas velhas
ventoinhas e candeeiros de petró leo. O letreiro verde da saı́da de
emergê ncia ilumina o teto falso, e ao longo das traves estã o presos com
ita adesiva os cabos que saem da aparelhagem estereofó nica coberta
de pó .
A uma mesa perto da porta estã o sentados dois casais a discutir
com vozes de bê bedos.
Por baixo de um coberto de telhas, alguns clientes de meia-idade
bebem e conversam empoleirados em bancos altos junto ao balcã o
arranhado. Um cartaz amarelecido apresenta o menu completo,
incluindo os pratos em oferta especial para os reformados.
David Jordan pede uma garrafa de cerveja Grolsch e paga com
moedas. Bebe um primeiro trago refrescante e observa um indivı́duo de
rabo de cavalo que está a mostrar qualquer coisa no telemó vel a uma
mulher mais velha.
Mais adiante, um cliente limpa a espuma da boca e esboça uma
careta quando o vizinho experimenta uns ó culos de sol.
DJ volta-se na direçã o oposta e descobre o homem com quem veio
ter.
Reconhece-o imediatamente, graças à fotogra ia.
Carl-Erik Ritter está sentado ao fundo do estabelecimento e tem na
mã o um copo de cerveja com o logó tipo da Falcon. Veste uns jeans
coçados e uma camisola de lã rota nos cotovelos.
DJ pede licença e abre caminho por entre os clientes, levando
consigo a garrafa de cerveja; passa diante de um recanto ocupado por
um grupo de bê bedos e para em frente à ú ltima mesa.
– Posso sentar-me? – pergunta, ao mesmo tempo que ocupa o lugar
em frente a Carl-Erik Ritter.
O homem levanta lentamente o olhar e ita-o com olhos aquosos,
sem responder. DJ sente que o coraçã o começa a bater demasiado
depressa; um perigoso cansaço envolve-o e a garrafa está prestes a
escorregar-lhe da mã o.
– Es o Carl-Erik Ritter? – pergunta.
– Era, da ú ltima vez que me ofereceram de beber – tartamudeia o
homem.
– Gostava de falar contigo.
– Boa sorte – responde o outro, ao mesmo tempo que bebe um gole
de cerveja. Pousa o copo, mas continua a segurá -lo com a mã o.
Carl-Erik comeu carne grelhada: ao lado do copo está uma tá bua
com vestı́gios de brasas, onde sobram uns riscos do puré que devorou,
para alé m de meio tomate assado. Ao lado do suporte de guardanapos
está um copinho de shot vazio com um resto negro de Fernet-Branca no
fundo.
DJ tira do bolso uma fotogra ia da mã e e pousa-a na mesa diante do
homem. E uma foto velha, de quando ela tinha dezoito anos. Na
imagem, a mã e traz um vestido claro e sorri para a objetiva.
– Lembras-te dela? – pergunta DJ, quando tem a certeza de que
consegue controlar a voz.
– Olha lá – responde Carl-Erik Ritter, erguendo o queixo –, eu só
quero estar aqui a embebedar-me em paz. E pedir muito?
Despeja as ú ltimas gotas de Fernet-Branca na cerveja.
– Olha para a fotogra ia.
– Nã o me chateies. Percebeste? – diz lentamente o homem.
– Lembras-te do que izeste? – pergunta DJ, apercebendo-se de que
a sua voz se tornou estridente. – Confessa, tu…
– Mas que merda de conversa é esta? – exclama Carl-Erik Ritter,
dando um murro na mesa. – Nã opodes vir aqui acusar-me!
O empregado do bar olha na direçã o deles por cima da
aparelhagem estereofó nica e bate com a cabeça numa lâ mpada que
começa a oscilar pendurada no io.
DJ sabe que tem de se acalmar e evitar desencadear um litı́gio que
se re letiria negativamente em Rex. Naquele momento, nã o podem
correr o risco uma má publicidade.
Enquanto despeja novamente o copinho de shot na cerveja, a mã o
de Carl-Erik Ritter treme. Evidentemente, é um homem só . Tem as
unhas sujas e esqueceu-se de barbear uma face.
– Eu nã o vim aqui para discutir – prossegue DJ, em voz baixa, e
afasta a garrafa. – Mas quero perguntar-te…
– Nã o me chateies, já te disse!
Um homem na mesa ao lado olha para eles enquanto rasga dois
pacotinhos de açú car e os despeja na boca.
– Só quero saber se tens consciê ncia de que lhe estragaste a vida –
diz DJ, a tentar conter o choro.
Carl-Erik apoia-se nas costas da cadeira. O colarinho da camisa está
nojento, a face enrugada vermelha do á lcool e os olhos reduzidos a
issuras.
– Nã o tens nenhum direito de vir aqui acusar-me – repete, com uma
voz á spera.
– OK, agora sei quem tu é s, já te vi, já tiveste aquilo que mereces –
diz DJ, enquanto se levanta.
– Que raio é que acabaste de dizer? – balbucia Carl-Erik.
DJ vira-lhe as costas e dirige-se à porta. Ouve o homem gritar-lhe
com voz rouca que volte atrá s. Na janela que dá para a praça lê -se ao
contrá rio o nome do restaurante: a humidade escorre em gotas ao
longo das letras verdes.
Quando sai, DJ sente um calafrio atravessar-lhe o corpo todo. Está
escuro e o ar é frio contra o seu rosto.
A porta do supermercado, do outro lado da praça, está um monte
de gente.
DJ tosse e para em frente ao cabeleireiro, encosta-se ao vidro e
tenta respirar mais devagar. Sabe que devia ir para casa, mas apetece-
lhe relaxar uns minutos.
– Eu disse-te para voltares atrá s – berra Carl-Erik Ritter, seguindo-o
com passos incertos.
Sem lhe responder, DJ recomeça a andar, mas para à frente da
lavandaria, apoiando-se com uma mã o à parede. Observa o manequim
vestido de branco na montra e sente passos atrá s dele.
– Vais ter de me pedir desculpa pelas tuas acusaçõ es – grita Carl-
Erik Ritter.
David Jordan sente-se completamente despojado de energia.
Encosta a testa à montra fria e esforça-se por se manter em pé . O suor
escorre-lhe ao longo das costas e a cabeça, cada vez mais pesada, oscila
sobre o pescoço.
Um autocarro passa no viaduto por cima da praça e o lixo rodopia
no chã o.
Carl-Erik está bê bedo e cambaleia. Agarra a gola do sobretudo de
David Jordan e puxa-o para si.
– Deixa-me ir embora – diz DJ, libertando-se do outro.
– Beija-me a mã o e pede-me desculpa – sibila Ritter.
DJ deixa escapar uma gargalhada. Tenta pô r im à discussã o, mas o
ruı́do metá lico do metropolitano cobre as suas palavras, e por isso
precisa de recomeçar.
– Nã o me sinto bem – repete. – Tenho de ir imediatamente para
casa e…
Carl-Erik agarra-lhe na cabeça e tenta baixar-lha para o obrigar a
beijar-lhe a mã o. Escorregam ambos para trá s e DJ sente o fedor de
suor que emana do corpo do outro.
– Tens de me pedir desculpa, porra – grita, enquanto puxa DJ pelos
cabelos.
David afasta-o com um empurrã o e tenta ir-se embora, mas Carl-
Erik agarra-o de novo pelo sobretudo e atinge-o na face por trá s.
– Agora chega – vocifera DJ, depois volta-se e lança-se contra o
peito do homem.
Carl-Erik recua dois passos, perde o equilı́brio e cai desamparado
contra a montra. O vidro estilhaça-se ao mesmo tempo que o homem
cai no pavimento da lavandaria.
Estilhaços enormes espalham-se na rua, desfazendo-se sobre o
asfalto.
David Jordan aproxima-se a correr de Carl-Erik e tenta ajudá -lo a
levantar-se. O homem oscila para a frente e agarra-se com uma mã o ao
vidro. Um pedaço quebra debaixo dos seus pé s, Carl-Erik cai de joelhos
e o pescoço escorrega contra a beira a iada de um fragmento de vidro.
O sangue esguicha sobre o vestido branco do manequim e sobre o
cartaz amarelo com as ofertas para a lavagem de camisas.
Cortou a jugular.
Carl-Erik volta a cair e tenta levantar-se, arquejante, mas cai
novamente de lado. O vidro cede sob o seu peso. O sangue escuro jorra
da ferida na garganta em ios abundantes e escorre-lhe ao longo do
corpo. Grita e tosse, e abana a cabeça como se quisesse fugir à dor e ao
pâ nico.
David Jordan tenta estancar a hemorragia e pede socorro, a gritar
em direçã o à praça.
Carl-Erik deita-se de costas, tentando repelir as mã os de David.
O sangue corre sobre o asfalto e sobre o lixo que se acumulou junto
da parede do edifı́cio.
Ritter é atravessado por arrepios ao longo de todo o corpo e abana
furiosamente a cabeça para a frente e para trá s.
Fita DJ, abre a boca e uma tré mula bolha de sangue incha-lhe entre
os lá bios.
As pernas de Carl-Erik agitam-se enquanto a poça de sangue alastra
por baixo dele e desliza hesitante em direçã o a um bueiro ferrugento.
32
Rex está a ouvir as trê s fantasias para piano de Wilhelm
Stenhammar enquanto tira a loiça da má quina e arruma os pratos nos
armá rios. Regressou há pouco dos estú dios da TV4, onde gravou uma
entrevista sobre a sua amizade com o ministro dos Negó cios
Estrangeiros.
Nunca se sentiu tã o hipó crita em toda a sua vida, mas depois que a
peça foi transmitida as redes sociais foram inundadas com vá rias
reaçõ es positivas.
Sammy está num concerto no Debaser, mas prometeu regressar
antes das duas. Rex nã o se atreve a ir para a cama antes de o ilho
chegar. Com gestos cansados, põ e ao lume a á gua para o chá e tenta
repelir a ansiedade, mas de repente o telefone toca. Vê aparecer no ecrã
o nome de DJ e entã o atende imediatamente.
– O que é que achaste da entrevista? – pergunta Rex. – Senti-me
como…– O Sammy está em casa? – interrompe-o DJ, com um tom
alterado.
– Nã o, foi…
– Posso subir um instante?
– Andas por aqui?
– Estou cá fora, no carro.
Só entã o Rex repara no estranho tom de voz do amigo, e receia que
ele tenha pé ssimas notı́cias para lhe dar.
– O que foi que aconteceu?
– Posso subir um instante ou nã o?
– Claro – responde Rex.
Desce ao andar inferior, desbloqueia a porta blindada e abre-a
assim que ouve o elevador parar no patamar.
Quando as portas se abrem e Rex consegue ver DJ sob a luz intensa,
recua um passo com um sobressalto.
David Jordan está coberto de sangue em toda a extensã o do tronco,
e també m na barba e no rosto: é como se tivesse en iado as mã os e os
antebraços num barril cheio de sangue.
– Meu Deus – exclama Rex. – O que aconteceu?
Com um ar impassı́vel, DJ entra e fecha a porta atrá s de si. Tem um
olhar vı́treo, vazio.
– Nã o é meu – diz secamente. – Foi um acidente… Depois conto-te,
só preciso…– Pregaste-me um susto de morte!
– Desculpa, nã o devia ter vindo… Acho que estou em estado de
choque.
DJ tira os sapatos e apoia-se ao caixilho da porta, deixando uma
marca de sangue na madeira branca.
– Mas o que foi que aconteceu?
– Nã o sei bem o que se passou… Ou melhor, é complicado, mas tive
uma discussã o com um bê bedo num bar. Ele foi atrá s de mim, caiu e
cortou-se… DJ cruza timidamente o olhar de Rex.
– Acho que é grave.
– Quã o grave?
DJ fecha os olhos e Rex apercebe-se de que tem sangue nas
pá lpebras e até nas pontas das pestanas.
– Desculpa lá se te meti nesta histó ria – sussurra DJ. – Devia ser eu
a proteger-te de tudo aquilo que… Merda…
– Explica-me o que aconteceu.
DJ nã o responde, passa diante de Rex para ir à casa de banho das
visitas no corredor e começa a lavar as mã os. A pouco e pouco, a á gua
vermelha ica cor-de-rosa e depois cada vez mais clara, ao mesmo
tempo que centenas de pequenos salpicos vã o parar aos azulejos
brancos atrá s da torneira.
DJ desenrola papel higié nico e seca o rosto. Deita-o na sanita e vê -
se ao espelho, suspira profundamente e volta-se para Rex.
– Acho que entrei em pâ nico, nã o sei, naquele momento parecia-me
a coisa mais certa a fazer…Quando ouvi chegar a ambulâ ncia, fui-me
embora e sentei-me no carro.
– Nã o foi boa ideia – diz Rex, em voz baixa.
– E só porque eu nã o queria… que a coisa se repercutisse em ti –
tenta explicar DJ. – Nã o podemos correr esse risco, agora que temos
investidores, agora que estamos mesmo para arrancar.
– Eu sei, mas…
– A Lyra está em casa – continua DJ. – Nã o sabia para onde ir, por
isso vim para aqui.
– Temos de pensar no que vamos fazer – diz Rex, passando uma
mã o pelo rosto.
– O melhor é eu chamar a Polı́cia e contar tudo. Nã o sei,
honestamente nã o me parece que haja qualquer perigo, porque eu nã o
iz nada, a culpa nã o foi minha – diz, ao mesmo tempo que começa a
procurar o telemó vel nos bolsos.
– Espera – diz Rex. – Conta-me tudo direitinho… Vamos lá para
cima.
– Porque é que tudo tem de ser sempre tã o complicado, caraças…
Eu só queria ir a um bar em Axelsberg e…
– O que é que estavas lá a fazer, para começar?
Sobem até à cozinha e DJ deixa-se cair numa das cadeiras dispostas
em volta da mesa do pequeno-almoço. A á gua do chá já evaporou e a
panela liberta um cheiro de metal queimado.
– As vezes preciso de ir a um sı́tio onde nã o conheça ningué m.
– Percebo – diz Rex, ao mesmo tempo que deita mais á gua na
panela incandescente.
– E entã o desencadeou-se aquela discussã o do nada e eu fui-me
embora – prossegue DJ, apoiando-se nos cotovelos. – Mas aquele
borrachã o foi atrá s de mim e queria bater-me. Por im, caiu contra uma
montra e feriu-se.
DJ volta a apoiar-se nas costas da cadeira e tenta respirar
lentamente. As mangas do casaco deixaram riscos de sangue na mesa.
– Sujei-te a mesa – diz DJ. – Temos de a limpar antes que o Sammy
chegue a casa.
– Provavelmente vai estar fora até tarde.
– Acho que també m há um monte de sangue no carro.
– Eu vou veri icar. Tu, entretanto, vais tomar um duche.
– Deixa lá . Imagina se algué m te via! Tens de icar fora desta
histó ria. Eu trato disso amanhã , quando a Lyra estiver na Academia.
Rex senta-se em frente a DJ.
– Ainda nã o percebi a situaçã o – diz. – Andaram à pancada? Houve
uma briga?
Os olhos de DJ estã o opacos e raiados de sangue.
– Entã o… Ele estava bê bedo e nã o se aguentava em pé ; queria que
eu voltasse para trá s… entã o eu tentei afastá -lo e ele escorregou de
encontro ao vidro.
– Estava ferido com muita gravidade?
– Fez um golpe na garganta. Nã o sei se consegue safar-se, havia…–
Mas a ambulâ ncia chegou logo, certo?
– Havia imenso sangue – conclui DJ.
– Entã o, o que fazemos? Tens de ser tu a decidir – diz Rex. –
Limitamo-nos a esperar que ningué m te tenha visto?
– Ningué m no restaurante me conhecia, e a praça estava quase
completamente à s escuras.
Rex assente e tenta raciocinar.
– Agora vai tomar um duche – diz, ao im de alguns instantes. – Eu
vou buscar-te roupa limpa…Mete tudo na má quina de lavar e tenta
apagar todos os vestı́gios. Eu, entretanto, vou ver se há notı́cias na
Internet.
– OK, obrigado – suspira DJ, depois levanta-se e desce as escadas.
Rex ouve o barulho do chuveiro no andar de baixo, vai buscar lixı́via
à despensa e borrifa-a em cima da mesa e na cadeira onde se sentou DJ.
Seca-as com papel de cozinha, depois desce para limpar o caixilho da
porta, a maçaneta da casa de banho das visitas, a torneira, o lavató rio e
os azulejos cobertos de salpicos. Regressa ao andar de cima e passa
papel pelo corrimã o, depois deixa o rolo e a garrafa da lixı́via no meio
da mesa para nã o se esquecer de lavar també m o chuveiro e a porta da
má quina de lavar, quando DJ tiver terminado.
Pega numa garrafa de Highland Park e num copo para DJ, depois dá
uma vista de olhos rá pida à s ú ltimas notı́cias locais no telemó vel: nã o
há nada a propó sito de uma briga ou de um acidente que se possa
parecer com aquilo que DJ lhe contou.
Talvez a histó ria nã o fosse assim tã o grave como ele pensava.
Se o homem tivesse morrido, à quela hora a notı́cia já devia ter sido
transmitida.
33
Durante a reuniã o, o diretor da prisã o deu prioridade à decisã o
relativa à licença de Joona Linna: foram-lhe concedidas trinta e seis
horas, sem qualquer discussã o.
Agora Joona chega ao im da passagem subterrâ nea, ao ponto em
que na parede de cimento á spero foram pintados uns Estrumpfes
enormes. O guarda à frente dele espera alguns instantes, depois levanta
a mã o e abre a porta. Acedem ao espaço do cruzamento, esperam pelo
zumbido da fechadura, chegam à outra porta e depois param
novamente à espera que a central autorize a passagem à secçã o
seguinte.
Tal como o ex-polı́cia tinha previsto, Salim Ratjen apercebera-se de
que a licença de Joona representava a sua ú nica possibilidade de enviar
uma mensagem antes de quarta-feira. Entregou-lhe apenas um nú mero
de telefone e um nome, mas era possı́vel que se tratasse de um sinal em
có digo para dar luz verde ao homicı́dio.
Depois de lhe terem sido entregues os seus objetos pessoais, de
acordo com a lista elaborada no momento da sua chegada ao chamado
«portal das pé rolas», um guarda acompanha Joona até ao ú ltimo
controlo.
Durante o processo, dois anos atrá s, o fato assentava-lhe como uma
luva, mas desde entã o Joona dedicou quatro horas por dia ao treino e
agora ica-lhe demasiado apertado nos ombros.
A fechadura da porta no gradeamento alto dispara e entã o Joona
abre-a, sai e deixa atrá s de si o muro maciço.
Uma dor bem conhecida fere-lhe o olho esquerdo quando avança
pelo espaço coberto de asfalto pá lido. A vedaçã o eletri icada com arame
farpado por cima é a ú ltima barreira antes da liberdade. Diante dele
erguem-se os postes dos projetores. As traves brancas cintilam contra o
cé u de um cinzento metá lico.
Joona resiste à tentaçã o de acelerar o passo e recorda-se a si
mesmo em pequeno, quando nã o era mais do que um rapazinho e ia
atrá s do pai atravé s do bosque para irem à pesca da truta em
Villmanstrand, na Caré lia do Sul.
Assim que começava a ver o lago a cintilar no meio dos troncos e
das folhas, era tomado por um grande entusiasmo e queria percorrer o
ú ltimo troço a correr, mas obrigava-se a travar. Era preciso aproximar-
se da á gua com cautela, como o pai lhe tinha explicado.
O imponente portã o desliza para o lado, pesadamente, com um
ruı́do metá lico estridente.
O sol desponta por detrá s de uma nuvem e captura o olhar de
Joona. Pela primeira vez em dois anos, vê um espaço aberto,
quiló metros e quiló metros de campos, estradas arborizadas e bosques.
Quando sai da prisã o, entra no parque de estacionamento e ouve o
portã o fechar-se atrá s de si, é como se sentisse o ar inchar-lhe os
pulmõ es, como se bebesse á gua ou como se estivesse a trocar um olhar
de entendimento com o pai.
Regressa-lhe de novo a recordaçã o dos passeios ao lago: a lenta
descida para a praia e o instante em que, inalmente, vislumbravam a
á gua cheia de trutas. Sobre a superfı́cie lisa surgiam ané is por todo o
lado, como se do cé u estivessem a cair gotas de chuva.
A sensaçã o de estar livre é avassaladora. E como se qualquer coisa
lhe invadisse o peito e está capaz de começar a chorar, mas continua a
caminhar sem olhar em volta. Enquanto percorre os seiscentos metros
que o separam da paragem do autocarro, os seus mú sculos começam a
relaxar.
Está s prestes a reconquistar-se a si mesmo.
Ao longe vislumbra a nuvem de pó levantada pelo autocarro que se
aproxima pela estrada de terra batida. Segundo o plano que foi
aprovado pela direçã o da prisã o, deverá apanhá -lo e seguir até Orebro,
e ali apanhar o comboio para Estocolmo.
Quando entra no autocarro já sabe que nã o vai apanhar o comboio.
Deverá , em vez disso, encontrar-se com um agente secreto da Sä po.
Tê m os dois um encontro no parque de estacionamento subterrâ neo do
centro comercial Vå gen dentro de quarenta e cinco minutos.
Vê as horas e apoia-se, a sorrir, ao encosto do banco.
Finalmente restituı́ram-lhe o reló gio Omega de linhas simples que
herdara do pai. A mã e nunca o vendera, apesar de se ter deparado com
a falta de dinheiro em inú meras ocasiõ es.
Quando Joona sai do autocarro e se dirige ao centro comercial, o
vento aumentou e o sol desapareceu. Apesar de só dispor de cinco
minutos, para num quiosque com um toldo vermelho e uns guarda-só is
amarelos desbotados e pede um menu Pepper Cheese Bacon com
batatas fritas.
– E para beber? – pergunta o dono, ao mesmo tempo que pousa o
hambú rguer num tabuleiro.
– Uma Fanta Exotic – responde Joona.
Pega na lata, en ia-a no bolso e para ao lado da bandeirinha
vermelha dos gelados a saborear o hambú rguer.
No parque de estacionamento por baixo do centro comercial, um
homem de jeans e blusã o ao lado de um BMW preto está a olhar para o
telemó vel.
– Devias estar aqui há vinte minutos – diz, zangado, quando Joona
se aproxima para lhe apertar a mã o.
– Queria trazer-te qualquer coisa para beber – responde Joona,
estendendo-lhe a lata.
O agente, surpreendido, agradece e aceita a bebida. Depois abre a
porta do carro.
No banco traseiro encontram-se um simples telemó vel recarregá vel
e trê s envelopes espessos da parte de Saga Bauer. Trata-se do relató rio
té cnico completo da inspeçã o ao local do crime, depois do homicı́dio do
ministro dos Negó cios Estrangeiros. Tudo aquilo que Joona tinha
pedido está nos envelopes: o relató rio preliminar dos investigadores, os
resultados dos primeiros exames da autó psia, os resultados do
laborató rio e a transcriçã o de todas as conversas com a testemunha.
Passam pela estaçã o e entram na autoestrada para Estocolmo.
No banco traseiro, Joona está a estudar o per il de Salim Ratjen: a
fuga do Afeganistã o, o asilo polı́tico na Sué cia, o progressivo
envolvimento numa rede criminosa. Para alé m da mulher, o ú nico
parente que tem na Sué cia é o irmã o, Absalon Ratjen. A Sä po investigou,
e chegou à conclusã o de que os dois nã o tê m qualquer contacto há oito
anos. Segundo a correspondê ncia encontrada, Absalon cortou relaçõ es
com Salim depois de ter descoberto que o irmã o escondia uma tablete
de haxixe por conta de um tra icante.
Joona examina mais uma vez o dossier com as fotogra ias da casa do
ministro quando o telemó vel toca.
– Conseguiste estabelecer algum contacto com o Ratjen? – pergunta
Saga Bauer.
– Sim, pediu-me um favor, mas é impossı́vel saber se isto vai levar a
alguma coisa – explica Joona. – Quer que eu vá a casa da mulher e que
lhe diga para ligar para um nú mero e perguntar por Amira.
– OK… Excelente trabalho… Excelente, mesmo… – diz Saga.
– A operaçã o desta noite vai ser de grande calibre, nã o vai? –
pergunta Joona, enquanto lança um olhar à s fotos que retratam as
poças de sangue, os salpicos nas portas dos armá rios da cozinha, uma
jarra entornada e o cadá ver do ministro visto de â ngulos diversos, com
o tronco ensanguentado e as mã os e os dedos dos pé s contraı́dos e
amarelados.
– Vou falar com o Janus, é ele que dirige toda a operaçã o – diz Saga.
– Ele é muito bom, mas de qualquer maneira acho que vai ser difı́cil ir
buscar-te à ú ltima hora.
– Nã o quero que me venham buscar – responde Joona.
– Achas que vais conseguir desenrascar-te? – pergunta Saga, com
um tom sé rio.
– Se vou conseguir? Estou numa excitaçã o! – responde ele, a sorrir.
– Mas será que tens a consciê ncia de que estiveste parado durante
dois anos e do facto de o assassino ser extremamente há bil?
– Sim.
– Leste a reconstituiçã o?
– Eu sei, percebi como ele se comporta, mas acho que també m há
um outro aspeto… Eu sinto, há qualquer coisa de perverso.
– Em que sentido? O que é que tens em mente?
34
Pouco antes de Norrtull, o agente da Sä po recebe a comunicaçã o de
um novo destino. Vira entã o na entrada do restaurante
Stallmä staregå rden e para o carro.
– O comando da operaçã o está à tua espera naquele pavilhã o – diz.
Joona sai do carro e dirige-se ao pavilhã o verde que dá para a baı́a
de Brunnsviken. Até há nã o muito tempo, o Stallmä staregå rden
encontrava-se numa posiçã o idı́lica logo à saı́da da cidade, mas hoje o
restaurante está rodeado de autoestradas, pontes e viadutos.
Quando Joona abre a ina porta de madeira, um dos dois homens
sentados à mesa levanta-se. Tem os cabelos ruivos e a barba quase
branca.
– Chamo-me Janus Mickelsen e sou o chefe da equipa operativa da
Sä po – diz, enquanto trocam um aperto de mã o.
Move-se com um passo elá stico e agitado, como se tentasse conter
um ritmo interior demasiado excitado.
Ao lado dele está sentado um jovem de sorriso iró nico e de olhar
franco, a observar Joona.
– O Gustav é o responsá vel operativo desta açã o. Vai entrar com o
primeiro grupo e conduzir as forças de intervençã o imediata no terreno
– explica Janus.
Joona aperta també m a mã o a Gustav e segura-a durante alguns
segundos, itando-o nos olhos.
– Estou a ver que agora é s demasiado grande para o fato do Batman
– diz depois, a sorrir.
– Lembras-te de mim? – pergunta o outro, incré dulo.
– Já se conhecem? – pergunta Janus, a sorrir, e uma retı́cula de
rugas desenha-se-lhe ao lado dos olhos.
– Eu trabalhava com a tia do Gustav na Polı́cia Criminal – explica
Joona.
Volta-lhe à memó ria uma festa na casa de fé rias de Anja. Gustav,
que naquele verã o tinha apenas sete anos, estava vestido de Batman e
corria pelo prado que descia até à margem do lago Mä laren. Tinham
estendido mantas na relva, comeram salmã o fumado e salada de
batatas e beberam uma cerveja leve. Gustav sentou-se ao lado de Joona
e quis saber tudo sobre o seu trabalho de polı́cia.
Joona extraiu o carregador e deixou o rapaz pegar na sua pistola.
Mais tarde, Anja tentou convencer Gustav de que aquilo nã o era uma
pistola a sé rio, mas apenas uma reproduçã o utilizada para praticar.
– Para mim, a Anja sempre foi uma espé cie de segunda mã e – diz
Gustav, a sorrir. – E, segundo ela, ser polı́cia é demasiado perigoso.
– Logo à noite poderemos encontrar-nos no meio de um con lito de
fogo – assente Joona.
– E ningué m te vai agradecer, se morreres – acrescenta Janus com
uma sú bita nota de amargura na voz.
Janus, tanto quanto Joona se recorda, tinha suscitado um notá vel
escâ ndalo, muitos anos atrá s.
Durante umas semanas, desencadeara um verdadeiro furacã o. Era
um militar de carreira, nessa altura, e passou a fazer parte de um
projeto europeu organizado para combater os piratas nas á guas
somalis. Quando o seu superior se recusou a escutar a sua opiniã o,
Janus dirigiu-se à comunicaçã o social para transmitir a informaçã o de
que as espingardas automá ticas adquiridas aqueciam demasiado.
A irmava que as armas perdiam tanto em termos de precisã o que
representavam um risco para a segurança. O ú nico resultado que esta
cedê ncia de informaçõ es teve para ele foi a perda do emprego.
– A operaçã o terá lugar em casa da mulher do Salim Ratjen logo à s
sete horas da noite – explica Janus, ao mesmo tempo que abre um
mapa.
Estende-o em cima da mesa e indica a casa no bosque em frente à
residê ncia de Parisa onde se vai juntar a equipa operativa.
– Conseguiram descobrir quem é Amira e a quem pertence o
nú mero de telefone?
– O nome nã o deu qualquer resultado, e o nú mero levou-nos até
Malmö e depois a um telemó vel impossı́vel de localizar.
– De momento, estamos a concentrar-nos na organizaçã o da açã o
desta noite – explica Gustav. – A mulher do Ratjen trabalha como
enfermeira numa clı́nica dentá ria de Bandhagen. Termina à s 18 e deve
chegar a casa por volta das 18h45, se parar para fazer compras no
supermercado de Hö gdalen, como de costume.
– De acordo com o plano do Ratjen, o segundo homicı́dio terá lugar
esta quarta-feira – diz Janus.
– Esta operaçã o é a nossa grande oportunidade de o impedir.
– Nã o sabem qual é o papel da mulher? – pergunta Joona.
– Estamos a trabalhar nisso – responde Janus, limpando o suor da
testa coberta de sardas.
– Talvez seja só uma mensageira.
– Estou de acordo, mas nã o sabemos praticamente nada – diz
Gustav. – Com esta operaçã o estamos a desa iar a sorte, claro, mas por
outro lado… Nã o nos falta muito para completar o puzzle, bastaria um
pormenor minú sculo. Ou seja, se conseguires descobrir alguma coisa
sobre o plano deles, sobre qual será o objetivo do atentado de quarta-
feira ou sobre o sı́tio onde vai decorrer, talvez desta vez consigamos
detê -los.
– Quero falar com a testemunha antes da operaçã o – diz Joona.
– Por que motivo?
– Quero saber o que fez o assassino no intervalo entre os dois
primeiros disparos e o tiro mortal.
– Disse aquela coisa sobre o Ratjen e o inferno. Está indicado nas
transcriçõ es, já as reli uma centena de vezes – diz Janus.
– Mas as contas nã o batem certo, há um espaço de minutos
demasiado amplo – insiste Joona.
– Apanhou as balas.
O exame interno da autó psia ainda nã o está pronto, mas durante a
viagem de Orebro, Joona estudou a direçã o dos salpicos e dos ios de
sangue e os pontos de convergê ncia: a autó psia, tem a certeza, vai
demonstrar que passaram mais de quinze minutos entre os primeiros
dois disparos dirigidos ao tronco e o tiro mortal atravé s do olho.
De momento, a reconstituiçã o dos té cnicos forenses cobre, no total,
um lapso de tempo de cinco minutos.
A recuperaçã o das balas, a deslocaçã o atravé s do aposento e o
breve diá logo.
Se Joona tiver razã o, faltam dez minutos impossı́veis de explicar
com as informaçõ es que tê m à disposiçã o.
O que aconteceu naquele lapso de tempo?
E evidente que se encontram perante um assassino com a
habilidade de um pro issional. Deve haver um motivo preciso pelo qual
nã o concluiu imediatamente a execuçã o.
Joona nã o sabe de que se trata, mas tem a nı́tida sensaçã o de que
alguma coisa de essencial continua a fugir-lhes debaixo do nariz,
alguma coisa de bem mais obscuro do que aquilo que imaginaram até
agora.
– Gostava de falar com ela, de qualquer maneira – diz.
– Vamos organizar um encontro – assente Janus, ao mesmo tempo
que abre um grande envelope almofadado. – Tens tempo, a operaçã o
nã o vai começar antes das sete… Vamos reunir-nos para rever o plano
uma ú ltima vez à s cinco.
Entrega entã o a Joona uma arma de serviço um pouco usada com
um carregador extra, duas caixas de muniçõ es parabellum 9x19 e as
chaves de um Volvo.
Joona tira a pistola do coldre e observa-a. E uma Sig Sauer P226
Tactical de cor negro opaco.
O ú nico pormenor que a diferencia de uma Rail é que está
preparada para se poder montar um silenciador.
Ambas as pistolas sã o dotadas de uma roda para focagem da mira,
visor noturno e lanterna tá tica.
– Serve? – pergunta Janus, a sorrir, como se tivesse dito alguma
coisa de incrivelmente divertido.
– Nã o tê m mais nenhum coldre? – pergunta Joona.
– E o standard – responde Gustav, com um tom hesitante.
– Eu sei, e agora també m nã o tem importâ ncia, mas abana
demasiado – diz Joona.
35
Joona segue o BMW preto do agente da Sä po até ao piso mais baixo
da garagem de Katarinaberget, onde estaciona ao lado de uma parede
de cimento rugoso.
Encontram-se na parte de dentro das enormes portas de correr,
muito abaixo do limite antiató mico.
Já tinha ouvido falar da prisã o secreta da Sä po, mas nã o sabia que
icava ali.
O agente saiu do carro e está à espera dele ao lado de uma porta
reforçada azul; faz deslizar o cartã o atravé s de um leitor e depois digita
um longo có digo.
Joona segue-o para lá do ponto de controlo. Quando a porta da
garagem volta a fechar-se, o homem passa o cartã o num outro leitor e
digita um segundo có digo. Acedem a um novo controlo de segurança;
Joona entrega um documento atravé s de um postigo e o guarda atrá s do
vidro à prova de bala abre a sua pasta no computador.
Joona tem de se registar e de se submeter a uma digitalizaçã o
biomé trica da ı́ris e das impressõ es digitais.
Pousa o casaco, a pistola e os sapatos num tapete rolante, depois
passa atravé s do scanner; a agente da Sä po que o recebe do outro lado
do arco tem os cabelos castanhos apanhados numa espessa trança
sobre os ombros.
– Eu sei quem é s – diz a mulher, corando.
Volta a entregar-lhe a pistola, observa-o enquanto ele en ia o coldre
e depois estende-lhe o casaco.
– Obrigado.
– Es muito mais jovem do que eu pensava – acrescenta ela, e o
rubor espalha-se até ao pescoço.
– També m tu – responde Joona a rir, enquanto calça os sapatos.
– Nã o se deve brincar com os sentimentos das raparigas – avisa-o a
mulher.
Começam a andar, e a agente explica-lhe que So ia Stefansson foi
transferida dos velhos reservató rios de gelo para uma cela de
isolamento na sala das má quinas.
Joona leu e confrontou os trê s interrogató rios a que até agora foi
submetida So ia Stefansson.
O seu testemunho é coerente.
As poucas variaçõ es podem ser atribuı́das ao medo da testemunha
e à sua vontade de se mostrar colaborante e dizer aquilo que os agentes
desejam.
O interrogató rio conduzido por Saga é , sem dú vida, o mais
interessante, mesmo excecional, atendendo à s circunstâ ncias. Ao
recapitular os acontecimentos de pormenor em pormenor, Bauer tinha
conseguido ajudar a testemunha a chegar à lembrança da breve
conversa na qual Ratjen tinha sido mencionado.
Sem este interrogató rio, o caso nã o teria sequer existido.
Mas se, como Joona acredita, a açã o do homicı́dio durou bem mais
do que aquilo que se pensou até entã o, a testemunha calou uma notá vel
quantidade de acontecimentos.
O assassino disparou duas vezes, mexeu-se de uma maneira rá pida
e determinada, foi a correr agarrar o ministro pelos cabelos, depois
obrigou-o a icar de joelhos e apontou-lhe a pistola contra o olho.
Tratou a sua vı́tima como se fosse um inimigo, pensa Joona.
Excluindo os minutos que faltam, o atentado assemelha-se mais a
um ato agressivo do que a uma execuçã o.
So ia Stefansson escorregou no sangue e bateu com a nuca no
pavimento, icou no chã o e ouviu a breve conversa a propó sito de
Ratjen, antes de o ministro dos Negó cios Estrangeiros ser morto com o
tiro no olho.
– Estou a pensar… – diz Joona, sem que a agente tenha aberto a
boca.
– Nã o tens de me dar explicaçõ es – diz ela, parando diante de uma
porta de metal.
Bate, abre e explica a So ia que é uma visita para ela. Deixa entrar
Joona e volta a fechar a porta atrá s dele.
So ia está sentada num sofá azul-pombo em frente a uma televisã o
a ver um episó dio de uma sé rie televisiva da BBC sobre Sherlock
Holmes e o Dr. Watson. O televisor nã o está ligado à antena nem à
parabó lica, mas apenas a um leitor de DVD. Em cima da mesa à frente
dela, ao lado de uma garrafa grande de Coca-Cola, estã o empilhados
vá rios ilmes.
So ia tem o rosto pá lido e sem maquilhagem; o corpo magro e os
cabelos castanhos apanhados num simples rabo de cavalo fazem-na
parecer uma menina. Veste umas calças de treino cinzentas e uma T-
shirt branca com o desenho de um gatinho feito com brilhantes
pequeninos. Tem uma mã o ligada e hematomas cinzentos em volta dos
pulsos.
Joona pensa que, provavelmente, a rapariga ainda nã o aceitou o
facto de se encontrar naquele lugar, mas deve ter começado a perceber
que nã o a vã o matar nem a vã o deixar ir embora tã o cedo. E está
constantemente aterrorizada com a ideia de que possam recomeçar
com a tortura.
– Chamo-me Joona Linna – apresenta-se. – Sou um ex-comissá rio…
e li as transcriçõ es dos teus interrogató rios. Tudo me leva a crer que
está s inocente, e posso entender que tenhas medo, atendendo à
maneira como te trataram aqui.
– Sim – sussurra ela, enquanto desliga a televisã o.
Joona dá -lhe algum tempo antes de se sentar ao seu lado. Sabe que,
depois do trauma, um movimento demasiado rá pido ou um ruı́do
demasiado forte poderiam despertar a ansiedade e levá -la a pô r-se na
defensiva. Vira-a tremer no momento em que a agente abrira a porta:
talvez o disparo metá lico lhe tivesse feito lembrar o movimento do
obturador e o tilintar da bala expulsa.
– Nã o tenho autoridade para te deixar ir embora – explica-lhe, com
toda a sinceridade. – Mas, mesmo assim, tens de me ajudar. Deves fazer
todos os possı́veis para te lembrares daquilo que eu te vou perguntar.
Joona dá -se conta de que a rapariga está a tentar enquadrá -lo, e
apercebe-se da sua vontade de sobreviver, apesar do peso alucinante
daquele choque.
Com gestos lentos, põ e à frente dela as duas reconstituiçõ es
efetuadas com base nas suas indicaçõ es.
Na primeira versã o, o passa-montanhas cobre o rosto do assassino,
deixando a descoberto apenas os olhos e a boca.
Na segunda, tentou-se uma reconstruçã o do rosto sem má scara,
mas a ausê ncia de descriçõ es precisas faz com que pareça de alguma
forma escondido por um passa-montanhas invisı́vel.
Nenhum dos traços do assassino dá nas vistas: o olhar é talvez
insolitamente calmo, o nariz demasiado marcado, a boca quase branca
e as mandı́bulas bastante largas, enquanto o queixo é delicado.
Na reconstruçã o o homem nã o tem barba nem bigode, mas com
base na cor das sobrancelhas atribuı́ram-lhe uma cabeleira de um tom
loiro anó nimo, com um penteado neutro.
– Tentam um nariz mais comprido e eu digo que nã o sei – explica
ela. – Põ em-lho mais curto e eu digo «talvez, nã o faço ideia»; desenham-
lho mais ino e eu volto a dizer que nã o sei, alargam-no e eu digo
«talvez»… Depois acabamos por nos cansar e chamamos a isto um
resultado.
– Já nã o é mau.
– Talvez eu me sinta insegura só porque continuaram a pô r à prova
a minha memó ria durante todo este tempo. A certa altura o rosto icou
negro, como se se tratasse de um africano. Eu nã o tinha dito nada a esse
propó sito, mas talvez fosse apenas uma tentativa de fazer saltar outras
coisas, como a cor dos olhos e as sobrancelhas.
– Sã o especialistas no reconhecimento de rostos – diz Joona.
– Durante algum tempo teve o cabelo comprido e um monte de
madeixas aqui, ao longo das faces– continua ela, franzindo a testa. –
Porque de repente me apercebi de que as tinha visto, mas ao mesmo
tempo sabia que o assassino tinha estado sempre com o passa-
montanhas, por isso era impossı́vel, nã o podia ter reparado nisso.
– Entã o o que é que tu viste? – pergunta Joona, com calma.
– O quê ?
– Se nã o era cabelo…
– Nã o sei, eu estava estendida no chã o… e aquele homem tinha
qualquer coisa pendurada ao longo das faces, como se fossem tiras de
pano.
– Mas nã o achas que podia ser cabelo?
– Nã o, parecia mais pano pendurado, ou talvez couro.
– Qual era o comprimento dessas tiras?
– Eram assim – diz a rapariga, levando a mã o ao ombro.
– Consegues desenhá -las na imagem?
So ia pega no retrato em que o assassino aparece mascarado e, com
a mã o a tremer, desenha aquilo que viu ao longo do rosto.
De inı́cio parecem grandes plumas, ou talvez penas de asas, depois
transformam-se numa espé cie de cabelos atados, antes de a ponta do
lá pis fazer um buraco no papel.
– Nã o, nã o sei – diz So ia, afastando de si a imagem.
– O ministro falou de um homem com duas caras?
– Como?
– Talvez com um sentido simbó lico – diz Joona, observando a
imagem.
– Se assim é , será que nã o temos todos duas caras?
36
So ia ica imó vel, com os olhos apontados para baixo e as pestanas
a tremer. Aquela mulher – pensa Joona – parece lembrar-se de tudo
como se se encontrasse à margem da cena, ou como se tivesse icado
num canto a observar-se a si pró pria.
– Na tua opiniã o, o assassino era um terrorista? – pergunta-lhe, ao
im de alguns segundos.
– Porque me perguntas isso? Nã o faço ideia.
– Mas qual é a tua opiniã o?
– Parecia uma questã o pessoal… Mas talvez para os terroristas seja
mesmo assim.
Primeiro assiste a dois disparos ao longe e depois ao movimento do
assassino; a seguir tenta fugir e escorrega no sangue.
– Portanto, caı́ste e icaste no chã o – diz Joona, mostrando-lhe uma
fotogra ia da cozinha ensanguentada tirada do ponto de vista dela.
– Sim – responde, com um io de voz, e afasta os olhos.
– O ministro está ajoelhado, sangra das duas feridas no peito, o
assassino agarra-o pelos cabelos e aperta-lhe a pistola contra o olho.
– O direito – murmura So ia, com uma expressã o indecifrá vel
estampada no rosto.
– Falaste da conversa entre eles, mas depois o que aconteceu?
– Nã o sei, nada. Ele disparou.
– Mas nã o imediatamente, nã o é verdade?
– Nã o? – pergunta ela, timidamente.
– Nã o – responde Joona, reparando que os inos pelos claros nos
braços de So ia se eriçaram.
– Eu tinha batido com a cabeça no chã o e tudo aconteceu como em
câ mara lenta – diz ela, levantando-se do sofá .
– O que aconteceu?
– Foi como se o tempo tivesse parado e depois… Nã o, nã o sei.
– O que é que ias dizer?
– Nada.
– Nada? Estamos a falar de um intervalo de dez minutos – diz ele.
– Dez minutos.
– O que aconteceu? – insiste Joona.
– Nã o sei – responde ela, a coçar um braço.
– Ele ilmou o ministro?
– Nã o, nã o me parece… De que raio é que está s a falar? – resmunga
So ia, em tom de protesto, depois afasta-se, chega à porta e bate.
– Comunicou com algué m?
– Já nã o aguento – sussurra So ia.
– Aguentas sim.
Volta-se outra vez para Joona: a expressã o do seu rosto está
carregada de desconforto e desespero.
– Tu achas? – pergunta.
– Comunicou com algué m?
– Nã o.
– Pareceu-te que estivesse a rezar?
– Nã o – responde com um esgar, enquanto limpa as lá grimas das
faces.
– Poderia ter obrigado o ministro a dizer alguma coisa?
– Ficaram em silê ncio – responde ela.
– Durante o tempo todo?
– Sim.
– Estavas lá e viste-os, So ia. A sé rio que o assassino nã o fez nada? –
pergunta Joona. – Quero dizer, estava assustado, estava a tremer?
– Parecia calmo – responde ela, limpando novamente as lá grimas.
– Talvez estivesse dividido… talvez nã o soubesse se havia de o
matar ou nã o?
– Mas nã o hesitou, nã o é isso… Acho que pura e simplesmente
gostava de estar ali… O ministro continuava a respirar com di iculdade,
estava quase a perder os sentidos… Mas o assassino nã o parava de o
agarrar pelos cabelos e de olhar para ele.
– O que foi que o levou a disparar?
– Nã o sei… Ao im de algum tempo largou-lhe os cabelos, mas
sempre com a pistola encostada ao olho… e de repente houve um
estouro. Nã o provinha da pistola, que só deu um salto ligeiro… Foi a
nuca que fez barulho, certo? Quando o crâ nio explodiu…
– So ia – diz Joona, com um tom de voz calmo. – Agora vou pegar
numa pistola. Está descarregada, nã o é perigosa, mas temos de lhe dar
uma vista de olhos para recuperar os ú ltimos pormenores.
– OK – assente ela, e os seus lá bios icam pá lidos.
– Nã o tenhas medo.
Com cautela, Joona retira a Sig Sauer do coldre, pega nela e pousa-a
em cima da mesa.
Apercebe-se de que So ia tem alguma di iculdade em olhar para ela
e que as veias do pescoço icaram inchadas.
– Eu sei que é difı́cil – diz em voz baixa. – Mas quero falar da
maneira como ele empunhava a arma. Eu sei que tu te lembras… porque
disseste que a segurava com as duas mã os.
– Sim.
– Qual era a mã o que servia de apoio?
– Em que sentido?
– Uma mã o ica dentro da outra, com o dedo no gatilho; a segunda
serve de apoio – explica-lhe.
– Era… era a esquerda que servia de apoio – responde So ia,
tentando sorrir antes de baixar os olhos.
– Portanto, fez mira com o olho direito?
– Sim.
– E fechou o esquerdo?
– Fez mira com os dois.
– Percebo – diz Joona, a pensar que se tratava de uma té cnica
bastante insó lita.
També m ele dispara a fazer mira com os dois olhos. Isso permite-
lhe ter um maior controlo da situaçã o durante um con lito debaixo de
fogo, mas é preciso treinar bastante para que a té cnica seja e icaz.
Continua a dirigir-lhe perguntas sobre os movimentos do
assassino, sobre a posiçã o dos ombros no momento em que disparou à
distâ ncia e sobre a maneira como passou a pistola para a outra mã o
para nã o perder a trajetó ria enquanto se inclinava para recuperar as
balas do chã o.
So ia descreve mais uma vez a lentidã o da sucessã o dos
acontecimentos, o tiro no olho, o corpo a cair para trá s, torcido, com
uma perna esticada e a outra dobrada, o assassino a pô r-se em cima
dele e a disparar no outro olho.
Joona deixa a pistola em cima da mesa. Levanta-se, tira dois copos
do armá rio no canto da cozinha e entretanto pensa que o assassino do
ministro dos Negó cios Estrangeiros nã o precisou de mudar de
carregador.
Mas, se fosse eu, tê -lo-ia feito logo a seguir ao quarto disparo, para
ter um carregador cheio no momento de abandonar o local, diz para si
mesmo enquanto serve a Coca-Cola.
Bebem e pousam ambos os copos na mesa, delicadamente. Joona
pega na pistola e espera que So ia limpe a boca com a mã o.
– Depois do ú ltimo disparo… mudou o carregador da pistola?
– Nã o sei – responde So ia, exausta.
– Abre-se um gancho e o carregador cai na mã o assim – mostra-lhe
Joona. – E depois en ia-se outro lá dentro.
Ela estremece quando ouve o ruı́do; engole em seco e depois
assente.
– Sim, ele fez isso – disse.
37
Enquanto percorre o caminho acidentado de terra batida que dá
acesso ao horto de Valeria, Joona recorda a descriçã o do assassino
fornecida por So ia: dispara com os dois olhos abertos, empunha a
pistola com as duas mã os, recupera os projé teis e insere na pistola um
carregador cheio antes de deixar a casa.
Para começar a disparar com uma arma de açã o simples é preciso
fazer recuar o slide de forma a que o primeiro cartucho arme o cã o.
Há vá rias maneiras para o fazer. Os polı́cias suecos habitualmente
apoiam toda a mã o esquerda no slide, fazem mira para o chã o e puxam
para trá s em direçã o ao alto.
O assassino, pelo contrá rio, agarrou no slide com o polegar e o
indicador e, em vez de o fazer recuar, empurrou para a frente a pistola
com um ú nico movimento para conseguir disparar imediatamente. E
uma té cnica nada espontâ nea, mas, uma vez aprendida, permite poupar
segundos preciosos durante um con lito armado.
Joona lembra-se de uma vez em que tinha examinado uma velha
gravaçã o da Interpol. Uma câ mara de vigilâ ncia tinha ilmado o
assassino de Fathi Shaqaqi em frente ao Diplomat Hotel de Malta.
O atentado foi realizado por dois agentes do Kidon, uma unidade
operativa da Mossad.
Na gravaçã o a preto e branco e pouco nı́tida via-se um homem com
o rosto coberto que, depois de ter atingido a vı́tima por trê s vezes,
armava o cã o exatamente da mesma maneira, depois montava numa
moto atrá s de outro homem e desaparecia.
A descriçã o de So ia con irmou que o assassino possui um treino
militar de alto nı́vel.
Durante toda a açã o, manteve sempre a pistola à altura do rosto e o
cano da arma constantemente apontado à sua frente.
Joona imagina o assassino, vê -o disparar, correr e mudar o
carregador sem nunca perder a linha de mira.
Vê m-lhe à ideia a GROM polaca e os Navy SEALs americanos. Mas o
assassino deté m-se no local muito mais tempo do que o necessá rio.
Nã o tem medo, nã o hesita; ica simplesmente a observar a agonia
da vı́tima, sem se preocupar com o tempo que passa.
Joona olha para o reló gio: dali a apenas trê s horas tem de entregar
a mensagem à mulher de Salim Ratjen.

Joona estaciona em frente à casa de campo de Valeria, rodeada por


um jardim verdejante, e pega num dos dois ramos de lores pousados
no assento do passageiro. Os galhos das enormes bé tulas brancas
tocam na relva. O ar estival está ainda quente e hú mido. Nã o vem
ningué m abrir quando bate à porta, mas as luzes estã o acesas, e por
isso dá a volta à casa à procura de Valeria.
Encontra-a numa das estufas das traseiras. Os painé is de vidro
estã o embaciados devido à condensaçã o, mas Joona vê -a distintamente
no interior. Tem os cabelos apanhados num puxo pouco cuidado e traz
uns jeans desbotados, botas e uma sweaT-shirt vermelha, justa e
manchada de terra. Está a deslocar uns vasos pesados de laranjeiras,
mas a certa altura volta-se e vê -o.
Valeria tem os olhos escuros, os cabelos encaracolados e rebeldes e
o corpo esguio. Frequentava uma turma do mesmo ano na escola de
Joona, e ele nã o conseguia afastar os olhos dela. Tinha sido uma das
primeiras pessoas a quem falara sobre a morte do pai.
Tinham-se encontrado numa festa e depois ele levou-a a casa.
Beijou-a de olhos abertos, e ainda se lembra do que pensou naquele
momento: acontecesse o que acontecesse no futuro, pelo menos tinha
beijado a rapariga mais bonita da escola.
– Valeria – chama Joona, ao mesmo tempo que abre a porta da
estufa.
Ela aperta os lá bios para nã o se rir, e com isso o queixo ica
franzido, enquanto os olhos se revelam cheios de alegria. Joona
estende-lhe o ramo de lı́rios-do-vale e Valeria limpa nos jeans as mã os
sujas de terra antes de pegar nele.
– Es tu o recluso de licença para visitar o local de está gio?
– Sim, eu…
– E achas que vais conseguir adequar-te a uma vida normal quando
fores posto em liberdade? A jardinagem pode ser um trabalho bastante
pesado, à s vezes.
– Eu sou forte – responde Joona.
– També m estou convencida disso – diz Valeria, a sorrir.
– Prometo que nã o te vais arrepender.
– Muito bem – murmura ela.
Ficam a olhar-se nos olhos durante alguns instantes, depois Valeria
baixa os dela.
– Sinto muito por me apresentar desta maneira – desculpa-se. –
Mas tenho de carregar quinze nogueiras… O Micke e o Jack vê m buscar
o atrelado daqui a uma hora.
– Está s mais bonita do que nunca – diz Joona, seguindo-a até ao
interior.
As á rvores estã o dispostas em grandes vasos de plá stico negro: tê m
dois metros e meio de altura e uma copa viçosa.
– Podem-se transportar pegando-lhes pelo tronco?
– Temos de as levar com isto – diz ela, pegando num carrinho
amarelo.
Joona carrega a primeira nogueira no carrinho e Valeria transporta-
o para fora atravé s da porta e ao longo do caminho, até a um espaço
aberto. As folhas claras tremem e abanam em volta da cabeça de Joona
quando iça a á rvore para cima de um atrelado fechado por barras
metá licas.
– Os rapazes sã o simpá ticos em te ajudarem – diz, depois de ter
pousado a á rvore com uma pancada pesada.
Pegam em outras á rvores e transportam-nas com o carrinho. As
folhas tremem e a terra escorrega atravé s das rachas dos vasos,
espalhando-se sobre o caminho cheio de ervas.
Valeria sobe para o atrelado e empurra as á rvores até ao fundo para
caberem mais.
Desce e afasta os cabelos do rosto com um sopro, depois tira a terra
das mã os e senta-se na barra do reboque.
– Até me custa a acreditar que eles estejam tã o grandes – diz, a
olhar para Joona. – Cometi os meus erros, e eles cresceram sem mim.
Os seus olhos cor de â mbar tornam-se mais escuros e sé rios.
– O mais importante é que agora estã o aqui contigo – diz Joona.
– Mas nã o é assim tã o simples… Só de me lembrar daquilo que os
iz passar enquanto estava em Hinseberg… Desiludi-os de todas as
maneiras possı́veis.
– Mas devem estar orgulhosos daquilo em que te tornaste – diz
Joona.
– Nunca me vã o perdoar verdadeiramente… Quero dizer, tu
perdeste o teu pai quando eras pequeno, mas ele era um heró i. Deve
seguramente ter signi icado muito para ti. Talvez nã o nessa altura, mas
com certeza quando cresceste.
– Sim, mas tu saı́ste dali. Pudeste explicar o que aconteceu, os
erros…– Nã o quero falar sobre isso.
Valeria baixa os olhos e uma ruga surge entre as suas sobrancelhas
fartas.
– Pelo menos, nã o morreste.
– Apesar de ser isso que eles diziam aos amigos, porque tinham
vergonha.
– E eu tinha vergonha porque com a minha mã e as coisas nã o
corriam muito bem economicamente… Por isso nunca te levei a minha
casa.
Valeria volta-se e olha Joona nos olhos.
– Sempre achei que a tua mã e preferia ver-te sair com raparigas
inlandesas – diz ela.
– Nã o – responde Joona, a rir. – Ter-te-ia adorado, gostava
loucamente de cabelos encaracolados.
– De que é que tinhas vergonha? – pergunta-lhe ela.
– Eu e a minha mã e morá vamos num apartamento de uma
assoalhada em Tensta. Eu dormia na cozinha, num colchã o que todas as
manhã s enrolava e en iava no armá rio… nã o tı́nhamos televisã o nem
aparelhagem estereofó nica, e os mó veis eram muito velhos… – E depois
da escola trabalhavas num armazé m, certo?
– O depó sito de madeira de Ekesiö ö , em Bromma… De outra forma,
nã o conseguı́amos pagar a renda da casa.
– Provavelmente, consideravas-me uma menina mimada –
murmura Valeria, a olhar para as mã os.
– Aprende-se depressa que a vida é injusta.
38
Valeria pega no carrinho e dirige-se à estufa. Continuam a carregar
nogueiras no atrelado, em silê ncio. O passado agita-se no espı́rito de
ambos, e no mar da memó ria as lembranças afundam lentamente,
arrastando outras no remoinho.
Quando Joona tinha onze anos, o pai, Yrjö , que era polı́cia, foi morto
em serviço por um homem armado com uma espingarda de chumbos
durante um con lito domé stico em Upplands Vä sby. A mã e, Ritva, era
dona de casa e nã o tinha qualquer rendimento. O dinheiro acabou e ela
e Joona foram obrigados a deixar a casa de Mä rsta.
Joona aprendeu rapidamente a dizer que nã o lhe apetecia ir ao
cinema quando os amigos o convidavam e que nã o tinha fome quando
entravam em algum bar.
Levanta a ú ltima á rvore e pousa-a no atrelado, endireita um ramo e
fecha a porta com cuidado.
– Estavas a falar da tua mã e – diz Valeria.
– Certamente sabia que eu tinha vergonha da nossa situaçã o – diz
Joona, enquanto limpa as mã os.– Deve ter sido difı́cil para ela, porque
na realidade nã o vivı́amos assim tã o mal. Aceitava todos os trabalhos de
limpeza que lhe ofereciam. Ia sempre buscar livros à biblioteca, e à
noite, depois de os lermos, falá vamos sobre eles.
Depois de terem arrumado o carrinho no barracã o das ferramentas,
sobem em direçã o a casa.
Valeria abre uma pequena porta que dá acesso a um aposento que
serve de lavandaria.
– Lava aqui as mã os – diz, abrindo a torneira de uma enorme pia
em aço.
Joona põ e-se ao lado dela e en ia as mã os sujas de terra por baixo
do jato de á gua té pida. Esfrega entre as palmas um pedaço de sabã o que
ica negro de terra, e depois começa a lavar-se.
No aposento ouve-se apenas o ruı́do da á gua que corre, cintilante,
ao longo da pia canelada e inclinada.
O sorriso desaparece do rosto de Valeria quando passam as mã os
por á gua, as ensaboam novamente e começam a lavá -las à vez.
Detê m-se sob o jato té pido, subitamente conscientes daquele
contacto. Ela aperta delicadamente com a mã o inteira dois dedos de
Joona e cruza o seu olhar.
E muito mais alto do que ela, e apesar de ele se inclinar para a
beijar, Valeria tem de se pô r em bicos de pé s.
E o primeiro beijo que dã o desde os tempos do liceu, e depois
olham um para o outro quase com timidez. Valeria tira uma toalha
limpa da prateleira e seca as mã os e os antebraços.
– E incrı́vel que tu estejas aqui comigo, Joona Linna – diz com
ternura, ao mesmo tempo que lhe acaricia a face e acompanha a linha
do maxilar até à orelha e aos cabelos loiros e indomá veis.
Despe a camisola e lava-se debaixo dos braços sem tirar o soutien
branco com alças de cor diferente. A sua pele tem uma tonalidade
quente: parece azeite numa taça de porcelana. Tem os dois ombros
tatuados e os braços surpreendentemente musculosos.
– Para de olhar para mim – diz ela, a rir.
– E difı́cil nã o olhar para ti – replica ele, virando-se.
Valeria en ia umas calças de fato de treino, pretas com riscas
brancas, e uma camisola branca sem mangas.
– Vamos para dentro?
A casa é pequena e mobilada com simplicidade. O teto, o chã o e as
paredes estã o pintados de branco. Ao entrar na cozinha, Joona bate com
a testa no candeeiro de teto.
– Cuidado com a cabeça – diz Valeria, enquanto mete as lores numa
jarra.
Em volta da mesa nã o há cadeiras, e sobre o balcã o estã o dispostos
trê s tabuleiros de pã o cobertos com panos da loiça.
Valeria en ia mais lenha no velho fogã o, sopra nas brasas e depois
pega numa panela.
– Tens fome? – pergunta, ao mesmo tempo que vai buscar pã o e
queijo à despensa.
– Tenho sempre fome – responde Joona.
– Muito bem.
– Tens cadeiras?
– Só uma… Para te obrigar a icar ao meu colo… Estou a brincar.
Normalmente tiro-as para termais espaço quando faço o pã o – diz,
indicando a sala de estar.
Joona entra na sala, onde há uma televisã o, um sofá e um velho
aparador pintado à mã o. Ao longo de uma parede, em ila, estã o seis
cadeiras; pega em duas e regressa à cozinha, bate outra vez com a
cabeça no candeeiro, para-o com a mã o e senta-se.
A luz oscila ainda durante um instante, deslizando ao longo das
paredes.
– Valeria… Para ser sincero, nã o estou de licença – começa Joona.
– Nã o te evadiste, pois nã o? – pergunta-lhe ela, a sorrir.
– Desta vez, nã o.
Valeria afasta os olhos castanho-claros e empalidece como se se
encontrasse atrá s de um muro de gelo.
– Eu sabia que isso ia acontecer, sabia que ias voltar à Polı́cia – diz
entã o, engolindo visivelmente em seco.
– Eu nã o voltei. Obrigaram-me a participar numa ú ltima operaçã o,
nã o tinha escolha.
Ela apoia-se delicadamente com uma mã o à parede. Evita cruzar o
olhar de Joona. As veias pulsam-lhe rapidamente no pescoço e os lá bios
tornam-se mais pá lidos.
– Pelo menos é verdade que estiveste preso?
– Aceitei o encargo há dois dias.
– Percebo.
– Já nã o quero mais nada com a Polı́cia.
– Nã o – rebate Valeria, a sorrir. – Talvez seja isso que tu pensas, mas
eu sabia que querias voltar.– Nã o é verdade – diz Joona, apesar de
naquele momento perceber que é ela que tem razã o.
– Nunca estive apaixonada por ningué m como estou por ti – diz
Valeria, lentamente, enquanto desliga o fogã o. – Sei que falhei em quase
tudo na minha vida, e sei que o horto, no fundo, nã o é nada de que me
possa gabar… Mas quando descobri que estavas preso em Kumla… Nã o
sei, tive a sensaçã o de que já nã o devia sentir vergonha, que tu ias
entender. Mas agora… Tu nã o queres mesmo trabalhar aqui, e ao im e
ao cabo porque havias de querer? Será s sempre um polı́cia: é essa a tua
natureza, tenho a certeza.
– Eu ia sentir-me bem aqui – diz Joona.
– Nã o vai funcionar – responde ela, com uma voz triste.
– Olha que sim.
– Nã o tem mal nenhum, Joona, é assim e pronto – diz Valeria, a
olhar para ele com olhos baços.
– Eu sou um polı́cia, é uma parte de mim. O meu pai morreu com
um uniforme vestido… Nã o ia gostar de me ver de fato e gravata, mas
mesmo essa opçã o seria sempre melhor do que a farda de recluso.
Ela permanece imó vel, com os olhos baixos e os braços cruzados no
peito.
– Talvez esteja a exagerar, mas gostava que te fosses embora – diz,
com um io de voz.
Joona assente lentamente, passa uma mã o pelo tampo da mesa e
levanta-se.
– Vamos fazer assim – diz, tentando cruzar o olhar de Valeria. – Esta
noite vou icar num hotel em Vasastan, chama-se Hotel Hansson.
Amanhã tenho de regressar a Kumla, mas até lá ico à espera que
venhas ter comigo, e pouco importa se sou um polı́cia ou nã o.
Quando Joona sai da cozinha, Valeria esconde o rosto para ele nã o
ver que está a começar a chorar. Sente os passos pesados dele na
entrada, e depois a porta que se abre e se volta a fechar.
Aproxima-se da janela e vê -o entrar no carro e afastar-se. Quando
Joona desaparece ao fundo da estrada, deixa-se escorregar até ao chã o
com as costas contra o aquecedor e desfaz-se em lá grimas, aquelas
lá grimas de tantos anos que icaram à espera dentro dela desde o dia
em que os caminhos de ambos se afastaram e um abismo se abriu entre
eles.
39
Saga põ e o cadeado na moto e segue pela Luntmakargatan a pensar
na rapidez com que Joona conseguiu conquistar a con iança de Salim
Ratjen. A operaçã o terá inı́cio dali a duas horas.
Passa em frente a um restaurante asiá tico vegetariano e vislumbra
um casal de cinquentõ es a jantar. Estã o de mã os dadas por cima da
mesa, no meio dos pratos e dos copos, e conversam a sorrir.
Saga apercebe-se de que se esqueceu de comer desde que o
ministro foi morto.
Ficaram todos muito perturbados com a ameaça que pesa sobre o
paı́s.
Jeanette ausentou-se por doença depois do encontro com Tamara
no Nykö pingsbro. Saga teve de conduzir até Estocolmo com a colega
aninhada no banco traseiro, de olhos fechados.
Quando se cruzou com Janus no gabinete, naquela manhã , viu-o
com os olhos injetados de sangue e a beber á gua até mais nã o poder.
Nã o tinha feito a barba e admitiu que nã o voltara a casa e que
passara a noite no carro, num parque de estacionamento. Saga acha que
vai ter de o convencer a tomar os medicamentos. Sabe que, depois da
saı́da do exé rcito, Janus esteve internado durante algumas semanas,
mas que desde entã o geriu a doença perfeitamente.
Os seus colaboradores tinham examinado as imagens das câ maras
de vigilâ ncia no disco duro do ministro dos Negó cios Estrangeiros. O
assassino nã o aparecia num ú nico fotograma, apesar de dever ter
estado pelo menos uma vez naquela casa para estudar o local do crime.
Trê s semanas antes, poré m, as câ maras tinham captado outro
intruso.
Na gravaçã o via-se o cé lebre chef Rex Mü ller, a meio da noite, a
saltar o gradeamento, a atravessar o relvado e a cambalear na varanda.
As imagens imortalizavam-no a urinar diretamente na piscina
iluminada e a andar pelo jardim a apanhar os anõ es de loiça como se
fossem cogumelos enormes, para depois os atirar à á gua, um de cada
vez.
E difı́cil admitir a hipó tese de alguma ligaçã o com o homicı́dio, mas
em qualquer caso trata-se de um comportamento agressivo e
desequilibrado.
Enquanto limpava o suor do lá bio superior, Janus continuava a
repetir que nunca se devia subvalorizar nenhuma manifestaçã o de
hostilidade. Algumas palavras agressivas num comentá rio ou num post
no Facebook ou no Instagram podem desembocar em terrı́veis crimes
de ó dio.

Rex apanha o cinzeiro que Sammy deixou no terraço, passa-o por


á gua e agora está a metê -lo na má quina de lavar a loiça quando tocam à
porta. Deixa a torneira aberta e desce a correr ao andar de baixo.
Do lado de fora da porta está a mulher mais bonita que alguma vez
viu. Parece acabada de sair de uma daquelas visõ es maravilhosas que
visitam aqueles que dormem durante muito tempo, quando o á lcool já
deixou o corpo e os sonhos se tornam doces como açú car.
– Chamo-me Saga Bauer e trabalho para a Sä po – diz a mulher,
itando-o com os seus olhos azuis.
– Sä po? – pergunta Rex.
– A Polı́cia de Segurança – explica Saga, apresentando-lhe o crachá .
Rex recua um passo, ouve o ruı́do da á gua que corre no lava-loiça e
lembra-se de que estava a lavar a loiça.
Educadamente, a agente da Sä po descalça os sapatos com um dedo
e empurra-os para o lado com o pé .
– Podemos ir para a cozinha? – diz Rex em voz baixa. – Estava a
meter a loiça na má quina e…
Saga assente e segue-o escadas acima. Rex fecha a torneira e olha
para ela.
– Quer… Quer um café ?
– Nã o, obrigada – diz ela, enquanto observa a cidade do outro lado
da janela. – Conhecia o ministro dos Negó cios Estrangeiros, nã o é
verdade?
Vira-se outra vez para ele. Rex repara no dedo grande do pé que
desponta de um buraco na meia.
– Nã o consigo aceitar o facto de nos ter deixado – responde, a
abanar a cabeça. – Nã o sabia que era uma coisa tã o sé ria, quase nunca
falava da doença… E tı́pico dos homens da nossa geraçã o, estamos
convencidos de que devemos manter tudo cá dentro… A voz quebra-se-
lhe.
Saga aproxima-se da mesa e observa durante alguns instantes as
taças cheias de limas antes de erguer os olhos.
– Mas eram amigos, certo?
Rex encolhe os ombros.
– Nã o nos vimos muito nos ú ltimos anos. Nã o tı́nhamos tempo,
nenhum dos dois… é o que acontece quando se quer fazer carreira, há
um preço a pagar.
– Conhecia-o há muito tempo – diz ela, segurando as costas de uma
cadeira.
– Desde o liceu… Frequentá mos o mesmo colé gio, o Ludviksberg…
Eramos um bando de meninos mimados que… Pronto, é ramos
incontrolá veis, nenhum comentá rio era demasiado brutal ou ordiná rio,
nenhuma brincadeira demasiado extrema – mente Rex.
– Parece divertido – comenta secamente a mulher.
– Foi o melhor perı́odo da minha vida – continua Rex, a sorrir, ao
mesmo tempo que se volta paraa má quina de lavar a loiça porque já
nã o aguenta a sensaçã o da marca da mentira estampada no seu rosto.
Quando volta a olhar para a agente, uma convulsã o aperta-lhe o
estô mago. Numa das cadeiras em volta da mesa nota-se distintamente o
sangue de DJ. Como foi que nã o deu conta no momento em que estava a
limpar? De uma maneira ou de outra, escorreu para debaixo do braço.
Algumas gotas de sangue seco, vermelho-escuro, en iaram-se na
moldura do assento.
– Porque será que eu tenho a sensaçã o de que nã o me está a dizer a
verdade?
– Se calhar é este meu focinho feio – sugere Rex. – A minha cara é
assim mesmo, nã o vale a pena levar a mal.
Saga nã o sorri. Baixa os olhos por um instante e depois olha outra
vez para ele.
– Quando foi a ú ltima vez que viu o ministro?
– Nã o me lembro… tomá mos um café juntos há algumas semanas –
mente Rex, passando nervosamente uma mã o pelos cabelos.
Os olhos azuis da mulher estã o sé rios, inquisidores.
– Falou com a mulher dele?
– Nã o, isto é … Nã o a conheço, só nos vimos uma ou duas vezes.
Rex nã o consegue pensar em mais nada que nã o seja o sangue. E
como se cada palavra que lhe sai da boca parecesse vazia e deslocada.
Saga levanta as mã os da cadeira e dá a volta à mesa sem nunca
perder Rex de vista.
– O que é que me está a esconder?
– Tenho de guardar alguns segredos para a convencer a voltar.
– Nã o deve realmente desejar que eu volte, acredite.
– Pelo contrá rio – reforça Rex, com entusiasmo.
– Vou dar-lhe um tiro nos joelhos – diz Saga, mas depois nã o pode
deixar de rir da careta divertida de Rex.
– Vamos sentar-nos no jardim de inverno, o que acha? – sugere ele,
esboçando um gesto com a mã o. – Está mais fresco…
Saga segue-o até ao jardim de inverno por cima do terraço.
Instalam-se numas poltronas macias de pele de carneiro dispostas em
volta da mesa antiga de má rmore.
Rex pensa que chegou o momento de inventar uma desculpa para
voltar a entrar, deitar lixı́via num pedaço de papel de cozinha, limpar a
cadeira e atirar o papel para a sanita antes que ela se aperceba de
alguma coisa.
– Quer um copo de á gua? – pergunta.
– Nã o vou demorar muito tempo – diz Saga, enquanto toca nas
folhas de uma grande planta de cidreira.
– Champanhe?
A agente da Sä po sorri com um ar cansado, e Rex repara na
profunda cicatriz que se insinua entre as sobrancelhas. Em certo
sentido, torna aquela mulher mais verdadeira.
– Alguma vez o ministro lhe disse que se sentia ameaçado? –
pergunta ela.
– Ameaçado? Nã o… Nã o creio – responde Rex, sentindo eriçar-se a
pele dos braços quando percebe que o ministro foi assassinado.
Como explicar de outra forma a intervençã o da Sä po?
O ministro dos Negó cios Estrangeiros nã o estava realmente doente,
aquilo era apenas a versã o o icial.
Rex sente brotar o suor do lá bio superior enquanto se lembra de
ter dito, alguns instantes atrá s, que o ministro nã o queria falar da sua
doença. Deu a entender que estava ao corrente da situaçã o, mas que
nã o tinha percebido a gravidade.
– Tenho de ir – diz Saga, levantando-se da poltrona.
Rex segue-a até à cozinha. A agente da Sä po para ao lado da mesa e
volta-se.
– Há alguma coisa que me queira contar? – pergunta, com uma
expressã o sé ria no rosto.
– Nã o, só aquilo que já lhe disse… Que à s vezes exagerá vamos um
pouco com as brincadeiras.
Em vez de se ir embora, a agente afasta a cadeira manchada de
sangue, senta-se e levanta os olhos para ele, com ar de quem está à
espera de ouvir a verdade.
– Foi algumas vezes ter com ele a Djursholm, nã o foi?
– Nã o – murmura ele, a olhar para o mó vel onde está guardada a
lixı́via.
Se realmente o ministro foi assassinado, a intrusã o de Rex nã o só
representa um escâ ndalo como també m pode vir a transformá -lo num
suspeito.
Dominado pelo pâ nico, Rex pensa que faria melhor em confessar os
seus verdadeiros sentimentos em relaçã o ao ministro, acrescentando,
poré m, que nunca seria capaz de fazer mal a ningué m.
Nunca cometeu nenhum ato violento. No entanto, logo a seguir,
re lete sobre o facto de a tentativa de ajudar DJ na noite anterior poder
ter consequê ncias devastadoras.
Nas notı́cias locais nã o se falou de brigas ou incidentes mortais,
mas havia realmente muito sangue e DJ tinha a certeza de que o homem
devia ter icado gravemente ferido.
Talvez naquele preciso momento se encontrasse na mesa de
operaçõ es e, se por acaso morresse, Rex poderia ser acusado de
participaçã o num homicı́dio, ou em qualquer caso de ter ajudado um
criminoso.
Se a agente da Sä po chegasse as mã os uns milı́metros mais à frente
na cadeira, ia aperceber-se das manchas pegajosas de sangue.
– Quando foi mais ou menos a ú ltima vez que esteve em Djursholm?
Rex ita a mã o de Saga no braço da cadeira.
– Eu era capaz de lhe contar um monte de velhas anedotas, mas
daqui a pouco vai ter de sair…Preciso de mudar o menu no restaurante
e…
Ela tamborila com os dedos no braço da cadeira, apoia-se ao
encosto e observa-o com um ar inquisidor. As pontas dos dedos estã o a
um milı́metro das marcas de sangue ao longo da armaçã o da cadeira.
– Alguma vez lhe falou de um homem com duas caras?
– Nã o – apressa-se Rex a responder.
– Nã o lhe interessa saber a que me re iro? – pergunta Saga. – Nã o
seria essa a reaçã o normal, se realmente nã o sabe de que é que eu estou
a falar? – Sim, mas…
O indicador da mulher toca distraidamente numa das gotas secas.
– Mas… O quê ?
Rex prepara-se para passar outra vez as mã os pelos cabelos, mas
felizmente consegue deter-se.
– Começa a fazer-se tarde e… honestamente, nã o acho que lhe
possa dar nenhuma ajuda.
– Nã o se admire se eu tiver de voltar – diz Saga, levantando-se.
Contorna a cadeira, agarra-a pelo espaldar e encosta-a à mesa.
Depois ita Rex durante alguns instantes antes de se dirigir à s escadas.
40
Joona estaciona ao lado de uma velha autocaravana branca no
nú mero 16 de Almnä svä gen, olha para o reló gio e recorda pela ené sima
vez a conversa com So ia Stefansson.
O assassino que tê m de desmascarar, apesar de possuir um treino
militar particularmente avançado, sai dos esquemas da sua pró pria
missã o.
Teve um cuidado extremo em apagar todos os vestı́gios e, no
entanto, poupou uma testemunha.
E excecionalmente rá pido e e icaz, mas depois deixa passar dez
minutos sem fazer nada. E muito calmo, nã o treme, nã o hesita, nã o
invoca Deus, nã o faz perguntas e nã o avança com exigê ncias.
Por alguma razã o, aquele lapso de tempo vazio deve ter uma
importâ ncia simbó lica, pensa Joona.
Mas, nesse caso, a sé rie de causas por trá s do homicı́dio deve ser
bem mais complexa do que imaginaram, e a hipó tese de um ato
terrorista convencional parece até demasiado simples.
A porta da autocaravana abre-se e sai para o exterior do veı́culo
uma mulher com um impermeá vel verde cujo capuz levanta para cima
dos cabelos loiros. Joona sai do carro, fecha-o e aproxima-se dela.
– Joona Linna? – diz a mulher.
– E o meu nome – responde ele, estendendo-lhe a mã o.
A mulher esforça-se por nã o sorrir.
– Sou a Ingrid Holm, vou acompanhar-te até ao chefe da unidade
operativa.
– Obrigado pela gentileza.
Ingrid Holm avança à frente dele atravé s de um portã o de madeira
tosca entre a casa e a garagem por onde se acede a um bosque. No ar
sente-se o perfume quente de urze e lı́rios-do-vale. Quando o vento
passa por entre as copas dos pinheiros, as agulhas secas caem ao chã o.
– Deves seguir-me passo a passo para nã o seres visto da estrada –
indica a mulher, parando no topo de uma subida.
Ingrid comunica com algué m atravé s de um radiotransmissor, ica à
escuta e espera um instante. Pede a Joona para se agachar e depois
guia-o pelo meio de dois pinheiros e a seguir para trá s de uma rocha
coberta de musgo branco antes de lhe fazer sinal de que podiam
levantar-se. Mudam de direçã o e prosseguem pelo meio de umas
glicı́nias altas ao longo de um caminho pisado que os conduz ao prado
que se estende diante de uma velha casa de madeira com as arestas
pintadas de branco. Por entre a erva alta ao lado de uma macieira
encontram-se um grelhador vermelho e um pequeno tapete de
borracha.
Ingrid mostra-lhe a porta branca da varanda, com o estuque a
esfarelar ao longo do caixilho frá gil. Na entrada, na cozinha e na sala
estã o agentes protegidos com coletes à prova de bala reforçados com
placas de cerâ mica. O ar está impregnado de um cheiro acre de suor e
ó leo para armas. As espingardas automá ticas balançam penduradas nas
correias de couro, e os capacetes negros estã o pousados no chã o. Todas
as janelas do piso inferior foram tapadas para esconder a atividade no
interior.
– O primeiro grupo está à espera na cozinha – diz Ingrid, indicando
as escadas.
Joona en ia-se por entre alguns dos agentes vestidos de negro que
esperam, com ansiedade, em frente à s escadas.
Ningué m sabe que muitos deles, dentro de poucas horas, estarã o
mortos.
Na minú scula cozinha está reunida a primeira equipa de
intervençã o imediata, orientada por Gustav, que chegará ao local depois
de Joona. Sã o eles que tê m a tarefa de forçar antes de mais portas e
janelas no caso de ser necessá rio libertar um refé m.
– Joona? – pergunta um homem de olhos escuros.
– Sim.
– Este é o Joona Linna – explica aos outros –, vai entrar antes de
toda a gente.
– E nó s somos aqueles que vã o atrá s de ti para te salvar – diz um
homem de pescoço largo e cabeça rapada.
– Já me sinto mais tranquilo. – Joona sorri e aperta a mã o aos
quatro agentes que se apresentam à vez.
– Na verdade, hoje devia ser o meu dia livre – diz o homem que se
chama Sonny. – Mas quem é que ia querer perder uma coisa deste
gé nero?
Adam caminha para trá s e para diante na pequena divisã o com
passos tã o pesados que fazem tremer o chã o; ajusta o colete e a roupa
enquanto bebe Red Bull de uma lata estreita.
– Ligo ao teu irmã o para lhe dizer que hoje podes voar sozinho? –
pergunta August, sentado no chã o, encostado à parede.
– O irmã o mais velho dele é té cnico de voo num dos nossos
helicó pteros – explica Jamal.
Sonny espreita no frigorı́ ico, abre um frasco de compota e cheira
um boiã o de iogurte de baunilha.
– Nã o me parece que vá s encontrar terroristas aı́ dentro – diz
August, com um bocejo.
– Mas se encontrar, mato-os – resmunga Sonny, enquanto come
uma sanduı́che de presunto fumado que tira de uma embalagem de
plá stico.
– O Gustav está lá em cima? – pergunta Joona.
– Sim, vai ter de de inir os ú ltimos detalhes com o Janus – responde
Jamal.
Um dos homens das Forças de Intervençã o sentou-se no ú ltimo
degrau das escadas, com os olhos perdidos no vazio. Quando Joona se
aproxima, levanta-se de repente e afasta-se com movimentos nervosos.
Joona sobe as escadas de madeira, que rangem debaixo dos seus
pé s, e chega a uma sala de estar espaçosa para a qual dã o dois quartos.
També m aqui as janelas estã o protegidas de qualquer olhar exterior.
Todos ocupam já as suas posiçõ es. Os que falam, fazem-no em voz baixa
e com poucas palavras, como nos aviõ es durante as aterragens no meio
de tempestade.
O chefe da equipa operativa, Janus Mickelsen, está inclinado sobre a
planta original da casa ao lado juntamente com o responsá vel pela
operaçã o, Gustav Larsson.
– Back in black – exclama Janus, apertando a mã o de Joona.
– O que achas da operaçã o? – pergunta Gustav.
– Provavelmente, vai correr tudo como deve ser – diz Joona. – Mas,
se houver um confronto armado, devo avisar-vos que o nosso homem é
mais perigoso do que pensamos.
– A situaçã o está sob controlo – responde Janus, com uma nota de
impaciê ncia na voz.
– Sabem, falei com a testemunha logo a seguir ao nosso encontro…
e, na minha opiniã o, o assassino recebeu um treino militar ao nı́vel dos
Navy SEALs.
– OK, é bom saber isso – diz Gustav, com um ar sé rio.
– Caraças, temos em campo seis atiradores especiais, eu incluı́do –
diz Janus. – Temos à disposiçã o vinte e oito homens das Forças de
Intervençã o, espingardas automá ticas, granadas de atordoamento, M46.
– Só quero que estejam conscientes disto: o nosso homem é capaz
de antecipar a vossa estraté gia sem sequer ter de pensar muito nisso.
Vai aproveitar aquilo que você s aprenderam: a maneira como entram
nas divisõ es, como seguram na arma para nã o correrem o risco de a
perder… – Agora está a tentar assustar-nos – diz Janus, dando uma
pancada no ombro de Gustav.
Algumas gotas de suor descem-lhe do limite dos cabelos pela testa
sardenta.
– E só porque nã o nos prepará mos para isto – diz Gustav, passando
uma mã o pela boca.
– Se por acaso houver perdas, abandonem a estraté gia standard –
prossegue Joona, esperando ao mesmo tempo que o rapaz nã o participe
na operaçã o.
– Vou lá abaixo de inir uma tá tica alternativa com os homens da
equipa – diz Gustav, com as faces coradas. – Nã o quero que sejas
obrigado a dizer à tia Anja que eu preparei um desastre.
– Está atento – recomenda Joona.
– Estamos todos prontos para morrer pela honra do nosso ministro
dos Negó cios Estrangeiros – murmura Janus a rir.
Gustav desaparece ao fundo das escadas, com o capacete na mã o.
Joona entra no quarto virado para o bosque e observa o ecrã onde
aparece aquilo que se passa ao longo da estrada no exterior. Na imagem
desfocada, os ramos de algumas á rvores despidas movem-se ao sabor
do vento diante da casa de Parisa.
No nú mero 10 de Gnestavä gen encontra-se uma pequena moradia
em banda, amarela, que remonta aos anos cinquenta. Aos pé s da
escadaria da entrada, atravessada por fendas ligeiras, juntou-se um
monte de folhas secas e na parede está encostada uma vassoura de
cabo claro.
Faltam vinte e cinco minutos para o momento em que
supostamente Parisa vai entrar.
Janus vai ter com Joona, levando consigo a planta da casa, que
obtiveram no registo predial. Os caracó is acobreados e a barba curta
suavizam o seu rosto agitado.
– Nã o detetá mos qualquer atividade em volta da casa desde que
Parisa saiu hoje de manhã – diz, ao mesmo tempo que pousa a planta
em cima da mesa. – Mas há alguns pontos que nã o conseguimos ver de
fora.
– O corredor e a casa de banho.
Joona indica-os na planta.
– E aqui, no andar de cima, algué m podia esconder-se na banheira,
ou aninhar-se no chã o… Mas o ponto mais espaçoso é o vã o da caldeira,
perto da lavandaria.
– A casa é dos anos cinquenta, podia haver um refú gio antiaé reo e…
– Espera – interrompe-o Janus, atendendo uma chamada no
radiotransmissor. Fica à escuta e depois volta-se para Joona. – A Parisa
antecipou-se, regressou mais cedo do que o previsto. Está a chegar, vai
estar em casa daqui a menos de cinco minutos.
41
Janus muda de canal no radiotransmissor e, com a voz carregada de
tensã o, informa os outros grupos da chegada iminente de Parisa.
– Joona, vieste aqui para nos alertares, e só te quero dizer que, se
por acaso a situaçã o se precipitar – explica Janus, itando-o com um
olhar vı́treo –, se formos obrigados a entrar, tu deves subir ao andar
superior. No roupeiro há uma escada que dá acesso ao só tã o e ao
telhado.
O ecrã mostra Parisa a aproximar-se de casa com os sacos das
compras. Traz um sobretudo preto, um hijab cor-de-rosa e umas botas
de pele negra com salto.
Tira alguns pan letos publicitá rios da caixa do correio, depois chega
à porta, pousa os sacos e abre-a.
– Temos de te pô r imediatamente o microfone – diz Janus. – Vai ao
quarto da direita, vou mandar-te a Siv, assim que a encontrar.
Joona regressa à sala e dali entra no outro quarto. Uma mulher
jovem, com um polo negro vestido, está sentada à janela que dá para a
rua. Quando o ouve entrar, levanta-se para o cumprimentar.
– Eu sou a Jennifer – diz, apertando-lhe a mã o.
– Nã o queria incomodar, mas…
– Nã o incomodas nada – interrompe-o a jovem, ao mesmo tempo
que afasta uma madeixa de cabelo do rosto.
– Preciso de ajuda com um microfone.
Jennifer tem os cabelos apanhados num rabo de cavalo; traz umas
calças pretas com bolsos laterais e botas, mas o capacete, os ó culos de
proteçã o e o colete à prova de bala estã o pousados no chã o, ao lado da
cadeira.
Joona apercebe-se de que a rapariga montou num poderoso
cavalete uma espingarda de precisã o PSG 90. Com um manı́pulo,
consegue deslocar facilmente a boca da espingarda de um canto da
janela para o outro.
Trê s carregadores de reserva estã o alinhados em cima de uma
mesinha, ao lado de uma caixa cheia de muniçõ es de 7,62 mm e de uma
garrafa de plá stico verde de á gua San Pellegrino.
Uma tabela balı́stica escorregou da caixa para o chã o. Joona pensa
que isso nã o será um problema: Jennifer nã o vai precisar dela. A arma
tem uma velocidade de saı́da de 1300 metros por segundo, e a distâ ncia
de tiro neste caso nã o é mais de 60 metros.
Joona tira o blusã o e pousa-o em cima da cama, alarga a correia do
coldre e começa a desabotoar a camisa.
– A Parisa subiu agora para o quarto – diz Jennifer. – Queres ver?
Joona aproxima-se dela e encosta o olho à mira, depois aumenta o
zoom oito vezes e vê Parisa despir o hijab. Tem os cabelos apanhados
numa grande trança plana que lhe desce até ao fundo das costas.
Observa o rosto da mulher no centro exato da cruz de mira: os
pequenos poros da pele do nariz, a mancha na sobrancelha, a linha
subtil do kajal borratado ao longo da curva da maçã do rosto.
Quando Parisa entra na casa de banho, Joona repara que a porta do
roupeiro, forrada de papel de parede com medalhõ es amarelos
estampados, está aberta.
Deve ser ali que se encontra a escada para o só tã o.
Joona endireita as costas e observa a casa. Na fenda entre as
cortinas da casa de banho, Parisa parece uma sombra atrá s do vidro
opaco da pequena janela.
Joona acabou de tirar a camisa quando a operadora té cnica da
secçã o de telemá tica entra no quarto. Siv é uma mulher de meia-idade,
com uns esplê ndidos olhos azuis e cabelos loiros até aos ombros. Para,
e os seios esticam o tecido da camisa branca com a respiraçã o.
Com um olhar sé rio, ita Joona, que se encontra no meio do quarto,
de tronco nu. O treino na prisã o tornou-o muito musculado. O peito
apresenta cicatrizes de feridas de arma de fogo e de corte.
Lentamente, Siv contorna-o e toca-lhe com a ponta dos dedos por
baixo da omoplata direita, erguendo-lhe levemente o braço. Jennifer
ica a observá -los sem conseguir conter um sorriso.
– Acho que vou posicionar o microfone por baixo do peitoral
esquerdo – diz Siv, abrindo uma caixa de plá stico com o fundo de
esponja negra.
– OK.
A tremer, Siv ixa o microfone, tentando alisar a ita adesiva.
– Tenho as mã os um bocado frias – diz, com um io de voz.
– Nã o há problema.
– Eu posso fazer isso – sugere Jennifer. – Tenho as mã os quentes.
Siv faz de conta que nã o ouve. Fixa o microfone com outro pedaço
de ita e depois veri ica se a ligaçã o funciona. O altifalante do receptor
reproduz as suas vozes, mas a proximidade do transmissor cria um eco
incomodativo.
– Posso voltar a vestir-me? – pergunta Joona.
Siv nã o responde e Jennifer sufoca o riso. Joona agradece-lhe,
depois en ia a camisa, aperta o coldre e volta a vestir o blusã o.
– Este microfone é praticamente invisı́vel – diz Siv. – Tem um
alcance su iciente para te seguir até à casa, mas nã o muito mais longe.
Só para icares a saber.
Estã o a testar novamente a ligaçã o quando Janus entra com o
computador portá til para mostrar a Joona a câ mara que segue Parisa
enquanto esta desce até à cozinha, só com o soutien e umas calças de
treino brilhantes, e come batatas fritas que tira de uma taça prateada.
Joona veri ica a pistola, pede a ita adesiva a Siv e enrola alguma em
volta da parte inferior do cabo, como sempre faz; tira o carregador,
puxa o slide para trá s e experimenta rapidamente o mecanismo, depois
veri ica a mola e o percursor, controla o registo de segurança, insere
novamente o carregador e arma o cã o.
– Já vou – anuncia.
Ao fundo das escadas, vislumbra Gustav na entrada escura, com as
mã os no rosto e a espingarda pendurada de lado.
– Como está s? – pergunta-lhe Joona.
Gustav estremece e baixa as mã os com um ar embaraçado. O seu
rosto, habitualmente alegre, está tenso e coberto de suor.
– Tenho uma sensaçã o estranha, só isso – diz com dureza. – Há
qualquer coisa que nã o me convence. E se a casa for uma armadilha?
– Fica atento – repete Joona.
A agente da Sä po Ingrid Holm, que o acompanhou atravé s do
bosque até à casa, já está do lado de fora da porta de vidros para o levar
de volta ao carro sem que ningué m o veja.
42
Para nã o chegar ao local com o carro frio, Joona sai do bairro, passa
por baixo da ponte do metro, dá a volta ao subú rbio de Bandhagen e
depois regressa à s moradias em banda.
Estaciona a pouca distâ ncia da casa de Parisa e, quando começa a
andar, sente o carro zumbir e ranger atrá s dele.
Para lá do telhado vislumbram-se as copas das bé tulas altas.
A zona é tranquila, parece quase em estado de hibernaçã o.
Joona nã o reparou sequer num mı́nimo indı́cio que denuncie a
presença das Forças de Intervençã o, mas sabe que os agentes estã o ali,
à espera da ordem de initiva: nervosos e impacientes, divididos entre o
desejo de fazer parte daquele instante eterno em que tudo acontece e o
medo das feridas e da morte.
Se abrissem fogo agora, conseguiriam crivar de balas todo o bloco
de casas em menos de um minuto. As espingardas automá ticas das
Forças de Intervençã o sã o umas G36C produzidas pela Heckler & Koch.
Sã o armas com uma notá vel potê ncia de impacto, capazes de esvaziar
um carregador inteiro de projé teis encamisados em menos de trê s
segundos.
Joona aproxima-se da porta branca, e entretanto recorda a planta
detalhada da zona, que estava pendurada na parede, com as linhas de
tiro dos atiradores especiais divididos pelos dois lados da casa. No
mapa estava assinalada a posiçã o de cada um dos grupos que iam
participar na açã o, com as respetivas linhas de avanço. As folhas de uma
á rvore tremem ao vento. Ao longe, intui-se o ruı́do do motor de um
carro.
Joona estica um dedo e carrega no botã o da campainha.
Sabe que um dos atiradores especiais tem a mira apontada à porta;
provavelmente está na direçã o da pequena janela, mas naquele
momento Joona tapa-a com a cabeça.
Uma mulher com um carrinho de bebé sai de uma das casas ao
lado. O rabo de cavalo loiro oscila enquanto caminha. Está a aproximar-
se, mas para de repente para atender o telemó vel.
Joona toca outra vez.
Uma ventoinha começa a rodar num telhado, mas para logo a
seguir. A mulher com o carrinho de bebé ainda está a falar ao telemó vel.
Ouve-se um ruı́do e depois uma carrinha da limpeza urbana entra
na Gnestavä gen e trava com um sopro de ar ao fundo da rua. Dois
homens descem para pegar nos contentores.
Joona ouve passos dentro de casa e afasta-se da janela. Parisa
Ratjen en ia a corrente antes de abrir. Voltou a vestir-se, traz o mesmo
hijab cor-de-rosa que trazia antes e uma camisola pesada que lhe chega
à s coxas. E magra e de estatura baixa, e no rosto tem apenas um toque
de maquilhagem, só um pouco de batom e sombra.
– Trago um recado da parte de da gawand halak – diz Joona.
O olhar imó vel da mulher vacila por um instante. Examina a rua
atrá s de Joona, depois desloca novamente os olhos sobre ele, inspira e
fecha a porta.
A mulher com o carrinho de bebé acaba o telefonema e recomeça a
andar. Está a aproximar-se da casa de Parisa ao mesmo tempo que os
lixeiros regressam à carrinha.
Joona afasta-se para o lado, de forma que os atiradores se possam
concentrar na fenda da porta, no caso de Parisa voltar a abri-la.
A carrinha da limpeza passa adiante a fazer barulho e contorna o
terreno em frente à casa.
Parisa desengata a corrente, abre a porta e diz a Joona para entrar.
Ele passa para o lado de dentro e a mulher fecha outra vez a porta, roda
a chave e espreita pelo olho má gico.
A casa está disposta exatamente de acordo com a planta. A
esquerda, uma escada estreita sobe com uma curva até ao andar
superior, onde ica o quarto e o roupeiro.
Parisa manda-o subir até ao mezanino, a sala que dá para as
traseiras.
Ele segue-a, observando a forma como a roupa lhe cai ao longo do
corpo quando se mexe.
Nã o traz armas, nem cinto de explosivos.
Sobre o parquet gasto está estendido um tapete discreto. Nas
janelas e na porta da varanda estã o penduradas cortinas de renda.
– Sente-se – diz a mulher em voz baixa. – Posso oferecer-lhe um
chá ?
– Sim, obrigado – responde ele, sentando-se no sofá de tecido
castanho.
Parisa passa diante de um fogã o de sala em tijoleira onde nã o há
qualquer vestı́gio de cinzas ou de lenha, e depois entra na cozinha.
Joona observa-a enquanto ela espreita para a rua atravé s da janela e
depois tira uma caçarola de uma gaveta.
Joona recorda aquilo que descobriu sobre o assassino: os seus
movimentos quando se aproximou do ministro, a maneira como mudou
o carregador e armou o cã o sem perder a mira.
Parisa regressa com dois copos de chá num tabuleiro prateado, um
frasco de açú car e duas colherinhas delicadas. Pousa o tabuleiro em
cima da mesa redonda de latã o e senta-se em frente a Joona. Os pé s
pequenos da mulher estã o descalços e bem tratados, com as unhas
pintadas de um tom dourado escuro.
– O Salim foi transferido de Hall para a prisã o de Kumla – começa
Joona.
– Para Kumla? – pergunta Parisa, baixando a camisola. – Porquê ?
O seu rosto é vivo e inteligente, e os olhos tê m uma expressã o
ligeiramente descon iada, como se qualquer acontecimento suscitasse
inevitavelmente nela uma velha impressã o de absurdo.
– Nã o sei, nã o me explicou os motivos, mas queria que soubesse
que já nã o pode fazer telefonemas e que, de momento, ningué m vai
poder contactá -lo.
Joona leva o copo estreito à boca e recorda aquilo que Salim Ratjen
lhe disse: tem de esperar que ela lhe ofereça pã o e azeitonas antes de
lhe transmitir a verdadeira mensagem.
– Entã o conhece o Salim? – pergunta a mulher, inclinando
ligeiramente a cabeça.
– Nã o – responde Joona, com sinceridade. – Mas foi transferido para
o meu corredor… E eu quero dar-me bem com os meus companheiros
de corredor.
– E compreensı́vel.
– Obtive uma licença, e normalmente quando isso acontece todos
tentam fazer alguma coisa pelos outros.
Um rumor ligeiro obriga Parisa a lançar um olhar em direçã o ao
jardim. Os atiradores nas traseiras estã o provavelmente a fazer mira
sobre ela atravé s das cortinas de renda.
– Entã o, qual é o recado que tinha para me transmitir? – pergunta.
– Queria que a informasse sobre o facto de o terem transferido.
Parisa entorna algumas gotas de chá , e quando Joona se estica para
lhe estender um lenço de papel o coldre com a pistola desloca-se
ligeiramente para a frente.
– Obrigada – diz ela.
Joona percebe que Parisa viu a arma. Os seus olhos escuros
tornaram-se mais luminosos. A mulher baixa o olhar durante alguns
instantes, ingindo soprar no chá , mas Joona repara que se está a
esforçar por controlar os nervos.
A pistola nã o corre o risco de estragar aquela encenaçã o: ao im e
ao cabo, aos olhos dela, Joona é um criminoso. Mas ele sabe que a
situaçã o se tornou realmente perigosa de repente.
– Vou buscar qualquer coisa para comer – diz Parisa,
desaparecendo de novo na cozinha.
Joona vê minú sculos locos de cinza que caem na lareira, descendo
pela chaminé , e ouve um baque ligeiro proveniente do andar superior.
As Forças de Intervençã o estã o a avançar pelo telhado.
A carrinha da limpeza trava com um som estridente em frente à
casa e os pistõ es do meio bufam ruidosamente.
Parisa regressa com uma taça de azeitonas e dois gar inhos que
pousa em cima da mesa.
– Eu era muito jovem quando nos casá mos – diz em voz baixa,
olhando Joona nos olhos. – Tinha acabado de chegar do Afeganistã o,
depois das eleiçõ es de 2005.
Joona nã o sabe se aquele será o momento certo para lhe transmitir
a mensagem. Trouxe as azeitonas, mas nã o o pã o. Parisa espreita,
inquieta, em direçã o à cozinha. Ouve-se um ruı́do metá lico enquanto a
engrenagem da carrinha da limpeza comprime o lixo. Um recipiente de
vidro despedaça-se com uma explosã o. Parisa estremece e depois tenta
sorrir.
Joona preparou a pistola para a modalidade de açã o rá pida, e se a
retirasse do coldre poderia disparar sem ter de fazer recuar o slide,
encontrando apenas um pouco mais de resistê ncia ao primeiro tiro.
43
Parisa come as azeitonas e continua a observar Joona com as
pupilas dilatadas. Tem as mã os en iadas entre os joelhos.
– Há alguma coisa que eu deva transmitir ao Salim?
– Sim – responde ela, hesitando. – Diga-lhe que estou bem, e que
vou contando os minutos daqui até ao momento em que o deixarem
sair.
Joona pega numa azeitona e, entretanto, apercebe-se de que as
sombras dos ramos na parede por cima da televisã o começaram a
mover-se com um ritmo diferente. Está prestes a acontecer alguma
coisa. Tem a sensaçã o de que um grupo de militares se aproxima do
bosque, mas esforça-se por nã o olhar na direçã o da janela que dá para a
varanda: em qualquer caso, nã o ia conseguir vê -los.
– O Afeganistã o é muito diferente… Ontem li um artigo que pus de
lado, uma reportagem doTelegraph sobre o dia internacional da loucura
– diz Parisa, esboçando um sorrido. – Em Londres, sem mais nem
menos, toda a gente devia entrar no metro sem calças. També m fazem
isso em Estocolmo?
– Nã o sei, nã o me parece – responde Joona, a olhar para as grandes
azeitonas na taça.
Uma pega começa a grasnar por causa de um susto repentino. Por
baixo dos pé s deles ouve-se qualquer coisa ranger, como se algué m se
estivesse a mexer na cave.
– Uma vez vi expulsar umas raparigas de um estabelecimento
balnear porque se recusavam a pô r a parte de cima dos biquı́nis – diz
ela.
– Sim, há gente que gosta de estar nua – responde Joona,
tranquilamente.
O re lexo do sol move-se devagar na parede atrá s de Parisa. Ela
pega no telemó vel, digita algumas palavras e envia a mensagem.
– Já percebi que aquela histó ria tem a ver com a igualdade – diz,
pousando o telemó vel. – Mas tirando isso… Porque é que elas querem
mostrar as mamas a toda a gente?
– Os suecos tê m uma relaçã o bastante descontraı́da com a nudez –
diz Joona, inclinando-se para afrente, de forma a ser mais fá cil agarrar
na pistola.
– Apesar de aqui ningué m entrar no metro sem calças.
Parisa sorri e acaricia nervosamente as pernas.
– Mais cedo ou mais tarde, vai acontecer.
– Nã o.
Sorri mais uma vez, e um ino risco de suor desce-lhe ao longo da
face, soltando-se da linha dos cabelos.
– Seja como for, os suecos gostam de tomar banho nus quando
estã o no meio da natureza.
– Talvez eu també m ainda aprenda – diz a mulher, espreitando para
o bosque do lado de fora da janela.
Durante uns instantes, o seu olhar ica vazio. Depois volta-se outra
vez para Joona com o pescoço estranhamente rı́gido.
A colherinha escorrega-lhe da mã o e cai ao chã o, e aquele gesto
parece quase premeditado. Tilinta ao saltar sobre o parquet.
Lentamente, Parisa recupera a colher e pousa-a no tabuleiro.
Quando volta a olhar para Joona, tem os olhos carregados de medo e os
lá bios exangues.
Janus disse a Joona para subir ao só tã o pelo roupeiro e correr de
telhado em telhado até ao terreno onde ia chegar um helicó ptero.
– O Salim era um homem diferente quando nos casá mos – diz
Parisa, levantando-se. – Há uma fotogra ia do casamento na entrada.
També m Joona se levanta e vai atrá s dela em direçã o à quele ponto,
que é um dos poucos da casa que os atiradores nã o podem ter sob
controlo.
Na parede ao lado das escadas está pendurada uma fotogra ia.
Salim parece feliz: veste um fato branco com uma rosa vermelha presa
na lapela. Parisa é muito jovem e tem um vestido e um hijab brancos.
Estã o rodeados de amigos ou parentes com vestidos de noite e fatos
elegantes.
– Já nã o tem assim tanto cabelo – diz Joona.
– Nã o, envelheceu – suspira a mulher.
– Ao contrá rio de si.
– A sé rio?
– Quem é aquele? – pergunta Joona, indicando um outro homem
vestido de branco.
– E o Absalon, o irmã o do Salim… Cortou relaçõ es com o Salim
quando descobriu que ele estava envolvido no trá ico de droga… E eu
també m devia ter feito a mesma coisa.
Ficam em silê ncio. As palavras da mulher caem lentamente em
volta deles como folhas secas num lago.
– Esta é a equipa do clube do Salim, o FOC Farsta – diz ela, ao im de
alguns instantes, indicando uma fotogra ia que retrata uma equipa de
futebol, homens jovens em pose com um equipamento vermelho-
escuro.
– Sã o bons?
– Nã o – diz ela, a rir.
Uma sombra desliza diante do postigo da porta.
– Tenho mais fotogra ias na cave – diz ela, a tremer, enquanto ganha
fô lego. – Sente-se no sofá , eu já venho.
Vira-se e apoia-se na parede, depois abre uma porta estreita e
desce por uma escada ı́ngreme.
– Eu vou consigo – diz Joona, seguindo-a.
Ao fundo das escadas há uma pequena lavandaria, com uma
má quina de lavar a roupa e uma pilha de cuecas no chã o de ladrilhos.
Em cima de uma mesa há uma velha tá bua de engomar. Um chuveiro de
parede pinga sobre um pedaço de chã o de outra cor.
– A arrecadaçã o é aqui dentro – diz Parisa, com a voz carregada de
tensã o, enquanto en ia uns sapatos. – Espere aqui por mim.
Prossegue ao longo de um corredor estreito, pelo meio de
prateleiras carregadas de sapatos de inverno e de caixotes, até uma
porta de aço.
Se esconde algué m em casa, deve estar ali, pensa Joona, seguindo-a.
Quando Parisa faz rodar a chave, ele en ia a mã o debaixo do casaco,
abre o coldre e agarra na pistola. Fica com os pelos eriçados quando a
mulher, com um gemido, abre a pesada porta de aço e acende a luz.
Uma galeria com vá rias centenas de metros de comprimento oscila
diante deles na luz tré mula.
– E uma cave comum a todas as casas? – pergunta Joona, apesar de
duvidar que o receptor seja ainda capaz de captar o sinal do microfone.
Segue atrá s dela ao longo da galeria estreita, passando à frente de
umas vinte portas de aço fechadas, depois viram à esquerda e
encontram-se numa passagem ainda mais comprida.
Parisa caminha o mais depressa possı́vel, segurando irmemente o
hijab com a mã o direita.
Passam ao lado das portas blindadas de um refú gio antiaé reo e de
umas condutas de ventilaçã o cobertas com folha de alumı́nio.
Por im, Parisa abre uma porta pesada e sobem juntos uma escada.
Passam em seguida por um depó sito de lixo e chegam em frente a uma
saı́da.
Continuam para lá da porta.
Insinuando-se por baixo da estrada, a passagem subterrâ nea
conduziu-os até um bairro de pré dios altos.
Nas margens do bosque veem-se um pequeno escorrega e um
baloiço com as correntes ferrugentas. As rosas-caninas estremecem ao
vento e as lufadas de ar espalham o lixo no terreno.
Parisa aproxima-se de um Opel sujo estacionado ao lado de uma
dezena de outros carros. Abre-o e Joona senta-se no lugar do
passageiro, ao lado dela.
– Sabe… quando lhe disse que queria ver mais fotogra ias foi só
para ser simpá tico – diz por brincadeira, sem obter como resposta nem
sequer o esboço de um sorriso.
44
Parisa Ratjen abranda e entra na estrada 229. Em silê ncio, ela e
Joona passam ao lado de armazé ns industriais e por zonas de bosque
cheias de lixo.
A mulher tem o rosto pá lido e a boca tensa. Está sentada com as
costas rı́gidas e segura o volante com as duas mã os.
Joona já nem lhe pergunta onde se dirigem: já superaram
largamente o alcance do microfone.
Nã o lhe resta senã o prosseguir com o trabalho de in iltraçã o. Talvez
a mulher tenha indicaçã o para o conduzir ao covil dos terroristas.
Quando se aproxima das traseiras de um camiã o coberto por um
oleado amarelo, Parisa abranda. Uma pedrinha salta contra o para-
brisas.
– Nã o sei de que lado está , mas o Salim nã o lhe pedia que me
trouxesse uma mensagem da parte do «rapaz do vizinho» se nã o fosse
importante – diz de repente a mulher, mudando de faixa. – Explique-me
porque nã o me transmitiu a verdadeira mensagem.
– Nã o me ofereceu pã o.
– Está bem – murmura ela.
Estã o ao lado do camiã o. As barras de aço do lado esquerdo
cintilam e o atrelado oscila com uma sú bita rajada de vento.
– O Salim deu-me um nú mero de telefone – diz Joona. – Tem de
ligar para o 040 6893040 e perguntar por Amira.
Quando ouve aquele nome, Parisa perde por um instante o controlo
do carro. A roda da frente do TIR preenche a janela do lado de Joona e o
rugido do motor retumba dentro do habitá culo.
– Mais nada – acrescenta Joona em voz baixa.
Parisa agarra o volante, acelera e ultrapassa o veı́culo pesado.
– Repita o nú mero – pede a Joona, engolindo em seco.
– 040 6893040.
Parisa regressa à faixa da direita e abandona a estrada tã o
bruscamente que é obrigada a travar, fazendo cair ao chã o um mapa
pousado no banco traseiro.
Passam por um enorme armazé m amarelo-claro e entram numa
á rea asfaltada entre uma estaçã o de serviço e um McDonald’s. Parisa faz
a manobra, aproxima-se da erva em marcha-atrá s e trava.
Uma luz té nue estende-se, imó vel, sobre o asfalto e entre as bombas
de gasolina por baixo do coberto plano.
A esquerda, uma famı́lia sai do McDonald’s com bandeirinhas na
mã o.
Parisa deixa o carro em ponto-morto e baixa os vidros de ambos os
lados. Sem dizer uma palavra, abre a porta e sai. Inclina-se por baixo do
banco, pega numa Glock, recua uns passos e aponta a arma a Joona
atravé s da janela aberta.
– Saia do carro devagar – diz.
– Eu nã o estou envolvido, só tinha de lhe comunicar…
– Mã os ao ar – interrompe-o ela bruscamente. – Eu sei que está
armado.
A mã o com a pistola treme-lhe, mas tem o dedo no gatilho e, se por
acaso disparasse naquele momento, atingi-lo-ia seguramente.
– Nã o faço ideia do que está a acontecer – diz Parisa. – Mas cresci
no Afeganistã o, e vi os atiradores à janela do outro lado da rua.
– Nã o sei o que viu, mas…
– Saia do carro, se nã o eu disparo – diz a mulher, levantando a voz.
– Nã o quero fazê -lo, mas, se me obrigar, disparo.
– OK, eu saio – assente Joona, abrindo lentamente a porta.
– As mã os bem à vista – ordena ela, humedecendo os lá bios.
– Quem é Amira? – pergunta-lhe Joona, e pousa o pé direito no
chã o.
– Afaste-se do carro sem se virar.
Joona levanta-se, vira-lhe as costas e repara em trê s carros que
estã o estacionados à porta do McDonald’s. O vento agarra
violentamente as quatro bandeiras em frente ao restaurante e faz
abanar as hastes.
– Mais longe – continua a mulher, enquanto se dirige ao outro lado
do carro, mantendo-o debaixo de mira.
Joona avança em direçã o aos automó veis estacionados.
Parisa senta-se ao volante e continua a apontar-lhe a pistola
atravé s da janela aberta.
– Talvez eu a possa ajudar – diz Joona, detendo-se.
– Continue a andar – insiste Parisa, atrá s dele.
Joona dá dois passos e vê um homem gordı́ssimo a sair do
McDonald’s com um saco de papel. Enterra-se no assento do carro,
en ia a chave na igniçã o e começa a comer o hambú rguer por cima do
saco.
– Para sua informaçã o – continua Parisa, com uma nota de histeria
na voz –, se tencionam usar-me para fazer chantagem com o Salim,
esqueçam. Nã o vai funcionar, já pedi o divó rcio. Nã o lhe interessa nada
aquilo que me possa acontecer.
– Eu nã o tenho nada a ver com isso – repete Joona, e ouve-a pousar
a pistola no banco do passageiro.
– Continue a andar. Se volta a parar, juro-lhe que disparo.
No instante em que Parisa mete primeira e arranca com uma
chiadeira de pneus, Joona começa a correr.
Ultrapassa com um salto a sebe baixa que delimita o parque de
estacionamento, abre a porta do carro do homem que está a comer o
hambú rguer e arrasta-o para o chã o. O copo cai no asfalto, a Coca-Cola
lança salpicos para todo o lado e os cubinhos de gelo icam feitos em
pedaços. O homem rola sobre si mesmo, protegendo-se com o cotovelo.
Joona repara que Parisa está prestes a perder o controlo do carro
quando a vê guinar bruscamente para lá do armazé m amarelo.
Mete rapidamente primeira, carrega no acelerador e avança contra
a sebe que delimita o parque.
Os tacos de golfe no banco de trá s produzem um ruı́do metá lico
quando as rodas traseiras batem no asfalto do outro lado do canteiro.
O homem gordo levanta-se no meio dos restos do hambú rguer,
salada à s tiras, batatas fritas e pacotes de ketchup, e ica a ver o seu
pró prio carro subir o declive de relva em direçã o à estrada.
Joona atravessa o passeio e a faixa de emergê ncia coberta de erva,
vira bruscamente à direita e chega à estrada principal. O Volvo derrapa
na via ampla de vá rias faixas. A parte traseira do carro ainda está a
deslizar de lado quando Joona carrega no acelerador.
A roda da frente do lado esquerdo bate na beira do separador com
um ruı́do surdo.
Pelo retrovisor, Joona vê o tampã o saltar para a outra faixa.
Repara que, mais adiante, Parisa vira em Huddingevä gen, e no
mesmo instante uma luz acende-se no tablier.
Ultrapassa um furgã o branco e acelera até aos cento e quarenta
quiló metros por hora, mas depois abranda quando descobre o Opel sujo
duzentos metros mais adiante.
Quando há apenas dois carros entre eles, Joona regressa à faixa da
direita, pega no telefone, liga a Janus Mickelsen e transmite-lhe todas as
informaçõ es relativas ao automó vel de Parisa, a posiçã o em que se
encontram e a direçã o que estã o a tomar.
– Muito bem, a situaçã o é clara – responde Janus. – Manté m-nos
informados. Vou arranjar maneira de obter das che ias a autorizaçã o
para transferir a operaçã o.
– Nã o sei do que se trata, nem para onde estamos a ir – explica
Joona. – Mas a gasolina só me vai dar para uns cinquenta quiló metros.
Preciso de reforços antes disso.
Quando a luz da reserva se acende, signi ica que restam oito litros
de gasolina no depó sito. Normalmente seriam su icientes para
cinquenta quiló metros, mas como Joona está a conduzir a grande
velocidade, essa distâ ncia diminuirá ligeiramente.
Nã o faz ideia para onde se dirige Parisa, mas nã o vê alternativas
senã o segui-la enquanto lhe for possı́vel.
Dirigem-se para norte, a oeste de Estocolmo. Joona recorda o
estranho nervosismo da mulher e a sua tentativa de conversar com ele
antes de descortinar um dos atiradores especiais e decidir fugir.
Trinta minutos mais tarde, Joona entra numa longa subida que
contorna um campo de golfe. Sopra um vento forte, e as rajadas
intensas sacodem o automó vel.
Passa o centro comercial de Akersberga, ao lado da linha do
caminho de ferro. Lembra-se de quando precisamente ali, muitos anos
atrá s, com o seu amigo Erik, tinha feito uma descoberta aterradora num
apartamento em frente ao templo das testemunhas de Jeová .
Vê uma estaçã o de serviço, fora da qual estã o estacionados uns
atrelados cobertos e uns carros de aluguer. Se parasse para meter
gasolina, perderia o rasto de Parisa.
Naquele preciso instante, a mulher desaparece do seu campo de
visã o. Joona tem de se pô r a adivinhar, apesar de a gasolina acabar dali
a quatro quiló metros.
Liga a Janus e comunica-lhe brevemente que passou Akersberga e
que se encontra em Roslagsvä gen.
Mais adiante, os bosques e os campos desaparecem no entardecer,
como se algué m com um sopro estivesse a dissolver um mundo que, na
realidade, nunca existiu verdadeiramente.
Ao longe, diante dele, distinguem-se as luzes traseiras do carro de
Parisa. As vezes desaparecem durante alguns instantes, para depois
voltarem a aparecer quando Joona sai de uma curva.
A estrada atravessa agora um bosque imerso na sombra. Os troncos
das á rvores parecem planos como folhas de papel à luz dos faró is.
Joona pensa no rosto de Parisa quando lhe transmitiu a mensagem
de Salim Ratjen. As emoçõ es que nele identi icou eram o medo e a
surpresa.
Acabou de passar uma estrada lateral isolada e bloqueada por uma
barra ferrugenta quando ouve um zumbido.
O motor parece aumentar as rotaçõ es e depois para
completamente. Joona encosta e acende os quatro piscas.
Ao longe, as luzes traseiras do carro de Parisa brilham uma ú ltima
vez e depois desaparecem.
Joona pega no telefone, sai do carro e começa a correr atrá s dela ao
longo da estrada.
Já nã o ouve o motor do Opel.
O silê ncio é total, ouvem-se apenas os passos de Joona sobre o
asfalto e o roçar da roupa.
Numa estrada plana como aquela, Parisa pode atingir uma
velocidade trê s vezes superior à quela a que ele consegue correr. Por
cada minuto que passa, a distâ ncia entre eles aumenta notoriamente.
O bosque de pinheiros acabou de ambos os lados.
Joona passa por uma paragem de autocarro deserta e começa a
descer ao longo de uma colina. O bosque abre-se e, no escuro, surge um
campo de pastagem.
Joona corre velozmente; sabe que é capaz de manter aquele ritmo
durante mais de dez quiló metros.
Ao longe, no meio do campo, descortina dois veados. Quando
descobrem Joona, limitam-se a levantar a cabeça.
45
Apesar de o cé u estar ainda iluminado por uma espé cie de luz
tı́mida, quando Parisa abranda e entra numa longa descida o bosque em
volta dela está já completamente à s escuras. Vira à direita devagar e
segue por uma estrada de terra batida que passa ao lado de uma valeta
coberta de lixo, ao fundo da qual está abandonada a carcaça de um
automó vel.
Pensa no homem alto que se apresentou em sua casa com uma
mensagem da parte de da gawand halak. Disse-lhe que Salim tinha sido
transferido há pouco tempo para o seu corredor em Kumla e que
praticamente nã o o conhecia. Provavelmente, Salim tinha sido obrigado
a comunicar servindo-se do primeiro detido que obteve uma licença.
Segundo o có digo que Salim lhe tinha ensinado, nã o se tratava de
uma pessoa completamente iá vel, mas ela deveria em qualquer caso
ouvir aquilo que ele tinha para lhe dizer.
Apercebera-se de que o mensageiro loiro estava armado, mas só
entrou em pâ nico quando reparou no atirador pela janela da cozinha.
No andar de cima da casa em frente.
Uma janela entreaberta, um cı́rculo negro e outro brilhante: a boca
da pistola e a mira.
Parisa nã o conseguiu perceber se o homem estava ao corrente da
presença do atirador, e se estavam a colaborar ou nã o.
Tanto quanto sabia, talvez fosse precisamente o mensageiro quem
estava na mira.
Os pensamentos atropelam-se na sua cabeça; nã o percebe como
juntar todas as peças, mas de momento a irmã é a ú nica coisa que
conta.
Depois de ter obrigado o mensageiro a sair do carro, marcou o
nú mero que ele lhe deu, e a chamada foi imediatamente desviada. A
linha estava livre, e depois de uma longa espera atendeu um homem,
numa lı́ngua eslava. Parisa perguntou-lhe se falava inglê s e ele
respondeu: «Sim, claro.»
A gravilha crepita por baixo das rodas do carro e as á rvores a toda a
volta formam uma cortina mó vel e escura. Por entre os troncos, à
esquerda, a superfı́cie negra de um riacho reluz quando os faró is
passam sobre ela.
Parisa tinha respirado fundo e perguntado ao homem onde se
encontrava Amira, a irmã mais nova. Explicou-lhe que Amira fazia parte
do grupo de Sheberghan, cuja chegada à Sué cia estava prevista para a
quarta-feira seguinte.
O homem afastou o telefone para falar com algué m perto dele,
depois disse-lhe que a viagem atravé s da Bielorú ssia e da Finlâ ndia
tinha sido mais rá pida do que o previsto e que o grupo tinha chegado ao
local de encontro cinco dias mais cedo. Portanto, a irmã já se encontra
na Sué cia. Amira está à espera dela há trê s dias e Parisa nã o sabia de
nada.
O bosque abre-se sobre o cé u mais claro e sobre o mar à distâ ncia.
Parisa passa um cruzamento e depois desce em direçã o a um pequeno
estaleiro de barcos de recreio.
Um enorme armazé m de chapa ondulada destaca-se sobre as
silhuetas de mais de cem embarcaçõ es içadas sobre as carreiras:
veleiros altos de quilhas imponentes e lanchas compridas e estreitas,
a iladas como pontas de lechas.
Na fachada de uma barraca tosca vê -se uma janela iluminada. A luz
entorna-se sobre as tá buas da parede e sobre um cartaz que diz
«Estaleiro Nyboda».
Parisa faz a manobra, encosta-se à parede e estaciona.
Quando sai do carro, o vento frio proveniente do mar insinua-se
mesmo por baixo do camisolã o de lã . Só tem vestidas as calças
brilhantes azul-escuras, e os pé s, dentro das sapatilhas, estã o descalços.
Os oleados batem nos cascos dos barcos, o plá stico faz barulho e a
corda de uma bandeira bate ritmicamente contra o mastro, produzindo
um ruı́do semelhante ao de uns saltos altos e inos a caminhar
rapidamente sobre uma superfı́cie de parquet.
Parisa apercebe-se de um movimento por trá s da cortina suja
pendurada na janela do barracã o.
Um caminho estreito de saibro desce até à á gua e ao pontã o, entre a
parede alta de chapa do armazé m e as ilas compactas de barcos.
Parisa põ e ao ombro a carteira com a pistola e sobe a escada
ı́ngreme que dá acesso ao barracã o. Bate à porta, espera alguns
segundos e depois entra num escritó rio mobilado com uma velha
secretá ria e cartas ná uticas penduradas diretamente na parede com
pioné s. Um homem que parece ter mais de setenta anos está atento a
estudar uns recibos atrá s da secretá ria. Numa poltrona de vime, a um
canto, uma mulher com mais ou menos a mesma idade está a fazer
tricot.
O homem veste uma camisa de manga curta, e os seus antebraços
peludos estã o pousados no tampo da secretá ria. Tem no pulso um
reló gio de ouro. A mulher pousa as agulhas nos joelhos e observa Parisa
com um ar interrogativo.
– Vim buscar a minha irmã – diz Parisa, com um tom calmo. –
Chama-se Amira.
O homem passa uma mã o pelo crâ nio rapado e pede-lhe para se
sentar em frente a ele.
Parisa senta-se e ouve atrá s de si um ligeiro tique-taque, quando a
mulher na poltrona retoma o trabalho.
– Já está vamos a pensar que nã o vinha ningué m buscar os ú ltimos –
diz o homem, com um tom de voz estranho, esticando-se para pegar
numa pasta de arquivo.
– Na verdade, só deveria chegar na quarta-feira – explica
brevemente Parisa.
– Ah, claro. Esta mudança de programa vai custar-vos mais
qualquer coisa – prossegue o homem, com um ar ausente. Lambe um
dedo, depois começa a folhear os inos formulá rios de expediçã o na
pasta.
– Mas já está tudo pago – rebate Parisa.
– Se tivesse vindo buscá -la quando ela chegou… – replica o homem,
lançando-lhe um olhar rá pido.
– Nã o quer pagar? – pergunta a mulher, agitando-se.
– Mas é claro que paga – diz o homem, indicando uma folha cor-de-
rosa. – Trê s dias de alojamento, alimentaçã o, despesas de saú de e
despesas administrativas.
A mulher atrá s de Parisa recomeça a tricotar, enquanto o homem
digita os nú meros numa calculadora pousada ao lado de um telefone
coberto de pó .
O ruı́do penetrante de uma lixadora a funcionar dentro do
armazé m passa atravé s das paredes.
O homem humedece com a ponta da lı́ngua os lá bios rugosos e
volta a apoiar-se na cadeira.
– Trinta e duas mil e trezentas coroas – diz, virando a calculadora
para Parisa.
– Trinta e duas mil?
– Gerimos este estaleiro juntamente com os nossos trê s ilhos, nã o
nos podemos dar ao luxo de fazer bene icê ncia. Nã o há margem para
isso – explica.
– Posso pagar com cartã o? – pergunta Parisa, apesar de saber que
nã o tem assim tanto dinheiro na conta.
– Nã o – responde o homem, a sorrir.
– Nã o tenho tanto dinheiro comigo.
– Entã o, minha cara senhora, deverá regressar a Akersberga e
levantar o dinheiro. Mas lembre-se que quanto mais o tempo passa,
mais a dı́vida cresce.
– Primeiro preciso de falar com ela – diz Parisa, levantando-se da
cadeira.
– Se começá ssemos a abrir exceçõ es…
– E minha irmã – explica ela, erguendo a voz. – Percebe isso?
Conseguiu chegar até aqui, e nã o sabe uma palavra de sueco. Tem de me
deixar falar com ela.
– Compreendemos a sua a liçã o, mas a culpa nã o é nossa, se nã o
veio buscá -la antes e…
– Diga-me onde está – interrompe-o Parisa. Espera alguns
segundos, depois passa à frente da mulher e sai.
– Espere, minha senhora, podemos arranjar uma soluçã o – ouve
berrar o homem atrá s dela.
Parisa desce os degraus e corre ao longo da estreita passagem de
saibro entre os barcos pousados em cima das carreiras e a o icina. Mais
em baixo uma grua oscila ao vento, enquanto ao fundo as nuvens se
adensam no cé u. A espuma das ondas lambe os rochedos e uma rampa
de carga.
Parisa caminha o mais depressa que pode, e ao mesmo tempo
descobre luzes acesas em alguns dos barcos sobre as carreiras, por
baixo dos oleados.
O cheiro a ó leo quente fá -la cair de repente no meio das
recordaçõ es do Afeganistã o. Volta a encontrar-se na o icina onde
trabalhavam o pai e o avô , perto do rio Sa id, na periferia de
Sheberghan.
– Amira? – grita, voltada para a extensã o do porto. – Amira?
46
Parisa grita mais uma vez o nome da irmã , e de repente parece-lhe
descortinar umas sombras que se movem debaixo do oleado iluminado
de uma grande lancha perto da margem.
Aproxima-se a passos largos, mas tropeça num motor fora de borda
enferrujado. Por todo o lado estã o espalhados peças de motores,
painé is desmontados, boias, caixotes molhados cheios de rolos de ita
adesiva e â ncoras lutuantes, e um monte de tubos de né on está
encostado a uma grande empilhadora.
– Minha senhora! – grita o homem atrá s dela. – Nã o é permitido… –
Amira? – berra Parisa, com todo o fô lego que tem na garganta.
O casal saiu do escritó rio. O homem, repara Parisa ao voltar-se,
ajuda a mulher enquanto esta desce os degraus ı́ngremes devagar, com
muita di iculdade.
O ruı́do da lixadora na o icina para de repente.
Parisa estaca, intui um movimento mais adiante, à frente dela, e
continua. Algué m está a descer de um dos barcos mais pró ximos do
mar por uma escadinha de alumı́nio.
E Amira.
Parisa tem a certeza.
A irmã mais nova traz vestido um blusã o azul e tem um vé u a tapar-
lhe os cabelos e a boca.
– Amira! – exclama Parisa, e começa a correr pelo caminho estreito.
O velho começa outra vez aos gritos. Parisa levanta um braço em
direçã o à irmã , depois tropeça num cavalete e continua a andar.
Amira semicerra os olhos para conseguir vê -la na escuridã o que
envolve tudo.
Subitamente, um homem robusto em fato de treino aparece atrá s
da esquina da o icina. Dirige-se a Parisa a coxear e apoiado numa
muleta. Tem na mã o uma lixadora pesada. Arrasta atrá s de si o io
elé trico, e o pó branco ergue-se da boca do aspirador.
– Amira! – grita novamente Parisa, no instante em que trê s
pequenos holofotes se acendem na fachada da o icina.
O homem com a lixadora na mã o avança em direçã o a ela pelo
caminho de saibro, e atrá s dele a irmã aproxima-se devagar com os
olhos transbordantes de terror.
– Nã o grites – balbucia o homem, ao entrar no cone de luz do
holofote mais distante.
Uma nuvem de pó ino de ibra de vidro ergue-se-lhe do rosto
quadrado, e Parisa para a observá -la.
– Anders, volta para casa – grita o homem mais velho, atrá s de
Parisa.
– Quero a minha mulher – murmura o indivı́duo de fato de treino,
estacando.
Fita Parisa por detrá s dos ó culos de proteçã o sujos. Amira, atrá s
dele, parece paralisada e nã o ousa avançar nem um passo.
– Olá – diz Parisa.
– Olá – responde o homem, em voz baixa.
– Nã o te queria perturbar. Só estava a gritar para ver se a minha
irmã me ouvia.
– Parisa, sã o doidos. Vai pedir ajuda – diz a irmã em lı́ngua pastó .
Quando o homem ouve Amira falar, volta-se, dá um passo em
direçã o ao centro do cone de luz do holofote e agride-a violentamente
na face com a muleta. Amira vacila de lado com a força da pancada e cai
ao chã o. Aos gritos, o homem chega junto dela e tenta agredi-la no rosto
com a lixadora pesada. Mas falha o golpe e nã o consegue segurar a
má quina, que voa pelo ar, atinge o oleado de uma velha janela e cai no
meio do saibro.
– Chega – grita Parisa, tentando abrir a bolsa onde guarda a pistola.

Amira está no chã o, estendida de lado, e tenta arrastar-se à procura


de abrigo. O homem começa a dar-lhe pontapé s e agride-a com a
muleta.
– A minha mulher – berra.
– Para com isso! – grita Parisa, tirando a pistola da bolsa com as
mã os tré mulas.
Enquanto faz recuar o slide e aponta a arma, o homem vira-se.
– O meu pai disse que agora ela é minha mulher – diz, com uma voz
empastada.
Parisa acompanha o olhar do homem em direçã o ao escritó rio, e vê
o mais velho que continua a dar o braço à mulher enquanto,
lentamente, percorrem o caminho de saibro.
– Deu-ma a mim – diz o indivı́duo robusto, ao mesmo tempo que
limpa o ranho do nariz com o antebraço.
– Afasta-te – ordena Parisa.
– Nã o – diz ele, abanando a cabeça caprichosamente.
Parisa aproxima-se dele e dá -lhe uma pancada no rosto com a
pistola, logo acima dos ó culos. Ele tropeça para trá s e cai sentado na
erva, na base do muro.
Parisa empunha a pistola com as duas mã os, manté m o homem
debaixo de mira e diz à irmã para ir ter com ela. Amira avança a rastejar,
mas lança um grito de medo quando o homem se vira de lado e lhe
agarra numa perna.
– Larga-a. Nã o lhe toques, ou eu disparo – resmunga Parisa.
Levanta a pistola e dispara um tiro para o ar, depois volta
rapidamente a apontá -la ao peito do homem, enquanto a explosã o ecoa
por entre os muros dos edifı́cios.
– Larga-a – berra com mais força, e a voz sai-lhe quebrada.
– O Anders nã o percebe, nã o é mais do que uma criança – grita o
homem atrá s deles, aproximando-se.
Arquejante, Parisa aponta-lhe a pistola. A mulher sentou-se numa
pilha de baterias de motor no topo da descida.
– Pai, disseste que me ias oferecer uma mulher – queixa-se o
homem robusto, sentado no chã o.
– Anders – diz o pai, ofegante –, eu disse-te que… se ningué m a
quisesse, tu podias icar com ela.
Parisa sente a raiva crescer-lhe no peito, como uma chama que
devora oxigé nio. O homem velho levanta as mã os e dá um passo para
ela.
– Quieto, ou eu disparo – grita-lhe Parisa. – A Amira vem comigo. Eu
pago-te mais tarde, vã o receber o vosso dinheiro, mas…
Um choque atravessa-lhe o cé rebro e um objeto atinge-a
violentamente na parte lateral da cabeça, fazendo descer a escuridã o
sobre a sua vista. Com os joelhos a ceder, cambaleia para a frente e bate
com a testa num bloco de cimento. Perde a pistola, cai de lado e sente o
sangue que começa a escorrer-lhe pelo rosto.
A gemer, esforça-se por se levantar, mas depois da pancada é como
se algué m lhe estivesse a apertar uma esponja quente contra a nuca.
O terreno oscila por baixo dela. Procura à s apalpadelas alguma
coisa a que se agarrar e ouve Amira gritar de terror. Tenta apoiar-se na
parede gé lida, cospe um grumo de sangue e repara que outros
refugiados desceram dos barcos e se aproximam com extrema cautela.
– Você s nã o existem – vocifera um homem dos seus cinquenta anos,
de barba, brandindo uma espingarda de chumbos.
Parisa mal conseguiu olhar para ele de frente quando o homem a
agride de novo com a coronha da espingarda. Parisa volta a cair
pesadamente ao chã o, entornando um carrinho cheio de velhos iltros
de ó leo e arranhando um ombro ao embater no saibro.
Levanta a cabeça, a tentar descobrir onde foi parar a pistola, mas a
pancada na nuca turvou-lhe a vista: o mundo em volta ofusca-se e
confunde-se diante dos seus olhos. Consegue apenas vislumbrar
vagamente o homem robusto com os ó culos de proteçã o que arrasta
Amira para junto de si.
Arquejante, Parisa tenta novamente levantar-se; põ e-se de joelhos,
apoiando-se ao solo com as mã os, volta a cuspir sangue e ouve o
homem de barba gritar que vai exterminar todo o grupo de refugiados.
Dá -lhe um pontapé de lado, por cima das costelas, fazendo-a rolar
no chã o, e Parisa tenta ganhar algum fô lego, mas ele inclina-se sobre ela
e arranca-lhe o vé u com uma violê ncia tal que a fricçã o do tecido lhe
queima o pescoço.
– Entã o sempre tens uma cara… tê m todos um raio de uma cara –
grita o homem barbudo.
– Linus, já chega – tenta acalmá -lo o pai.
Parisa limpa a boca e procura a pistola com os olhos. Por cima da
cabeça do homem barbudo vê o mastro oscilar ao vento e a bandeira
amarela e azul abanar e torcer-se.
O indivı́duo que dá pelo nome de Linus aproxima-se dela, encosta-
lhe com força o cano da espingarda entre os seios e a seguir baixa-o,
fazendo-o deslizar sobre o ventre e en iando-lho no meio das pernas;
inalmente ica imó vel, arquejante.
– Por favor – implora Parisa, com um io de voz.
– Linus, acalma-te – diz o pai.
O homem de barba é atravessado por um fré mito, aponta
subitamente a espingarda ao rosto de Parisa e pousa o dedo no gatilho.
– Queres a cara? Nã o, nã o queres, pois nã o? – pergunta.
– Acaba com isso! – berra o pai, com a voz carregada de medo.
– Mas ela nã o quer a cara – responde.
Parisa tenta afastar a cabeça, mas o homem barbudo continua com
a espingarda apontada para ela.
Anders chora, cobrindo com a mã o a boca e o nariz de Amira.
– Por favor, Linus, nã o exageres. Nã o queremos que venha aı́ a
Polı́cia – implora o pai.
O suor escorre da barba de Linus e desce-lhe ao longo do pescoço;
entretanto, o homem sussurra algumas palavras e encosta com força o
cano gé lido contra a testa de Parisa.
47
Joona corre no meio da escuridã o ao longo de Roslasvä gen. Já
passaram vinte minutos desde o momento em que deixou o carro na
berma da estrada. Durante todo aquele tempo, nã o encontrou vivalma.
Apenas se apercebeu das sú bitas rajadas de vento por entre os ramos
das á rvores e do ruı́do da sua pró pria respiraçã o.
Agora está a percorrer uma descida. Acelera o passo e aumenta
ainda mais a velocidade. Num alto diante dele cintila uma luz
proveniente de uma casa, consegue vê -la à distâ ncia no meio das
á rvores.
A pistola salta e bate-lhe contra as costelas.
Acaba de entrar num viaduto com os rails cobertos de pó quando
ouve uma explosã o atrá s de si.
Um disparo.
Volta-se e ica à escuta.
O ruı́do espalha-se sobre a superfı́cie do mar e ressoa por entre as
ilhas.
Joona volta atrá s o mais depressa que pode, em direçã o à estrada
de terra batida por que passou pouco antes. Um carro vem ao encontro
dele a grande velocidade pela subida. Encandeado pelos faró is,
continua pela valeta, no meio das ervas. Quando o carro passa, o chã o
treme. De novo no escuro, Joona regressa ao asfalto e corre durante
mais algum tempo, depois encontra o caminho que vai até ao mar e
segue por ali.
A estrada leva-o ao longo de um declive ao fundo do qual está
abandonada a carcaça de um automó vel, e depois, mais adiante, até um
portã o de madeira escura.
Quando reemerge do outro lado do bosque, descobre o carro de
Parisa. Está estacionado do lado de fora do escritó rio de um estaleiro
modesto. Enquanto avança em direçã o aos barcos montados nas
carreiras, entra em contacto com Janus, transmitindo-lhe as suas
coordenadas com base no sistema RT 90 e pede reforços à equipa de
intervençã o.
– Mas espera – diz, com voz irme. – Fica a aguardar até eu perceber
a situaçã o. Ligo-te o mais depressa possı́vel.
Põ e o telemó vel em silê ncio, depois ouve umas vozes excitadas e
en ia-se debaixo de uma lancha enorme.
Avança a rastejar pelas estreitas passagens entre os barcos.
Vê uma mulher sentada numa pilha de baterias de motor e depois,
no instante seguinte, descobre os outros.
Um homem de uma certa idade está parado no meio do caminho e
tem um x-ato escondido na mã o, enquanto um outro indivı́duo está
sentado no chã o a apertar uma mulher nos braços.
Joona aproxima-se rapidamente. Rumores ligeiros erguem-se da
erva seca debaixo dos seus pé s.
O oleado que cobre um dos barcos ergue-se como uma vela,
permitindo-lhe entrever aquilo que está a acontecer. Um homem de
barbas atinge Parisa na nuca com a coronha de uma espingarda e
depois aponta-lhe o cano ao peito.
Quando o oleado volta a cair, um io de á gua escorre para o chã o.
O homem de barba permanece imó vel com a espingarda no meio
das pernas de Parisa. E uma arma de chumbos de duplo cano, pode
disparar dois tiros sem ser recarregada.
Joona en ia-se por baixo de um barco à vela. Os ruı́dos chegam
confusamente ao seu ouvido esquerdo enquanto desliza sob o casco
enferrujado.
O homem barbudo lança uns gritos e desloca a espingarda na
direçã o do rosto de Parisa.
Joona afasta-se alguns passos do esconderijo, depois endireita as
costas, chega junto do homem de barba por um dos lados e empurra a
espingarda para cima, afastando-a do rosto de Parisa.
Conclui o movimento empurrando com a outra mã o a coronha da
espingarda para baixo e retirando-a das mã os do homem; depois vira-a
com um movimento vertical e pousa o dedo no gatilho.
Joona encosta-lhe o cano à cara com força. O homem oscila para
trá s, levando as mã os à boca. Sempre com a arma apontada a ele, Joona
avança um passo, roda o tronco e atinge violentamente o homem com a
coronha da espingarda. O impacto faz-lhe jorrar um io de sangue da
boca.
Joona aponta rapidamente a arma ao indivı́duo mais velho.
O homem de barba cai ao chã o, por cima de um caixote de latas de
spray, e depois ica deitado de barriga para baixo.
O pai para e deixa cair o x-ato.
– Afasta-o com um pontapé e depois põ e-te de joelhos – ordena
Joona.
O outro obedece, apoiando-se na parede para se ajoelhar.

Cai o silê ncio: só se ouve o vento e o rumor dos oleados. Parisa
levanta a cabeça e apercebe-se de que o homem loiro a seguiu. Tem a
espingarda encostada ao peito de Anders para libertar Amira dos seus
braços.
– Nã o se brinca com pistolas, meninos – diz, com o seu sotaque
inlandê s.
Anders ita-o, a lito, lambendo o ranho do lá bio superior.
Quando se vira de lado, Parisa acha que a cabeça está prestes a
explodir-lhe. Respira, ofegante, força-se a abrir os olhos e vê Amira
aproximar-se dela com passos incertos para depois cair de joelhos.
– Amira – sussurra.
– Temos de ir embora – diz a irmã . – Levanta-te, vamos!
Parisa nã o consegue mexer-se. Pousa a face sobre o saibro e vê
chegar mais trê s refugiados pelo caminho. Os primeiros sã o um rapaz
magro de olhar sé rio e uma mulher idosa vestida com roupas
tradicionais.
Podiam ser a mã e e o irmã o mais novo, pensa. Se nã o tivessem sido
mortos num bloqueio de estrada no mesmo ano em que ela tinha
fugido.
Atrá s deles, repara num homem vestido com um fato de treino
brilhante.
Parisa sabe que já o viu, mas demora alguns segundos para
perceber que se trata de um jogador de futebol. Salim referia-lho
sempre que havia jogo, porque é originá rio da mesma cidade.
48
Joona tenta avaliar rapidamente a situaçã o, e quando o homem de
barba recomeça a mexer-se aponta-lhe a espingarda.
Deve ter havido um confronto entre a gente dos estaleiros, os
refugiados e Parisa.
A mulher mais velha continua sentada em cima da pilha de baterias
com o seu tricot, enquanto o pai está ajoelhado e manté m as mã os em
cima da cabeça.
– Temos de ir embora – diz Joona.
Trê s refugiados estã o a subir o caminho estreito entre a o icina e os
barcos.
Joona sente retumbar nos ouvidos uma sé rie de tiros e lança um
olhar rá pido em direçã o ao mar antes de se dirigir a Parisa.
– Só aqui estã o estes? – pergunta-lhe, ao reparar que a luz na casa
um pouco mais adiante se apagou.
– Só restavam a minha irmã e aqueles trê s – responde ela.
– Diz-lhes para nos seguirem.
Parisa, arquejante, pronuncia algumas frases rá pidas, e a irmã
repete-as em voz alta aos outros trê s, que se aproximam com um ar
interrogativo. A mulher hesita, mas o rapaz segura-lhe na mã o e tenta
acalmá -la.
– Vamos – diz Joona, apontando a espingarda ao homem ajoelhado.
O rapaz parece querer indicar qualquer coisa, depois diz algumas
palavras e en ia-se por baixo de um barco à vela branco. Ao im de
alguns instantes regressa com a pistola de Parisa. Tem um ar satisfeito e
sacode o pó dos joelhos depois de lhe entregar a arma.
Parisa apoia-se com o braço à s costas da irmã e estica a mã o livre.
A sorrir, o rapaz entra no cone de luz de um holofote, e nesse
mesmo instante a sua cabeça move-se bruscamente para o lado e a
metade direita do rosto desintegra-se.
Todos ouvem o ruı́do do esguicho de sangue, dos tecidos e dos
fragmentos de crâ nio do jovem que se espalham contra o casco
comprido do barco um segundo antes de ouvirem a explosã o de uma
espingarda.
– Sigam-me, sigam-me – grita Joona, tentando levar Parisa e a irmã
em direçã o à grande grua.
O estrondo aumenta como uma avalanche. As violentas rajadas de
ar provocadas pelas pá s de um helicó ptero empurram-nos em todas as
direçõ es, golpeando-os no peito e na garganta.
– Para o chã o – grita Joona, no meio do tumulto.
O helicó ptero das Forças de Intervençã o, escuro contra o cé u negro,
vira por cima deles. Um atirador especial está pendurado do lado de
fora da cabina, preso por cabos, com os pé s apoiados nos patins.
A velha mulher afegã rasteja para baixo dos barcos, enquanto o
jogador de futebol corre com as costas curvadas ao longo do muro em
direçã o à estrada. O homem que Joona atirou ao chã o roda em direçã o à
parede e desaparece no meio da erva alta.
Joona diz a Parisa e à irmã para se esconderem atrá s da grua, pousa
a espingarda no meio da erva ao lado da parede da o icina e tenta ligar
à Sä po.
A linha telefó nica nã o lhe devolve mais do que uma nota vibrante,
mas mesmo assim ele repete, por diversas vezes, que a operaçã o deve
ser interrompida e que no pequeno porto nã o há terroristas.
Anders levanta-se com a ajuda da muleta, aponta para o
helicó ptero, a sorrir, e aproxima-se da á gua. As copas das á rvores
estremecem e o ruı́do do rotor aumenta quando o helicó ptero vira
bruscamente atrá s do per il do bosque para depois voltar para trá s pelo
outro lado, alguns segundos depois, com uma lentidã o singular.
Os quatro re letores na parte inferior do helicó ptero brilham como
tochas brancas.
Joona vislumbra cinco homens da equipa pendurados por baixo do
helicó ptero com o equipamento usado para as operaçõ es de ex iltraçã o.
Todos eles estã o munidos de capacetes, coletes à prova de bala e
espingardas automá ticas.
Como bonecos negros pendurados por um io, mas singularmente
imó veis, aproximam-se do solo.
Enquanto os homens sobrevoam a á gua, as tá buas molhadas do cais
brilham à luz dos re letores.
Anders permanece parado na margem a rir-se e a olhar para o
helicó ptero.
O ruı́do das pá s aumenta ainda mais. Joona tenta novamente ligar à
Sä po, percebe pelo ecrã que algué m está a responder e entã o grita para
o telefone que nã o há terroristas no porto e que a operaçã o deve ser
interrompida.
– Parem imediatamente – repete.
Todos se esconderam, à exceçã o de Anders e da mulher idosa, que
continua sentada sobre a pilha de baterias. Escondido atrá s da
plataforma elevató ria, Joona vê que o helicó ptero se aproxima do chã o e
começa a sobrevoar a estreita faixa de areia.
Sobre a á gua forma-se um cı́rculo de espuma e as ondas sã o
empurradas em direçã o ao pontã o, fazendo-o dar um salto. Os
re letores estreitam a sombra da grua projetada no caminho de saibro e
na parede da o icina.
Uma rajada sú bita faz abanar o helicó ptero; o té cnico de voo tenta
afastar o cabo com o pé para nã o o deixar bater contra a cabina.
O ruı́do do rotor muda e torna-se mais profundo, ao mesmo tempo
que o helicó ptero começa a descer inclinado. Os cinco homens da
equipa oscilam, pendurados nas cordas. O oleado em volta de um barco
levanta-se e desaparece a voar na escuridã o.
Os homens tocam em terra e soltam-se imediatamente, depois
saltam para o lado e correm a proteger-se. O helicó ptero recupera
altitude, vira e afasta-se lentamente.
Ouve-se o tiro de uma arma nas proximidades, e a forte explosã o
ecoa na ilha em frente ao pequeno porto.
O disparo proveio de um ponto atrá s deles. Joona pensa que a Sä po
deve ter enviado mais atiradores, mas depois vê o helicó ptero perder
altitude e percebe o que está a acontecer.
Nas proximidades há mais algué m ligado à imigraçã o ilegal: apagou
a luz em casa e saiu a correr, depois disparou com uma caçadeira contra
o helicó ptero e acabou por atingir o piloto.
Joona observa o rotor abater-se contra a grua. Uma chuva de faı́scas
segue a explosã o ensurdecedora. O helicó ptero salta de lado como uma
borboleta incendiada em contacto com uma chama.
O segundo piloto nã o teve sequer tempo de ativar os seus pró prios
comandos.
O helicó ptero precipita-se para terra e abate-se contra a extensã o
de barcos cobertos com oleados. O ruı́do do rotor que ica preso e da
chapa amolgada faz vibrar o ar.
Seguem-se mais trê s explosõ es rá pidas, depois uma pá partida a
meio salta como uma lecha e passa a poucos milı́metros da cabeça de
Anders, que está ainda na margem.
A pá bate contra a parede de chapa da o icina e desfaz-se em
pedaços.
Uma bola de fogo amarela e ardente enche o cé u durante alguns
segundos. A onda incandescente da explosã o incendeia a erva e o limite
do bosque, e lambe as coberturas dos barcos a toda a volta.
49
Gustav Larsson, no comando da primeira equipa, correu para se
abrigar, juntamente com os dois pares de colegas, atrá s da base de
cimento de uma bomba de gasolina. Ouve um ruı́do sincopado e vê o
helicó ptero perder altitude. Adam lança um grito e levanta-se de um
salto.
– Fica em baixo – grita Gustav.
Adam avança apenas um passo em direçã o ao mar antes de ser
atirado ao chã o pela potente onda de choque da explosã o.
Cai para trá s, batendo com o capacete no solo.
As ondas de calor incendeiam as á rvores a toda a volta.
Lascas e fragmentos do rotor chovem sobre o pequeno porto,
apesar de inicialmente Gustav ouvir apenas um dé bil zumbido, quase o
sussurro de uma brisa ligeira que sopra por entre as folhas.
E quando grita aos outros para icarem no chã o, a sua voz ecoa
apenas dentro dele.
O painel da bomba de gasolina está a arder.
Gustav observa as chamas e imagina a leve crepitaçã o que elas
produzem; depois, de repente, volta a ouvir distintamente os ruı́dos
que o rodeiam, e entã o apercebe-se do caos em que se encontra
mergulhado e dos gritos desesperados de Adam ao lado dele.
– Markus, Markus!
Adam perdeu o irmã o, e a voz quebra-se-lhe quando se levanta.
Antes que Gustav consiga reagir, Adam aperta o gatilho da espingarda.
Esvazia o carregador inteiro a apontar em direçã o aos barcos de luxo na
doca seca, e depois abandona a arma, que ica a oscilar agarrada à
correia.
– Deixa-te estar no chã o, há um atirador – grita Gustav.
Adam tira os ó culos de proteçã o e ica a olhar para o fogo. Os
barcos inclinam-se e ardem, e ouvem-se pequenas explosõ es. Jamal
abandona a sua posiçã o, arrasta Adam para o chã o e segura-o.
Com as mã os tré mulas, Gustav tira do bolso o radiotransmissor e
contacta o chefe da operaçã o, Janus Mickelsen.
Estilhaços de vidro e fragmentos de madeira rodopiam no ar.
A equipa perdeu o helicó ptero e quatro homens.
Gustav recorda as faı́scas que explodiram no escuro no momento
em que o rotor atingiu a grua.
Parecera-lhe que tinham sido geradas pelo toque brilhante de uma
varinha má gica.
Conté m as lá grimas enquanto repete os nomes dos colegas que
receia estarem mortos.
– Os grupos trê s e quatro estã o a chegar, mas você s devem intervir
imediatamente para capturar ou neutralizar os terroristas – diz Janus.
– E o Joona? – pergunta Gustav. – O que aconteceu ao Joona Linna?
– Nã o recebemos mais notı́cias dele desde que chegou ao local –
responde Janus. – Devemos presumir que esteja morto.
– Nã o consigo perceber se há refé ns ou se…
– E prová vel que haja algumas perdas entre os civis – interrompe-o
Janus. – Os reforços estã o achegar, mas tê m de fazer os possı́veis para
deter os terroristas no local e imediatamente… E uma ordem taxativa.
Gustav encerra a comunicaçã o via rá dio, tenta respirar com calma e
observa os homens à volta dele. Jamal morde o lá bio inferior. August
boceja, como de costume, e Sonny tem o olhar inexpressivo de um
pugilista.
Adam está ajoelhado e, por entre as lá grimas, insere um novo
carregador na espingarda automá tica. O irmã o mais velho, Markus, era
o té cnico de voo do helicó ptero, e tinha manobrado o cabo de cima de
maneira a que os rapazes da equipa conseguissem chegar à praia
imediatamente antes de o helicó ptero se precipitar.
– Ouçam-me – começa Gustav, abrindo a arma. – Temos a ordem
taxativa de neutralizar todos os terroristas.
– Quando é que chegam os reforços? – pergunta Jamal.
– Daqui a pouco, mas nó s temos de entrar em açã o imediatamente
– responde Gustav. – Adam, tu icas aqui.
O jovem passa a palma da mã o pelo rosto, olha para ele e abana a
cabeça.
– Eu també m vou – diz, com uma voz rouca. – Estou bem.
– Acho que fazias melhor em nã o te mexer.
– Você s precisam de mim – insiste Adam.
– Entã o vais ser o quarto, e eu sou o ú ltimo – diz Gustav, sentindo
apertar-se-lhe o estô mago por um mau pressentimento. – Jamal, é a tua
vez. Conduz o grupo.
– OK – responde Jamal.
– Nã o corram riscos e tomem atençã o a trezentos e sessenta graus
à vossa volta. Você s conseguem, vamos lá .
Jamal indica a direçã o, levanta-se, mantendo as costas curvas, e
depois corre pela erva em chamas até aos barcos; faz sinal aos outros
para o seguirem e depois prossegue por uma passagem estreita entre
duas ilas de veleiros luxuosos.
Como um ú nico corpo lexı́vel, a equipa avança tentando garantir a
segurança em cada canto. E difı́cil conseguir ter uma visã o completa do
pequeno porto, e antes nã o houve tempo para estudar os mapas. Atrá s
deles erguem-se em direçã o ao cé u as chamas do helicó ptero e dos
barcos incendiados. O fogo constitui uma fonte de luz suplementar, mas
ao mesmo tempo torna oscilantes todos os contornos. As labaredas
re letem-se sobre numerosas superfı́cies metá licas e grandes sombras
tremem sobre os cascos dos barcos para depois desaparecerem de
repente.
Em algum lugar à frente deles está situado um atirador, mas é difı́cil
perceber até que ponto os elementos da equipa estã o expostos. Talvez o
homem armado consiga vê -los nitidamente à claridade das chamas, ou
talvez se confundam com o negro dos barcos e do terreno.
Gustav obriga-se a nã o pensar nos colegas que acabaram de
morrer: precisa de se manter completamente lú cido e concentrado.
O grupo avança com as costas curvadas pela passagem estreita.
Como habitualmente, examinam todos os â ngulos e todas as possı́veis
trajetó rias.
Gustav volta-se para examinar rapidamente a á rea atrá s deles. O
terreno está seco por baixo dos barcos, e o lixo transportado pelo vento
amontoou-se em volta das estruturas de madeira.
O cheiro a queimado é cada vez mais intenso.
As labaredas altas re letem-se sobre os capacetes.
De repente, Jamal faz sinal aos outros para pararem, inclina-se
ligeiramente e pousa a mã o esquerda no antebraço direito: um sinal
convencionado para avisar da presença de inimigos.
Jamal já nã o tem a certeza, mas crê ter entrevisto um rosto pelo
canto do olho.
O coraçã o bate-lhe com tanta força que lhe faz doer o peito.
Baixa-se com lentidã o sobre um joelho e espreita para baixo de um
casco. Talvez se tratasse apenas do re lexo ardente do fogo sobre um
leme branco.
Jamal pousa o dedo no gatilho, avança cautelosamente e tenta
espreitar para lá da parte da frente de um casco arranhado.
No meio de uma mirı́ade de reservató rios e traves, vê a parede de
um edifı́cio de chapa semelhante a um hangar e uma plataforma
elevató ria amarela.
Alguma coisa se move ali perto, por baixo do barco ao lado dele.
Um gato negro foge a correr e o dedo de Jamal treme sobre o
gatilho.
Flocos de cinza ardente caem entre os barcos em seco.
Gustav manté m-se no fundo da ila e vê que Jamal continua a
avançar. Queria dizer-lhe que faria melhor em controlar o lado direito.
Jamal olha para a esquerda. Um oleado azul move-se ao vento e a
á gua escorre para o chã o com um som de campainha.
Subitamente, dois olhos cintilam ao lado do edifı́cio. Jamal desloca
a arma de repente e enquadra um rosto na mira.
Algué m geme ao lado dele. E Adam, que tropeçou numa quilha
saliente. O cano da espingarda bate contra uma estaca com um ruı́do
metá lico.
Jamal nã o sabe como foi possı́vel que o seu dedo tivesse resistido
ao impulso de carregar no gatilho. A adrenalina faz-lhe gelar o sangue
quando se apercebe de que podia ter matado uma velhota com umas
agulhas de tricot nas mã os.
Apoia-se com a mã o a um casco branco e expira.
Gustav vira-se e perscruta novamente a á rea atrá s deles. O fogo
continua a alastrar e farrapos de plá stico em chamas caem na á gua a
crepitar. Uma potente rajada de vento alimenta as lı́nguas de fogo, que
começam a devorar outros barcos numa ú nica vaga.
Jamal faz sinal aos outros para se porem em movimento e Gustav
olha para a frente, para lá dos colegas, em direçã o ao parque de
estacionamento. A esquerda, no meio das ervas daninhas, distingue-se
a velha carcaça de um automó vel. Cardos e arbustos despontam do
motor.
Adam murmura qualquer coisa para si mesmo, depois extrai o
carregador, examina-o e volta a pô -lo no sı́tio com um leve estalido.
Um homem com um fato de treino preto sai de repente de trá s da
carcaça do carro.
Sonny reage imediatamente e dispara seis tiros.
Os projé teis trespassam o peito do homem e o sangue esguicha
para o ar; o braço esquerdo é arrancado, mas ica pendurado no tecido
do casaco e enrola-se como uma echarpe em volta do pescoço do
indivı́duo no momento em que ele cai, rolando sobre si mesmo.
No mesmo instante, Jamal cai ao chã o. Estende-se de lado, como se
tencionasse descansar.
Gustav nã o consegue ver o que aconteceu. Sonny vai ter com ele a
correr, e de repente uma labareda cintila diante deles.
A explosã o do disparo é breve, mas ensurdecedora.
O projé til trespassa o rosto de Sonny e sai pela nuca. Gustav vê o
sangue esguichar sobre Adam. O capacete escorrega para o chã o e o eco
do tiro ainda nã o se apagou quando Sonny cai para trá s.
Gustav atira-se para o chã o e rola para debaixo de um grande barco
à vela. O cheiro da terra enxuta e da erva seca enche-lhe as narinas.
Arrasta-se até um bloco de cimento ao lado da proa e abraça a
espingarda.
Do corpo de Sonny chega um sibilo, quase um assobio ligeiro.
Atravé s da mira, Gustav espreita na direçã o em que lhe pareceu
descortinar a faı́sca. O seu olhar regista o terreno cinzento, alguns
barcos mais pequenos, um caixote de lixo. Todas as coisas tê m um
aspeto plú mbeo e parecem recobertas de pinceladas de cera. A mira
desliza sobre os arbustos baixos, sobre um saco de lixo amarrado e
sobre uma lata de verniz vazia.
Adam está sentado no chã o com Sonny nos braços. Tem o sangue
do colega espalhado por todo o peito.
– Deus do cé u… Sonny – geme.
Gustav treme e respira, e continua a inspecionar a zona atravé s da
mira. As ervas altas estremecem ao vento e a toda a volta os locos de
cinza nã o param de descer. O cheiro do fumo é sufocante. Atrá s dele, os
barcos em chamas implodem. Os cascos chocam uns contra os outros e
os bidõ es de á gua pendurados no oleado que cobre o veleiro por cima
dele começam a abanar.
Com o coraçã o que começa a ribombar aceleradamente no seu
peito, Gustav descortina o cano de uma espingarda atrá s de uma palete
de telhas. Um arbusto irregular abana ao vento, imediatamente atrá s do
atirador.
Gustav limpa o suor das sobrancelhas para conseguir ver melhor,
depois endireita os ó culos de proteçã o. E um ó timo atirador, mas
naquele momento tem a impressã o de estar a tremer demasiado.
Lentamente, regula a mira para focar o ponto em que supõ e que se
encontrará a cabeça do atirador quando este se chegar à frente para
disparar de novo.
– Morreram todos – diz Adam, itando a escuridã o. – Acho que
morreram todos.
A mira de Gustav é sacudida por um pequeno fré mito e desloca-se
para as telhas. Nã o lhe pode responder, naquele momento tem de
manter a concentraçã o.
Tanto ele como Adam estã o expostos.
Gustav sabe que dispõ e de poucos segundos antes de o atirador
voltar a abrir fogo.
Algures, uma mulher está a gritar.
Um bidã o pendurado numa corda oscila em frente à mira.
Gustav observa o cano da espingarda do atirador deslocar-se
ligeiramente para a esquerda, depois uma cabeça ica visı́vel durante
alguns segundos antes de desaparecer outra vez. O cano baixa e para.
Depois volta a aparecer a cabeça, o olho encostado à mira à procura de
um novo alvo.
Com extrema lentidã o, Gustav coloca o ino retı́culo em cruz da
mira no centro do rosto e carrega no gatilho.
A G36 recua contra o seu ombro, e o atirador desaparece. Gustav
fecha os olhos vá rias vezes, a tentar abrandar a respiraçã o. A arma
desapareceu. Por um instante, pensa ter falhado o alvo, mas depois
repara nas gotas de sangue escuro que escorrem dos ramos do arbusto
por trá s do esconderijo.
50
Joona encontra-se ao lado da plataforma elevató ria e está a
observar as lı́nguas de fogo e o fumo negro da cor do petró leo que se
contorcem e sobem para o cé u com uma estranha inquietaçã o.
Parisa abraça a irmã , que se aninhou no chã o com medo. Tem as
mã os apertadas contra as orelhas e chora descontroladamente como
uma criança.
– Pergunte-lhe se está em condiçõ es de correr. Temos de tentar
chegar ao bosque – diz Joona, agitado.
– Só é preciso que encontre a Fatima, a mulher que estava aqui há
pouco – diz Parisa. – Nã o apodemos abandonar. Salvou a minha irmã ,
dizendo a toda a gente que era ilha dela para a deixarem em paz.
– Onde é que ela está , sabe?
– Tinha de ir buscar as coisas dela… Está a ver aquele barco grande
sem oleado? – diz Parisa, indicando-lho.
– E demasiado perigoso.
Subitamente, ouvem-se os disparos de uma arma automá tica: um
carregador inteiro é despejado nas proximidades da margem. Os
projé teis enterram-se num material macio e ressaltam contra as traves
de aço dos suportes dos barcos.
Joona tenta descobrir os homens das Forças de Intervençã o.
Ouvem-se algumas explosõ es dé beis; fragmentos de vidro saltam
pelo ar enquanto os barcos se inclinam.
Joona pega no telefone, liga novamente a Janus e apercebe-se de
que Parisa deixou a irmã lavada em lá grimas e se afastou com a
espingarda de chumbos. Corre com as costas curvadas pelo caminho de
saibro ao longo da fachada da o icina, na direçã o do barco que indicou.
Joona pega na pistola e desloca o slide para trá s.
O fogo que envolve o helicó ptero ergue-se a vibrar e o fumo parece
fundir-se no cé u negro.
Joona vê Parisa abrandar no momento em que se está a aproximar
da esquina da o icina. A sua sombra tem um contorno irregular contra a
parede de chapa ondulada.
A irmã acalmou-se e continua sentada com as mã os contra as
orelhas.
Parisa espreita em direçã o ao mar, apoia-se com a mã o à parede e
prepara-se para correr atravé s de um espaço aberto coberto de saibro,
o ú ltimo troço que a separa do barco.
Joona vê -a sair do fosso e espreitar para o outro lado da esquina. De
repente, o seu corpo é percorrido por um fré mito, depois cai e ica
sentada no chã o com o olhar perdido no vazio.
De repente, cai para trá s, bate com a cabeça no chã o e é arrastada
pelos pé s.
Quase parece que algum animal selvagem a abateu para a levar
para a sua toca.
Com a pistola escondida contra o corpo, Joona corre ao longo da
passagem de saibro ao lado da parede, para e aponta a arma, enquanto
se aproxima da esquina atrá s da qual a mulher desapareceu.
Fica à escuta e sente o sopro do calor fervilhante do fogo bater-lhe
no rosto.
Pedaços de plá stico a arder chovem sobre ele.
Rapidamente, dobra a esquina e inspeciona a zona; vê a rampa de
cimento e as portas de correr da o icina, com cinco metros de altura.
Os troncos dos pinheiros na margem do bosque re letem o brilho
vermelho do fogo.
Vê -se uma roulotte branca atrá s de uma rede de galinheiro, meio
escondida no denso arvoredo.
Joona chega a correr a uma pequena porta de serviço. Baixa a
maçaneta, abre-a e espreita para o interior da o icina.
No escuro, as má quinas reluzem de uma maneira lú gubre; mais
adiante distingue-se um iate a motor azul-escuro com a proa amassada.
Joona entra na o icina rapidamente, inspeciona os cantos mais
pró ximos e corre com o corpo dobrado até um grande torno.
O cheiro de metal, ó leo e solventes impregna o ar.
A porta atrá s de si fecha-se com um estalido.
Atravé s das junturas e das placas das paredes de chapa vislumbra-
se o incê ndio.
Joona avança em direçã o ao barco, inspecionando todos os cantos
perigosos.
Um homem lança um berro, depois grita:
– Es só um animal, nã o é s nada, é s um raio de um animal.
Joona avança a correr, baixa-se e descortina-os ao fundo da o icina.
Parisa está pendurada de cabeça para baixo, com os pé s atados a
uma roldana. O camisolã o pesado desceu-lhe sobre a cabeça. O elá stico
branco do soutien aperta-lhe as costas nuas.
O homem de barba ainda está a perder sangue pela boca. Parisa
tenta ajeitar a camisola, e quando ele lha arranca começa a oscilar.
– Eu corto-te essa cabeça, porra – grita, erguendo o machado.
Joona nã o pode disparar por causa do iate, portanto começa a
correr na direçã o de Parisa e do homem de barba. No escuro, por baixo
do casco, mal consegue vê -los.
Parisa tenta gritar, apesar de ter a boca tapada com ita adesiva. O
homem acompanha-lhe os movimentos, deslocando-se de um lado para
o outro.
– Isto é Guantanamo – grita, e vibra um golpe violento com o
machado.
A lâ mina pesada atinge o ombro da mulher por trá s, enterrando-se
no mú sculo. O corpo de Parisa começa a rodar e o sangue cai no chã o.
Joona corre, ultrapassa alguns barris azuis de ó leo queimado, rola por
baixo do barco e consegue vê -los novamente.
– Afasta-te! – grita.
O homem está atrá s de Parisa e limpa o sangue da barba. Uma
perna das calças de Parisa escorregou-lhe até ao joelho, enquanto ela
continua a rodar e a oscilar para trá s e para a frente, respirando com
di iculdade pelo nariz e tentando proteger-se com as mã os.
– Se nã o atiras esse machado para longe, eu disparo – grita Joona,
afastando-se de lado para identi icar um ponto vulnerá vel para onde
fazer pontaria.
O homem recua alguns passos e ita Parisa, que se abana e faz
tremer a corrente.
– Olha para mim, nã o olhes para ela… Olha para mim e afasta-te –
diz Joona, aproximando-se, com o dedo cautelosamente pousado no
gatilho.
– Merda, sã o só animais – murmura o homem.
– Pousa o machado no chã o.
O homem está prestes a obedecer quando se ouve uma potente
explosã o e uma chuva de bolinhas trespassa o teto de chapa.
Minú sculas esferas de chumbo ressaltam entre o teto e as paredes,
depois vã o perdendo velocidade e caem sobre o pavimento da o icina.
– Nã o te mexas – diz o pai do homem atrá s de Joona, que levanta
entã o a pistola e a mã o livre por cima da cabeça. Ao im de todos
aqueles anos, apesar do ó timo treino, Joona cometeu o mesmo erro que
custou a vida ao pai. Deixou-se arrastar pelos acontecimentos e pela
vontade de salvar algué m, esquecendo-se por alguns segundos de olhar
para trá s das costas.
O ventre de Parisa move-se ao ritmo da sua respiraçã o
aterrorizada. O soutien branco está manchado de sangue e uma poça
escura alastra por baixo dela. O homem de barba está ofegante e tem o
machado apoiado no ombro.
– Deita fora a pistola – diz o pai.
– Pouso-a no chã o?
Joona começa a virar-se e vislumbra a sombra do homem sobre
umas latas de verniz.
– Deita-a fora – responde-lhe.
Joona vira-se lentamente e vê -o, a quatro metros dele. Está ao lado
de um motor diesel pendurado numa grua no teto e tem a espingarda
apontada a ele. Com cautela, Joona baixa a pistola como se estivesse
pronto para se render, enquanto, na realidade, está só à espera do
momento certo para abrir fogo. Vai fazer pontaria exatamente por baixo
do nariz, de forma a destruir instantaneamente a protuberâ ncia anelar
e grande parte do bolbo raquidiano.
– Deixa-te de brincadeiras – avisa o homem.
– Para que lado quer que a atire?
– Devagar… Isto é uma espingarda de pressã o de ar, nã o vou falhar
o alvo.
– Estou a fazer aquilo que me manda – responde Joona.
O rosto do homem endurece e o cano da espingarda desloca-se
ligeiramente para a direita. Um re lexo escuro alarga-se sobre o motor
pendurado na grua.
Joona ouve os passos do ilho atrá s de si, ica imó vel e depois salta
para o lado no momento em que o golpe se abate sobre ele. O machado
falha o alvo, mas a ponta da lâ mina faz-lhe um corte no ombro.
Joona volta-se para o ponto de onde partiu o golpe, en ia o cotovelo
esquerdo de lado no pescoço do ilho e parte-lhe a clavı́cula.
O machado roda no ar, atinge um macaco hidrá ulico e cai a tilintar
sobre o chã o de cimento. Joona aperta o braço em volta do pescoço do
homem, ergue-o de lado e atira-o ao chã o, utilizando-o como escudo
enquanto aponta a pistola ao pai.
O homem já pousou a coronha da espingarda no chã o e en iou o
cano na boca.
– Nã o faça isso – grita Joona.
O velho inclina-se e consegue com alguma di iculdade chegar ao
gatilho. O interior das faces ilumina-se no instante em que se ouve a
explosã o. A cabeça salta para trá s, e fragmentos de crâ nio e massa
cinzenta sã o projetados em direçã o ao teto e voltam a cair no chã o atrá s
dele.
O corpo cai para a frente e a espingarda para o lado.
– Que raio aconteceu? – exclama o ilho.
Joona amarra-lhe rapidamente os braços e as pernas com um
arame grosso, levanta-o e empurra-o contra o motor a diesel.
– Eu mato-te – grita histericamente o ilho do velho.
Joona enrola duas vezes o arame em volta do pescoço peludo do
homem e do eixo robusto do motor, depois pega no comando revestido
de borracha que está em cima de uma mesa coberta de chaves-inglesas
e levanta o motor até que o homem é obrigado a icar em bicos de pé s.
Lá fora ouvem-se tiros de espingarda, seguidos de disparos de
armas automá ticas.
Joona faz descer rapidamente Parisa até ao chã o. Repete-lhe vá rias
vezes que ela se vai safar, depois fá -la virar-se de barriga para baixo,
limpa-lhe apressadamente com as costas da mã o o sangue do ombro e
fecha a ferida com ita adesiva.
– Vai conseguir – diz-lhe, para a tranquilizar.
Acrescenta delicadamente mais algumas camadas de ita adesiva.
Sabe muito bem que nã o vã o aguentar muito tempo, mas se conseguir
levá -la imediatamente para o hospital, a ferida nã o será mortal.
Parisa tenta levantar-se, mas Joona diz-lhe para icar imó vel.
– Eu só queria ir buscar a Fatima – diz ela, tentando normalizar o
ritmo descompassado da respiraçã o.
Põ e-se de joelhos e descansa durante alguns instantes.
Joona ampara-a, e ela treme e vacila por causa da hemorragia; ao
atravessarem a o icina, os joelhos ameaçam ceder por vá rias vezes.
Saem para o ar frio. O pequeno porto está todo a arder e as rajadas
de vento fazem oscilar as chamas.
Joona segura a pistola com uma mã o enquanto sobem o estreito
caminho de saibro ao longo da parte lateral da o icina.
Quando Amira os vê , levanta-se ao lado da plataforma elevató ria e
dirige-se a eles com o rosto cinzento, dominado por uma expressã o
indecifrá vel. Tem um olhar ausente e as pupilas dilatadas. Joona ajuda
Parisa a sentar-se no chã o e põ e-lhe o casaco em volta dos ombros.
Gustav Larsson está no meio do caminho, a pouca distâ ncia deles. O
pesado colete à prova de bala e a espingarda estã o pousados no chã o.
A operaçã o foi interrompida e ele está a informar o comandante,
com a voz quebrada, que a situaçã o está sob controlo e que é necessá ria
a intervençã o de ambulâ ncias e bombeiros. Assente, murmura algumas
frases breves e baixa a mã o que segura o radiotransmissor ao lado do
corpo.
– Já estã o a vir as ambulâ ncias? – grita Joona.
– As primeiras vã o chegar daqui a dez minutos – responde Gustav, a
olhar para ele com olhos vı́treos.
– Muito bem.
– Meu Deus… Sinto muito, sinto muito… Joona, eu falhei.
– Vai icar tudo em ordem.
– Nã o, de maneira nenhuma, nada vai icar em ordem.
Alguns metros mais adiante, a velha está sentada na pilha de
baterias e continua a fazer tricot com uma expressã o desesperada no
rosto. O ilho mais novo está no chã o e tem as mã os amarradas com
uma faixa.
– Deram-nos ordens para intervir imediatamente – diz Gustav,
limpando as lá grimas da face.
– Quem foi?
Ouve-se uma forte explosã o, e Gustav avança um passo.
O tiro ressoa entre as casas, enquanto o fumo do incê ndio se
dissolve no ar.
A velha empunha a pistola de Parisa com as duas mã os. As agulhas
de tricot estã o pousadas no chã o diante dos seus pé s.
Dispara novamente, e Gustav tenta apoiar-se à parede com a mã o. O
sangue escorre-lhe do ventre e de uma ferida no antebraço. Adam, que
já se encontra ao lado da mulher, arranca-lhe a pistola e faz a velha cair
ao chã o, depois parte-lhe o braço à altura do ombro e empurra-a contra
o saibro com a bota.
Quando Gustav começa a cair, Joona segura-o e ajuda-o
delicadamente a deitar-se no chã o. Tem no rosto uma expressã o a lita e
mexe a boca como se estivesse a tentar dizer alguma coisa.
Uma luz elé trica acende-se violentamente diante dos seus olhos:
uma chama oxı́drica distante, composta quase por minú sculas faı́scas
que se espalham em todas as direçõ es e depois desaparecem.
51
Joona esperou duas horas no corredor à porta da sala de operaçõ es
para onde levaram Gustav Larsson, mas ao im da hora de visita os
mé dicos nã o foram ainda capazes de lhe dizer se vai sobreviver.
Agora está a deixar o carro no cimo de Tulegatan; sente o ar fresco
que sobe do parque e recorda que algumas cenas de um romance de
Maj Sjö wall e Per Wahlö ö foram passadas ali, num apartamento virado
para o verde de Vanadislunden.
Enquanto desce a colina em direçã o ao hotel, o efeito da anestesia
local na ferida do ombro começa a desvanecer-se: fecharam-lha com
onze pontos e agora a dor começa a aumentar.
O ombro do blusã o está rasgado, manchado de sangue e
remendado com um pedaço de ita adesiva. Nas narinas sente ainda o
cheiro do fumo, e tem uma ferida na raiz do nariz e arranhõ es nos nó s
dos dedos.
A funcioná ria da receçã o ica a olhar para ele de boca aberta e olhos
arregalados. Joona sabe que está com um aspeto completamente
diferente daquele que tinha no momento em que se apresentou para o
check-in.
– Um dia pesado – diz.
– Percebo – responde a mulher, a rir de uma maneira
descontrolada.
Nã o pode deixar de perguntar se tem mensagens, apesar de
duvidar da possibilidade de Valeria ter ido ter com ele.
A rececionista veri ica primeiro no computador e depois no cacifo
das chaves, mas obviamente nã o há nada.
– Posso perguntar à Sandra – sugere.
– Nã o é preciso – diz Joona rapidamente.
No entanto, é obrigado a esperar enquanto a mulher fala com a
colega. Observa o balcã o vazio, as linhas claras dos riscos no verniz, e
pensa que, pela parte que lhe toca, a missã o está terminada.
Todos eles estavam conscientes de que a in iltraçã o e a operaçã o
eram um tiro no escuro, mas nã o havia alternativas: o tempo de que
dispunham era muito pouco.
Joona fez todos os possı́veis por ajudar a Sä po, e gostaria de poder
dizer a Valeria que, a partir daquele momento, é apenas um recluso
normal a gozar uma licença.
– Nada, sinto muito – diz a mulher, a sorrir, quando regressa. –
Ningué m perguntou por si.
Joona agradece-lhe e sobe até ao quarto. Deixa os sapatos cobertos
de lama em cima de um jornal, depois prepara um banho quente e
mergulha na á gua, mantendo o braço ferido a seco.
O telemó vel está pousado no minú sculo nicho de azulejo o lado da
banheira. Pediu ao mé dico para lhe ligar assim que houvesse notı́cias de
Gustav.
Algumas gotas caem lentamente da torneira e os ané is de á gua
alargam-se sobre a superfı́cie para depois desaparecerem. A tepidez
distende os membros de Joona, e a dor atenua-se.
O signi icado da mensagem de Salim Ratjen era, de facto, muito
simples: a entrada ilegal no paı́s da irmã de Parisa tinha tido lugar antes
do previsto. Transferiram-no de Hall e isolaram-no do mundo exterior
antes que ele tivesse conseguido comunicá -lo à mulher.
O casal de idosos, juntamente com os trê s ilhos, tinha
transformado o estaleiro num ponto de trá ico de seres humanos.
Quando Joona Linna deixou de dar informaçõ es, o chefe da unidade
operativa, Janus Mickelsen, receou perder os contactos com a cé lula
terrorista.
Neutralizar a ameaça sobre a naçã o era uma prioridade absoluta.
Por esse motivo, foi decidido transferir para o pequeno porto o
primeiro grupo de Forças de Intervençã o.
Janus respondeu à s primeiras chamadas de Joona mas – conforme
ele mesmo declarou – nã o conseguiu ouvir mais do que alguns ruı́dos
confusos.
Do helicó ptero, os homens da equipa aperceberam-se da presença
de algumas pessoas ao lado de um edifı́cio de chapa. Dois corpos jaziam
no chã o e um terceiro indivı́duo estava de joelhos. Foram obrigados a
tomar a decisã o mais acertada num ú nico segundo, e depois, quando o
atirador viu atravé s da mira que um homem jovem estava a apontar
uma pistola a uma mulher, abriu fogo.
A equipa nã o podia saber que as duas pessoas deitadas no chã o
eram os homens do estaleiro e que o jovem com a pistola era um
fugitivo do Afeganistã o dos talibã s.
O terceiro ilho do casal foi acordado pelos ruı́dos do lado de fora
da o icina e foi buscar uma caçadeira com mira laser ao armá rio das
armas. Depois deslizou para fora de casa e escondeu-se atrá s de uma
palete cheia de telhas.
Depois que o helicó ptero fez descer a equipa até ao solo, o ilho
começou a disparar e atingiu o piloto no peito.
Os outros elementos da tripulaçã o morreram na explosã o, dois dos
membros da equipa operativa foram mortos durante o con lito armado
e dois refugiados foram atingidos por engano.
No estaleiro nã o havia terroristas.
A operaçã o tinha sido uma catá strofe.
O pai suicidou-se, o ilho do meio foi morto pelos homens da equipa
e a mã e foi presa juntamente com os outros dois ilhos.
O responsá vel operativo, Gustav Larsson, sofreu ferimentos graves
e estava ainda em condiçõ es crı́ticas. Parisa Ratjen, por sua vez, ia
conseguir recuperar sem lesõ es permanentes. A irmã , Amira, e a
refugiada mais velha pediram asilo polı́tico na Sué cia.
Joona emerge da á gua quente, seca-se e telefona a Valeria.
Enquanto o telefone toca, observa a rua. Um grupo de ciganos está a
preparar uns catres no passeio à porta de uma mercearia.
– Julgo ter percebido que nã o vens – diz Joona, quando inalmente
Valeria atende.
– Nã o, é que…
Deté m-se, com um profundo suspiro.
– Em qualquer caso, a minha missã o para a Polı́cia já terminou –
explica-lhe ele.
– Correu bem?
– Eu nã o diria isso.
– Entã o ainda nã o acabaste – diz a mulher, em voz baixa.
– Nã o existem respostas simples, Valeria.
– Percebo, mas sinto necessidade de dar um passo atrá s – diz ela. –
Porque tenho uma vida que funciona, os miú dos, o horto… E nã o
gostaria de te parecer banal, mas sou adulta e em boa verdade as coisas
estã o muito bem assim como estã o, mesmo sem um amor empolgante.
Interrompe-se de novo, Joona percebe que está a chorar. Algué m
liga a televisã o no quarto ao lado.
– Desculpa, Joona – continua Valeria, com um suspiro tré mulo. – Eu
tinha acreditado, mas na realidade as coisas entre nó s nunca iriam
funcionar.
– Quando eu for um horticultor diplomado, espero, em qualquer
caso, poder fazer um está gio contigo – diz ele.
Valeria esboça uma gargalhada rá pida, mas tem a voz quebrada
pelo pranto. Funga antes de responder.
– Manda o pedido, depois logo se vê .
– Vou fazer isso.
Ficam outra vez em silê ncio.
– Agora vai dormir – diz Joona, com um io de voz.
– Está bem.
Desejam boa-noite um ao outro, icam em silê ncio por um instante,
depois despedem-se outra vez e inalmente desligam.
Na rua, um grupo de rapazes sai de um pub e dirige-se a Sveavä gen.
A pensar em como é estranho nã o se encontrar atrá s das grades,
Joona veste-se e sai para o ar fresco da cidade. Grupos de pessoas estã o
ainda sentados à s mesas ao ar livre ao longo de Odengatan. Joona
caminha até à Brasserie Balzac, ocupa uma mesa na rua e consegue
encomendar um linguado em manteiga mesmo antes de a cozinha
fechar.
Os inqué ritos preliminares da Polı́cia vã o prosseguir sem ele.
Ainda nã o foi dita a ú ltima palavra.
O assassino, provavelmente, nã o tem qualquer ligaçã o a
organizaçõ es de cariz terrorista.
A razã o pela qual matou o ministro dos Negó cios Estrangeiros é de
natureza completamente diferente.
E alguma coisa o leva a comportar-se de uma maneira singular:
apesar do excelente treino militar, ica a ver a sua pró pria vı́tima esvair-
se em sangue durante mais de quinze minutos e deixa uma testemunha
com vida.
Sabe onde se encontram as câ maras de vigilâ ncia e usa um passa-
montanhas, mas por qualquer razã o amarrou umas tiras de tecido em
volta da cabeça.
Se nã o tem antecedentes por homicı́dio, naquela sexta-feira à noite
devia ter conseguido ultrapassar os postos de bloqueio. A sua excitaçã o
devia ter aumentado até se transformar numa sensaçã o de
omnipotê ncia, e agora nã o há mais nada que o impeça de atacar
novamente.
52
De um ponto ao fundo do cemité rio de Hammarby, a norte de
Estocolmo, conseguem ver-se as extensõ es de campos e o lago rodeado
de canas amarelecidas.
Apesar de a cidade icar muito pró xima, aqui tudo parece ter
permanecido como era há mil anos.
Disa repousa na ila interna, ao longo de um murete baixo, ao lado
da campa de uma criança que tem a marca de uma pequena mã o sobre
a lá pide. Joona viveu com ela durante muitos anos depois da separaçã o
de Summa, e nã o passa um minuto sem que lhe sinta a falta.
Deita fora as lores murchas, muda a á gua e en ia na jarra o ramo
fresco.
– Sinto muito por nã o ter vindo ter contigo durante tanto tempo –
diz, enquanto apanha as folhas que caı́ram na campa. – Lembras-te de
te ter falado da Valeria, a rapariga por quem eu estava apaixonado no
liceu… Neste ú ltimo ano escrevemos cartas um ao outro e encontrá mo-
nos vá rias vezes, mas agora já nã o sei dizer o que é que vai acontecer
entre nó s.
Uma rapariga passa a cavalo pelo caminho do outro lado do murete.
Dois pá ssaros levantam voo, traçando um arco amplo sobre um enorme
bloco de pedra na margem do bosque.
– A Lumi está a viver em Paris, nã o achas incrı́vel? – continua Joona,
a sorrir. – Dá -se lá bem, ao que parece. Está a trabalhar num projeto
para a escola, um ilme sobre os refugiados em Calais…
Pelo caminho de saibro, um ruı́do chega até ele, e uma igura com
umas brilhantes tranças de cabelo loiro aproxima-se a pé , vinda da
igreja. Para ao lado de Joona e ica alguns instantes em silê ncio.
– Acabei de falar com o mé dico – diz inalmente Saga Bauer. – O
Gustav ainda está sob o efeito da anestesia. Vai sobreviver, mas tem de
ser submetido a vá rias operaçõ es e vã o ser obrigados a amputar-lhe um
braço.
– A coisa mais importante é que se safe.
– Pois – suspira Saga, dando um pontapé no saibro com a sapatilha.
– O que é ?
– O Verner já abafou tudo. O caso inteiro foi declarado top secret e
ningué m pode aceder aos documentos. Caraças, nem sequer posso
consultar os meus relató rios… Se a direçã o viesse a saber do material
que guardei no meu computador pessoal, perdia o emprego… O Verner
impô s um nı́vel de con idencialidade tã o alto que já nem sequer ele
pró prio tem acesso a qualquer dado.
– E quem é que tem, entã o? – pergunta Joona, com um sorriso.
– Ningué m – responde Saga, a sorrir també m, mas a sua expressã o
ica logo sé ria.
Caminham para fora do cemité rio e passam ao lado da pedra rú nica
com as serpentes entrelaçadas e o anjo que está colocada ao lado da
entrada.
– A ú nica coisa que descobrimos, depois da mais importante açã o
antiterrorista da histó ria sueca, é que nada nesta histó ria faz suspeitar
de uma ligaçã o ao terrorismo – diz Saga, parando no parque de
estacionamento.
– O que foi que correu mal? – pergunta Joona.
– O assassino referiu o Ratjen… e nó s ligá mos isso a uma conversa
intercetada pelos serviços de segurança de Hall… Eu li a traduçã o toda,
o Salim Ratjen falava de trê s grandes festas… e a data da primeira
coincidia com a do homicı́dio do ministro William Fock.
– Eu sei.
Saga salta para o assento da moto suja.
– Mas as festas referiam-se simplesmente à chegada à Sué cia dos
parentes do Ratjen – prossegue.– Nada demonstra que se tenha
radicalizado na prisã o, e nã o encontrá mos nenhuma ligaçã o a grupos
islamitas ou a organizaçõ es terroristas.
– E o xeque Ayad al-Jahiz? – pergunta Joona.
– Pois, o xeque – responde Saga, a rir amargamente. – Temos aquela
gravaçã o em que diz que quer descobrir os lı́deres responsá veis pelos
bombardeamentos na Sı́ria para lhes disparar na cara.
– Ao ministro dos Negó cios Estrangeiros dispararam na cara duas
vezes – sublinha Joona.
– Precisamente – prossegue Saga, assentindo. – Mas a ligaçã o,
infelizmente, nã o tem consistê ncia… A direçã o da Sä po já sabia antes da
operaçã o que o xeque Ayad al-Jahiz morreu há quatro anos… Nã o pode
estar em contacto com o Ratjen.
– Mas porquê ?
– A Sä po acabou de obter um aumento do orçamento para manter o
mesmo nı́vel de alerta no futuro.
– Percebo.
– Bem-vindo ao meu mundo – diz Saga, suspirando, e depois põ e a
moto a trabalhar. – Vá lá , anda comigo ao giná sio.
53
O clube de boxe Narva está quase deserto, mas a corrente do saco
produz um ruı́do metá lico ritmado enquanto um homem, certamente
um peso pesado, desfecha golpes violentos contra rostos invisı́veis.
A cada movimento, a poeira rodopia no ar sobre o ringue. Dois
homens mais jovens fazem abdominais, cada um a gemer no seu
colchã o, por baixo da pera rá pida rasgada.
Saga sai do balneá rio com uma camisola de alças cor de vinho, uns
calçõ es pretos e uns sapatos gastos. Para diante de Joona e pede-lhe
para a ajudar com as ligaduras das mã os.
– A tarefa principal dos serviços de segurança de cada paı́s é
assustar os polı́ticos – diz em voz baixa, ao mesmo tempo que lhe
estende um rolo de ligadura.
Joona en ia-lhe a argola no polegar e depois enrola algumas vezes a
faixa elá stica em volta do pulso, estende-a sobre as costas da mã o e
aperta-a nos nó s dos dedos. A cada volta, Saga tenta fechar o punho.
– Do ponto de vista da Sä po, nã o é importante o facto de nã o haver
nenhum terrorista… A ameaça foi, em qualquer caso, neutralizada –
prossegue, enquanto Joona lhe faz passar a faixa por entre os dedos. – E
como os polı́ticos nã o podem admitir que esbanjaram uma quantia tã o
considerá vel dos dinheiros pú blicos para nada, a operaçã o deve ser
considerada um sucesso.
O pugilista aumenta o ritmo das pancadas e os dois homens mais
jovens começam a saltar à corda.
Joona en ia as luvas nas mã os de Saga, aperta os nó s e enrola um
pouco de gaze em volta dos pulsos, por cima dos nó s.
Saga entra no ringue, e entretanto Joona pega em duas luvas
semelhantes a almofadas duras de couro, aperta-as nas mã os e ajuda-a
a treinar-se numa sé rie de combinaçõ es de socos e pontapé s.
– A Sué cia foi salva – diz Saga, assestando um golpe de ensaio na
luva de Joona. – Mas o mé rito nã o é nosso… As pessoas iam entrar em
pâ nico, se descobrissem que a Sä po, na verdade, anda a esbracejar no
escuro.
Joona começa a mover-se em cı́rculo, levantando e baixando as
luvas, enquanto Saga vai atrá s dele a desfechar sé ries complicadas de
ganchos e uppercuts.
Ele contra-ataca empurrando uma das luvas para a frente, mas ela
esquiva-se e inicia uma nova sé rie de golpes tã o fortes que ecoam no
recinto.
Saga baixa os ombros, inclina a cabeça de lado e desfecha uma sé rie
de diretos com o punho esquerdo.
– O Janus e eu vamos continuar com as investigaçõ es, para veri icar
se nã o há nada que tenha a ver com o ministro dos Negó cios
Estrangeiros – diz, ofegante.
Joona inclina as luvas para que ela possa treinar os diretos, depois
atinge-a na face com a luva esquerda, recua e deixa que ela vá atrá s dele
com duas direitas potentes.
– Baixa um pouco o queixo – diz Joona.
– Sou demasiado orgulhosa – responde ela, com um sorriso.
– Mas o que é que vai acontecer, se encontrarem o assassino? –
pergunta Joona, seguindo-a até ao canto azul.
Ela centra as almofadas nas mã os de Joona com quatro golpes
ruidosos e fulminantes.
– A minha tarefa é arranjar maneira de ele nã o confessar o
homicı́dio – responde. – De nã o poder ser associado a ele de nenhuma
maneira, de nã o ser incriminado ou…
– E extremamente perigoso – interrompe-a Joona. – E nã o sabemos
se vai voltar a matar, nã o fazemos ideia de qual será a sua motivaçã o.
– E por isso que eu estou a falar contigo sobre o assunto.
O pugilista parou de treinar, icou imó vel com os braços em volta do
saco e observa Saga com um ar fascinado. Os mais jovens aproximaram-
se do ringue e estã o a ilmá -la com o telemó vel.
– Tens de baixar o queixo.
– Nem pensar.
Saga sai do canto, desfecha um potente gancho direito, faz rodar os
ombros e atira um murro direto ao tó rax de Joona, tã o forte que o
obriga a recuar alguns passos.
– Se eu fosse polı́cia, tentava um caminho diferente – sugere ele.
– Qual? – pergunta Saga, ao mesmo tempo que limpa o suor do
rosto com o antebraço.
– O outro Ratjen.
– Vamos fazer uma pausa – diz ela, estendendo as duas mã os.
– No im de contas, o Salim Ratjen tem um irmã o na Sué cia, nã o é
verdade? – diz Joona, enquanto lhe desenrola a faixa.
– Desde o homicı́dio do ministro que o mantemos sob vigilâ ncia
apertada.
– O que é que descobriram? – pergunta Joona, desapertando os nó s.
– Mora em Skö ve, é professor de liceu e nã o tem nenhum contacto
com o Salim – responde ela, saindo do ringue.
Saga deixa cair as luvas ao chã o e dirige-se ao balneá rio. Quando
regressa, tem a toalha à volta do pescoço e as mã os livres das ligaduras.
Entram num escritó rio minú sculo e Saga abre em cima da
secretá ria o seu portá til de cor verde tropa. As paredes estã o atulhadas
de vitrines cheias de medalhas e taças, recortes de jornais amarelecidos
e fotogra ias emolduradas.
– Nã o sei o que aconteceria se o Verner descobrisse que eu guardei
isto tudo – murmura Saga, clicando numa pasta. – O Absalon Ratjen
mora no 38 A de Lä nsmansgatan, é professor de Matemá tica e Ciê ncias
na Helenaskolan…
Afasta uma madeixa de cabelos que se lhe colou à cara e depois
continua a ler.
– E casado com Kerstin Rö nell, que é professora de giná stica na
mesma escola… e tê m dois ilhos que andam na primá ria.
Levanta-se e baixa a cortina à frente do vidro da porta.
– Obviamente, estamos a intercetar as conversas telefó nicas dele,
assim como as da mulher – diz a Joona. – Controlamos todas as suas
atividades online, e por aı́ fora… Lemos os e-mails, quer no endereço
privado, quer no da escola… A ú nica que vê pornogra ia é a mulher.
– E nã o encontraram nenhuma ligaçã o com o ministro.
– Nã o.
– Com quem é que o Ratjen contactou nas ú ltimas semanas?
Saga limpa a testa e continua a clicar.
– Tirando a rotina… Ora, falou de um encontro com o mecâ nico que
nã o deu em nada…
– Façam uma veri icaçã o.
– E depois temos um e-mail estranho enviado de um computador
sem endereço IP.
– Estranho em que sentido?
Saga volta o computador para Joona e abre uma mensagem de
fundo negro com o texto em carateres brancos: «I’ll eat your dead heart
on the razorback battle ield.»
Quando o metro passa por baixo deles, a luz do candeeiro da
secretá ria tremelica sobre o ecrã sujo.
– «Vou comer-te o coraçã o…» Parece bastante ameaçador – diz
Saga. – Mas pensamos que se trata de algum tipo de gı́ria ligada a uma
competiçã o… O Absalon Ratjen é o responsá vel pelos cursos avançados
de Matemá tica e, como aprofundamento, os alunos dele participam na
First Lego League, uma competiçã o internacional de robô s
telecomandados feitos com Lego.
– Em qualquer caso, levem essa mensagem a sé rio – diz Joona.
– O Janus leva tudo a sé rio… Está a trabalhar a tempo inteiro sobre
este e-mail e sobre a intercetaçã o de um telefonema que… Nã o sabemos
se é uma brincadeira telefó nica ou se algué m se enganou no nú mero…
Só se ouve a respiraçã o do Ratjen e a voz de uma criança a cantar uma
lengalenga.

Ten little rabbits, all dressed in white


Tried to go to Heaven on the end of a kite
Kite string got broken, down they all fell
Instead of going to Heaven, they went to…
Nine little rabits, all dressed in white
Tried to go to Heaven on…

O telefonema interrompe-se de repente e cai o silê ncio. Saga fecha a


pasta e murmura que també m a lengalenga poderia estar relacionada
com a competiçã o, e entretanto começa a procurar qualquer coisa no
relató rio.
– O Absalon é a pró xima vı́tima – exclama Joona, levantando-se da
cadeira.– E impossı́vel – protesta ela, deixando escapar um sorriso. –
Veri icá mos todos… – Saga, tê m de mandar algué m imediatamente.
– Nó s nã o… Vou ligar ao Carlos, mas será que me podes explicar
porque é que pensas…– Primeiro liga-lhe – interrompe-a Joona.
Saga pega no telefone, marca um nú mero e pede para lhe passarem
Carlos Eliasson, o chefe da Secçã o Operativa Nacional, para alé m de ex-
superior de Joona.
Ratjen, os coelhos e o inferno, repete Joona para si pró prio.
Pensa na voz cristalina e levemente perplexa da criança, na
lengalenga sobre os coelhos que, um atrá s do outro, vã o parar ao
inferno.
Durante o interrogató rio com So ia, tinha tentado analisar o
retrato-robô do assassino.
A mulher pensava que ele tinha os cabelos compridos, com
madeixas que lhe caı́am ao longo das faces.
Sondando as suas pró prias lembranças, descreveu depois aquelas
madeixas como sendo tiras de um tecido pesado, ou talvez couro.
Quando tentou desenhá -las no retrato, de inı́cio pareceram longas
plumas, ou talvez penas alares, e depois transformaram-se em cabelos
cheios de nó s.
Mas nã o eram plumas aquelas coisas que So ia tinha visto, pensa
Joona.
Tem quase a certeza de que aquilo que a testemunha tinha visto ao
longo do rosto do assassino eram orelhas de coelho cortadas.
Ratjen, os coelhos e o inferno.
O assassino referira Ratjen e dissera que todos eles iam mergulhar
no inferno: tenciona matar todos os coelhos da lengalenga.
Saga tenta explicar ao chefe que tê m de enviar imediatamente uma
equipa a casa do irmã o de Salim Ratjen em Skö vde.
– Mas eu tenho que saber porquê – rebate Carlos.
– Porque o Joona disse – responde Saga.
– O Joona Linna? – pergunta o homem, estupefacto.
– Sim.
– Mas… Mas ele está na cadeia.
– Nã o neste momento – limita-se Saga a responder.
– Nã o neste momento? – repete Carlos.
– Manda já uma equipa e pronto.
Joona tira o telefone da mã o de Saga e ouve dizer a voz do seu ex-
chefe:
– Só porque o Joona é a pessoa mais obstinada que…
– Sou obstinado porque, provavelmente, tenho razã o – interrompe-
o. – E, se tiver razã o, nã o há tempo a perder, se é que lhe querem salvar
a vida.
54
Um robô vermelho e cinzento, construı́do com Lego, está pousado
em cima da mesa da cozinha. Tem as dimensõ es de um pacote de vinho
e parece-se com um tanque de guerra antiquado, munido de uma tenaz.
– Cumprimentem o nosso novo amigo – diz Absalon.
– Olá – responde Elsa.
– Daqui a pouco tê m de ir para a cama – recorda Kerstin.
Pousa em cima da mesa folhas de papel de cozinha para usar como
guardanapos e observa o rosto satisfeito do marido a re letir sobre o
facto de ter ganho alguns quilos sem lhe dizer nada.
Já vestiram o pijama à s crianças. As calças do de Peter já estã o
demasiado curtas, e Elsa en iou no pulso todos os elá sticos de cabelo a
fazer de pulseira.
Absalon afasta o pacote do leite sem lactose, uma garrafa pegajosa
de ketchup e a taça com as cenouras e a maçã raladas.
O robô começa a mexer-se com um zumbido sobre a toalha
plasti icada. As pequenas rodas anteriores de borracha batem contra a
panela do macarrã o, ativando a fase seguinte. Peter ri-se enquanto o
corpo mó vel do robô prossegue sobre dois carris. Com um ruı́do
mecâ nico, a colher de madeira enterra-se na massa, mas depois levanta
demasiado depressa.
As crianças desatam a rir quando o macarrã o se espalha por toda a
mesa.
– Esperem – diz Absalon. Estica-se para regular a mola do braço
preê nsil e depois volta a apontar o comando para o robô .
Com movimentos mais suaves, o brinquedo levanta mais macarrã o,
executa uma meia-volta sobre si mesmo e aproxima-se do prato de Elsa.
Os olhos da menina cintilam quando o robô lhe deita a comida no prato.
– Que fo inho – exclama.
Ao longe, ouve-se a sirene de um veı́culo de emergê ncia.
– Já tem nome? – pergunta Kerstin, com um sorrisinho.
– Boris! – grita Peter.
Elsa bate palmas, repetindo o nome vá rias vezes.
Absalon orienta o robô para o prato do ilho, mas fá -lo embater no
boiã o da cebola frita e nã o consegue impedi-lo de esvaziar a colher no
copo de leite. Peter ri-se com a mã o à frente da boca.
– Boris, é s fantá stico – garante Elsa.
– Mas agora vai ter de ir nanar – repete Kerstin, tentando cruzar o
olhar do marido.
– Nã o pode pegar també m numas wurstel? – pergunta Peter.
– Vamos a ver.
Absalon passa uma mã o pelos cabelos encaracolados, substitui a
colher de madeira na tenaz por um garfo e carrega no comando. O robô
move-se com demasiada rapidez em direçã o à caçarola, e Absalon nã o
consegue pará -lo antes de ele embater contra a beira de ferro e cair
para a frente.
– Mã e! Podemos icar com ele? – gritam as crianças.
– Podemos? – pergunta Absalon, com um sorriso.
– Pode icar se aquele que está na casa de banho for embora –
responde Kerstin.
– Nã o, o James nã o! – exclama Elsa, alarmada.
James é um robô amarelo que consegue estender o papel higié nico.
Kerstin acha-o inquietante, demasiado interessado nas idas deles à casa
de banho.
– Podemos emprestar o James ao avô – diz, enquanto tira o garfo da
tenaz de Boris e serve aswurstel aos ilhos.
– Ele virá cá no im de semana? – pergunta Absalon.
– Vamos conseguir aguentá -lo?
– Eu podia preparar…
Com uma pancada, a corrente de ar faz bater a porta da cozinha, e o
calendá rio com as fotogra ias das crianças cai ao chã o.
– E a janela do quarto – diz Kerstin, levantando-se.
A porta oferece resistê ncia, como se algué m a estivesse a segurar
do outro lado; quando por im se abre, a corrente de ar atravessa-a com
um silvo. Kerstin sai para o corredor, fechando-a atrá s de si demasiado
bruscamente, depois avança, passando pelas escadas, até ao quarto.
As cortinas ondeiam e as argolas deslizam ao longo do varã o de
madeira.
A janela está fechada, mas a porta da varanda está aberta. As
portadas batem com o vento.
O quarto está frio e a sua camisa de noite escorregou para o chã o.
Quando é Absalon quem faz a cama, normalmente estende-a do lado de
Kerstin.
A mulher atravessa o chã o gelado e fecha a porta da varanda,
baixando a maçaneta até ouvir o clique da fechadura.
Estende a camisa de noite na cama, acende o candeeiro na mesinha
de cabeceira e repara que a alcatifa está suja. O vento arrastou para
dentro do quarto terra e ervas do jardim. Depois de jantar vou ter de
passar o aspirador, pensa, e a seguir regressa em direçã o à cozinha.
Um pressentimento sombrio obriga-a a parar no corredor.
Do lado de dentro da porta da cozinha nã o chega um ú nico ruı́do.
Observa a aglomeraçã o de casacos e pastas todos pendurados no
mesmo gancho.
Aproxima-se da porta lentamente, vê a luz que se escoa atravé s da
fechadura e, de repente, ouve uma voz infantil que nã o reconhece.
– Seven little rabbits, all dressed in white, tried to go to Heaven on the
end of a kite. Kite string got broken, down they all fell. Instead of going to
Heaven, they went to…
Talvez Absalon tivesse aproveitado a sua ausê ncia para mostrar aos
ilhos outro robô , pensa.
Depois abre a porta, entra na cozinha e deté m-se de repente.
Um homem mascarado está de pé ao lado da mesa. Veste uns jeans
e um blusã o negro e tem na mã o uma faca de serra.
De um telemó vel pousado em cima da mesa sai a voz incerta de
uma criança:
– Six little rabbits, all dressed in white, tried to go to Heaven…
Absalon levanta-se e um macarrã o cai-lhe da virilha até ao chã o.
Elsa e Peter itam aterrorizados o homem na cozinha.
– Nã o sei o que queres, mas está s a assustar as crianças, percebes?
– diz Absalon, com a voz a tremer.
Cinco orelhas de coelho esguias pendem da face do homem. Um
risco vermelho-vivo marca a linha ao longo da qual foram cortadas,
antes de serem en iadas num cordel e amarradas em volta do passa-
montanhas.
Kerstin sente o coraçã o bater-lhe com muita força e quase nã o
consegue respirar. Com as mã os a tremer, pega na carteira que está em
cima do balcã o da cozinha e entrega-a ao intruso.
– Talvez haja algum dinheiro aqui – diz, e a voz parece prestes a
falhar.
O homem pega na carteira e pousa-a em cima da mesa, depois
levanta a faca e indica o rosto de Absalon com a ponta.
Kerstin vê o marido tentar afastar a faca com um dé bil gesto da
mã o.
– Para com isso – diz.
A mã o que empunha a faca desce, depois salta para a frente e
deté m-se. Absalon é sacudido por um fré mito enquanto tenta recuperar
fô lego, depois inclina a cabeça. A lâ mina inteira está já en iada no seu
ventre.
Sobre a camisa alastra-se uma mancha vermelha.
Quando o intruso retira a faca, um io de sangue acompanha a
lâ mina, caindo no chã o ao lado dos pé s de Absalon.
– Pai – diz Elsa, com uma voz assustada, pousando a colher na
mesa.
Absalon ica imó vel, enquanto o sangue impregna a parte inferior
da camisa en iada nas calças e lhe escorrega ao longo das virilhas, pelas
pernas abaixo, até lhe besuntar os pé s.
– Chama uma ambulâ ncia, Kerstin – diz, com uma voz espantada,
recuando um passo.
O homem observa-o e levanta lentamente a faca.
Elsa corre para Absalon e aperta-lhe uma perna entre os braços
com tanta força que o faz vacilar.
– Pai – chora. – Pai, por favor…
Pega no guardanapo de Absalon que está pousado em cima da mesa
e estende-lho sobre a barriga.
– Es um estú pido! – grita, voltada para o homem mascarado. – Este
é o meu pai!
Como num sonho, Kerstin avança e afasta Elsa do marido. Pega nela
ao colo, sente o corpinho da menina tremer e entã o abraça-a com força.
Peter en ia-se debaixo da mesa com as mã os por cima da cabeça.
O homem ita Absalon com curiosidade. Afasta as orelhas de coelho
da face, inclina levemente a faca levantada e en ia-lha num lanco.
A explosã o de dor arranca um grito a Absalon.
O homem afasta a mã o da faca, deixando-a onde está , entalada
entre as costelas.
Absalon cai de lado e vai bater contra a mesa. Arrasta a mã o
ensanguentada sobre o tampo e entorna um copo de leite.
O homem mascarado desengata um machete de uma argola no
interior do casaco e aproxima-se novamente de Absalon.
– Para com isso! – grita Kerstin.
Absalon cai em cima de uma cadeira. Está prestes a entrar em
estado de choque. O homem mascarado, entretanto, continua a itá -lo
sem se mexer.
– Deve ter entrado na casa errada – diz Kerstin com uma voz
tré mula.
Elsa contorce-se nos seus braços. Quer ver o que está a acontecer e
tenta soltar-se do aperto da mã e.
Um io de sangue escorre da cadeira, a oscilar.
O ponteiro dos segundos do reló gio de parede avança lentamente.
Lá fora, ouvem-se vozes de crianças a brincar e a campainha de
uma bicicleta.
– Somos pessoas normais, nã o temos dinheiro – continua Kerstin,
com um io de voz.
Peter está sentado debaixo da mesa, com os olhos pregados no pai.
Absalon tenta dizer qualquer coisa, mas um arranco de vó mito
enche-lhe a boca de sangue. Engole, tosse, engole de novo.
O carro dos vizinhos entra na rua e para ao lado do deles. As portas
abrem-se e fecham-se. Os sacos das compras sã o retirados da mala.
A cor da camisa de Absalon passou a vermelho-escuro, quase preto.
O sangue escorre da cadeira num luxo regular, e a poça já chegou junto
de Peter.
– Pai, pai, pai – choraminga o menino, com uma voz estridente.
O homem mascarado olha para o reló gio e depois agarra Absalon
pelos cabelos.
– Posso levar as crianças? – pergunta Kerstin, limpando as lá grimas
das faces.
Elsa soluça e o campo visual de Kerstin restringe-se. Uma nota
aguda ressoa-lhe na cabeça quando vê os lá bios do marido icarem
exangues.
Está a sofrer terrivelmente.
O intruso inclina-se e sussurra uma frase a Absalon. As orelhas
mutiladas oscilam contra a sua face. O homem endireita as costas,
Absalon olha-o nos olhos e assente.
Sem pressa, o homem vira de lado a cabeça de Absalon e levanta o
machete.
O candeeiro por cima da mesa começa a rodar sobre si mesmo.
Peter abana a cabeça. Kerstin queria gritar-lhe que fechasse os
olhos, mas as palavras nã o lhe chegam aos lá bios.
Com violê ncia, o homem atinge Absalon por trá s, en iando-lhe a
lâ mina entre as vé rtebras cervicais.
O sangue esguicha sobre o fogã o e sobre a porta do forno.
O corpo sem vida cai no chã o, as pernas continuam a sacudir-se e
os tacõ es a bater no linó leo.
Peter ita o pai de boca aberta.
A cabeça de Absalon foi quase separada do corpo e ios de sangue
claro saltam-lhe com abundâ ncia do pescoço.
Gotas vermelhas caem da pega da porta do forno.
O homem inclina-se, arranca a faca do lanco de Absalon e sacode o
sangue da lâ mina antes de sair da cozinha.
55
Enquanto Saga está a tomar um duche no balneá rio do giná sio,
Joona liga ao seu ex-superior, Carlos, para ter a certeza de que a Polı́cia
chegou a casa de Ratjen. Tenta entrar em contacto com Carlos cinco
vezes, depois deixa uma mensagem dizendo que lhe foi prometida a
suspensã o da pena e que quer interrogar Absalon quanto antes.
– Talvez ainda possamos impedir que o assassino mate mais pessoas
– conclui.
Joona e Saga saem do giná sio e dirigem-se juntos ao parque de
estacionamento em frente à escola de mú sica do outro lado da rua.
– O Verner prometeu tratar pessoalmente da tua saı́da da prisã o –
diz Saga.
– Se nã o me comunicarem nada, vou ter de regressar à cadeia daqui
a trê s horas.
Atravessam a rua, passam o portã o negro e avançam pelo meio dos
carros quando Saga, de repente, ica parada.
– O meu telefone está desligado – diz, mostrando-lho. – Olha, está
bloqueado. Tenho de ir imediatamente ao escritó rio ver o que se passa.
Caminham ao longo da parede de tijolo em direçã o ao Volvo de
Joona. Só quando chegam junto dele veem aproximar-se dois homens
de aspeto severo, de fato escuro e auricular no ouvido.
– Afasta-te do carro, Bauer – diz o mais jovem dos dois agentes.
Saga tira o portá til do saco de giná stica e obedece à ordem.
– E uma invençã o do Verner? – pergunta.
– Entrega-nos o computador – diz o mais velho, que tem os cabelos
grisalhos cortados muito curtos.
– Este? – pergunta Saga, sem conseguir conter um sorriso.
– Sim – responde o outro, de mã o estendida.
Saga atira-o por cima do tejadilho do carro. O portá til traça um
cı́rculo rodando sobre si mesmo até que Joona agarra nele sem
pestanejar.
Os dois agentes voltam-se e saltam na direçã o dele. Uma mú sica
irritante tocada num violino sai de uma das janelas da escola. Uma folha
solta-se de um carvalho imponente e começa a rodopiar sobre eles. Os
homens dã o a volta ao carro e aproximam-se de Joona com um ar
autoritá rio.
– O computador está con iscado de acordo com a lei sobre…
Um instante antes de chegarem junto dele, Joona lança novamente o
computador para o outro lado do carro, e do esmalte negro do tejadilho
levanta-se uma faı́sca. Saga agarra-o com uma mã o e afasta-se alguns
passos.
– Que infantis – diz o agente mais velho, reprimindo um sorriso
involuntá rio.
Mudam outra vez de direçã o e regressam junto de Saga. O mais
jovem ajeita os punhos da camisa.
– Sabes que tens de nos dar o computador, nã o sabes? – diz, com um
tom paciente.
– Nã o – responde Saga.
Antes que os homens cheguem junto dela, deixa cair o pesado
computador por entre as grades de um esgoto. Muito mais abaixo, ouve-
se um ruı́do surdo quando o portá til atinge a superfı́cie da á gua.
Os dois agentes param e olham para ela.
– Nã o achas que exageraste? – pergunta o mais velho, de testa
franzida.
– Tens de vir connosco, Bauer – diz o outro.
– Haviam de ver a vossa igura – diz Saga, a sorrir, enquanto começa
a andar com os dois agentes ao longo do muro de tijolo vermelho.
E mais baixa do que eles e o blusã o de pele brilha no ponto em que
icou molhado pelos cabelos hú midos.
– Queres que faça alguma coisa por ti? – pergunta Joona.
– Tens de ligar ao Verner – responde Saga, voltando-se para ele. –
Prometeu que nã o tinhas de voltar para a prisã o.
Depois de Saga ter entrado no carro e de os agentes a terem levado,
Joona pega no telefone, tenta mais uma vez entrar em contacto com
Carlos e, inalmente, liga para a central da Sä po.
– Polı́cia de Segurança.
– Quero falar com Verner Sandé n – diz Joona.
– De momento, está em reuniã o.
– Mas vai ter de atender este telefonema mesmo assim.
– Quem deseja falar? – pergunta a mulher.
– Joona Linna. Ele sabe quem eu sou.
A linha é atravessada por um zumbido, depois Joona ouve uma voz
gravada que o convida a seguir a Sä po no Twitter e no Facebook. A voz é
bruscamente interrompida quando a mulher regressa.
– Diz que nã o o conhece – comunica-lhe, na defensiva.
– Explique-lhe que…
– Está em reuniã o e nã o pode falar neste momento – interrompe-o a
mulher, e desliga a chamada antes que ele tenha tempo para dizer mais
alguma coisa.
Apesar de saber que é inú til, Joona liga para a secretaria do
conselho de ministros, dizendo que o chefe do governo está à espera de
um telefonema seu. Com um tom cortê s, o secretá rio sugere-lhe que
envie um e-mail para o endereço o icial do governo.
– Encontra-o no nosso site – diz, antes de desligar.
Joona senta-se no carro e liga a Janus Mickelsen. Ainda nã o ouviu
um toque sequer quando uma mensagem automá tica lhe comunica que
aquele nú mero nã o está atribuı́do. Tenta com outros contactos
previamente memorizados no telemó vel que lhe foi emprestado, mas
nenhum dos nú meros está já a funcionar.
Olha para o reló gio.
Pondo-se imediatamente a caminho, ainda pode conseguir
apresentar-se em Kumla a tempo. Nã o tem alternativas e nã o pode
correr o risco de um agravamento da pena.
Liga o carro e sai em marcha-atrá s, trava para deixar passar uma
mulher com um cã o-guia e depois vira à direita, em direçã o a Norrtull.
O noticiá rio refere que os serviços secretos suecos izeram abortar
um grave atentado contra a naçã o. Como de costume, ningué m presta
quaisquer esclarecimentos sobre os detalhes da operaçã o nem é
especi icado se os suspeitos terroristas foram já capturados. O chefe do
gabinete de imprensa da Sä po fala de uma investigaçã o ampla e
ponderada e de uma operaçã o no terreno conduzida de uma forma
exemplar.
56
Joona atravessa a zona de asfalto e ouve o portã o do gradeamento
eletri icado fechar-se atrá s de si.
Prossegue à sombra do muro amarelo sujo da prisã o, para a dez
metros do ponto de controlo e tenta uma ú ltima vez entrar em contacto
com Carlos. Uma mensagem automá tica comunica-lhe que o chefe da
Polı́cia está ocupado e nã o estará disponı́vel durante todo o dia.
Durante o procedimento do registo, é como se o pró prio tempo
opusesse resistê ncia. As mã os de Joona movem-se lentamente
enquanto se decide a depositar o reló gio, a carteira, as chaves do carro
e o telefone no contentor de plá stico azul.
Um guarda prisional com os dedos manchados de nicotina conta o
dinheiro e regista a quantia num recibo.
Joona despe-se e passa nu por baixo do detetor de metais.
Hematomas enormes fundem-se uns nos outros sobre as suas costelas
como nuvens negras carregadas de chuva, e a ferida provocada pelo
machado inchou de tal maneira que faz esticar os ios negros dos
pontos de sutura.
– Estou a ver que te divertiste muito, lá fora – diz o guarda.
Joona senta-se no banco de madeira estragado e en ia a farda
incolor e as sapatilhas.
– Está aqui escrito que temos de te levar para o setor de má xima
segurança – diz outro guarda.
– Porquê ? Eu nã o pedi isolamento – replica Joona, enquanto agarra
no saco cinzento com os lençó is e os produtos de higiene.
Um outro guarda, com o rosto suado, acompanha-o até ao novo
setor. No cruzamento das passagens subterrâ neas, os dois homens
viram à direita, esperam que a fechadura se abra e depois entram no
corredor que dá acesso ao setor de má xima segurança.
No tú nel vazio sente-se o cheiro de cimento molhado, e as
comunicaçõ es via rá dio do guarda com o setor G sã o o ú nico ruı́do que
interrompe o silê ncio.
Joona impõ e a si mesmo deixar de pensar no assassino: sabe que,
de agora em diante, vai estar completamente separado do mundo
exterior.
Nã o está envolvido na investigaçã o.
Já nã o é um polı́cia.
Quando chega ao setor, faz o registo, ouve a leitura das regras e
depois é acompanhado ao longo de um corredor silencioso até à sua
nova cela, um minú sculo espaço onde vai passar todas as horas do dia
sem qualquer contacto com os outros detidos.
Quando a porta da cela de isolamento se fecha com um ruı́do surdo
atrá s de si, Joona aproxima-se da janela protegida por barras espessas e
olha para o muro amarelo à sua frente.
– Olen väsynyt tähän hotelliin2 – comenta para si pró prio, e depois
pousa o saco da roupa em cima da cama.
As orelhas de coelho cortadas que o assassino amarrara na cabeça,
dá por ele a pensar, deviam ser uma espé cie de trofé u ou de fetiche.
Talvez a caça e a morte dos coelhos fossem um ritual de preparaçã o
dos homicı́dios.
Tinha matado William Fock e plani icado o assassı́nio de Absalon
Ratjen, re lete Joona, ao mesmo tempo que apanha duas pedrinhas do
chã o e as coloca no peitoril estreito.
Duas vı́timas.
Inclina-se a observar as duas pedras de perto: a primeira tem numa
extremidade uma ponta de quartzo amarelo-claro, enquanto a segunda
é brilhante, como uma pequena escama de peixe.
Joona recorda a voz infantil gravada e a lengalenga sobre os coelhos
que, um atrá s do outro, caem no inferno.
Dez pequenos coelhos, diz para si mesmo.
Espreita debaixo da cama, apanha mais oito pedrinhas e coloca-as
ao pé das outras, em ila no peitoril.
O assassino anda à caça de dez coelhos e quer matá -los a todos.
O tempo nã o consegue penetrar na cela de isolamento, nã o toca na
cama estreita, no lavató rio, na tampa da sanita, na prateleira, na
secretá ria minú scula e na porta fechada.
Quem está fechado numa prisã o morre sem sequer se dar conta.
Joona ica imó vel a observar a luz que se desloca sobre a ila de
seixos: as sombras alongam-se, rodam como ponteiros.
Cada pedra é um meridiano.
A Sä po achava que tinha de ir atrá s de um grupo de terroristas.
Teria sido muito mais simples do que ter de enfrentar um soldado
de elite enlouquecido.
Um spree killer.
Era incompreensı́vel que um terrorista treinado deixasse com vida
uma testemunha, mas para um spree killer é importante nã o matar a
pessoa errada.
O seu mó bil pode ser de natureza polı́tica ou religiosa, tal como
para um terrorista. A diferença principal é que nã o obedece a ningué m
senã o a si pró prio.
E por esse motivo é difı́cil prever-lhe os movimentos.
Joona passa as mã os pelos cabelos despenteados.
A beira de aço cromado que contorna o pequeno postigo da porta
está coberta de marcas. O interruptor está escuro de lixo e no teto estã o
agarrados grumos de tabaco seco.
Que a Polı́cia ande atrá s de um serial killer, de um rampage killer ou
de um spree killer nã o faz muita diferença.
Os elementos decisivos sã o a motivaçã o particular e o modus
operandi, estreitamente ligados entre si.
O conceito de spree killer é controverso, e o FBI restringiu a
de iniçã o a esta frase: «Uma pessoa que comete dois ou mais
homicı́dios sem qualquer perı́odo de re lexã o entre um crime e outro.»
Mas atrá s das etiquetas escondem-se fenó menos bem maiores e mais
complexos.
Nenhum assassino coincide perfeitamente com uma de iniçã o; no
entanto, dispondo das informaçõ es certas, torna-se mais simples
ordenar as vá rias peças do puzzle.
Um terrorista executa o seu ato num ú nico lugar, enquanto um
spree killer se desloca.
Um serial killer reveste muitas vezes o homicı́dio de conotaçõ es
sexuais, enquanto um spree killer tende a racionalizá -lo.
Nã o se concede pausas emotivas, e o intervalo entre dois
homicı́dios nunca é superior a sete dias.
Joona observa as pedrinhas na janela.
Dez pequenos coelhos.
A Polı́cia está a lidar com um assassino carregado de uma raiva que,
em certas ocasiõ es, explode e o obriga a matar aqueles a quem imputa
graves culpas.
Pode escolher vı́timas precisas, ou entã o focar-se num grupo
particular, matando o maior nú mero possı́vel de pessoas que fazem
parte dele.
Os elementos que inicialmente parecem à Polı́cia perfeitamente
casuais revelam-se depois, muitas vezes, efetivamente deliberados.
Joona observa as pedrinhas no peitoril, depois caminha
nervosamente pelo quarto, até à porta, e novamente até à janela, oito
passos ao todo.
Se este assassino tem um objetivo preciso, e se entra na categoria
dos spree killer, há no entanto uma coisa que nã o bate certo, re lete.
A cadeia dos acontecimentos esconde um defeito de ló gica.
Sem dú vida, a Polı́cia está a lidar com um assassino muito
inteligente: corta o vidro da portada do ministro com uma serra de
ponta de diamante para nã o fazer disparar o alarme, sabe onde se
encontram as câ maras de vigilâ ncia e nã o deixa nenhum vestı́gio.
E a contagem regressiva da lengalenga leva a pensar que já decidiu
quem deve morrer.
Plani icou dez homicı́dios e começou pelo ministro dos Negó cios
Estrangeiros.
Porquê ?
E aqui que a ló gica se quebra.
Nã o faz sentido.
O assassino devia certamente saber que a Polı́cia investiria
enormes recursos para o perseguir. Devia ter previsto que o seu plano
ia ser muito mais complicado de realizar começando com uma vı́tima
do gé nero.
O spree killer arrancou com o ministro dos Negó cios Estrangeiros,
pensa Joona. E depois concentrou-se num professor de Skö vde.
O ministro e o professor, pensa.
Lentamente, Joona toca nas duas primeiras pedras, depois pousa o
dedo na terceira e, de repente, encontra a soluçã o do enigma.
– O funeral – murmura.
Corre até à porta e começa a bater com força.
E por isso que mata primeiro o ministro. O funeral é uma
armadilha. Uma das vı́timas do assassino é um objetivo ainda mais
difı́cil do que William Fock.
O assassino sabe que é necessá rio um funeral daquele nı́vel para
obrigar a vı́tima seguinte a sair a descoberto.
– Eh! Venham cá ! – grita, aos murros à porta de aço. – Eh!
O olho má gico ica mais escuro e Joona recua um passo. O postigo
retangular abre-se, e atrá s do vidro espesso surge o rosto do guarda de
barba.
– O que é que se passa? – pergunta ele.
– Preciso de fazer um telefonema – diz Joona.
– Isto é um setor de má xima segurança, o que signi ica…
– Eu sei – interrompe-o Joona. – Mas eu nã o tenciono icar aqui.
Quero regressar ao setor D, nã o pedi para ser posto no isolamento.
– Nã o, mas a direçã o considera que tu precisas de proteçã o.
– Proteçã o? O que aconteceu?
– Nã o é nada comigo – diz o homem, baixando a voz. – Mas o Marko
morreu… Sinto muito, acho que você s eram amigos.
– Mas como é que…
Joona deté m-se e recorda que Marko tinha decidido assumir a
responsabilidade pela rixa no pá tio de forma a que Joona pudesse
usufruir da sua licença. A ú ltima vez que o ex-polı́cia viu o seu amigo
inlandê s, os guardas tinham-lhe batido até o fazerem perder os
sentidos e depois tinham-no algemado.
– Foi a Irmandade? – pergunta.
– Há um inqué rito em curso.
Joona dá um passo em frente, mas para e ergue as mã os quando vê
o medo estampar-se no rosto do guarda.
– Ouça-me, é muito importante que me deixe fazer um telefonema
imediatamente – diz Joona, comum tom tranquilo.
– O isolamento é reavaliado de dez em dez dias.
– Sabe que eu tenho o direito de chamar o meu advogado em
qualquer…
O guarda bate com o postigo da janela e trava-o. Joona vai até à
porta e dá um murro ao olho má gico no preciso instante em que ele ica
mais escuro. Sente um baque do outro lado e percebe que o homem de
barba saltou para trá s e escorregou contra a parede atrá s dele.
– Vai haver mais mortos! – grita, a bater na porta. – Nã o pode fazer
isso! Eu preciso de telefonar!
Joona ganha balanço, dá um salto e desfere contra a porta um
pontapé que ressoa entre as paredes. Acerta-lhe mais uma vez e vê cair
dos pontos de ixaçã o das dobradiças um inı́ssimo pó de cimento.
Agarra com as duas mã os a cadeira pelas costas e atira-a com toda
a força que tem no corpo contra a janela. Uma perna parte-se contra as
barras e cai em cima da secretá ria. Lança novamente a cadeira, mas
depois deixa-a no chã o, no sı́tio em que caiu, e senta-se na cama com o
rosto entre as mã os.

Estou farto deste hotel. (N. da T.)



57
A luz do entardecer entra obliquamente atravé s da janela do jardim
de inverno e vem pousar em riscos tré mulos sobre o pavimento da
cozinha.
Com um assobio, as batatas em palitos começam a estalar quando
Rex baixa o cesto e o mete no azeite quente.
DJ está a picar endro numa grande tá bua pousada sobre a ilha da
cozinha.
– Suspeitam de mim – diz Rex, vendo as batatas ganharem uma cor
cada vez mais dourada.
– A esta hora já devias estar amarrado a um banco com uma toalha
molhada na cara – brinca DJ.
– Estou a falar a sé rio. Porque é que a Sä po havia de ter vindo aqui,
se nã o me tivessem identi icado nas imagens?
– Porque eras amigo do ministro.
– Acho que o assassinaram.
– Entã o eu posso fornecer-te um á libi – diz DJ, a sorrir, enquanto
espalha o endro sobre a marinada de camarõ es.
– Mas, em qualquer caso, vai ser um escâ ndalo.
– Nã o necessariamente – diz DJ. – Mesmo que as imagens se
tornassem pú blicas… Nã o fazes ideia das reaçõ es que a entrevista
suscitou, ica toda a gente doida com o vosso sentido de humor bizarro.
– Nã o sou nada bom a mentir – murmura Rex, enquanto tira as
batatas do azeite.
– Amanhã vamos ao funeral, e depois já nã o vai ser preciso mais
nada – diz DJ, atento a lavar a faca de lâ mina larga.
– Muito bem – suspira Rex, apercebendo-se de que DJ tem a barba
cheia de pedaços de endro.
– A situaçã o está sob controlo, nã o há problema. A ú nica coisa que
me preocupa é aquela histó ria da briga – diz DJ.
– Eu sei.
– Rex, sinto mesmo muito por ter vindo aqui, mas entrei em pâ nico.
– Nã o faz mal – diz Rex.
– Mas se ele tivesse morrido, os jornais tinham falado nisso, nã o
era?
– Nã o é certo que…
– Veri iquei em todos os jornais diá rios e ouvi todos os noticiá rios,
sem exceçã o.
– Mas o que é que ele queria de ti?
– Nã o consigo falar nisso – responde DJ, abanando a cabeça.
– O que foi?
– Nã o, nada – murmura DJ, voltando-se para o outro lado.
– Já sabes que podes falar comigo – diz Rex, enquanto o amigo lhe
vira as costas.
– E vou fazê -lo – responde DJ, expirando lentamente para recuperar
a calma.
Naquele momento, Sammy entra na cozinha de tronco nu.
– DJ – insiste Rex.
– Continuamos depois – diz o outro, em voz baixa.
– O que estã o a fazer? Porque é que estã o a falar baixinho? –
pergunta Sammy, com um sorriso.
– Porque nó s temos um monte de segredos – responde Rex, a piscar
o olho ao ilho.
Sammy aproxima-se da varanda, entreabre a porta e pega num
cigarro.
– Está s a pensar ir à quela festa em Nykvarn?
– Sim – assente Sammy, fazendo saltar a chama transparente do
isqueiro.
– Só tens de voltar a tempo para o funeral.
Sammy inspira profundamente o fumo, fazendo crepitar a brasa, e
depois sopra-o atravé s da abertura da porta antes de olhar para Rex.
– Antes queria vir dormir a casa, mas nã o há autocarros depois das
nove – diz.
– Apanha um tá xi – sugere Rex. – Eu pago.
Sammy dá outra passa prolongada no cigarro e coça a face com o
polegar.
– Os tá xis nã o chegam até lá … Nã o é exatamente no centro.
– Entã o vou-te buscar?
– E como?
– Nã o te esqueças que esta noite tens a entrega dos pré mios – diz
DJ, enquanto começa a pô r a mesa.
– Tu nã o vais dormir a casa da Lyra?
– Vou – responde DJ.
– Entã o nã o posso pegar no teu carro?
– Claro – diz DJ, pousando os talheres na mesa.
– Entã o eu vou buscar-te a Nykvarn, Sammy.
– Tens a certeza? – pergunta o ilho, com um sorriso, apagando o
cigarro contra a balaustrada da varanda.
– Dá -me a morada e diz-me uma hora. Se possı́vel, nã o demasiado
tarde, estou a icar velho…
– O que dizes à uma? Podemos vir mais cedo, podemos…
– A uma está bem – responde Rex. – Dá -me tempo para ir levantar o
pré mio e deitá -lo ao lixo.
– Obrigado, pai.
– Posso falar contigo um instante? – diz DJ, levando Rex para o
jardim de inverno.
– O que foi?
O rosto de DJ tornou-se imperscrutá vel e os seus movimentos
revelam a tentativa de controlar a agitaçã o.
– Nã o é boa ideia pegares no meu carro – começa. – Eu estive
sentado nele com a roupa ensanguentada e tenho…
– Mas limpaste-o – interrompe-o Rex.
– Certo… E, sem sombra de dú vida o carro mais limpo de toda a
Sué cia, mas apesar disso, nunca se sabe… Viste como é , no CSI, quando
usam aquelas lâ mpadas especiais e encontram um monte de ADN.
– Nã o me parece que os polı́cias suecos se inspirem no CSI – replica
Rex, com um riso trocista.
– Mas se tivesse morrido? – sussurra DJ. – Nã o consigo deixar de
pensar nisso, nã o percebo como pô de acontecer.
De repente, Sammy aparece à porta e olha para eles.
– Lá estã o você s a falar baixinho outra vez – diz, com um ar sé rio.
58
Um tapete vermelho entre duas ilas de tochas acesas conduz à
porta de vidro da entrada do Café Opera. Rex é recebido por uma
mulher com uma trança loira que o acompanha até um painel com as
marcas dos principais patrocinadores.
O evento da noite é a entrega de um pré mio que Rex considera
merecer há muito tempo. A espera durou tanto que começou a declarar
que nã o o queria e que nã o o aceitaria nem se lho en iassem numa tarte
de morangos.
Quando declinou o convite para aquele serã o, a organizadora
telefonou-lhe a dizer que tinha sabido por um passarinho quem ia ser o
vencedor.
Lá dentro, no meio da multidã o esmagada entre as mesas do buffet
e os balcõ es onde se serve o champanhe, o ruı́do atinge um nı́vel
ensurdecedor.
Rex pede desculpa e abre caminho até um dos bares. Está a pedir
uma garrafa de á gua mineral quando o volume da mú sica diminui e a
luz muda.
A enviada da revista do setor, O mundo da restauração, uma mulher
alta e esguia, sobe ao palco e entra no cone de luz do projetor.
Apesar de saber que vai ganhar o pré mio, Rex sente que o seu
coraçã o começa a bater com mais força, e nã o consegue deixar de
passar uma mã o pelo cabelo.
Quando a mulher aproxima o microfone da boca, o silê ncio desce
sobre o local. Rex está quase a chegar ao foyer no momento em que a
jornalista começa a falar.
– Pelo vigé simo quarto ano, vamos eleger esta noite o Cozinheiro
dos Cozinheiros – anuncia, e a sua respiraçã o ansiosa ressoa nos
altifalantes. – Cento e dezanove chefs, de entre os mais importantes da
Sué cia, votaram para o vencedor…
Enquanto a mulher fala, Rex recorda um aniversá rio em que
Sammy se escondeu debaixo da mesa da cozinha, recusando-se a sair
para abrir o seu presente. Mais tarde, Veronica disse-lhe que o menino
estava tã o excitado com a presença do pai que nã o tinha aguentado a
pressã o.
O pú blico ri educadamente de uma piada da mulher no palco.
O vá rias vezes vencedor Mathias Dahlgren está sentado numa
poltrona, numa das primeiras mesas, com os olhos fechados e o rosto
tenso.
Rex sente uma tremura na mã o quando bebe o ú ltimo gole de á gua
mineral e pousa o copo no balcã o.
A mulher rasga o envelope, e um estalido ressoa na sala.
Fragmentos vermelhos caem ao chã o, quando a apresentadora abre o
papel, o inclina para a luz e levanta os olhos para o pú blico.
– A partir deste momento, o Cozinheiro dos Cozinheiros é … Rex
Mü ller!
Aplausos e gritos explodem de forma entusiasta. O pú blico vira-se à
procura de Rex, que se dirige ao palco e se deté m a trocar um rá pido
aperto de mã o com Mathias, depois tropeça na pequena escada mas
consegue chegar ao palco.
A enviada da revista abraça-o energicamente e entrega-lhe o
microfone, juntamente com um diploma emoldurado.
Rex tenta baixar a T-shirt debaixo do casaco para evitar que a
barriga sobressaia demasiado. Os lashes das má quinas fotográ icas
disparam no escuro como tentá culos de medusa.
– Estã o a ouvir-me? OK, uau… E realmente uma surpresa – diz Rex.
– Porque eu nã o sei praticamente nada de cozinha. Ponho-me a
adivinhar, ou pelo menos era isso que a irmava o meu professor da
escola de hotelaria de Umeå …
– Tinha razã o – grita o seu amigo do restaurante Operakä llaren.
– E quando trabalhava no Le Clos des Cimes, uma vez o chef Ré gis
Marcon entrou na cozinha a correr – prossegue Rex com um sorriso,
tentando imitar o sotaque francê s – e disse-me: «Estã o à procura de
algué m para lavar pratos no McDonald’s. Vai lá .» O pú blico aplaude.
– Adoro-o – acrescenta Rex, a sorrir. – Mas podem perceber como
este pré mio me apanhou de surpresa… Agradeço a todos os meus
estimados colegas e prometo que da pró xima vez sou eu que voto
neles… Se nã o votar em mim.
Ergue o diploma e começa a aproximar-se da escada, quando estaca
de repente e agarra outra vez no microfone, no meio dos aplausos:
– Queria apenas dizer que… gostaria muito que o meu ilho Sammy
estivesse aqui esta noite, pois assim poderia dizer-lhe diante de todos
vó s o quanto me sinto orgulhoso dele.
Quando Rex entrega o microfone à mulher e desce do palco, ouvem-
se ainda alguns aplausos dispersos. Os espectadores deslocam-se e
cumprimentam-no com uma pancadinha no ombro enquanto ele se
afasta.
Rex avança em direçã o à saı́da a pedir desculpa, a agradecer os
cumprimentos e a apertar a mã o a perfeitos desconhecidos antes de
passar à frente.
Lá fora, o ar está fresco e uma chuva ina cai sobre as poças. Rex
contempla a ila de limusines e pensa que fazia melhor em ir para casa,
e depois dirige-se a Gamla Stan.
Sobre a ponte de Strö mbron atira o diploma à á gua: ica a vê -lo
planar sobre a corrente e, por um instante, receia que atinja um dos
cisnes, mas depois vê -o fender a superfı́cie da á gua e desaparecer entre
os remoinhos escuros.
Rex nã o sabe há quanto tempo está a caminhar debaixo da chuva
pelo meio das ruelas brilhantes quando se aproxima de um bar cheio de
lanternas coloridas. No meio das fachadas negras das casas, parece um
pequeno carrossel. Para à entrada, pousa a mã o na maçaneta da porta,
hesita um segundo e depois entra.
O interior está quente e mergulhado na penumbra. Rex senta-se
num banco livre ao balcã o, cumprimenta o barman e estica-se para
pegar na lista de vinhos.
– Parabé ns, Rex – murmura, descobrindo o seu pró prio rosto no
espelho atrá s das garrafas.
– Parabé ns – diz uma mulher alguns bancos mais à frente, e ergue o
copo de cerveja para um brinde.
– Obrigado – responde Rex, enquanto en ia os ó culos de leitura.
– Eu sigo-te no Instagram – explica a mulher, e muda-se para o lado
dele.
Rex assente. E evidente que DJ postou alguma coisa a propó sito do
pré mio. Inclina-se para o barman e ouve-se a si pró prio pedir uma
garrafa de Clos Saint-Jacques de 2013.
– Dois copos, por favor.
Mete os ó culos no bolso e observa a mulher que está a desabotoar o
blusã o de pele sinté tica. E muito mais jovem do que ele, tem os cabelos
escuros despenteados pela chuva e um olhar sorridente.
Rex prova o vinho, serve-o nos dois copos e empurra um na direçã o
dela. A mulher pousa o telefone ao lado da cerveja e cruza o olhar dele.
– Saú de – diz Rex, e depois bebe.
O sabor do vinho acaricia-lhe o palato e o calor do á lcool espalha-se
no seu corpo, irradiando a partir do estô mago. Bebe mais. Está tudo
bem, nã o há perigo nenhum, pensa, enquanto enche novamente o copo.
Ganhou aquele maldito pré mio, e nunca quis verdadeiramente deixar
de beber.
– Está s a ir demasiado depressa para mim – diz a mulher, que ainda
mal provou o seu copo.
– A vida é uma festa – murmura Rex, bebendo um gole generoso.
A mulher baixa os olhos e ele observa o seu rosto delicado, as
pestanas tré mulas, a boca e a ponta do queixo.
Quando a garrafa acabou, Rex descobriu que se chama Edith, que
tem menos vinte anos do que ele e que trabalha como jornalista
freelance para uma grande agê ncia noticiosa.
Ri-se das histó rias de Rex sobre os encontros obrigató rios com os
Alcoó licos Anó nimos e sobre os cadá veres ambulantes em volta da
mesa que só pensam numa coisa enquanto confessam os seus pró prios
pecados.
– Nã o devias manter-te afastado de sı́tios como este? – pergunta-
lhe por im, com um ar sé rio.
– Sou um rebelde.
Acabaram a terceira garrafa e Rex já lhe contou que o ilho, agora
adulto, faz tudo para o evitar e sai todas as noites.
– Se calhar, també m ele é um rebelde – sugere a mulher.
– E só esperto – diz Rex, pegando no copo de cerveja dela.
– Em que sentido?
– Tenho de ir dormir – murmura ele.
– Ainda só sã o onze horas – diz Edith, limpando com a lı́ngua as
marcas de vinho tinto nos cantos da boca.
Está a chover torrencialmente, e por isso Rex chama um tá xi e ica
junto do vidro a olhar para a ruela.
– Tu icas? – pergunta-lhe, quando chega o tá xi.
– Vou apanhar o autocarro – diz Edith.
– Podemos dividir o tá xi, se formos para os mesmos lados.
– Eu moro em Solna, portanto…
– Mas entã o se vieres comigo icas praticamente em casa – insiste
Rex.
– OK, obrigada – diz Edith, e sai atrá s dele.
O rá dio do tá xi transmite uma mú sica lenta de cabaré , e o ar
hú mido estende um vé u de condensaçã o sobre os vidros. Edith está
sentada com as mã os nos joelhos, um sorrisinho nos lá bios e o olhar
ixo no para-brisas por cima do ombro do motorista.
Rex deixa-se cair contra o assento, e começa a pensar em como fora
paté tico ao acreditar que Sammy tinha começado a gostar dele e ao
tentar intuir no seu olhar e no seu tom de voz alguns sinais de afeto.
E impossı́vel remendar aquela relaçã o, agora é demasiado tarde.
O carro vira na estreita Luntmakargatan, abranda e para
suavemente.
– Obrigado pelo serã o – diz Rex, enquanto desaperta o cinto de
segurança. – Espera-me o meu sono de beleza.
– Prometes que vais dormir? – pergunta-lhe Edith.
– Claro – responde ele, ao mesmo tempo que tira a carteira do bolso
interior do casaco.
– Estava a pensar em quando disseste que eras um rebelde – diz
ela, a sorrir.
– Um rebelde velho – corrige-a ele, com uma voz cansada, e chega-
se para o lado, apoiando-se à consola entre os dois bancos da frente.
Edith afasta-se alguns centı́metros, mas o cheiro quente do seu corpo
chega à s narinas de Rex.
– Queres que suba para te aconchegar os cobertores? – pergunta
ela.
59
Rex conduz Edith atravé s do apartamento até ao jardim de inverno
na varanda do ú ltimo piso. As folhas pá lidas das oliveiras estã o
encostadas à claraboia e as plantas de ervilhas doces treparam pela
mesa de má rmore.
Edith observa durante alguns instantes o panorama da cidade,
depois senta-se numa das poltronas em pele de carneiro rodeadas de
plantas. Rex serve vinho tinto para ela e um abundante copo de single
malt para ele.
Instala-se na outra poltrona, saboreando a tranquilidade que o
á lcool lhe infunde no corpo, e pensa que no dia seguinte vai poder
dormir. O funeral do ministro será depois do almoço e pode, sem
sombra de dú vida, permitir-se mais um copo.
– Neste paı́s diagnosticam-te uma doença assim que mostras um
mı́nimo vestı́gio de humanidade – diz, enquanto bebe um gole de
whisky. – Sabes, eu nã o sou nem alcoó lico, nem anó nimo. Só vou aos
encontros porque o meu chefe me obriga.
– Eu prometo que nã o digo a ningué m – garante Edith, a sorrir.
– E o teu chefe como é ? – pergunta-lhe Rex.
– Chama-se Asa Schartau… Trabalho com ela há trê s anos, mas se
me saı́sse um palavrã o despedia-me imediatamente, sem mais nem
menos – conta Edith.
– Um palavrã o? E porquê ?
– Segundo ela, é vulgar, ou melhor… Nã o, nã o sei.
– Vá lá , diz um – rebate Rex, enchendo mais uma vez o copo.
– Nã o…
– Sim, força! – insiste ele.
– Oh… A Asa é uma imbecil de merda – exclama Edith, corando
violentamente. – Nã o, desculpa, fui ingrata.
– Mas soube-te bem, nã o foi? – pergunta Rex.
– Foi injusto.
– Entã o deve ser mesmo assim – diz ele, em voz baixa.
– Eu gosto da Asa. Talvez nã o tenha muito sentido de humor, mas é
extremamente pro issional.
Rex recomeçou a pensar em Sammy e já deixou de ouvir Edith. O
seu olhar concentra-se no velho observató rio por cima do relevo de
origem glaciar que atravessa Estocolmo inteira.
– Agora é melhor eu voltar para casa – diz Edith, vendo as horas no
telefone.
– Tens tempo para provar a minha mousse de chocolate antes de
ires embora? – pergunta Rex, enchendo-lhe outra vez o copo.
– Parece um convite perigoso – diz ela, a sorrir com malı́cia.
Rex levanta-se a cambalear e faz-lhe sinal para o seguir até à
cozinha espaçosa, depois tira a mousse do frigorı́ ico, pousa a taça em
cima da mesa branca e estende-lhe uma colher. Quando Edith se inclina,
o olhar de Rex pousa inevitavelmente no decote. A renda do soutien está
manchada de base e os seios pesados comprimem-se um contra o outro
enquanto ela enterra a colher na mousse.
Rex precisa de pô r os ó culos de leitura para procurar o Concerto
Grosso de Corelli no telemó vel, que está ligado ao sistema de altifalantes
do apartamento.
Sente a euforia do á lcool invadir-lhe os membros enquanto a
mú sica barroca enche a sala com o seu ritmo regular. Pensa que para ir
buscar Sammy à festa vai ter de chamar um tá xi.
– Tu, que é s jornalista, ouviste alguma coisa a propó sito de uma
rixa em Axelsberg? – pergunta-lhe de repente.
– Nã o – responde Edith, com um ar interrogativo.
– Nada sobre um bê bedo que armou uma confusã o? – acrescenta
Rex, apercebendo-se, poré m, deque já tinha falado de mais. – Porque
me perguntas?
– Nã o sei… Um amigo meu assistiu a essa cena, mas… Deixa lá .
Rex tira uma garrafa de Pol Roger do frigorı́ ico do champanhe e
apercebe-se de que se trata de uma ediçã o exclusiva Winston Churchill.
– Vou ter de ir – murmura Edith.
– Chamo-te um tá xi?
Tenta en iar os ó culos no bolso, mas falha a pontaria. Sente-os cair
ao chã o e partir.
– Eu apanho um autocarro em Odenplan, nã o há problema.
Rex abre a garrafa sem fazer saltar a rolha e pega num copo para
cada um. Começa a servir o champanhe, espera que a espuma branca e
borbulhante se dissolva, depois enche os copos até meio e repara no
olhar hesitante de Edith.
– Esta noite eu ganhei – diz ele.
– Queres que ique?
Afaga-lhe uma face, e uma ruga ligeira surge-lhe entre as
sobrancelhas claras.
– Tenho um namorado – sussurra, e aceita o copo.
– Percebo.
Bebem, depois Edith estica-se para beijar com extrema delicadeza a
boca fechada de Rex, a seguir olha para ele com um ar sé rio.
– Nã o deves forçosamente fazer isso – diz ele, acabando de encher
os copos.
Tenta ver que horas sã o, mas nã o consegue focar o reló gio.
– Eu gosto de beijos – diz ela, em voz baixa.
– Eu també m.
Rex toca-lhe a face, depois afasta-lhe uma madeixa de cabelo para
trá s da orelha, responde ao sorriso dela e inclina-se em direçã o à sua
boca. Edith entreabre os lá bios e ele sente-lhe a lı́ngua quente.
Enquanto se beijam, afaga-lhe as ná degas e as costas. Ela começa a
tirar-lhe o cinto das calças, mas depois param.
– Eu nã o sou uma pessoa que ande atrá s de celebridades para as
levar para a cama.
– Eu també m nã o – diz ele, a sorrir.
– Eu gosto de ti.
– Aqui acabam as semelhanças entre nó s… Nã o posso
propriamente a irmar que gosto de mim –continua ele, ao mesmo
tempo que afasta o olhar e serve mais champanhe.
Rex bebe enquanto Edith ajeita a roupa, tira o telemó vel do fundo
da carteira, marca um nú mero e en ia o auricular no ouvido esquerdo.
– Olá , Morris, sou eu… Eu sei, desculpa, mas nã o te podia ligar…
Sim, mas o que é que tu queres, a Asa está convencida de que eu nã o
tenho vida pró pria… Mas o que eu te queria dizer é que amanhã tenho
de ir para a redaçã o muito cedo, por isso vou icar a dormir em casa
dela… Nã o te zangues, vá lá … Eu percebo, mas… OK, adeus… Um beijo.
Quando Edith desliga, nã o olham um para o outro. Com os olhos
baixos, ela volta a meter o telemó vel na carteira e aproxima o copo da
boca, hesitante.
Rex pega na garrafa e nos copos e dirige-se ao quarto, vacila e bate
com o ombro contra o caixilho da porta. Do gargalo da garrafa sobe uma
nuvem de espuma que escorre sobre a sua mã o e cai ao chã o.
Edith tem uma expressã o sé ria no rosto enquanto caminha atrá s
dele. Atravé s de uma claraboia distingue-se um cé u negro, e aos pé s da
cama a vista abarca Estocolmo inteira, até à cú pula branca do Globen.
Aproxima-se de Rex e acaricia-lhe o rosto. Faz deslizar o dedo ao
longo da linha direita do nariz do homem até chegar à cicatriz na base.
– Está s bê bedo? – pergunta-lhe.
– Nã o demasiado – responde ele, apercebendo-se de que está a
arrastar as palavras.
Edith começa a desabotoar o vestido e Rex afasta a colcha da cama.
O movimento provoca-lhe uma ligeira tontura, que o faz oscilar como se
estivesse no convé s de um barco em mar aberto.
Ela pousa o vestido em cima de uma cadeira de madeira, vira as
costas a Rex e começa a despir lentamente os collants.
Com um suspiro, Rex senta-se na beira da cama, tira a T-shirt e bebe
um gole de champanhe da garrafa. Sabe que é musculoso, mas tem a
anca demasiado larga. Uma ila de pelos desce-lhe do peito até ao
umbigo.
Edith tira as cuecas cor-de-rosa e dobra-as de forma a esconder o
penso diá rio, depois pousa-as na cadeira e pendura o soutien no
encosto. O elá stico deixou-lhe uma marca vermelha nas costas. E mais
gorda do que parecia com a roupa vestida. Os pelos pú bicos sã o loiros
com um tom de tabaco, e nã o tem quase nenhum sinal no corpo.
Rex levanta-se, despe as calças e as cuecas, depois afasta-as com
um pontapé e volta-se a esticar o pé nis lá cido de forma a nã o parecer
pequeno.
– Quem me deixa, normalmente arrepende-se – diz ela.
– Nã o me custa a crer.
– Muito bem – murmura Edith, com uma careta severa.
– Tenho as mã os frias – sussurra Rex, quando a segura pela anca.
Ela empurra-o para cima da cama com um ar divertido e Rex deita-
se de costas, afasta uma almofada que o incomoda e fecha por um
instante os olhos cansados. O quarto rodopia sobre si mesmo como se
algué m de vez em quando desse um puxã o ao lençol por baixo dele.
O telefone de Edith toca, com o som no mı́nimo, dentro da carteira
que deixou na cozinha. Rex observa os copos de champanhe em cima da
mesa de cabeceira, a marca de batom vermelho num dos dois e as
bolhinhas que rebentam ao longo do rebordo. Deixa cair outra vez a
cabeça para trá s e recorda aquilo que disse a propó sito de Sammy
durante a entrega do pré mio. No teto descobre dois ané is mais claros
que sã o provavelmente os re lexos dos copos.
Percebe que adormeceu quando sente os lá bios incrivelmente
macios de Edith fecharem-se em volta do seu pé nis. Ela levanta a cabeça
para lhe lançar um olhar preocupado, depois continua.
Na claraboia vê o re lexo da cama e da sua pró pria igura pá lida,
como Jesus envolvido no lençol. Nã o percebe por que razã o se encontra
sempre na mesma situaçã o de cada vez que bebe. E um guiã o do qual
ele é , ao mesmo tempo, realizador e vı́tima.
Edith desliza e encavalita-se sobre ele, depois en ia dentro dela o
membro nã o completamente ereto e beija-o. Rex empurra com cautela
para nã o escorregar para fora. Ela olha-o nos olhos, agarra-lhe a mã o
direita e pousa-a no seio. Rex ica mais rı́gido dentro dela, e Edith
inclina-se sobre ele, gemendo contra a sua boca.
– Tinhas o telefone a tocar – diz Rex, com uma voz rouca.
– Eu sei.
– Nã o queres ir ver quem era?
– Nã o fales tanto – diz ela, a sorrir.
Alguns caracó is inos colaram-se-lhe à testa por causa do suor, o
batom desapareceu e o rı́mel escorreu para debaixo dos olhos, como
uma sombra escura.
Edith respira mais depressa; pousa-lhe as mã os no peito,
abandona-se com todo o seu peso sobre ele e desliza para trá s,
ofegante.
Rex volta a pegar-lhe nos seios e observa como se apertam um
contra o outro, a cada movimento.
Ela geme e move-se mais rapidamente, as coxas começam a tremer-
lhe e fecha os olhos.
– Continua – diz, arquejante.
Rex tem um orgasmo. Nã o consegue reagir a tempo e vem-se
dentro dela. Nã o faz sentido sair agora: é demasiado tarde, e deixa que
as coisas prossigam. Sente as contraçõ es e a sua lenta sucessã o.
Edith está vermelha no rosto, no pescoço e no peito. Abre os olhos,
dirige-lhe um largo sorriso e começa novamente a mover a anca. Um
risco de suor brilhante desce-lhe das axilas.
60
Rex acorda nu em cima da cama, a esbracejar como se estivesse na
á gua. Os batimentos cardı́acos aceleram de angú stia quando olha para o
reló gio e se apercebe de que sã o duas e meia.
Edith foi-se embora.
Deve ter saı́do sem que ele desse conta.
A gemer, Rex senta-se e começa a procurar o telemó vel, mas o
quarto gira tã o depressa que o impede de focar a vista. Levanta-se com
uma dor de cabeça latejante e quase cai logo a seguir. Tem de se
encostar à parede e fechar os olhos para arranjar forças para continuar.
O telemó vel está debaixo da cama. Enquanto se inclina para o apanhar,
imagens absurdas começam a atravessar-lhe o cé rebro. Pedaços de
carne cosidos uns aos outros com um io, sangue que brota de pá s de
carneiro envolvidas em bacon.
O ecrã do telemó vel indica nove chamadas nã o atendidas de
Sammy.
Rex sente gelar o sangue de preocupaçã o.
Tenta ligar-lhe, mas o nú mero nã o está disponı́vel: Sammy desligou
o telemó vel, ou entã o icou sem bateria.
Depois apercebe-se de que o ilho lhe deixou trê s mensagens de
voz. Com os dedos tré mulos, carrega para ouvir a primeira.
Pai, se quiseres vem mais cedo.
A chamada interrompe-se com um clic. A mensagem seguinte foi
gravada algumas horas mais tarde e Sammy parece bastante mais
cansado.
É uma e meia. Já estás a chegar?
Depois de um instante de silê ncio, o ilho acrescenta em voz baixa:
O Nico estava chateado e ignorou-me durante toda a noite, depois
foi-se embora com uma fulana e deixou-me aqui com um monte de
idiotas.
Rex ouve-o suspirar.
Estou à tua espera no topo da subida em frente à casa.
Rex levanta-se e ouve a terceira mensagem, enquanto as paredes
continuam a afastar-se bruscamente de cada vez que ele tenta ixá -las.
Pai, já estou a começar a andar. Espero que não tenha acontecido
nada.
En ia a roupa atirada para o chã o, bate numa parede e tenta conter
a ná usea. Cambaleia na entrada, encontra as chaves do carro de DJ em
cima da consola, en ia os sapatos e desce as escadas a correr.
Quando sai para o ar fresco, corre imediatamente para os
contentores do lixo e vomita no passeio sujo, no meio dos recipientes
verdes.
Treme como se estivesse com febre. Vomita outra vez e sente os
restos do buffet do Café Opera subirem-lhe à boca.
Com um passo instá vel, chega junto do carro de DJ, senta-se e fecha
a porta. Pega no papel que Sammy lhe deixou e mete o endereço no GPS.
Dirige-se a Nykvarn enquanto os efeitos persistentes do á lcool
deformam o mundo à sua volta, esticando-o em vá rias direçõ es como
um elá stico. Apertadas sobre o volante, as mã os tremem-lhe, e o suor
escorre-lhe ao longo das costas; reza em silê ncio para que nã o tenha
acontecido nada de grave.
Tenta novamente ligar a Sammy, mas guina para o lado e um
camionista alerta-o com umas buzinadelas.
Enquanto conduz, as recordaçõ es daquela noite voltam à sua mente
aos poucos de cada vez: o vinho, a paciê ncia de Edith com a sua ereçã o
insatisfató ria.
O conjunto dos acontecimentos emerge como uma cidade que se
ergue do mar: os campaná rios das igrejas e a torre da câ mara municipal
rompem a superfı́cie espumejante, a á gua escorre dos telhados das
casas, entorna-se para fora de portas e janelas, ao longo das ruas e das
praças.
Depois, quando recua, revela fragmentos cintilantes da noitada.
O champanhe que salpicou o chã o e os lençó is, a mã o de Edith na
cabeça dele enquanto a lambia, os suspiros e as coxas suadas contra as
faces, o candeeiro de pé que se tinha virado e apagado.
A certa altura tinha começado a vestir-se com a ideia de apanhar
um tá xi até Djursholm. Depois lembrou-se de que o ministro dos
Negó cios Estrangeiros tinha morrido.
Tropeçou na bolsa de Edith, voltou a pô -la no sı́tio e reparou que
havia uma faca entre a carteira e o estojo da maquilhagem.
Opta pela ponte de Saltsjö bron, porque a de Sö dertä lje está fechada
desde junho, ou seja, desde que um TIR se virou ali; agora está em risco
de cair, e Sammy acha que para ter dani icado a ponte de uma forma tã o
grave nã o devia ser um TIR, mas uma nave espacial.
Rex é sacudido por uma tremura e diminui a velocidade.
Depois de Sö dertä lje o trâ nsito torna-se menos intenso e a
autoestrada está quase vazia.
Rex acelera novamente, passa por um lago de superfı́cie imó vel e
depois nã o se vê mais nada em volta dele senã o um bosque de
pinheiros.
Observa o ecrã do GPS: a saı́da para Nykvarn é dali a cinco
quiló metros, e a seguir deverá encontrar a isolada zona de
Tubergslund.
Ultrapassa um furgã o branco com um cartã o em lugar do vidro de
trá s e põ e o pisca. Quando está prestes a regressar à faixa da direita,
repara numa igura esguia a pedir boleia do outro lado.
Rex percebe que se trata de Sammy, por isso reage instintivamente
e guina à direita, indo parar à faixa de emergê ncia. Trava bruscamente,
e as rodas derrapam durante algum tempo no asfalto coberto de
gravilha.
Ao passar por ele, o motorista do furgã o buzina durante muito
tempo.
Rex sai do carro sem fechar a porta. Volta atrá s, pela berma, espera
que passe um autocarro branco e depois atravessa as duas faixas. Mete-
se na erva alta que separa os dois lados da autoestrada, enquanto uma
ila de carros passa a grande velocidade diante dele. Atravessa o outro
lado da estrada e começa a correr na faixa de emergê ncia em direçã o a
Sammy.
O solo treme com a passagem de um TIR enorme. O ar deslocado
pelo veı́culo faz voar em volta dele o lixo e o pó levantados da berma.
Tenta correr mais depressa quando vê Sammy, mais adiante,
enquadrado pelos faró is do TIR que avança a rugir. A silhueta franzina
do ilho surge, durante alguns instantes, rodeada por um halo vermelho
no momento em que ica iluminada pelas luzes traseiras do camiã o.
– Sammy! – grita Rex, detendo-se, sem mais fô lego nos pulmõ es. –
Sammy!
O ilho volta-se, olha para ele, mas levanta novamente o polegar
quando vê aproximar-se outro carro.
Rex, ofegante, recomeça a correr com o suor a escorrer-lhe ao longo
das costas. Nã o para enquanto nã o chega junto do ilho.
– Desculpa, sinto muito. Adormeci…
– Eu tinha con iado em ti – diz Sammy, e começa a caminhar.
– Sammy – suplica Rex, tentando detê -lo. – Nã o sei o que dizer…
Nã o é fá cil admitir, mas a verdade é que eu sou um alcoó lico… E uma
doença, e ontem tive uma recaı́da.
Finalmente, Sammy volta-se e olha para ele. Tem o rosto pá lido, e
parece completamente exausto.
– Estou envergonhado – diz Rex. – Estou terrivelmente
envergonhado, mas estou a tentar enfrentar os problemas.
– Eu sei, pai, e isso é bom – responde o ilho, com ar sé rio.
– A mã e disse-te que eu vou aos encontros dos Alcoó licos
Anó nimos?
– Sim.
– Pois, claro que te disse – murmura Rex.
– Pensava que nã o me querias falar sobre isso – replica Sammy.
– Só te quero dizer… que nã o levei a coisa a sé rio, mas que daqui em
diante vou fazê -lo. E uma doença, toda a gente sabe…
– Sim.
– Vou ter seguramente outras recaı́das, mas agora, pelo menos,
admiti que tenho um problema, e sei que isto teve repercussõ es
també m sobre ti…
Quebra-se-lhe a voz enquanto lá grimas quentes lhe enchem os
olhos. Os carros passam a grande velocidade ao lado deles e iluminam
por alguns segundos o rosto de Sammy.
– Vamos para casa? – pergunta Rex, observando o olhar hesitante
do ilho. – Nã o, nã o tenciono conduzir. Vamos até Sö dertä lje e
apanhamos um tá xi ali.
Começam a caminhar os dois quando um carro da Polı́cia passa do
outro lado. Rex vira-se e vê -o parar na faixa de emergê ncia, atrá s do
carro de DJ.
61
Verner Sandé n está apoiado ao encosto da cadeira e observa Saga
Bauer, em pé diante da sua secretá ria.
– Eu sei como funciona a Sä po – diz ela, em voz baixa, enquanto
pousa a pistola e o crachá em cima da mesa.
– De qualquer maneira, nã o foste despedida. Vais só tirar umas
fé rias – diz Verner.
– Eu nunca vou permitir…
– Nã o te entusiasmes – interrompe-a Verner. – Nã o estou para aı́
virado, sabes perfeitamente.
– Nunca vou permitir que se deixe atuar um anormal de um
assassino sem ningué m o incomodar só para que a Sä po possa tirar
alguma vantagem disso.
– E por isso que te vamos oferecer uma viagem à s Caná rias.
– Pre iro uma bala na cabeça – rebate Saga.
– Nã o sejas infantil.
– Até posso aceitar continuar a ingir que o ministro morreu de
doença, mas nã o posso deixar um assassino à solta. E inadmissı́vel.
– O Janus está a tratar da investigaçã o – explica-lhe Verner.
– Disse-me que foi transferido para o setor logı́stico por causa do
funeral.
– Mas depois poderá retomar as coisas no ponto em que as
interromperam – replica o outro.
– Tenho a vaga sensaçã o de que isso nã o é uma das tuas
prioridades.
Verner Sandé n folheia alguns documentos que tem diante dele,
depois cruza as mã os com a intençã o de as fazer icar quietas.
– Nã o te zangues – diz, com uma calma extrema. – Penso que te fará
bem mudar de ares durante uns tempos e pô r uma certa distâ ncia
entre…
– Eu nã o estou zangada – diz ela, avançando um passo.
– Saga, eu sei que está s desiludida com a maneira como decorreu a
operaçã o no estaleiro – diz Verner. – Mas o lado positivo é que, graças a
esta histó ria, obtivemos um aumento de recursos, e isso signi ica que
agora podemos combater os verdadeiros terroristas de uma forma mais
e icaz.
– Fantá stico.
– Já estamos inundados em pedidos de partilha da nossa
experiê ncia com outros serviços de segurança.
– Começaram a brincar com os meninos grandes – comenta Saga, a
sorrir, e a sua testa começa a icar vermelha de irritaçã o.
– Nã o… Ou melhor, inalmente entrá mos em campo – con irma
Verner.
– OK, mas eu tenho de continuar a trabalhar – diz ela.
– No teu computador foram guardadas informaçõ es que poderiam
pô r em risco o cará cter secreto da operaçã o… o que constitui um grave
atentado relativamente ao estado democrá tico.
– Eu sei o que signi ica a expressã o «cará cter secreto» – responde
Saga. – Mas o ministro dos Negó cios Estrangeiros morreu mesmo,
certo?
– Morreu de causas naturais – rebate Verner.
– Quem é que vai procurar o assassino?
– Qual assassino? – pergunta ele, a olhar para ela sem baixar os
olhos.– O Absalon foi esfaqueado diante da mulher e dos ilhos pelo
mesmo…
– Uma notı́cia terrı́vel, é verdade.
– … pelo mesmo assassino.
– Segundo o Janus, nã o há ligaçã o entre as duas mortes… Por isso, a
esse inqué rito foi atribuı́do um nı́vel de prioridade mais baixo.
– Tenho de continuar – exclama Saga, com uma voz inquieta.
– OK, como quiseres.
– Nã o há merda de fé rias nenhumas.
– Está s dispensada… mas vais trabalhar com o Janus.
– E com o Joona – acrescenta ela.
– Como?
– Prometeste que o Joona ia icar em liberdade condicional.
– Nã o – rebate Verner, e um sorriso involuntá rio passa-lhe pelo
rosto.
– Nã o me venhas contar histó rias a mim – diz Saga, com um tom
ameaçador.
– Se te referes a algum documento secreto, devo recordar-te que…
Saga varre a secretá ria com a mã o, fazendo cair ao chã o o telefone e
a pilha de relató rios.
– Eu vou prosseguir a investigaçã o juntamente com o Joona – diz.
– Porque é que continuamos a falar dele?
– O Joona consegue entender os assassinos. Nã o sei como é que ele
faz, mas agora tu mandaste-o de volta para Kumla.
– Nó s somos a Sä po. Tu nã o podes ter nenhum contacto com o
Joona, é uma ordem que…Saga atira ao chã o a chá vena de café e um
processo com muitas folhas.
– Porque é que te comportas assim? – pergunta Verner, mantendo a
calma.
– Tu prometeste ao Joona. Prometeste-lhe, porra! – grita Saga, ao
mesmo tempo que vira a cadeira das visitas e arranca da parede o
calendá rio de Save the Children.
– Bem, també m podes esquecer a viagem – diz ele, ferido.
– Mete-as no cu, as Caná rias de merda – responde Saga, avançando
em direçã o à porta.
62
Enquanto DJ ajuda Sammy a vestir um fato preto, Rex vai ao quarto
e fecha a porta. Senta-se na cama, pega no telefone e liga à mã e do ilho.
O telefone chama, e ele recorda com um suspiro aquela manhã . Sammy
ainda dormia quando ele acordou, perto das dez. Com uma dor de
cabeça tremenda, subiu à cozinha, abriu o frigorı́ ico dos vinhos e
espreitou lá para dentro. Escolheu a garrafa mais cara, um Romané e-
Conti de 1996, e abriu-a; depois aproximou-se do balcã o e despejou-a
no lavaloiça. Ficou a olhar para o vinho tinto que desaparecia a
rodopiar no ralo e depois foi buscar outra garrafa.
– Estou?
Pela voz, Veronica parece stressada. Ao fundo ouvem-se ruı́dos e
uma mulher a chorar e a gritar com uma voz cansada.
– E o Rex – diz ele, aclarando a voz. – Desculpa se te incomodo…
– O que foi? – limita-se Veronica a perguntar. – O que é que
aconteceu?
– Bem, ontem… – ataca Rex, sentindo as lá grimas queimarem-lhe os
olhos. – Bebi e… eu…
– O Sammy já me ligou. Disse que está tudo a correr bem convosco,
que ontem bebeste um bocado, mas que nã o aconteceu nada de grave e
que se resolveu tudo.
– O quê ? – sussurra Rex.
– Fico contente por o Sammy se sentir feliz. Nã o está a passar uma
fase muito boa, sabes?
– Veronica, é muito bom… – começa Rex, tentando fazer
desaparecer o nó que lhe aperta a garganta. – E muito bom, para mim,
estar com o Sammy, quero… Espero que possamos continuar desta
maneira.
– Falamos sobre isso mais tarde – remata Veronica. – Agora vou ter
de dar uma mã o aqui.
Rex ica sentado, com o telefone na mã o, a pensar que Sammy é
muito mais maduro do que ele imagina. Liga à mã e para a tranquilizar e
mente dizendo-lhe que está a correr tudo bem para que ela nã o largue
aquilo que está a fazer, abandonando assim os seus pró prios sonhos
para regressar a casa.
Quinze minutos mais tarde, Rex está sentado com Sammy no banco
traseiro de um Uber, e ouve DJ dizer ao motorista para os levar até
Regeringsgatan, de onde depois se vã o dirigir à igreja a pé .
O motorista queria virar, mas a rua lateral está fechada com
enormes blocos de cimento e um polı́cia municipal indica-lhe que
devem seguir em frente.
Por razõ es de segurança, toda a á rea em volta da igreja de Sankt
Johannes foi encerrada ao trâ nsito.
No funeral vã o estar presentes os membros do governo sueco, os
ministros dos Negó cios Estrangeiros dos outros paı́ses nó rdicos e os
embaixadores da Alemanha, França, Espanha e Grã -Bretanha. Mas a
principal razã o da enorme concentraçã o de forças da ordem é a
presença do secretá rio da Defesa americano, Teddy Johnson, amigo
pessoal do ministro dos Negó cios Estrangeiros. Devido à in luê ncia
fundamental exercida por ele na decisã o da administraçã o americana
de invadir o Iraque, Teddy Johnson atraiu sobre a sua pessoa uma sé rie
de gravı́ssimas ameaças.
– Sammy, nã o sei se reparaste, mas deitei fora o vinho e as bebidas
brancas.
– Andaste a fazer barulho a manhã inteira – responde o ilho, em
voz baixa.
– E estranho, mas agora sei que nã o posso con iar em mim –
prossegue Rex. – Sabes, eu desprezo os alcoó licos que participam nos
encontros, mas a inal sou um deles… E difı́cil admiti-lo, mas sou o pior
pai do mundo e mereço o teu ó dio.
No habitá culo, a atmosfera é ainda de embaraço quando saem do
carro e seguem por David Bagares gata. Estã o os trê s de fato preto,
camisa branca e gravata preta, mas Sammy en iou um lenço vermelho
no bolso.
Quinhentos polı́cias e agentes da segurança foram posicionados em
pontos estraté gicos à volta da igreja. Os trajetos dos autocarros foram
modi icados. Os baldes do lixo foram removidos e os esgotos tapados. O
trá fego aé reo foi limitado, de forma a que só os helicó pteros da Polı́cia e
da emergê ncia mé dica possam aceder ao espaço por cima da igreja. Os
carros e os outros veı́culos foram mandados retirar, os edifı́cios
adjacentes inspecionados e cã es especializados em farejar explosivos
exploraram toda a á rea interdita.
Uma luz azul cobre as fachadas das casas enquanto Rex, DJ e
Sammy se aproximam do posto de bloqueio seguinte. Uma camioneta
da Polı́cia está estacionada em frente à s barreiras, e os agentes de
metralhadora à cintura obrigam-nos a parar para veri icar os convites e
confrontar os nomes nos documentos de cada um com os da lista de
participantes.
– Eu sei que nem toda a gente gosta de mim, mas estas medidas de
segurança parecem-me realmente um pouco exageradas – brinca Rex.
– Só queremos que nã o corra riscos – responde um agente, a sorrir,
enquanto o deixa passar.
Uma longa ila de convidados avança para lá dos antigos tú mulos
do cemité rio e ao longo da ampla escadaria até ao controlo de
segurança ao lado da porta de entrada.
Rex vai atrá s de Sammy e Dj atravé s daquele mar de gente quando
um jornalista o deté m para lhe fazer algumas perguntas rá pidas.
– O que signi icava o ministro dos Negó cios Estrangeiros para si? –
pergunta, apontando-lhe o enorme microfone.
– Eramos velhos amigos – responde Rex, passando instintivamente
uma mã o pelos cabelos. – Era uma pessoa fantá stica… Um…
O descaramento da mentira fá -lo perder o io do discurso. De
repente, já nã o sabe o que dizer nem como continuar a frase. O
jornalista ita-o com um olhar vazio. O microfone oscila diante da boca
de Rex, que começa a contar que levou o ilho ao funeral, antes de
perceber que chegou o momento de parar.
– Desculpe – diz. – Nã o estou em muito boa forma. Foi uma enorme
perda… O meu pensamento está com a famı́lia.
Afasta o jornalista com um gesto, depois vira-se, espera uns
segundos e a seguir continua a andar em direçã o à igreja, à espera de
encontrar DJ e Sammy no meio da confusã o.
Dois guarda-costas escoltam o primeiro-ministro e a mulher
enquanto sobem as escadas.
Um cã o ladra, e os agentes de segurança chamam ao lado um dos
convidados. Está irritado, fala inglê s com um forte sotaque e gesticula
em direçã o ao grupo de pessoas que o espera.
O ruı́do de um helicó ptero ecoa por entre as paredes das casas. Um
homem idoso com um andarilho é ajudado a entrar na igreja.
– Aqui em baixo! – grita DJ.
Sammy e DJ estã o na ila aos pé s da escadaria e esbracejam para
conseguirem ser vistos. O kajal em volta dos olhos do ilho realçar-lhe a
palidez do rosto. Rex abre caminho até eles. Deve confessar a Sammy,
re lete enquanto avança, que descobriu que ele aguenta aquela situaçã o
só por amor à mã e.
– Onde é que te meteste? – pergunta DJ.
– Estava a falar com um jornalista sobre o meu velho amigo –
responde Rex.
– E por isso que estamos aqui – diz DJ, satisfeito.
– Eu sei, mas…
Mais acima, uma senhora perde a bolsa, que rola pelas escadas
abaixo enquanto batons e caixas de sombras desaparecem no meio da
multidã o. Um espelhinho de bolso quebra-se, e os cacos de vidro
espalham-se a toda a volta.
Dois agentes de segurança aproximam-se com um olhar vigilante.
Um bando de pombas traça um arco por cima das pessoas na ila,
depois desaparece atrá s da igreja.
No topo da escadaria, antes do controlo de segurança, Rex afasta-se
para o lado juntamente com um jornalista da televisã o. Para por baixo
do re lexo dos tijolos vermelhos, assume uma expressã o solene e fala da
amizade com o ministro, das brincadeiras e das conversas loucas
quando eram novos.
Aproxima-se da porta, é convidado a passar atravé s do detetor de
metais e depois passa pela ila de agentes armados até aos dentes.
Quando entra na igreja, já nã o vê Sammy nem DJ.
Está toda a gente a instalar-se nos seus lugares e o ranger dos
bancos de madeira ecoa por entre as paredes altas.
Rex avança ao longo da nave central, mas nã o consegue vê -los em
lado nenhum. Devem ter-se perdido no meio da multidã o ao subir ao
palco do ó rgã o. Choca com um homem de luvas pretas que passa
adiante.
O caixã o branco foi posicionado no coro, envolvido pela bandeira
sueca.
Os sinos começam a tocar e Rex é obrigado a en iar-se num dos
bancos, ao lado de uma senhora de idade. Inicialmente a mulher parece
incomodada, mas depois reconhece-o e entrega-lhe um exemplar do
livrinho da celebraçã o.
Uma mulher loira com uns olhos de um negro intenso cruza o seu
olhar e depois vira-se de repente. Fica sentada durante alguns instantes
com as mã os en iadas entre as pernas, depois levanta-se e sai da igreja.
O ó rgã o começa a tocar as notas do primeiro salmo e todos os
presentes se levantam, fazendo ranger os bancos. Rex olha em volta à
procura de Sammy. A procissã o avança pela nave central enquanto os
meninos do coro ocupam os seus lugares nos degraus do altar e o
pastor se aproxima do microfone.
Voltam todos a sentar-se com bastante ruı́do, depois o sacerdote
toma a palavra, dizendo que naquele dia estã o todos ali reunidos para
dizer adeus ao ministro dos Negó cios Estrangeiros e para o con iar à s
mã os de Deus.
Ao fundo à direita estã o sentados os familiares do ministro, e na ila
atrá s encontram-se o chefe do governo e Teddy Johnson.
Rex repara, mais adiante, num homem com as faces suadas
ocupado a empurrar com o pé uma bolsa debaixo do banco.
O coro começa a cantar e Rex deixa-se cair contra o encosto do
banco, depois contempla a abó bada do teto, fecha os olhos e ica a
escutar aquelas vozes cristalinas.
Acorda e passa uma mã o pela boca no momento em que o pastor
lança um punhado de terra sobre o caixã o, pronunciando aquelas
palavras inquietantes:
– Do pó vieste, ao pó regressará s.
63
O caçador de coelhos manté m-se imó vel com os olhos no chã o
enquanto o elevador sobe. Naquele momento encontra-se na torre
norte do complexo de Kungstornen, longe da zona bloqueada pela
Polı́cia.
Amarra a tira de couro com as longas orelhas de coelho à volta da
cabeça, aperta-a na nuca e ouve o rumor dos cabos e o ruı́do metá lico
da cabina quando passa pelos vá rios andares.
Sai no dé cimo quarto, passa a entrada de vidro opaco da East
Capital e segue pela escada que sobe à volta do poço do elevador.
A chave nova roda ainda com di iculdade na fechadura quando abre
a porta da Scope Capital Advisory S.p.a., desativa o alarme e atravessa o
tapete amarelo sobre o chã o de granito.
No balcã o da receçã o, umas tulipas despontam de uma jarra, e
algumas pé talas arredondadas caı́ram sobre o tampo negro.
O caçador inclina-se, agarra no tapete por uma ponta e arrasta-o
atrá s de si, para lá dos gabinetes vazios de paredes de vidro.
Em todas as direçõ es abrem-se janelas em forma de meia-lua –
cujas caixilharias em arco fazem lembrar a forma estilizada de um pô r
do sol – e Estocolmo inteira estende-se aos seus pé s.
O tempo já escasseia.
Entra na sala de reuniõ es virada a norte e arrasta o tapete para a
frente de uma das janelas em arco.
Parte os painé is do vidro inferior com o cabo da faca, depois afasta
todos os cacos que icaram presos ao caixilho com a parte traseira da
lâ mina. O vento faz cair as folhas de um armá rio.
Rapidamente, o caçador contorna a mesa de reuniõ es e começa a
empurrá -la para a janela. Bate contra a parede e faz cair fragmentos de
tinta branca no rodapé .
Põ e o tapete em cima da mesa, estende-o e dobra-o ao meio, depois
vai buscar ao bengaleiro um grande saco negro. Com movimentos
rá pidos, tira a sua .300 Winchester Magnum e abre a coronha.
Usa uma arma produzida pela Accuracy International, uma
espingarda de precisã o bolt-action de ú ltima geraçã o com o carregador
curvo, uma caixa melhor e o cano mais curto.
Nã o demora mais de vinte segundos a montar a arma, deitar-se de
barriga para baixo em cima do tapete dobrado a apontar o cano diante
da abertura da janela.
Para lá dos telhados dos edifı́cios de Malmskillnadsgatan vê -se a
igreja de Sankt Johannes com o telhado de cobre verde-claro, a torre a
apontar para o cé u como um punhal e os riscos horizontais das escadas
de pedra.
Durante o reconhecimento, algumas horas antes, o medidor de
distâ ncia tinha indicado que a porta principal da igreja icava apenas a
trezentos e oitenta e nove metros dali.
Preparou uma almofada de esponja para apoiar a face, de forma a
que os seus olhos icassem exatamente alinhados com a mira. Usa
sempre uma Nightforce, porque tem um vidro incrivelmente lı́mpido.
Nã o precisa de estar sempre a regulá -la, basta fazê -lo sobre os
quatrocentos metros, aproximadamente.
O cano é dotado de um silenciador capaz de reduzir tanto o ruı́do
como a faı́sca. Ningué m ouvirá o disparo, ningué m notará um sú bito
relâ mpago de luz.
O caçador silencioso afasta as orelhas do rosto, apoia o olho direito
contra a mira, perscruta para alé m dos ramos das á rvores e observa a
letra ó mega dourada por cima da porta principal; desce lentamente os
olhos, descobre o metal negro e castanho do puxador e lembra-se do
verã o á rido dos seus nove anos.
Recorda a agitaçã o interior que o dominou quando se en iou no
meio das estufas abandonadas. A luz pá lida entrava a jorros pelos
vidros poeirentos e partidos. Lentamente, abriu caminho por entre a
erva amarelecida, levantou a sua pequena Remington Long Ri le,
apertou a coronha contra o ombro e pousou o indicador na lingueta do
gatilho.
Um coelho acastanhado passou diante dele a correr e desapareceu
na sombra de um arbusto.
Ele avançou por cima de um caixote sujo atirado ao chã o,
contornou lentamente uma cadeira de madeira partida e parou,
esperando apenas trinta segundos. Quando se mexeu de novo, o coelho
tinha recomeçado a correr. Ele seguiu-o com o cano, fazendo mira ao
corpo logo abaixo da cabeça, e disparou. O coelho foi percorrido por um
fré mito e caiu ao chã o a meio de um salto; depois icou imó vel. Cacos de
vidro cintilavam no meio da erva, re letindo o cé u branco em volta do
animal que tremia.
Agora a porta de Sankt Johannes foi aberta e os convidados
dirigem-se ao exterior juntamente com os agentes de segurança.
Mantendo a distâ ncia focal de 32 mm, observa na mira uma menina
que parou no segundo patamar da escadaria. Nã o deve ter mais de doze
anos. Lentamente, o seu olhar desce ao longo do pescoço da menina,
descobre a arté ria latejante por baixo da pele ina e a linha levemente
oblı́qua de uma pequena corrente.
O sacerdote, à entrada, troca algumas palavras com as pessoas que
estã o paradas junto dele. O primeiro-ministro aparece à porta
juntamente com a mulher e os guarda-costas. O caçador desloca a mira,
enquadrando no centro do retı́culo em cruz o olho direito do primeiro-
ministro.
Um bando de pombas levanta voo no momento em que quatro
polı́cias vestidos de negro se aproximam da igreja. A sombra dos
pá ssaros corre rapidamente atravé s da praça até chegar à escadaria.
Teddy Johnson sai pela porta principal entre dois guarda-costas
americanos e para a cumprimentar a viú va e os ilhos do ministro.
Na mira, o caçador distingue o eczema por baixo dos cabelos ralos
na nuca do secretá rio da Defesa e a gota de suor que lhe escorre ao
longo da linha do queixo. O polı́tico empurra os ó culos para cima do
nariz e pronuncia algumas palavras de condolê ncias antes de começar a
descer as escadas.
Sem perder a linha de tiro, o caçador pega no telemó vel pré -pago,
envia a mensagem e pousa novamente o dedo na lingueta do gatilho.
Debaixo dos seus olhos, Teddy Johnson sente a vibraçã o, extrai o
iPhone particular do bolso interior do casaco, levanta os ó culos e
observa o ecrã .
Ten little rabbits, all dressed in white
Tried to go to Heaven on the end of a kite
Kite string got broken, down they fell
Instead of going to Heaven, they went to…

O caçador de coelhos sabe que tem de ter em consideraçã o a sua


posiçã o sobrelevada, mas o vento é tã o fraco que nã o vai ter qualquer
impacto na trajetó ria do projé til. E a distâ ncia é demasiado curta para
que precise de se preocupar com o efeito de Coriolis, devido à rotaçã o
terrestre.
64
O gatilho do caçador de coelhos opõ e uma resistê ncia de pouco
mais de um quilo. E de tal forma exı́gua que quase nã o se sente.
No instante anterior ainda nã o disparou, no instante seguinte o tiro
já partiu.
Agora vê os polı́cias vestidos de negro com as metralhadoras ao
peito a falar nos radiotransmissores. Um cã o-polı́cia respira, ofegante, e
deita-se no caminho de saibro no meio das lá pides.
Teddy Johnson olha em volta, en ia o telefone no bolso e fecha o
botã o superior do casaco.
O ino retı́culo em cruz da mira está imó vel sobre o pescoço
queimado pelo sol, depois desce lentamente para o fundo das costas.
Dentro de poucos segundos, o caçador vai partir a coluna vertebral de
Teddy Johnson logo acima da bacia.
O ramo de uma á rvore atravessa a linha de tiro. O caçador de
coelhos espera que o coraçã o bata trê s vezes antes de pousar o dedo no
gatilho.
Carrega suavemente, sente o coice contra o ombro e vê Teddy
Johnson cair ao chã o.
O sangue escorre pelas escadas.
Os guarda-costas pegam nas armas, depois tentam perceber de que
direçã o chegou o tiro e se haverá algum ponto para algué m se proteger,
um lugar seguro nas proximidades.
O caçador respira lentamente e vislumbra por um instante o rosto
da vı́tima, as feiçõ es distorcidas pelo terror. Perdeu completamente o
controlo da parte inferior do corpo e respira com di iculdade.
Os guarda-costas tentam protegê -lo, fazendo de escudo na
eventualidade de que se sigam outros disparos, mas nã o fazem ideia de
onde se encontra o atirador.
A mira desliza ao longo do braço direito de Johnson. Uma leve
pressã o sobre o gatilho e a sua mã o salta no ar, transformada num
grumo esfacelado de sangue.
Os guarda-costas arrastam Johnson para o fundo das escadas,
deixando um risco de sangue sobre as lajes de pedra.
As pessoas a toda a volta fogem aos gritos, dominadas pelo pâ nico,
e a escadaria esvazia-se, como quando uma onda se abate sobre uma
praia e depois se retira.
Apenas o polı́tico americano ica ali, a contorcer-se de dor e de
medo.
O caçador vai deixá -lo viver durante mais dezanove minutos.
Enquanto espera, acaricia com os dedos uma das orelhas, sente a
cartilagem elá stica que se lete e aperta o pelo macio contra a face.
Sem perder a vı́tima de mira, muda o carregador, recorrendo desta
vez a balas de expansã o, mais pesadas. Depois continua a observar a
prolongada agonia de Teddy Johnson, o medo da morte estampado no
seu rosto.
As primeiras ambulâ ncias já chegaram a Dö belnsgatan.
Os polı́cias começam a organizar a caça ao sniper, mas ainda nã o
fazem a mı́nima ideia da direçã o de onde chegaram os disparos. Um
deles observa os esguichos de sangue e aponta na sua direçã o, para o
telhado do quartel dos bombeiros ali pró ximo.
Trê s helicó pteros da Polı́cia sobrevoam os quarteirõ es nas
imediaçõ es da igreja.
Os paramé dicos já chegaram junto de Teddy Johnson, tentam falar
com ele e a seguir levantam-no e deitam-no numa maca; depois
apertam uma correia em volta do seu corpo e abrem o carrinho.
O caçador olha de novo para o reló gio. Faltam quatro minutos. Tem
de atrasar o socorro.
Lentamente, aponta a mira à escadaria da Escola Francesa e
desloca o retı́culo em cruz de um homem aterrorizado com as faces
gorduchas para uma senhora de meia-idade com um penteado
tenebroso e o passe de jornalista pendurado ao pescoço.
Limita-se a disparar-lhe no tornozelo, mas as balas pesadas tê m
uma tal força de impacto que o pé da mulher salta no ar e rola pelas
escadas abaixo até ao passeio. A jornalista cai para a frente por causa
do tiro e rola de lado.
As ambulâ ncias voltam para trá s e as pessoas, aterrorizadas,
afastam-se a correr da mulher e escondem-se no meio das lá pides. Um
homem idoso tropeça no caminho de saibro, levantando uma nuvem de
pó e ferindo-se no rosto, mas ningué m se deté m para o ajudar.
Os agentes da Sä po estã o a tentar perceber o que se está a passar.
Tentam pô r o polı́tico americano a salvo e dizem aos paramé dicos para
se aproximarem pelo outro lado. Uma nova ambulâ ncia entra na
Johannesgatan e para em frente à antiga escola feminina.
O caçador respira fundo e olha para o reló gio.
Faltam quarenta segundos.
O rosto de Teddy Johnson está pá lido e suado. Puseram-lhe uma
má scara de oxigé nio na boca e no nariz, e com o medo as pá lpebras
batem-lhe sem interrupçã o.
Os paramé dicos transportam-no ao longo do caminho de saibro até
Johannesgatan. A mira segue o, e o retı́culo em cruz oscila sobre a sua
orelha.
O caçador apoia o dedo no gatilho no preciso momento em que a
roda da maca cai num buraco e o rosto de Johnson desaparece da sua
vista.
Os paramé dicos levantam a maca e o caçador enquadra de novo a
orelha de Teddy Johnson, depois carrega no gatilho e sente o coice no
ombro.
A cabeça explode e os fragmentos esguicham sobre o pavimento. Os
paramé dicos continuam a empurrar a maca durante alguns metros
antes de pararem a observar o poderoso polı́tico americano. A má scara
oscila, pendurada no tubo ao lado da maca, e no lugar do rosto nã o
resta senã o um pequeno fragmento cô ncavo da nuca.
65
Quando Rex conseguiu inalmente sair do cemité rio, já tinham
passado trê s horas. Atravé s de um funil de grades, os polı́cias deixaram
sair os participantes no funeral um a um ao longo de Dö belnsgatan.
Identi icaram escrupulosamente todas as pessoas, recolhendo breves
testemunhos e fornecendo contactos de alguns grupos de apoio.
Rex descortinou Edith no meio dos jornalistas reunidos fora do
posto de bloqueio e tentou, sem sucesso, cruzar o seu olhar.
Ningué m parece saber o que aconteceu, e os agentes recusam-se a
responder a perguntas.
Juntamente com os parentes e os amigos mais ı́ntimos do defunto,
os polı́ticos deixaram a igreja antes de todos os outros. Rex estava ainda
bloqueado na nave central quando ouviu gritos agitados e se apercebeu
de um movimento à entrada da igreja, ao mesmo tempo que as pessoas
voltavam para trá s para se abrigarem.
Ao im de quarenta minutos, a Polı́cia entrou para explicar que a
situaçã o estava sob controlo.
Os bombeiros lavaram o sangue da ampla escadaria, e, por todo o
lado, viam-se pessoas com as faces sulcadas de lá grimas, à procura dos
seus conhecidos.
Rex conseguiu contactar Sammy e DJ pelo telefone e decidiram
encontrar-se na casa do chef para tentar perceber o que tinha
acontecido. Falava-se em voz alta de um atentado terrorista e os
noticiá rios referiam um violento ataque com um nú mero de mortos nã o
especi icado.
Rex retira do forno o tabuleiro de pã es doces e serve o chá
fumegante enquanto Sammy e DJ estã o sentados à mesa da cozinha à
procura de informaçõ es na Internet.
– Sim, parece que dispararam contra o polı́tico americano – diz o
ilho.
– Que confusã o – suspira DJ, pousando o tabuleiro com a manteiga
e os frascos de compota ao lado das chá venas e dos pratos.
– Caramba, que loucura – diz Rex.
– Tentou sair por onde nó s entrá mos – acrescenta Sammy. – Em
David Bagares gata, mas a rua estava bloqueada.
– Eu sei – diz DJ. – Eu tentei a escada pró xima de Drottninghuset.
– Onde é que estavam sentados?
– Subimos os dois ao palco do ó rgã o.
– Eu iquei sentado junto à nave central – diz Rex.
– Nó s vimos-te, pai, icaste assim durante o tempo todo – con irma
Sammy, fechando os olhos e abrindo a boca.
– Estava a apreciar a mú sica – atira Rex.
– Nesse caso, devias ter-te apercebido das bolinhas de papel… nó s
icá mos um de cada lado do palco e estivemos em competiçã o a tentar
acertar-te na boca.
– A sé rio?
– Acho que ganhei eu – diz Sammy, a sorrir, depois passa uma mã o
pelos cabelos exatamente como o pai faz a toda a hora.
O adesivo no antebraço de Sammy está a soltar-se e Rex repara
numa ila de queimaduras de cigarro.
DJ mostra o telefone aos outros e Rex vê a foto do rosto
arti icialmente bronzeado de Teddy Johnson, o corpo demasiado
robusto e o brilho arrogante nos olhos azuis.
– As forças da ordem já declararam que nada indica uma ligaçã o
com uma rede terrorista – diz Sammy.
– Mas o responsá vel foi capturado? – pergunta DJ.
– Nã o sei, nã o diz nada…
– Que verã o absurdo – diz Rex, com um tom pesaroso. – Parece que
meio mundo está a cair em desgraça, Orlando, Munique, Nice…
Interrompe-se porque está algué m a tocar à porta, murmura que já
nã o tem forças para enfrentar mais jornalistas e sai da cozinha. Desce
as escadas e ouve tocar novamente, depois chega à porta e abre-a.
No patamar está um homem de cabelos compridos e avermelhados
e o rosto suado. Veste um blusã o de pele justo com divisas militares e
um cinto largo.
– Boa tarde – diz, ostentando um largo sorriso que lhe comprime as
rugas de expressã o em voltados olhos.
– Boa tarde – responde Rex, com uma voz hesitante.
– Janus Mickelsen, Sä po – prossegue o homem, mostrando-lhe o
crachá . – Tem uns minutos para mim?
– De que se trata?
– Excelente pergunta – diz o agente, a espreitar por cima do ombro
de Rex.
– Já estiveram em minha casa.
– Sim, exatamente, foi isso, a comissá ria Bauer… eu trabalho com
ela – con irma o homem, afastando uma madeixa de cabelo do rosto.
– OK.
– O senhor gostava muito do ministro dos Negó cios Estrangeiros –
diz o homem, com um tom con idencial que provoca em Rex um arrepio
ao longo da espinha.
– Quer dizer politicamente?
– Nã o.
– Eramos velhos amigos – responde Rex brevemente.
– A mulher dele diz que nunca se encontraram.
– Obviamente, nã o lhe causei boa impressã o – diz Rex, obrigando-
se a sorrir.
Sem retribuir o sorriso, Janus entra no hall e fecha a porta atrá s de
si, observa o andar inferior do apartamento e depois ita Rex com
curiosidade.
– Conhece algué m que gostasse um bocadinho menos do ministro?
– Quer dizer, se tinha inimigos?
Janus assente, ao mesmo tempo que limpa o suor da testa sardenta.
– Quando nos encontrá vamos, as mais das vezes falá vamos do
passado – diz Rex.
– Os belos tempos que já lá vã o… – murmura Janus, apertando um
dos botõ es do blusã o.
– Pois.
– Podemos metê -lo num programa de proteçã o de testemunhas…
Garanto-lhe pessoalmente que pode contar com o nı́vel má ximo de
segurança.
– Porque é que eu havia de precisar de proteçã o? – pergunta Rex.
– Re iro-me ao caso de dispor de informaçõ es que nã o tem coragem
para revelar com medo de ir de encontro a alguma coisa feia – diz Janus,
em voz baixa.
– Algué m me está a ameaçar? – pergunta Rex.
– Espero que nã o, adoro o seu programa de televisã o – responde
Janus. – Só estou a dizer que eu ajudo aqueles que me ajudam a mim.
– Mas, infelizmente, eu nã o tenho nada para lhe dizer.
Janus encolhe os ombros com um ar iró nico, como se duvidasse das
palavras de Rex, ou como se tivesse icado extremamente surpreendido.
– Sinto uma energia em si, uma energia positiva, mas parece-me
bloqueada – diz, semicerrando os olhos.
– Pode ser.
– Estava a brincar… Nã o consigo evitá -lo, já que, como toda a gente
diz, pareço um hippie.
– Peace – diz Rex, esboçando um sorriso.
– Aquilo é um Chagall? – pergunta Janus, indicando uma litogra ia. –
Fantá stico… o anjo que cai.
– Sim.
– Disse à minha colega que tomou um café com o ministro há cerca
de duas semanas.
– Sim.
– Que dia era, exatamente?
– Nã o me lembro – diz Rex.
– Mas lembra-se a que café é que foram?
– Ao Vetekatten.
– Uma chá vena de café ? Uma fatia de bolo?
– Sim.
– Caramba, ó timo. Quero dizer… Devem lembrar-se de os ter visto:
Rex e o ministro dos Negó cios Estrangeiros sueco ali a alambazarem-se
de bolo – diz Janus.
– Desculpe, mas será que podemos falar noutra altura… Acabá mos
de chegar do funeral e…
– Ia mesmo perguntar-lhe isso.
– Sim, mas tenho de tratar do meu ilho, estamos bastante
perturbados…
– Percebo, claro – diz Janus, ao mesmo tempo que leva à boca a mã o
pouco irme. – Mas també m gostava de falar com ele, quando tiver mais
algum tempo.
– Ligue-me e combinamos – diz Rex, e abre a porta.
– Tem carro?
– Nã o.
– Nã o tem carro – repete Janus, pensativo, antes de deixar o
patamar e desaparecer pelas escadas.
66
Joona passa as horas na cela acanhada sem qualquer contacto com
o mundo exterior. Durante o resto da tarde treina, repetindo as palavras
do tenente holandê s sobre a forma como a coragem e o medo
dependem de uma repartiçã o estraté gica da pró pria energia e sobre a
importâ ncia de manter escondidas o má ximo tempo possı́vel as nossas
melhores armas.
Dorme mal e acorda cedo. Lava a cara e depois volta a examinar
mentalmente o caso. Analisa todos os pormenores que consegue
recordar, avaliando as perspetivas a trezentos e sessenta graus e
deslocando-se de grau em grau como o mostrador de um reló gio, e está
cada vez mais convencido da sua teoria.
A chuva cai contra a janela de um cé u cinzento e encoberto. O
tempo passa inexoravelmente atravé s das paredes e dos corpos.
E de tarde quando dois guardas batem à porta, a abrem e lhe
pedem para os seguir.
– Preciso de fazer um telefonema, apesar de provavelmente já ser
demasiado tarde – diz Joona.
Sem lhe responderem, acompanham-no atravé s da passagem
subterrâ nea. Como numa ré plica dos acontecimentos de alguns dias
atrá s, é conduzido a um encontro sem que o tenha pedido. Desta vez é
lhe indicado um dos chamados gabinetes dos advogados, mais à frente
das salas de visitas normais.
Os agentes mandam-no entrar e fecham a porta atrá s dele.
A uma secretá ria cortada a meio por um vidro divisó rio com trinta
centı́metros de altura está sentado um homem com a cabeça apoiada
entre as mã os. Para lá das grades da janela, uma á rvore recorta-se
contra o muro alto. Numa das paredes está pendurada uma fotogra ia a
preto e branco de Paris, com a silhueta da Torre Eiffel colorida com um
tom amarelo-dourado.
– O Absalon Ratjen morreu? – pergunta Joona.
Carlos Eliasson apoia-se ao encosto da cadeira e inspira
profundamente. Tem o rosto na sombra e os olhos, habitualmente
amigá veis, estã o ofuscados por uma obscuridade inquieta.
– Só quero dizer-te que levei a sé rio aquilo que disseste. Mandei
dois carros-patrulha.
– Deu-lhe um tiro? – pergunta Joona, sentando-se em frente ao seu
antigo chefe.
– Usou uma arma de corte – responde Carlos, em voz baixa.
– Primeiro feriu-o no tronco… Perdeu litros de sangue, mas icou
consciente apesar do efeito dador… até que cerca de quinze minutos
depois foi morto com…
– Um golpe na garganta – sussurra Carlos, espantado.
– Um golpe na garganta – assente Joona.
– Nã o percebo como é que conseguiste descobrir, uma vez que está s
em isolamento…
– E uma vez que você s nã o conseguiram prever o plano dele –
prossegue Joona. – E, naturalmente, nã o perceberam que o ministro dos
Negó cios Estrangeiros foi a primeira vı́tima porque o assassino
precisava de um funeral em grande estilo para atrair o alvo seguinte.
Carlos ica corado, levanta-se e desaperta o laço.
– O secretá rio da Defesa dos EUA – murmura.
– Quem tinha razã o? – pergunta Joona.
Carlos tira um lenço no bolso das calças e limpa a testa.
– Tu – diz, desmoralizado.
– E quem nã o tinha?
– Eu… Fiz como disseste, mas estava convencido de que estavas
errado – admite Carlos, voltando a sentar-se.
– Encontramo-nos perante um spree killer astuto, com um treino
militar de primeiro nı́vel… E ainda tem sete alvos na sua lista.
– Sete – murmura Carlos, olhando para Joona.
– Estes homicı́dios tê m a ver com uma motivaçã o estritamente
pessoal… Uma motivaçã o que, de alguma forma, altera a perceçã o da
realidade do assassino.
– Tenho uma oferta para ti – começa Carlos, cautelosamente,
pegando numa pasta de couro.
– Estou a ouvir – responde Joona com docilidade, exatamente como
tinha feito alguns dias antes durante o encontro com o primeiro-
ministro.
– Isto é um mandado já assinado – diz Carlos, mostrando-lhe um
documento. – O resto da tua pena vai ser convertido em trabalho
socialmente ú til para a Polı́cia… com efeito imediato, se aceitares as
condiçõ es.
Joona ita-o sem responder.
– E… garanto-te que depois podes voltar ao serviço, com a mesma
posiçã o que tinhas antes – diz Carlos, a bater um dedo sobre o
documento.
Joona permanece impassı́vel.
– O mesmo salá rio de antes… Podes ter um aumento, se para ti for
importante.
– Vou voltar a ter a minha sala? – pergunta inalmente Joona.
– Mudou muita coisa, enquanto tu estavas aqui – diz Carlos,
inquieto. – Já nã o somos a Polı́cia Criminal, como sabes… Agora
chamamo-nos SON, Secçã o Operativa Nacional, e o SKL já nã o se chama
SKL, mas Centro Forense Nacional, e…
– Quero a minha sala de volta – interrompe-o Joona. – Quero a
minha velha sala ao lado da Anja.
– OK, mas nã o é assim tã o fá cil, pelo menos nã o para já . E
demasiado cedo, ia criar uma certa desorganizaçã o no corredor. Ao im
e ao cabo, apanhaste uma condenaçã o.
– Percebo.
– Nã o me leves a mal. Agora temos uma sede fantá stica no n.° 11 de
Torsgatan… Nã o é bem a mesma coisa, eu sei, mas també m há um
apartamento que tem ligaçã o e onde se pode icar a dormir… Está tudo
por escrito aqui, lê o acordo e…
– Eu con io nas pessoas – diz Joona, sem tocar no papel.
– Isso é um sim? Está s mortinho por regressar, nã o é verdade? –
arrisca Carlos.
– Para mim nã o é um jogo – diz Joona, com uma expressã o sé ria no
rosto. – De dia para dia aumenta o risco de haver mais mortos.
– Vamos imediatamente – diz Carlos, levantando-se.
– Preciso da minha Colt Combat – responde Joona.
– Está no carro.
67
Joona Linna tem à disposiçã o um gabinete de quatrocentos metros
quadrados num edifı́cio de vidro e ferro, alto e estreito, encaixado entre
Torsgatan e os carris da Estaçã o Central.
Os espaços que pertenciam ao Collector Bank parecem ter sido
esvaziados a toda a pressa. Ficaram duas cadeiras ergonó micas, uma
secretá ria meio desmontada, uns cabos cheios de pó e umas brochuras
pisadas.
Na primeira noite, Joona prepara um prato simples de massa na
kitchenette, serve-se de um copo de vinho e senta-se a comer numa
cadeira de escritó rio na sala de reuniõ es escura. Atravé s das grandes
janelas sujas observa o delta das linhas de caminho de ferro ferrugentas
e os comboios que entram na estaçã o.
Em todos os meios de comunicaçã o social se fala da notı́cia do
homicı́dio do secretá rio da Defesa americano. O responsá vel nã o foi
capturado e a Polı́cia considera-o um escâ ndalo pior do que o
assassı́nio de Olof Palme. O FBI enviou os seus pró prios especialistas e
as relaçõ es entre os dois paı́ses tornaram-se tensas.
O porta-voz da Sä po continua a repetir que todas as ameaças
conhecidas foram postas sob vigilâ ncia e que os mais altos padrõ es
internacionais foram respeitados a todos os nı́veis.
Joona lê o relató rio da autó psia de Absalon Ratjen, morto diante do
olhar da mulher e dos ilhos. Pousa o prato em cima de um armá rio de
gavetas e começa a pensar nos carris e nas mudanças inexorá veis.
Em tempos, Joona era casado e tinha uma menina pequena, depois
icou sozinho.
As recordaçõ es assaltam-no: o pai, a mã e, Summa, Lumi, Disa e
Valeria.
A noite deita-se no divã da receçã o, com o forro desbotado pelo sol.
Num momento de um sonho, ouve Summa rir baixinho ao pé do seu
ouvido. Vira-se e vê -a: está descalça e o cé u arde atrá s dela, e tem na
cabeça uma pequena grinalda de noiva feita de raı́zes vermelhas
entrançadas.
As oito da manhã , os funcioná rios do departamento começam a
trazer computadores, impressoras, fotocopiadoras e todo o material do
inqué rito em grandes caixas de mudanças.
Agora Joona vai poder começar a trabalhar a sé rio.
Sabe que nenhum dos trê s homicı́dios foi cometido por terroristas,
mas pelo mesmo spree killer. Persegue um assassino que tem um plano
decidido, e que muito provavelmente vai atacar de novo em breve.
Numa grande parede pendura as fotogra ias das trê s vı́timas,
depois começa a reconstruir a complexa rede de parentes, amigos e
colegas. Na parede em frente traça linhas temporais que representam a
sua infâ ncia, os estudos e a carreira.
Na grande sala que claramente o Collector usava para as reuniõ es
do conselho de administraçã o, cobre as paredes com as fotogra ias das
cenas dos crimes: panorâ micas, primeiros planos de vá rios detalhes,
esboços e toda a documentaçã o da autó psia do corpo de Absalon
Ratjen.
Em todo o chã o do corredor até à cozinha posiciona pilhas de
documentos mé dico-legais e de peritagens té cnicas, depois põ e em ila
as transcriçõ es dos interrogató rios de parentes, amigos e colegas.
No chã o do gabinete dispõ e os vá rios relatos recebidos de cidadã os
e trê s e-mails de uma jornalista que pretendia ter acesso aos per is do
assassino de Absalon Ratjen e do atirador da Kungstornen.
Joona sente vibrar o telefone, tira-o do bolso e vê que a chamada
vem do departamento de medicina legal do hospital Karolinska.
– Isto é legal? – diz Nå len, com a sua voz nasalada.
– Isto o quê ? – pergunta Joona, com um sorriso.
– Quero dizer… Trabalhas outra vez para a Polı́cia, está s a orientar o
inqué rito, tens autoridade para…
– Acho que sim – interrompe-o o outro.
– Achas?
– E o que parece, de momento – explica Joona.
– Em qualquer caso, quero permanecer anó nimo enquanto
respondo à tua pergunta – diz Nå len, aclarando ruidosamente a
garganta. – O Absalon Ratjen perdeu sangue durante dezanove minutos
exatos antes de ter sido morto… Efetivamente, trata-se do mesmo lapso
de tempo em que o Teddy Johnson icou com vida entre o primeiro
disparo e o tiro fatal… Talvez pensasse numa coincidê ncia, se nã o
tivesses sido tu a fazer-me esta pergunta.
– Obrigado pela ajuda, Nå len.
– Sou anó nimo – corrige-o o outro, antes de desligar.
Joona observa as fotogra ias na parede. Com base na quantidade de
sangue e na direçã o dos esguichos na cozinha do ministro dos Negó cios
Estrangeiros, tinha já admitido a hipó tese de que deviam ter
transcorrido mais de quinze minutos entre o primeiro disparo e o tiro
mortal.
Agora compreende que a resposta exata é dezanove minutos.
Em qualquer parte, disso tem a certeza, algum detalhe liga as trê s
vı́timas.
Essa ligaçã o será a chave que vai desvendar o misté rio.
Nã o foram escolhidas ao acaso.
Entre William Fock e Teddy Johnson há mesmo demasiados
contactos que remontam à adolescê ncia e ao colé gio de Ludviksberg,
enquanto Ratjen parece totalmente isolado em relaçã o aos outros dois.
Viveu uma vida completamente diferente.
Naquela enorme quantidade de material nã o há sequer um ponto
de ligaçã o entre os trê s homens.
Um recorte do Orlando Sentinel mostra uma imagem do ministro
dos Negó cios Estrangeiros e de Teddy Johnson, na altura governador da
Fló rida, diante de uma orca marinha apanhada mesmo a meio de um
salto.
A vida de Ratjen seguiu outros caminhos.
Joona nã o consegue estabelecer uma ligaçã o aos outros dois, mas,
mesmo assim, tem a certeza de que deve haver alguma coisa que os
une.
As portas do elevador abrem-se na receçã o e algué m bate
levemente no vidro da sala de reuniõ es.
Saga Bauer entra na sala e, com um sorriso, entrega-lhe um saleiro
e um pã o como presente de boas-vindas.
– Está s muito bem instalado – brinca.
– Sempre tenho um bocadinho mais de espaço do que em Kumla –
responde ele.
Saga abre caminho com cautela pelo meio das pilhas de
documentos pousadas no chã o, espreita para fora da janela e depois
volta-se para Joona.
– Nã o podemos ter nenhum contacto – diz –, mas pelo menos o
Verner aceitou deixar-me prosseguir com a investigaçã o… e estou
mesmo contente por ter deitado ao chã o uma pilha de documentos que
estavam em cima da secretá ria dele… E por um processo me ter, por
acaso, caı́do na carteira… Coisa de que só me apercebi quando cheguei a
casa.
– Que processo?
– As informaçõ es sobre a famı́lia do Salim Ratjen recolhidas pela
Sä po – explica-lhe, extraindo as folhas do saco de desporto.
– Caramba!
– Percebes que nã o posso esquecer-me dele aqui… E que nã o posso,
de maneira nenhuma, dizer-te que te poderá ser ú til, se ainda andas à
procura de uma ligaçã o entre o Absalon Ratjen e o ministro dos
Negó cios Estrangeiros.
Joona pega no relató rio e folheia-o até chegar à s pá ginas que se
referem a Absalon Ratjen. Ao longe, a voz de Saga comunica-lhe que vai
descer até ao bar em Lilla Bantorget para tomar um café .
– També m queres? – pergunta-lhe.
Está a ler que Absalon Ratjen fugiu do serviço militar, e só consegue
murmurar que está muito acelerado e que precisa de pensar.
Absalon tinha chegado à Sué cia com dezassete anos, trê s anos antes
de Salim. Joona sabe, graças à có pia do registo do Centro de Emprego,
que Absalon tinha frequentado cursos de lı́ngua e respondido a todos
os anú ncios de trabalho, mas a Sä po conseguiu recolher muitas mais
informaçõ es. Foram descobrir o nome dele num inqué rito já arquivado
relacionado com uma empresa de limpeza acusada de fugir ao isco.
Absalon tinha feito parte do grupo de refugiados suspeitos de trabalhar
ilegalmente no armazé m, mas uma vez que tinham sido vigarizados no
salá rio tinha sido impossı́vel proceder contra eles.
Joona entra no pequeno gabinete que dá para a galeria de arte
Bonnier. Foi aqui que, numa parede, juntou todos os fragmentos de
informaçã o sobre o assassino e, na outra, os possı́veis parâ metros.
Elaborou até uma lista das academias militares de excelê ncia em todo o
mundo onde sã o ensinadas as té cnicas que o assassino demonstrou
conhecer.
Agora observa as fotogra ias forenses das feridas no corpo de
Ratjen. A faca ainda nã o foi identi icada, mas a lâ mina larga deve ser de
serra e extremamente a iada.
O golpe mortal atravé s das vé rtebras foi produzido com um
machete de lâ mina ferrugenta.
Joona senta-se no chã o e continua a ler o relató rio da Sä po.
O e-mail em que algué m o ameaçava de lhe devorar o coraçã o
provinha, na realidade, de um colega canadiano, e referia-se a uma
iminente competiçã o de robô s construı́dos com Lego.
A mensagem de voz com a lengalenga sobre os coelhos tinha sido
enviada de um telefone pré -pago que já nã o estava ativo.
Saga está de volta e pousa um copo de café no chã o ao lado dele.
– Nã o encontraste nada de interessante?
Joona percorre as folhas com os nú meros de telefone, os endereços
IP e as respetivas coordenadas temporais. Bebe um gole de café e
continua a ler informaçõ es a propó sito das tentativas de Absalon para
obter uma bolsa de estudo.
– Parece que uma das crianças fez um desenho com um dedo sujo
de sangue – diz Saga, indicando as fotos da cozinha de Absalon.
– Pois é – responde Joona, sem levantar os olhos.
Estuda a lista dos vá rios centros de acolhimento e dormitó rios em
que Absalon tinha vivido, depois confronta os endereços com os do
ministro dos Negó cios Estrangeiros e do polı́tico americano. Ambos
provinham de famı́lias abastadas e tinham saı́do de casa pela primeira
vez quando começaram a frequentar o colé gio.
Mais ou menos no mesmo perı́odo em que Absalon tinha saı́do de
um dormitó rio em Huddinge.
Um ano mais tarde foi mencionado num relató rio enviado à agê ncia
governamental para a segurança no trabalho.
Joona sente um ligeiro arrepio ao longo da espinha.
Absalon tinha dezanove anos quando um consultor do Centro de
Emprego decidiu dar-lhe uma oportunidade. O ilho trabalhava como
contı́nuo num colé gio a sul de Estocolmo, mas tinha tido problemas de
droga. A Absalon foi oferecido, por mú tuo acordo, metade do salá rio do
rapaz, se desempenhasse as suas funçõ es até ele regressar da
reabilitaçã o.
Quando a histó ria veio à luz, Absalon morava no apartamento do
guarda há quase um ano, conduzia sem ter carta e utilizava
equipamentos para cujo uso nã o possuı́a habilitaçõ es.
Joona levanta-se e aproxima-se da janela, pega no telefone e liga a
Anja.
Tem a certeza de que identi icou a ligaçã o entre as trê s vı́timas.
– Preciso de saber quem enviou um relató rio à agê ncia para a
segurança no trabalho há vinte e dois anos.
– Falamos disso ao jantar? – diz ela, aproximando-se demasiado do
bocal.
– Com certeza.
Trê s minutos mais tarde, ouve-a cantarolar Let’s talk about sex,
baby, enquanto as unhas dela tamborilam no teclado.
– O que é que queres saber?
– O nome da escola e quem enviou a informaçã o.
– Simon Lee Olsson… O reitor do colé gio de Ludviksberg.
Quando Joona desliga, Saga atira o copo para o cesto dos papé is e
olha para ele.
– Já encontraste a ligaçã o – exclama.
– O Absalon trabalhava como contı́nuo no colé gio de Ludviksberg
quando o William e o Teddy frequentavam o ú ltimo ano.
– Entã o tem a ver com a escola?
– De uma maneira ou de outra, sim.
Joona aproxima-se de uma fotogra ia de escola de há trinta anos. Os
dois polı́ticos eram colegas de turma e membros da mesma equipa de
canoagem: oito rapazes vestidos de branco com os mú sculos dos braços
e dos ombros fortı́ssimos.
– Durante o inqué rito, surgiu uma outra pessoa que frequentou
essa escola – informa-o Saga.
– Quem? – exclama Joona.
– O Rex Mü ller.
– O nome nã o me é estranho.
– Claro, é cozinheiro e aparece na televisã o… Sei que está a
esconder alguma coisa, mas em qualquer caso tem um á libi para cada
homicı́dio – responde brevemente Saga. – Fomos ter com ele porque foi
ilmado, bê bedo, a urinar na piscina do ministro dos Negó cios
Estrangeiros.
– Aqui nã o diz nada disso.
– Agora é o Janus que está a tratar do caso.
– Sã o sempre os pormenores que revelam a verdade – diz Joona.
– Eu sei.
– Porque é que ele mijou na piscina?
– Uma brincadeira estú pida de bê bedo.
– De inı́cio parece uma brincadeira estú pida… depois encontras a
peça certa e, de repente, o Rex Mü ller aparece no centro da cena – diz
Joona.
68
Rex e Sammy estã o sozinhos na grande cozinha do restaurante
Smak. As amplas superfı́cies de trabalho em aço inox foram lavadas e
secas. Tachos, frigideiras, colheres de pau, varas de arames e facas estã o
pendurados, imó veis, nos respetivos ganchos.
Sammy tem vestido um camisolã o sem forma, pintou as
sobrancelhas de negro e tem linhas espessas de eyeliner em volta dos
olhos. Rex en iou na lapela uma rosa que tirou do bouquet que Edith, a
jornalista sexy, lhe mandou na vé spera.
Dali a duas semanas o restaurante vai renovar o menu; por isso,
antes que o estabelecimento abra e o frené tico trabalho da equipa
comece, Rex prova em solidã o todos os pratos.
Só se os chefs de partie, os sous chefs e o chefs de cuisine executarem
na perfeiçã o as suas tarefas será possı́vel conciliar perfeiçã o absoluta e
ritmos intensos. Só quando a cozinha fecha para a noite os cozinheiros
se dã o conta dos hematomas, das pequenas queimaduras e das feridas
de cortes que izeram durante aquele trabalho intenso.
Rex, durante alguns dias, tem programado preparar um consomê
de cogumelos com pã o negro torrado, espargos e molho bearnê s, e uns
medalhõ es de entrecôte da criaçã o de Sä by. Pouco antes de sair de casa,
Sammy tinha aparecido à entrada e, para grande surpresa do pai,
perguntou-lhe se podia ir com ele.
Enquanto a carne cozinha em vá cuo, Rex mostra a Sammy como
picar as folhas de estragã o e como bater uma mistura de gemas,
mostarda e vinagre aromá tico.
O rapaz deixa escorregar com cautela as gemas de ovo entre as
duas metades de casca.
– Nã o sabia que te interessavas pela cozinha – diz Rex, com um io
de voz. – Se soubesse, tinha-te trazido sempre comigo.
– Nã o te preocupes, pai.
Sammy levanta os olhos e observa-o timidamente por baixo de uma
longa franja oxigenada. No canto do olho, desenhou-se-lhe uma lá grima
com o kajal.
– Seja como for, é s fantá stico – continua Rex. – Gostava que…
Deté m-se porque as palavras sã o submergidas pelos remorsos e
pela consciê ncia de que é apenas por sua culpa que nã o conhece
verdadeiramente o ilho que tem.
Enquanto Sammy frita a chalota, Rex prepara o consomê de
cantarelos, shiitake, aipo, nabo e tomilho.
– Alguns limitam-se a coar o caldo com vá rias camadas de pano
ino de algodã o – diz Rex, a olhar para o ilho. – Mas eu uso sempre
clara de ovo para ligar as impurezas e os grumos.
– Nã o tens de sair daqui a pouco? – pergunta Sammy, pousando a
faca.
– Este im de semana tenho de ir ao norte para me encontrar com
aqueles investidores… Precisamos de lhes dar algum mimo para eles se
sentirem pessoalmente envolvidos.
– E por isso nã o queres que vejam o teu ilho maricas?
– Só achava… Se até eu me sinto mal perante a perspetiva de um
grupo de senhores de idade quesó falam de negó cios e vã o à caça de
renas, achava que tu…
Rex inge vomitar por cima dos fogõ es, do balcã o e dentro da
camisa.
– OK, já percebi – diz Sammy, a sorrir.
– Mas pela parte que me toca…
Interrompe-se no momento em que ouve o ranger das portas
basculantes do escritó rio; talvez o sous chef tenha chegado mais cedo,
consegue ainda pensar, mas depois a porta da cozinha abre-se e a
esplê ndida agente da Sä po, Saga Bauer, entra na grande cozinha,
juntamente com Janus Mickelsen.
Sammy olha para Saga como se estivesse prestes a ter um ataque de
choro. Apesar das cicatrizes no rosto, a mulher tem um aspeto de cortar
a respiraçã o.
– Bom dia – diz Saga, e depois faz um gesto em direçã o ao homem
ao seu lado. – Este é o meu colega Janus Mickelsen.
– Já nos encontrá mos – diz Rex.
– Bom dia – diz o rapaz, estendendo a mã o com uma inesperada
cordialidade.
– Tu també m é s cozinheiro? – pergunta Saga, com um tom
amigá vel.
– Nã o, eu… Eu nã o faço nada – responde ele, corando.
– Precisamos de conversar uns minutos com o teu pai – diz Janus,
ao mesmo tempo que apalpa uma lima de casca brilhante.
– Tenho de ir para ali? – pergunta Sammy.
– Por mim, podes icar – diz Rex.
– Decida, entã o – responde Saga.
– Estou a tentar deixar de ter segredos – acrescenta Rex.
Delicadamente, recolhe a clara coagulada do caldo e baixa
ligeiramente o lume.
– Vi na televisã o a entrevista sobre o ministro dos Negó cios
Estrangeiros – diz Saga, apoiando-se no balcã o. – Bonitas palavras,
comoventes…
– Obrigado, é …
– Apesar de ser tudo mentira – conclui a agente.
– O que é que quer dizer? – pergunta Rex, ingindo icar
subitamente alerta.
– Urinou no mobiliá rio de jardim e…
– Eu sei – admite Rex, a rir. – Exagerei um pouco, mas tı́nhamos…
– Pare com isso – diz Saga, com um ar cansado.
– A nossa maneira de…
– Chega.
Rex cala-se e ita-a. Por baixo dos seus olhos passou um fré mito.
Sammy nã o consegue deixar de sorrir a olhar para o chã o.
– Ia explicar-me que isso fazia parte da vossa amizade – diz Saga,
com calma. – Que tinham um sentido de humor perverso, que nã o
poupavam as brincadeiras que faziam um ao outro… Mas isso nã o é
verdade, porque nem sequer eram amigos.
– Era o meu mais velho amigo – tenta ainda explicar Rex, apesar de
já ter percebido que os seus esforços nã o vã o servir para nada.
– Sei que nã o se encontravam há trinta anos.
– Talvez nã o com muita regularidade – responde ele, com um io de
voz.
– Nã o, nã o se encontravam mesmo.
Rex afasta os olhos. Apercebe-se de que Janus está a retirar um pelo
branco de gato do elá stico do blusã o de pele.
– Mas andaram no mesmo colé gio – diz Saga, com uma voz calma.
– O meu pai era diretor do Hansdelsbanken. Morá vamos numa
grande casa em Strandvä gen, e o colé gio de Ludviksberg parecia o
ambiente perfeito para mim.
– E nã o era? – pergunta Saga.
– Tornei-me cozinheiro, nã o banqueiro – responde Rex, retirando a
panela do lume.
– Que falhanço – diz ela, com um sorriso.
– Efetivamente, sou um falhado, em todos os sentidos.
– Acha mesmo?
– As vezes… Outras vezes nã o – responde Rex com sinceridade, a
olhar para Sammy. – Sou um alcoó lico só brio, mas tive algumas
recaı́das… E uma coisa que me acontece quando me embebedo é que
nã o suporto o nosso querido ministro dos Negó cios Estrangeiros,
porque… Nã o interessa, já está morto, mas… quando era vivo, era um
verdadeiro porco.
Janus Mickelsen afasta os caracó is do rosto e sorri, e os cantos dos
olhos enchem-se-lhe de rugas.
69
O alı́vio por ter confessado a verdade dura apenas alguns instantes,
imediatamente substituı́do pela angú stia de ter sido apanhado numa
armadilha. Rex fatia o pã o fresco ainda hú mido, sente que as mã os nã o
estã o completamente está veis e pousa cautelosamente a faca na tá bua.
Nã o percebe aonde querem chegar os agentes da Sä po.
Estariam ao corrente das imagens desde o inı́cio?
Talvez a mulher tivesse reparado no sangue em cima da cadeira
quando tinha estado em casa dele.
Rex pergunta a si mesmo se será o caso de agir com cautela, se
deverá contactar um advogado, e se nã o será melhor contar pura e
simplesmente a histó ria da briga entre DJ e o bê bedo.
– Pensava que queriam falar sobre o homicı́dio do Teddy Johnson –
diz, ao im de alguns segundos.
– Sabe alguma coisa sobre isso? – pergunta o homem dos cabelos
ruivos, itando-o.
– Nã o, mas estava lá quando aconteceu.
– Já temos muitas testemunhas – diz Janus, apertando durante
alguns instantes o ló bulo da orelha entre os dedos.
– Obviamente… Entã o o que querem, em concreto? – pergunta Rex,
aclarando rapidamente a garganta.
– Quero saber porque é que diz que o ministro era um porco e
porque urinou na piscina dele –responde docemente Saga Bauer.
– OK – suspira Rex.
– Sammy, icas a saber que o teu pai nã o é suspeito de nenhum
crime – diz ela.
– Só é meu pai na certidã o de nascimento – responde o rapaz.
Rex lava as mã os e limpa-as a um pano de cozinha.
– Quando era jovem, o nosso ministro era um… Como é que eu
posso dizer? O Wille nã o conseguia suportar que eu obtivesse melhores
resultados do que ele em todos os testes. Ou seja… Ele tinha sempre
excelentes notas, porque a famı́lia dele inanciava a escola há cem anos,
mas isso nã o lhe chegava… Quando veio a saber que eu andava com
uma rapariga gira de outra turma do mesmo ano, teve por força de ir
para a cama com ela… Só para me chatear, para demonstrar que era ele
quem tinha poder na escola. Pronto, era essa a sua maneira de ser.
– Talvez a rapariga quisesse ir para a cama com ele – sugere Saga.
– De maneira nenhuma, até podia sentir-se atraı́da por ele, mas…
Nã o estou a dizer que eu tinha intençõ es mais nobres do que as do
Wille, mas estava realmente apaixonado por ela, a sé rio… Enquanto
para o Wille nã o signi icava nada.
– Como é que pode saber que ele nã o estava també m apaixonado
pela sua namorada? – pergunta Saga.
– Foi ele que me disse… Chamava-lhe um monte de nomes
horrı́veis, como «pega de alta roda»ou «groupie»…
– Com efeito, parece um comportamento de porco – assente ela.
– Sei perfeitamente que quem frequenta o Ludviksberg é um
privilegiado – continua Rex. – Mas, dentro daquelas paredes, a escola
estava nitidamente dividida entre os alunos como eu, que pertenciam
ao grupo dos novos-ricos, e aqueles que há geraçõ es e geraçõ es tinham
uma posiçã o segura, um estatuto especial… Toda a gente sabia que
havia regras particulares, bolsas de estudo e associaçõ es reservadas a
estes ú ltimos.
– Coitado do meu pai – diz Sammy, com sarcasmo.
– Sammy, eu tinha apenas dezanove anos. As pessoas sã o muito
sensı́veis naquela idade.
– Eu estava a brincar.
– Eu sei, só queria que a ideia icasse clara – diz Rex, dirigindo-se
novamente a Saga. – De qualquer modo… O nosso entã o futuro ministro
dos Negó cios Estrangeiros era o presidente de um clube masculino
extremamente exclusivo no interior do campus… Nem sequer sei qual
era o nome verdadeiro, mas lembro-me de que o Wille chamava ao local
onde se encontravam a Toca do Coelho… E quando a Grace passou a
fazer parte do grupo que o frequentava, eu deixei de valer a ponta de
um corno para ela. E até posso entender isso, nã o sabia de nada daquilo
que diziam nas costas dela. Via-os como umas estrelas, umas
celebridades.
Apercebe-se de que o rosto de Saga icou rı́gido, como se alguma
coisa daquilo que acabava de dizer a tivesse obrigado a icar alerta.
– Quem eram os outros membros desse clube do coelho? –
pergunta.
– Só eles é que sabem, era um clube secreto. E eu nã o quero saber
disso para nada.
– Entã o nã o conhece mais ningué m que izesse parte dele?
– Nã o.
– E importante – diz Saga, levantando a voz.
– Fica calma – sussurra Janus, enquanto tira um copo de vinho de
uma prateleira.
– Eu nã o frequentava aquele cı́rculo – responde Rex. – Nã o faço
ideia, só queria explicar-vos porque razã o me deixo levar pelo ó dio
contra o ministro quando me embebedo e faço disparates.
– Mas a Grace deve saber quem fazia parte dele – diz Saga.
– E ó bvio.
Janus Mickelsen deixa cair o copo ao chã o. Numa explosã o, os
fragmentos de vidro saltam pelo meio dos mó veis.
– Sinto muito – diz Janus, e as suas sobrancelhas claras icam
brancas por causa da atrapalhaçã o.
– Tem uma vassoura?
– Deixe lá – diz Rex.
– Desculpe – murmura Janus, começando a apanhar os cacos
maiores.
– Sabe onde posso encontrar a Grace? – pergunta Saga.
– Ela é de Chicago…

Depois de Saga Bauer ter ido embora, Rex salteia os cantarelos na


frigideira com manteiga e duas fatias de pã o negro, dispõ e tudo em dois
pratos e despeja por cima o consomê .
Sammy e o pai comem ao balcã o, um ao lado do outro.
– E bom – diz o rapaz.
– Prova outra vez, é absolutamente delicioso!
– Nã o sei… E bom e pronto.
– Talvez lhe falte um pouco de acidez – diz Rex. – Vou tentar com
um pouco de lima, amanhã .
– Nã o olhes para mim – diz Sammy, a sorrir.
Rex nã o consegue libertar-se da inquietaçã o que pesa sobre ele
depois da conversa com os agentes. Pronunciar o nome de Grace
provocara-lhe uma isgada de angú stia. Recorda apenas que ela se tinha
recusado a encontrar-se novamente com ele e que deixou de lhe
atender o telefone.
– E realmente incrı́vel – diz Sammy, enquanto come a ú ltima
colherada.
– Quem?
– Como, quem? – diz o ilho, com uma gargalhada.
– Ah, a agente! Eu sei, é a mulher mais bonita que alguma vez vi…
Tirando a tua mã e, obviamente.
– Pai, eu nã o consigo acreditar que tu tenhas realmente trepado um
gradeamento para ir fazer chichi na piscina do ministro – diz Sammy, e
esboça um sorrisinho.
– Nã o me era nada simpá tico.
– Isso é claro.
Rex pousa o prato em cima do balcã o.
– Nã o contei tudo à Polı́cia. De momento, nã o me posso deixar
envolver numa histó ria do gé nero. – O que aconteceu?
– Nã o, nada, é só … Eles nã o podem meter na cabeça que eu tenho
alguma coisa a ver com a morte do ministro.
Sammy arqueia as sobrancelhas.
– Porque haviam de pensar isso?
– Porque a verdade sobre aquela gente da escola é esta: uma noite,
levaram-me ao engano para o está bulo e encheram-me de pancada,
partiram-me vá rias costelas e deixaram-me este belo presente – diz
Rex, indicando a cicatriz profunda na cana do nariz. – Talvez na
realidade nã o tenha sido um episó dio assim tã o grave, mas sabes como
a gente se sente, o orgulho… Percebi que nã o ia conseguir olhar para
eles todos os dias, a fazer de conta que nã o tinha acontecido nada, a ser
considerado como o ú ltimo dos desgraçados… Por isso, abandonei a
escola imediatamente.
– Eles é que deviam ter ido embora.
– Impossı́vel – diz Rex, encolhendo os ombros. – O poder estava nas
mã os deles e eu nã o podia dirigir-me a ningué m… O reitor, os
professores… toda a gente os protegia.
– Devias ter dito isso à Polı́cia – diz Sammy, com uma expressã o
sé ria no rosto.
– Nã o posso – responde Rex.
– Mas, pai, tu nã o precisas de te preocupar. Es um cozinheiro, é s
simpá tico, nunca izeste nada de violento em toda a tua vida.
– Nã o é assim tã o simples – rebate Rex.
Sammy apalpa os saquinhos de carne em vá cuo mergulhados em
banho-maria, depois controla a temperatura e o reló gio do recipiente.
– A carne está a cozer há duas horas – diz.
– Entã o pega na manteiga, nuns raminhos de tomilho, num dente
de alho e…
O sol desaparece por trá s das nuvens e uma bá tega de chuva
cinzenta começa a abater-se contra a janela que dá para o pá tio. Na
semiobscuridade, a luz elé trica parece nua, rodeada por uma dança de
sombras em movimento. De repente, Rex ouve um ruı́do na sala, um
roçar que parece produzido por um corpo revestido de plá stico a
circular pelo meio das mesas.
Lentamente, aproxima-se do escritó rio que separa a cozinha da
sala. Para, empurra a porta devagar e escuta.
– O que é ? – pergunta Sammy atrá s dele.
– Nã o sei.
Rex passa a porta de vaivé m e entra na sala vazia. As mesas postas
e a chuva que escorre ao longo das janelas criam uma atmosfera quase
onı́rica: os riscos de luz lambem as toalhas brancas, os talheres e os
copos de vinho.
Rex estremece quando o telemó vel toca no bolso de trá s. O nú mero
é privado, mas ele atende mesmo assim. O sinal é fraco e ouve-se um
ruı́do. Pelas grandes janelas, Rex vê passar debaixo da chuva os carros e
as pessoas escondidas pelos guarda-chuvas.
– Estou? – repete duas vezes, e espera alguns segundos. Prepara-se
para desligar, mas depois ouve a voz distante de uma criança.
– Ten little rabbits, all dressed in white, tried to go to Heaven on the
end of a kite…
– Ouça, deve-se ter enganado no nú mero… – diz Rex, mas a criança
parece nã o lhe dar importâ ncia e continua com a lengalenga.
– Nine little rabbits, all dressed in white, tried to go to Heaven on the
end of a kite. Kite string got broken, down they all fell. Instead of going to
Heaven, they went to…
Rex escuta a contagem decrescente da lengalenga antes que a
chamada se interrompa.
Atravé s de uma das janelas, descobre uma criança debaixo do
viaduto a cerca de cinquenta metros de distâ ncia. O seu rosto, envolvido
numa sombra cinzenta, desaparece completamente no momento em
que se vira e entra numa garagem escura.
70
O ar é sufocante e uma luz densa espalha-se pelos campos ao longo
de Nynä svä gen. Joona ultrapassa um camiã o carregado de material de
demoliçã o.
O reitor em funçõ es do Ludviksberg recusara-se a fornecer a Joona
a lista dos alunos inscritos a nã o ser que apresentasse um pedido o icial
por parte de um magistrado ou de algué m responsá vel pelo inqué rito.
– Isto é um colé gio privado muito conhecido – explicou ao telefone.
– E nã o estamos vinculados a nenhum tipo de obrigaçã o de clareza ou
de transparê ncia.
As primeiras trê s vı́timas, há cerca de trinta anos, tinham estado de
alguma forma ligadas à escola, pensa Joona, enquanto conduz em
direçã o ao colé gio.
Provavelmente, vir-se-á a descobrir que també m o estavam as
vı́timas seguintes. Talvez até o pró prio assassino.
A escola é o centro de tudo, pensa Joona.
Mas, por qualquer razã o, todos os aspetos da histó ria estã o
relacionados a um nı́vel bem mais profundo.
Joona tem de descobrir esta constelaçã o particular, encontrar o
algoritmo, resolver o enigma.
Enquanto conduz, escuta uma playlist que, na realidade, preparou
para a ilha, Lumi. Sã o velhas gravaçõ es de cançõ es populares suecas.
Violinos que evocam a melancolia do verã o, os desejos da juventude e
as mutaçõ es das noites iluminadas.
Pensa na grinalda nupcial de raı́zes entrelaçadas de Summa, no
sorriso dela quando subiu ao banco para o beijar.
Depois de passar por Osmo, Joona sai da autoestrada e continua
para leste em direçã o à costa, depois segue as curvas largas da estrada
apertada, passa duas pontes e atravessa um tú nel entre quatro ilhas.
Quando chega à ilha de Muskö , recebe uma chamada de Saga Bauer.
O volume da mú sica baixa e Joona toca no ecrã do carro para atender.
– Preciso de falar contigo – começa ela, passando por cima das
frases de circunstâ ncia.
Joona sente que ela está a ligar a moto.
– E podes falar comigo?
– Nã o.
– Nem eu posso falar contigo.
Joona pensa como é iró nico o facto de ele e Saga Bauer estarem a
tentar resolver um caso de homicı́dio juntos, quando de facto as suas
funçõ es sã o completamente opostas: ela tem a tarefa de camu lar todas
as provas, enquanto ele deve trazer tudo à luz.
A á gua é um espelho de prata imó vel e Joona repara num bando de
patos que se afasta do seu pró prio re lexo levantando voo. Entretanto,
Saga conta-lhe que uma velha namorada de Rex – Grace Lindstrom – o
deixou por causa de William Fock.
– Agora vem a parte interessante – acrescenta a seguir.
– Sou todo ouvidos – diz Joona, enquanto passa por uma á rea de
treino militar.
– O William fazia parte de um clube reservado à elite da escola. Nã o
sei exatamente de que se tratava, mas o local onde se encontravam era
referido como a Toca do Coelho.
– A Toca do Coelho – repete Joona, pensando que estã o a
aproximar-se da soluçã o.
– E disso que andamos à procura, nã o é ?
– Tens os nomes dos membros?
– Só a Grace e o Wille.
– Mais nenhum?
– O Rex nã o se lembra.
– Mas a Grace deve saber mais – diz Joona.
– Claro, mas parece que vive em Chicago…
– Vou lá – diz Joona.
– Nã o, eu falei com o Verner. Assim que tiver um endereço, vou eu.
– Otimo.
Joona trava suavemente e entra numa alameda que conduz
diretamente a Ludviksberg. O enorme edifı́cio principal tem algumas
semelhanças com uma grande casa rural, com as paredes de pedra
pintadas de branco e o telhado de mansarda.
Deixa o carro no parque de estacionamento das visitas e atravessa
o relvado até chegar à s escadas. Há uma in inidade de lores azuis
espalhadas pelo chã o, mas as corças e os coelhos devoraram folhas e
caules. Joona inclina-se para apanhar uma das poucas lores partidas
que foram poupadas.
Passa ao lado de um grupo de alunos com o uniforme azul-marinho
do colé gio e pilhas de livros debaixo dos braços.
Um enorme mapa a cores do complexo escolar, com setas e
legendas, está pendurado na entrada. A estrutura compreende quatro
dormitó rios femininos e quatro masculinos, quartos para os
funcioná rios e para os professores, cavalariças, armazé ns, uma sala de
bombas hidrá ulicas, instalaçõ es desportivas e um pavilhã o na praia.
Joona passa as portas de vidro que dã o acesso ao gabinete do reitor,
mostra o cartã o à secretá ria e é conduzido até um enorme gabinete
revestido de madeira de carvalho lacada e com grandes janelas viradas
para o parque. Atrá s da secretá ria, veem-se imagens emolduradas dos
membros da famı́lia real que frequentaram a escola.
O reitor está sentado num sofá de pele castanho-escura e tem na
mã o uma pasta de documentos. E um homem magro, dos seus
cinquenta anos, com o rosto impecavelmente barbeado, os cabelos
loiros penteados com a risca ao lado e um porte altivo.
Joona vai ao encontro dele, entrega-lhe a lor azul e depois mostra-
lhe um documento numa pastinha de plá stico.
– Isto é o mandado do Ministé rio Pú blico.
– Nã o é preciso – diz o reitor, sem sequer olhar para o papel. –
Estou mais do que feliz por poder dar alguma ajuda.
– Onde está o registo dos alunos?
– Sente-se, por favor – diz o reitor com um sorriso, indicando com
um gesto amplo uma estante embutida que cobre uma parede inteira.
Joona dirige-se à estante, onde sã o conservados todos os anuá rios,
forrados a pele, desde os tempos da fundaçã o da escola. Seguindo as
indicaçõ es nas lombadas, Joona volta atrá s no tempo trinta anos.
– Posso perguntar-lhe de que se trata? – diz o reitor, pousando a
lor ao lado do teclado do computador antes de se sentar.
– Um inqué rito preliminar – diz Joona, ao mesmo tempo que pega
num volume.
– Isso eu percebo, mas… gostava, em qualquer caso, de saber se diz
respeito a alguma coisa que possa ter repercussõ es negativas sobre a
nossa escola.
– Estou a tentar deter um spree killer.
– Nã o faço ideia do que isso é – diz o reitor, com uma risadinha.
– Pois nã o – responde Joona, enquanto pega em mais quatro
volumes e os pousa em cima da secretá ria.
Começa a folhear fotogra ias com trinta anos. As imagens de uma
conferê ncia do escritor William Golding, com a barba branca. Festas de
Santa Luzia. Torneios de té nis, crı́quete, equitaçã o e corrida de
obstá culos.
O seu olhar percorre fotogra ias de turmas do ú ltimo ano, nas quais
os alunos aparecem com o tı́pico barrete dos diplomados na cabeça,
bailes escolares com orquestras de jazz, almoços dominicais com
toalhas brancas, lustres de cristal e criados de libré .
Segundo o ı́ndice dos nomes no im de cada volume, a escola recebe
todos os anos cerca de quinhentos e trinta alunos. Somando os
professores, o pessoal administrativo, os porteiros de cada dormitó rio e
todos os outros funcioná rios, chega-se a seiscentos e cinquenta nomes
por volume.
Numa foto vê -se um William Fock muito jovem – o homem que
chegaria a ministro dos Negó cios Estrangeiros da Sué cia – a receber
uma bolsa de estudo do reitor da é poca.
Sem pressa, Joona en ia os cinco anuá rios numa bolsa de lona
verde-tropa.
– Esses livros sã o só para consulta – protesta o reitor. – Nã o pode
levar os nossos anuá rios…
– Fale-me da Toca do Coelho – diz Joona, enquanto corre o fecho-
éclair do saco.
Por um instante, o olhar do reitor ica confuso devido à surpresa;
depois o maxilar do homem contrai-se, conferindo-lhe um ar grave.
– Sou obrigado a concordar com a imprensa internacional:
provavelmente, a Polı́cia sueca devia dedicar-se à procura do assassino
de Teddy Johnson… E só um conselho, a partir do momento em que o
senhor e os seus colegas parecem ser vı́timas de alguma di iculdade de
concentraçã o.
– Tinha sido organizado um clube, aqui no colé gio – diz Joona.
– Nã o que eu saiba.
– Será que se tratava de algum clube secreto?
– Oh, nã o me parece que tenhamos tido nenhum «clube dos poetas
mortos» – responde friamente o reitor.
– Portanto, nã o existem no colé gio clubes ou confrarias
tradicionais?
– Estou disposto a deixá -lo explorar a nossa instituiçã o, apesar de
nã o acreditar que vá encontrar o seu killer entre nó s, mas… mas nã o
vou responder a perguntas pessoais sobre os nossos alunos ou sobre as
associaçõ es a que hipoteticamente pertencem.
– Algum funcioná rio vosso trabalha aqui há mais de trinta anos?
O reitor nã o se digna responder-lhe, e entã o Joona en ia-se atrá s da
secretá ria e começa a abrir as pastas no computador, pesquisando a
documentaçã o da contabilidade até encontrar as folhas de pagamento
dos funcioná rios.
– O homem das cavalariças – diz o reitor, com um io de voz.
– Como se chama?
– Emil… Qualquer coisa.
71
Um grupo de alunos escondeu-se a fumar ao lado das cavalariças.
Uma rapariga está a andar a cavalo sozinha no paddock, e alguns
animais pastam num recinto nas traseiras do edifı́cio. Os alunos podem
levar para ali os seus pró prios cavalos, e a escola garante todo o tipo de
serviços durante os semestres de estudo.
Joona acabou de entrar no recinto quando o seu telemó vel vibra. E
uma mensagem de Saga: vai apanhar o primeiro voo direto para
Chicago, para falar com o ú nico membro que eles conhecem do clube do
coelho.
Grace Lindstrom.
No meio das boxes, o ar está impregnado do cheiro dos cavalos, do
couro e do feno. A cavalariça compreende vinte e seis boxes e uma sala
de arreios aquecida.
Um homem magro dos seus sessenta anos, vestido de verde, com
um blusã o acolchoado e botas de borracha, está a escovar um cavalo
cor de café .
– Emil? – pergunta Joona.
O homem para e o cavalo bufa, com as orelhas a tremer
nervosamente por causa daquela voz desconhecida.
– Tem um garrote e uma garupa esplê ndidos – diz Joona.
– Pois, é verdade – reconhece o homem, sem se voltar.
Com as mã os tré mulas, pousa a escova e a espá tula.
Joona chega junto do cavalo e acaricia-lhe uma espá dua. O animal é
sensı́vel: a pele reage imediatamente, retraindo-se por baixo da sua
mã o.
– Está só um pouco nervoso – diz Emil, voltando-se para Joona.
– Deve ter um rico feitiozinho.
– Devia vê -lo a galope, corre rá pido como um raio.
– Acabei de falar com o reitor, disse-me que talvez me possa ajudar
– continua Joona, mostrando-lhe o distintivo.
– O que aconteceu?
– Estou a tentar montar um enorme puzzle. Preciso de algué m que
tenha trabalhado aqui durante muito tempo e que me ajude com uma
das peças.
– Comecei como moço de estrebaria há trinta e cinco anos –
responde Emil, com alguma hesitaçã o.
– Entã o conhece a Toca do Coelho – diz Joona.
– Nã o – replica bruscamente o homem, voltando-se para a janela
baixa.
– E a sede de uma espé cie de clube – explica Joona.
– Tenho de trabalhar – diz Emil, e agarra no cabo de uma pá .
– Percebo, mas é evidente que sabe de que é que eu estou a falar.
– Nã o.
– Sabe os nomes dos que se encontravam na Toca do Coelho?
– Como é que posso saber? Eu era apenas um moço de estrebaria…
E mesmo agora nã o sou senã o um moço de estrebaria.
– Mas há coisas que vê , e que viu. Ou nã o?
– Eu meto-me na minha vida – responde Emil, deixando cair a pá
como se a energia tivesse abandonado o seu corpo.
– Fale-me da Toca.
– Ouvi falar nela nos primeiros anos, mas…– Quem fazia parte do
clube?
– Nã o faço ideia – sussurra ele.
– O que é que faziam na Toca? – insiste Joona.
– Organizavam festas, fumavam, bebiam… As coisas do costume.
– Como é que sabe?
– Falava-se por aı́.
– Você ia à quelas festas?
– Se eu ia? – pergunta Emil, com o queixo a tremer. – Vá para o
diabo.
O cavalo apercebe-se do seu nervosismo e agita-se, depois começa
a bater com os cascos no chã o e dá um coice na boxe, fazendo oscilar as
ré deas contra a parede.
– Da primeira vez que eu falei da Toca, você olhou na direçã o da
casa das bombas. E ali que se encontra?
– Já nã o existe – diz Emil, com um suspiro profundo.
– Mas era ali?
– Sim.
– Mostre-me.
Saem juntos e sobem o caminho de saibro que passa diante da
residê ncia do guarda até à casa das bombas, onde abandonam o
percurso e se metem no bosque.
Emil conduz Joona até à s fundaçõ es de uma casa agora recoberta
de ervas daninhas e rebentos de bé tula. O homem para, titubeante,
diante de uma pequena abertura no terreno e agarra em alguns longos
ios de erva com a mã o, arrancando algumas espigas do chã o.
– E esta a Toca do Coelho?
– Sim – responde Emil, ao mesmo tempo que limpa as lá grimas dos
cantos dos olhos.
Enormes raı́zes racharam as lajes de pedra, e por entre os arbustos
compactos distingue-se uma estreita escada subterrâ nea inteiramente
recoberta de terra e pedras.
– Que lugar era este, na realidade?
– Nã o sei, eu nã o devia estar aqui – sussurra Emil.
– Porque icou na escola durante todos estes anos?
– Onde é que eu podia encontrar cavalos tã o bonitos, senã o aqui? –
diz o homem, antes de regressar à estrebaria.
As fundaçõ es cobertas de ervas daninhas encontram-se a cinquenta
metros das traseiras do corpo principal da velha casa rural, um edifı́cio
de dois pisos cinzento-claro que agora alberga o dormitó rio Haga.
Joona pousa o saco no meio das ervas, pega nos primeiros anuá rios
e folheia as fotogra ias, detendo-se de cada vez que lê o nome do
dormitó rio Haga.
Concentra-se na foto de uma tı́pica cena invernal, em que rapazes
loiros de faces coradas estã o entretidos a atirar bolas de neve uns aos
outros.
Atrá s deles vê -se um esplê ndido pavilhã o azul.
Encontra-se exatamente naquele ponto.
A Toca do Coelho nã o era um tú nel subterrâ neo ou uma cave por
baixo de uma ruı́na.
Há trinta anos, naquele sı́tio erguia-se um belo edifı́cio.
Na fotogra ia, as janelas do pavilhã o estã o fechadas. Por cima da
porta intuem-se umas palavras escritas em letras douradas: Bellando
vincere, quase uma espé cie de lema.
Joona pisa com força o terreno ao lado das fundaçõ es cobertas de
ervas, dá a volta e arranca alguns arbustos com as raı́zes inteiras. Afasta
com as botas alguns tijolos, depois inclina-se para apanhar um pedaço
de madeira carbonizada, observa-o e percebe que fazia parte do
caixilho de uma janela.
A seguir regressa ao edifı́cio principal e dirige-se ao gabinete do
reitor, com a secretá ria atrá s dele.
– Ann-Marie – diz o reitor, com uma voz cansada. – Pode explicar ao
Sr. Comissá rio como funcionam os horá rios de visita e…
– Se me conta mais mentiras, agarro-o pelo pescoço, arrasto-o para
dentro do carro e levo-o para a cadeia de Kronoberg – diz Joona ao
reitor.
– Vou ligar aos advogados – diz o homem, ofegante, esticando-se
para o telefone.
Joona pousa-lhe o pedaço de madeira enegrecida em cima da
secretá ria. Grumos de terra e lascas carbonizadas caem sobre o tampo
brilhante.
– Fale-me do edifı́cio azul que ardeu.
– O pavilhã o Crusebjö rn – diz o reitor, com um io de voz.
– Como era conhecido entre os estudantes?
O reitor afasta a mã o do telefone, passa-a pela testa e murmura
qualquer coisa para si mesmo.
– Como? – pergunta Joona, exasperado.
– A Toca do Coelho.
– O edifı́cio devia estar sob o controlo do conselho diretivo – diz
Joona.
– Sim, é ó bvio – admite o reitor.
Debaixo dos braços, na sua camisa branca, alastraram enormes
manchas de suor.
– Mas o conselho concedeu o pavilhã o a uma associaçã o interna.
– Quem deté m o poder nem sempre está debaixo dos olhos de toda
a gente – diz o reitor, em voz baixa. – Nem sempre é o reitor ou o
conselho quem toma todas as decisõ es.
– Quem fazia parte do clube?
– Nã o sei. E uma coisa que vai para alé m das minhas competê ncias,
nem mesmo eu poderia obter essas informaçõ es.
– Porque é que o pavilhã o ardeu?
– Algué m… O incê ndio foi provocado… Ningué m fez denú ncia, mas
um dos alunos foi expulso.
– Preciso de um nome – diz Joona, itando-o com os seus gé lidos
olhos cinzentos.
– Nã o posso – geme o reitor. – Nã o percebe, vou perder o emprego.
– Vale a pena – diz Joona.
O reitor continua sentado com os olhos baixos e as mã os tré mulas
apoiadas à secretá ria. Por im, diz:
– Oscar von Creutz… Foi ele que pegou fogo ao pavilhã o.
72
Joona atravessa a correr a entrada do hospital Danderyd a pensar
na Toca do Coelho como se fosse um buraco negro que atrai a si tudo o
resto.
De momento, as pistas a seguir sã o duas.
Dois nomes.
O de um membro do clube e o de quem incendiou o local.
Saga conseguiu descobrir Grace, e Joona envolveu Anja na tentativa
de encontrar Oscar.
No Ludviksberg nã o existia nenhuma lista de quem tinha acesso à
Toca do Coelho.
A direçã o tinha o há bito de tratar com discriçã o os privilé gios de
algumas famı́lias.
Só os pró prios membros tinham conhecimento de quem fazia parte
do clube.
William Fock tinha ostentado a sua pertença ao clube exclusivo
como uma arma no jogo de poder que existia no confronto com Rex, tal
como um menino ao mesmo tempo orgulhoso e cioso dos seus
rebuçados.
Ao fundo do corredor, Anja Larsson está à espera dele em frente
aos elevadores. Traz um vestido amarelo-escuro que lhe envolve o
corpo de linhas harmoniosas.
Dos seus ombros robustos pode-se intuir o facto de uma vez ter
ganho uma medalha olı́mpica em nataçã o, apesar de há muito tempo
trabalhar para a Secçã o Operativa Nacional. Antes de Joona ser
condenado, era a sua colaboradora mais pró xima.
Joona chega junto dela no exato momento em que as portas do
elevador se abrem. Entram juntos na cabina, olham um para o outro e
depois desatam a rir.
– Quinto andar? – pergunta Joona, carregando no botã o.
– Podiam ter-te deixado icar em Kumla durante mais alguns anos –
murmura Anja, a olhar para ele.
– Provavelmente.
– Porque te fez bem, está s mais bonito que nunca – diz Anja,
abraçando-o com entusiasmo.
– Senti a tua falta – murmura ele contra o rosto dela.
– Mentiroso – replica a mulher, a rir.
Ficam abraçados até que as portas do quinto andar se abrem. Anja
afasta-se dele com pouca vontade, depois limpa uma lá grima ao canto
do olho enquanto avançam pelo corredor.
– Como está o Gustav?
– Vai safar-se – responde ela, tentando parecer alegre.
Passam pelas paredes de vidro de uma receçã o deserta e depois
por uma sala de espera com um porta-revistas de parede cheio de
exemplares estragados de publicaçõ es de moda e mexericos.
O quarto de Gustav é mais adiante, mas antes de chegar ao corredor
Anja deté m-se.
– Vou buscar café . Acho que ele quer falar contigo em privado – diz
em voz baixa.
– OK – assente Joona.
– Sê simpá tico com ele – acrescenta Anja, antes de ir embora.
Joona bate à porta e entra. O quarto é pequeno, com paredes creme
e um armá rio estreito de madeira clara.
No parapeito, diante da persiana descida, está um grande ramo de
lores metido numa jarra.
Gustav está deitado na cama com uma manta amarela nas pernas. O
soro cai da garrafa a um ritmo constante. A faixa sobre o braço
amputado cobre-lhe toda a caixa torá cica e um tubo de plá stico desce
para um saco de drenagem cheio até meio.
– Como é que vai isso? – pergunta Joona, sentando-se ao lado da
cama.
– Nã o vai mal – diz Gustav, voltando-se para ele.
Indica o braço cortado à altura do ombro.
– Ainda estou um bocado atordoado. Enchem-me de drogas, aqui…
Nã o faço outra coisa que nã o seja dormir – continua, sem sorrir.
– E a Anja que te traz lores?
– Aquelas, na verdade, sã o do Janus… Espero que nã o venha a ter
problemas por causa do que aconteceu, porque ele é bom… E um ó timo
chefe, um ó timo atirador e, precisamente como tu disseste, nã o desiste
nunca, até ao im.
O rosto simpá tico de Gustav está contraı́do e muito pá lido, e os
lá bios quase brancos.
– Joona… Pensei durante muito tempo naquilo que te ia dizer, se
nos encontrá ssemos… e a ú nica coisa que continua a vir-me à cabeça é
que tenho vergonha… Lamento muito, sei que nã o devia falar nisso…
Mas a ti tenho de dizer: a operaçã o foi uma catá strofe… Nã o consigo
capacitar-me, perdi o Sonny e o Jamal… Perdi o helicó ptero, perdi o
Markus e…
Os olhos de Gustav icam brilhantes. O jovem deté m-se e abana a
cabeça a sussurrar:
– Desculpa.
– Nunca se pode prever como vai acabar uma operaçã o, ningué m é
capaz de o fazer – diz Joona, em voz baixa. – Tenta-se fazer as coisas
pelo melhor, mas à s vezes a gente engana-se… E tu pagaste um preço
muito alto.
– Eu tive sorte – diz Gustav. – Os outros, poré m…
Quebra-se-lhe a voz, depois fecha os olhos e parece perder-se em
algum pensamento.
Lentamente, a cabeça acaba por lhe cair sobre o peito e Joona
percebe que adormeceu.
Quando sai para o corredor, Anja está em frente à porta a comer
bolos de canela de um saquinho. Joona entrega-lhe a bolsa de lona com
os anuá rios do Ludviksberg e pede-lhe para pesquisar todos os nomes,
cruzando referê ncias com os registos dos condenados, dos
desaparecidos e dos mortos.
– Vou cumprimentar o Gustav – diz ela depois.
– Descobriste alguma coisa sobre o Oscar von Creutz?
– Estou à espera de receber a resposta a qualquer momento – diz
ela, estendendo-lhe o saquinho dos bolos.
Quando Joona en ia a mã o lá dentro, Anja agarra-lha e ri-se com um
tom demasiado alto enquanto ele tenta libertar-se. A sorrir, a mulher
observa-o enquanto ele come um bolo, e prepara-se para lhe dizer que
o café acabou mas que pode trazer-lhe sumo de morango quando o
telemó vel emite um toque.
– Muito bem – diz Anja. – O Oscar von Creutz mora no nú mero 10
de Osterlå nggatan… E depois tem uma casa na Cô te d’Azur… Vive
sozinho, mas anda com uma mulher, Caroline Hamilton… que na minha
opiniã o é demasiado jovem para ele… Nenhum dos dois atende o
telefone.

Apesar de se encontrar no coraçã o de Gamla Stan, o bonito palacete


de aspeto oitocentista é uma construçã o insolitamente recente e é bem
mais alto do que as casas à volta.
Naquela manhã , Oscar von Creutz nã o tinha ido trabalhar; a
namorada, Caroline, també m nã o se apresentara à s aulas do Enskilda
Gymnasiet.
Joona toca à campainha da mansarda e espera alguns segundos.
Depois bate com insistê ncia, espreita pela abertura do correio e repara
que há envelopes no chã o da entrada.
Abana o puxador e apercebe-se de que a fechadura de segurança
nã o foi trancada.
A luz do sol derrama-se sobre as escadas silenciosas atravé s dos
vidros coloridos das janelas.
Joona insere a gazua na fechadura, empurra-a até mais de metade
do cilindro e levanta um pistã o atrá s do outro. Roda lentamente a gazua
e desloca-a para trá s, depois tenta novamente e ouve o estalido da
engrenagem.
A porta de Oscar von Creutz abre-se para trá s, enquanto cartas e
prospetos publicitá rios se espalham no patamar.
– Polı́cia – grita Joona. – Estou a entrar!
Agarra na pistola e avança por um amplo hall de entrada com
armá rios embutidos de madeira negra. A roupa, caı́da dos cabides, está
espalhada pelo chã o por cima de sapatos e botas abandonados.
Um saquinho com champô , amaciador e sabonete entornou-se, e
uma poça de lı́quido cor-de-rosa alastrou no chã o de má rmore.
Joona entra com cautela numa sala de estar de onde parte uma
escada que dá acesso a um loft rodeado de paredes de vidro. No ar
imó vel sente-se cheiro a um ambiente fechado, e uma luz amarela que
se escoa pelas janelas espalha-se no pavimento brilhante.
A superfı́cie de vidro da mesa no meio dos sofá s foi estilhaçada e há
cacos espalhados por toda a sala.
No andar de cima, as lâ mpadas estã o acesas. A luz banha as
cortinas à frente das paredes de vidro.
Joona ica imó vel durante alguns segundos, depois segue pelo
corredor que dá acesso à cozinha.
Sombrios retratos a ó leo de membros da famı́lia estã o pendurados
numa longa sequê ncia.
Algué m pisou um pó branco, e uma sé rie de pegadas conduz a uma
porta fechada.
– Polı́cia – avisa Joona mais uma vez.
Devagar, estica um braço e empurra a porta. O silê ncio é total.
Entrevê uma casa de banho com as paredes e o chã o em má rmore
cinzento gra ite.
Entra rapidamente e aponta a pistola na penumbra, inspecionando
as paredes e os cantos.
Batons, bases e sombras estã o espalhados pelo chã o da casa de
banho e no lavató rio.
Joona aproxima-se da banheira de cobre e repara que foi enchida
com á gua, mas o nı́vel baixou alguns centı́metros deixando no metal um
risco de sujidade.
Por baixo de um armarinho com portas de espelho há embalagens
de medicamentos e caixas de pensos rá pidos. O corredor atrá s dele
re lete-se no espelho, e quando Joona se afasta de lado repara no risco
da marca de uma mã o na parede que vai em direçã o à cozinha.
Pensa na lengalenga, nos coelhos que estã o a tentar chegar ao
paraı́so com um papagaio quando de repente o io se parte.
O pavimento range debaixo dos seus passos.
Joona entra na cozinha com a sala de jantar anexa, passa por cima
de um pacote de leite que está no chã o e que algué m pisou, depois
segue rapidamente a parede à sua direita, aponta a pistola para a sala
de jantar e depois baixa-a.
Sob a luz do sol, em cima da ilha da cozinha encontram-se um
frasquinho de ovas de peixe, uma embalagem de bacon bioló gico e um
saco de legumes congelados.
A á gua do saco escorreu até ao chã o.
Em cima do balcã o foram colocados em ila alguns enlatados,
farinha para bolos e locos de milho. As portas dos armá rios mais altos
estã o abertas.
Joona prossegue em direçã o à maciça mesa de madeira escura com
dezoito cadeiras e deté m-se à cabeceira.
Ao lado de uma chá vena com café pela metade e de um pratinho
com uma fatia de pã o torrado ainda intacta está pousado um jornal. A
notı́cia do homicı́dio de Teddy Johnson à porta da igreja de Sankt
Johannes ocupa toda a primeira pá gina.
Joona sobe ao andar superior, veri ica a casa de banho e os dois
quartos. No primeiro, uma mala meio cheia foi abandonada sobre a
cama desfeita. No outro, as gavetas das cuecas e das meias icaram
abertas.
Joona volta a meter a pistola no coldre e sai do apartamento
amontoando o correio do lado de dentro; depois fecha a porta e desce
as escadas a correr.
Oscar icou a saber da morte de Teddy Johnson quando se sentou à
mesa com o jornal.
O homicı́dio fê -lo entrar em pâ nico, por isso começou a preparar as
malas, atirando a roupa ao chã o, e teve uma discussã o com a namorada.
Oscar estava aterrorizado.
Sabia que nã o havia tempo a perder.
Talvez ele e a rapariga tivessem abandonado tudo, ou talvez
tivessem conseguido preparar um mı́nimo de bagagem antes de fugir.
A comida em cima do balcã o – sinal do projeto delineado de
levarem com eles algumas provisõ es – indica que os dois nã o
tencionavam chegar à casa em França, mas que pensaram num
esconderijo muito mais pró ximo.
73
Saga Bauer acorda quando o aviã o inicia a descida sobre o lago
Michigan. A trezentos metros de altitude, a á gua parece completamente
imó vel, com um brilho metá lico entre as tonalidades do cinzento e do
branco.
Passa uma mã o pela boca e recorda a breve mensagem em que
Joona lhe explicou que a Toca do Coelho era um edifı́cio que tinha sido
destruı́do devido a um incê ndio quando Rex frequentava o ú ltimo ano
do colé gio.
Nã o tinha sido feita qualquer denú ncia, mas o facto levara à insó lita
decisã o de expulsar um dos alunos de mais alta linhagem, Oscar von
Creutz.
Joona escreveu que Oscar, aparentemente, se afastara do seu
apartamento de Gamla Stan impelido pelo pâ nico.
O pessoal de cabina repete pela ené sima vez que todos os
aparelhos eletró nicos devem ser desligados.
Saga tira o livro da bolsa do assento da frente, en ia-o na carteira e
apoia-se ao encosto à espera de aterrar no aeroporto internacional de
O’Hare.
A viagem integra-se no programa de cooperaçã o entre a Sä po e o
FBI na sequê ncia do homicı́dio do secretá rio da Defesa americano na
Sué cia, e foi organizada de acordo com as regras do Counter Terrorism
Group e dos protocolos internacionais.
Apesar de Saga nã o acreditar que o homicı́dio tenha sido cometido
por um terrorista, apanhou o primeiro voo para Chicago.
Para ela nã o faz qualquer diferença que aquela cooperaçã o se
chame troca de informaçõ es, colaboraçã o em campo ou consultoria de
especialistas.
Desde que Joona a convenceu de que o objetivo deles é um spree
killer, sabe que o tempo urge.
O assassino está ativo naquele preciso instante.
Nã o há interrupçõ es ou momentos de sossego. O ritmo está
destinado a tornar-se cada vez mais acelerado.
Matou trê s vı́timas e tenciona atingir mais sete.
Ten little rabbits.
Saga pensa na lengalenga, nas orelhas cortadas, na Toca do Coelho.
A Toca, de momento, é o ú nico indı́cio de que dispõ em.
O jovem William, que viria a tornar-se ministro dos Negó cios
Estrangeiros sueco, era o presidente do clube, e Rex viu sacarem-lhe a
namorada quando també m ela passou a fazer parte dele.
Talvez també m Oscar von Creutz pertencesse à quele grupo, ou
talvez tivesse incendiado o pavilhã o porque nã o o aceitaram como
membro.
Mas Grace, tanto quanto sabem, é o ú nico membro do clube ainda
em vida.
Ela estava lá , e tinha-se encontrado com os outros.
Graças a ela, talvez consigam descobrir o assassino e as pró ximas
vı́timas.
Grace possui certamente a chave do misté rio, pensa Saga no
momento em que as rodas do aviã o tocam na pista. A travagem
repentina fá -la deslizar para a frente no assento.
Desaperta o cinto de segurança, levanta-se e passa pelos
passageiros da classe executiva. Um comissá rio de bordo parece estar
prestes a pedir-lhe que volte a sentar-se, mas por im nã o tem coragem
e deixa-a sair do aviã o antes de todos os outros.
Depois do controlo de passaportes, Saga passa a correr pela zona
de levantamento de bagagem e pela alfâ ndega e vai ter ao terminal das
chegadas. Faz de conta que nã o vê o motorista do FBI que está à espera
dela com um cartaz a dizer «Miss Bauer».
Nã o tem tempo para ir à Roosevelt Road em Chicago para tomar
café e dar a entender que está a investigar um ataque terrorista.
Entra numa loja de souvenirs, compra uma pequena embalagem de
lata de Swedish Dream Cookies e avança rapidamente para a saı́da.
Grace tinha frequentado o Ludviksberg quando o pai, Gus
Lindstrom, foi transferido para a embaixada americana de Estocolmo
como adido militar.
Depois regressou a Chicago para terminar o ú ltimo ano do liceu na
antiga escola do pai.
Grace tem quase cinquenta anos, nunca casou, nã o tem telefone ixo
e nã o aparece nas redes sociais. Mora há um ano numa clı́nica de
repouso exclusiva, a Timberline Knolls Residential Treatment Center.
Saga telefonou para a clı́nica a perguntar por ela, falou com uma
secretá ria e com um responsá vel, pedindo-lhes para dizer a Grace que
lhe ligasse de volta, mas ela nã o o fez.
Joona mandou-lhe uma fotogra ia dela: uma rapariga loira de
sorriso perfeito a mostrar um pequeno trofé u. Tem duas iadas de
pé rolas ao pescoço e no fecho re lete-se a luz do lash. A camisola clara
cinge-lhe o peito, e a alça do soutien aparece no decote.
Saga atravessa as portas girató rias do aeroporto, passa pela praça
de tá xis e segue pelo passeio da direita, onde se veem uns cartazes
poeirentos da Microsoft Cloud.
O ar quente está impregnado de cheiro a fritos e gases de escape.
Algum lixo rodopia em frente a uma saı́da de emergê ncia.
Saga atravessa a rua e encontra a ila de agê ncias de aluguer de
automó veis, entra num escritó rio gelado e aluga um Ford Mustang
amarelo-vivo.
Sai do aeroporto, atravessa uma vasta á rea industrial e depois
segue pela estrada 294, que passa ao lado de grandes bairros
residenciais ricos com palacetes e moradias em banda.
Talvez Grace fosse apenas uma rapariga privilegiada que trocou Rex
pelos snobs do clube, a ilha mimada de um diplomata americano que
nunca se sentiu em casa na Sué cia e que só estava à espera do momento
de poder regressar para junto dos amigos em Chicago.
Durante o seu quarto semestre em Ludviksberg, apesar de nã o ser
uma aristocrata, foi com certeza su icientemente popular para ser
admitida na Toca do Coelho.
Saga passa por cima dos canais da Waterfall Glen County Forest
Preserve e repara num grupo de patos aterrorizados a fugir sobre a
á gua.
Abranda e vira sob as á rvores de Timberline Drive, depois passa o
enorme portã o da clı́nica e estaciona em frente ao edifı́cio principal.
No ar sente-se o cheiro do bosque hú mido e da relva acabada de
cortar.
Nã o passou sequer meia hora desde que saiu do aeroporto.
Na receçã o, uma mulher sorri-lhe cordialmente atrá s de um balcã o
de cerejeira com um expositor de brochuras em cima.
Saga explica-lhe em inglê s o motivo da sua visita, diz-lhe que
chegou da Sué cia e que é uma velha amiga da famı́lia Lindstrom,
exprimindo o desejo de apresentar os seus cumprimentos a Grace.
– Só preciso de veri icar o programa que está a seguir – responde a
mulher a sorrir. – Tem arte-terapia dentro de uma hora… E a seguir tem
ioga.
– Nã o demoro muito tempo – garante Saga, depois de completar o
registo no computador e obter um cartã o de visitante.
– Fique à vontade, vou mandar algué m da segurança buscá -la – diz
a mulher.
Saga senta-se a folhear as brochuras e descobre que a Timberline
Knolls é um centro de reabilitaçã o holı́stico e espiritual para mulheres
dos doze anos em diante.
– Menina? – diz uma voz rouca.
Um homem robusto com um uniforme justo está a olhar para ela.
Respira ruidosamente pelo nariz e tem a testa coberta de gotas de suor.
No cinto, por baixo do enorme ventre proeminente, tem pendurado um
cassetete, um taser e um revó lver de grande calibre.
– O meu nome é Mark e tenho a honra de a acompanhar ao baile da
escola – diz-lhe o homem.
– Fantá stico – responde Saga, sem lhe restituir o sorriso.
Saem para um caminho que dá acesso aos setores mais afastados.
As hó spedes da clı́nica passeiam com as visitas ou entã o estã o
simplesmente sentadas nos bancos do parque.
– Tê m cá pacientes violentas? – pergunta Saga.
– Minha querida, na minha companhia estará completamente
segura – responde o homem.
– Reparei no revó lver.
– Algumas das nossas hó spedes sã o famosas e muito ricas… Por
isso vou pedir-lhe que nã o olhe para elas – diz Mark, respirando com
di iculdade.
– Eu nã o vou olhar para elas.
– Se depois desatar a correr para tirar uma sel ie com a Kesha,
entã o eu disparo seis milhõ es de volts nesse belo rabinho… E se estiver
armada, en io-lhe seis balas no meio das mamas.
O guarda caminha a gingar e a limpar o suor do rosto com um lenço
de papel.
– Estou a ver que nã o manda recado por ningué m – murmura Saga.
– Pois, mas se for querida comigo, eu sou querido consigo.
Passam por um grande edifı́cio com colunas brancas e um letreiro
que diz «Timberline Academy», e depois por uma casa de pedra que
funciona como atelier de pintura.
Mark está sem fô lego quando abre a porta e deixa entrar Saga num
edifı́cio moderno. Vai atrá s dela atravé s de uma sala de estar com
janelas altas viradas para as zonas verdes, e a seguir um corredor de
paredes azuis.
– Ligue para a receçã o quando quiser que a venha buscar – diz o
homem, batendo suavemente a uma porta e fazendo sinal a Saga para
avançar.
74
Saga entra num pequeno quarto mobilado com uma cama, uma
có moda e uma poltrona. No chã o, ao lado de uma grande palmeira
dentro de um vaso, veem-se algumas bolinhas de argila. Em frente à
janela que dá para o caminho, uma mulher de corpo delgado está de pé
a brincar com uma itinha de plá stico cinzento que desponta entre a
moldura da janela e a caixilharia. Do lado de fora, vê -se um relvado e
um banco de jardim colocado ao lado de um grande rododendro.
– Grace? – diz Saga, com um tom meigo, à espera que a mulher se
vire. – Chamo-me Saga Bauer e venho da Sué cia.
– Nã o estou nada bem – diz Grace, com uma voz dé bil.
– Gosta de doces? Comprei uns biscoitos suecos no aeroporto.
A mulher volta-se para Saga, acariciando uma face com um gesto
nervoso. O tempo marcou-a profundamente, arrancando a juventude do
seu corpo e deixando-lhe apenas uma igura envelhecida.
Os cabelos grisalhos estã o apanhados numa trança ina que lhe cai
sobre o ombro magro, tem um rosto macilento e vincado pelas rugas e
um dos olhos foi substituı́do por uma pró tese de porcelana desprovida
de vitalidade.
– Há uma maquineta de café , ali na sala – diz com uma voz fraca.
Pousam pratinhos e chá venas sobre a mesinha redonda ao lado do
sofá e sentam-se uma em frente à outra. Saga estende-lhe a lata de
biscoitos, Grace agradece e pousa um no prato.
– Há muitas pessoas de origem sueca que vivem em Chicago – diz
Grace, encolhendo-se na tú nica cinzenta. – A maior parte vive em
Andersonville. Eu li que durante algum tempo se podiam encontrar
mais suecos aqui do que em Gotemburgo. A avó do meu pai, Selma,
vinha da regiã o de Halland… chegou a esta regiã o em maio de 1912
para trabalhar como governanta.
– E conservaram a lı́ngua… – diz Saga, para a incitar a prosseguir.
– O meu pai ia muitas vezes à Sué cia e… por im acabou até por ser
adido militar em Estocolmo– explica Grace, deixando transparecer uma
cintilaçã o de orgulho no tom de voz.
– Adido militar – repete Saga.
– Há muitas tradiçõ es… Sabe, as relaçõ es diplomá ticas, na
realidade, foram inauguradas por Benjamin Franklin e pelo ministro
dos Negó cios Estrangeiros sueco.
– Nã o sabia.
– O meu pai era muito iel ao embaixador – diz Grace, pousando a
chá vena no prato.
– Morava na Sué cia?
– Adorava as noites luminosas…
A manga da tú nica desliza ao mesmo tempo que a mulher faz um
gesto em direçã o ao teto. Naquele momento, Saga apercebe-se de que o
braço magro está coberto de cicatrizes e parece um feixe de pá lidas
espinhas de peixe.
– A Grace frequentava uma escola fora de Estocolmo.
– A melhor que havia.
Deté m-se e pousa as mã os delgadas nos joelhos. Saga re lete sobre
o facto de o pai de Grace ter permanecido na Sué cia ao lado do
embaixador Lyndon White Hollands mesmo depois de a ilha ter
regressado a Chicago ao im de dois anos.
– Mas voltou para a Amé rica ao im de apenas quatro semestres… –
diz Saga, com um tom interrogativo.
Grace é atravessada por um fré mito e lança um breve olhar à agente
da Sä po.
– A sé rio? Talvez tivesse saudades…
– Apesar de os seus pais terem icado na Sué cia?
– O meu pai tinha entrado ao serviço.
– Mas antes de regressar a casa foi admitida num clube no
Ludviksberg – diz Saga, devagar. – Encontravam-se num pavilhã o que se
chamava a Toca do Coelho.
O rosto marcado de Grace estremece.
– Era só um nome estú pido – murmura.
– Mas era um clube exclusivo… para as famı́lias mais importantes –
insiste Saga.
– Agora já percebi em que é que está a pensar… Tinha um
namorado novo que me levou ao palá cio Cruselbjö rn… Era esse o nome
verdadeiro. Eu era apenas uma tonta, aos dezoito anos… Uma boa
rapariga de Chicago que frequentava a igreja luterana sueca todos os
domingos. Antes de ir para a Sué cia, nunca tinha pensado que teria
coragem para sair com um rapaz…
Começa a respirar com di iculdade, depois procura os remé dios no
bolso e pega num frasco branco de tampa vermelha, mas deixa cair os
comprimidos ao chã o.
– Entã o sabe quem eram os membros do clube?
– Eram vistos como estrelas de cinema… O simples facto de poder
andar com eles e de olharem para mim fazia-me sentir como a
Cinderela.
Grace pega nos comprimidos que Saga apanhou, agradece-lhe com
um gesto e toma-os sem á gua.
– Como se chamava o seu namorado?
– Namorado nã o é a palavra mais correta. Mas isso aconteceu há
tanto tempo – conclui.
– Nã o parece feliz.
– Nã o – suspira Grace, e cala-se outra vez.
– Nem todos os namorados sã o simpá ticos – diz Saga, tentando
cruzar o seu olhar.
– Quando eu percebi que me tinha posto qualquer coisa no copo, já
era demasiado tarde. Senti-me mal, tentei chegar à porta… Lembro-me
de que estavam todos a olhar para mim com rostos inexpressivos… A
sala girava, tive de me ajoelhar para nã o cair… Tentei dizer que queria ir
para casa…
Grace tapa a boca e manté m o olhar ixo à frente dela.
– Fizeram-lhe mal… – diz Saga em voz baixa, e tenta permanecer
calma.
– Nã o sei, estava no chã o – continua, quase num sussurro. – Nã o me
conseguia mexer, agarravam-me nas pernas e nos braços enquanto o
Wille me violentava… Eu pensava na minha mã e e no meu pai, no que é
que havia de lhes contar.
– Sinto muito – diz Saga, apertando-lhe a mã o.
– Mas nunca deixei escapar uma palavra sobre nada, nã o podia
admitir que todos os elementos do clube tinham abusado de mim…
Puseram-se em ila, empurravam-se uns aos outros… Eu nã o conseguia
perceber porque me odiavam assim tanto, gritavam e davam-me
bofetadas.
Cala-se e apanha as migalhas dos biscoitos em cima da mesa.
– Conte-me tudo aquilo de que se lembrar.
– Lembro-me… Lembro-me de que comecei a sentir uma dor
terrı́vel, nã o sei, sabia que alguma coisa nã o estava bem, que estava
gravemente ferida… Mas eles continuavam, arquejavam, gemiam,
beijavam-me no pescoço, faziam força no meio das minhas pernas…
Falta-lhe a voz e inspira profundamente.
– Afastaram-se, e eu vi que havia sangue nas mã os deles… Implorei-
lhes, implorei-lhes que chamassem uma ambulâ ncia… como eu nã o
parava de chorar, bateram-me na cara com um cinzeiro, partiram uma
garrafa…
Baixa a cabeça, ofegante.
– A ú ltima coisa de que me lembro foi do Teddy a en iar-me o
polegar no olho… Achei que estava quase a morrer, e devia ter morrido,
mas a inal só desmaiei…
Chora desesperadamente, sacudida por soluços que lhe fazem
estremecer os ombros com violê ncia. Saga nã o diz nada, abraça-a e nã o
a deixa continuar a narrativa.
– Acordei em cima de um monte de estrume à porta das cavalariças,
para onde me tinham atirado.
Foi o homem que tratava dos cavalos que me encontrou e me levou
ao hospital.
Saga continua a abraçá -la até que ela se acalma.
– Lembra-se dos nomes deles?
Grace enxuga as lá grimas do rosto e olha para as mã os.
– Estava o Teddy Johnson… e, como é que ele se chamava… o Kent…
e o Lawrence, espere – murmura, abanando a cabeça. – Sei os nomes
deles todos.
– Primeiro falou do Wille – lembra-lhe Saga. – Chegou a ministro
dos Negó cios Estrangeiros da Sué cia.
– Sim…
– Era ele o seu namorado, nã o era? – pergunta Saga.
– O quê ? Nã o, o meu namorado chamava-se Rex… eu estava tã o
apaixonada por ele.
– Rex Mü ller? – pergunta Saga, sentindo o suor escorrer-lhe ao
longo das costas.
– Foi ele que organizou tudo – diz Grace, e os seus lá bios tré mulos
tornam-se mais inos enquanto tenta sorrir. – Foi ele o pior, e a culpa foi
toda dele… Meu Deus… Convenceu-me a descer à Toca do Coelho e…
Interrompe-se, como se já nã o tivesse voz. Saga observa a mulher
dé bil que tem à frente. Precisa de ligar a Joona o mais depressa possı́vel,
pensa.
– O Rex també m a violou? – pergunta-lhe.
– Claro – responde Grace, fechando os olhos.
– Lembra-se de outros nomes?
– Daqui a pouco – sussurra a outra.
– Referiu o Wille… ou seja, o Willliam Fock, o Teddy Johnson e o
Kent…
A porta abre-se e dois homens vestidos com fatos cinza-escuro
entram no quarto.
– Special agent Bauer? – diz um dos dois, mostrando-lhe o crachá
com o emblema dourado do FBI.

75
O casco azul-escuro bate com violê ncia nas ondas e a espuma
salpica o para-brisas da cabina do comando. Uma das defensas
retiradas para dentro solta-se da corda e rola sobre o convé s molhado.
– Segura no leme! – diz o capitã o a Joona, saindo da cabina.
A proa da lancha 311 da Guarda Costeira ergue-se mais ainda,
depois começa a planar, aumentando a velocidade.
Atravé s do para-brisas sulcado de á gua, Joona vê o capitã o
atravessar o convé s, recuperar a defensa e amarrá -la com um nó . De
repente, uma onda mais alta atinge a proa e a á gua galga o parapeito; o
capitã o vacila, mas consegue manter o equilı́brio, endireita-se e
regressa à cabina para retomar o leme.
O capitã o tem o cabelo comprido apanhado numa trança, tatuagens
até nos dedos e os olhos bordejados de kajal negro. Os outros homens
da tripulaçã o parecem apreciar a sua imitaçã o do pirata Sparrow e
tratam-no por Jack.
– Chega aos trinta e cinco nó s? – pergunta Joona.
– Se eu puxar bem por ela – responde Jack, com uma gargalhada
que deixa em evidê ncia os caninos tortos.
Põ e uma cara sé ria e aumenta ainda mais a velocidade. Um dos
homens bate palmas e lança um longo assobio.
– Jack – grita um homem de mú sculos potentes que está a limpar
uma pistola. – A esta velocidade, tens de estar atento à Guarda Costeira.
– Sã o tipos duros, ouvi dizer – responde o capitã o.
– Mas nã o tanto como nó s – gritam os outros em coro.
Joona sorri, observando o mar agitado. O vento forte arrasta as
nuvens negras pelo cé u.
Os telemó veis de Oscar e de Caroline estã o desativados, mas Anja
descobriu um post no per il do Instagram da rapariga. Há uma sel ie em
que ela ostenta uma expressã o amuada, e por baixo da imagem foi
inserida a legenda «quality time».
Na fotogra ia está inclinada sobre uma pilha de paletes cinzentas e
por trá s dela vê -se um cartaz vermelho com informaçõ es sobre o cais
de Stavsnä s.
Anja descobriu rapidamente que o meio-irmã o de Oscar possui
uma pequena casa numa ilha do arquipé lago externo, quase em frente a
Stavsnä s.
– Julgo ter entendido que é uma honra dar-te boleia – diz o capitã o,
lançando um rá pido olhar a Joona.
Por baixo dos pé s deles, a coberta do barco treme por causa dos
motores diesel a elevada rotaçã o. A embarcaçã o vira bruscamente em
torno de um grupo de ilhotas de per il aguçado e acaba por icar
paralela à direçã o das ondas, saltando ao ritmo do movimento do mar.
A á gua fustiga a ponte e corre pelos tubos de escoamento.
O capitã o indica atravé s do vidro uma ilha cinzenta e negra que se
materializa na obscuridade sob a forma de uma porçã o de espaço mais
escura.
– Bullerö n nã o é apenas uma das dez mil ilhas nesta zona… Depois
de o pintor Bruno Liljeforster vendido a ilha ao industrial Kreuger,
hó spedes como Zarah Leander, Errol Flynn e Charlie Chaplin
começaram a vir até aqui… precisamente a esta ilhota! E quase só um
monte de rochedos, atravessa-se em meia hora… Na tua opiniã o, o que é
que eles faziam aqui? – pergunta Jack, a piscar o olho com malı́cia.
Aproximam-se rapidamente e o capitã o abranda. Um dos homens
sai da cabina, mantendo as pernas afastadas para se equilibrar, e depois
começa a deixar cair as defensas.
Na ilha nã o se veem luzes. As ondas batem nos rochedos ı́ngremes
no meio de salpicos de espuma e as á rvores esguias dobram-se ao
vento.
– De que é que estamos à espera, exatamente, se é que eu posso
saber? – pergunta o capitã o.
– Estou à procura de uma pessoa que preciso de interrogar –
responde Joona.
Entram no pequeno porto com um molhe de cimento onde a lancha
atraca. O capitã o aproxima-se cautelosamente em marcha-atrá s, mas
mesmo assim raspa na parede e depois começa a deslizar ao longo do
cais do lado de estibordo.
– E essa pessoa… é perigosa? – pergunta Jack, tentando evitar as
ondas.
– Provavelmente está com muito medo – responde Joona, saindo
para o convé s. Entretanto, a tripulaçã o aperta as amarras.
– Queres que vá contigo? – pergunta Jack, saindo da cabina.
– Traz a pistola.
Os dois homens saltam para terra e Jack prende o coldre na cintura
enquanto passam ao lado dos rochedos lisos. Na ilha a escuridã o é
muito mais densa, e a noite parece ainda mais profunda do que no mar
aberto. As ondas batem ritmicamente nos rochedos e as gaivotas
lançam no ar os seus gritos estridentes.
A casa, originalmente uma cabana de pescadores, encontra-se
numa posiçã o isolada em frente a uma baı́a a sul, a uma certa distâ ncia
das outras habitaçõ es.
Contra o cé u escuro, a princı́pio a fachada parece negra, da cor do
sangue coagulado, mas quando os dois homens se aproximam
apercebem-se de que se trata de uma casa tı́pica, de madeira vermelha,
ligada a um armazé m para os barcos construı́do por cima de uma
pala ita sobre a á gua agitada.
Jack para a veri icar a arma, e o vento sacode-lhe a roupa.
A casa foi trancada como se estivesse para haver um furacã o. Do
lado de fora das portas e das janelas foram pregadas tá buas.
Joona e o capitã o avançam para a casa. Das caleiras despontam
tufos de erva, e as plantas tremem com a brisa persistente.
No pá tio estã o amontoadas boias cor de laranja e â ncoras
lutuantes. Nas traseiras da casa encontra-se uma construçã o de metal
que faz lembrar uma baliza, com ganchos ferrugentos na trave.
– Nã o está aqui ningué m – diz Jack.
– Vamos ver – responde Joona, em voz baixa.
Segundo Joona, Oscar e a namorada podiam ter chegado de barco,
que depois teriam escondido no armazé m como numa garagem.
A entrada do lado que dá para o mar é talvez a ú nica que nã o está
trancada.
Joona deixa-se cair ao longo de um rochedo escorregadio ao lado
do armazé m, aproxima-se das tá buas na parte baixa da parede e tenta
espreitar atravé s de uma fenda.
A pouco e pouco, vê surgir uma superfı́cie de á gua ondeante. O
re lexo do cé u move-se, oscilante, entre as paredes enegrecidas.
– Nã o há barco nenhum – constata Joona, e recomeça a subir.
Passa por um depó sito de lenha cheio de toros de bé tula; repara
que o machado está profundamente enterrado no cepo e que no chã o, a
toda a volta, estã o espalhadas lascas de madeira.
Para ao lado do barracã o das ferramentas com as prateleiras para a
lenha. Os interstı́cios entre as achas estã o cheios de serrim. Joona faz
sinal a Jack para parar, aproxima-se cautelosamente da porta e entra.
As ferramentas estã o penduradas ordenadamente na parede; no
centro do pavimento encontra-se uma mesa de trabalho com uma serra,
e ao lado dois cavaletes caı́dos um em cima do outro.
– Acho que estã o aqui – diz Joona, retirando um pé de cabra da
parede.
– Onde? – pergunta Jack.
– Em casa – responde Joona.
– Nã o me parece.
– Pregou as portas e as janelas há pouco.
– Como é que sabes?
– Há dois dias que o vento sopra de oeste… O Oscar serrou as
tá buas aqui dentro e levou-as até à casa… A maior parte do serrim
voou, exceto aquele que está abrigado do vento, aqui, nas fendas.
– Sim, OK – diz Jack. – Tens razã o, se o vento mudasse nã o tinha
icado nada… mas todas asvias de acesso estã o trancadas por fora. Lá
dentro nã o pode estar ningué m, a nã o ser que algué m de fora lhes
tenha dado uma mã o.
Regressam à casa e olham para dentro. Algum serrim icou preso
numa teia de aranha por baixo de uma das janelas fechadas. Joona
agarra nas tá buas e tenta fazer força, depois dirige-se à janela seguinte
e dobra a esquina. Para diante da porta da cozinha e apercebe-se de que
abre para dentro.
As tá buas pregadas por fora nã o servem para nada.
Baixa a maçaneta e tenta empurrar a porta.
Está claramente trancada por dentro.
Oscar e Carolina pregaram as tá buas do lado de fora para dar a
impressã o de que a casa estava inteiramente trancada, depois entraram
e bloquearam a porta por dentro.
76
Os pregos de quatro polegadas gemem quando Joona arranca as
tá buas da porta da entrada. En ia as pontas inas do pé de cabra ao lado
da fechadura e faz força. A ranger, o caixilho da porta parte e a peça
metá lica solta-se.
Joona abre a porta e inspeciona a entrada mergulhada na
penumbra. Com exceçã o da porta da cozinha, todos os outros acessos
estã o trancados pelo lado de fora.
– Polı́cia – grita. – Estamos a entrar em casa!
As suas palavras sã o sugadas pela escuridã o e pelo silê ncio. As
rajadas de vento persistentes varrem o telhado, fazendo rodar o
catavento com uma chiadeira.
Jack começou a respirar mais rapidamente, olha em volta com um
ar nervoso e murmura algumas palavras para si mesmo. Joona pega na
pistola e entra cautelosamente no corredor. Uma boneca com as pernas
abertas num â ngulo estranho está abandonada no tapete. Algué m lhe
borratou a cara com um marcador negro.
Impermeá veis e velhos anoraques estã o pendurados em ganchos
por cima de uma estante de sapatos onde estã o pousadas socas e botas
de borracha.
Joona abre a caixa da eletricidade ao lado da porta e repara que o
interruptor geral está desligado.
– Nã o está cá ningué m – murmura de novo Jack.
Prosseguem até à sala de estar, onde um velho sofá de pele está
colocado em frente a um televisor. No ar completamente imó vel sente-
se um cheiro seco de madeira e pó . As cortinas fechadas das janelas
com as tá buas cruzadas por fora dos vidros re letem-se no ecrã negro
da televisã o.
– Polı́cia – grita novamente Joona. – Precisamos de falar com o
Oscar!
Abre uma porta e entra num quarto onde encontra um beliche com
cobertores e lençó is perfeitamente em ordem. As amplas tá buas do
chã o rangem sob o seu peso. Há um mosquiteiro encostado à parede, e
a icha do candeeiro de pé está desligada. Por cima da cama superior
está pendurado um desenho infantil dani icado pela humidade.
Representa uma rapariga feliz de mã o dada com um esqueleto.

Jack entra no outro quarto e ouve um rumor que desaparece


imediatamente. A escuridã o é quase total. As cortinas blackout estã o
fechadas e presas com trê s molas.
Algué m dormiu na cama de casal: a coberta está dobrada para trá s,
e numa das almofadas veem-se marcas de sangue seco. No chã o está
abandonado um saco azul da IKEA cheio de roupas e sapatos.
Quando Jack abre o armá rio, o mó vel oscila por causa do pavimento
irregular. Nas prateleiras nã o se vê mais do que duas T-shirts
desbotadas e um biquı́ni azul.
Ouve alguma coisa ranger atrá s dele, vira-se e apressa-se a tirar a
pistola do coldre.
Dá um passo para o lado, mas nã o consegue distinguir nada no
canto escuro ao lado da cama. A tremer, pega na pistola, aproxima-se e
vê uma forma debaixo da cama, do tamanho da cabeça de uma criança.
Ouve-se novamente um ruı́do, e Jack percebe que prové m do
telhado: provavelmente é uma gaivota que está a andar em cima das
telhas.
Aproxima-se do canto escuro, inclina-se, a trança cai-lhe para cima
do ombro e apercebe-se de que o objeto misterioso é apenas um balã o
meio vazio decorado com um Poké mon amarelo.

Joona espreita na casa de banho: vê um pequeno tapete de felpo


azul no chã o, uma sanita com instalaçã o de incineraçã o a gá s, um
lavató rio e uma cabina de duche com a porta fechada. Em cima do
tampo da má quina de lavar estã o pousados uma caixa de detergente
manchada de humidade e um cestinho cheio de molas. Joona entra e
abre a porta manchada de calcá rio do chuveiro. Encontra apenas uma
esfregona com o cabo partido en iada num balde.
Joona sai da casa de banho e encontra Jack no corredor que dá
acesso à cozinha, a ú ltima divisã o da casa.
Trocam um olhar e um sinal de entendimento.
Jack estica a mã o e baixa a maçaneta da porta fechada, depois
empurra-a e recua um passo enquanto Joona entra na divisã o com a
pistola em punho.
Nã o está ningué m.
Joona dá rapidamente a volta à mesa com quatro bancos ao lado,
aponta a pistola em direçã o ao frigorı́ ico e depois baixa-a.
A janela está tapada por dentro com cartõ es, mas graças à luz té nue
que consegue mesmo assim penetrar veem-se umas caixinhas
empilhadas no balcã o.
Joona avança sobre o chã o que range e para diante da porta que dá
acesso ao exterior da casa.
Está trancada por dentro.
Entraram por ali, exatamente como Joona tinha pensado.
Precisamente em frente, há uma porta articulada em madeira,
fechada, que dá para a arrecadaçã o dos barcos. Parecem dois enormes
janelõ es entre o chã o e o teto.
Joona pousa a mã o sobre o velho fogã o a lenha ao lado do fogã o
moderno.
Está frio.
Em cima de uma tá bua, num canto, veem-se cacos de uma tigela e
uns rebuçados.
Joona inclina-se, toca num esguicho de sangue sobre uma das
pernas da mesa e depois vê umas gotas vermelhas que atravessam o
chã o até à arrecadaçã o.
Levanta a pistola e vai até à porta articulada. Tenta abrir o primeiro
painel, mas repara que este encrava depois de se ter deslocado apenas
uma dezena de centı́metros.
Puxa com mais força, mas a porta nã o se mexe. De repente, parece-
lhe vislumbrar um brilho pá lido na penumbra da arrecadaçã o. Inclina-
se para o espaço entre as duas portas a tenta espreitar para dentro.
Pelo pouco que consegue descortinar atravé s da fenda, percebe que a
arrecadaçã o é usada como sala de jantar. Descobre os contornos de
uma mesa retangular e os encostos das cadeiras ao longo de um dos
lados.
Joona tenta abrir a porta com mais força ainda, mas deté m-se
quando ouve umas pancadas surdas provenientes do interior.
Cai novamente o silê ncio.
Joona ica à espera durante alguns segundos, depois en ia o braço
na fenda, até ao ombro.
Agora já nã o consegue ver nada, mas apalpa à s cegas o espaço para
lá da porta a tentar perceber o que é que a está a bloquear.
Dentro da arrecadaçã o ouve-se novamente uma pancada surda, de
repente.
Joona para, escuta, encosta o cano da pistola à porta com a outra
mã o e, entretanto, continua a procurar.
– O que se passa? – sussurra Jack.
Joona dobra-se sobre um joelho e encontra um grande fecho de
correr junto ao chã o. Lentamente, com o dedo, desen ia o gancho do
anel.
O fecho abre-se com um ruı́do metá lico e a fresta torna-se
ligeiramente maior.
Rapidamente, retira o braço e levanta-se, depois dá um passo para
o lado e aponta à fenda, ao nı́vel do peito.
O ruı́do parou.
Joona alarga mais a abertura e perscruta a escuridã o. A porta
desliza a arranhar o chã o e os dois painé is dobram-se contra a parede.
Sem fazer ruı́do, Joona põ e-se de lado com a pistola em punho e
tenta identi icar os contornos no escuro.
De repente, o seu olhar intui a silhueta de uma pessoa no centro da
sala.
Um rosto a pouco mais de um metro do chã o.
Joona põ e-se automaticamente de joelhos, faz mira e pousa o dedo
no gatilho.
Na luz té nue que entra pela janela virada a oeste descobre uma
jovem amarrada a uma cadeira.
Tem os cabelos loiros despenteados e a boca tapada com ita
adesiva.
A mulher ita-o e começa a sacudir violentamente o busto, fazendo
bater as pernas da cadeira contra o pavimento.
– Caroline? – diz Joona.
77
A mulher amarrada olha para Joona com os olhos arregalados. Está
suja de sangue seco por baixo do nariz e tem os braços e os tornozelos
apertados com ita adesiva larga.
– Caroline? – repete Joona. – Nã o tenha medo, sou polı́cia e estou
aqui para a ajudar.
Em cima da mesa atrá s dela veem-se algumas latas abertas de onde
despontam colheres, pã o duro e um enorme recipiente de á gua
pousado a pouca distâ ncia.
– Que raio é que está a acontecer aqui? – sussurra Jack.
A arrecadaçã o nã o está isolada termicamente e pelas frinchas do
pavimento penetram salpicos de á gua gelada. A luz té nue que entra por
uma janela com cortinas de renda suja re lete-se numa corrente com
um gancho presa ao teto. Lanternas em latã o, cabos e bobinas de
madeira envelhecida estã o pendurados numa trave. Junto a uma parede
está encostado um baú de marinheiro, e mais adiante vislumbram-se as
portas envernizadas do velho armá rio para as redes de pesca.
A jovem sacode convulsivamente a cabeça e lá grimas copiosas
começam a correr-lhe pelas faces.
– Nã o tenha medo – repete Joona. – Eu sou polı́cia.
Volta a meter a pistola no coldre e avança lentamente um passo
sobre o soalho que range. O vento sopra contra o vidro da janela. Joona
volta-se para a entrada da cozinha, passando os olhos pelas sombras
imó veis, depois prossegue em direçã o à mulher.
Remove-lhe delicadamente a ita adesiva do rosto. A jovem tosse e
humedece a boca vá rias vezes, depois levanta a cabeça e olha-o nos
olhos.
– Eu devia matá -lo – diz em voz baixa.
Por baixo deles ouve-se o ruı́do do mar, e as pernas da cadeira
batem contra o pavimento assim que ela começa a contorcer-se para se
libertar.
– O Oscar está convencido de que me vai violar, mas eu acho que
nã o.
– Ningué m a vai violar… Somos polı́cias.
– Nã o parecem polı́cias.
– Onde está o Oscar?
– Eu nã o tenho nada a ver com esta histó ria – sussurra ela, com os
olhos carregados de desespero. – Nem sequer o conheço bem. Só quero
ir para casa, nã o quero saber o que você s lhe vã o fazer. Ficou paranoico
e já nem raciocina.
O chã o range novamente por baixo deles e a colher dentro de uma
lata de ravioli tilinta por causa das vibraçõ es.
– Diga-me onde é que ele está – repete Joona em voz baixa.
– No armá rio – responde ela, fazendo um sinal com a cabeça.
Ouve-se um ruı́do estranho, e Joona repara numa pequena luz
branca que oscila dentro do armá rio embutido: parece o ecrã de um
telemó vel, mas reluz rapidamente.
– Está armado? – pergunta.
– Nã o sei, nã o me parece – responde ela.
Joona aproxima-se das portas fechadas do armá rio, endireita uma
cadeira tombada e en ia-a por baixo da mesa.
Todo o aposento range como um cabo tenso.
Joona aponta a pistola ao armá rio, olha outra vez para a cozinha e,
por um instante, recua alguns passos em direçã o à porta articulada
para ter uma visã o geral da escura arrecadaçã o para barcos.
O pavimento continua a ranger.
Olha de frente para as portas do armá rio, depois lança um olhar à
mulher amarrada, à s bobinas vazias penduradas no teto e a Jack, que se
desloca ao lado da mesa.
Por baixo do depó sito ouve-se um rumor: parece um roçar de
madeira seca arrastada contra outra madeira. Uma lufada de ar levanta
uma madeixa de cabelos loiros do chã o.
Jack avança e afasta a corrente com o gancho para poder passar.
– Estou a aproximar-me – diz, em direçã o ao armá rio –, e peço-lhe
para nã o…
Com um rugido metá lico, dois alçapõ es enormes escancaram-se
por baixo dos pé s de Jack. Abrem-se, batem contra a parede do poço e
saltam para cima por uns instantes.
Jack cai no buraco, mas manté m ainda agarrada a corrente que,
com um ruı́do metá lico, corre atravé s de uma das bobinas.
O gancho ergue-se e encaixa no carreto, fazendo gemer a trave.
A queda interrompe-se de repente; Jack lança um grito no
momento em que a cabeça do ú mero lhe sai pelo ombro.
A mesa e as cadeiras precipitam-se na á gua atrá s dele.
Jack oscila a um canto do poço, mas consegue manter-se agarrado.
A porta do armá rio abre-se e Joona vê Oscar saltar para a frente
com um cocktail molotov na mã o: uma garrafa de vidro cheia de
gasolina e uma tira de tecido incendiada.
Oscar atira a garrafa contra Joona, mas esta atinge uma das bobinas
penduradas no teto. O vidro parte com um estrondo e a gasolina
incendiada chove sobre a mulher amarrada à cadeira, que é
imediatamente envolvida pelas chamas. Joona corre em direçã o a ela e
dá -lhe um pontapé no peito, fazendo-a cair para trá s: o encosto da
cadeira atinge a beira do poço e depois precipita-se no mar.
Oscar grita qualquer coisa e tenta acender outro cocktail molotov; o
isqueiro cintila, mas nã o produz qualquer chama.
Joona conta os segundos enquanto corre ao longo da borda estreita
onde estã o ixadas as dobradiças da porta esquerda.
A mulher mergulha na á gua ao mesmo tempo que a massa dos
cabelos se expande por cima dela.
O casaco de Joona ica preso no gancho da janela. Ele liberta-se e
está quase a perder o equilı́brio e a cair, depois estende um braço e
agarra-se à cortina.
– Nã o faça isso! – grita Joona.
O isqueiro cintila novamente assim que Joona chega ao outro lado
do alçapã o. Dá um salto em direçã o a Oscar e roda sobre si mesmo;
atinge-o com o antebraço ao lado do pescoço, dobrando-lhe
violentamente a cabeça e fazendo-lhe saltar os ó culos para longe.
Vã o bater os dois contra a parede. Joona en ia uma joelhada nas
costas de Oscar e empurra-o para o lado, depois dobra-se para o lado
oposto e fá -lo cair, agarrando-o pela cintura.
Oscar cai ao chã o entre gemidos, abre os olhos e ita o teto,
aturdido.
A garrafa rola para lá da borda e cai à á gua.
Joona sabe que lhe restam poucos segundos, enquanto arrasta o
homem para longe do armá rio.
– Nã o, nã o, nã o – implora Oscar, tentando agarrar-se ao chã o.
Um candeeiro tomba e o abat-jour de vidro ica em cacos. Joona
arrasta Oscar consigo, algema-lhe um pulso e prende o outro anel a
uma argola ixa na parede.
– Nã o me mates – choraminga Oscar. – Por favor, escuta, posso
pagar-te…
Sem olhar à volta, Joona chega à borda do alçapã o e mergulha.
Fende a superfı́cie e desce na á gua gé lida. Sente um estrondo nos
ouvidos e as bolhas rodeiam-no como a cauda de um cometa.
Bate com os pé s numa das cadeiras, e os seus movimentos
abrandam.
Joona volta-se sobre si mesmo e abana as pernas, depois nada em
direçã o ao fundo, no escuro.
Nã o vê nada, mas precisa de atravessar os detritos que o rodeiam.
Com uma mã o tenta afastar a mesa maciça, desliza ao longo do
tampo de madeira e chega ao fundo.
A roupa pesada di iculta-lhe os movimentos enquanto procura a
jovem ao longo do per il tortuoso dos rochedos. Nada ainda mais para o
fundo, apalpa os restos apodrecidos de um velho carvalho, desce ao
longo do esqueleto de um barco e ao lado de um remo coberto de lama.
Joona bate as pá lpebras na á gua negra e sente o frio até ao interior
dos ossos.
Nada mais para baixo.
As suas mã os escorregam sobre coló nias de conchas ao longo de
um dos pilares da arrecadaçã o; depois, de repente, uma luz ondeante
atravessa a á gua.
Jack segura uma lanterna acesa sobre a superfı́cie do mar.
Atravé s dos detritos que rodopiam e das bolhas de á gua, Joona
descobre a mulher. Escorregou ao longo do declive dos rochedos em
direçã o à á gua mais profunda e está deitada de lado, amarrada à
cadeira.
Com um movimento vigoroso de pernas, Joona dirige-se a ela.
A jovem ita-o nos olhos: tem os lá bios apertados na tentativa de
suster a respiraçã o.
Joona agarra na cadeira, tenta fazer alavanca com um pé contra o
rochedo para a puxar com mais força, mas apercebe-se de que está
entalada entre as outras cadeiras que se amontoaram em volta do pilar
mais exterior.
Rapidamente, extrai a faca, corta a ita adesiva em volta das pernas
e arranca-a. A mulher, dominada pelo pâ nico, começa a dar pontapé s e
nã o consegue resistir por mais tempo ao impulso de respirar.
Quando a á gua lhe entra nos pulmõ es, a dor é imediata. Flete o
corpo para trá s como se tivesse apanhado uma pancada violenta e tenta
tossir, mas apenas consegue respirar mais á gua, e depois é sacudida por
convulsõ es.
Joona corta a ita adesiva em volta dos braços e do busto com
movimentos rá pidos, enquanto a mulher treme por causa dos espasmos
e o sangue lhe sai a jorros pela boca e pelo nariz. Joona deixa cair a faca
e levanta da cadeira o corpo tré mulo da jovem, depois dá um impulso
com os pé s e começa a nadar para cima.
Evita as cadeiras que rodopiam arrastadas pela corrente, bate mais
uma vez as pernas com força e empurra para lá da superfı́cie o corpo de
Caroline, que tosse, vomita á gua, enche os pulmõ es de ar e depois tosse
outra vez.
Jack debruça-se no alçapã o com um candeeiro a ó leo pendurado
num croque, e uma luz quente re lete-se nas quatro paredes do poço.
– A ambulâ ncia aé rea está a chegar – grita.
Apertando um braço em volta da cintura da mulher, Joona começa a
trepar uma escada. Depois de a erguer acima da borda, ela ajoelha-se e
tosse. Respira com di iculdade, chora e tosse mais uma vez a cuspir
sangue, enquanto ao longe se começa a ouvir o barulho do rotor do
helicó ptero.
– Fiquem com ela, é vossa – choraminga Oscar para si mesmo. –
Estamos quites. Eu ico aqui, nã o digo nada. Juro-vos, nem vos vi.
Joona ampara a jovem e atravessam juntos a casa até chegarem à
porta. Saem depois para os rochedos atrá s da casa enquanto o
helicó ptero começa a descer. Jack vai atrá s deles a segurar o braço
ferido com a mã o. O kajal borratado manchou-lhe de negro os olhos e a
roupa esvoaça, despedaçada, em torno do seu corpo.
78
Assim que o helicó ptero desaparece para lá do mar, com Jack e
Caroline a bordo, Joona regressa à casa, pega numa toalha da casa de
banho e entra na arrecadaçã o para barcos.
Oscar von Creutz está sentado com as costas apoiadas na parede.
Quando vê Joona, para de roer a unha do polegar e tenta endireitar-se.
Joona aproxima-se e observa o alçapã o e as bobinas no teto.
O mecanismo prevê que uma corda passe entre as bobinas de
forma a desbloquear delicadamente o fecho de correr por baixo do
chã o, fazendo cair assim as duas portas e facilitando o acesso ao barco.
– Por favor, nã o faças isso, nã o podes fazer isso – implora o homem,
enquanto tenta em vã o desen iar a mã o do aro das algemas.
– Chamo-me Joona Linna e sou comissá rio da Secçã o Operativa
Nacional sueca.
– A sé rio? – gagueja o homem, espantado.
– Sim.
– Nã o percebo – diz Oscar, começando a roer a unha outra vez. –
Isto é uma loucura, que raio é que você s querem? O que é que estã o
aqui a fazer?
Caminhando pela borda, Joona passa ao lado do alçapã o
escancarado, para diante do homem que continua a tremer e espera
que ele olhe para si.
– E suspeito de sequestro, agressã o e tentativa de homicı́dio – diz
Joona, com toda a calma.
– Isso é tudo um disparate, tenho o direito de me defender – sibila
Oscar, baixando de novo os olhos para o chã o. – Que diabo querem de
mim? Nã o percebo…
Deté m-se, cobre durante alguns instantes o rosto com a mã o livre e
respira por entre os soluços.
– Fale-me da Toca do Coelho.
– Primeiro quero falar com um advogado.
– Seja o que for que tenha acontecido, já prescreveu.
– Prescreveu? Nã o me parece – diz Oscar.
– Talvez nã o – responde Joona, num tom ameaçador.
– Preciso de proteçã o.
– Porquê ? – pergunta Joona, apanhando os ó culos de Oscar do chã o.
– Há uma pessoa que anda atrá s de nó s para nos matar, um atrá s do
outro, como coelhos.
– Ouviu a lengalenga?
– Já lhe tinha dito?
– Nã o.
– Eu nã o estou paranoico. Posso contar-lhe tudo, sei quem é … Juro-
lhe, é um aluno de Ludviksberg que nos odeia. E como um demó nio:
icou a observar-nos durante trinta anos antes de dar um passo, antes
de começar a matar-nos como coelhos.
– Quem é ?
– Se você é polı́cia, tem de o deter.
– Pode dar-me um nome? – pergunta Joona, estendendo-lhe os
ó culos.
– Nã o acredita em mim, pois nã o?
– Nã o.
– Eu posso explicar tudo – diz Oscar, pondo os ó culos. – E uma
questã o de ló gica, se percebe quem nó s é ramos… Um pequeno bando
que tinha a escola nas mã os, quase uns deuses… Ora bem, perguntou-
me pela Toca do Coelho… era um pavilhã o que pertencia à ordem dos
cavaleiros de Crusebjö rn, que remonta aos tempos de Frederico I, blá -
blá -blá … Sabı́amos estas coisas todas, mas nã o nos interessavam nada,
está vamo-nos marimbando… Iamos à Toca para beber e levar para a
cama as raparigas mais giras da escola.
Oscar parece quase rir-se para si mesmo, depois seca o suor do
lá bio superior antes de continuar.
– Lá dentro, o mundo era completamente diferente… Vı́amos ilmes
pornográ icos, substituı́mos um retrato do prı́ncipe Eugé nio por um
poster de um aviã o de guerra americano… Gostá vamos da equipa
especial dos Marines que tinha o coelhinho da Playboy na cauda dos
caças.
– Mas você pegou fogo ao pavilhã o – diz Joona, com calma.
Oscar morde a unha do polegar e continua a olhar ixamente em
frente.
– Disse que algué m vos anda a perseguir para vos matar –
prossegue Joona. – Isso tem alguma coisa a ver com o incê ndio?
– O incê ndio? – pergunta Oscar, como se tivesse acabado de acordar
de um longo sono.
– Sim.
– Isto é uma coisa sé ria, caraças – diz, esfregando o rosto com a
mã o livre. – Há gente a morrer, nã o sã o fantasias minhas…
– Bem, vou-me embora – diz Joona.
– Espere, por favor… Estou a tentar explicar-lhe tudo, assim vai
acreditar em mim, quando eu lhe disser o nome – prossegue Oscar, com
um ar nervoso. – Havia um rapaz noutra turma do mesmo ano que se
chamava Rex, um absoluto desgraçado, aos nossos olhos… Mas andava
à nossa volta, queria entrar no grupo e estava sempre pronto para nos
arranjar umas cervejas e fazer os nossos trabalhos de casa… Lembro-
me perfeitamente de um dia de chuva, no verã o, está vamos a fumar um
cigarro atrá s da escola e ali perto havia uma espé cie de escada que dava
acesso a um subterrâ neo… O Rex estava sentado na beira, a contar a
histó ria da rapariga com quem andava, uma Grace… Entã o eu apercebi-
me de que o Wille sabia de quem se tratava e icou curioso, queria saber
mais, por isso levou o Rex a gabar-se de ter tido relaçõ es sexuais com
ela no campo atrá s da escola… Era tudo bastante paté tico, mas o Wille
gostava de jogar… Por isso, umas horas mais tarde foi falar com a Grace
e convenceu-a de que o Rex tinha entrado para o nosso grupo, e entã o
ela també m podia fazer parte, uma vez que andavam juntos… Nã o sei
exatamente o que lhe disse, mas de qualquer maneira contou-lhe que o
Rex tinha organizado uma festa surpresa, naquela noite…
Normalmente, os alunos nã o podiam sair depois das oito, mas havia um
rapaz lá no colé gio que trabalhava como contı́nuo e que nos ajudava
sempre, e entã o ele conseguiu fazê -la sair do dormitó rio e levou-a à
Toca do Coelho.
Uma gé lida rajada de vento sobe da á gua atravé s do alçapã o. As
portas batem contra as paredes e depois icam outra vez imó veis.
– Penso nisso todos os dias – sussurra Oscar. – No facto de… Ela
arranjou-se muito bem, e estava entusiasmadı́ssima com tudo. Tinha as
faces coradas e falava do Rex, estava convencida de que ele ia chegar.
Mas, na verdade, tı́nhamo-lo fechado nas cavalariças.
A sua boca estica-se numa espé cie de sorriso, ao mesmo tempo que
os olhos se tornam muito escuros.
– O Wille fechou o Rex nas cavalariças e disse-lhe que tinha
começado a andar com a Grace, que era assim que as coisas
funcionavam, que aquilo era a normalidade.
Interrompe-se e abana lentamente a cabeça. O vento varre o
telhado da casa e faz vibrar os vidros das janelas.
– Continue.
– Acho que nã o lhe quero contar mais nada – murmura Oscar.
– Quantos anos tinha, quando isso aconteceu?
– Dezanove.
– Entã o nã o pode atirar as culpas para cima de ningué m – diz
Joona.
– Nã o estou a fazer isso, mas o Wille gostava de humilhar os outros
– continua Oscar, em voz baixa. – Gostava de os ver rastejar e de os
envergonhar, mas aquilo que aconteceu quando a Grace se apercebeu
que tinha sido drogada foi tã o… O inferno que desencadeou, aquilo que
nos obrigou a fazer… Está vamos bê bedos, nem quero pensar em quem
fez o quê , e certos gritos… Certos gritos eram como uivos de animais…
Eu recusei-me, mas todos tinham de… Todos tinham de participar,
entã o puseram-me umas orelhas de coelho na cabeça e eu també m iz,
nã o consigo perceber como, mas consegui, estava como que alucinado…
Estava aterrorizado, caraças, mas també m iz… Até convenceram o
contı́nuo a fazê -lo antes de a arrastarem lá para fora.
– O Absalon Ratjen?
Oscar assente, depois ica imó vel, com o olhar perdido no vazio,
antes de continuar.
– Depois, quando soltá mos o Rex das cavalariças, o Wille contou-lhe
que tinha ido para a cama com a Grace. Inventou um monte de
disparates sobre aquilo que tinham feito, sobre o que ele tinha gozado…
Eu estava tonto, estava exausto, como se me tivessem sugado a alma. O
meu ú nico pensamento era que queria sair da escola. Fui-me embora,
mas quando cheguei à estaçã o termal, pouco antes da ponte, decidi
voltar para trá s e pegar fogo ao pavilhã o.
– E depois expulsaram-te.
– Nã o lhe estou a contar isto para ser perdoado. Errei, eu sei, mas
nã o quero morrer – diz Oscar.
– Merda, só quero tu acredite em mim, se lhe digo que é o Rex
Mü ller que anda atrá s de nó s.
– Parece convencido disso.
– Sim.
– Mas há pouco pensava que era eu o assassino – diz Joona.
– O Rex está cheio de dinheiro, nã o é obrigado a sujar as mã os, se
nã o quiser.
– Tem a certeza de que o Rex estava preso durante a violaçã o?
– Eu estava lá , també m participei… E també m estava quando o
soltá mos, depois – responde, com uma voz sombria.
Joona tira o telemó vel do bolso interior, observa o ecrã negro e
percebe que é inutilizá vel.
Tudo gira em volta de uma violaçã o de há trinta anos.
Os dezanove minutos de agonia impostos à s vı́timas devem
corresponder à duraçã o da violê ncia.
Rex estava fechado nas cavalariças e todos os rapazes participaram,
mas para alé m de Grace algué m mais devia encontrar-se a Toca.
– Disse que todos participaram – diz Joona.
– Sim.
– Mas nã o é bem assim, pois nã o?
– Nã o? – murmura Oscar.
– Havia alguma testemunha?
– Nã o.
– Quem é que vos viu?
– Ningué m.
– Preciso dos nomes de todos aqueles que estavam na Toca – diz
Joona.
– Por mim nã o os vai saber – responde Oscar.
– Tenho de arranjar maneira de receberem proteçã o.
– Mas eu nã o quero que sejam protegidos – responde Oscar,
observando Joona com um olhar apagado.
79
Valeria desce em direçã o à s estufas. O ar está frio, por isso aperta
um sobretudo velho em volta do corpo. Pensa que vai ter de pedir a
Micke para lhe dar uma mã o com a estrutura da nova estufa em arco.
Valeria adora aquele horto, o ar saturado de oxigé nio, as prateleiras
com os rebentos, as ilas de á rvores e de plantas.
Hoje, poré m, um vazio ecoa-lhe no peito.
Sabe que devia enterrar nos vasos as plantas de hidrocultura, mas
nã o se sente com forças para isso.
Fecha a porta de vidro atrá s de si e afasta uns baldes, depois senta-
se num simples banco de aço e manté m o olhar ixo no vazio. Quando
Micke abre a porta, Valeria estremece de surpresa e levanta-se.
– Olá , mã e – diz o rapaz, mostrando-lhe uma garrafa de champanhe
embrulhada como um presente.
– Nã o funcionou – diz ela, num tom pesaroso.
– O que é que nã o funcionou?
Valeria volta-se e começa a arrancar as folhas secas de um
amelanqueiro para manter as mã os ocupadas.
– Ele vive uma vida diferente – diz.
– Mas eu pensava…
Micke deté m-se. Valeria olha para ele e suspira. Ainda se
surpreende com o facto de ele se ter tornado um adulto. Quando entrou
na cadeia, o tempo parou, a sua memó ria icou praticamente congelada
e as crianças, nos seus pensamentos, continuaram a ter cinco e sete
anos. Para ela, serã o sempre dois meninos magros de pijama que se
divertiam quando ela ia atrá s deles para lhes fazer có cegas.
– Mã e, é a ú nica pessoa que parece fazer-te feliz.
– Nunca vai deixar de ser polı́cia.
– Mas isso nã o importa – diz Micke. – Ou seja… Tu sabes melhor do
que ningué m que nã o se pode dizer aos outros como devem viver a sua
pró pria vida.
– Tu nã o percebes… Quando ele estava na cadeia, eu sentia que já
nã o precisava de ter vergonha daquilo em que me tinha tornado.
– Ele fez-te envergonhar de alguma coisa?
Valeria assente, mas de repente já nã o tem a certeza de que seja
mesmo assim. Uma terrı́vel sensaçã o de frio explode-lhe no peito.
– Mã e, o que aconteceu exatamente? – pergunta Micke, pousando
delicadamente a garrafa de champanhe no chã o, sobre o cimento.
Com um io de voz, Valeria diz que talvez devesse ligar-lhe. Sai da
estufa, limpa as lá grimas das faces e tenta manter a calma, mas ainda
assim alarga o passo na ú ltima parte do percurso. A entrada tira as
botas e corre até ao quarto; pega no telemó vel que está em cima da
mesinha de cabeceira, desliga o cabo do carregador e, inalmente, liga-
lhe.
Ao im de alguns toques, a chamada é desviada para o voice mail de
Joona. Valeria ouve um breve bip, depois inspira profundamente.
– Preciso que um polı́cia me venha prender por ter sido tã o
estú pida – diz, e depois desliga a chamada.
O choro rebenta-lhe na garganta e as lá grimas toldam-lhe os olhos.
Senta-se na cama e tapa o rosto com as duas mã os.
80
O caçador de coelhos deixa o carro numa estrada no meio do
bosque, põ e o grande saco ao ombro e percorre a pé o ú ltimo troço até
à estalagem Malma Kvarn. Prossegue a passo rá pido até um dos
pontõ es e escolhe um velho Silver Fox com um motor potente. Sobe a
bordo e abre a tampa da igniçã o, depois liga um cabo do motor de
arranque ao da bateria e ouve imediatamente um ruı́do surdo.
A uns trinta metros de distâ ncia, uma famı́lia está a retirar as coisas
do convé s de um barco à vela. Os ilhos mais pequenos, apertados nos
coletes de salvamento cor de laranja, esperam no cais com os rostos
cansados.
Grupos de nuvens fugidias correm pelo cé u, alargando-se em
formas ameaçadoras.
O caçador silencioso solta as amarras, dá meia-volta e sai do
pequeno porto.
O vento sopra forte no mar aberto, e tem de ter o cuidado de
avançar perpendicularmente contra as ondas mais altas. A energia
está tica faz crepitar o rá dio. O homem procura a frequê ncia certa e
apanha um fragmento de conversa de uma equipa de salvamento a
propó sito de uma operaçã o de resgate recentemente levada a cabo.
Mais ao longe, um enorme clipper com as velas cor de bronze
avança rapidamente sobre o mar escuro.
O caçador segue em direçã o a Munkö n. Dali vai atravessar o
arquipé lago externo até à baı́a de Bullerö n.
Uma onda atinge o para-brisas e a á gua desliza ao longo do vidro.
Naquele preciso instante, consegue apanhar no rá dio excertos de uma
comunicaçã o da Guarda Costeira.
Parece referir-se a um acidente.
A ambulâ ncia aé rea chegou ao hospital de Sö der.
O casco de alumı́nio emite gemidos de cada vez que a proa bate
numa onda. O caçador percebe que a Polı́cia capturou um homem em
Bullerö n e o levou a bordo da lancha 311.
Para ouvir melhor, desliga os cabos de forma a fazer calar o motor.
E Oscar, levaram-no.
O caçador tenta afastar da cabeça as imagens de um coelho
cinzento a correr velozmente, a mudar de direçã o e a deslizar com as
patas, levantando uma nuvem de pó .
Agacha-se sobre o convé s molhado e tapa as orelhas com as mã os.
Oscar enriqueceu graças aos fundos de cobertura e ao dinheiro das
pensõ es dos outros, e muitos anos atrá s abusou de uma rapariga
juntamente com os amigos. Deu-lhe pontapé s, en iou duas orelhas de
coelho brancas na cabeça e um papillon no pescoço, depois violentou-a
uma segunda vez com uma garrafa.
O barco ondeia bruscamente ao ritmo das ondas, e ele tem de se
apoiar no parapeito para nã o cair.
Nã o consegue perceber como é que a Polı́cia conseguiu encontrá -lo
tã o depressa, é impossı́vel.
Oscar foge como um coelho que desaparece na toca.
Para o caçador, nã o havia dú vidas sobre a possibilidade de o
apanhar.
Era como perseguir um coelho doente de mixomatose. Os animais
enchem-se de bolhas em volta do focinho e dos olhos, perdem a vista e
por im icam tã o debilitados que se podem matar espezinhando-os.
Nã o quer pensar nisso, mas ainda assim o cé rebro repesca as
imagens de quando, em pequeno, limpava o balcã o do talho e o chã o de
tijoleira com uma mangueira de á gua: o sangue e os grumos de carne
en iavam-se ao longo das junçõ es dos azulejos e desapareciam no
bueiro.
O barco abana e ele cai de lado, depois levanta-se e apercebe-se de
que chocou contra um rochedo. Uma onda enorme abate-se numa
bá tega de salpicos sobre o parapeito e, antes de recuperar o equilı́brio,
o homem bate com a cara na moldura de metal branco do para-brisas.
Liga outra vez os cabos. A princı́pio só consegue uma breve faı́sca,
mas à segunda tentativa o motor arranca.
O barco ondeia, a á gua bate-lhe nas pernas com força e o casco
inclina-se contra o rochedo, perdendo fragmentos de tinta azul-escura.
Engata a marcha-atrá s e a hé lice vibra a roncar debaixo de á gua. O
barco desliza com alguma di iculdade para trá s. Na pintura ica
marcado um risco prateado, e depois o barco encalha outra vez. Da boca
do caçador explode um grito tã o forte que quase lhe quebra a voz.
Uma nova onda ataca-o e o barco inclina-se, enquanto o metal geme
e a espuma branca salta para o ar. Quando a á gua se retira, o homem
começa a dar ainda mais gá s e consegue desencalhar o barco. Desliza
para trá s na cavidade da onda e evita a rebentaçã o, depois vira e avança
na direçã o de Vä rmdö .
No dia seguinte, vai esperar à porta da esquadra central da Polı́cia
até à conclusã o da audiê ncia preliminar. Se for deixado em liberdade à
espera da sentença, Oscar tentará seguramente deixar o paı́s, de carro
ou de barco. Obviamente, se for encerrado na prisã o de Kronoberg até
ao processo, tudo será mais complicado.
81
A sede do FBI em Chicago é um complexo de vidro que emana
re lexos azuis, num bairro anó nimo, perto da estaçã o e da universidade.
No nono andar, Saga Bauer está sentada numa sala de reuniõ es
chamado Lowe.
Saga desculpou-se dizendo que nã o tinha visto nenhum cartaz com
o seu nome no aeroporto e que tinha dado como certo que se ia
encontrar com os agentes depois da sua visita à clı́nica.
Um diretor administrativo de bigodes grisalhos passou a
cumprimentá -la rapidamente, explicando-lhe que o FBI está metido na
merda até ao pescoço desde que capturaram trinta e quatro membros
de um gangue criminoso chamado Latin Kings.
Depois da visita à clı́nica, Saga ligou a Joona mais de dez vezes, mas
o telemó vel dele estava sempre desligado.
Agora é noite, e o escritó rio está praticamente deserto quando uma
agente do quartel-general de Washington entra na sala de reuniõ es e
pousa uma bolsa Prada em cima da mesa. E uma mulher de baixa
estatura com uma ruga profunda na testa, olhos negros e cabelos
esticados.
– Supervisory special agent Ló pez – apresenta-se em inglê s, sem
sorrir.
– Saga Bauer.
Trocam um aperto de mã o, depois Ló pez senta-se à mesa e
desabotoa o casaco.
– O nosso secretá rio da Defesa foi assassinado na Sué cia porque
você e os seus colegas izeram um trabalho de merda.
– Sinto muito – responde Saga.
– O que é que tem a dizer-me sobre os terroristas? – pergunta
Ló pez, apoiando-se ao encosto da cadeira.
– Pessoalmente, nã o acredito que se trate de terrorismo… mas
obviamente seguiremos todas as pistas.
Ló pez arqueia as sobrancelhas com um ar iró nico.
– Por exemplo, vindo aqui?
– Exatamente.
– O que foi que descobriu?
– Decidir os procedimentos para a troca de informaçõ es é uma
tarefa muito acima do meu nı́vel…– Quero lá saber – interrompe-a
Ló pez.
– Preciso de falar com o meu superior – diz Saga.
– Entã o fale.
Saga pega no telefone e tenta novamente ligar a Joona. Desta vez, a
linha está livre.
– Estou?
– Finalmente – diz Saga, em sueco.
– Tentaste ligar-me? – pergunta ele.
– Deixei-te umas mensagens.
– O telefone caiu-me à á gua – explica Joona.
Saga observa o quadro branco com traços apagados de marcadores
vermelhos, verdes e azuis, e entretanto dá -lhe a entender que, na
qualidade de agente da Sä po, nã o pode de maneira nenhuma informá -lo
de que Grace tinha sido vı́tima de uma terrı́vel violaçã o de grupo na
Toca do Coelho.
– Lembra-se dos nomes dos violadores… Falou no William, no
Teddy Johnson, num Kent, num Lawrence e no Rex Mü ller.
– O Rex Mü ller? – pergunta Joona. – Foi ela que disse?
– Sim – responde Saga, lançando um olhar a Ló pez, que a ita com
um ar impassı́vel.
– Portanto, o Rex foi indicado quer como violador, quer como
aquele que deseja vingar-se da violaçã o.
– O quê ? De que é que está s a falar? – pergunta Saga.
– Encontrei o Oscar von Creutz… Quero interrogá -lo novamente,
mas contou-me o que aconteceu e é evidente que o Rex nã o estava
presente – explica Joona. – Fecharam-no nas cavalariças enquanto os
outros violavam a namorada dele… Segundo o Oscar, é o Rex a pessoa
que se está a vingar de todos os outros.
– Entã o o Rex nã o participou na violaçã o? – pergunta Saga.
– Nã o.
Ló pez procura na carteira e tira de lá um batom negro.
– E tu nã o achas que seja ele o assassino – diz Saga.
– Tem dinheiro su iciente para contratar algué m que trate do
assunto por ele, mas…
– Essa explicaçã o nã o te convence – conclui Saga.
– Os homicı́dios tê m de estar ligados ao que aconteceu na Toca do
Coelho – diz Joona. – Temos um spree killer que mata os violadores um
atrá s do outro.
– Mas porquê ?
– Deve ter estado presente.
– Uma testemunha?
– Uma coisa diferente – diz ele. – Deve ter acontecido alguma coisa
diferente, alguma coisa deque nó s nã o sabemos nada. Um fator
desconhecido, um terceiro sujeito.
– Quem poderia ser? – pergunta Saga.
– Temos vı́timas e assassino… Mas falta qualquer coisa.
– Que coisa?
– E o que temos de descobrir.
– Eu falo com a Grace, tu tratas do Rex e do Oscar – diz Saga.
– O tempo urge.
Saga desliga a chamada, en ia o telemó vel no bolso e volta-se para
Ló pez com um sorriso nos lá bios.
– O chefe diz que a vai contactar amanhã – explica.
– Eu sei sueco – diz gelidamente Ló pez em inglê s.
– Entã o já sabe tudo – responde Saga, levantando-se.
Ló pez esboça um sorriso satisfeito pelo seu pró prio bluff e depois
assente.
– O seu chefe vai ordenar-lhe que nos forneça todas as informaçõ es
ao seu dispor.
– Espero bem – diz Saga.
– Vou buscá -la ao hotel depois do pequeno-almoço.
– Obrigada – responde Saga, e sai da sala.
Devolve o cartã o para as visitas à entrada, a seguir ao controlo de
segurança, depois entra no carro azul no parque de estacionamento.
Sem pressa, chega à barreira e espera que levante, depois vira à direita
na Roosevelt Road e dirige-se mais uma vez à clı́nica.
O trá fego nos subú rbios parece mais luido. O cé u chuvoso de
Chicago está cinzento e escuro como argila no momento em que Saga
estaciona em Timberline Drive.
Quinhentos metros mais adiante, vê a guarita iluminada e os
portõ es fechados que cintilam como neve sob a luz intensa dos
lampiõ es. O horá rio de visita terminou há horas e as pacientes
provavelmente estã o a dormir.
Saga caminha a passos largos ao longo da estrada, mas antes de
entrar no cone de luz salta por cima do fosso e entra no bosque.
Nã o se ouve nenhum ruı́do exceto o da chuva que bate nas copas
das á rvores e o roçar dos seus passos sobre a erva e entre as folhas
mortas.
Afasta-se do portã o em direçã o ao gradeamento, afasta os ramos e
tenta descortinar as luzes da clı́nica atravé s dos troncos e da vegetaçã o.
Nã o há tempo para esperar até ao dia seguinte, tem de conseguir
entrar imediatamente e falar com Grace. Quer o assassino seja um
mercená rio, quer atue por motivos pessoais, tem em qualquer caso
como objetivo matar todas as pessoas da sua lista da maneira mais
e icaz possı́vel. O mó bil e o modus operandi do assassino tê m qualquer
coisa de perverso, e apesar de os homicı́dios nã o apresentarem
caracterı́sticas de tipo sexual, todos os detalhes indicam que a mente do
assassino está desordenada e perturbada.
Saga atravessa uma zona de fetos hú midos e ouve um ruı́do atrá s
dela, por isso volta-se e levanta os olhos para as copas escuras das
á rvores. Um pá ssaro de grandes dimensõ es move-se entre os ramos
mais altos, com um rumor semelhante ao de muitos vé us de seda que se
amarrotam.
Saga avança rapidamente, regressa à zona onde a escuridã o é mais
densa no meio das á rvores e, de repente, parece-lhe descortinar uma
luz tré mula.
Nã o há tempo a perder, porque o assassino possui todas as
caracterı́sticas do spree killer: o seu mó bil é de natureza estritamente
pessoal, mas os homicı́dios nã o sã o a realizaçã o de uma fantasia e nã o
carecem de um perı́odo de re lexã o.
Cada crime é um passo em frente, mais uma peça de uma soluçã o
inal. Saga tropeça ao entrar numa á rea disseminada de á rvores
cortadas e para em frente ao gradeamento de aço pintado de negro com
cinco metros de altura. Entre os postes robustos há ilas de hastes mais
inas com as pontas em forma de lança ligadas por barras horizontais.
A intervalos regulares de alguns metros veem-se cartazes que
proı́bem a entrada na á rea e referem o nome da empresa de vigilâ ncia
responsá vel pela segurança do estabelecimento.
Saga ganha balanço e agarra-se à s hastes mais inas, pousa o pé
num placard que diz «CCTV in Operation» e dá um impulso; chega à s
pontas aguçadas com as mã os, passa por cima e salta para o outro lado.
Atravé s do parque bem arranjado, por entre manchas de á rvores e
extensõ es de relva, desenrola-se uma rede de caminhos iluminados.
Saga corre por entre as á rvores, seguindo um caminho afastado das
luzes.
Se Grace nã o tomou mais medicamentos, talvez consiga falar com
ela sobre aquilo que aconteceu na Toca do Coelho.
Saga aproxima-se dos dormitó rios e abranda o passo.
Os lampiõ es lançam uma luz té trica sobre os caminhos hú midos de
chuva e sobre os bancos molhados. As janelas dos vá rios setores estã o
escuras, e os vidros nã o parecem mais do que um re lexo cego do
exterior.
Folhas caem e roçam-lhe os ombros.
Algué m se aproxima por entre os edifı́cios. Saga chega-se para o
lado e esconde-se entre os arbustos.
E um homem do serviço de vigilâ ncia: está a veri icar se as portas
dos edifı́cios estã o fechadas.
Saga ouve-o transmitir uma informaçã o via rá dio enquanto se
afasta.
82
Em volta de Saga o silê ncio é profundo e todas as coisas assumem
um re lexo sombrio à luz té nue dos lampiõ es. A agente da Sä po
aproxima-se da Oak Lodge, a residê ncia para as hó spedes mais jovens, e
ica parada a ouvir.
No instante em que começa a mover-se, atrá s de uma das janelas
acende-se uma lâ mpada. A luz cai sobre a relva cortada de fresco como
os escombros de uma torre que desaba no chã o.
Saga desloca-se cautelosamente para debaixo de uma grande
á rvore. Pisa um ramo, e o ar é atravessado por um estalido.
A janela aparece uma mulher nua.
Nã o pode ter mais de vinte anos.
Saga vê o seu rosto pá lido perscrutar a noite, depois a rapariga
vira-se e desaparece a cambalear dentro do quarto.
Saga ica à espera alguns instantes, depois atravessa o relvado e
chega ao caminho que dá acesso ao edifı́cio onde se encontra Grace.
Naquele momento, apercebe-se de que tem os jeans molhados até
aos joelhos.
Aproxima-se rapidamente do atelier de pintura e sente o eco dé bil
dos seus pró prios passos ressoar contra a fachada.
Saga tenciona dizer a Grace que Rex nã o tomou parte na violaçã o e
que na realidade tinha icado fechado nas cavalariças durante toda a
noite.
Usará esta informaçã o para levar Grace a recordar e a contar-lhe
exatamente o que tinha acontecido.
Talvez seja capaz de identi icar o desconhecido da Toca do Coelho,
a pessoa de quem Joona falou.
Saga para ao lado do muro, vê a á gua escorrer de uma caleira e
desaparecer num bueiro, depois avança com circunspeçã o até à esquina
e, naquele momento, sente uma gargalhada atrá s dela.
Vira-se.
Uma mulher com uma camisa de noite ina parou atrá s dela, e tem
na mã o uma peruca loira.
– Minha bonequinha – diz, com um tom estupefacto e um grande
sorriso nos lá bios.
O seu rosto, com uma mı́mica quase exagerada, é incrivelmente
expressivo. Saga afasta-se lentamente, mas a mulher vai atrá s dela.
– Eu tive de fazer aquilo, Megan – prossegue a mulher, com uma
expressã o triste. – O avô disse que eu nã o podia icar contigo.
– Achas que…
– Juro-te – interrompe-a ela bruscamente. – Pergunta-lhe. Está ali
ao fundo, debaixo da á rvore.
A mulher aponta um dedo tré mulo por entre as sombras do parque.
– OK – diz Saga, e vira a cabeça para olhar.
– Agora escondeu-se – insiste a mulher, ofegante.
– Tenho de ir embora – diz Saga docemente.
– Anda – sibila a mulher, depois começa a andar em direçã o ao
parque. – Vamos voar juntas…Com as cabeças ensanguentadas, vamos
correr pelo bosque…
Saga prossegue rapidamente na direçã o oposta, ao longo da
fachada. Volta-se por um instante e apercebe-se de que a mulher icou
imó vel no meio do caminho.
Saga atravessa a correr um espaço aberto, afastando-se do atelier, e
chega ao edifı́cio onde se encontrou com Grace pela primeira vez.
A entrada está iluminada, mas por trá s das janelas nã o há nenhuma
luz acesa. Saga chega à porta e descobre que está fechada à chave.
Espreita pelo vidro e descortina a sala de estar na penumbra e a
má quina de doces iluminada.
Um estranho rumor atrá s dela – como de pé s descalços que se
deslocam num pavimento molhado – obriga-a a voltar-se ao mesmo
tempo que um arrepio lhe corre ao longo do corpo.
Nã o está ningué m. Tudo está envolvido em silê ncio: as superfı́cies
asfaltadas sob a luz está tica, a lenta cintilaçã o na borda de um bueiro e
o parque com as folhas cobertas de gotas de á gua.
Saga dá a volta ao edifı́cio e chega ao relvado nas traseiras.
Aproxima-se de um banco ao lado de um grande rododendro, para e
determina em poucos instantes qual das janelas é a de Grace.
Uma gargalhada estouvada ressoa na noite. Saga esconde-se entre
as sombras e vê que a mulher com a peruca, atrá s de uma á rvore, está a
fazer um gesto em direçã o a ela.
Saga ica imó vel e apercebe-se de que a mulher se vira e sorri
noutra direçã o, depois coça o nariz com força e desaparece no parque.
Rapidamente, Saga aproxima o banco do edifı́cio, empurra-o para
debaixo da janela de Grace e sobe para espreitar para dentro.
Por entre as cortinas entrevê uma mesinha de cabeceira com uma
caixa de mú sica de porcelana em cima.
Saga mal consegue reparar na silhueta que a ataca por trá s antes de
sentir a dor que lhe explode nas costas, como a dentada de um cã o de
guarda. As pernas cedem e cai de lado, batendo com as costelas contra o
braço do banco com um gemido.
Sente uma ardê ncia latejante nas costas, o corpo é percorrido por
convulsõ es incontrolá veis e nem sequer se apercebe de que está a cair
ao chã o.
Quando volta a abrir os olhos e vê o cé u escuro carregado de chuva,
pensa que deve ter perdido os sentidos durante alguns instantes.
Sente outra pancada, como uma mirı́ade de rapidı́ssimas faı́scas
que se acendem ao longo dos lancos, depois nã o vê mais nada. Mas
apercebe-se de que algué m a arrasta pelas pernas ao longo do caminho
de cimento até à erva molhada.
Saga tenta ganhar fô lego, abre os olhos e vê Mark, o segurança, que
se inclina sobre ela empunhando um taser.
Tem a respiraçã o pesada e observa-a com um ar preocupado.
Saga tenta levantar uma mã o para o afastar, mas os seus mú sculos
nã o reagem.
– Sou um rapaz grande, forte e com bom cará cter, mas o
regulamento prevê que veri ique se está armada.
O coraçã o de Saga começa a bater loucamente quando Mark lhe
abre o fecho é clair do blusã o. Encontra o telemó vel e atira-o contra o
tronco da á rvore mais pró xima. Com a pancada, o telefone parte-se e as
peças saltam para cima da relva.
Mark inclina-se novamente sobre ela e en ia-lhe uma mã o gelada
por baixo da camisola. Os dedos abrem caminho por baixo da copa do
soutien e apertam-lhe um mamilo com força.
– Aqui nã o há nada – murmura, retirando a mã o.
Respira com a boca semiaberta, manté m o taser encostado à
garganta dela e desabotoa-lhe os jeans. Saga consegue levantar a mã o
direita e agarrá -lo pela manga do uniforme, puxando-a debilmente.
– Pare com isso – sibila Saga.
– Preciso de procurar armas escondidas – diz Mark, e engole em
seco visivelmente.
Começa a baixar-lhe os jeans e as cuecas, mas algué m o contacta
atravé s do rá dio. Apoia-se com a mã o no peito de Saga e descarrega
sobre ela todo o seu peso. O ar sai dos pulmõ es da agente da Sä po com
um assobio.
– Temos uma intrusa, chama a Polı́cia – diz, afastando-se do feixe de
luz de um lampiã o.
Saga tenta compor as calças, e de repente vê dois guardas que se
aproximam a correr por entre os edifı́cios enquanto, de outra direçã o,
dois enfermeiros vã o ao encontro dela numa grande agitaçã o.
83
No dia a seguir à prisã o de Oscar von Creutz em Bullerö n, no
comissariado de Kungsholmen tem lugar um breve debate acerca da
sua prisã o preventiva.
Oscar está sentado entre os advogados de defesa e dirige um olhar
à s janelas altas. O sol desponta por detrá s das nuvens, fazendo cintilar a
poeira suspensa no ar.
Como se se encontrasse num lugar muito distante, Oscar escuta o
Ministé rio Pú blico requerer a sua prisã o com base em fortes indı́cios de
culpa por rapto, tentativa de homicı́dio e violê ncia privada.
Sã o acusaçõ es graves mas, no entanto, como ele bem sabe, só pode
ser detido no caso de o juiz considerar que há perigo de reiteraçã o do
crime, de fuga ou de falsi icaçã o de provas.
Quando o magistrado estabelece, por im, que pode aguardar o
processo em liberdade, Oscar esconde o sorriso com uma mã o. Pondera
se será caso para agradecer, mas decide que nã o e limita-se a seguir os
advogados até à saı́da.
– Agora nã o penses mais nisso – diz um dos seus advogados, do
lado de fora do portã o.
– Obrigado, Jacob – responde Oscar, com um io de voz, e aperta a
mã o a ambos.
O escritó rio de advogados já elaborou uma estraté gia para o ilibar
de todas as acusaçõ es, caso nã o se conseguisse convencer o Ministé rio
Pú blico a arquivar o caso.
Durante o primeiro encontro, o advogado fez-se acompanhar por
um mé dico que tinha tirado a Oscar oito tubinhos de sangue. Nã o vã o
ser entregues a nenhum laborató rio, mas servirã o para demonstrar,
mais adiante, durante o processo, a escrupulosidade da defesa.
Uma vez que os advogados sabem exatamente quais os exames
toxicoló gicos que o Ministé rio Pú blico pode permitir, considerados os
escassos recursos à disposiçã o, construirã o a defesa com base nas
substâ ncias que a acusaçã o nã o vai conseguir identi icar.
Nã o tem qualquer importâ ncia o facto de essas substâ ncias nã o
terem nunca estado presentes no sangue de Oscar.
A estraté gia é criar um quadro clı́nico complexo em que vá rios
mé dicos prescreveram medicamentos diferentes sem terem em conta
as suas interaçõ es. Os advogados sabem que sã o perfeitamente capazes
de demonstrar que a temporá ria enfermidade mental de Oscar foi
causada por uma terapia errada.
Oscar nã o quer saber do processo. Pagou para ser libertado porque
nã o pode icar numa gaiola à espera de ser assassinado.
A prisã o nã o vai protegê -lo.
E por isso que tenciona deixar o paı́s e icar longe durante todo o
tempo que a Polı́cia precisar para capturar o assassino.
Mas Oscar nã o sabe que o caçador de coelhos está à espera dele do
lado de fora do comissariado e que o observa enquanto ele se despede
dos advogados.
Nã o se apercebe de que algué m o segue, que passa ao lado dele
enquanto atravessa o parque e que o ouve quando ele chama um tá xi
para o levar ao terminal da Silja Lines em Vä rtahamnen.
Durante a viagem para o porto, Oscar reserva um lugar no barco
Silja Symphony, paga o tá xi em dinheiro, faz o check-in e embarca.
A sua cabina ica ao fundo da popa: uma suı́te com uma enorme
janela curva virada para o cé u e para o mar. Oscar tem cuidado em
fechar bem a porta e veri ica mais uma vez a maçaneta. Assim que
chegar a Helsı́nquia, apanhará outro barco para Tallinn; ali vai alugar
um carro, arranjar uma prostituta e partir para sul, atravessando a
Letó nia, a Lituâ nia, a Poló nia, a Eslová quia, a Hungria, a Romé nia e a
Bulgá ria até chegar ao Sul da Turquia. Tenciona alugar um apartamento
e icar escondido até ter a certeza de que pode regressar à Sué cia.
Oscar chega ao minibar e abre a porta perra. Pega em duas
garra inhas de plá stico escuro de whisky Ballantine’s, desaperta as
rolhas, enche um copo e aproxima-se da janela para observar a longa
ila de carros que, lentamente, entram a bordo do ferry.

Os coelhos sã o animais medrosos, aninham-se e icam


completamente imó veis na esperança de se tornarem invisı́veis, mas se
o caçador para de repente e ica à espera, nã o tê m salvaçã o.
E o silê ncio que os faz entrar em pâ nico e que os obriga a correr,
convencidos de que foram vistos.
O caçador silencioso desce à garagem do Rå dhusparken, abre a
mala do carro e, com cuidado para nã o ser apanhado pelas câ maras de
vigilâ ncia, enche um trolley preto com armas, mudas de roupa, luvas de
lá tex, toalhitas hú midas, sacos de lixo, ita adesiva, um mandril e um
conjunto de gazuas especı́ icas para as portas blindadas.
Sai da garagem levando o trolley consigo, chega a Fleminggatan,
para um tá xi e pede para o levar ao porto, onde compra um bilhete
barato com um nome falso.
Tem uma segunda oportunidade para deter Oscar, mas sabe que
muitas coisas podem ainda ocorrer contra ele. Veri icam-se sempre
circunstâ ncias impossı́veis de prever. O plano é conseguir abandonar o
barco antes de partir, mas també m pode acontecer que Oscar vá até um
dos restaurantes, para o meio das pessoas, e entã o será demasiado
tarde. Nesse caso, vai atrá s dele até à Finlâ ndia para fazer aquilo que
deve.
O caçador imaginou esventrá -lo e desenrolar o seu intestino no
chã o à frente dele.
O objetivo é que os dez vã o ao encontro do seu pró prio destino de
olhos abertos.
A lengalenga serve para os preparar.
Na primeira fase, quer que, apesar do medo e da dor, conservem a
esperança de sobreviver, que lutem desesperadamente enquanto no seu
espı́rito se torna cada vez mais forte a consciê ncia de que a vida futura
nã o será nunca como antes.
Devem perceber que vã o icar cegos, mutilados ou paralisados.
Devem, em qualquer caso, lutar para sobreviver até que, na
segunda fase, seja claro que nã o existe qualquer clemê ncia, que toda
aquela dor e aquele terror sã o a essê ncia dos ú ltimos instantes da sua
vida.
O caçador silencioso nã o extrai qualquer prazer desse sofrimento.
E antes acometido por um intenso sentimento de justiça e, quando
inalmente morrem, o mundo inteiro ica calado, como uma imó vel
paisagem invernal.
No terminal, faz o check-in numa das maquinetas automá ticas,
carimba o cartã o de embarque e segue a ila das pessoas que sobem a
bordo. O Silja Symphony é um navio com mais de duzentos metros de
comprimento e treze andares. No interior há quase mil cabinas, e tem
capacidade para mais passageiros do que o Titanic.
O caçador mostra o bilhete de identidade falso com o nome von
Creutschen, escolhido propositadamente para icar perto de Oscar na
lista de passageiros. Veri ica no ecrã o nú mero da cabina de von Creutz,
aproxima-se de uma planta do navio pendurada ao lado do elevador e
depois utiliza as escadas que dã o acesso à s á reas reservadas dos
funcioná rios da limpeza, no piso de baixo, por cima da casa das
má quinas.
O caçador desce rapidamente as escadas e espera do lado de fora
da porta da á rea reservada ao pessoal. Ao im de alguns minutos, sai
uma mulher. Ele segura na porta, manté m-na aberta e depois pergunta-
lhe por Maria, arranjando assim uma desculpa para entrar. Passa ao
lado de dois homens que estã o a despir o sobretudo e cumprimenta
uma mulher que está a escrever um SMS no telemó vel.
– Tens por acaso uma chave-mestra?
– Preciso da minha – responde ela, sem deixar de escrever.
– Eu já ta trago – replica o homem, com um sorriso.
– Pede à Ramona – responde a mulher, indicando a casa de banho.
No banco à porta das casas de banho está pousado um saco de
desporto cor-de-rosa e cinzento de pele sinté tica. O caçador aproxima-
se e abre o fecho. Tira a caixa do almoço, procura no meio da roupa e
apalpa o fundo do saco, mas depois ouve puxar o autoclismo.
Veri ica rapidamente as duas bolsas interiores, enquanto a
proprietá ria lava as mã os e arranca uma toalha de papel. Abre as duas
bolsas laterais, onde encontra o crachá identi icativo de Ramona e uma
chave-mestra magné tica. Naquele preciso instante, a maçaneta da porta
desce.
Quando a porta se abre, o caçador vira-se com o cartã o na mã o e
afasta-se sem pressa.
Segundo o seu plano, dispunha de quinze minutos para tentar
arranjar uma chave. Só precisou de cinco.
Nã o sendo obrigado a usar as gazuas que trouxe consigo, sobra-lhe
mais tempo para passar com Oscar dentro da cabina.
Transporta o trolley pelas escadas de paredes forradas de papel e
atravé s do andar onde icam os bares e os restaurantes, depois passa
por uma ila de lojas duty free e corredores com salas para conferê ncias,
slot machines e um casino.
O ú ltimo andar por baixo da ponte exterior é dedicado a Mozart. E
ali que se encontram as suı́tes mais exclusivas.
Uma mulher embriagada sai de uma cabina e oscila enquanto
caminha na sua direçã o. Por brincadeira, bloqueia o corredor, abrindo
os braços, como se estivessem a brincar.
– Pareces um tipo à s direitas – diz a mulher, com um sorriso nos
lá bios. – Nã o queres vir à minha cabina ajudar-me a…
Naquele momento, alguma coisa parece quebrar-se na cabeça do
caçador. Sente um zumbido no ouvido e estende uma mã o para tentar
apoiar-se à parede. Entretanto, volta-lhe à ideia a maneira como
chorava quando pregava outros pedaços de carne em volta da porta dos
coelhos em decomposiçã o.
Agora devem estar longe, agora devem estar longe, sussurrava.
O caçador sorri à mulher e passa à frente. O suor escorre-lhe ao
longo das costas e subitamente pensa no calor da cadeira de rodas a
arder.
Tinha pegado no bidã o na cabana das ferramentas e encontrado os
fó sforos na cozinha, deixando a gaveta aberta, e depois tinha escrito
uma mensagem que anunciava o suicı́dio no per il do Facebook de Nils
Gilbert.
Saiu e despejou a gasolina em cima dele, depois atirou-lhe um
fó sforo para os joelhos.
Recuou por causa do calor, enquanto ouvia o grito lancinante de
Gilbert penetrar-lhe nos ouvidos, e icou a observar o corpo do homem
a contorcer-se no meio das chamas antes de se dobrar sobre si mesmo,
tornando-se cada vez mais negro.
Gilbert estava notoriamente só e deprimido, e certamente a Polı́cia
nã o vai relacionar o suicı́dio com os outros homicı́dios.
O caçador para na popa, ao fundo do navio, em frente à suı́te com o
nome bizarro de «Nannerl». Ouve vozes atrá s de si enquanto en ia as
luvas de lá tex, depois passa o cartã o magné tico pelo leitor, entra na
cabina e volta a fechar a porta sem fazer barulho.
Estende o trolley no chã o da entrada e abre-o, pega num saquinho
de plá stico ensanguentado, tira a mola que o fecha e pega na itinha de
couro com as dez orelhas de coelho.
84
O caçador volta-se para o espelho da entrada, põ e a itinha em volta
da cabeça e amarra-a com força na nuca. Com um gesto instintivo,
afasta as orelhas do rosto, depois cruza o seu pró prio olhar no espelho
e sente-se invadido por uma força gé lida.
Agora é outra vez um caçador.
Pega num dos telemó veis pré -pagos e envia a mensagem de voz a
Oscar, ouve o toque do smartphone no quarto e depois o eco da
lengalenga no momento em que o icheiro é aberto.
Provavelmente Oscar está sozinho, mas por uma questã o de
segurança o caçador veri ica a casa de banho e inspeciona rapidamente
a sala.
Do lado de fora do vidro coberto de salpicos vê -se a á gua do porto
manchada de petró leo.
Chega ao quarto, escancara a porta e entra.
A televisã o está a transmitir uma partida de futebol sem som.
Ouvem-se apenas alguns zumbidos leves quando mudam as imagens.
Uma té nue luz azul-acinzentada projeta-se nas paredes.
O caçador compreende imediatamente que Oscar se escondeu no
armá rio, atrá s da porta de correr de vidro opaco, e que provavelmente
está a tentar alertar a Polı́cia com as mã os já tré mulas.
Tudo é tã o banal e tã o absurdo quando a morte chega de visita.
Em cima da mesa de cabeceira está pousado um copo de whisky.
O caçador observa as arestas esbotenadas das pernas da mesa, a
colcha puı́da em alguns pontos, as manchas escuras no tapete e as
marcas deixadas no espelho por um esfregã o.
Apercebe-se de que, dentro do armá rio, o telefone cai das mã os de
Oscar, e compreende que esteja a tremer porque se encontra já
dominado por uma simples constataçã o: tudo aquilo que sempre
receou está a acontecer naquele preciso momento. Oscar sabe que o
ruı́do o traiu, mas continua escondido porque o seu cé rebro continua a
dizer-lhe que talvez o assassino nã o tenha ouvido nada e que talvez nã o
o encontre.
Alguns cabides tilintam ao longo do varã o do armá rio.
Quando os quatro motores inlandeses a diesel começam a
funcionar, o chã o do barco começa a vibrar.
O caçador de coelhos espera alguns segundos, depois avança e dá
um pontapé à porta de vidro do armá rio. Recua instintivamente um
passo quando os cacos se espalham no tapete e em volta das pernas de
Oscar von Creutz.
O homem de meia-idade cai ao chã o, aterrorizado como uma
criança, põ e-se de gatas no fundo do armá rio e levanta os olhos para
ele.
Uma recordaçã o atravessa a mente do caçador: tem novamente
diante dos olhos o pâ nico dos coelhos quando recuperava as
armadilhas, virava as gaiolas e en iava uma mã o lá dentro para agarrar
as patas posteriores dos animais.
– Por favor, eu posso pagar-te. Tenho muito dinheiro, juro-te, eu…
O caçador dá um passo em frente e agarra Oscar por uma perna,
mas o homem tenta libertar-se e solta-se, escapando ao aperto. O
caçador atinge-o duas vezes no rosto, depois com uma mã o afasta-lhe
os braços e com a outra volta a agarrar-lhe a perna.
Oscar grita enquanto o caçador de coelhos o arrasta pelo chã o e lhe
amarra o tornozelo a uma das pernas da cama.
– Nã o quero – berra.
O caçador dá -lhe um pontapé no antebraço, depois vira Oscar,
empurra-o contra o chã o de lado e prende-lhe os braços atrá s das
costas.
– Ouve, nã o é preciso matares-me – diz Oscar, arquejante. – Eramos
jovens, nã o percebı́amos, nó s…
O caçador tapa-lhe a boca com ita adesiva, depois afasta-se e ica a
observá -lo durante alguns instantes: olha para ele enquanto Oscar tenta
libertar-se, contorcendo o corpo, apesar de as tiras lhe cortarem a pele.
Participou em duas missõ es no Iraque e sabe o que signi ica matar
por conta do Estado. Tem consciê ncia da quantidade de força de
vontade que é precisa para se armar, e conhece o cansaço que, depois, o
domina.
Em tempos, pensava que os rapazes com quem tinha seguido o
programa de treino BUD/S eram absolutamente normais.
As mortes na parte sul de Nassı́ria, poré m, tinham deixado neles
uma espé cie de sobranceria.
Os alvos nã o eram indivı́duos, mas simples engrenagens de uma
força destrutiva que queriam combater a custo das suas pró prias vidas.
No entanto, matar algué m depois de ter regressado a casa e sem
vestir a farda é uma coisa diferente.
E um ato solitá rio e emocionalmente muito mais intenso: a decisã o
e a responsabilidade sã o apenas suas.
Olha para o reló gio e pega na faca que decidiu usar. E uma SOCP,
com a lâ mina e o cabo feitos de uma só peça de aço negro.
E uma arma a iada e extremamente equilibrada que tem o aspeto
de um punhal com um anel no fundo do cabo.
O caçador regressa rapidamente atrá s, bloqueia a perna livre de
Oscar com o joelho, com uma mã o empurra-lhe o tronco para o chã o e
com a faca abre-lhe a camisa. Observa o ventre peludo que se eleva
rapidamente ao ritmo da respiraçã o e enterra a lâ mina dez centı́metros
abaixo do umbigo. A faca fende facilmente tecidos e membranas
enquanto abre o ventre do homem até quase atingir o esterno.
Com um sorriso, o caçador ita os olhos arregalados de Oscar
enquanto enterra a mã o inteira na cavidade do abdó men, sentindo o
calor do corpo atravé s do plá stico das luvas. Oscar treme. O sangue
brota da ferida e escorre ao longo dos lancos. O caçador de coelhos
agarra no intestino e tira-o para fora, deixando-o oscilar entre as pernas
de Oscar. Naquele preciso instante, algué m bate à porta da suı́te.
Ouvem-se pancadas insistentes.
O caçador levanta-se, pega no comando e aumenta o volume da
televisã o, depois vai até à saı́da, fecha a porta do quarto, aproxima-se da
porta e espreita pelo olho má gico.
Lá fora, um homem idoso vestido de branco está à espera,
encostado a um carrinho de comidas e bebidas. Oscar teve tempo de
pedir o jantar para o quarto, e agora tem de ser entregue.
Enquanto o caçador tira as luvas e fecha a bolsa, o homem bate
outra vez. Rapidamente, tira os trofé us da cabeça e pendura-os num
gancho. Olha-se ao espelho e limpa alguns salpicos de sangue do rosto,
depois apaga a luz e abre a porta.
– Que rapidez – diz, sem se afastar.
No quarto ouvem-se pancadas violentas: Oscar está a tentar
chamar a atençã o dando pontapé s a qualquer coisa.
– Quer que ponha a mesa na sala?
– Obrigado, eu trato disso – responde ele.
– Se quiser que eu faça, é só dizer – explica o homem, espreitando
para dentro.
– E que ainda nã o me apetece comer – diz, enquanto o copo de
whisky se parte ao cair no chã o do quarto.
– Entã o basta-me uma rubrica – replica o homem, com um sorriso.
O caçador ica imó vel na penumbra e pega no recibo e na caneta.
Quando começa a traçar a sua assinatura, apercebe-se de que tem o
antebraço direito coberto de sangue até ao cotovelo.
– Está tudo em ordem? – pergunta o empregado.
O caçador assente, cruza o olhar do homem e pergunta a si mesmo
se será o caso de o arrastar para a casa de banho e de lhe cortar a
jugular por cima do jacuzzi.
– Porquê ?
– Nã o era minha intençã o meter-me onde nã o sou chamado – diz o
homem com condescendê ncia, e vira-se para o carrinho.
No quarto, as pancadas regressam enquanto o empregado lhe
estende o tabuleiro. O caçador agradece, recua alguns passos e fecha a
porta.
Pousa o tabuleiro no chã o e espreita pelo olho má gico, pronto para
saltar lá para fora e agarrar o empregado. Atravé s da lente vê o homem
de idade desbloquear o travã o das pequenas rodas do carrinho e depois
desaparecer no fundo do corredor.
Rapidamente, o caçador en ia outra vez as luvas, amarra as orelhas
de coelho em volta da cabeça e regressa ao quarto.
Um cheiro a sangue, whisky e vomitado impregna o ar.
Oscar está quase a perder os sentidos e dá agora uns pontapé s mais
fracos, deixando cair logo os tacõ es no chã o. Tem o rosto pá lido e suado,
e o olhar perdido vagueia pelo quarto.
O caçador desliga a televisã o e aproxima-se de Oscar. Agarra no
novelo do intestino e estende-o cerca de um metro, dá um puxã o e
depois deixa-o cair ao chã o.
Oscar acorda completamente por causa da dor. Respira pelo nariz
com di iculdade e tenta instintivamente retrair-se.
Oscar está destinado a morrer dentro de trê s minutos e o estrondo
que enche a cabeça do caçador cresce quando repara no seu olhar
aterrorizado. O quarto está mergulhado no silê ncio, mas o caçador, na
sua cabeça, ouve um rumor como de panelas em que algué m bate
selvaticamente e de pratos escacados dentro de uma banheira. Oscar é
um dos homens que violaram uma jovem mulher, e que a deixaram sem
sentidos e a sangrar em cima de um monte de estrume, convencidos de
que podiam escapar ao castigo.
O chã o vibra por baixo dos pé s do caçador, como acontece quando
um comboio muda de carril passando sobre um cruzamento de linhas.
Encosta-se à parede, tenta respirar lentamente e concentra-se.
Repara na marca ensanguentada que a sua mã o deixou no papel de
parede e pensa que, antes de ir embora, vai ter de a limpar, apesar de
nã o correr o risco de ser identi icado por isso.
– Parece-me que tu sabes porque é que tudo isto está a acontecer –
diz, levantando de novo a faca. – Pois bem, é precisamente esse o ponto.
Oscar geme e contorce os membros, tentando libertar-se. O sangue
escorre da cavidade abdominal e espalha-se no chã o. O tapete absorve-
o, tornando-se negro e brilhante.
Os altifalantes anunciam que o navio parte dentro de trinta
minutos. O caçador tem a certeza de que vai conseguir desembarcar
antes desse momento.
Oscar só vai ser encontrado na manhã seguinte, em Helsı́nquia,
pensa, enquanto observa a lâ mina da faca apertada na sua mã o.
Parece a lı́ngua negra de um demó nio, a iada e dentada.
Dali a pouco vai enterrar-se no coraçã o de Oscar atravé s do
esterno, talvez mais do que uma vez.
Até à quele momento, o mundo continua a tremer, a ranger e a
tilintar como se fosse um casino.
Mas depois parece que um vento o atravessa, fazendo cair o
silê ncio.
E como quando um coelho ica no chã o a dar pontapé s com uma só
pata. No momento em que o animal deixa de se mexer, a paz cai sobre
toda a criaçã o.
Em algum lugar, existe um quarto gelado onde o tempo para.
Tenta chegar a ele desde sempre.
Desde aqueles domingos, depois da missa, quando morava em casa
dos avó s.
85
Rex sai do metro na estaçã o de Mariatorget. Vai a caminhar ao
longo de Sankt Paulsgatan quando o telemó vel apita, indicando-lhe a
entrada de uma nova mensagem de voz. E de Janus Mickelsen, que lhe
comunica ter arranjado para ele e para Sammy uma habitaçã o
protegida, dotada de vidros à prova de bala, porta blindada, alarme e
ligaçã o direta com a central das forças policiais.
– Sei que nã o pode falar à vontade, porque se sente ameaçado,
tenho a consciê ncia disso, a sé rio… Esta é uma ó tima soluçã o, para já …
O meu chefe deu luz verde e eu gostava que nos encontrá ssemos esta
noite à s sete numa casa segura da Sä po, nos arredores de Knivsta, para
discutir os preparativos – diz Janus, repetindo depois por duas vezes o
endereço exato da casa antes do im da mensagem.
Rex decide ir ao encontro para perceber qual é a ameaça que a Sä po
parece levar tã o a sé rio.
Atravessa a porta de vidro do nú mero 34 de Krukmakargatan, em
cuja esquá lida cave se encontra a sala de bilhar Snookerhallen. Tem a
impressã o de que a Polı́cia de Segurança e a Secçã o Operativa Nacional
estã o a jogar o jogo da corda.
Passa em frente ao bar, desce as escadas e avança pelo meio das
mesas.
Na sala ouve-se apenas o ruı́do do choque das bolas de madeira
umas contra as outras, enquanto rolam silenciosamente sobre o pano e
embatem nas beiras com uma pancada surda.
Ao fundo da sala há uma mesa de bilhar maior do que as outras. E
ali que o espera um homem alto de cabelos loiros despenteados e olhos
cinzentos como madeira descolorida pelo mar.
– A bola amarela chama-se kaisa – diz Joona.
A kaisa, o bilhar inlandê s, é semelhante ao bilhar russo. Mas sã o
necessá rias uma mesa e umas bolas maiores, e tacos mais pesados.
Pode jogar-se em equipa, mas normalmente trata-se de um duelo entre
dois jogadores.
Rex ica a ouvir com atençã o enquanto o homem alto lhe explica as
regras e lhe entrega um taco comprido.
– Faz lembrar um pouco o snooker – diz Rex.
– O primeiro que chegar aos sessenta pontos leva a vitó ria para
casa.
– Mas nã o é para isso que eu estou aqui.
Joona nã o responde, limitando-se a posicionar as bolas em cima da
mesa. Se Rex nã o é o assassino, provavelmente será uma das pró ximas
vı́timas. Os homicı́dios parecem ter a ver com a histó ria da violaçã o,
mas há mais qualquer coisa, mais cı́rculos em volta do mesmo
remoinho. Está mais algué m envolvido, talvez um participante que
ainda nã o conhecem, pensa Joona.
– Se me ganhar, pode ir embora. Mas se perder, prendo-o – diz
Joona, lançando a Rex um olhar penetrante.
– Perfeito – concorda Rex, passando a mã o pelos cabelos
despenteados.
– Nã o estou a brincar – diz Joona, com um ar sé rio. – Tinha um
mó bil bastante forte para matar o ministro dos Negó cios Estrangeiros.
– A sé rio?
Joona dá uma pancada na bola branca, fazendo-a bater
ruidosamente contra a bola amarela, que desliza no pano verde, atinge
a borda, muda de direçã o e cai num dos buracos.
– Seis pontos para mim – constata Joona.
Rex observa-o, confuso.
– Teria um mó bil para o facto de lhe ter mijado na piscina?
– Disse que era um porco e que lhe sacou a namorada no liceu.
– Exatamente – diz Rex.
– Mas nã o me contou que o fecharam nas cavalariças uma noite
inteira.
– Eram trê s contra um – explica Rex, com relutâ ncia. – Bateram-me
e fecharam-me lá dentro… Foi uma experiê ncia desagradá vel, mas nã o
tanto que…
– Porque é que eles izeram isso? – interrompe-o Joona.
– O quê ?
– Fecharem-no nas cavalariças.
– Para permitir ao Wille sair com a Grace sem problemas, imagino.
– E foi isso que aconteceu?
– Conseguia sempre aquilo que queria – murmura Rex, ao mesmo
tempo que passa o giz na pontado taco.
– Faça pontaria à kaisa – diz Joona, indicando a bola amarela. – Tem
de ir parar à quele canto.
Rex inclina-se, dá uma tacada e atinge uma bola vermelha, que por
sua vez atinge a outra bola vermelha.
– Isso é um beijo – diz Joona. – Nã o lhe faz ganhar ponto nenhum.
Rex abana a cabeça com um sorriso, enquanto Joona se aproxima
da mesa e manda a kaisa para o canto.
– O que é que diz a Grace? – pergunta Joona, e continua a jogar.
– De quê ?
– Da noite em que o fecharam nas cavalariças – responde, enquanto
dá uma nova pancada e mete no buraco desse mesmo canto a bola
branca de Rex.
– Nã o sei, nunca mais a vi – explica Rex. – Eu deixei a escola e ela
nunca mais respondeu à s minhas cartas, nem aos telefonemas.
– Quero dizer… O que é que ela diz agora?
– Sei que regressou a Chicago, mas nã o a vejo há trinta anos.
– Foi apontado como o assassino do ministro dos Negó cios
Estrangeiros – diz Joona.
– E quem é que me ia apontar? – esforça-se Rex por perguntar.
– Está metido num mar de complicaçõ es – prossegue Joona, e
afasta-se da mesa.
– Fiz um monte de disparates – tenta explicar Rex, esforçando-se
por empunhar o taco da forma correta. – Mas eu nã o matei ningué m.
Falha a tacada; a bola branca nã o toca na kaisa, chega à beira e volta
para trá s.
– Se nã o está envolvido nos homicı́dios, poderia estar na lista das
pró ximas vı́timas.
– Você s vã o dar-me proteçã o?
– Se conseguir explicar-nos porque deverı́amos fazê -lo.
– Nã o faço ideia – responde Rex, limpando a testa.
– Talvez seja o alvo de uma vingança – sugere o comissá rio, dando
uma tacada.
– Parece-me absurdo.
Joona olha para ele pelo canto do olho e dá outra tacada.
– Depende do que fez – diz.
– Nada – exclama Rex. – Que caraças, há um monte de gente que
nã o pode comigo, se calhar vou para a cama com as mulheres erradas,
digo um monte de disparates e há seguramente algué m que gostava de
me partir a cara, mas…
– Quarenta e um – diz Joona, endireitando-se e observando-o com
um ar sé rio.
– Nã o sei o que dizer – começa Rex.
– Fez um monte de idiotices – lembra-lhe Joona.
– Mijei na piscina do ministro, mas…
– Já me disse isso – interrompe-o Joona.
– Fiz isso mais do que uma vez – admite Rex, corando subitamente.
– Nã o me interessam as suas mijadelas.
– Sou capaz de ter feito isso uma centena de vezes – diz Rex, e a sua
voz denuncia uma estranha emoçã o.
– Arranje outro hobby.
– Vou arranjar, claro… mas estou a tentar dizer que uma vez,
enquanto lá estava, vi qualquer coisa.
Joona inclina-se e dá mais uma tacada, para esconder a Rex um
sorriso satisfeito. Com um estalo, a bola bate na borda e desaparece
num buraco.
– Escute – prossegue Rex. – Sou um alcoó lico já só brio, mas antes
de o ser, antes de levar esta histó ria a sé rio, ia muitas vezes a casa
dele… As vezes atirava para a á gua aqueles horrendos anõ es de jardim,
outra vezes os vasos de barro ou os mó veis… Nã o sei, ele devia saber,
mas nã o se importava… Ou entã o pensava que era justo que assim
fosse.
– Acha que viu qualquer coisa – repete Joona, enquanto contorna a
mesa para estudar as trajetó rias.
– Sei que vi qualquer coisa, apesar de estar bê bedo… Nã o me
lembro em qual das tantas vezes aconteceu, mas de qualquer maneira
tenho a certeza de ter visto… Deté m-se e abana a cabeça, a lito.
– Pense o que quiser – diz, em voz baixa –, mas vi um homem
mascarado, com o rosto marcado de bexigas e umas faces estranhas…
dentro da casa do ministro.
– Há quanto tempo é que isso aconteceu?
– Quatro meses… Honestamente, nã o sei.
– O que é que tinha feito naquele dia?
– Nã o faço ideia.
– Onde é que se tinha embebedado?
– Tal como Jack Kerouac, tento beber em casa para limitar os danos,
mas nem sempre funciona.
Joona bate outra vez na bola, ouve-se uma pancada decidida e a
kaisa desaparece num canto.
– Que mê s poderia ser?
Joona mete també m no mesmo buraco a bola branca de Rex,
batendo ao mesmo tempo numa bola vermelha que atravessa a mesa na
diagonal e depois cai no outro canto.
– Nã o sei – diz Rex.
– Cinquenta e nove pontos – constata Joona. – E depois, o que fez?
– Depois? Ah, sim. – Rex parece recordar. – Fui a casa da Sylvia,
porque ela nunca dorme. Queria contar-lhe aquilo que tinha visto,
pareceu-me uma ideia genial naquele momento, mas…
– E ela como reagiu? – pergunta Joona, retardando a ú ltima tacada.
– Nã o lhe disse nada – responde Rex, agitado.
– Foi a casa da Sylvia, tocou à porta… e nã o lhe disse nada?
– Fomos para a cama – murmura Rex.
– Vai muitas vezes a casa da Sylvia, quando está bê bedo? – pergunta
Joona.
– Nã o diria isso – responde Rex, apoiando o taco na parede.
– Podemos parar de jogar, podemos até fazer de conta que estamos
empatados – diz Joona –, se agora ligar à Sylvia e lhe perguntar que dia
era.
– Nunca – diz Rex, a sorrir.
– Muito bem.
Joona inclina-se sobre a mesa com o taco na mã o.
– Espere – apressa-se Rex a acrescentar. – Estava a brincar quando
disse que me ia prender, nã o estava?
Joona endireita as costas, vira-se para ele e ita-o com um olhar
indecifrá vel.
Rex baixa os olhos e passa a mã o pelos cabelos. Pega no iPhone, põ e
os ó culos e procura Sylvia nos contactos. Afasta-se pelo meio das mesas
e chega ao bar enquanto ouve o toque da chamada.
– Estou? – responde Sylvia.
– Olá , sou eu, o Rex.
– Olá , Rex – diz ela, e o seu tom de voz torna-se um pouco frio.
Rex tenta parecer espontâ neo e relaxado.
– Como é que vai isso?
– Está s bê bedo?
Rex observa o homem de ar cansado atrá s do balcã o.
– Nã o, nã o estou bê bedo, mas…
– Está s com uma voz estranha – interrompe-o Sylvia.
Rex sobe a rampa que dá acesso à rua para conseguir falar em paz.
– Preciso de te pedir uma coisa – diz.
– Podemos falar amanhã ? Tenho aqui umas coisas para fazer –
explica ela, com um tom impaciente.
A sua voz soa distante do bocal quando se vira para falar com outra
pessoa.
– Mas eu preciso… – insiste Rex.
– A minha ilha foi convidada para…
– Escuta, eu preciso de saber que dia era quando fui a tua casa
naquela noite e…
Sylvia desliga, interrompendo a conversa.
Rex olha para a rua e vê um balã o erguer-se e voar no meio dos
carros. Quando volta a ligar a Sylvia, tem as mã os a tremer.
– Mas que diabo é que se te meteu na cabeça? – pergunta ela, com
um tom de voz tenso.
– Preciso de saber – insiste Rex.
– Acabou – interrompe-o Sylvia. – Fica longe de…
– Para com isso.
– Está s bê bedo, eu sabia que…
– Sylvia, se nã o me respondes eu ligo ao teu marido e pergunto-lhe
que dia era daquela vez que regressou a casa de uma viagem e tu te
mostraste um bocadinho mais querida com ele, pelo menos uma vez.
A linha ica muda. O suor escorre-lhe ao longo das costas.
– Dia trinta de abril – responde ela, e desliga.
86
Um estudante de cabelo despenteado sai do elevador no dé cimo
sé timo andar enquanto Joona Linna continua até ao ú ltimo com uma
geleira na mã o. Experimenta a mesma sensaçã o que se tem quando se
sopra devagar nas brasas sabendo que dentro de pouco tempo vã o
saltar as labaredas. Foi ali para se encontrar com Johan Jö nson, o
té cnico informá tico da Secçã o Operativa Nacional, que é també m um
dos maiores especialistas em computadores na Europa. Durante anos,
tinha sido simplesmente tratado por «o nerd», até ter criado o
programa de desencriptaçã o Transvector, usado pelo MI6 britâ nico.
Johan Jö nson abre a porta com uma sanduı́che na mã o e recebe
Joona no apartamento espaçoso.
Para se deixar convencer a declinar qualquer oferta do setor
privado, Johan quis que fosse posto à sua disposiçã o todo o ú ltimo
andar da residê ncia universitá ria Nyponet em Kö rsbä rsvä gen. O espaço
corresponde a vinte e cinco quartos de estudantes do mesmo tipo
daqueles em que ele pró prio tinha vivido quando frequentava o
Instituto Real de Tecnologia.
Todas as paredes internas foram removidas e substituı́das por
pilares de aço. O aposento é inteiramente dotado de sistemas de
alarme, tanto modernos como tradicionais.
Johan Jö nson é um homem de estatura bastante baixa, e tem
bigodes negros e pera. Tem a cabeça rapada, e as sobrancelhas escuras
e fartas juntam-se por cima do nariz. Veste um fato de treino justo que
parece o equipamento do Paris Saint-Germain; a camisola levantada à
frente deixa ver o ventre redondo e proeminente.
Joona tira da geleira o disco duro com as gravaçõ es das câ maras de
vigilâ ncia da casa do ministro dos Negó cios Estrangeiros, abre o
invó lucro de plá stico de bolhas e entrega-o a Johan Jö nson.
Segundo a lei, nenhum material dos sistemas de vigilâ ncia pode ser
conservado durante mais de dois meses, e depois as gravaçõ es sã o
apagadas automaticamente do disco duro antes de ter passado
demasiado tempo.
– Tu é s capaz de recuperar o material eliminado – diz Joona.
– As vezes, «eliminado» signi ica mesmo «eliminado» – responde o
té cnico. – Mas, normalmente, quer dizer apenas isto: aquilo que se
pensa ter eliminado, na realidade icou em algum sı́tio. E um pouco
como quando se joga Tetris, os elementos mais antigos vã o a pouco e
pouco parar ao fundo.
– Estas gravaçõ es sã o de há quatro meses.
Johan Jö nson pousa os restos da sanduı́che em cima de um monitor
cheio de pó e avalia o peso do disco duro com a mã o.
– Acho que vou tentar utilizar um programa chamado Under Work
Schedule… Recupera todos os dados ao mesmo tempo… E é um bocado
como aquelas grinaldas de papel, aquelas que se cortam e quando se
abrem se transformam numa ila de anjos ou de homens todos ligados.
– Uma grinalda bastante comprida – diz Joona.
E sabido que, em certas circunstâ ncias, é possı́vel recuperar o
material digital eliminado, mas como as treze câ maras de vı́deo na casa
do ministro tinham sido instaladas sete anos atrá s, a duraçã o total das
imagens é de noventa e um anos.
Nem mesmo Joona Linna seria tã o obstinado para pedir a Carlos
que pusesse à disposiçã o os recursos necessá rios para examinar uma
quantidade tã o imponente de material. Mas agora que tem uma data
precisa, nã o há nada que o possa deter.
– Procura a partir do ú ltimo dia de abril – diz.
Johan Jö nson senta-se a uma secretá ria com o tampo sujo e tira
uma mã o-cheia de M&M’s de uma caixa de plá stico.
– Tenho uma dependê ncia de açú car – diz, voltando-se.
Mais de quarenta computadores ixos de vá rios tipos estã o
dispostos em cima de secretá rias, có modas e mesas de cozinha. Os
feixes de cabos correm pelo chã o, por entre caixotes e velhos discos
duros. Num canto do grande salã o está empilhado material eletró nico
que já nã o se utiliza: circuitos impressos, placas de som, placas grá icas,
monitores, teclados, routers, consolas e processadores.
Joona descobre noutro canto uma cama por fazer, sem pernas,
posicionada atrá s de um balcã o cheio de peças de substituiçã o, uma
lâ mpada com lente de aumento e uma má quina de soldar. Em cima de
um balde de plá stico virado ao contrá rio vê -se um monte de tampõ es
para os ouvidos cor de laranja ao lado de um despertador. Ao que
parece, Johan tem menos espaço agora do que quando era estudante.
– Tira a impressora da cadeira, para te poderes sentar – diz a Joona,
enquanto liga o disco duro ao computador principal do cluster.
– A ú ltima vez que o Rex mijou na piscina foi gravada, mas nó s
estamos à procura do dia 30 de abril, e é material que já foi gravado por
cima mais vezes – explica Joona, ao mesmo tempo que tira da cadeira a
impressora e um livro de Thomas Pynchon.
– Desculpa a confusã o, mas acabei de ligar trinta computadores em
rede graças a uma nova versã o de MPI… Vã o tornar-se uma espé cie de
supercomputador, exatamente aquilo que eu preciso.
Num canto da imagem lê -se a data e a hora. A luz da madrugada
bate na fachada da casa e nas portas fechadas.
– Otimas câ maras de vı́deo, ó timas lentes, ultra HD – comenta
Jö nson com um gesto de aprovaçã o.
Joona abre uma planta da casa do ministro na qual todas as
câ maras de vigilâ ncia foram assinaladas com um nú mero de um a treze.
– Entã o vamos lá – murmura Johan Jö nson, digitando os comandos
com um tique-taque rá pido sobre o teclado.
Uma sé rie de computadores começa a funcionar. As ventoinhas
começam a zumbir, os indicadores luminosos verdes acendem-se e um
cheiro elé trico de velhos comboios de brincar, corrente contı́nua e
transformadores sobreaquecidos espalha-se pelo aposento.
– Agora todo o subsolo vai regressar à superfı́cie… lentamente, mas
de forma inexorá vel – diz o té cnico, afagando a pera.
No grande monitor aparece uma imagem cinzenta, como pó de
ferro que acompanha os movimentos de um campo magné tico.
– Isto é demasiado antigo – diz Jö nson.
Aparecem vá rias camadas de sombras tré mulas e vislumbram-se
alguns cantos do jardim. Joona distingue dois vultos espectrais que se
afastam ao longo do caminho. Um é o ministro dos Negó cios
Estrangeiros, o outro é Janus Mickelsen, da Sä po.
– O Janus – diz Joona.
– Quando entrou na Sä po, a primeira missã o dele tinha a ver com o
ministro dos Negó cios Estrangeiros – murmura Johan, enquanto digita
outros comandos.
A imagem desaparece, a casa reemerge de vez em quando do
nevoeiro cinzento, e distingue-se o jardim coberto de neve.
– A grinalda ainda está dobrada, mas agora já podemos começar a
puxar um homenzinho atrá s do outro… quatro de junho, trê s de junho,
dois de junho…
Figuras pá lidas passam rapidamente para trá s e para a frente,
sobrepondo-se. Parece uma espé cie de radiogra ia em que os contornos
dos corpos se fundem uns com os outros e atravessam os carros que
entram na garagem em marcha-atrá s.
– Quinze de maio, catorze… e aqui estã o treze ó timas versõ es do dia
trinta de abril – diz Johan Jö nson, em voz baixa.
Com a velocidade das imagens aumentada oito vezes, observam o
ministro e a mulher a sair de casa à s 7h30, cada um no seu pró prio
carro; uma hora depois, chega a empresa de jardinagem. Um homem
poda a sebe e o outro remove as folhas. Depois passa o carteiro e por
volta das duas um rapaz de bicicleta para e espreita para o jardim
enquanto coça uma perna. As 19h40 o primeiro carro entra na garagem
de dois lugares e as luzes da casa acendem-se. Meia hora mais tarde
chega o segundo carro e as portas da garagem fecham-se. Por volta das
onze, as luzes começam a apagar-se, e à meia-noite tudo está envolvido
pela escuridã o. Nã o acontece nada até que, já depois das trê s horas, Rex
Mü ller salta o gradeamento e atravessa o relvado a cambalear.
– Agora vamos ver uma câ mara de cada vez, em tempo real – diz
Joona, aproximando-se.
– OK. – Jö nson digita um comando. – Vamos começar com a nú mero
um.
No grande ecrã aparece uma imagem perfeita e muito nı́tida da
porta da entrada e do jardim iluminado até ao portã o. De vez em
quando, algumas pé talas cor-de-rosa das lores das cerejeiras japonesas
caem ao encontro da sua pró pria sombra no caminho de pedra.
87
Ao im de trê s horas visionaram treze gravaçõ es noturnas. Treze
enquadramentos de uma casa mergulhada no sono, na noite do
primeiro de maio entre as 03h46 e as 03h55. Quatro câ maras de
vigilâ ncia ilmaram Rex nos nove minutos que decorreram entre o
momento em que pousou a garrafa no meio da rua e saltou o
gradeamento negro, e aquele em que abandonou o jardim, feliz por
encontrar uma garrafa de vinho no meio da rua.
– Nada – suspira Johan Jö nson.
Rex permanece no jardim durante nove minutos, e naquele lapso de
tempo nã o se vê mais ningué m em nenhuma das imagens: nem sequer
um veı́culo na estrada, nem um movimento por trá s das cortinas.
– Mas ele viu o assassino – diz Joona. – Deve tê -lo visto, a descriçã o
corresponde à das outras testemunhas.
– Talvez tenha sido noutra noite – murmura Johan.
– Nã o, aconteceu nesta noite… Ele viu o assassino, ainda que nó s
nã o o consigamos ver – repete Joona.
– Mas nó s nã o podemos ver aquilo que ele viu, só temos as câ maras
de vigilâ ncia.
– Se ao menos conseguı́ssemos perceber exatamente quando foi
que ele o avistou… Começa da câ mara sete, é a que está apontada na
direçã o da piscina.
Mais uma vez, descobrem Rex no canto do ecrã no momento em
que escorrega nas tá buas na margem encurvada pela lente e se levanta
de novo.
Aproxima-se da beira da piscina, oscila um pouco, abre a braguilha
e urina para a á gua. Depois cambaleia em direçã o aos mó veis de jardim
azul-escuros e aponta o jato contra a espreguiçadeira e a mesa redonda.
Volta a fechar a braguilha, vira-se para o jardim e vê qualquer coisa.
Antes de regressar à casa vacila, depois para em frente à s portas da
varanda e espreita para a sala, apoia-se na balaustrada e desaparece do
enquadramento.
– Para onde é que ele está a olhar depois de ter fechado as calças?
Está alguma coisa no jardim – diz Joona.
– Queres que aumente a cara?
Com o ilme a andar para trá s, Rex regressa à piscina, contorna os
mó veis e vira as costas à câ mara.
A sequê ncia é retomada mais adiante e Johan aumenta o rosto de
Rex. Seguem-no enquanto urina em cima da mesa. Encosta o queixo
com força contra o peito, fecha os olhos e bufa antes de apertar as
calças.
Rex volta-se para o jardim, descobre qualquer coisa e esboça um
sorriso para si mesmo, depois o seu rosto desaparece do
enquadramento no momento em que perde o equilı́brio.
– Nã o, nã o é aqui… Continua – diz Joona.
Rex vira-se para a casa e volta para trá s, e Johan Jö nson aumenta
mais a imagem. O rosto embriagado de Rex enche todo o ecrã ,
perfeitamente focado: os olhos injetados de sangue, o lá bio inferior sujo
de vinho e a barba por fazer.
Veem-no deter-se em frente à s portas da varanda e espreitar para a
sala. Abre ligeiramente a boca, quase para esboçar um sorriso, como se
percebesse que tinha sido descoberto. Depois o seu olhar ica sé rio e
carregado de terror, e por im vira-se e afasta-se.
– Aqui! E aqui que ele o vê – exclama Joona. – Volta atrá s, temos de
ver outra vez.
Johan Jö nson cria um loop com os vinte segundos em que Rex, em
frente ao vidro, descobre qualquer coisa, esboça um sorriso e depois se
assusta.
– O que é que tu vê s? – pergunta Joona.
Aumentam a imagem e tentam seguir a direçã o do olhar de Rex.
Parece apontar para a sala.
Sem interromper o loop, passam à câ mara seis, que enquadra Rex
lateralmente de trá s. O seu rosto re lete-se no vidro e parece ixo no
pró prio re lexo.
– Está lá dentro? – sussurra Joona.
O momento em que o rosto de Rex passa da surpresa ao medo nota-
se até no re lexo. Do outro lado do vidro intuem-se os mó veis da sala,
sob a forma de sombras confusas.
– Está algué m lá dentro? – pergunta Joona, aproximando-se.
– Experimenta com a câ mara cinco.
A quinta câ mara de vigilâ ncia está posicionada do lado de fora da
grande sala de jantar, na ala da mansã o disposta perpendicularmente
em relaçã o ao resto do edifı́cio. Daquele ponto, a objetiva enquadra a
sala de fora até ao canto em que a pró pria câ mara está posicionada, o
vidro inteiro e parte do interior.
Johan faz zoom atravé s do vidro.
Os vinte segundos de imagens repetem-se outra vez e outra ainda
no loop, mas no interior da sala de jantar vazia está tudo absolutamente
imó vel: o lustre de cristal por cima da mesa, o re lexo no tampo, as
cadeiras ordenadamente encostadas, umas luvas de homem negras no
chã o.
– Nã o está ningué m… Que raio é que ele está a ver?
– Aumenta a imagem para um ponto debaixo do sofá – diz Joona.
Johan Jö nson faz zoom no pé do candeeiro e depois segue o io até
debaixo do sofá .
Vê -se qualquer coisa. Johan Jö nson engole em seco e aumenta a
luminosidade da imagem, perdendo no entanto algum contraste.
Aquela escuridã o leitosa é quase tã o impenetrá vel como a negra. Um
novelo de cotã o treme devido a uma corrente de ar. A imagem desloca-
se para a direita até pô r em destaque um monte de franjas compridas
ao lado do pé do sofá .
– E só um tapete enrolado – diz Joona.
– Eu quase tive medo. – Johan Jö nson sorri.
– Agora só resta uma possibilidade – diz Joona. – Se o nosso homem
nã o está dentro de casa, entã o Rex deve tê -lo visto re letido no vidro.
– Mas estava completamente bê bedo, talvez esteja enganado –
sugere Johan Jö nson.
– Volta à câ mara seis.
No ecrã volta a aparecer Rex enquadrado de esguelha e de trá s, em
frente ao vidro da sala. Por vá rias vezes, o seu rosto passa da surpresa
ao medo.
– O que é que o assusta?
– E só o seu pró prio re lexo.
– Nã o, é o efeito Vé nus – diz Joona, debruçando-se sobre o ecrã .
– O quê ?
– Se ele está enquadrado de lado e nó s vemos o re lexo dele à nossa
frente, entã o nã o se está a observar a si pró prio.
– Porque está a olhar na direçã o da nossa câ mara – continua Johan,
afagando mais uma vez a barba.
– Portanto, a coisa que o assusta deve encontrar-se em qualquer
sı́tio por baixo da câ mara seis.
O té cnico muda de enquadramento e deixa correr a imagem ao
longo das grandes janelas da sala até o limite do caixilho, em direçã o à
câ mara seis, que está posicionada no canto exterior ao lado de um
grupo de densas á rvores escuras.
– Mais perto, por baixo do salgueiro – diz Joona.
Os longos ramos quase tocam a erva, oscilando ao vento ligeiro
como um cortinado negro e prateado.
Joona sente um arrepio percorrer-lhe a espinha no momento em
que vislumbra pela primeira vez o assassino.
As sombras das folhas deslizam sobre um rosto mascarado que
depois desaparece subitamente.
88
Com as mã os a tremer, Johan Jö nson faz voltar atrá s as imagens.
Reduz a velocidade a metade e voltam ambos a ver os ramos do
salgueiro que, ao moverem-se, revelam o rosto e depois o tapam de
novo.
– Outra vez – sussurra Joona.
As folhas oscilam lentamente, depois vislumbram o assassino de
novo, no instante em que se vira para desaparecer no meio das
sombras.
– De inı́cio, de inı́cio – diz Joona.
Agora vê claramente, por entre os ramos inos do salgueiro, as
orelhas de coelho cortadas que oscilam diante do rosto mascarado.
– Para… Volta um instante atrá s.
O ecrã está quase completamente negro, mas uma espé cie de vé u
mais cinzento passa diante da cabeça do assassino, e nota-se uma faı́sca
na moldura da janela ao lado.
– Que diabo é que ele está a fazer?
– Tenta penetrar mais a fundo no escuro – diz Joona.
– O que é aquilo?
– Deve ser a parte de trá s da orelha.
– Tirou a má scara?
– Pelo contrá rio… Está a pô -la aqui, enquanto está abrigado pela
escuridã o.
O assassino deve ter calculado que no meio das á rvores se
encontraria mais ou menos abrigado das câ maras de vigilâ ncia. Tinha
entrado no jardim e naquele ponto cego tinha-se escondido por baixo
do salgueiro para en iar o passa-montanhas.
– Um verdadeiro pro issional – diz Johan Jö nson, sem fô lego.
– Tenta outra vez a oito… Viu-se uma cintilaçã o na janela.
Quando o assassino en ia a má scara, de costas voltadas para as
câ maras, o ecrã ica negro e a mancha cinzenta dos movimentos do
homem atravessa o ecrã . Vê -se uma cintilaçã o na janela antes de ele se
voltar com as orelhas de coelho a oscilar-lhe diante do rosto.
– O que é aquela luz na janela da cozinha? – pergunta Johan Jö nson.
– E uma jarra, vi-a antes, na câ mara sete – diz Joona. – Está no
peitoril, junto de uma taça de limõ es.
– Uma jarra.
– Aumenta-a – diz Joona.
Johan Jö nson deixa que a jarra encha o ecrã inteiro, tal como o rosto
de Rex pouco antes. O metal liso e curvo re lete a janela e o jardim no
exterior. Ao longo da borda da jarra nota-se um movimento, nada mais
do que uma ligeira alteraçã o.
– Para trá s – diz Joona.
– Nã o vi nada – murmura Johan Jö nson, mas ainda assim volta atrá s
com as imagens.
O ligeiro movimento ao longo da borda da jarra nã o é mais do que
uma linha curva, da cor do papel amarelecido.
– Podia ser a cara dele, antes de en iar a má scara – diz Joona, com
um tom de voz tenso.
– Que caraças – sussurra Johan Jö nson, fazendo uma captura de
ecrã granulado do re lexo convexo.
Ficam os dois a observar a linha curva na jarra: um pá lido arco
vertical no ecrã do computador principal.
– O que é que fazemos? Temos de ver a cara dele.
Johan Jö nson tamborila com os dedos na coxa e murmura umas
palavras para si mesmo.
– O que é que está s a pensar? – pergunta Joona.
– Num espelho quase esfé rico, o foco está em linha com o centro,
mas bem para lá da superfı́cie… E a razã o pela qual a imagem é tã o
estranha é que os raios perifé ricos e os raios centrais nã o se encontram
no mesmo ponto.
– Pode-se fazer alguma coisa?
– Na realidade, deveria apenas tentar aplicar uma deformaçã o
cô ncava que corresponda exatamente a um espelho virado ao contrá rio
e posicioná -la ao longo do eixo central…
– Parece uma coisa demorada.
– Levaria meses… se nã o existisse o Photoshop – exclama Jö nson, a
sorrir.
Põ e o programa a funcionar e começa a refazer a imagem, um
pedaço de cada vez.
Entretanto, nã o se ouve mais nada alé m do matraquear das teclas.
Trata-se de um processo semelhante a um peculiar fenó meno
celeste: os re lexos confusos nas margens de uma imagem sã o
absorvidos pela linha branca, deixando os contornos mais escuros.
– Estou arrepiado – murmura Johan Jö nson.
O rosto pá lido distende-se lentamente e inalmente cristaliza-se na
sua forma originá ria, e parece um anjo que nasce de si pró prio.
Joona inspira profundamente e levanta-se. Pela primeira vez, viu
claramente o rosto do assassino.
89
Rex está a pousar a mala à entrada quando ouve Sammy tocar
guitarra. Reconhece os acordes, tenta recordar de que cançã o se trata e
aproxima-se da sala.
No crisma, Rex tinha oferecido a Sammy uma Taylor com as cordas
em metal e ica espantado pelo facto de ele ter continuado a tocar.
Quando entra no quarto reconhece a cançã o. E Babe I’m Gonna Leave
You, dos Led Zeppelin.
Sammy tem as unhas sujas e rabiscou a mã o. A franja oxigenada
cai-lhe sobre o rosto concentrado.
Dedilha as cordas com habilidade enquanto canta num io de voz,
só para ouvir as palavras na sua cabeça.
Rex senta-se no ampli icador a ouvi-lo. Sammy continua a tocar até
ao inı́cio da longa parte instrumental, depois bloqueia as cordas e
levanta os olhos.
– E incrı́vel como tu tocas bem – exclama Rex.
– Nã o… – diz Sammy, embaraçado.
Rex agarra na sua Gibson semiacú stica e liga o ampli icador. As
vá lvulas aquecem com um zumbido.
– Sabes alguma cançã o do Bowie?
– Ziggy Stardust, foi a primeira que aprendi… Sentia-me tã o ixe, a
mã e deve-a ter ouvido um milhã o de vezes – diz Sammy a sorrir, e
começa a tocar.
– Ziggy played guitar – canta Rex, tentando acompanhar o ilho na
guitarra –, jamming good… Depois como era… Gilly and the Spiders from
Mars.
Nuvens cinzentas atravessam rapidamente o cé u do lado de fora
das grandes janelas: parece que se está a aproximar um temporal.
– So where were the Spiders – cantam juntos.
Rex observa o rosto delicado de Sammy e lembra-se de quando
Veronica lhe tinha dito que queria ter um ilho. Explicou-lhe que nã o
era su icientemente maduro, e naquele momento nã o conseguiu
esconder a a liçã o, a sensaçã o de impotê ncia e frustraçã o. Levantou-se
simplesmente da mesa, afastando a cadeira, e deixou-a só .
– So we bitched about his fans – canta Rex. – E depois nã o sei quê e…
sweet hands!
– O solo, pai, o solo! – grita Sammy.
Com uma expressã o assustada, Rex começa a tocar as notas da
ú nica escala de blues que conhece, mas o resultado é completamente
desajeitado e desa inado.
– Desculpa – murmura Rex.
– Experimenta com mi menor – diz Sammy.
Rex muda de posiçã o e arrancam os dois. Com efeito, o resultado
melhora ligeiramente, e as notas de Rex parecem um verdadeiro solo de
guitarra.
– Boa – aplaude Sammy, com um sorriso, a olhar para ele com uma
expressã o feliz estampada no rosto.
Rex ri-se, e começam a tocar Det kommer aldrig va över för mig, de
Hå kan Hellströ m quando algué m toca à campainha.
– Eu vou lá – diz Rex, pousando no chã o a guitarra ao mesmo tempo
que um rugido se ergue do ampli icador.
Corre até à entrada, afasta a mala e abre a porta.
Uma jovem mulher com os cabelos pintados de negro e piercings
nas faces ita-o com um olhar apagado. Veste uns jeans e uma T-shirt das
Pussy Riot, e tem o magro braço esquerdo engessado desde o cotovelo
até à s pontas dos dedos. Na outra mã o tem um saquinho da H&M
amarrotado.
Atrá s dela está um homem dos seus trinta anos. Tem um olhar
caloroso e o rosto de uma beleza infantil, mas encovado como o de uma
estrela do rock. Rex reconhece-o. E o homem que estava com Sammy
durante a festa em que o rapaz tinha apanhado uma overdose.
– Entrem – diz Sammy, atrá s de Rex.
A mulher atravessa o tapete da entrada a cambalear e entrega o
saquinho a Sammy.
– As tuas coisas – diz Nico, entrando també m.
– OK – responde Sammy.
A mulher abraça Nico, sorrindo com o rosto muito encostado ao
pescoço do homem.
– E este o maricas que te pagou o carro? – pergunta.
– E o meu Salaı̀, e eu amo-o – responde Nico, acariciando-lhe as
costas.
– Pensava que me amavas a mim – lamenta-se ela.
Sammy olha para dentro do saco.
– E a má quina fotográ ica?
– Caraças, esqueci-me – diz Nico, batendo na testa com a mã o.
– E o resto, como é que vai? – pergunta Sammy, em voz baixa.
– O processo vai começar em novembro… mas eu aluguei uma casa
em Marselha, vou lá icar durante todo o outono.
– Vai fazer uma sé rie de quadros sobre mim – diz a mulher, e perde
o equilı́brio ao tropeçar nas botas de Rex.
– A Filippa també m vai, vamos ter um pequeno grupo. Vamos
divertir-nos.
– Acredito – diz Sammy.
– Mas ela nã o tem os teus olhos – diz Nico, com um io de voz.
Sammy cruza o olhar do homem.
– Merda, que bonito que tu é s – suspira Nico.
Sammy nã o consegue conter um sorriso.
– Quando me trazes a má quina fotográ ica? – pergunta.
– O que vais fazer esta noite?
– Porque é que lhe perguntas? – sussurra Filippa ao ouvido de Nico.
– Estava a pensar ir à festa do Jonny – explica ele.
– Estã o todos passados da cabeça, eu nã o aguento – queixa-se
Filippa, apoiando-se nos casacos pendurados à entrada.
– Nã o te perguntei a ti – diz Nico, e depois olha para Sammy. –
Vens? Pode ser divertido, eu levo-te a má quina fotográ ica.
– Para casa do Jonny? – pergunta Sammy, hesitante.
– Ele ica em casa – intervé m Rex, com um tom decidido.
– OK, paizinho – replica Nico, e leva uma mã o à testa.
– Vou pensar nisso – promete Sammy.
– Diz que sim e eu…
– Obrigado pela visita – interrompe Rex.
– Para com isso, pai – sibila Sammy, irritado.
Filippa desata a rir e começa a apalpar os bolsos dos casacos. Nico
pega nela por um braço e arrasta-a para fora da porta.
– Eu ligo-te – grita Sammy atrá s deles.
Rex fecha a porta, depois ica com a mã o no puxador e os olhos
virados para o chã o.
– Pai – diz Sammy, com uma voz cansada. – Nã o podes comportar-te
dessa maneira, foste muito mal-educado.
– Tens razã o, desculpa – começa Rex. – Mas… Pensava que tinham
acabado.
– Nã o sei onde é que isto vai parar.
– Tu tens o direito de viver a tua vida, mas eu nã o posso, como é
evidente, dizer-te que gosto daquele fulano.
– O Nico é um artista, frequentou a Academia de Gotemburgo.
– E um belo homem e até percebo que te fascine, mas colocou-te em
perigo e…– Que caraças, se calhar eu nã o estava lá para ver –
interrompe-o Sammy, irritado.
Rex ergue no ar ambas as mã os para o acalmar.
– Será que nã o podemos limitar-nos a superar estas semanas, como
dissemos desde o inı́cio?
90
O caçador silencioso caminha pelo passeio estreito de
Luntmakargatan, uma rua secundá ria e escura que passa nas traseiras
dos edifı́cios do centro de Estocolmo. Parece-lhe que se move no fundo
de um fosso rodeado de restaurantes chineses, coreanos e vietnamitas.
Por baixo do sobretudo e do blusã o, o pequeno machado oscila,
pendurado na presilha, ao longo do lanco.
A porta de um dos restaurantes estã o amontoadas pilhas de comida
enlatada que bloqueiam o passeio, obrigando-o a descer à rua.
O caçador aperta os dedos no nariz como se tivesse tido um sú bito
sangramento nasal, observa-os, mas nã o vê nenhuma marca de sangue.
Recorda a forma como amarrava com cordas compridas os coelhos
vivos juntamente com os mortos, e depois os libertava. Os vivos e
feridos arrastavam com eles as carcaças, que deslizavam para todos os
lados, e fugiam em pâ nico.
Traçavam bizarros desenhos de sangue no cimento sujo do chã o.
Recorda os saltos das patas traseiras, as unhas que raspavam
enquanto os animais tentavam libertar-se do peso das carcaças.
Sem pressa, o caçador continua ao longo da rua e aproxima-se da
grade meio fechada de uma garagem. Parece que o sistema elé trico
avariou e a porta icou bloqueada com um cavalete a meio metro de
altura do chã o. Ouve-se, proveniente do interior, o choro furioso de uma
mulher que soluça e dá gritos com uma voz alterada.
O caçador está prestes a passar pela entrada quando a mulher se
cala.
Para, vira-se e ica à escuta.
A mulher chora e um homem grita-lhe qualquer coisa como
resposta.
O caçador volta atrá s, debruça-se e espreita para dentro. Distingue
uma rampa ı́ngreme, com as paredes de cimento á spero mal
iluminadas. A mulher fala agora com uma voz mais tranquila, mas
depois cala-se de repente, como se lhe tivessem batido. O caçador en ia-
se por baixo da porta e começa a descer a rampa.
O ar está impregnado de cheiro a bolor e a gasolina.
Continua a descer e chega a uma pequena garagem. Um homem dos
seus sessenta anos, com um blusã o de pele negro e jeans largos, está a
dar empurrõ es a uma mulher jovem, vestida com roupa ligeira, o que a
faz cambalear entre um furgã o vermelho com os vidros embaciados e
um carro desportivo coberto com uma tela prateada.
– Estã o a divertir-se? – pergunta o caçador, em voz baixa.
– O quê ? E tu quem é s, porra? – grita o homem. – Nã o podes estar
aqui!
O caçador encosta-se à parede. Observa o homem, a mulher e o
furgã o que ondeia ritmicamente, e pensa que os vai esventrar a todos,
que lhes vai cortar as mã os e icar a olhar para eles enquanto fogem a
esguichar sangue por todo o lado.
– Vai-te embora – diz o homem.
A mulher ita-o com um olhar inexpressivo.
Atrá s do homem, os componentes de alumı́nio de um sistema de
ventilaçã o estã o pousados numa tela de plá stico, e mais adiante veem-
se rolos de relva sinté tica empilhados contra a parede.
O caçador nunca teve nada contra um combate corpo a corpo.
Quando, em Ramadi, tinha participado nas operaçõ es de limpeza, era
sempre o primeiro a entrar nos edifı́cios.
Faziam saltar a porta e depois atiravam lá para dentro granadas de
atordoamento de fabrico polaco. O o icial punha-se de lado e mandava
os outros entrar.
Era sempre o primeiro, porque ia sempre direito ao objetivo, com
um M4, uma pistola ou uma faca. Era rá pido e conseguia matar quatro
ou cinco homens sozinho.
– Desaparece – diz o homem, aproximando-se.
O caçador endireita as costas e limpa o suor do lá bio superior.
Observa a luz de né on a piscar no teto, sente o crepitar do interruptor e
repara na luz fria que se re lete na conduta de ventilaçã o.
– Isto é uma garagem privada – diz o homem, com um tom
ameaçador.
– Quando ia a passar ouvi gritos e…
– Nã o é nada contigo – diz o homem, enchendo o peito.
O caçador lança novamente um olhar à mulher. Tem uma expressã o
amuada e a face está vermelha no ponto em que o homem a agrediu.
Veste um impermeá vel que lhe chega à cintura e uma saia branca
pregueada, meias pretas com pequenas caveiras e sapatos de cunha.
– Tu queres icar aqui? – pergunta-lhe o caçador, com gentileza.
– Nã o – responde a mulher rapidamente, limpando o ranho do
nariz.
– Ouve, está s a interpretar mal esta situaçã o – diz o homem a sorrir.
O caçador sabe que nã o deveria estar naquele local, mas nã o
consegue deixar de icar ali mais algum tempo. Nã o quer saber da
mulher para nada. Seja como for, vai continuar a ser prostituta. E o
homem que o atrai.
– Deixa-a ir-se embora – diz-lhe.
– Mas ela nã o quer ir-se embora – responde ele, ao mesmo tempo
que saca uma pistola semiautomá tica.
– Pergunta-lhe, entã o – sugere o caçador, sentindo ondas de calor a
subirem-lhe do fundo da barriga.
– O que é que tu queres, porra? – pergunta o homem. – Achas que
é s uma espé cie de heró i?
Aponta-lhe a pistola, mas a impassibilidade do caçador assusta-o e
leva-o a recuar alguns passos.
– Nã o lhe vai acontecer nada – diz o homem, e a sua voz denuncia
algum nervosismo. – Estica-se muito, acha que é melhor do que as
outras.
O caçador ouve-o sem conseguir conter um sorriso.
O homem baixou a pistola: o cano está apontado ao pavimento, e a
arma oscila.
Recua em direçã o à conduta de ventilaçã o e move-se sem uma
meta, a tentar fugir como um coelho doente.
– Deixa-me em paz.
O homem levanta novamente a pistola, mas o caçador bloqueia-lhe
a mã o com frieza, dirige a arma para ele e en ia-lhe o cano na boca.
– Bang – sibila, enquanto retira a pistola. Depois deixa cair o
carregador e desativa o primeiro tiro. A bala rola no chã o a tilintar e
para aos pé s da mulher, que permanece imó vel, com os olhos baixos,
como se nã o ousasse observar a cena.
O caçador volta a subir a rampa, limpa as impressõ es digitais da
pistola e atira-a para dentro de um balde cheio de areia e pontas de
cigarros. Inclina-se para passar por baixo da porta e prossegue ao longo
do passeio à sombra de Luntmakargatan.
No cruzamento com Rehnsgatan vira à direita e chega ao portã o de
madeira no momento em que uma mulher de cabelos pintados de negro
e o braço engessado bloqueia a porta para deixar passar um homem
com uma cara lindı́ssima.
O caçador segura o portã o e agradece-lhe, chega rapidamente ao
elevador e carrega no botã o do ú ltimo andar.
Lembra-se de quando ele e a mã e preparavam as armadilhas
juntos, borrifando as gaiolas com sidra de maçã para que os coelhos
farejassem aquele cheiro.
O elevador para no instante em que as luzes das escadas se apagam.
Naquele piso há apenas uma entrada, uma robusta porta blindada
revestida de madeira de carvalho lacada.
Quando Rex morrer, vai cortar-lhe as orelhas, en iá -las num
cordã ozinho de couro e trazê -las ao pescoço, por baixo da camisa.
Com aquele pensamento, a cabeça enche-se-lhe de uma crepitaçã o
que depois se transforma num estré pito ensurdecedor, semelhante ao
ruı́do de um carrinho cheio de garrafas empurrado sobre o asfalto
irregular de um parque de estacionamento.
O caçador de coelhos fecha os olhos e tenta recuperar o controlo de
si mesmo: tem de comprimir aquele caos num invó lucro de silê ncio.
Toca à porta e ouve passos que se aproximam, baixa os olhos sobre
o pavimento de má rmore e vê -o oscilar sob os seus pé s, como um disco
lexı́vel no centro dos autocarros articulados.
A porta abre-se e Rex aparece à frente dele, com a camisa por fora
das calças. Deixa-o entrar, recua uns passos e quase tropeça na mala.
– Entra – diz, com uma voz rouca.
O caçador avança e volta a fechar a porta. Pendura o sobretudo
num gancho e desaperta os atacadores dos sapatos, enquanto Rex
desaparece pela escada de caracol que conduz ao andar de cima.
O caçador ajeita o pequeno machado por baixo do casaco e segue
lentamente Rex até ao andar superior iluminado.
– Tenho fome – diz, ao entrar na cozinha.
– Desculpa – exclama Rex, abrindo os braços. – Em vez de limpar os
espargos, pus-me a tocar guitarra.
– Eu faço isso – diz o caçador, pegando numa tá bua de plá stico
branca.
– Entã o ao menos vou preparar o caldo – responde Rex, e tira do
frigorı́ ico quatro molhos de espargos verdes.
O caçador de coelhos engole em seco com di iculdade e pensa que
vai ter de tomar o remé dio o mais depressa possı́vel. O seu cé rebro é
atravessado por um som estridente, como de um lençol a rasgar-se. Rex
é um dos homens que violaram a mã e e que a abandonaram, devastada,
em cima de um monte de estrume.
O caçador apoia-se com a mã o no balcã o e tira do cepo uma faca
para descascar.
Sammy entra na cozinha com uma maçã na mã o, lança um rá pido
olhar ao caçador e depois dirige-se ao pai.
– Podemos acabar de falar? – pergunta-lhe, e ica com as faces
coradas.
O caçador apoia o io da faca contra o polegar, pressiona
ligeiramente e fecha os olhos por um instante.
– Sammy – diz Rex –, para mim nã o é um problema tu morares aqui,
eu nã o disse isso.
– Mas nã o é muito agradá vel sentir-me constantemente indesejado,
apesar de eu já saber que é assim – replica Sammy.
– Mais cedo ou mais tarde, toda a gente tem de morrer – diz o
caçador, em voz baixa.
Observa a faca que tem na mã o e pensa outra vez na mã e, na
terrı́vel violaçã o que a destruiu.
Agora sabe que a mã e sofria de psicose depressiva reativa e
cró nica, e que as suas obscuras alucinaçõ es o devastaram a ele també m.
O agressivo terror pelos coelhos, as tocas nojentas cavadas no solo.
Em tempos, as recordaçõ es da infâ ncia eram para ele uma coisa que
devia ser mantida à distâ ncia. A caça aos coelhos e o medo da mã e
faziam parte de um passado secreto.
Mas ultimamente as recordaçõ es reemergiram com a força de uma
avalanche, derrubando todas as defesas. Caem-lhe em cima e batem-lhe
na cara, como se tudo estivesse a acontecer no momento presente.
Tem a certeza de que nã o é psicó tico, mas agora é claro que o
passado nã o vai abandoná -lo nunca mais.
91
Enquanto pica as cebolas, Rex tem ainda as pontas dos dedos da
mã o esquerda dormentes por ter estado a tocar guitarra.
– Porque é que dizes que te sentes indesejado? – pergunta com
delicadeza, deitando as cebolas dentro de um tacho.
– Porque está s sempre a repetir que temos de tentar superar estas
trê s semanas juntos – explica Sammy.
Rex passa a faca na borda da tá bua, observa a lâ mina larga e depois
passa-a por á gua debaixo da torneira.
– Nã o falo de mim, pelo contrá rio… Estou a pedir-te a ti que tentes
suportar-me.
– Nã o é o que parece… – diz o ilho, com uma voz sombria.
– Eu nunca vi o Rex tã o feliz como agora – interrompe DJ, sem
deixar de pelar os espargos.
– Pai, lembras-te da outra vez em que era suposto eu vir viver
contigo? – pergunta Sammy. – Lembras-te?
Rex observa o ilho: tem os olhos brilhantes, o rosto delicado e os
ombros delgados. Aquilo que ele está prestes a contar-lhe – imagina –
nã o vai com certeza ser uma coisa agradá vel, mas em qualquer caso
quer que ele continue.
– Nã o, nã o me lembro – admite.
– Eu tinha dez anos, e estava tã o feliz… Tinha falado do meu pai a
todos os meus amigos dizendo que vinha viver contigo para o centro, e
que ı́amos comer no teu restaurante todas as noites.
A voz de Sammy quebra-se. O rapaz inclina a cabeça e tenta
acalmar-se.
Rex gostaria de o abraçar, mas nã o tem coragem.
– Sammy… Nã o sei o que dizer, nã o me lembro… – confessa, com um
murmú rio.
– Nã o – prossegue o ilho. – Nã o te lembras porque mudaste de
ideias quando viste que eu nã o tinha cortado o cabelo.
– Isso nã o é verdade – diz Rex.
– Eu tinha o cabelo comprido, e entã o tu protestaste e disseste que
eu tinha de o cortar, mas eu nã o cortei e… quando cheguei a tua casa…
Os olhos de Sammy enchem-se de lá grimas, o rosto ica vermelho e
os lá bios assumem um trejeito amuado. Rex tira o tacho do lume e
limpa as mã os no avental.
– Sammy – diz. – Agora percebi de que é que está s a falar… Eu nã o
tinha nada contra o teu cabelo… Aconteceu que… quando a tua mã e te
levou a minha casa, eu estava tã o bê bedo que nã o conseguia aguentar-
me em pé … Nã o podia deixar-te icar comigo.
– Nã o – soluça Sammy, virando o olhar para outro sı́tio.
– Isso aconteceu quando eu morava em Drottninggatan – prossegue
Rex. – Agora me lembro, estava estendido no chã o da cozinha; e
lembro-me de ti, trazias as tuas sapatilhas vermelhas e aquela
minú scula mala de cartã o que…
Deté m-se quando, com uma isgada no coraçã o, se lembra de como
as coisas se passaram realmente.
– Mas tu pensaste que era o teu cabelo que me chateava – disse,
quase para si mesmo. – Era ó bvio que ias pensar isso.
Dá a volta ao balcã o e tenta abraçar Sammy, mas o ilho liberta-se.
– Desculpa – continua Rex, afastando docemente a franja comprida
do rosto do rapaz. – Desculpa, Sammy.

DJ en ia na boca um comprimido de Modiodal e engole-o. Nã o


consegue prever as consequê ncias emocionais daquilo que está a
acontecer. Seria um desastre, se perdesse as forças e adormecesse no
chã o.
Corta os espargos limpos em pedaços pequenos, põ e as pontas de
lado e deita o resto numa panela cheia de á gua.
Re lete sobre o facto de, naquele momento, nã o dever ainda
transformar-se num caçador, mas continuar durante mais algum tempo
a ser o amigo DJ.
Nã o tem pressa nenhuma, tudo se processa de acordo com um
ritmo perfeito e numa ordem perfeita.
Lembra-se de que a mã e lhe tinha mostrado uma fotogra ia do
colé gio em que todos os alunos estavam reunidos em frente ao edifı́cio
principal. Na correspondê ncia dos olhos de nove deles tinham sido
feitos uns furinhos, enquanto o dé cimo nã o aparecia na imagem porque
era um contı́nuo. Tem impressas na memó ria de forma indelé vel as
mã os tré mulas da mã e e a luz do candeeiro em cima da mesa que se
escoava atravé s dos buracos no papel fotográ ico, criando uma
constelaçã o desconhecida.
– Eu sei arranjar-me sozinho – diz Sammy, com um io de voz. – Nã o
percebes isso?
– Mas eu sou responsá vel por aquilo que te acontecer enquanto
aqui está s… E, estando as coisas como estã o, nã o me apetece ir embora
com o DJ.
– Podemos adiar o encontro – intromete-se DJ, pousando a faca em
cima da tá bua. – Posso ligara os investidores.
Rex dirige-lhe um olhar cheio de gratidã o.
DJ sorri, pensando na forma como vai matá -lo: vai ter de rastejar ao
longo de todos os corredores do hotel com as costas rebentadas até o
ilho lhe disparar na nuca.
Rex espreme no tacho o sumo de duas limas, enquanto Sammy tira
as natas batidas do frigorı́ ico e desaperta a tampa.
– Nã o preciso de uma babysitter – diz Sammy. – Talvez tu nã o aches
isso, e eu percebo, mas sei desenrascar-me.
– Eu só nã o quero que tu iques sozinho – responde Rex, enquanto
começa a descascar os camarõ es.
– Mas tu está s cheio de vontade de ir à caça – diz Sammy, com um
sorriso, ingindo carregar uma espingarda. – Bang, bang… e o Bambi
morreu.
– E só um encontro de trabalho – esclarece Rex.
– Mas é claro – diz Sammy.
– Ou entã o podias vir à caça connosco – sugere DJ, e imagina um
coelho ensanguentado a rastejar pelo chã o enquanto as suas patas
cortadas icam pousadas em cima do balcã o.
– O pai nã o quer – diz Sammy, com um io de voz.
– Claro que quero! – protesta Rex, lavando as mã os.
– Nã o – rebate Sammy, com um sorriso.
Rex mistura a sopa com os pedaços de espargos, salteia
rapidamente numa frigideira as pontas intactas e pega no prato com os
camarõ es descascados.
– Era fantá stico – diz, entusiasmado. – Podemos cozinhar juntos
para os investidores. Sammy, juro-te, vais apaixonar-te pelas noites do
Norte.
– Mas nã o me apetece matar animais.
– Nem a mim – responde Rex.
– Se experimentarem, talvez descubram que sã o capazes – diz DJ,
tentando afastar os gritos da mã e que lhe ecoam ainda na cabeça.
Apenas tinha sido difı́cil matar dois dos violadores. O primeiro,
porque o homicı́dio ia certamente provocar um grande rebuliço,
chamando a atençã o da Polı́cia sueca; o outro, porque morava em
Washington DC e há muitos anos gozava da proteçã o atenta dos
mercená rios da Blackwater.
O seu plano era decididamente genial, e praticamente ningué m
poderia desmascará -lo antes que fosse demasiado tarde.
Sabia que Teddy Johnson ia estar presente no funeral do ministro.
Mas tinha sido obrigado a fazê -lo aparecer em pú blico no momento
certo, antes de vir a saber da morte dos outros seus amigos da Toca do
Coelho; de outra forma, ia certamente intuir que se tratava de uma
armadilha.
Se as coisas corressem dessa maneira, nenhum dos iscos
preparados pelo caçador o ia atrair à gaiola.
Mas Teddy Johnson tinha caı́do na sua armadilha, e DJ arranjou
maneira de se afastar de Rex no meio da multidã o dentro da igreja.
Instalou-se no estrado junto das escadas e fez sinal a Sammy, que se
tinha encostado ao fundo à direita, para ir ter com ele. Enquanto as
notas poderosas de um salmo enchiam a igreja, atiraram a Rex bolinhas
de papel.
Depois, DJ ausentou-se mais cedo da cerimó nia e conseguiu chegar
ao topo da torre norte do complexo de Kungstornen dez minutos antes
de o sacerdote concluir a celebraçã o. Como bem sabia, o caos que se ia
desencadear depois do primeiro tiro disparado contra Teddy Johnson
justi icaria o seu desaparecimento. As pessoas iam começar a gritar e a
correr. Iam passar vá rias horas até que os trê s conseguissem reunir-se
em casa de Rex.
A escolha da espingarda .300 Winchester Magnum tinha sido a mais
ó bvia.
Para matar o ministro dos Negó cios Estrangeiros, tinha utilizado
uma pistola munida de silenciador porque estava consciente de que,
apesar de se ter dedicado com extrema atençã o aos preparativos, ao
reconhecimento do local, ao estudo dos há bitos e dos horá rios da
vı́tima, alguns aspetos sã o impossı́veis de prever.
Antes do homicı́dio, tinha estado duas vezes em casa do ministro
para estudar o sistema de alarme, as câ maras de vigilâ ncia e os
dispositivos de segurança. Ao contrá rio da maior parte das outras
pessoas, um homem que desempenhava um cargo tã o importante podia
ter consigo guarda-costas armados precisamente na noite em que ele se
decidisse a atacar.
O caçador teria preferido cortar-lhe os pulsos na banheira, mas
quando a prostituta se libertou e fez disparar o alarme decidiu nã o
correr riscos.
Normalmente, para a escolha das armas con ia no instinto.
Pelo menos trê s razõ es o tinham levado a matar o ministro dos
Negó cios Estrangeiros enquanto uma prostituta estava amarrada à sua
cama. A primeira era simples: o caçador sabia que Wille só organizava
aquele gé nero de encontros quando a famı́lia estava em viagem.
A segunda era que o ministro afastava sempre os guarda-costas
antes de se encontrar com prostitutas.
A terceira era que a presença da mulher aumentava a probabilidade
de uma certa reserva, por parte das autoridades, sobre as
circunstâ ncias da morte do ministro.
Quando se sentam à mesa, DJ dirige um sorriso a Rex, mas dentro
dele a mã e continua a gritar de terror enquanto os coelhos fogem da
gaiola e, em pâ nico, tentam fugir da avalanche que os atinge.
92
Joona Linna percorre a passos largos o corredor do oitavo andar da
esquadra central da Polı́cia de Kungsholmen, em Estocolmo. Tem os
cabelos loiros despenteados e um olhar penetrante. Veste um fato
preto, novo, e uma camisa cinzenta. O casaco está desabotoado e por
baixo do braço esquerdo vislumbra-se o cabo da Colt Combat en iada no
coldre de couro gasto.
Uma jovem mulher, com profundas rugas de expressã o à volta da
boca, dirige-lhe um grande sorriso, e um homem de barba grisalha à
porta da sala de descanso pousa uma mã o no coraçã o quando Joona
passa diante dele.
A porta do gabinete do chefe está pendurado um cartaz que
representa os sete departamentos da Polı́cia sueca: o de Estocolmo é o
mais pequeno, enquanto o setentrional compreende metade do paı́s.
Carlos está debruçado sobre o aquá rio, e quando Joona entra na
sala salta para trá s, como se tivesse sido apanhado a fazer alguma coisa
de proibido.
– Estraga-los com mimo – diz Joona, indicando os peixes.
– Eu sei, mas eles gostam assim – assente Carlos.
Mudou a decoraçã o do aquá rio. Em vez dos destroços de navio e do
mergulhador de plá stico, os peixes nadam agora pelo meio de naves
espaciais brancas, alguns stormtroopers, um Darth Vader deitado e um
Han Solo rodeado pelas bolinhas da bomba.
– Já temos o rosto do assassino – explica Joona. – Mas a fotogra ia
nã o deu qualquer correspondê ncia, nem com o registo dos presos, nem
com o dos suspeitos.
Carlos abre a imagem no seu pró prio terminal e observa o rosto a
trê s quartos que Johan Jö nson reconstruiu partindo do re lexo na jarra
prateada.
O assassino é um homem branco, dos seus trinta e cinco anos, com
cabelos loiros e uma barba bem cuidada, o nariz direito e rugas na testa.
Tem o pescoço inclinado, com o mú sculo da garganta a sobressair
entre as sombras, a boca entreaberta, e parece que a pele por baixo das
sobrancelhas claras é avermelhada. Os olhos azuis sã o aquosos, quase
apagados.
– Temos de distribuir a imagem a toda as unidades, e é necessá rio
que a comunicaçã o venha diretamente de ti – diz Joona. – Má xima
prioridade… Esperamos alguns minutos, e se nã o obtivermos nenhuma
reaçã o, mandamo-la publicar imediatamente nos sites dos jornais para
pedir informaçõ es à populaçã o.
– Como é que, quando tu está s pelo meio, as coisas parecem andar
sempre mais depressa…
Deté m-se, porque Anja entrou no gabinete sem bater. A mulher
contorna a grande secretá ria e empurra Carlos e a cadeira para o lado,
como se fosse um grelhador de rodas que a estivesse a atrapalhar.
Transmite a imagem atravé s da rede interna que liga todo o corpo
da Polı́cia, atribuindo-lhe a má xima prioridade, depois abre o anexo de
um e-mail que mandou para si mesma: um esboço do texto a enviar a
todas as redaçõ es dos jornais do paı́s.
A imagem do assassino surge no monitor do terminal de Carlos,
pousado ao lado do teclado.
– Agora só nos resta esperar – diz Anja, cruzando os braços.
– Ao certo, o que foi que mudou aqui dentro, para alé m do nome? –
pergunta Joona, e observa o parque do lado de fora da janela baixa.
– Tudo funciona exatamente como antes, só que um pouco pior –
responde Carlos.
– Pois, estou a ver – diz Joona, a olhar para o reló gio e a perguntar a
si mesmo por que razã o Saga nã o tinha dado notı́cias.
– Sabes, a questã o é que nenhum departamento quer ser
controlado por outro… e por isso já nã o podemos dar inı́cio a nenhuma
atividade operativa, mas apenas oferecer apoio aos corpos locais.
– Nã o me parece uma boa coisa.
– Mas na verdade funciona, porque ao mesmo tempo cabe-nos a
nó s decidir quando é que os departamentos precisam do nosso apoio.
Carlos recebe uma chamada direta de um outro terminal, e entã o
interrompe a conversa.
Percebe que nã o pode deixar de atender e mexe nos botõ es até
conseguir pô r em alta voz.
– Rikard Sjö rgen, equipa de Estocolmo – apresenta-se o colega. –
Nã o sei se aquilo que vos vou dizer poderá ter alguma utilidade, mas
participei no serviço de segurança durante o funeral do ministro dos
Negó cios Estrangeiros em Sankt Johannes e tenho a certeza de ter visto
aquele homem entre os presentes.
– Sabes quem é ? – pergunta Carlos, encostando a boca ao
transmissor.
– Nã o.
– Estava com algué m ou perto de algué m que tenhas reconhecido?
– pergunta Joona.
– Nã o sei dizer… mas vi-o falar com aquele cozinheiro que está
sempre na televisã o.
– O Rex Mü ller?
– Sim, exatamente, o Rex Mü ller.
Anja já começou a inspecionar o arquivo das fotogra ias dos
participantes no funeral que apareceram na imprensa. Os vá rios rostos
sucedem-se: na maior parte, trata-se de polı́ticos e homens de negó cios
na luz intensa do exterior da igreja.
– Aqui está ele – diz. – E este?
– Sim – responde Joona.
Numa fotogra ia que retrata o presidente da Estó nia vê -se um
homem no meio dos presentes em ila na escadaria. Está a proteger os
olhos com a mã o enquanto a luz do sol faz resplandecer o tom loiro da
barba.
– Mas nã o aparece nome nenhum – diz Anja para si mesma,
enquanto continua a procurar.
Ao im de alguns segundos, descobre outra fotogra ia do homem, ao
lado de Rex Mü ller e do ilho. Rex tem um braço por cima dos ombros
do rapaz e olha para a objetiva com uma expressã o contristada,
enquanto o assassino está prestes a voltar-se. Tem a testa suada e uma
estranha expressã o nos olhos.
– Segundo a legenda, chama-se David Jordan Andersen – diz Anja.
Finalmente encontrá mos o assassino, pensa Joona. David Jordan
Andersen é o spree killer que está a matar os violadores um atrá s do
outro.
Anja efetua uma rá pida pesquisa na Internet a partir do nome, e
descobre que David Jordan é o fundador da sociedade que produz o
programa de cozinha de Rex e que, no fundo, é o seu empresá rio.
– Onde mora? – pergunta Joona.
– Mora em… em Ingarö , e a sede da sociedade ica em
Observatoriegatan.
– Manda uma equipa a Ingarö , outra ao escritó rio e outra a casa do
Rex Mü ller – diz Joona a Carlos. – Mas nã o te esqueças de que é
extremamente perigoso… Provavelmente, vai matar os primeiros que
entrarem.
– Como é que te vem à ideia dizer certas coisas? – murmura Carlos.
Joona e Anja icam à espera enquanto Carlos organiza rapidamente
as equipas que deverã o entrar em açã o: dá à s forças de intervençã o
imediata a ordem de entrar em Ingarö e envia duas patrulhas aos
outros endereços.
Antes de desligar a chamada com o chefe das operaçõ es, reitera
uma recomendaçã o essencial: todos devem estar munidos de armas
pesadas e coletes à prova de balas.
– Os coletes nã o o vã o deter – diz Joona, e sai do gabinete.
93
Depois da chuva, o cé u clareou. Pé talas molhadas de rosas-caninas
acabadas de lorir estã o espalhadas sobre as grades do bueiro. Gotas de
á gua caem do telhado do serviço de medicina legal, dentro do complexo
do hospital Karolinska.
Nå len atravessa o parque de estacionamento no seu Jaguar branco,
sobe ao passeio e para exatamente em frente à entrada, com uma das
rodas traseiras no passeio.
De sorriso nos lá bios, Nå len sai do carro, mas apercebe-se de que o
para-choques da frente está tã o pró ximo da porta que quase o impede
de a abrir. Regressa ao Jaguar a assobiar, senta-se ao volante, faz
marcha-atrá s, esmagando os arbustos de roseiras, e sai outra vez.
O seu rosto magro está perfeitamente barbeado e sobre o nariz
adunco tem uns ó culos de sol de aviador com a armaçã o branca. E
conhecido por ser um anatomopatologista extremamente sé rio e
obstinado, mas hoje está com uma disposiçã o excecionalmente alegre.
– Tell me I’m a bad man, kick me… tra-la-la – canta, ao entrar na sala
das autó psias. – Tell me I’m an angel, take this to my grave…
Frippe, o assistente de Nå len, já retirou o cadá ver da morgue e
colocou-o, ainda dentro do saco, em cima da mesa de autó psias.
– Falei com o Carlos, disse-me que o Joona Linna voltou – diz Nå len.
– Agora vai correr tudo bem outra vez.
A sua voz quebra-se de repente, e entã o aclara a garganta duas
vezes, depois tira os ó culos e limpa-os na beira da bata.
– Agora percebo porque é que tive de ir buscar outra vez o mister
Ritter – exclama Frippe, apertando um elá stico em volta do rabo de
cavalo.
– O Joona acha que ele foi assassinado – diz Nå len, com uma
tremura no canto dos lá bios inos.
– Quanto a mim, nã o foi – rebate Frippe.
– Trê s pessoas que frequentavam o colé gio Ludviksberg há trinta
anos foram aniquiladas esta semana… mas como o Joona diz que pode
haver mais, a Anja começou a confrontar todos os nomes referidos nos
anuá rios com os vá rios registos… e o ú nico caso de morte relevante é
este – conclui Nå len.
– Que, no entanto, foi um acidente – diz Frippe.
– O Joona pensa que deixá mos escapar um homicı́dio.
– Que caraças, mas ele nem sequer viu o cadá ver – queixa-se
Frippe, tentando conter a agitaçã o, enquanto coça a sobrancelha com o
polegar.
– Nã o – con irma Nå len, satisfeito.
– O Carl-Erik Ritter tinha uma taxa de alcoolemia de 2,3 por mil.
Estava completamente bê bedo, caiu contra uma montra quando
regressava a casa do pub El Bocado em Axelsberg e cortou a jugular –
prossegue Frippe, abrindo o saco.
Um cheiro adocicado e penetrante espalha-se na sala.
O corpo nu de Carl-Erik Ritter assumiu uma cor acastanhada à s
manchas e o ventre enegrecido está inchado.
Os cadá veres sã o conservados à temperatura de oito graus para
abrandar o processo de decomposiçã o, mas a luta contra a deterioraçã o
é , em qualquer caso, inú til.
Frippe inclina-se sobre o rosto cinzento e nota um brilho vermelho
numa das narinas.
– Que caraças…
Subitamente, um lı́quido vermelho começa a escorrer do nariz ao
longo dos lá bios e pelas faces do morto.
– Merda – exclama Frippe, levantando a cabeça de repente.
Nå len esconde um sorriso, mas nã o diz nada, també m ele em
tempos tinha reagido assim. Durante o processo de decomposiçã o,
formam-se muitas vezes umas bexigas por baixo da pele e no interior
do nariz, e é fá cil, quando essas bexigas rebentam, confundir com
sangue o lı́quido que escorre para fora delas.
Frippe dirige-se ao computador e espera alguns segundos, depois
regressa à mesa com um iPad e começa a confrontar as imagens da cena
do incidente com as feridas do cadá ver.
– Eu, de qualquer maneira, nã o mudo a minha versã o – diz, ao im
de alguns instantes. – Foi claramente um acidente… mas talvez o Joona
tenha razã o, os distritos sã o muitos e talvez nos tenha escapado algum
homicı́dio em Gotemburgo ou em Ystad.
– Pode ser – murmura Nå len, en iando umas luvas de lá tex.
– A montra icou desfeita e o Ritter caiu contra o vidro. Bate tudo
certo, olha para a reconstruçã o dos té cnicos – diz de novo Frippe,
estendendo-lhe o iPad.
Nå len nã o pega nele. Em vez disso, começa a observar as
numerosas e super iciais feridas de corte que se apresentam como
sinais negros por todo o corpo, e que se concentram sobretudo nas
mã os, nos joelhos, no tronco e no rosto. A ú nica ferida realmente grave
é o corte na garganta, que se estende até à orelha.
– Um corte aberto, horizontal – lê Frippe, enquanto Nå len apalpa a
lesã o profunda. – As paredes internas sã o lisas e nã o estã o
particularmente impregnadas de sangue… Nenhum defeito e nenhuma
ponte de tecido, a superfı́cie cutâ nea à volta está intacta…
– Muito bem – diz Nå len, fazendo correr o dedo ao longo das
margens da ferida.
– A causa direta da morte foi uma combinaçã o de sangramento e de
inalaçã o de sangue – prossegue Frippe.
– Pois, um corte realmente profundo – murmura Nå len.
– Estava bê bedo, perdeu o equilı́brio e partiu a montra. Caiu
desastrosamente para a frente como um peso morto e a garganta
deslizou ao longo de uma superfı́cie saliente… que teve um efeito
semelhante à lâ mina de uma guilhotina.
Nå len dirige-lhe um olhar divertido.
– Mas nã o te surge a dú vida de que estas circunstâ ncias infelizes
sejam demasiado perfeitas? – diz. – Imagina que algué m lhe deu uma
mã o, exercendo alguma pressã o sobre a cabeça e arranjando maneira
de a garganta deslizar ao longo da margem a iada… de forma a que lhe
cortasse a jugular enterrando-se até à traqueia.
– E um acidente – repete Frippe, obstinado.
– Afogou-se lentamente no seu pró prio sangue – constata Nå len,
empurrando os ó culos para cima do nariz comprido.
– Agora tenho a sensaçã o de que o Joona Linna está aqui connosco,
à espera de perguntar qual dos dois tem razã o – queixa-se Frippe.
– Mas tu está s muito seguro da tua opiniã o – diz Nå len, em tom de
brincadeira.
– Foi um caso infeliz… Extraı́ duzentas e dez lascas e fragmentos de
vidro daquele corpo… sobretudo dos joelhos, das mã os, do tronco e do
rosto.
Nå len toca na boca do cadá ver e abre-lhe a ferida cicatrizada sobre
o lá bio superior, descobrindo os dentes por baixo.
– Esta foi feita com uma faca – limita-se a dizer.
– Uma faca – repete Frippe, engolindo em seco.
– Exato.
– Entã o sempre é um homicı́dio – suspira Frippe, e observa o
morto.
– Sem sombra de dú vida – suspira Nå len, e olha para ele.
– Uma ú nica ferida… O assassino fez-lhe com uma faca uma ú nica
ferida do caraças em mais de duzentas.
– E fê -lo para que a vı́tima icasse parecida com uma lebre… com
um coelho.
94
As carrinhas negras das Forças de Intervençã o bloqueiam a rua
estreita a quatrocentos metros da casa de David Jordan em Ingarö .
Polı́cias fortemente armados isolam rapidamente a zona com itas
negras e estendem faixas de pregos até na valeta.
A operaçã o de terra é conduzida por Magnus Mollander, em
colaboraçã o com Janus Mickelsen da Sä po. Magnus, um homem loiro de
olhar esquivo, separou-se da namorada alguns dias atrá s. Sem mais
nem menos, ela confessou-lhe que nã o conseguia continuar a viver com
algué m que corria o risco de ser morto de cada vez que ia trabalhar. Foi
impossı́vel discutir com ela: encheu a sua mala à s lores e foi-se
embora.
Enquanto se aproximavam do endereço, Magnus estudou
atentamente as imagens de saté lite da propriedade, constituı́da
essencialmente por bosques e rochedos ı́ngremes a pique sobre o mar.
A equipa operativa é composta por oito polı́cias equipados com
capacetes, coletes à prova de bala em cerâ mica, metralhadoras, pistolas
semiautomá ticas e espingardas de precisã o da Heckler & Koch.
Ao lado da valeta onde as ervas daninhas ondeiam ao vento, o eco
das botas pesadas que pisam a estrada de asfalto deserta ecoam no ar.
Ao sinal de Magnus, Janus Mickelsen, juntamente com dois
atiradores, deixa a estrada e avança sobre o terreno bravio. O resto do
grupo prossegue até ao gradeamento e caminha ao longo dele em
silê ncio. Por entre os ramos das á rvores ergue-se o canto dos pá ssaros.
Algumas borboletas esvoaçam sobre as lores silvestres.
A equipa chegou ao caminho bem tratado que dá acesso à casa de
David Jordan. Magnus Mollander observa o saibro perfeitamente liso e
o parque de estacionamento vazio. Dois edifı́cios escuros unidos pelo
coberto para os carros escondem o resto da propriedade.
Magnus abre o portã o, faz sinal aos colegas para se aproximarem e
entretanto ica a saber por Joona que os atiradores saltaram o
gradeamento e estã o a subir as rochas nas traseiras do campo de té nis.
Magnus faz també m sinal ao grupo de Rajmo para avançar em
pares, enquanto ele segue com o chefe por entre os dois edifı́cios. E
como encontrar-se numa profunda galeria dentro de uma muralha
poderosa.
Cautelosamente, chegam ao outro lado e observam a praia de
rochas nuas que descem até ao mar.
A casa de David Jordan é grande e pintada de um tom castanho-
escuro; tem janelas amplas e uma esplê ndida varanda no canto virada
para a baı́a. Por baixo da casa foi construı́da uma piscina coberta e um
terraço de pedra onde se encontram espreguiçadeiras brancas.
Tudo está ordenado, cuidado e em silê ncio.
Parece que nã o está ningué m em casa.
Magnus e Rajmo icam imó veis a observar a moradia e a estudar as
janelas, mas nã o veem qualquer movimento.
Uma lancha desportiva está ancorada no molhe, ao lado de duas
motos de á gua levantadas por gruas.
Os atiradores comunicam que já estã o em posiçã o.
Magnus está a suar por baixo do pesado colete à prova de bala.
Sente o sopro da sua pró pria respiraçã o no capacete quando levanta o
braço e faz sinal aos homens para avançarem.
O primeiro grupo chega ao edifı́cio menor e arromba a porta,
enquanto o segundo grupo vai atrá s de Magnus e Rajmo até ao edifı́cio
principal.
Atravessam curvados o espaço aberto até à casa. Entram por dois
lados: Magnus força a porta exterior, enquanto os outros partem uma
janela e atiram para dentro uma granada de atordoamento.
Rajmo afasta o painel, remove os cacos do caixilho que rebentou
com o cano da espingarda e corre até à entrada do primeiro quarto,
depois inclina-se e abre a porta. Magnus está logo atrá s dele. O alarme
dispara com um ruı́do forte, enquanto os agentes inspecionam os vá rios
quartos, abrindo as portas dos armá rios e levantando os colchõ es.
Quando saem da ala dos quartos, os outros homens no interior do
edifı́cio principal fazem o seu relató rio: veri icaram toda a parte interna
sem encontrar nada.
Magnus faz sinal a Rajmo para se aproximar e depois começa a
correr atravé s de uma sala de estar, inspeciona os cantos escondidos e
prossegue até uma enorme cozinha, mergulhada na luz ofuscante que
entra do mar. Magnus avança e ouve alguns gritos que provê m do grupo
no outro lado da casa. Os ó culos de proteçã o deslocaram-se, e está a
endireitá -los no momento em que repara pelo canto do olho num vulto
que sai a correr de um esconderijo do lado de fora da janela. Com um
fré mito, aponta a arma ao vidro. Pousa o dedo no gatilho, mas nã o vê
mais nada, com exceçã o das espreguiçadeiras brancas.
Magnus agacha-se para minimizar a superfı́cie de impacto. O
coraçã o martela-lhe no peito. Lá fora, os ramos das á rvores movem-se
na brisa ligeira. Limpa o suor dos olhos e depois vê novamente a igura.
E Rajmo: o seu re lexo reproduzido em vá rias janelas cria a ilusã o
de que se encontra no terraço lá fora, quando na realidade está a dar a
volta à mesa a dez metros dele.
Magnus levanta-se e espreita para fora, depois recua um passo e vê
novamente o colega re letido contra o fundo do jardim.
Volta-se para Rajmo e anuncia que vai ser preciso inspecionar a
casa mais uma vez.
Na cozinha, sobre o tampo de má rmore do balcã o, está pousado um
copo de whisky meio cheio ao lado de um pacotinho aberto de
aperitivos de queijo. Magnus tira uma luva e toca no copo. Nã o está frio:
se havia gelo, derreteu há muito tempo.
No entanto, algué m esteve ali e deixou a casa com uma certa pressa.
Magnus aproxima-se da janela. O primeiro grupo está perto do cais.
Dois homens subiram a bordo da lancha e inspecionam a coberta e os
arrumos.
Magnus abre a porta da varanda, sai para o terraço e vê uma raposa
insu lá vel entalada entre os ramos de uma á rvore.
O vento arrastou os brinquedos da piscina para fora daquela á rea.
Finalmente, o alarme ica silencioso e Magnus informa o comando
da Secçã o Operativa de que a casa está deserta, mas que vã o
inspecionar o edifı́cio mais uma vez, com calma e minú cia.
– O Joona Linna chega daqui a cinco minutos – diz o chefe da
equipa.
– Muito bem.
Magnus dá a volta à casa e faz um sinal aos atiradores, apesar de
saber que tê m ordens para se manterem em posiçã o. O pavimento
vermelho do campo de té nis está coberto de agulhas de pinheiro secas.
Magnus avança ao longo das traseiras do edifı́cio principal,
pensando que també m o edifı́cio mais pequeno deve ser veri icado uma
segunda vez já que, em algum sı́tio, deve haver uma sala com a bomba e
a ventoinha da piscina onde algué m poderia esconder-se.
Os painé is sandwich da fachada emanam ainda o calor estival. As
janelas voltadas para o bosque sã o poucas.
O terreno esfarela debaixo das botas pesadas de Magnus e o ar está
saturado de perfumes da infâ ncia: resina e musgo quente.
Penduradas por baixo do beiral da fachada das traseiras, Magnus
descobre umas coisas que parecem enormes armadilhas para
camarõ es. Prepara-se para pegar numa quando a central lhe transmite
a ordem para entrar em casa e aceder ao computador ixo para veri icar
a agenda e eventuais documentos de viagem.
Ao longe ressoam as pancadas insistentes de um pica-pau. Magnus
recorda que a companheira tapava sempre os ouvidos quando lhe
acontecia ouvir um pica-pau. Nã o os suportava: estava convencida de
que aquelas pancadas obstinadas lhes deviam causar terrı́veis dores de
cabeça.
Apressa-se a regressar ao interior da casa e faz um sinal a Rajmo,
que veio à procura dele, mas depois para ao ver na fachada uma
portinha com cerca de um metro e meio de altura. O fecho está
desen iado e pendurado por fora.
Poderia conduzir a uma espé cie de depó sito de lenha, pensa,
enquanto pega na faca. Rajmo recua um passo quando Magnus afasta a
porta com a lâ mina.
Apesar de ter sido avisado de que nã o devia descurar nenhuma
possibilidade de perigo, nã o acredita que a casa esteja minada.
Nã o acontece nada.
Magnus dirige um sorriso a Rajmo e volta a guardar a faca, depois
abre a porta completamente, fazendo surgir uma escada ı́ngreme que
dá acesso à parte inferior da casa.
– Vou lá abaixo dar uma vista de olhos – diz Magnus, ao mesmo
tempo que en ia uma mã o no interior e carrega no interruptor.
Ouve-se um clic, mas as luzes nã o funcionam. Magnus monta a
lanterna sobre a espingarda e começa a descer.
– Que raio de fedor será este? – diz Rajmo, aproximando-se da
entrada baixa.
Um cheiro adocicado de decomposiçã o torna-se mais intenso de
degrau em degrau. A estreita escada de cimento parece conduzir à s
profundezas da casa. Por todo o lado estã o penduradas teias de aranha
enormes com grandes aranhas que baloiçam com o seu pró prio peso.
Ao fundo da escada vê -se um breve corredor com duas portas de
metal. Magnus indica a Rajmo para se preparar, depois abre de repente
a porta mais pró xima. Trata-se de uma arrecadaçã o com um iltro para
o rá don e o sistema de puri icaçã o da á gua. Rajmo abre a segunda porta
e abana a cabeça, voltado para Magnus.
– Uma bomba de calor geoté rmico – diz, erguendo a gola do blusã o
sobre o nariz para se proteger do fedor sufocante.
Magnus tenta resistir à ná usea, faz correr o feixe da lanterna ao
longo do corredor e descobre uma portinha de madeira ao fundo.
Ouve uma nota aguda e vibrante que se torna cada vez mais
intensa: faz lembrar o ruı́do da agulha de uma má quina de costura que
emperrou.
Magnus tenta abrir a porta, mas está fechada à chave. Rajmo recua
e dá um pontapé à maçaneta, de tal maneira forte que faz saltar a
fechadura inteira. A porta abre-se.
Um fedor a carne podre submerge-os como uma vaga repulsiva. A
nota aguda transforma-se num ruı́do ensurdecedor, ao mesmo tempo
que sã o envolvidos por milhares e milhares de moscas.
– Meu Deus – geme Magnus, tapando a boca.
O ar está de tal maneira cheio de insetos enfurecidos que é
impossı́vel iluminar a divisã o com a lanterna.
– Que raio se passa? – consegue dizer Rajmo.
O enxame de moscas dispersa-se, depois por um instante ouve-se
um som persistente semelhante à quele que é produzido por um bastã o
que se faz passar contra uma grade.
Enquanto avança no ar sufocante, Magnus sente as pernas a tremer.
A luz da lanterna corre, oscilante, ao longo de uma parede de
cimento nojenta. O zumbido das moscas, que antes tinham acalmado,
torna-se outra vez mais inquieto.
Rajmo ilumina uma mesa de trabalho coberta de sangue negro que
escorreu pelas pernas de madeira até chegar ao chã o. Salpicou as
paredes e até o teto.
O estreito cone de luz da lanterna de Magnus desloca-se sobre
carcaças de coelhos esventrados, inchados e fervilhantes de moscas
negras.
Algumas facas com cabos de madeira escurecidos e lâ minas gastas
estã o en iadas num frasco de vidro.
– Merda, é a coisa mais nojenta…
Ouve-se de novo o ruı́do repetitivo de há pouco, por isso Magnus
aponta a arma para o pavimento e ilumina uma gaiola. As vı́sceras de
numerosos animais foram atiradas para junto de um esgoto encostado
à parede. Dentro de uma pequena bacia de plá stico amarela veem-se
uma tá bua ensanguentada e uma faca de caça.
Da pequena gaiola no chã o prové m uma ligeira agitaçã o. Um coelho
corre à s voltas, em pâ nico. As unhas arranham a rede metá lica.
95
Joona en ia a má scara e as luvas de lá tex e desce até ao exı́guo
matadouro para examinar os animais mortos. Inspeciona rapidamente
as vı́sceras putrefactas no pavimento e os pedaços de carcaças pregadas
nas paredes e penduradas no teto do aposento, mas nã o encontra
restos humanos. Ao que parece, algué m se dedicou obsessivamente a
torturar e exterminar coelhos. Joona repara em algumas tentativas
frustradas de coser as peles de coelho umas à s outras, encontra restos
de pele estendidos em cima de uma tela nojenta e vestı́gios
inquietantes de mortes violentas, de uma coleçã o de trofé us e de
carcaças esgaçadas.
Na parede coberta de salpicos atrá s da mesa de trabalho está
pendurado um velho recorte de jornal com uma foto de Rex a segurar
na mã o direita uma estatueta prateada que representa a silhueta
estilizada de um cozinheiro.
Joona tira da gaiola o coelho vivo e entra no bosque antes de o
libertar.
Janus encostou a espingarda de precisã o contra o gradeamento do
campo de té nis e abriu o colete à prova de bala. Mete uma pastilha na
boca, afasta os caracó is vermelhos do rosto e bebe diretamente da
garrafa um gole de á gua mineral, inclinando a cabeça para trá s para
engolir.
– Vi-te numa das gravaçõ es antigas das câ maras de vigilâ ncia do
ministro dos Negó cios Estrangeiros – diz Joona.
– O meu primeiro trabalho para a Sä po foi limpar-lhe a casa… Uma
ó tima maneira de usar o dinheiro dos contribuintes… As vezes, as
raparigas icavam em tã o mau estado que eu tinha de as levar ao
serviço de urgê ncia… A seguir, era eu que tinha de as convencer a
icarem caladas e a desaparecer.
– Percebo por que razã o mudaste de serviço.
– Foi o ministro que enviou o pedido… Eu limitei-me a encostá -lo à
parede, a apertar-lhe aquele caralhinho minú sculo que ele tinha e a
dizer-lhe que era obrigado a protegê -lo, claro, mas que tenho duas
caras… uma das quais nã o é particularmente simpá tica.
Joona regressa com a gaiola vazia e encontra Magnus Mollander à
espera dele. Tem o rosto pá lido como se tivesse febre e treme, apesar
do suor que escorre, brilhante, ao longo da linha dos seus cabelos.
– No computador nã o se encontra nada – informa. – O té cnico
efetuou um primeiro controlo e nã o descobriu nenhuma informaçã o
sobre onde possa encontrar-se o nosso David Jordan.
Rajmo interrompe-o para o informar de que uma mulher saiu do
autocarro e está a percorrer a estrada em direçã o à casa.
– Retirem as barreiras, antes que ela repare nelas – diz Joona. –
Escondam-se, assim vemos se está a vir para aqui.
Juntam-se todos atrá s do edifı́cio secundá rio, de onde nã o sã o
visı́veis da estrada. O grupo é composto por nove polı́cias armados,
mais Joona Linna e o té cnico da Secçã o Operativa.
O portã o abre-se com um ligeiro ruı́do.
Ao ouvir os passos da mulher aproximarem-se no caminho de
saibro, Joona pega na pistola e esconde-a ao lado do corpo.
Quando a mulher chega ao meio das duas casas o ruı́do muda,
torna-se mais profundo e surdo.
Agora está muito perto.
Joona avança um passo.
A mulher grita de medo.
– Desculpe se a assustei – diz Joona, com a arma escondida contra a
perna.
A mulher ita-o com os olhos arregalados. Tem os cabelos lisos e
loiros, e traz uns jeans coçados, umas sandá lias simples e uma T-shirt
desbotada que tem escrito na frente Feel the Burn.
– Sou da Polı́cia e gostaria de lhe fazer umas perguntas rá pidas –
prossegue Joona.
A mulher tenta tranquilizar-se, tira o telemó vel da bolsa e dá um
passo em direçã o a ele.
– Deixe-me só chamar a Polı́cia para veri icar se…
Quando repara na equipa que está à espera junto da parede, cala-se
de repente. O rosto torna-se cada vez mais pá lido, enquanto observa os
coletes à prova de bala, os capacetes, as espingardas automá ticas e as
de precisã o.
– Onde está o David Jordan? – pergunta Joona, voltando a meter a
pistola no coldre.
– O quê ?
A mulher olha para a casa, espantada, e vê a porta da entrada
pousada no chã o.
– O David Jordan – diz Joona. – Nã o está aqui.
– Nã o – con irma ela, com um io de voz. – Está no Norte.
– A fazer o quê ?
A mulher pestaneja como se alguma coisa a encandeasse.
– Nã o sei – diz. – Trabalho, julgo eu.
– Onde, exatamente?
– O que foi que aconteceu?
– Ligue-lhe – diz Joona, indicando o telefone que a mulher aperta
ainda na mã o. – Pergunte-lhe onde está , mas nã o lhe diga nada sobre
nó s.
– Nã o percebo – murmura ela. Encosta o telefone ao ouvido, depois
baixa-o quase imediatamente. – Está desligado… O telemó vel dele está
desligado.
– Sã o namorados? – pergunta Joona, itando-a com os seus olhos
cinzentos como pedras.
– Namorados? Nunca pensei nisso… Vemo-nos com bastante
frequê ncia… Gosto de estar aqui, consigo pintar quando estou nesta
casa… Mas, para dizer a verdade, nã o estamos assim muito ligados,
praticamente nã o faço ideia do que é que ele faz para alé m de produzir
o programa de cozinha do Rex…
Deté m-se e dá um pontapé no saibro.
– Mas sabia que ia partir.
– Só disse que ia ao Norte, já sabe que a mim isso nã o me importa
muito.
– O Norte é tã o grande como a Grã -Bretanha – diz Joona.
– Talvez tenha dito Kiruna. Acho que disse Kiruna.
– Na sua opiniã o, porque foi a Kiruna?
– Nã o faço ideia.
Sem acrescentar uma palavra, Joona dirige-se ao carro e entretanto
liga a Anja pelo telemó vel novo para lhe pedir que marque um bilhete.
– Encontraram o Rex Mü ller? – prossegue, sentando-se ao volante.
– Nem ele, nem o ilho, o Sammy, estã o em casa, e ningué m sabe
onde se encontram. Falei com aTV4 e com a mã e do rapaz, que está no
estrangeiro, mas…
– Seja como for, parece que o David Jordan partiu para o Norte esta
manhã – diz Joona, quando chega à estrada principal.
– Nã o de acordo com as listas de passageiros.
– Veri ica se nos aeroportos aterrou algum aviã o privado, mesmo
nas escalas menores.
– OK.
– Eu estou a ir para Arlanda – acrescenta Joona.
– Obvio – diz Anja, sem mostrar a mı́nima sombra de espanto.
– E estou a contar que, entretanto, vã o localizar os telemó veis.
– Estamos a tentar, mas as operadoras telefó nicas sã o, no mı́nimo,
reticentes quando se trata de partilhar informaçõ es.
– Basta que consigam antes de eu embarcar.
– Posso falar com o Ministé rio Pú blico…
– Quem é que quer saber, avança, sem medo, que se lixe a lei –
interrompe-a Joona. – Desculpa, mas já icas a saber que, se nã o os
encontrarmos, o Rex e o ilho daqui a pouco estã o mortos.
– OK, quem é que quer saber – repete ela, tranquila. – Vou avançar,
sem medo, e que se lixe a lei.
A estrada sinuosa que atravessa o bosque está deserta. Joona passa
ao lado de um grupo de casas de campo em volta de um lago de
superfı́cie lisa como um espelho, com uma plataforma de madeira no
centro. Atrá s de uma grade, um homem segura nos braços um robô
corta-relva.
Joona acelera novamente, e no momento em que Anja lhe liga de
volta está a chegar a uma estrada mais larga, junto a uma estaçã o de
serviço.
– Joona, nã o há nada a fazer – diz.
Explica-lhe que os té cnicos da Secçã o Operativa tentaram localizar
David Jordan atravé s do GPS e do GSM. Nã o conseguiram ativar os
telemó veis à distâ ncia para obter as informaçõ es sobre a posiçã o em
que se encontravam, e como nem mesmo a operadora conseguiu
localizar os sinais atravé s dos repetidores locais em Kiruna, os té cnicos
estã o de acordo relativamente ao facto de os telefones de David Jordan
e Rex terem sido destruı́dos, e nã o simplesmente desligados.
– E o telefone do Sammy? – pergunta Joona.
– Estamos a trabalhar nisso – bufa Anja. – Nã o me stresses, nã o
suporto isso. Estã o todos nervosos, já nã o há cavalheiros, ningué m que
me faça a corte…
– Desculpa – diz Joona, acelerando ao longo da rampa de acesso à
autoestrada.
– Mas talvez tenhas razã o… Um Cessna que partiu de Estocolmo
aterrou à s primeiras horas da manhã na hidrobase de Kurravaara.
– E nã o há uma lista de passageiros disponı́vel?
– Espera um segundo.
Ouve Anja falar com algué m, agradecer-lhe pela ajuda.
– Joona?
– Diz-me.
– Já localizá mos o telefone do Sammy. Está fora de Estocolmo, na
zona de Hallunda. Temos o endereço preciso, uma moradia em banda
em Tomtbergvä gen.
– Fico feliz por saber que icou em casa – diz Joona. – Manda um
carro e pede à Jeanette Flemingpara falar com o rapaz… Preciso de
saber para onde foram o Rex e o David Jordan.
96
Rex está no seu quarto de hotel a observar o equipamento de caça
pousado em cima da colcha lisa. Rasga a embalagem de papel fechada e
abre a pequena caixa de madeira, depois empunha a faca de lâ mina
larga e tira as etiquetas da roupa nova.
Naquela manhã , descolaram da baı́a de Hä gernä s, fora de
Estocolmo, a bordo de um Cessna bimotor com lutuadores. Apesar da
cabina pressurizada, o ruı́do era tal que se tornou impossı́vel conversar.
Rex sentiu-se como Nils Holgersson durante a sua viagem de mil e
duzentos quiló metros por cima do paı́s. O panorama por baixo deles
tinha mudado lentamente: os terrenos cultivados foram substituı́dos
por bosques de pinheiros verdes e negros, e depois pelos pâ ntanos e
pela tundra.
O aviã o amarou na hidrobase de Kurravaara. Um motorista
esperava-os para os conduzir à reserva de caça.
A estrada europeia E10 em direçã o a Narvik seguia paralela à linha
do comboio, ao lado das á guas do lago Torneträ sk, de um azul-escuro.
Depois de passarem o complexo turı́stico de Abisko, Rex
vislumbrou à distâ ncia o Tjuonatjå kka, uma depressã o em forma de
meia-lua entre os cumes de dois montes.
Ao nı́vel da estaçã o de esqui de Bjö rkliden, o carro deixou a estrada
principal e seguiu depois ao longo de um caminho tortuoso de terra
batida em direçã o a Tornehamn.
O hotel, de construçã o recente, ergue-se onde em tempos se
encontrava a base dos operá rios que, mais de cem anos atrá s, tinham
construı́do a linha de caminho de ferro Malmbanan.
O motorista virou num cruzamento em T, entrou numa pequena
alameda delimitada por grandes pedras redondas e parou para eles
descerem em frente à s escadas da entrada.
Lá no topo, duzentos quiló metros acima do cı́rculo polar, estã o
completamente sozinhos.
DJ abriu a porta e desligou o alarme, entrou no lobby, passando à
frente da receçã o deserta, e levou Rex e Sammy a dar uma volta pelo
hotel completamente deserto.
Atravessaram a enorme sala de jantar e entraram na cozinha
espaçosa do restaurante, depois começaram a abrir os frigorı́ icos
cheios de carne embalada em vá cuo, centenas de pizas, trinta caixas de
hambú rgueres, pã es e brioches, massa, peixe congelado e ovas.
Percorreram longos corredores cobertos de alcatifa pesada,
desceram a escada sinuosa que dava acesso ao spa temporariamente
fechado e contornaram uma piscina vazia.
Estavam em curso trabalhos de repavimentaçã o do bar, e uma
montanha de mó veis empilhados bloqueava a passagem.

Rex está em frente à cama e olha para fora da janela: para lá do
cruzamento em T e do lago Paktajå kaluobbalah, descortinam-se montes
e vales e uma grande quantidade de pequenos lagos que parecem gotas
de chumbo fundido.
Pega nas meias que estã o em cima da cama, desen ia o anel de
papel de seda e começa a vestir-se para a caça.
Foi DJ quem escolheu pessoalmente o equipamento, acertando nos
tamanhos e optando por uma roupa de ó tima qualidade, dotada de
barreiras olfativas de forma a que os animais nã o notassem a presença
humana, e feita em materiais capazes de abafar os ruı́dos e de os
proteger da á gua e do vento.
Um fré mito de inquietaçã o obriga Rex a voltar-se para a porta. E
como se, de repente, o quarto atrá s dele tivesse icado mais escuro.
Rex en ia o resto da roupa, mete na bolsa os binó culos, o cantil e a
faca, pousa a mã o na maçaneta da porta e, antes de sair para o corredor,
sente de novo um arrepio correr-lhe ao longo das costas.
Para em frente ao quarto 23 e bate à porta. As fechaduras
eletró nicas estã o desativadas, mas pode-se em qualquer caso correr o
fecho do lado de dentro.
– Está aberta – diz uma voz abafada.
Rex entra no pequeno vestı́bulo, passa por cima dos sapatos e
avança até ao quarto espaçoso. Sammy já se vestiu e está a ver televisã o
sentado na cama. Tem o casaco de caça desapertado e pintou os olhos
com rı́mel e uma sombra dourada.
– Fico contente por ires també m – diz Rex.
– També m nã o podia icar aqui sozinho – replica o ilho.
– Porque nã o?
– Já estou cheio de vontade de andar a correr de triciclo pelos
corredores e de me pô r a falar com o meu indicador.
Rex desata a rir; segundo DJ, explica-lhe entã o, é importante que
ele també m vá à caça.
– De certeza que era mais divertido icar aqui a cozinhar – diz
Sammy, enquanto desliga a televisã o.
– Concordo – admite Rex.
– Quem serã o esses ricaços que o DJ convenceu a vir até aqui? –
continua Sammy, e depois pega na bolsa.
Atravessam em silê ncio o corredor frio e ouvem umas gargalhadas
clamorosas e copos a tilintar. No lobby, em frente ao fogo crepitante da
lareira, DJ está a beber whisky com trê s homens vestidos de caçadores.
– Aqui está o Rex – interrompe-os DJ, em voz alta.
Os homens, sentados nas poltronas, icam em silê ncio e voltam-se a
sorrir. Rex desvia-se para o lado, como se tivesse posto o pé num
buraco. Um deles é James Gyllenborg. Rex nunca mais o vira depois da
pancadaria de há trinta anos. James estava nas cavalariças e tinha-lhe
batido nas costas e na nuca com uma tá bua, tinha-lhe dado pontapé s
entre as pernas enquanto ele estava no chã o e por im tinha-lhe cuspido
em cima.
Rex apoia-se a uma das poltronas de pele e apercebe-se de que a
bolsa lhe caiu ao chã o e que a faca deslizou no tapete.
– Pai, o que foi?
– Caiu-me…
Rex apanha a bolsa e a faca, tenta repelir a ná usea e aproxima-se
dos convidados para os cumprimentar. Reconhece os outros dois
homens do tempo de Ludviksberg, mas nã o se lembra dos nomes deles.
– Este é o meu ilho Sammy – diz Rex, engolindo em seco.
– Olá , Sammy – diz James.
Os trê s homens apertam a mã o a Rex sem se levantarem das
poltronas e apresentam-se como James, Kent e Lawrence.
Envelheceram todos.
James Gyllenborg parece envolvido por um vé u cinzento, como se
os anos tivessem apagado toda a cor da sua vida e da sua pele. Rex
lembra-se dele como um rapaz loiro, cheio de vida, com os lá bios inos e
os olhos azuis constantemente irrequietos.
Kent Wrangel é robusto e tem o rosto corado, usa ó culos e um io de
ouro ao pescoço; també m Lawrence von Thurn é corpulento, tem a
barba grisalha e os olhos injetados de sangue.
– Estamos muito felizes por serem precisamente você s a acreditar
neste projeto – diz DJ. – Porque vai ser um verdadeiro sucesso… E
sabem perfeitamente que o Rex acabou de receber o prestigiado pré mio
«O Cozinheiro dos Cozinheiros»!
– Claro que foi totalmente imerecido – comenta Rex, com um
sorriso.
– A tua – diz James, bebendo um gole.
Os outros dois aplaudem com um sorriso satisfeito. Rex tenta
intercetar o olhar de DJ, sem conseguir.
– Eu só queria explicar… que a razã o pela qual requisitei todos os
telemó veis, inclusive o meu, é que este acordo vai ser uma verdadeira
bomba no nosso ambiente – diz DJ, e volta a encher de whisky os copos
dos trê s homens. – E depois da explosã o tudo será mais complicado e
muito mais caro. Por isso, isto é uma espé cie de dark pool… Quer
decidam fechar o acordo ou abandonar o barco, as minhas condiçõ es
sã o estas: qualquer transmissã o de informaçõ es para o exterior deve
ser adiada, de forma a que quem subscrever o acordo esteja em
condiçõ es de contactar livremente com os principais fornecedores.
– Vai ser uma coisa realmente enorme – exclama Kent, estendendo
as pernas.
– DJ, podes chegar aqui um instante? – diz Rex, em voz baixa,
arrastando o amigo com ele.
– E uma excitaçã o, nã o é ? – sussurra DJ, enquanto entram na sala de
jantar.
– O que é que se passa? Mas que raio é que tu está s a tramar? –
continua Rex. – Nã o tenciono meter-me em negó cios com aqueles
porcos da minha antiga escola.
– Julgava… já que se conhecem… Caramba, nã o podia correr
melhor! Quem é que quer saber se naquela altura eram uns imbecis…
Agora estã o cheios de dinheiro!
Rex abana a cabeça, tentando parecer mais calmo do que na
realidade está .
– Devias ter-me dito antes. Devias ter-me informado.
– Honestamente, é quase impossı́vel fazer negó cios na Sué cia sem
tropeçar em gente que frequentou o Ludviksberg – diz DJ.
Entretanto, apercebe-se de que Kent está a vir ao encontro deles
com dois copos de whisky.
DJ vai ter com ele, pega num copo e acompanha-o outra vez em
direçã o à s poltronas.
Rex ica a observá -los da sala de jantar. Sente uma espé cie de
zumbido na cabeça por causa da agitaçã o, e tenta dizer a si mesmo que
deve fazer um esforço para passar a noite. E preciso resistir ainda
durante algumas horas e depois arranjar uma desculpa para que ele e
Sammy possam regressar a casa cedo na manhã seguinte.
Tenta convencer-se de que está a levar avante aquele negó cio
porque isso é importante. Trata-se de uma forma de consolidar a sua
pró pria situaçã o econó mica, no caso de Sylvia se cansar dele de uma
vez por todas.
Rex ita James Gyllenborg, que está a observar a palma da mã o
atravé s da mira da espingarda. Quem sabe se ainda se lembra do que
fez, pergunta a si mesmo.
Provavelmente, naquela altura, tinha maltratado muitas pessoas;
fazia parte dos privilé gios de gente como ele, mas Rex devia ter sido um
dos poucos a nã o aceitar tudo o que acontecia. Foi-se embora
imediatamente, deixou a escola antes do pequeno-almoço no dia
seguinte e nunca mais voltou.
– Ouçam – começa DJ, batendo palmas para chamar a atençã o. –
Muita gente julga que ir à caça numa reserva é um passatempo de
aristocratas… mas, na realidade, as renas que vivem nesta zona sã o
muito mais esquivas do que as selvagens.
Rex avança em direçã o à porta e depois vai ter com os homens ao
lobby enquanto DJ explica as regras.
– Estive na caça à s renas na Noruega – diz Lawrence, com a sua voz
de baixo. – Ficá mos numa cabana durante oito horas sem disparar um
ú nico tiro.
– Mas aqui estamos a falar de caça errante – diz DJ. – Vamos dividir-
nos em pequenos grupos, tentando surpreender as renas. Estuda-se o
terreno, as pegadas… E mesmo excitante… Para nos aproximarmos
temos de estar em silê ncio absoluto e prestar atençã o à direçã o do
vento.
– E depois nã o temos um plano B – acrescenta Rex, com um grande
sorriso. – Se ningué m abater uma rena, nã o vamos ter nada para
cozinhar… E vamos ter de nos contentar com batatas, esta noite.
97
Meia hora mais tarde, ao fundo da grande escadaria da varanda, DJ
distribui armas e muniçõ es.
– Escolhi uma Remington 700 com a coronha sinté tica – explica, ao
mesmo tempo que lhes mostra uma espingarda de um tom verde-
azulado, com o cano negro sem alça de mira.
– Otima arma – murmura Lawrence.
– James, para ti escolhi uma preparada para canhotos – acrescenta
DJ.
– Obrigado.
– Pesa 2,9 quilos, deves aguentar – diz DJ, a sorrir, erguendo uma
caixa castanha. – Vamos usarcartuchos Holland & Holland .375. Só vã o
dispor de vinte.
Atira a caixa a Rex.
– Portanto, façam boa pontaria.
Pegam todos no equipamento e dã o a volta ao hotel. O cé u está
cinzento e nublado, no ar sente-se cheiro de chuva e um vento
persistente varre os arbustos baixos.
DJ orienta-os ao longo de um caminho que sobe a colina, explicando
que os espera uma caminhada de quarenta minutos para chegar aos
portõ es da reserva e à s manjedouras.
– A reserva tem seiscentos e oitenta hectares no total e compreende
vales com bosques, mas també m montanhas despidas, alguns pequenos
lagos, entre os quais o Kratersjö n, e uma parte da parede escarpada da
montanha, a sul, onde deverã o ter muito cuidado.
A paisagem é ı́ngreme, o ar está fresco e hú mido. O cheiro de
bosque, hera e folhas molhadas é muito forte.
– Está s a divertir-te? – pergunta Sammy, com um ligeiro mas
inconfundı́vel tom de desprezo.
– Isto é só trabalho – responde Rex. – Mas estou contente por tu
estares aqui també m.
O ilho dirige-lhe um olhar incré dulo.
– Nã o pareces nada feliz, pai.
– Eu explico-te mais tarde.
– O quê ?
Rex está quase a confessar que nã o aguenta mais e que quer ir
embora o mais depressa possı́vel, quando DJ chega junto deles. Mostra-
lhes como devem carregar as espingardas e como funciona o gatilho de
pressã o direta e o travã o lateral.
– Tudo bem, Sammy? – pergunta-lhe, com um sorriso.
– Desculpa lá , mas eu realmente nã o percebo qual é o sentido de
disparar à s renas dentro de um recinto… Nã o podem fugir… E como o
Hunger Games, mas sem o direito de se defenderem.
– Percebo o que queres dizer – responde pacientemente DJ. – Mas,
por outro lado… se pensares nas criaçõ es intensivas, isto é muito mais
ecoló gico… Trata-se de uma reserva de trê s milhõ es de metros
quadrados.
Rex observa as costas largas de James e de Kent, de espingarda
pendurada ao ombro. Como se tivesse sentido o seu olhar, James volta-
se e estende-lhe um frasquinho de prata. Rex pega nele e passa-o aos
outros trê s, sem beber.
– Como está a Anna? Estava com melhor aspeto, quando nos
encontrá mos na cerimó nia – diz Kent.
– Cresceu-lhe o cabelo mas, segundo os mé dicos, nã o passa deste
outono – responde James. – Aminha mulher tem cancro – explica a Rex.
– Tê m ilhos?
– Sim… um rapaz de vinte anos, que está a estudar Direito em
Harvard… e uma ilha mais pequena, a Elsa… Tem nove anos… Só quer
estar com a mã e, constantemente, nã o faz mais nada.
O grupo contorna a parte lateral de uma montanha. A paisagem por
baixo deles precipita-se sobre um vale profundo, e à frente a vista
estende-se por quiló metros e quiló metros.
– Amanhã vestimos todos as fardas do colé gio, o que é que dizem? –
brinca Lawrence.
– Meu Deus, que nojo – replica Kent, com um suspiro.
– Que grande chatice, a igreja e os almoços de domingo… Meu Deus,
nã o tı́nhamos sobrevivido sem as pizas de micro-ondas e os grogues de
conhaque.
– Ou sem o Wille, que mandava vir o motorista da famı́lia de
Estocolmo com uma caixa de champanhe – acrescenta Kent, a rir, mas
volta imediatamente a icar sé rio.
– Nã o consigo convencer-me do facto de ele e o Teddy estarem
mortos – diz James, em voz baixa.
98
Jeanette Fleming está no meio do caminho estreito ao lado de uma
planta de lilá s a observar as ilas de pequenas moradias em banda
castanhas do outro lado do parque de estacionamento. O travessã o de
prata entre os seus cabelos curtos cintila ao sol. Veste uma saia justa e
traz uma Glock 26 no coldre debaixo do casaco.
Manté m debaixo de olho, à distâ ncia, os colegas da Polı́cia de
Estocolmo à paisana que tocam à porta de uma casa em mau estado ao
fundo da rua.
Foi ali que a Secçã o Operativa localizou o telefone de Sammy.
O rapaz é provavelmente a ú nica pessoa que sabe onde se
encontram Rex e o spree killer David Jordan.
Os colegas esperam alguns instantes, depois voltam a tocar.
Crianças de bicicleta aproximam-se e uma mulher de burka passa a
arrastar um carrinho de compras.
A porta abre-se e Jeanette vê os polı́cias a falar com uma pessoa.
Entram, e a porta fecha-se atrá s deles.
As persianas da janela da cozinha sã o sacudidas pelo vento.
A ú nica tarefa dos colegas é entrar na casa e veri icar se é segura,
para que Jeanette possa levar a cabo, no local, um rá pido interrogató rio
a Sammy.
No momento em que tinha entrado no seu gabinete, Jeanette
reparara na palidez das faces do seu superior na Sä po, e agora recorda
aquele pormenor. Tinha-se convencido de que Anja Larsson era a chefe
da Secçã o Operativa quando ela lhe tinha ligado a comunicar, com uma
voz severa, que Jeanette Fleming devia ser posta à disposiçã o daquele
serviço, com base nos protocolos de colaboraçã o entre as unidades.
Jeanette tinha-se encontrado com os colegas da Polı́cia de
Estocolmo à entrada da igreja da Luz, perto do centro de Hallunda; uma
vez controlada a ligaçã o via rá dio, ao chegar à s moradias em banda
estacionaram no espaço ao lado das garagens baixas.
Jeanette dá a volta à ila de casas e posiciona-se nas traseiras. Ao
contrá rio dos outros pá tios, este está decididamente abandonado. Por
entre as ervas daninhas altas vê -se um velho grelhador, e sobre a
tijoleira partida estã o abandonadas peças ferrugentas de uma bicicleta.
Do lado de dentro das persianas descidas nã o se vislumbra qualquer
movimento.
Jeanette tira o batom da carteira, compõ e a maquilhagem e pensa
que, apesar de ser uma das melhores psicó logas forenses do paı́s, nã o
consegue entender nada de si pró pria.
Tinha participado numa missã o juntamente com Saga Bauer num
restaurante a sudoeste de Nykö ping.
Jeanette ainda nã o consegue capacitar-se daquilo que aconteceu.
Tinham ido parar a um sı́tio frequentado por prostitutas e pelos
seus clientes, e ela achou-se de repente sozinha numa casa de banho
para de icientes com um buraco na parede.
Nã o acreditava que existisse realmente gente capaz de fazer certas
coisas.
Podia ser uma situaçã o deprimente, ou mesmo có mica, mas a
surpresa e o embaraço tinham-se subitamente transformado numa
profunda seriedade, num desejo inesperado, numa excitaçã o
incompreensı́vel.
A relaçã o anó nima durou no má ximo dois minutos, e Jeanette nem
sequer teve tempo de se arrepender antes de ele se vir. Ficou tã o
surpreendida que disse, ofegante, «Para com isso» e retraiu-se, recuou e
bateu com um joelho no chã o. Lavou a boca e as virilhas e sentou-se na
sanita para deixar escorrer o esperma para fora.
De seguida, icou atordoada durante vá rias horas, e desde entã o
continuou a oscilar entre a convicçã o de ser uma estú pida e uma
estranha sensaçã o de liberdade interior.
Por vezes, quando no decurso da sua vida quotidiana lhe acontece
encontrar-se com homens, frequentemente mais velhos e à s vezes feios
e ordiná rios, é devastada pela vergonha e tem de se afastar com as faces
em chamas.
No entanto, de um ponto de vista moral, aquilo que fez nã o é pior
do que encontrar algué m num bar e ir para a cama com essa pessoa;
nã o é pior do que uma ridı́cula fantasia eró tica, e nã o foi sequer uma
relaçã o sexual propriamente dita.
Perguntou a si mesma se, inconscientemente, nã o teria feito aquilo
para castigar o moralista do ex-marido, que tinha medo até do facto de
ela poder masturbar-se, ou a irmã , que em adolescente era desinibida e
promı́scua e que depois se tornou uma mulher perfeita.
Na realidade, acha que teve necessidade de o fazer por si mesma,
para se poder rede inir em segredo, porque teve aquela possibilidade e
porque aquele ato proibido naquele momento a excitou.
Foi quase uma brincadeira, ou assim pareceu.
Desde entã o, esperou a chegada do mal-estar psicoló gico, de uma
qualquer espé cie de puniçã o, mas só no dia anterior a ansiedade se
apoderou dela e a arrasou.
Dois dias atrá s, como todos os anos, tinha-se submetido ao check-up
mé dico exigido pela Sä po. Mediram-lhe a pressã o e tiraram-lhe sangue,
fez um eletrocardiograma e um controlo da tiroide, e no dia seguinte
entrou no site para veri icar os seus valores em relaçã o aos mé dios.
O mé dico só comentaria os resultados em caso de anomalias.
Inicialmente, Jeanette nã o tinha pensado nisso, mas depois o pâ nico
assaltou-a. Sentada diante do computador, com as credenciais para o
acesso, foi assolada pelo terror de ter contraı́do sida.
A ansiedade retumbava-lhe nos ouvidos, apesar de saber que nã o
tinha passado tempo su iciente para que o vı́rus pudesse ser
identi icado.
Os resultados dos exames, alinhados em coluna no ecrã , eram
incompreensı́veis.
E quando se apercebeu de que o mé dico tinha acrescentado um
comentá rio, o medo toldou-lhe a vista.
Teve de ir à casa de banho lavar a cara com á gua fria antes de
conseguir regressar ao computador.
Mas nada tinha a ver com sida.
O ú nico comentá rio presente sugeria-lhe que reparasse no nı́vel de
HCG no sangue: aquele valor sugeria que estava grá vida.
Ainda lhe custa a acreditar.
Durante oito anos esperou que o marido se sentisse pronto para ter
um ilho, mas depois ele deixou-a. Apó s uma sé rie de encontros que a
desiludiram, decidiu fazer um pedido para inseminaçã o. Duas semanas
atrá s, o tribunal recusara-lho de initivamente, e agora está grá vida.
Jeanette sorri ainda, enquanto atende a chamada de um dos colegas
no interior da casa.
99
Jeanette ajusta a pistola ao ombro e chega à porta decré pita da
pequena casa. O mais jovem dos polı́cias vem abrir antes que ela tenha
tempo de tocar, e manda-a entrar para o hall.
– O Sammy nã o está aqui, só encontrá mos o telemó vel – diz o
homem.
Jeanette passa por cima de um par de botas de borracha estragadas
e vai atrá s do colega até ao interior da casa. No corredor há algumas
molduras encostadas à parede e um rolo de tela para pintura está
abandonado no chã o.
A cozinha tresanda a comida de gato e a urina. O lava-loiça está
cheia de pratos sujos e no chã o de linó leo estã o amontoados sacos com
garrafas de vinho.
Vê -se uma espé cie de obra de arte pendurada no candeeiro de teto:
uma dezena de sapatinhos de criança dentro de uma gaiola de rede
vermelha.
Numa cadeira está sentada uma rapariga que tem vestidos apenas
uns calçõ es de desporto. Tem piercings nos dois mamilos e um sol
cinzento-escuro tatuado por cima do umbigo.
Tem umas olheiras profundas, uma erupçã o cutâ nea na testa e um
antebraço engessado.
No chã o, aos pé s dela, está um homem deitado de barriga para
baixo, com as mã os algemadas atrá s das costas.
– Podem tirar-lhe as algemas? – pergunta Jeanette.
O colega inclina-se ao lado do homem:
– Vais icar mais calmo, agora?
– Sim, porra – geme o indivı́duo no chã o. – Juro-te.
O colega põ e-se de có coras, aperta-lhe um joelho contra as costas e
tira-lhe as algemas.
– Põ e-te direito – diz Jeanette.
O homem levanta-se e massaja os pulsos. També m ele está de
tronco nu: é magro e veste uns jeans rasgados de cintura descida. Ao
longo dos có s das calças veem-se os pelos pú bicos escuros. Tem um
rosto bonito, mas marcado, de uma forma surpreendente, por umas
rugas profundas. Olha para ela com uns olhos apagados, como se
estivesse a recuperar de uma bebedeira.
– Senta-te – diz ela.
– Mas que raio está a acontecer? – pergunta o homem, pondo-se à
frente dela.
No centro da mesa de abas está um smartphone preto.
– E o telemó vel do Sammy? – pergunta Jeanette.
O homem olha para o telefone como se só naquele momento
reparasse nele.
– Nã o sei – diz.
– Porque é que está aqui?
– Imagino que ele se tenha esquecido.
– Quando?
O homem encolhe os ombros e inge re letir.
– Ontem.
O indivı́duo, que se chama Nicolas Barowksi, sorri para si mesmo e
coça a barriga.
– Qual é o có digo? – pergunta Jeanette por im.
– Boh – responde ele com uma voz rouca.
Jeanette observa a gaiola com os sapatinhos pendurada no gancho
do candeeiro.
– Es um artista?
– Sim – limita-se Nico a responder.
– E bom? – pergunta Jeanette, em tom de brincadeira, voltada para
a rapariga.
– E mesmo, a sé rio – responde ela, erguendo o queixo.
– Ningué m quer saber… Nã o vejo diferenças entre a minha arte e os
ilmes checoslovacos com orgias – diz Nico, com um ar sé rio.
– Percebo o que queres dizer – responde Jeanette.
– Preferia fazer um monte de ilmes pornográ icos a pintar a ó leo –
continua ele, esticando-se para ela.
– Está s chocada? – pergunta a rapariga, com uma risadinha.
– Porque é que havia de estar? – responde Jeanette.
– A arte nã o é uma coisa bonita – prossegue Nico. – E suja,
perversa…
– Cé us, també m nã o exageres – interrompe-o Jeanette, ingindo-se
incomodada.
Nico sorri, assente e olha-a nos olhos com um ar malicioso.
– Onde está o Sammy? – pergunta Jeanette.
– Nã o sei, nem quero saber – responde ele, continuando a olhar
para ela.
– Está mais apaixonado pelo Sammy do que por mim – diz a
rapariga, e faz um gesto como que para afugentar de um seio qualquer
coisa que a incomoda.
Jeanette levanta-se e aproxima-se de um iPhone pousado no chã o,
ligado à tomada com um carregador branco. Desliga o cabo, repara na
imagem de Andy Warhol na capa e volta-se para Nico.
– Qual é o có digo?
– E privado – responde ele, a coçar a virilha.
– Entã o vou ter de pedir ajuda à Apple – replica Jeanette, em tom de
brincadeira.
– Ziggy – responde Nico, sem perceber a piada.
Nico senta-se molemente com a mã o entre as pernas e observa
Jeanette enquanto ela liga o telefone e veri ica a lista das chamadas. A
mais recente das recebidas prové m do telemó vel de Rex.
– Foi o Rex Mü ller que te mandou catorze coraçõ es esta manhã ?
– Nã o – responde Nico, a rir.
– Foi o Rex que te ligou ontem?
– Nã o – diz Nico, a olhar para as unhas.
– Portanto, o Sammy ligou-te do telefone do pai – conclui Jeanette. –
O que é que te disse? Falaram durante seis minutos.
Nico dá um suspiro profundo.
– Estava zangado por… por causa de um monte de coisas, e disse
que ia para fora com o pai.
– Para onde?
– Nã o sei.
– Deve ter-te dito – insiste Jeanette, enquanto procura um copo
limpo nos mó veis da cozinha.
– Nã o.
– Estava zangado porque tu lhe roubaste o telemó vel?
Nico agita-se na cadeira e coça a testa.
– També m por isso… Mas disse que o pai estava a tentar que ele se
tornasse hé tero obrigando-o a disparar contra umas renas engaioladas.
– Iam juntos à caça?
– Nã o faço ideia – responde Nico secamente, e depois suspira.
– Fazem isso muitas vezes? Vã o juntos à caça com frequê ncia?
– Nem se conhecem. O pai é um idiota e sempre se marimbou nele.
Jeanette esvazia um copo cheio de pontas de cigarro, pega num
pouco de detergente e começa a lavá -lo com os dedos por baixo da
torneira.
– Que mais é que ele disse? – pergunta.
Nico apoia-se nas costas da cadeira, aperta os lá bios e olha para ela.
– Nada, as coisas do costume – responde depois. – Disse que tinha
saudades minhas, que estava sempre a pensar em mim.
Jeanette manté m o dedo por baixo do jato de á gua, enche o copo e
bebe, depois enche-o outra vez e fecha a torneira.
– Podes icar a ver, enquanto eu dou uma queca à Filippa – diz Nico,
com um tom de voz doce, enquanto afaga o seio esquerdo da rapariga.
– Hoje nã o tenho tempo – replica Jeanette, com um sorriso, depois
pega no telemó vel de Sammy que está pousado em cima da mesa e vai-
se embora.
100
O grupo para ao lado de um banco de pedra em frente ao portã o da
reserva, que tem dois metros de altura. DJ serve café de uma garrafa
té rmica, distribui as chá venas fumegantes e olha para os outros com
um sorriso.
Conseguiu conduzir os quatro ú ltimos para uma armadilha, antes
da carni icina.
Matar o primeiro vai requerer uma certa cautela: terá de o fazer de
forma a que os outros nã o fujam.
Perto do im, já nã o será relevante se perceberem o que está a
acontecer e entrarem em pâ nico.
Todos deverã o sangrar e gritar, e sentir que a morte se aproxima e
olha para eles até chegar o momento de a seguirem.
– Vamos organizar-nos em duas equipas por duas zonas – explica. –
Eu, o James e o Kent somos a equipa um… e vamos mover-nos na zona
um. O Lawrence, o Rex e o Sammy, a equipa dois, na zona dois… Está
toda a gente de acordo?
Entrega os mapas à s duas equipas, indica os limites geográ icos, as
linhas de tiro permitidas e as medidas de segurança.
– Vamos interromper a caçada à s dezassete em ponto, e a essa hora
toda a gente retira os cartuchos. Depois disso, ningué m pode disparar,
nem sequer se vir uma rena pela primeira vez. Esperamos dez minutos
e depois encontramo-nos aqui para regressarmos juntos ao hotel… E
nã o se preocupem com o jantar desta noite – acrescenta. – O Rex
prometeu preparar os melhores hambú rgueres do mundo.
– Trouxemos carne picada – diz Rex.
DJ olha para eles, bebe um gole de café e pensa na maneira como
vai conduzir Kent e James até ao topo da montanha nua e deixá -los
morrer em cima daquelas rochas enormes. O seu plano é avançar do
mesmo lado de Kent. Devem seguir o percurso das renas até ao
des iladeiro, onde vã o descansar antes de prosseguir até ao vale.
De entre os homens do grupo, Kent é o que está em piores
condiçõ es fı́sicas: tem excesso de peso e sofre de hipertensã o. Durante a
pausa, DJ vai cumprimentá -lo pelo novo cargo de chanceler da Justiça,
depois vai extrair a faca de caça, abrir-lhe a parte inferior do ventre
lá cido e obrigá -lo a icar em pé na beira da ravina, dizendo-lhe que ao
im de dezanove minutos o vai empurrar para baixo, e que ele ainda vai
estar consciente e capaz de se aperceber de todos os instantes da
queda.
Os homens estudam os mapas, depois apontam para o terreno e
para as montanhas distantes. Rex pousa a espingarda no banco e afasta-
se alguns passos, transpõ e o fosso e começa a urinar ao abrigo do muro.
– Se abaterem um animal, veri iquem se está morto, parem e
marquem o sı́tio no mapa – recorda DJ. – Os machos maiores chegam a
pesar cento e sessenta quilos e tê m chifres enormes.
– Estou numa excitaçã o – diz Kent.
Sammy sopra na chá vena, bebe um gole de café e limpa o batom do
rebordo com o polegar.
– E para ti, nã o há espingarda? – pergunta Lawrence, a olhar para
ele.
– Nã o quero, aliá s, nem sequer percebo como é possı́vel algué m
divertir-se a matar um animal – responde Sammy, baixando os olhos.
– Chama-se caça – diz Kent. – E uma coisa que já existe há bastante
tempo e…
– E os homens a sé rio gostam disso – conclui Sammy, voltando-se
para DJ. – Gostam de extinguir uma vida… e sã o loucos por armas e
carne e sangue… Mas será que acham isto normal?
– Algué m pode dar uma bofetada a este maricas? – exclama Kent,
com um riso trocista.
DJ olha para Rex: fechou a braguilha e aproxima-se atravé s das
ervas altas, depois transpõ e o fosso e chega junto da mesa de pedra.
Nã o faz a mı́nima ideia de que també m ele é uma presa.
Até à quele momento, Carl-Erik Ritter foi o ú nico que causou
problemas a DJ, como um coelho ferido que consegue esconder-se na
toca.
Quando descobriu que Ritter tinha um tumor no fı́gado e estava a
morrer, teve de mudar completamente o plano.
Foi obrigado a dar prioridade a Ritter porque nã o queria que
morresse sozinho.
O novo plano, elaborado à pressa, previa que DJ o fosse procurar ao
bar e o convencesse a segui-lo até à linha do metro de Axelsberg. DJ
tinha chegado da regiã o de Skå ne de manhã cedo, talvez nã o estivesse
completamente concentrado, e nã o considerou a possibilidade de Ritter
o agredir na praça. Tinha sido obrigado a improvisar para encenar um
acidente. Empurrou-o contra a montra e fê -lo partir o vidro com a nuca,
depois obrigou-o a voltar-se e apertou-lhe a garganta contra a borda
a iada, de forma a que lhe cortasse a jugular.
Apesar de DJ lhe ter fechado as bordas da ferida com os polegares,
Ritter perdeu sangue mais depressa do que o previsto. Morreu em
quinze minutos. Por esse motivo, talvez, cortou-lhe o lá bio com a faca
antes de ele perder os sentidos.
– OK, vamos pô r-nos a caminho – diz DJ, sacudindo a chá vena. – O
cé u a leste está a escurecer e talvez o tempo piore esta noite. Kent e
James, venham comigo, o nosso percurso é um pouco mais longo.
101
Depois de ter subido o monte durante algum tempo, o grupo de Rex
consegue ver distintamente a vegetaçã o em baixo, e o bosque que vai
rareando na subida das encostas para depois desaparecer
completamente.
O des iladeiro estende-se como um sulco hú mido entre o planalto
de Rá kkaslá hku e o monte Lulip Guokkil. Todo o vale que parte da
estaçã o de esqui de Riksgrä nsen se assemelha ao casco de uma enorme
canoa com a proa apontada ao lago Torneträ sk.
Sammy pega nos binó culos, tira as tampas inas de plá stico das
lentes e deté m-se a olhar em volta.
Lawrence observa o mapa e conduz o grupo para a concavidade do
terreno, na zona dois. A reserva de caça inclui apenas uma parte do
vale, ou seja, as encostas orientais para alé m da linha das á rvores, até à
tundra subalpina e ao des iladeiro.
De repente, sã o envolvidos por um silê ncio profundo.
Ouve-se apenas o leve roçar produzido pelo equipamento, os
passos que batem no solo e o vento que sopra por entre as folhas.
O caminho lamacento está coberto de pegadas das botas de outros
caçadores. Os ramos dos mirtilos vermelhos batem-lhes nas canelas.
– Como é que vai isso? – diz Rex, a olhar para Sammy, que lhe
responde com um encolher de ombros.
Por entre os troncos incrivelmente brancos das bé tulas cria-se uma
luz da cor da porcelana. O vale é como uma enorme sala sustentada por
colunas com uma cobertura de tecido ondulante.
– Sabes qual é a altura da neve aqui, de inverno?
– Nã o – responde Sammy, em voz baixa.
– Dois metros e meio – diz Rex. – Olha para as á rvores… Os troncos
sã o todos muito mais brancos até à altura de dois metros e meio.
Nã o obté m do ilho qualquer reaçã o, e depois prossegue com um
tom exageradamente pedagó gico:
– Pois é , está s a ver, a razã o é simples: os lı́quenes negros que
crescem na casca nã o sobrevivem por baixo do manto de neve invernal.
– Por favor, podem icar em silê ncio? – pergunta Lawrence,
voltando-se para eles.
– Desculpa – responde Rex, com um sorriso.
– Você s, nã o sei, mas eu quero caçar, é por isso que estou aqui.
En iam-se pelo meio dos arbustos de empetro-negro e chegam a
uma clareira mais luminosa.
– Na verdade, nem me lembro como se usa uma espingarda de caça
– conta Rex a Sammy. – Tirei o porte de arma quando tinha trinta anos…
Olha, de qualquer maneira, é preciso puxar este carreto para trá s para
se en iar um cartucho novo.
Lawrence para e levanta as mã os.
– Vamos separar-nos – diz, indicando o mapa. – Eu vou descer para
o vale e você s continuam neste caminho… ou entã o podem subir por
este lado.
– Está bem – responde Rex, observando a vereda que conduz à
encosta do monte.
– Você s só podem disparar deste lado… e eu do outro – sublinha
Lawrence.
– Claro – responde Rex.
Lawrence dirige-lhes um gesto de cabeça, abandona o caminho e
avança pelo meio das á rvores, descendo a encosta.
– Vim parar a uma gaiola de macacos enfurecidos – murmura Rex,
itando a faca à cintura.
Prosseguem durante mais algum tempo por aquele caminho, mas
depois começam a desviar-se ao longo da encosta do monte. Param ao
im de meio quiló metro, perto de um enorme bloco errá tico. A pedra,
que parece um palá cio de ardó sia maciça, rolou até à quele ponto depois
da dissoluçã o da calota de gelo.
Encostam-se à pedra e bebem á gua do cantil.
Uma lata de cerveja pisada até se tornar um pequeno disco está
abandonada sobre o terreno enxuto, no meio de algumas pedras
redondas.
Rex põ e os ó culos de leitura, abre o mapa e estuda-o durante alguns
instantes antes de conseguir orientar-se.
– Estamos aqui – diz, indicando o mapa.
– Muito bem – responde o ilho, sem olhar.
Rex pega outra vez nos binó culos para tentar identi icar os limites
da zona. De repente, descobre Lawrence mais em baixo. Rex aumenta a
potê ncia e ita-o atravé s dos binó culos: o rosto, coberto de barba, está
tenso numa expressã o concentrada, e tem os olhos reduzidos a uma
fenda. Avança cautelosamente por entre os arbustos do vale, levanta a
espingarda, a seguir ica completamente imó vel, olha pela mira, depois
baixa a arma sem disparar e afasta-se em direçã o ao muro que dá para
os carris da Malmbanan. Rex continua a segui-lo até ele desaparecer,
aninhando-se no meio dos troncos.
– Vamos continuar para cima – diz Rex.
Prosseguem a subir na diagonal ao longo da escarpa. O terreno é
seco, e as bé tulas baixas sã o cada vez mais raras.
– Logo à noite ajudas-me com os hambú rgueres? – pergunta Rex.
Sammy olha em frente com uma expressã o amuada e nã o responde.
Continuam a caminhar até que descobrem trê s renas ao longe. Os
animais espreitam entre uma mancha de á rvores baixas e algumas
rochas grandes.
Aproximam-se com cautela e, depois de terem dado a volta a um
rochedo quase negro, apanham vento pela frente.
Rex baixa-se, levanta a espingarda e enquadra o exemplar macho
atravé s da mira.
A rena levanta a cabeça com os chifres enormes, observa a tundra,
fareja o ar e endireita as orelhas, depois ica imó vel durante alguns
segundos e inalmente recomeça a comer. Avança lentamente enquanto
pasta.
Subitamente, Rex encontra uma linha de tiro perfeita. E um
exemplar grande e magnı́ ico, de pelo cinzento como bronze e o peito
cor de leite.
O retı́culo em cruz da mira oscila exatamente por cima do coraçã o
do animal, mas Rex nã o tem qualquer intençã o de pousar o dedo no
gatilho.
– Espero que encontres um buraco no gradeamento – murmura, e
repara que a rena está outra veza levantar a cabeça.
As orelhas tremem, inquietas.
Ouve-se um forte estalido no momento em que Sammy pisa um
ramo atrá s de Rex. O animal reage imediatamente e foge em direçã o ao
limite do bosque.
Rex baixa a espingarda e cruza o olhar de desa io de Sammy, mas
em vez de se zangar sorri.
– Nã o tencionava disparar – explica.
Sammy encolhe os ombros e continuam os dois atravé s do campo,
subindo ao longo da encosta do monte. Há excrementos dispersos por
entre as lores silvestres. O cé u está mais escuro por cima do Lulip
Guokkil e o vento tornou-se notoriamente mais frio.
– Vai começar a chover – diz Rex.
Continuam a subir e chegam a uma pequena zona plana:
encontram-se numa espé cie de charneca que se estende até à s encostas
escuras e ı́ngremes das montanhas.
– Podes segurar-me na espingarda para eu…
– Nã o quero – riposta Sammy.
– Nã o precisas de icar zangado comigo.
– Agora estou a incomodar-te? Ou sou demasiado chato para os
teus gostos?
Rex nã o responde. Limita-se a fazer um sinal para a frente e a
seguir um trilho que passa por entre dos arbustos densos.
Pensa no seu problema de alcoolismo, em tudo aquilo que estragou,
e está cada vez mais convencido de que nunca mais vai conseguir
reconquistar a con iança de Sammy. Talvez, pelo menos, possa
encontrar-se com ele de vez em quando no restaurante, só para ver
como é que ele está ou para lhe perguntar se, de alguma forma, precisa
de ajuda.
O vento é cada vez mais frio. As folhas secas soltam-se dos arbustos
e voam. O pó levanta-se do chã o.
– Vamos grelhar uns hambú rgueres de trezentos gramas – diz. –
Vamos cortar um pã o caseiro, juntamos umas fatias de queijo de
Vesterhav, ketchup Stokes, mostarda de Dijon… um monte de rú cula,
duas fatias de bacon… pepinos salgados e condimentos à parte…
Depois de terem passado por uma enorme formaçã o rochosa, Rex
sente as primeiras gotas de chuva. O vento intenso faz tremer as ervas,
e parece que animais invisı́veis as atravessam a correr.
– Depois vamos fritar em azeite umas batatas cortadas muito inas
– continua. – Com pimenta preta, e um monte de sal grosso…
Rex avista à distâ ncia um regato que se precipita por entre salpicos
de espuma pela encosta de um monte, e entã o deté m-se. Nã o se lembra
de o ter visto assinalado no mapa, por isso volta-se para pedir uma
opiniã o a Sammy, mas o ilho desapareceu.
– Sammy? – chama em voz alta.
Volta atrá s até ao outro lado da rocha e vê a vereda que desce ao
longo da encosta deserta. As á rvores baixas e os arbustos tremem ao
vento.
– Sammy – grita. – Sammy!
Acelera o passo e olha em volta. Para sul, na direçã o do Lulip
Guokkil, rebentou um violento temporal, e a chuva parece uma cortina
de arame. O vento tornou-se mais intenso, e a tempestade vai chegar a
eles em breve. Rex apressa-se a descer ao longo da encosta. Mais acima,
algumas pedras separam-se do chã o e rolam em direçã o a ele.
– Sammy?
Rex perscruta a encosta da montanha, abandona a vereda e
recomeça a subir. Trepa o mais depressa que pode, ica sem fô lego e as
coxas começam a arder-lhe por causa do á cido lá tico. Transpira
copiosamente e precisa de limpar o rosto. Entretanto, caminha
seguindo o leito seco de um riacho e tropeça numa pedra.
A depressã o está bloqueada por arbustos densos. Rex tem a
sensaçã o de descortinar algué m a esconder-se atrá s de uma pedra mais
alta, por isso afasta-se para o lado.
Continua por uma abertura entre os ramos, baixa a cabeça, mas nã o
consegue evitar um arranhã o na face. A espingarda que traz à s costas
ica presa na vegetaçã o densa, por isso decide abandoná -la. A arma ica
pendurada num ramo, e está ainda a oscilar nas suas costas quando Rex
escorrega e cai para a frente, estica uma mã o para travar a queda e
levanta os olhos.
Nesse instante descobre James ao longe, no alto, entre duas
grandes massas rochosas. Vê -o apontar a espingarda na sua direçã o e
fazer pontaria.
Rex levanta-se, endireita as costas e semicerra os olhos, mas à quela
distâ ncia nã o consegue perceber o que James está a fazer. O re lexo do
sol sobre a lente da mira atinge-lhe os olhos, e entã o levanta a mã o para
se fazer notar.
Vê o relâ mpago amarelo e logo a seguir ouve o tiro.
Rex vacila e ouve o eco ressoar na encosta da montanha. Os
arbustos atrá s dele sã o atravessados por um rumor, alguns ramos
quebram-se, depois ouvem-se os ruı́dos surdos de alguma coisa a cair
ao chã o.
Da sua posiçã o elevada, James aproxima-se a correr, curvado,
depois ajoelha-se e faz pontaria outra vez.
Rex volta-se e descobre uma grande rena. Está a tentar levantar-se,
o sangue sai-lhe em golfadas do peito. O animal está sem forças, volta a
cair de lado e enterra-se no meio dos grandes arbustos. Sacode as patas,
enquanto os grandes chifres se prendem nos ramos mais densos e o
pescoço ica torcido de uma forma estranha.
O animal bufa e muge, luta para se levantar esticando o pescoço.
Ouve-se outro disparo, e a enorme cabeça é empurrada para trá s,
enquanto o corpo cai ao chã o a tremer.
James desce a correr pela encosta em direçã o a Rex e ao animal.
Algumas pedras movem-se em volta dos seus pé s e começam a rolar.
– O que é que está s a fazer, caraças? – grita Rex. – Ficaste
completamente doido?
Sente a agitaçã o crescer na sua pró pria voz, mas nã o consegue
controlar-se. James para, com a respiraçã o ofegante; tem as pupilas
dilatadas e o lá bio superior coberto de suor.
– Enlouqueceste? – repete Rex.
– Abati uma rena – limita-se James a responder.
– Podias ter atingido o meu ilho – grita Rex, levantando uma mã o.
– Você s estã o na minha zona – replica James, com indiferença.
Uma rajada de vento atinge-os, depois começa a cair uma chuva
intensa. As copas do bosque de bé tulas começam a farfalhar, e as gotas
abatem-se no chã o ao longo da encosta do monte.
Quando a chuva começa a cair sobre eles, um estrondo
ensurdecedor propaga-se pelo cé u. Voltam-se ambos.
Por cima das suas cabeças, um foguete de sinalizaçã o vermelho
atravessa as nuvens de temporal. Vira de lado e depois cai lentamente,
quase como se estivesse a desaparecer no fundo de um mar opaco.
102
O temporal alcançou-os e o vento agride-os com rajadas violentas e
bá tegas ofuscantes de chuva.
Quando chegam ao ponto de onde partiu o foguete, Rex descobre o
ilho. Está sentado e encolhido contra o tronco de uma á rvore
juntamente com DJ. As roupas de caça de ambos estã o completamente
encharcadas e a chuva escorre-lhes pelas faces.
– Sammy – grita Rex, a correr em direçã o ao rapaz. – O que
aconteceu? Desapareceste, e eu…
– Escuta – diz DJ, levantando-se. A á gua escorre-lhe da barba loira
pelo casaco e tem os olhos azuis injetados de sangue. – Houve um
acidente… O Kent morreu, caiu no des iladeiro… – Mas o que é que tu
está s a dizer? – grita James, debaixo da chuva torrencial.
– Morreu – grita DJ. – Nã o há mais nada a fazer.
O temporal muda de direçã o, empurrado pelas rajadas intensas. As
roupas dos homens do grupo incham e abanam em volta dos corpos.
– O que é que aconteceu? – pergunta Rex, ofegante.
– A beira é muito perigosa – diz DJ, com os olhos brilhantes. – Se
calhar nã o viu o precipı́cio…Talvez atravé s do mapa nã o tivesse
percebido onde se encontrava.
– Sammy! – exclama Rex. – Desapareceste…
O ilho olha para ele e depois volta a virar a cabeça.
– Caiu – diz o rapaz, com um io de voz.
– Viste-o?
– Está lá em baixo – indica.
Rex e James aproximam-se cautelosamente da beira e olham para
baixo. A chuva desliza-lhes ao longo do pescoço e pelas costas abaixo,
en iando-se nas calças.
– Tenham cuidado – avisa DJ atrá s deles.
No meio da chuva intensa é difı́cil perceber onde acaba o terreno.
Aproximam-se lentamente da beira e veem abrir-se o des iladeiro
profundo. O vento agarra a roupa de James, fazendo-o a vacilar uns
passos para a frente antes de recuperar o equilı́brio.
Rex avança com prudê ncia, tenta encontrar um equilı́brio está vel
com as botas e agarra-se aos arbustos compactos para se debruçar
sobre a beira.
A princı́pio nã o vê nada. Semicerra os olhos e limpa a chuva que lhe
escorre pelo pescoço. O seu olhar percorre á rvores, pedras, troncos e
arbustos. Depois descobre Kent. O corpo jaz a cerca de quarenta e cinco
metros mais abaixo, ao lado da parede do precipı́cio.
– Ainda se mexe – grita James, ao lado dele. – Vou descer até lá
abaixo, tenho de conseguir.
Rex pega nos binó culos, mas para poder levá -los aos olhos tem de
largar o arbusto. Afasta-se de lado sobre a rocha e encosta os binó culos
ao rosto.
O precipı́cio ı́ngreme di iculta-lhe a visã o. Aproxima-se, debruça-se
e descobre uma massa esverdeada. Subitamente, o terreno move-se
debaixo dos seus pé s. Rex agarra-se aos ramos e cai para trá s ao mesmo
tempo que uma placa de musgo e terra comprimida desliza para alé m
da margem e se precipita no des iladeiro.
– Meu Deus – murmura.
O corpo treme-lhe de susto e o seu coraçã o bate ainda loucamente
quando ergue de novo os binó culos, se estica para a frente e regula a
focagem. Apesar de a á gua escorrer sobre as lentes, agora vê
claramente o corpo.
No ponto em que se abateu, e um pouco mais acima, o sangue já foi
quase completamente apagado pela chuva.
Kent está entalado numa fenda: o pescoço deve ter-se partido, uma
vez que a cara está virada para trá s, e tem uma perna dobrada para
cima num â ngulo pouco natural.
Está seguramente morto.
– Temos de chamar um helicó ptero de socorro – grita James, com os
olhos reduzidos a duas issuras sombrias devido ao pâ nico.
– Morreu – diz Rex, e baixa os binó culos.
– Vou descer.
– E demasiado perigoso – grita DJ atrá s deles.
– Vai à merda – murmura James, e depois agacha-se junto da beira.
Lawrence chega, ofegante. Tem os ó culos molhados e fez uma ferida
ao bater em alguma coisa: o tecido pesado das calças está ensopado de
sangue à altura da coxa. Na sua densa barba grisalha en iaram-se
agulhas e minú sculos ramos.
– O que é que aconteceu? – pergunta, arquejante, tentando tirar a
á gua dos olhos.
– O Kent caiu no precipı́cio – responde James.
– E grave?
– Está morto – diz DJ.
– Nã o podemos ter a certeza – grita James, dominado por uma
grande agitaçã o.
– Nã o pode ter sobrevivido à queda – explica DJ a Lawrence,
indicando o precipı́cio.
– Está morto – con irma Rex.
– Cala-te – grita histericamente James.
– Ouçam – diz DJ, levantando a voz. – Vamos regressar ao hotel e
pedir ajuda.
Lawrence afasta-se a abanar a cabeça, senta-se numa pedra com a
espingarda em cima dos joelhos e manté m o olhar ixo à sua frente.
James continua imó vel, com os lá bios pá lidos da raiva e do choque.
– Eu sabia – murmura de si para si.
– Mas agora já nã o podemos fazer nada por ele – diz DJ. –
Precisamos de um telefone.
Rex aproxima-se do ilho e põ e-se de có coras à frente dele, cruzando
inalmente o seu olhar.
– Vamos regressar ao hotel – diz-lhe com ternura.
– Sim, obrigado – murmura Sammy, assentindo.
DJ tenta chamar os outros dois homens à razã o, mas eles nã o lhe
respondem.
– Eu percebo que parece uma coisa terrı́vel abandoná -lo lá em baixo
– prossegue. – Mas temos de pedir ajuda o mais depressa possı́vel.
Sammy levanta-se e Rex ampara-o. DJ indica-lhes a direçã o que
devem seguir para se afastarem do precipı́cio, e entã o pai e ilho
começam a andar.
– Venham – grita DJ. – Com certeza que nã o queremos que haja mais
dois acidentes.
Os dois homens olham para ele, depois começam a caminhar
lentamente. O grupo desloca-se ao longo da encosta do monte e desce
na diagonal para o vale, em direçã o ao hotel e ao Torneträ sk.
– Que caraças, isto é uma loucura – diz James.
A chuva continua a cair com força e a roupa pesa-lhes no corpo.
– Nã o podemos ir para casa? – diz Sammy.
– Lamento muito que tu tenhas sido forçado a assistir a um episó dio
do gé nero – desculpa-se Rex, e volta-se para os outros.
Vê os trê s homens no meio da cortina de chuva. Em cada fosso ou
depressã o formam-se poças, e o terreno parece ferver. As pedras,
atingidas com violê ncia pela chuva, parecem envolvidas por uma densa
luz branca.
– Cuidado para nã o escorregares – diz Rex a Sammy.
– Eu vi-o cair – sussurra o ilho. – Cheguei pelo lado… Aconteceu
antes de começar a chover, tã o depressa que… Caraças, nã o percebo.
– Era melhor nã o ter vindo à caça – diz Rex, sentindo a garganta
apertar-se-lhe com uma intensa angú stia. – Eu acho sempre que tenho
de fazer um monte de coisas, mas nã o sou caçador, e devia ter deixado
isso bem claro desde o inı́cio.
– Es demasiado simpá tico – diz Sammy, com um tom de voz que
denota um grande cansaço.
– Devı́amos ter esperado no hotel – prossegue Rex, afastando um
ramo. – Ficá vamos ali a cozinhar, como tu querias.
– A mã e disse-me que eu nã o estava nos vossos planos, aliá s…
– Escuta – diz Rex. – Eu era incrivelmente imaturo quando nos
conhecemos. Nã o tinha nenhum projeto de ser pai, e era como se
tivesse começado a viver naquela altura.
– Querias que a mã e abortasse? – pergunta o ilho.
– Sammy, tudo mudou quando eu te vi… quando percebi realmente
que tinha um ilho.
– A mã e sempre tentou convencer-me de que tu gostas de mim, mas
que nã o o consegues demonstrar.
– Sempre repeti para mim mesmo que ia estar sempre ao teu lado
nos momentos difı́ceis, mas nunca o iz – diz Rex, engolindo em seco
com di iculdade. – Nunca estive perto de ti.
Fica em silê ncio, porque sente que a sua voz está prestes a quebrar-
se. Tenta ganhar fô lego e recuperar a calma.
– Quero que a tua mã e aceite o lugar em Freetown e que tu venhas
viver comigo, a sé rio… Como é justo que seja – acrescenta por im.
– Eu sei desenrascar-me sozinho – rebate Sammy.
Rex deté m-se e tenta olhar o ilho nos olhos.
– Sammy – diz. – Tu sabes que eu gosto imenso de te ter em casa
comigo, nã o sabes? Já deves ter dado conta disso. Foram os melhores
momentos da minha vida: quando cozinhá mos juntos, quando tocá mos
guitarra…
– Pai, nã o é s obrigado… – replica Sammy.
– Mas eu gosto muito de ti – prossegue Rex, com a voz a tremer. – Es
meu ilho, sinto-me orgulhoso de ti e é s a ú nica coisa no mundo que me
importa realmente.
103
Todo o vale que desce para o Torneträ sk desapareceu debaixo da
chuva. E quase como se a igreja e o velho cemité rio dos operá rios do
caminho de ferro nunca tivessem existido: o mundo é um espaço
cinzento desprovido de profundidade.
Rex e Sammy tê m a roupa encharcada e gelada quando inalmente,
atravé s da chuva densa, vislumbram os contornos do hotel iluminado.
DJ, James e Lawrence já os ultrapassaram há bastante tempo, ao
nı́vel do portã o da reserva. Os trê s homens tinham ido à frente, a um
ritmo regular, e desapareceram ao longo da vereda alagada.
A meio do caminho, Sammy fez uma entorse. O pé inchou-lhe, e na
ú ltima parte do trajeto foi a mancar, apoiando-se ao ombro de Rex.
– Pai, espera – diz Sammy, parando ao pé da escadaria da varanda.
– Dó i-te?
– Nã o é isso… Preciso de te dizer uma coisa, antes de entrarmos…
Eu vi o Kent a cair, mas na verdade pareceu-me que saltou.
– Se calhar foi isso – diz Rex.
– E mais uma coisa… Apesar de eu só o ter visto durante um
segundo antes de desaparecer…Tive tempo de ver o lenço vermelho a
levantar-se no ar.
– Mas…
– Nã o tinha lenço nenhum, pois nã o?
Sobem as escadas em silê ncio, atravessam a entrada e chegam ao
lobby amplo a tentar perceber como tinha sido possı́vel que Kent
estivesse a sangrar antes de cair.
Se calhar aproximou-se do precipı́cio e disparou contra ele mesmo,
pensa Rex.
No chã o de pedra do lobby notam-se as pegadas molhadas dos
outros. As espingardas e o resto do equipamento foram abandonados
em cima da mesa, em frente à lareira.
DJ está no lobby a levantar as almofadas dos sofá s e das poltronas.
– Pediram ajuda? – pergunta Rex.
DJ observa-o com um olhar sombrio.
– Os telemó veis desapareceram – murmura.
– Nã o, deixá mo-los na receçã o – replica Rex.
– Nesse caso, devem ter caı́do – diz DJ, en iando-se atrá s do balcã o.
– Há mais hó spedes no hotel, para alé m de nó s? – pergunta Sammy.
Rex abana a cabeça e, com um arrepio, vira-se para a janela. A
chuva bate nos painé is e escorre ao longo das janelas.
– O que é que fazemos? – pergunta Sammy.
– Tu vais ter de vestir uma roupa seca – diz Rex.
– Ah, isso sim, isso resolve todos os problemas – replica Sammy, e
dirige-se ao quarto.
– Aqui nã o estã o – murmura DJ, enquanto procura no meio das
folhas de registo.
– Nã o temos um telefone ixo? – pergunta Rex.
– Nã o… e para os computadores é precisa uma password – diz DJ,
com um io de voz.
– Eu tenho um iPad na mala – exclama Rex, lembrando-se de
repente. – Achas que há alguma ligaçã o à Internet, aqui?
– Tenta – diz DJ, continuando a procurar debaixo do balcã o.
– OK – suspira Rex, e depois olha na direçã o em que Sammy
desapareceu.
DJ para e observa-o.
– E por causa do Sammy?
– Eu estou a esforçar-me o mais possı́vel, eu… é uma confusã o de
emoçõ es, mas percebo que para ele seja difı́cil con iar e acreditar que,
sem mais nem menos, eu decidi ser pai dele, ao im de todos estes
anos… Vou ser para sempre apenas aquele que o enganou.
Rex ica em silê ncio, depois percorre o corredor e desabotoa o
casaco enquanto se dirige à suı́te.
Quando abre a porta, parece-lhe ouvir algué m a respirar fundo.
Talvez seja o vento que cria uma espé cie de baixa pressã o em certos
aposentos, pensa, enquanto tira as botas na entrada escura.
Atravessa a passagem estreita e entra na sala, depois despe o
casaco e atira-o ao chã o. Apercebe-se entã o da presença de um homem,
no canto, atrá s do candeeiro de pé .
O abat-jour cor de tabaco esconde o rosto do intruso, mas a luz
té nue re lete-se sobre a lâ mina tré mula de uma faca de caça.
– Fica onde está s – ordena uma voz atrá s dele.
Rex volta-se. James Gyllenborg tem a espingarda de caça apontada
a ele.
– Nada de movimentos bruscos – diz. – Deixa-me ver as tuas mã os,
devagar.
– O que é que você s estã o…
– Eu dou-te um tiro. Dou-te um tiro na cara – grita James.
Rex mostra-lhe as mã os vazias, a tentar perceber o que está a
acontecer.
– Mata-o – sussurra Lawrence, do canto atrá s do candeeiro.
– Onde está a tua espingarda? – pergunta James, avançando com o
cano da arma em direçã o a ele.
– Deixei-a no bosque – responde Rex, e entretanto tenta parecer o
mais calmo possı́vel.
– E a faca? – sibila Lawrence. – Onde está a faca?
– No cinto.
James avança um passo e observa-o com um olhar alucinado.
– Abre a ivela e atira-a ao chã o.
– Dá -lhe mas é um tiro – sibila o outro, a bater com os pé s no chã o
de impaciê ncia.
– Estou a desapertar a ivela – diz Rex, com prudê ncia.
– Se izeres alguma coisa estranha, morres – adverte-o James,
encostando-lhe a espingarda ao ombro. – Juro que te dou um tiro. Estou
mesmo com uma grande vontade de te dar um tiro.
– Foi ele que matou o Kent – diz Lawrence, em voz mais alta.
– Nã o façam disparates – implora Rex.
– Cala a boca – berra James.
Rex desaperta a ivela, e o peso da faca faz sair o cinto das presilhas,
arrastando-o para o chã o ao longo da sua perna.
– Empurra-a para mim – ordena James.
Rex dá um pontapé à faca, que no entanto rola sobre a alcatifa
apenas um metro antes de parar.
– Outra vez – diz James, bruscamente.
Rex avança com calma e dá um pontapé à faca, que vai parar ao
lado da poltrona.
– Volta para trá s e ajoelha-te – diz James.
Rex obedece: recua alguns passos e põ e-se de joelhos.
– Dispara já – repete Lawrence. – A direito, na testa.
– Parece que você s estã o convencidos de que eu tenho alguma coisa
a ver com a morte do Kent – começa Rex.
James dá um salto em direçã o a ele e atinge-o no rosto com a
coronha da espingarda, que lhe bate por cima da sobrancelha esquerda.
Rex sente um choque ao longo do pescoço e, durante alguns
segundos, a vista ica ofuscada. Depois cai de lado, com a ferida a arder
e a latejar.
– Estavas na nossa zona – grita James, encostando-lhe o cano à
tê mpora. – Eu dou-te um tiro, percebes? Nã o quero saber do que é que
vai acontecer…
– Dispara, imediatamente! – grita Lawrence, com uma voz
cavernosa.
– Andava à procura do Sammy – geme Rex.
– Onde raio estã o os nossos telefones? – pergunta James,
empurrando-lhe a arma contra a cabeça com mais força.
– Nã o sei, nã o lhes toquei – responde Rex rapidamente. – Mas tenho
um iPad na mala, ao pé da cama, podemos mandar um pedido de
socorro.
– Cala a boca – vocifera James. – Sabes perfeitamente que nã o há
rede aqui…
A porta do corredor abre-se e algué m entra, detendo-se no
pequeno vestı́bulo.
– Pai? – diz Sammy, voltado para a suı́te na penumbra.
– Vai chamar o DJ – grita Rex, antes de ser atingido por uma
segunda pancada.
Cai de costas, levanta a cabeça e apercebe-se de que Lawrence já
chegou à entrada.
– Sammy – diz Rex, arquejante.
Lawrence agarra o rapaz pelos cabelos, arrasta-o com ele por cima
das botas e dos sapatos e agride-o no rosto com o cabo da faca. Depois
empurra-o para o chã o, de barriga para baixo, encavalita-se em cima
dele, vira-lhe a cabeça para trá s e encosta-lhe a lâ mina ao pescoço.
James está com a respiraçã o ofegante, fecha a boca e humedece os
lá bios antes de se pô r de pernas abertas sobre Rex, apontando-lhe a
espingarda à testa.
– Já chega – diz. – Percebeste? Já chega, acabou. Nã o podes acertar
as contas vingando-te, nã o podes mudar nada.
O cano vibra terrivelmente e James trava-o apertando-o contra o
rosto de Rex.
– Nã o sabı́amos o que está vamos a fazer – prossegue James. –
Aconteceu e pronto. Mas percebemos que errá mos. Nã o é ramos má s
pessoas, mas apenas uns estú pidos.
– Nã o tens de pedir desculpa – grita Lawrence, voltado para James.
– O que foi que você s izeram? – pergunta Rex, arquejante.
– Estou a dizer que eu sozinho nunca teria violado ningué m… mas
aquilo nã o era eu, era o Wille… E toda aquela escola do caralho fazia de
conta que nã o se passava nada, nó s sabı́amos, ningué m se importava
com aquilo que nó s fazı́amos na Toca do Coelho.
– Está s a falar da Grace – diz Rex.
– Dispara, já ! – vocifera Lawrence.
James faz rodar a espingarda e atinge repetidamente Rex no rosto,
arrancando-lhe um gemido. A cada pancada, o quarto desaparece da
sua vista, depois volta a aparecer desfocado para desaparecer outra vez,
logo a seguir.
– Pai!
Rex ouve os gritos de Sammy antes de ser atingido novamente, mas
é como se tudo estivesse a acontecer noutro mundo. Dó i-lhe a boca e
um olho.
Está a enterrar-se nas trevas, tenta resistir, mas perde os sentidos.
Quando acorda, a cabeça rebenta-lhe de dor. Tem o rosto coberto de
sangue pegajoso e as feridas ardem-lhe. Como num sonho, vê os dois
homens a rasgar tecido e a amarrar-lhe os braços atrá s das costas.
Ouve-os remexer-lhe na mala e percebe que andam atrá s dos
telemó veis.
104
Quatro agentes de segurança da Timberline Knolls Residential
Treatment Center levaram Saga Bauer até ao portã o, onde icaram à
espera do carro da Polı́cia. Contaram a histó ria da intrusã o aos polı́cias
que tomaram conta dela.
Saga deixou-se cair num banco na cela da decré pita esquadra da
Polı́cia de Lemont, sem poder falar com ningué m.
De tarde, transferiram-na para uma sala de interrogató rios sem
janelas. Nã o foi ainda autorizada a fazer telefonemas, mas uma agente
tomou nota, com uma paciê ncia eivada de sarcasmo, de todos os nomes
e contactos que Saga lhe referiu.
Ao im da tarde, emergiu mais claramente a possibilidade de ela
estar a falar verdade, e entã o os polı́cias envolveram o FBI no processo.
No entanto, como o quartel-general de Roosevelt Road já estava
fechado, levaram-na outra vez para a cela e puseram-na a dormir em
cima de um colchã o de espuma.

As dez horas da manhã , a supervisory special agent Jocelyn Ló pez


entra na cela. Percebe-se até pelo cheiro que já bebeu demasiado café e,
como é desde logo evidente para Saga, consegue ser bem mais azeda do
que tinha sido no primeiro encontro.
– Gostou do hotel? – pergunta, encaminhando a agente da Sä po
para fora da cela.
– Nã o particularmente.
Saem da esquadra da Polı́cia em silê ncio e entram no Pontiac
metalizado de Ló pez.
– Preciso de um telefone – diz Saga.
– Para ligar ao chefe? – pergunta Ló pez, enquanto põ e o carro a
trabalhar.
– Sim.
– Eu já falei com ele, e por diversas vezes.
– Entã o sabe que eu preciso de fazer um telefonema.
– Esqueça.
– E importante.
– OK, Bauer, você s, suecos, até podem ser bonitos, mas nã o sã o
particularmente perspicazes, pois nã o?
Saga nã o faz ideia de como as vá rias forças da Polı́cia resolveram o
incidente, mas é evidente que, do lado sueco, algué m garantiu que ela
vai regressar a casa sem criar mais problemas.
Ló pez acompanha Saga Bauer até ao terminal 1 do aeroporto
internacional O’Hare, agradece-lhe pela colaboraçã o e espeta-lhe no
blusã o um enorme al inete com a imagem de uma cebola sorridente e a
frase: «My Kind of Town.»
A responsabilidade de fazer regressar Saga à Sué cia é depois
transmitida a um agente aeroportuá rio fardado. E um sujeito bem-
humorado e ica ao lado dela durante o check-in, a contar-lhe que era fã
de uma sé rie televisiva sobre os vikings.
As ilas para os controlos de segurança sã o interminá veis. Ao im de
quarenta minutos, percorreram apenas metade. O agente recebe uma
chamada via rá dio, responde e lança um olhar em direçã o à s escadas
rolantes, depois volta-se novamente para Saga.
– Tenho de ir, mas vai conseguir, o seu aviã o parte daqui a quatro
horas… Coma um hambú rguer e mantenha-se atenta aos ecrã s para
saber qual é a porta.
O agente volta para trá s, a abrir caminho por entre os passageiros
na ila, e entretanto fala atravé s do transmissor-recetor.
Saga continua a seguir a longa ila.
O seu telemó vel foi destruı́do, e nã o sabe se Joona tem notı́cias
sobre Rex e Oscar.
Talvez mais pessoas tenham morrido desde que foi impedida de
fazer a Grace as perguntas mais importantes.
Vai regressar à Sué cia em breve e nã o vai criar mais problemas,
mas agora tem de voltar à clı́nica, arranjar um telefone e pô r-se em
contacto com Joona.
Durante a violaçã o, aconteceu alguma coisa que Grace nã o lhe
contou.
Na Toca do Coelho estava presente mais algué m, um indivı́duo que
eles ainda nã o conheciam.
Será que era ele o assassino?
Saga pede desculpa e percorre a ila em sentido contrá rio. Põ e o
saco ao ombro, atravessa a zona das partidas em direçã o à s portas mais
afastadas das escadas rolantes, e depois desce para a zona das
chegadas.
Os olhos do homem do balcã o de aluguer de automó veis, ao vê -la
regressar, emanam uma cintilaçã o de esperança, como se um sonho
acordado se tivesse tornado realidade.
– Esquece – diz Saga, antes que ele possa abrir a boca.
Aluga um Ford Mustang semelhante ao do dia anterior e atira a
bagagem para o banco de trá s, depois senta-se ao volante e arranca em
direçã o à clı́nica.
A luz cinzenta é impiedosa com os subú rbios de Chicago: o seu
papel indispensá vel dentro daquela colossal engrenagem citadina é
revelado sem ingimentos.
Os portõ es de Timberlane Knolls estã o abertos. Saga passa a
guarita e estaciona no parque das visitas.
Sem se apresentar na receçã o, corta rapidamente caminho pelo
meio dos edifı́cios principais, atravessa o relvado onde há nã o muito
tempo se introduziu ao abrigo das trevas, passa diante do atelier e
continua em frente.
Abre as portas da entrada, chega rapidamente à sala de estar onde
algumas pacientes estã o a almoçar e avança rapidamente pelo corredor.
Bate à porta de Grace e entra sem ser convidada a fazê -lo.
Grace está em pé , de costas para a porta, exatamente como da
primeira vez, a observar o esplê ndido rododendro nas traseiras do
edifı́cio.
Quando se aproxima, Saga sente estalar debaixo dos seus pé s
pedaços de porcelana e vê alguma terra caı́da de um vaso. O frasco
branco dos medicamentos está no chã o, ao lado dos pé s da mulher.
– Grace – diz Saga, com delicadeza.
A mulher bafeja sobre o vidro da janela e cria um halo de
condensaçã o. Fá -lo desaparecer com um dedo, e depois bafeja outra
vez.
– Podemos falar? – pergunta Saga, aproximando-se.
– Hoje nã o me sinto muito bem – diz Grace, voltando-se com receio.
– Acho que tomei trê s, e devia dormir…
– Trê s comprimidos sã o demasiados? – pergunta Saga.
– Sim – responde a senhora, a rir.
– Entã o vou chamar um mé dico.
– Nã o, dã o-me só um pouco de sonolê ncia – murmura Grace.
A mulher abre a mã o magra e observa as cá psulas cor-de-rosa,
depois pega numa e leva-a à boca, mas Saga impede-a delicadamente.
– Acho que já chega – diz.
– Sim.
– Nã o quero que ique incomodada – começa Saga. – Mas quando
vim aqui, no outro dia, falou-me da Toca do Coelho, daquilo que aqueles
rapazes lhe izeram.
– Sim – repete Grace, com um io de voz.
– Aconteceu mais alguma coisa, na Toca?
– Bateram-me, desmaiei vá rias vezes e…
Grace ica em silê ncio, os dedos tré mulos brincam com os botõ es da
camisola.
– Desmaiou… mas tem a certeza de que todos participaram na
violaçã o?
Grace assente, depois tapa a boca como se estivesse prestes a
vomitar.
– Quer que peça ajuda? – pergunta Saga.
– As vezes tomo cinco comprimidos – responde Grace.
Olha para fora e passa um dedo sobre a condensaçã o, produzindo
um ligeiro ruı́do. Saga vê duas mulheres vestidas com as batas brancas
do pessoal mé dico que se aproximam ao longo do caminho, à direita.
– Grace? Disse que tinha a certeza de que participaram todos, mas…
– Lembro-me de tudo – interrompe-a a senhora, com um sorriso. –
De todos os grã os de pó no ar…
– Lembra-se do Rex?
– Foi o pior de todos – diz Grace, olhando-a com os olhos quase
fechados.
– Tem a certeza? Viu-o?
– Foi o Rex que me levou para ali… eu con iava nele, mas…
Grace apoia a face à parede, fecha os olhos e parece sufocar um
vó mito.
– Levou-a do dormitó rio até ao clube?
– Nã o, tinham dito que ele ia chegar mais tarde.
– E chegou?
– Alguma vez sentiu o fedor de uma toca de coelho? – pergunta
Grace, aproximando-se da poltrona. – E só uma pequena abertura no
solo, mas por baixo dela desenrola-se um labirinto de galerias escuras.
– Mas nã o viu o Rex, pois nã o?
– Empurraram-me, porque ningué m queria esperar… Ululavam,
andavam para trá s ao longo das paredes, tinham en iado umas longas
orelhas brancas…
Pousa as mã os no encosto da poltrona e vacila para a frente, quase
como se estivesse prestes a adormecer a meio do raciocı́nio.
– Quer deitar-se na cama?
– Nã o, estou bem, sã o só os comprimidos.
Lentamente, dá a volta à poltrona e tenta sentar-se, mas como nã o
tem espaço para se enroscar levanta-se outra vez.
Saga ouve algué m bater à s portas mais afastadas, depois escuta um
murmú rio de vozes alegres, e entã o percebe que começou a hora da
visita naquele setor.
– Grace, aquilo que eu estou a tentar dizer-lhe é que a memó ria é
um mecanismo complicado, à s vezes as pessoas convencem-se de que
se lembram de certas coisas porque as repetiram vezes sem conta…
Como é que reagiria se eu lhe dissesse que o Rex nã o estava lá , porque…
– Estava lá – interrompe-a Grace, levando nervosamente uma mã o
ao pescoço. – Eu vi… Eu vi logo que tinham os mesmos olhos.
– Os mesmos olhos?
– Sim.
– A Grace… teve um ilho – murmura Saga, e um arrepio percorre-
lhe a espinha quando percebe que o desconhecido ligado à Toca do
Coelho, de quem Joona tinha falado, é precisamente esse ilho.
– Eu tive um ilho – diz Grace, com um io de voz.
– E acha que o Rex é o pai? – pergunta-lhe Saga, a abanar a cabeça.
– Sei que é ele – responde a mulher, a limpar uma lá grima. – Mas
nã o contei nada ao meu pai nem à minha mã e… Fiquei trê s semanas no
hospital, disse que tinha sido atropelada por um camiã o e que só queria
poder regressar a Chicago…
Vacila de novo, mantendo uma mã o à frente da boca.
– Eu… Talvez devesse descansar – murmura para si mesma.
– Eu ajudo-a a meter-se na cama – diz Saga, acompanhando-a
lentamente até ao outro lado do quarto.
– Deu à luz sozinha?
– Quando percebi que tinha chegado a hora, fui até ao celeiro para
nã o espalhar sangue por todo o lado – conta, exausta, com os olhos
fechados. – Diziam que eu me tinha tornado psicó tica, mas para mim
aquela era a realidade… Tinha-me escondido para sobreviver.
– E a criança?
– A minha mã e e o meu pai iam voltar para passar fé rias e por isso
ele tinha de se arranjar sozinho. Eu escondia-o numa gaiola… porque
era obrigada a estar em casa, a sentar-me à mesa e a dormir na minha
cama.
Grace arrasta-se com di iculdade até à beira da cama, deixando cair
ao chã o a almofada lorida. Estende-se molemente de lado, abre a
gaveta da mesinha de cabeceira e en ia lá dentro a mã o, fechando os
olhos por um instante. Depois de ter recuperado forças, agarra numa
fotogra ia emoldurada e estende-a a Saga.
A foto retrata um jovem de cabelo rapado a itar a objetiva. Veste
um camu lado cor de areia e um colete à prova de bala, e tem uma
MK12 ao lado da perna.
E ele o desconhecido da Toca do Coelho.
O homem da fotogra ia tem o nariz e a pele por baixo dos olhos
queimados pelo sol.
No ombro tem pregado um distintivo oval de tecido preto e
amarelo com um falcã o, uma â ncora, um tridente e uma pistola de
percussã o, e a frase «Seal Team Three».
E o corpo especial mais bem preparado da marinha americana. O
treino transforma os soldados numa combinaçã o letal de paraquedistas
e mergulhadores militares.
– E o seu ilho?
– O Jordan – diz Grace, com um suspiro, de olhos fechados.
– O Rex conhece-o?
– O quê ? – exclama Grace, a respirar com di iculdade, e tenta
sentar-se na cama.
– Sabe que teve um ilho dele?
– Nunca, nunca deverá saber – diz a mulher, com o queixo e a boca a
tremer tã o violentamente que quase nã o consegue falar. – Nã o tem
nada a ver com o Jordan, ele violou-me, foi a ú nica vez… Nunca deverá
encontrar-se com o Jordan, nunca deverá vê -lo… Seria tremendo,
revoltante…
Cai sobre a almofada a apertar as duas mã os sobre o rosto, abana a
cabeça e depois ica imó vel.
– Mas, se o Rex nã o estava presente… – diz Saga, mas depois cala-se
quando se apercebe de que Grace está a dormir.
Saga tenta acordá -la, mas nã o consegue. Senta-se na beira da cama
e controla-lhe o pulso, escutando a sua respiraçã o regular.
105
DJ senta-se pesadamente numa das poltronas do lobby e apoia a
nuca ao encosto de cabeça. A chuva bate no telhado e nas janelas. Em
cima da mesa à frente dele estã o trê s das cinco espingardas de caça.
O seu coraçã o está demasiado agitado e sente o corpo tremer,
eletrizado. Tem o pescoço esticado, como se algué m lho estivesse a
apertar com uma dentada. Os batimentos acelerados fazem subir à
superfı́cie as correntes profundas da narcolepsia.
Desativou todos os telemó veis, o router e todos os computadores
do hotel.
Tenta pensar de uma forma estraté gica e pergunta a si mesmo se
haverá mais preparativos para ultimar, mas todos os pensamentos sã o
fragmentados por fantasias bizarras.
DJ tinha pensado eliminá -los a todos dentro da reserva, mas devido
ao sú bito temporal apenas conseguiu realizar os seus propó sitos com
um deles.
Tinha icado na beira do precipı́cio ı́ngreme a observar a chuva que
caı́a sobre o vale.
Ao im de dezanove minutos, Kent Wrengel já lhe tinha pedido para
o poupar pelo menos cem vezes, e quase outras tantas tinha jurado que
estava inocente.
DJ nã o se encarniçou excessivamente sobre ele, só lhe en iou a faca
de caça na barriga, por cima da anca, segurando o corpo tré mulo do
homem sobre a borda profunda do des iladeiro.
Ficou imó vel, a segurar a faca espetada no ventre de Kent e a
explicar-lhe as razõ es daquilo que estava a acontecer.
O homem resfolegava freneticamente enquanto o sangue lhe enchia
o abdó men e depois começava a jorrar da ferida, escorrendo-lhe ao
longo das pernas.
DJ virou a lâ mina da faca para cima, de forma a que, quando Kent se
abandonava ao cansaço e estava prestes a escorregar para o chã o, a
lâ mina lhe penetrasse mais profundamente no abdó men.
Perto do im, Kent sofreu horrivelmente: os joelhos cederam vá rias
vezes, e a lâ mina insinuou-se até à s costelas.
O sangue encheu-lhe as botas e começou a deslizar pelo precipı́cio.
– E agora que a corda do papagaio rebenta – disse DJ, extraindo a
faca. Com o olhar ixo nos olhos de Kent, fez força com ambas as mã os
sobre o peito e empurrou-o para o des iladeiro.
DJ passa uma mã o pela boca e lança um olhar em direçã o ao
corredor que dá acesso aos quartos, depois observa a mesa à sua frente
e começa a descarregar as espingardas. Abre o trolley pousado no chã o
ao lado dos seus pé s e deixa cair os cartuchos no bolso de dentro, ao
lado da roupa interior.
Chegou o momento de acabar com aquilo.
Primeiro Lawrence, ou talvez James, e Rex por ú ltimo.
Talvez consiga matar um deles antes que se desencadeie o inferno,
antes que comecem os gritos e a fuga atravé s dos corredores.
Mas o medo nunca deixou que os coelhos se salvassem.
Sabe que o seu pâ nico se traduz em percursos simples.
As mã os tremem-lhe enquanto monta o silenciador na pistola,
insere um carregador cheio, engata o travã o e volta a colocar a arma ao
lado do machado de cabo curto.
Se nã o forem ter com ele, vai ter ele de ir de quarto em quarto.
Pega na faca SOCP negra, limpa a gordura da lâ mina estreita e
veri ica se está su icientemente a iada.
Tinha apenas dezanove anos: devia sentir-se terrivelmente só e
assustada.
DJ nã o tem recordaçõ es dos seus primeiros anos, mas sabe que ela
deu à luz sozinha, mantendo-o escondido. Escondeu-o no celeiro. Na
sua primeira recordaçã o, está deitado por baixo de um cobertor, ao frio,
a comer feijõ es de lata.
Nã o faz ideia de quantos anos poderia ter nessa altura.
Durante a sua infâ ncia, a mente caó tica da mã e tornou-se parte
integrante da sua vida e da sua realidade.
O avô e a avó só regressaram de initivamente aos Estados Unidos
depois da longa missã o de Lyndon White Holland como embaixador na
Sué cia.
DJ tinha quase nove anos quando o avô o encontrou no celeiro.
Nessa altura falava um misto de inglê s e sueco, e nã o se considerava
de todo um ser humano.
Demorou algum tempo a habituar-se à s novidades.
A mã e foi tratada em casa com medicamentos potentı́ssimos, e a
maior parte do tempo deixava-se estar na cama com as cortinas
fechadas.
As vezes icava cheia de medo e começava a gritar, e noutras
ocasiõ es batia-lhe porque tinha deixado a porta aberta.
Outras vezes ele contava-lhe dos coelhos contra os quais tinha
disparado durante o dia.
Sentavam-se no chã o, atrá s da cama, a cantar aquela lengalenga até
que ela adormecia.
Alguns anos mais tarde, ele gravou-lha numa cassete, para que ela
pudesse ouvi-la sempre que se sentisse inquieta.
A mã e recusava-se sempre a falar do pai de DJ, mas uma vez, por
volta dos seus treze anos e depois que o tratamento foi alterado, falou-
lhe de Rex.
Aconteceu apenas uma vez em toda a sua infâ ncia, mas DJ ainda se
lembra perfeitamente daquelas poucas frases. Desde que era criança,
tinha-se agarrado a todas aquelas palavras, tinha construı́do mundos
inteiros de esperanças em volta daquilo que ela lhe tinha dito.
Descobriu que estavam apaixonados e que se encontravam à s
escondidas, como Romeu e Julieta, antes de ela regressar a Chicago.
DJ nã o percebia por que razã o ele nã o tinha ido atrá s dela.
A mã e respondeu-lhe que Rex nã o queria ter ilhos, e que alé m
disso ela lhe tinha prometido que nunca iria engravidar.
De inı́cio, DJ acreditou em tudo, mas depois convenceu-se de que
Grace tinha fugido para Chicago porque sentia vergonha do seu aspeto
depois do acidente com o camiã o.
DJ nã o sabe ainda onde teve origem a ideia de que Grace tinha sido
atropelada por um camiã o na Sué cia, porque nã o se lembra de ela
alguma vez lho ter contado.
Quando ele fez catorze anos, a mã e viu uma fotogra ia de Rex numa
reportagem da Vogue sobre os jovens chefs de Paris. Foi a correr ao
celeiro e tentou enforcar-se, mas o avô encostou uma escada à trave e
conseguiu cortar a corda antes que ela morresse.
Os pais de Grace internaram a ilha no serviço de psiquiatria do
BroMenn Medical Center, e nessa altura DJ foi mandado para a Military
Academy do Missouri, uma escola que aceitava rapazes muito jovens.
DJ sente algué m aproximar-se pelo corredor, e entã o esconde o
punhal debaixo da toalha.
Fecha a tampa do trolley com um pé e apoia-se ao encosto da
poltrona, perguntando a si mesmo qual dos trê s homens estaria a
trazer até ele o seu destino.
Uma recordaçã o atravessa-lhe a mente como uma explosã o: revê a
mã e a enroscar-se no chã o do celeiro, a apertar as mã os contra as
orelhas e a gemer de terror no momento em que um dos coelhos a que
apertaram o pescoço é atravessado por um fré mito, e depois recomeça
a correr.
DJ lembra-se de o ter capturado com um balde de plá stico verde.
En iou a mã o lá dentro, agarrou-o e depois pregou-o à parede. A mã e
começou a tremer da cabeça aos pé s e vomitou de medo, depois
desatou a gritar que nã o devia nunca permitir que os coelhos
entrassem.
106
DJ ouve passos no corredor e levanta os olhos; apó s um instante,
descobre Lawrence à luz de um dos candeeiros de parede. DJ faz-lhe um
rá pido sinal com a mã o, a pensar que dali a pouco aquele homem
andará a correr pelos corredores a segurar os intestinos com as mã os.
Lawrence está com ar de ter chorado uma noite inteira: tem os
olhos inchados e vermelhos, e traz ainda vestida a roupa molhada.
– Encontraste os telemó veis? – pergunta, a pestanejar
nervosamente.
– Nã o estã o em lado nenhum – responde DJ.
– Nó s achamos que foi o Rex que pegou neles – diz Lawrence, com a
voz carregada de tensã o.
– O Rex? – pergunta DJ. – Porque é que ele havia de fazer isso?
– E uma hipó tese nossa – responde Lawrence.
– Tua e do James? E uma ideia vossa?
– Sim – responde Lawrence, corando.
En ia-se atrá s do balcã o da receçã o e liga um dos computadores. A
chuva bate insistentemente contra o telhado e as grandes janelas
escuras. O temporal avança a retumbar por cima do bosque e da
encosta da montanha, recupera fô lego e regressa com renovada raiva.
Dois meses apenas depois da ú ltima missã o de DJ, o avô morreu e
deixou ao neto uma fortuna. A avó tinha desaparecido dois anos antes.
DJ foi ter com a mã e à clı́nica, mas ela nem sequer o reconheceu.
Tinha icado sozinho.
Naquele momento, decidiu ir à Sué cia para conseguir ao menos ver
o pai.
Rex era já um cozinheiro cé lebre, tinha participado em inú meros
programas de televisã o e publicado um livro de receitas e conselhos
sobre vinhos.
DJ fundou uma produtora, adotou o apelido de solteira da avó e
aproximou-se de Rex sem a mı́nima intençã o de lhe revelar que, de
acordo com aquilo que Grace lhe tinha contado, era ele o seu pai.
Mas, enquanto esperava por aquele primeiro encontro, a
inquietaçã o aumentou a ponto de lhe provocar um ataque de
narcolepsia na viela lú gubre que dava acesso à pastelaria Vetekatten.
Acordou no chã o e chegou ao encontro meia hora atrasado.
Fisicamente, nã o eram nada parecidos, com exceçã o do recorte dos
olhos.
DJ abordou Rex com uma proposta de negó cio, oferecendo-lhe um
contrato insensatamente vantajoso. Depois elaborou uma estraté gia
inovadora, e em menos de trê s anos conseguiu arranjar-lhe um espaço
durante o noticiá rio do domingo de manhã , para alé m de o transformar
no maior cozinheiro do paı́s e numa celebridade absoluta.
DJ tornou-se uma espé cie de empresá rio de Rex. Os dois
começaram a conviver també m na vida privada, e aos poucos tornaram-
se amigos.
Apesar de estar já seguro do facto de Rex ser seu pai, nã o resistiu à
tentaçã o de lhe tirar dois cabelos. Aproximou-se dele por trá s quando
estava sentado numa poltrona branca e arrancou-lhos com uma pinça.
Rex lançou um grito de dor, levantou uma mã o por cima da cabeça e
depois voltou-se. DJ limitou-se a rir, dizendo que os cabelos brancos o
irritavam.
Sem lhes tocar, en iou-os em dois sacos de plá stico e enviou-os de
seguida a duas empresas especializadas em testes de paternidade.
Os resultados nã o deixavam dú vidas: DJ tinha encontrado o pai.
Guardou a felicidade escondida no coraçã o.
– Nã o há rede – diz Lawrence, da receçã o.
– Tenta outro computador – sugere DJ.
Lawrence olha para ele, limpa o suor das mã os e aponta para fora
da janela.
– Daqui pode-se chegar a Bjö rkliden a pé ?
– Nã o ica a mais de vinte quiló metros – responde DJ. – Eu vou lá
logo que passe o temporal.
Durante toda a infâ ncia de David Jordan, Grace tinha sido tratada a
uma depressã o unipolar e a um comportamento de automutilaçã o.
Depois do ú ltimo encontro, em que ela nã o o tinha reconhecido, DJ
empenhara-se para que ela fosse transferida para uma clı́nica exclusiva,
a Timberline Knolls Residential Treatment Center. O mé dico
responsá vel interpretou o seu estado como sendo uma perturbaçã o de
stress pó s-traumá tico, e modi icou-lhe completamente a terapia.
Antes do dia de Açã o de Graças, DJ decidiu regressar a Chicago e
pedir à mã e autorizaçã o para revelar a Rex que era ilho dele.
Nem sequer sabia se ela ia entender as suas palavras, mas quando
entrou no quarto apercebeu-se imediatamente de que Grace tinha
mudado. Aceitou as lores, agradeceu-lhe e ofereceu-lhe chá , e depois
explicou-lhe que tinha adoecido por causa de um trauma psı́quico.
– Falaste ao terapeuta sobre o acidente? – perguntou DJ.
– O acidente? – repetiu Grace.
– Mã e, tu já sabes que tens uma doença… As vezes nem conseguias
tomar conta de mim, e eu tive de ir viver com a avó .
DJ apercebeu-se da sua expressã o estranha: parecia prestes a
precipitar-se de uma grande altura, enquanto ele lhe falava do teste de
ADN, da aproximaçã o ao pai e do facto de querer contar-lhe a verdade.
Com um leve tilintar, Grace pousou a chá vena no prato. Hesitante,
deixou correr a mã o pelo tampo da mesa e começou a contar-lhe aquilo
que tinha acontecido. De uma forma cada vez mais desconexa,
descreveu-lhe todos os detalhes da violê ncia de grupo, o desejo dos
rapazes de lhe fazerem mal, a dor, o medo e a perda de si mesma.
Mostrou-lhe uma fotogra ia de um colé gio fora de Estocolmo,
começou a balbuciar e, de uma forma cada vez mais confusa, referiu-lhe
os nomes de todos aqueles que tinham participado na agressã o.
DJ lembra-se perfeitamente: icou sentada com a mã o à frente da
boca e, a chorar, disse-lhe que ele era fruto de um estupro, e que Rex
tinha sido o pior dos seus carrascos.
Depois daquelas palavras, a mã e nunca mais conseguiu olhá -lo de
frente.
DJ tinha a sensaçã o de que o seu sobretudo tinha icado preso
numa enorme engrenagem que o atraı́a para si, para dentro de uma
má quina enorme.
– Nã o funciona nada, estamos isolados – diz Lawrence, com uma
voz tré mula.
– Talvez seja por causa do temporal – sugere DJ.
– Acho que vou já tentar chegar a Bjö rkliden.
– OK, mas abriga-te bem e tem cuidado quando chegares aos
rochedos – aconselha DJ, com calma.
– Nã o há problema – murmura Lawrence.
– Posso só mostrar-te uma coisa antes de saı́res? – diz DJ.
Levanta a ponta da toalha e agarra na faca plana, depois levanta-se
e esconde-a de lado enquanto se aproxima da receçã o.
107
Lawrence empurra os ó culos para cima do nariz e aproxima-se do
computador, como se trabalhasse na receçã o, depois encosta a barriga
ao balcã o e cruza o olhar de DJ.
– E difı́cil chegar até à estrada principal? – pergunta-lhe.
– Nã o sabes que caminho deves seguir – responde DJ, com um tom
de voz estranhamente sombrio. – Vou mostrar-te no mapa.
Em vez do mapa, DJ tira do bolso uma fotogra ia, pousa-a em cima
do balcã o e roda-a de forma a que Lawrence possa vê -la.
– A minha mã e – diz, com uma voz doce.
Lawrence estica-se para pegar na fotogra ia, mas quando reconhece
a rapariga retira de repente a mã o, como se se tivesse queimado.
No mesmo instante, a faca negra espeta-se no balcã o, no ponto
exato onde tinha estado a sua mã o.
A lâ mina enterra-se profundamente no tampo de madeira.
Sem pensar sequer, Lawrence atira o computador a DJ e vê o canto
arredondado do monitor atingi-lo de lado no rosto.
DJ tropeça e arrisca-se a cair.
O computador muda de direçã o no ar, mas ica preso pelo cabo. O
ecrã começa a oscilar e desaparece do lado de fora do balcã o, depois o
cabo solta-se e o computador cai ruidosamente ao chã o.
DJ levanta uma mã o e acaricia a face; parece, mais do que outra
coisa, surpreendido.
Lawrence sai de trá s do balcã o com a má xima velocidade que lhe
permite o seu corpo robusto, corre em direçã o à janela redonda e
depois desce as escadas que dã o acesso ao spa.
A sua mente foi imediatamente atravessada por um pensamento:
tem de tentar fugir pela saı́da de emergê ncia que viu durante a visita
guiada ao hotel.
Por alguma razã o, o seu olhar tinha sido atraı́do pela luz verde do
sinal.
Sem se voltar para trá s, Lawrence passa diante de uma sé rie de
fotogra ias de mulheres mergulhadas em banheiras cheias de espuma
ou estendidas em mesas de massagem brancas. Passa por uma pequena
receçã o cheia de toalhas e uma lojinha de fatos de banho, depois entra
nos balneá rios. Quando a porta se fecha atrá s dele, repara que tem um
puxador redondo.
Tenta rodá -lo, mas as mã os tremem-lhe de tal maneira que nã o
consegue agarrá -lo.
A fechadura está travada.
Lawrence tenta recuperar o fô lego, arquejante, com o coraçã o a
bater-lhe loucamente no peito. Limpa as mã os à camisa.
Do lado de fora da porta, um rumor de passos aproxima-se.
Lawrence agarra no puxador e tenta novamente rodá -lo. Gira com
di iculdade, e ouve-se o ruı́do do metal a raspar. Puxa com mais força,
roda-o mais um pouco, e percebe que o fecho de correr está a entrar
lentamente no furo, depois nã o consegue segurá -lo por mais tempo e
acaba por ferir os nó s dos dedos.
Chupa os arranhõ es por um instante, escuta e estende a mã o para
veri icar se a porta está fechada, mas de repente algué m agarra na
maçaneta do lado de fora.
Lawrence salta para trá s.
DJ abana a maçaneta e começa a dar encontrõ es à porta, fazendo
ranger o caixilho.
Lawrence vacila para trá s a olhar para a porta; queria gritar a DJ
que fosse buscar James ao quarto de Rex e que o matasse em lugar dele.
Em vez disso, avança para os balneá rios escuros a pensar
desesperadamente que precisa de encontrar um sı́tio onde se esconder.
DJ acabou de lhe dizer que Grace é mã e dele.
E ele que quer vingar-se deles, repete Lawrence, enquanto passa ao
lado dos bancos e das portas abertas dos pequenos armá rios.
Empurra uma porta de vidro opaco e entra na grande divisã o dos
chuveiros, avança uns passos e tenta respirar com mais calma.
Tem a boca seca e dó i-lhe o peito.
Apoia-se com as costas à parede e observa um buraco no chã o. Na
rede estã o colados tufos de cabelos já ressequidos.
O suor escorre-lhe ao longo dos lancos.
Lawrence recorda a violaçã o na Toca do Coelho, a maneira como os
rapazes se puseram em ila, à espera, e o seu medo de que tudo se
pudesse interromper antes da sua vez.
Enquanto olhava para Grace, deitada no chã o por baixo dos outros,
foi acometido por uma onda de adrenalina e por uma raiva cada vez
mais ardente em relaçã o à rapariga.
Avançou à s cotoveladas, deitou-se em cima dela, bateu-lhe com
uma garrafa de cerveja e agarrou-a com violê ncia pelo queixo para a
obrigar a olhar para ele.
Inicialmente, foi invadido por uma sensaçã o de triunfo.
Depois, levantou-se e cuspiu-lhe em cima.
Duas semanas mais tarde, tentou castrar-se nas casas de banho dos
dormitó rios. Cortou-se profundamente, mas a dor fê -lo vacilar e acabou
por cair, batendo com a cara no lavató rio de tal maneira que a cerâ mica
icou escacada, chamando a atençã o dos outros.
Ao im de um mê s num serviço de psiquiatria para menores pô de
regressar a casa, e foi imediatamente à Polı́cia entregar-se. Nã o o
ouviram: na escola nunca tinha havido nenhuma violaçã o, e a rapariga
de quem falava tinha regressado aos Estados Unidos.
Lawrence apoia-se à parede fresca de granito brilhante, sente na
boca o sabor do sangue e percebe que nã o pode icar na sala dos
chuveiros sem ter a certeza de que a entrada do spa está bloqueada.
Com as pernas a tremer, Lawrence passa pela ila dos chuveiros e
transpõ e a porta de vidro opaco de uma sauna, depois atravessa uma
porta de vaivé m e entra na á rea escura da piscina.
Nã o se ouve mais nada para alé m da chuva sobre os enormes
painé is de vidro.
Sabe que tem de chegar à saı́da de emergê ncia, sair do hotel e pedir
ajuda, ou pelo menos esconder-se no bosque.
Toda a á rea é dividida ao centro por um grande bar de secçã o
hexagonal.
De um lado encontram-se as tinas de hidromassagem desligadas,
outras tinas vazias de vá rios tipos e a grande piscina, com alguns
centı́metros de á gua no fundo. No inverno pode-se nadar atravé s de um
vã o de lamelas de plá stico e chegar ao exterior coberto de neve, mas
agora a parte externa da piscina está coberta com uma tela.
Do outro lado do bar, para lá das mesas e da zona de descanso, há
uma saı́da de emergê ncia. Naquela zona, os operá rios partiram o
pavimento e amontoaram todos os mó veis, bloqueando a passagem
entre o bar e as janelas. Vê -se uma montanha de mesas e poltronas de
vime amontoadas, coberta de grandes telas de plá stico cinzento.
A ú nica maneira de chegar à saı́da parece ser a galeria que passa
em frente ao balneá rio feminino.
Lawrence ica alguns instantes à escuta, depois en ia-se na
passagem que conduz ao balneá rio. Tem de caminhar muito perto da
entrada, por isso continua a ixar o vidro opaco da porta de vaivé m.
Cada mı́nima vibraçã o lhe faz contrair todo o corpo na tentativa de se
obrigar a nã o fugir, dominado pelo pâ nico. Uma vez chegado ao destino,
pela fresta da porta vê os balneá rios mergulhados na escuridã o. Susté m
a respiraçã o e continua, tentando deslocar-se lentamente ao longo da
vidraça do solá rio.
Lança um olhar rá pido à porta e depois segue apressadamente em
frente.
Atravé s das paredes de vidro, vê um giná sio com má quinas,
passadeiras e elı́pticas envolvidas pelas sombras.
Lawrence sai da galeria e prossegue até ao outro lado do bar,
depois ouve de repente uma chiadeira repetida.
Do ponto em que se encontra, os pilares da galeria escondem a
entrada do balneá rio feminino, mas uma sombra ondeante desenha-se
na parede.
Algué m deve ter entrado pela porta. Lawrence nã o sabe o que fazer.
Nã o tem coragem para correr, por isso limita-se a dar a volta ao bar,
encolhe-se no chã o e tenta ganhar fô lego.
108
Lawrence esconde-se atrá s do balcã o do bar e tapa a boca com uma
mã o. O batimento acelerado do coraçã o ressoa-lhe na cabeça. Sabe que
DJ entrou no spa e que está à procura dele.
Mas tudo continua imó vel e silencioso.
Na madeira folheada de tom escuro há marcas de Coca-Cola que
escorreu, e algué m colou uma pastilha elá stica por baixo da beira do
balcã o.
Lawrence aninha-se, a tremer e a transpirar.
Respira nervosamente pelo nariz, enquanto pensa na maneira
como aquela violaçã o lhe negou qualquer possibilidade de ser feliz.
Nunca teve nenhuma relaçã o, nunca conseguiu ter uma vida sexual e
nunca criou uma famı́lia.
Para nã o dar demasiado nas vistas no seu ambiente, ingiu por
vezes ter relaçõ es ocasionais.
Com os amigos sempre a irmou que preferia ter relaçõ es fugazes,
centradas no sexo. Mas a verdade é que nunca encontrou ningué m que
estivesse bem para ele, nem homem nem mulher.
Há quase um ano, poré m, corresponde-se com uma rapariga que
descobriu num site de encontros. E uma bailarina do musical Hamilton,
em Manhattan. Lawrence sabe perfeitamente que pode tratarse de uma
mentira, e que pode ser uma vigarice, ou uma falsa identidade, mas as
conversas entre eles foram sempre divertidas e interessantes, e ela
nunca lhe pediu dinheiro. Adora as fotos que ela lhe manda, é de tal
maneira doce que sente explodir o peito de alegria. Os fartos cabelos
encaracolados, as faces, a boca alegre. E demasiado bonita para ser real,
mas acabou de lhe mandar um bilhete para o espetá culo e parece
autê ntico, uma vez que tem um có digo de barras e tudo o resto.
Provavelmente, algué m o está a gozar, mas nã o consegue deixar de
sonhar que aquela histó ria pode representar uma reviravolta na sua
vida.
Lawrence olha para a saı́da de emergê ncia, levanta-se e, mantendo-
se inclinado, desce uma ampla escadaria com proteçõ es
antiderrapantes e um corrimã o prateado.
Toda a á rea do bar foi esvaziada, e os operá rios começaram a
assentar um mosaico no chã o. Para lá de algumas paletes de ladrilhos e
cola para o pavimento, distingue-se o sinal verde da saı́da de
emergê ncia.
A chuva escorre pelas grandes vidraças voltadas para a montanha.
Lawrence acelera o passo e tenta conter a respiraçã o.
Se conseguir chegar à escuridã o de fora, só terá de seguir até à
igreja e dali chegar à estrada, onde poderá pedir boleia ou caminhar até
Bjö rkliden, alugar um carro e esconder-se até estar tudo acabado.
Ouve-se uma pancada metá lica no momento em que tropeça num
balde negro que desliza pelo chã o coberto de pó e para quando choca
com as espá tulas de metal cobertas de cimento seco.
Lawrence começa a correr, sem se importar com o barulho,
contorna as paletes e chega à saı́da de emergê ncia. Baixa a maçaneta,
puxa, dá -lhe encontrõ es, mas a porta nã o se abre.
Está bloqueada com um cadeado robusto.
Lawrence ajeita os ó culos no nariz e vira-se, e o seu coraçã o
começa a galopar de terror quando vê DJ descer as escadas, armado de
um machado.
Lawrence dá um pontapé ao vidro, mas apenas se ouve uma
pancada surda.
Olha em volta e percebe que deve tentar regressar ao bar pelo
outro lado, atravé s da montanha de sofá s, mó veis, vasos, mesas e
espreguiçadeiras.
Ofegante, corre ao longo do janelã o até ao monte de mó veis. Estã o
solidamente encaixados uns nos outros e chegam-lhe até ao peito.
Levanta a tela de plá stico, aninha-se e en ia-se por entre uma ila de
poltronas de vime e uma mesa de má rmore.
Por baixo do plá stico a luz muda, é mais suave e difusa.
Manté m a tela levantada com uma mã o e continua atravé s do vã o
estreito, por entre vá rios carrinhos de serviço, mas depois para ao
sentir uma espé cie de ganido atrá s de si. Aninha-se e apercebe-se de
que o plá stico está a cair outra vez sobre os mó veis.
Inclinado para a frente e com os joelhos dobrados, empurra o seu
corpo maciço pelo meio de duas pequenas vitrines cheias de pratos.
A Grace está a chegar, pensa Lawrence.
Assim foi decidido.
Recorda a sua saia de pregas cor-de-rosa, as coxas ensanguentadas
e os cabelos suados que se lhe colavam à s faces.
Ofegante, Lawrence estica-se para a frente entre uns enormes vasos
de barro e umas pilhas de espreguiçadeiras, e de repente ouve passos
atrá s dele.
Sabe que se trata de DJ, mas o seu cé rebro continua a evocar a
imagem de Grace.
Veio para se vingar. Lawrence percebe que se aproxima e arrasta
atrá s dela uma corda para saltar, fazendo saltitar a pega suja de plá stico
branco sobre as irregularidades do mosaico.
Em pâ nico, Lawrence empurra para o lado uma poltrona que lhe
impede a passagem, levanta a seguinte e en ia-se ao longo da borda de
uma mesa de buffet até que é obrigado a parar.
Está diante de uma parede de armá rios pesados. Nã o pode chegar à
piscina por este lado. Tem de encontrar outra passagem, talvez por
baixo da ila de espreguiçadeiras.
A tela de plá stico incha por causa da corrente de ar, depois volta a
descer com uma espé cie de suspiro e um rumor surdo.
Lawrence sente a dor no peito tornar-se cada vez mais intensa,
enquanto o seu braço esquerdo ica estranhamente entorpecido.
Inclina-se para veri icar se é possı́vel en iar-se por baixo das
cadeiras, e caem-lhe os ó culos do nariz. Ajoelha-se para os procurar, a
tremer, mas acaba por empurrá -los para debaixo de uma mesa baixa.
Semicerra os olhos e parece-lhe descobri-los. Estica-se, mas nã o
consegue chegar-lhes. A grande mesa do lobby é constituı́da por uma
estrutura metá lica pintada de branco e um maciço tampo de pedra, e
pesa provavelmente vá rias centenas de quilos. Por cima dela está
pousado um imponente monte de mesinhas desdobrá veis amarradas
por vá rias voltas de corda.
Lawrence deita-se de barriga para baixo e começa a rastejar no
espaço exı́guo por baixo do tampo de pedra. Chega-se para a frente,
semicerra as pá lpebras e estica-se para um lado, até que toca nos
ó culos com as pontas dos dedos. Consegue en iá -los rapidamente.
Sempre deitado, vira a cabeça e olha para trá s, por baixo dos
mó veis, em direçã o à á rea do bar e do pavimento esventrado. De
repente, DJ inclina-se a olhar para ele pelo meio das cadeiras e das
pernas das mesas.
E parecido com Grace: o belo rosto claro, os cabelos loiros.
O plá stico produz um ruı́do surdo, e entã o Lawrence percebe que DJ
se en iou por baixo da tela e que está a abrir caminho pelo meio dos
mó veis empilhados.
Lawrence chega-se ainda mais para a frente, para se proteger com a
mesa, e ouve o fecho-é clair arranhar o mosaico por baixo dele.
Se respirar mais profundamente, as costas vã o fazer força contra o
tampo de pedra, e tem medo de icar entalado.
Pensa novamente no bilhete para o musical: ela nunca vai perceber
por que razã o nã o apareceu.
Alguns mó veis caem e, enquanto se aproxima do outro lado da
mesa, ouve um ruı́do de vidro a partir.
Lawrence respira a choramingar e procura alguma coisa a que se
agarrar para se puxar dali para fora.
Com uma pancada surda, DJ pousa o machado no chã o e estica-se
atrá s dele.
– Deixa-me em paz – grita Lawrence.
DJ agarra-o por um pé e começa a arrastá -lo na sua direçã o.
Lawrence escoiceia e liberta-se, sai pelo outro lado da mesa e levanta-
se com as pernas tré mulas. Abre caminho pelo meio de uns sofá s
enormes e sente vontade de vomitar. Derruba uma montanha de
almofadas brancas cujo plá stico se enterra com o peso do seu corpo,
escorrega e caminha por cima de mais uma sé rie de almofadas macias,
conseguindo ainda assim manter o equilı́brio.
Ultrapassa a barricada de qualquer maneira, depois desequilibra-se,
vai bater com o ombro num pilar e continua até parar do outro lado da
tina de hidromassagem redonda.
Lawrence está ofegante, e sente os dedos de uma mã o
completamente entorpecidos.
Passa pela piscina de á gua fria vazia: à direita encontra-se a á rea
para a hidroginá stica, à esquerda uma piscina para crianças com um
escorrega em serpentina.
Lawrence continua, lança um olhar na direçã o do bar e vê o re lexo
de DJ sobre as portas de vidro do solá rio.
Vai a correr pela galeria com o machado na mã o.
Dirige-se à piscina, passando pelas portas dos balneá rios.
Umas estranhas tiras de couro oscilam-lhe ao longo das faces.
Lawrence tosse e apressa-se a chegar à piscina com a intençã o de
descer, correr até à parte exterior, abrir a tela e trepar do lado de fora.
Sente uma isgada no coraçã o e tem de se mexer mais lentamente.
Agarra-se ao corrimã o ao longo da escada de mosaico que desce para a
piscina. Da á gua parada ergue-se um cheiro a podre.
A tremer, Lawrence desce pela escada lisa, entra na á gua e tenta
correr, mas nã o consegue avançar depressa.
Os resı́duos no fundo erguem-se na á gua que lhe chega à s coxas.
Avança com um passo pesado, sentindo os salpicos na barriga e no
peito.
Pensos rá pidos, chinelos e tufos de cabelos lutuam sobre a
superfı́cie remexida.
Lawrence en ia-se por baixo das lamelas de plá stico e passa para a
piscina exterior coberta. Deve haver uma maneira de sair dali. A
cobertura nã o é mais do que uma tela esticada sobre uma sé rie de arcos
baixos.
Lawrence avança pela á gua a tentar encontrar alguma costura no
tecido.
Atrá s dele, ouve-se chapinhar. Lawrence volta-se.
DJ está a avançar pela á gua em direçã o a ele.
Lawrence sabe que vai ser impossı́vel sair da piscina antes de ser
apanhado.
Sente formigueiros nas pontas dos dedos.
Ofegante, Lawrence vira-se e avança pela piscina até ao canto mais
pró ximo, arriscando-se a cair para a frente, mas inalmente consegue
agarrar-se à borda.
Empurra a tela para cima com toda a força que ainda tem no corpo.
O pesado tecido de nylon está de tal maneira esticado que nã o consegue
abrir sequer uma mı́nima fenda.
Tenta puxar por um dos arcos para tentar entortá -lo e abana-o pela
base, mas ele nã o se move.
DJ aproxima-se a passos largos pela á gua.
O seu corpo em movimento produz ondas que se quebram na borda
e enchem Lawrence de salpicos.
Nã o consegue en iar os dedos por baixo da borda da tela, e entã o
tenta outra vez empurrá -la para cima, mas é obrigado a render-se.
Com uma respiraçã o ofegante, tenta afastar-se, mas o coraçã o bate-
lhe demasiado depressa e já nã o tem forças. Nã o há saı́da possı́vel. Para
e vira-se para trá s.
109
Lawrence ica imó vel, respira aceleradamente pela boca e tenta
dizer qualquer coisa, mas ainda lhe falta fô lego. E apenas um coelho, a
escoicear no seu pró prio sangue no fundo de uma tina de zinco.
O caçador aproxima-se agora lentamente, arrastando o machado de
cabo curto pela á gua.
Tinha preparado o gravador e a cassete: nos seus projetos,
Lawrence devia icar bloqueado na receçã o, com a faca en iada na mã o,
enquanto os outros acorriam à procura dele.
Salpicos de á gua suja abateram-se sobre a camisa aos quadrados de
Lawrence, e manchas de suor alastraram ao nı́vel das axilas.
– Eu sei do que se trata – diz Lawrence, arquejante.
Estende as duas mã os, como que para impedir que DJ se aproxime
mais. O caçador avança apenas um passo, agarra-lhe numa mã o, estica-
lhe o braço e atinge-o violentamente com o machado acima do cotovelo.
Lawrence oscila para o lado e o seu grito de dor ecoa por entre as
paredes da piscina.
O sangue começa a jorrar, escuro, da ferida profunda.
O caçador continua a segurar-lhe na mã o, depois vira-a
ligeiramente e atinge-o de novo.
Desta vez, a lâ mina atravessa o osso do antebraço.
O caçador larga-o e ica a vê -lo cambalear para trá s, com o
antebraço a abanar, pendurado pelos ligamentos ainda intactos, para
depois se soltar e mergulhar na á gua suja com um ruı́do surdo.
– Oh, meu Deus, meu Deus – geme Lawrence, a tentar apertar o
coto contra o peito para travar a hemorragia. – O que queres que eu
faça? Por favor, diz-me! Eu preciso de ajuda, percebes?
– A Grace é minha mã e, e agora…
– Obrigaram-me. Eu nã o queria, tinha apenas dezassete anos – diz
Lawrence, a chorar.
Cala-se e respira com di iculdade. O seu rosto está muito pá lido,
parece já morto. O caçador observa-o: os salpicos nos ó culos, a barba
suja de muco, o sangue a pingar na roupa suja.
– Eu sei que está s a vingar-te – diz Lawrence, arquejante. – Mas eu
estou inocente.
– Estã o todos inocentes – responde o caçador, em voz baixa.
Pensa em Ratjen, morto na cadeira da cozinha em frente aos ilhos.
Coube-lhe aquele destino porque tinha pegado nas chaves, aberto a
porta do dormitó rio e acompanhado a mã e à Toca do Coelho. Foi assim
que tudo começou. Se daquela vez se tivesse recusado a fazê -lo, teria
podido comer em paz o seu macarrã o, para depois ir dormir ao lado da
mulher assim que as crianças adormecessem. Mas abriu a porta. Foi ele
que abriu a porta, que a levou à Toca e que esperou pacientemente pela
sua recompensa.
– Foi o Wille que decidiu tudo – diz Lawrence, extenuado.
– A minha mã e falou-me de ti e contou-me o que tu izeste – diz o
caçador, com um tom de voz calmo.
– Obrigaram-me – diz o outro, a chorar. – Eu era uma vı́tima, eu
també m era…
A voz de Lawrence extingue-se, e os ouvidos do caçador parecem
fechar-se. Tenta esfregá -los, mas continua a nã o ouvir nada. Recorda
uma tarde de verã o, a vé spera da tentativa de suicı́dio da mã e.
Andava a caçar com uma espingarda de cano liso para lá da estrada
principal, do outro lado da linha do caminho de ferro e perto do silo.
Sentou-se na erva, depois deitou-se e quando acordou já era noite.
Pareceu-lhe encontrar-se num sonho.
Estava imó vel, estendido na erva alta, a pensar que o silo parecia
uma enorme cartola do Chapeleiro Louco.
Naquele momento, sentiu-se tã o pequeno como um coelho.
Lawrence espera ainda conseguir safar-se, cambaleia novamente
em direçã o à escada revestida de mosaico.
Uma estria de sangue escuro desenrola-se na á gua em volta dele.
O caçador olha para o reló gio e segue-o.
Lawrence passa por baixo das lamelas de plá stico, estica-se para a
frente, pousa os pé s nas escadas e senta-se num dos degraus mais
baixos. Ergue o coto e geme de dor. A respirar pela boca, rasga a camisa
e aperta com toda a força que consegue uma tira de tecido em volta da
ferida, puxando-a com a ú nica mã o, a tremer.
– Meu Deus, meu Deus – murmura para si mesmo.
O sangue ensopa o tecido de lanela de xadrez e salpica os degraus
molhados.
– Nã o vais morrer esvaı́do em sangue – diz o caçador, afastando as
orelhas de coelho do rosto. – Antes de perderes os sentidos, vou atingir-
te no pescoço, e nesse momento vais embora bastante depressa.
Lawrence ergue para ele um olhar a lito.
– Será que nó s matá mos a Grace? Porque é que queres acabar
connosco, se ela ainda está viva?
– Ela nã o está viva – interrompe-o DJ. – Você s nã o a deixaram viver.
Dali a pouco vai voltar ao andar de cima para enforcar James
Gyllenborg. Nã o sabe a razã o, mas apetece-lhe mesmo enforcá -lo.
Durante a caçada, surgiu-lhe aquela ideia: queria vê -lo enforcado.
Uma recordaçã o lampeja no seu cé rebro: o ruı́do da corda cortada
pelo avô para salvar a mã e no celeiro.
– O que é que queres fazer agora? – sussurra Lawrence, com os
olhos injetados de sangue. – Agora que acabaste de te vingar… O que é
que vais fazer depois?
– Depois? – pergunta o caçador, apoiando o machado no ombro.
110
Quando Rex recupera os sentidos, o seu coraçã o começa a bater de
angú stia, com muita força. Está deitado de barriga para baixo, os braços
amarrados atrá s das costas. Tem o rosto inchado e dorido depois das
repetidas pancadas que levou com a coronha da espingarda.
A sua mala vazia está no meio do quarto e o conteú do espalhado
pelo chã o.
Ouve vozes e vira-se lentamente de lado. Tenta cautelosamente
libertar as mã os, mas apercebe-se de que nã o tem sensibilidade nos
dedos.
Pelos olhos semicerrados, vê Sammy sentado e encostado à parede,
com os braços sobre os joelhos dobrados. Rex volta-se com
circunspeçã o e cruza o olhar do ilho, que abana impercetivelmente a
cabeça.
Rex fecha os olhos imediatamente, inge estar desmaiado e ouve o
ilho falar com um io de voz.
– Eu nã o tenho nada a ver com isto tudo… Imagino que tu saibas
isso, eu nunca teria vindo aqui se o meu pai nã o quisesse impedir-me
de estar com o meu namorado.
– Es gay? – pergunta James, curioso.
– Sim, mas nã o digas ao meu pai – responde Sammy, em tom de
brincadeira.
– De que é que tu gostas nos rapazes?
– També m ando com raparigas, mas pre iro fazer sexo com rapazes.
– No meu tempo – comenta James –, nunca poderias ter dito uma
coisa do gé nero… O que o mundo mudou… para melhor.
Com os dedos gé lidos, Rex tenta desfazer os nó s bem apertados das
tiras de tecido.
– Nã o quero envergonhar-me daquilo que sou – continua Sammy.
– També m andas com homens mais velhos? – pergunta James, com
um estranho tom de voz.
– Sã o os indivı́duos e as situaçõ es que me excitam, nã o tenho assim
muitas regras – diz Sammy, com calma.
Rex ica imó vel e escuta os passos de James no chã o. Abre
lentamente os olhos, e apercebe-se de que o homem está em pé diante
de Sammy. Numa mã o segura frouxamente a espingarda, cujo cano lhe
pende ao lado do corpo e da perna direita. Em cima da mesinha à frente
do sofá está pousada uma garrafa de á gua estreita, ao lado do vinho que
o hotel põ e à disposiçã o dos hó spedes a um preço exagerado.
Quando James se volta, Rex fecha imediatamente os olhos, tentando
relaxar o corpo. Permanece imó vel e sente James aproximar-se e parar
diante dele. Um cheiro metá lico dá -lhe a entender que o cano da
espingarda está apontado ao seu rosto.
– Quase todos aqueles que eu conheço se de inem como pansexuais
– continua Sammy.
– E isso o que é ?
– Acham que é a personalidade que faz a diferença, nã o o sexo.
– Parece-me sensato – diz James, regressando junto do rapaz. –
Lamento que o Lawrence te tenha ferido. Dó i-te?
– Um bocado…
– Vais icar com uma cicatriz nessa carinha bonita – diz, e a sua voz
denuncia uma sú bita intimidade.
– Que merda – exclama Sammy, com um suspiro.
– Devias tentar fechar as beiras da ferida – prossegue James.
– O meu pai tem pensos rá pidos no nécessaire – diz Sammy.
Cai o silê ncio no quarto e Rex manté m os olhos fechados. Tem
quase a certeza de que James está a vigiá -lo.
– Está ali, ao pé do sofá – acrescenta Sammy.
Rex apercebe-se de que James se afasta um passo e atira com um
pontapé o nécessaire em direçã o a Sammy.
– Obrigado.
Rex ouve Sammy abrir o fecho-é clair da bolsa, depois alguns
objetos pequenos caem ao chã o e inalmente, atravé s de um leve roçar,
percebe que o ilho encontrou os pensos rá pidos.
– Primeiro devias lavá -la – sugere James.
Quando percebe que James está a pegar na garrafa de á gua de cima
da mesa e a desapertar a tampa, Rex começa a sacudir os braços e a
puxar com a má xima força possı́vel, até que uma mã o se solta do nó . O
sangue recomeça lentamente a circular, provocando-lhe formigueiros
nas pontas dos dedos.
– Fica quieto – murmura James. – Levanta um pouco a cabeça…
– Ai – suspira Sammy.
Rex abre os olhos: James pousou a espingarda no chã o e está
inclinado sobre Sammy com a garrafa de á gua e um monte de lenços de
papel.
Rex levanta-se com cautela. Tem as pernas entorpecidas e rı́gidas
como dois troncos pesados. Umas das tiras de tecido está ainda presa
por uns ios ao botã o do punho da camisa, mas separa-se e cai ao chã o
com um ligeirı́ssimo ruı́do.
Rex para e espera.
James nã o ouviu nada. Inclina o gargalo da garrafa sobre os lenços
de papel e continua a limpar o rosto de Sammy.
Rex avança lentamente até à mesinha e agarra na garrafa de vinho
na vertical, para reduzir o ruı́do.
– Mais um bocadinho de á gua – insiste Sammy. – Ai… ai, caraças.
– Estou quase a acabar – diz James, com um tom de voz
estranhamente entusiasmado.
Rex aproxima-se de James, mas pisa uma das camisas que
escorregaram para fora da mala. O saco de plá stico em que está metida
produz um ruı́do por baixo do seu pé . James deixa cair os lenços de
papel ao chã o e volta-se no preciso instante em que Rex o agride. Ergue
um braço para se proteger, mas a garrafa atinge-lhe a face e a tê mpora
com uma força tal que o vidro ica feito em pedaços. Cacos verdes e
vinho tinto escuro caem por cima de James e na parede atrá s dele.
O homem lança um grito de dor e cai de lado, depois protege-se
com uma mã o e tenta abrir os olhos. Sammy afasta-se e Rex agarra
rapidamente na espingarda, recuando um passo. James senta-se contra
a parede, apalpa a tê mpora e lança um olhar enfurecido a Rex, que
entretanto avança e o agride na base do nariz com a coronha da
espingarda, fazendo-o bater com a nuca contra a parede.
– Anda – diz Rex a Sammy. – Temos de ir embora.
Saem do quarto, fecham a porta e correm ao longo do corredor frio
em direçã o à receçã o.
– Bom trabalho, pai – exclama Sammy, a sorrir.
– Foste tu que izeste tudo – replica Rex.
De algum sı́tio provê m umas pancadas pesadas. Rex olha para trá s,
mas no corredor escuro está tudo imó vel e a porta da suı́te continua
fechada. O cano da espingarda vem a arrastar pelo chã o e Rex levanta-o
uns milı́metros. Nesse mesmo instante, uma terrı́vel dor de cabeça
obriga-o a parar.
– O que é que aconteceu? – murmura Sammy.
– Nada, dá -me só um segundo – responde Rex.
– O que vamos fazer?
– Vamos embora daqui… Deixa-me olhar para ti – diz Rex, e
aproxima o ilho da luz de um candeeiro de parede. – Se calhar vais icar
aqui com uma pequena cicatriz…
– Na minha carinha bonita – acrescenta Sammy, na brincadeira.
– Exato.
– Devias ver a tua igura, pai.
Rex volta-se outra vez e repara que uma das portas em frente à s
quais acabaram de passar está entreaberta.
111
Rex e Sammy aproximam-se do lobby em silê ncio. A alcatifa pesada
amortece-lhes os passos. Os desenhos do papel de parede parecem
mais escuros entre as elipses de luz dos candeeiros. Rex veri ica se a
espingarda está travada e apoia-a ao ombro.
– Estive a pensar naquilo que me disseste uma vez, sobre o facto de
teres o direito de ser fraco – diz Rex. – Eu concordo, quer dizer… Se eu
també m tivesse tido a coragem de o admitir, talvez nã o tivesse
desperdiçado a minha vida com o á lcool, e talvez nã o te tivesse perdido.
Chegam ao lobby, que está deserto. Um dos computadores está
caı́do no chã o. A chuva abate-se com fú ria contra os vidros negros. As
caleiras transbordam e a á gua cai em cascata sobre as lajes de pedra do
exterior.
– Ten little rabbits, all dressed in white – recita de repente uma voz
infantil –, tried to go to Heaven on the end of a kite.
Rex e Sammy voltam-se e reparam num velho leitor de cassetes
pousado em cima de uma mesa encostada à parede.
– Kite string got broken – prossegue a voz –, down they all fell.
Instead of going to Heaven, they went to…
– O que é que está a acontecer? – murmura Sammy.
Trata-se da mesma lengalenga do telefonema anó nimo que recebeu
no restaurante, recorda Rex.
Aproxima-se da mesa e repara que as teclas do gravador estã o
manchadas de sangue.
– Nine little rabbits, all dressed in white, tried to go to Heaven on the
end of a kite…
– Sai daqui – diz Rex, ansioso.
– Pai – replica Sammy.
– Quando chegares à estrada principal, vira à direita – exclama Rex.
– Pai!
Rex volta-se e vê James Gyllenborg aproximar-se rapidamente ao
longo do corredor. Empunha uma faca de caça e respira com a boca
aberta, como se tivesse o nariz partido.
– Eight little rabbits, all dressed in white – continua a voz que sai do
gravador.
James chega ao lobby, observa a faca que aperta na mã o e continua
a avançar em direçã o a Rex.
Passa rapidamente a mã o livre pela boca e dá a volta ao sofá .
– Fica calmo, James! – diz Rex, erguendo a espingarda.
James para e cospe no chã o saliva misturada com sangue. Rex recua
e pousa o dedo no gatilho.
– Es um idiota – sibila James, brandindo a faca.
Com um estalido, a perna de James parte à altura do joelho. O
sangue esguicha para o chã o e o homem cai desamparado. Dobra o
corpo para trá s, icando quase com as costas em arco, e depois começa
a gritar de dor.
Rex demora alguns segundos a perceber o que aconteceu.
DJ está no topo das escadas que descem para o spa e empunha uma
pistola com silenciador.
Pendurou uma dezena de orelhas de coelho a uma itinha de couro
e amarrou-a em volta da cabeça.
Quando DJ entra no lobby, Rex repara que o outro tem as calças
molhadas até à s coxas. DJ atira ao chã o uma corda revestida de
borracha e en ia a pistola no coldre por baixo do casaco.
Para, fecha os olhos e afaga a face sobre a qual cai uma das orelhas
cortadas.
James grita e tenta arrastar-se para o corredor.
DJ olha para ele, depois aproxima-se de Rex, tira-lhe a espingarda
da mã o, descarrega-a e pousa-a em cima da mesa ao lado das outras.
– Six little rabbits, all dressed in white, tried to go to Heaven on the
end of a kite – prossegue a voz infantil.
James está no chã o e respira com di iculdade. Uma poça de sangue
alastra por baixo da perna ferida.
– Temos de lha enfaixar – diz Rex, voltando-se para DJ. – Vai morrer,
se nã o…
DJ agarra James pela perna ilesa e arrasta-o para a sala de jantar.
Rex e Sammy seguem-no atravé s das mesas postas. James bate numa
delas, um candelabro cai em cima do tampo e as velas rolam para o
chã o.
DJ vira James de barriga para baixo e en ia-lhe um joelho entre as
omoplatas, depois amarra-lhe os braços atrá s das costas com uma tira
de pano e en ia-lhe um guardanapo na boca. Com movimentos
controlados, aproxima uma cadeira e insere a corda negra no gancho do
teto onde está pendurado o grande lustre de cristal.
– O que é que está s a fazer? – pergunta Rex.
DJ ignora a pergunta. Limita-se a fazer um nó de forca, que depois
en ia no pescoço de James. Dá um puxã o à corda, fá -la passar em volta
de uma coluna e depois começa a levantar o homem pelo pescoço.
O peso de James faz inclinar o lustre, e os prismas de cristal
tremem devido aos seus movimentos convulsos. Atravé s do
guardanapo, James emite sons sufocados e raiados de pâ nico. Algumas
gotas de cristal soltam-se e caem ao chã o.
– Já chega – diz Rex, aproximando-se para tentar levantar James.
DJ faz girar vá rias vezes a corda em volta da coluna, dá -lhe um nó e
depois empurra Rex para o lado.
James oscila e continua a escoicear.
Os cristais tilintam por cima dele.
DJ observa James, andando lentamente em volta dele, depois
aproxima a cadeira do homem e observa-o enquanto este tenta suster-
se com a perna ilesa, lutando para manter o equilı́brio.
No lobby, a estrofe inal da lengalenga transmitida pelo gravador
conclui-se com o ú ltimo coelho a cair no inferno. DJ olha para o reló gio,
aproxima-se da corda e dá -lhe uma ligeira folga. James enche os
pulmõ es atravé s do nariz. As lá grimas sulcam-lhe as faces e todo o seu
corpo treme.
– Se escorregas ou desmaias, morres – diz DJ, com uma calma
extrema.
– Enlouqueceste? O que é que está s a fazer? – pergunta Rex.
– Ainda nã o percebeste? – pergunta DJ, com uma voz cavernosa. –
Perceberam todos, menos tu.
– Pai, vamos embora – diz Sammy, tentando arrastar Rex com ele.
– O que é que eu nã o percebo? – pergunta Rex, e engole em seco
com di iculdade.
– Que també m te vou matar a ti – responde DJ. – Assim que acabar
com o James, eu… acho que te vou esquartejar as costas e arrancar as
omoplatas.
Estende-lhe uma velha fotogra ia de Grace que data do primeiro
ano do colé gio. O papel está atravessado por uma prega branca que
corta ao meio o rosto feliz da rapariga.
– E a minha mã e.
– A Grace?
– Sim.
– Soube que foi violada – diz Rex. – O James acabou de me contar.
– Pai, vamos embora – repete Sammy, com um io de voz.
– Tu també m lá estavas – continua DJ com um trejeito nos lá bios,
chegando-se ligeiramente para o lado.
– Nã o, nã o estava.
– Foi precisamente isso que disseram todos antes de…
– Eu nã o sou inocente – intervé m Rex. – Fiz muitas coisas de que
me arrependo, mas nunca violei ningué m. Meteram-me…
E interrompido por uma pancada proveniente do lobby. Ficam em
silê ncio, depois ouvem-na outra vez.
112
O caçador ica completamente imó vel na sala de jantar, com o olhar
voltado para o lobby. Sente a adrenalina espalhar-se por todo o corpo.
Sobre a onda dos batimentos acelerados do coraçã o chega també m
o cansaço, como uma lufada de vento quente. Apercebe-se de que se
esqueceu de tomar o Modiodal.
Talvez nã o precise, mas uma crise violenta de narcolepsia podia
estragar tudo.
Tem de arranjar maneira de manter a calma.
A voz de Rex chega aos seus ouvidos como se proviesse de trá s de
uma parede: diz que tê m de retirar James da corda.
O caçador abre os olhos e cruza o olhar do cozinheiro.
Desde o inı́cio, tinha decidido que seria ele o ú ltimo a morrer. Rex
deverá observar o campo de batalha coberto de cadá veres, ver o
vencedor aproximar-se e cair de joelhos perante o seu destino.
Na sala de jantar fez-se silê ncio.
Rex recua, juntamente com Sammy: James, num sofrimento atroz,
está prestes a perder os sentidos.
Ouve-se bater à porta uma terceira vez, e naquele momento a
mente do caçador é atravessada por um estalido: revê a porta do celeiro
a abrir-se e a neve a cair no chã o, a rodopiar.
A mã e está a chorar como uma menina, ao mesmo tempo que recua
com uma faca de talhante apertada contra o pescoço.
A tempestade tinha durado toda a noite e a mã e estava cada vez
mais deprimida, dominada pelo terror. Nã o sabia o que fazer e icou
durante muito tempo com os olhos fechados e as mã os apertadas
contra os ouvidos, depois passou a uma fase agressiva. Agarrou nos
restos dos coelhos, arremessou os contra a porta e ameaçou sufocá -lo
se ele chorasse.
Sabe que tem de impedir que aquelas recordaçõ es tã o nı́tidas
ocupem demasiado espaço na sua mente, para nã o icar como a mã e,
para nã o abrir as portas à psicose.
Em criança, partilhava a doença com Grace, mas ele nã o era doente.
Pura e simplesmente, nã o tinha alternativas, e isso nã o signi ica ser
psicó tico, repete para si mesmo.
Para a mã e, a violaçã o afugentara a verdade do presente, o medo
dos coelhos transformara-se em fobia e o terror estabelecera uma
terrı́vel aliança com a memó ria.
Voltam a bater à porta.
O caçador ouve a sua pró pria voz dar ordens, mas é como se tudo
estivesse a acontecer num mundo distante, num velho documentá rio
riscado ou numa ilmagem de uma zona de guerra.
Tira da cabeça a ita com as orelhas de coelho, afasta com um
pontapé a cadeira por baixo dos pé s de James e vê -o contorcer-se.
Depois sai, fecha a porta da sala de jantar e arrasta o tapete para cima
da mancha de sangue.
Chegam os trê s à receçã o. DJ leva Sammy com ele para trá s do
balcã o, enquanto Rex se aproxima da porta de entrada para abrir.
A chuva bate nas janelas negras e escorre do telhado ao longo do
vidro.
Lá fora, no meio do dilú vio, vislumbra-se uma silhueta.
DJ mete as orelhas de coelho numa gaveta, no meio de canetas e
clipes. Tira a pistola, puxa o slide para trá s e esconde a arma atrá s do
balcã o.
Rex abre a porta e deixa entrar um homem alto com um bidã o de
gasolina na mã o. Bá tegas de chuva inundam o pavimento do lobby antes
que Rex consiga fechar a porta.
DJ observa o desconhecido, de rosto cansado e movimentos
arrastados.
Tem os cabelos loiros colados à s faces molhadas. A roupa está
encharcada, e tem os sapatos e as pernas das calças sujos de lama.
DJ nã o consegue ouvir o que Rex está a dizer, mas vê -o pousar o
bidã o em cima do tapete e aproximar-se do balcã o.
– O hotel está fechado – diz DJ, e depois ita os peculiares olhos
cinzentos do homem.
– Eu percebo, mas iquei sem gasolina na estrada nacional e vi luzes
– explica o indivı́duo, comum sotaque inlandê s.
DJ pousa a mã o esquerda no ombro de Sammy, enquanto na direita
manté m escondida a pistola atrá s do balcã o. E capaz de disparar com as
duas mã os, e nã o precisa de parar para pensar quando passa a arma de
uma para a outra.
E possı́vel que o desconhecido seja um polı́cia, e DJ sabe disso.
E possı́vel, mas nã o muito prová vel.
Nã o pode permitir que uma suspeita irracional in luencie as
decisõ es que terá de tomar nos pró ximos minutos.
Nã o pode tê -los localizado tã o depressa, e para alé m disso um
polı́cia nunca tentaria apanhá -lo sozinho.
Enquanto o homem limpa a á gua das sobrancelhas, DJ observa a sua
roupa molhada, que adere ao braço e ao tronco, e percebe que nã o traz
vestido nenhum colete à prova de bala.
Mas poderia ter uma pistola debaixo do braço esquerdo, ou no
tornozelo.
A hipó tese mais prová vel é que o homem nã o faça ideia da situaçã o
em que se veio meter por causa de um depó sito vazio.
– Gostarı́amos muito de poder ajudar, mas isto é uma reuniã o
privada – diz DJ, passando a pistola para a outra mã o. – De momento, os
funcioná rios nã o estã o cá e os telefones estã o todos desligados.
113
Joona permanece em frente ao balcã o da receçã o, quase como se
estivesse à espera de se registar. Apercebeu-se de que Rex o reconheceu
mas fez de conta.
David Jordan tem a testa ligeiramente salpicada de sangue e
observa-o com uns olhos aquosos, de uma maneira insó lita.
Provavelmente, está a tentar perceber se Joona pode representar
uma ameaça para o seu plano ou se se vai embora depressa.
Joona afasta os cabelos molhados do rosto e sente a á gua escorrer-
lhe ao longo das costas; depois apoia as mã os no balcã o.
Assim que chegou ao aeroporto de Kiruna, recebeu um telefonema
da psicó loga Jeanette Fleming. Nã o dispunha do endereço preciso, mas
podia con irmar que Sammy e Rex tinham partido para Kiruna.
Transmitiu-lhe ainda as palavras de Nico, segundo o qual Rex queria
fazer com que o ilho se tornasse heterossexual e por isso o levara a
caçar renas numa reserva.
Enquanto alugava o carro e iniciava a viagem, Anja descobriu a
ú nica reserva de caça com renas selvagens em toda a regiã o de Kiruna.
Conseguiu descobrir que o hotel associado à reserva estava ocupado
com uma reuniã o de negó cios naquele im de semana e pediu-lhe, por
favor, que esperasse pelos reforços da Polı́cia da Lapó nia setentrional.
– Lamentamos nã o poder ajudá -lo – diz David Jordan, para concluir
a conversa.
Joona sabe que os soldados de elite sã o treinados para o combate
corpo a corpo a partir do pressuposto de que o adversá rio é em tudo e
por tudo inferior, tanto no treino como no que diz respeito ao
equipamento.
E normalmente é assim.
Seguem té cnicas extremamente e icazes, mas todas as suas açõ es se
baseiam, em qualquer caso, numa certa dose de presunçã o.
– Pelo menos devem ter um telemó vel… – diz Joona, com um tom
cortê s.
– Vai parecer-lhe estranho, mas tivemos pouca sorte com a
tecnologia. Estamos isolados até que nos venham buscar amanhã .
– Percebo – diz Joona –, mas fazem alguma ideia de onde é que eu
posso encontrar um telefone? Bjö rkliden é o sı́tio mais pró ximo?
– Sim – responde simplesmente DJ.
Ao entrar, Joona reparou que havia quatro espingardas de caça na
mesinha à frente do sofá , e isso signi ica que falta pelo menos uma
pessoa.
Tanto Rex como o ilho tê m marcas de agressõ es na cara, mas
quanto ao resto nã o parecem feridos.
Um computador está caı́do no chã o e o tapete em frente à porta
fechada está estendido de esguelha.
– Houve aqui alguma luta? – pergunta Joona, tocando no
computador com o pé .
– Agora vai-te embora – diz DJ, em voz baixa.
Quando Joona entrou, David Jordan pousou a mã o esquerda no
ombro de Sammy, depois afastou o registo dos hó spedes para a direita.
Ambos os movimentos eram supé r luos.
Provavelmente quer convencer Joona de que nã o está a esconder
nenhuma pistola atrá s do balcã o, com a intençã o de veri icar se será
realmente o primeiro polı́cia a chegar ao local.
Mas Joona sabe que o assassino é ambidestro e també m sabe que
interrompeu um sequestro.
O assassino terá sem dú vida tempo de disparar tanto sobre Rex
como sobre Sammy antes que Joona possa en iar a mã o debaixo do
blusã o molhado para retirar a pistola do coldre.
Sabe que deve esperar, apesar de isso poder comportar perdas. De
repente, lembra-se de quando o tenente Rinus Advocaat citou o Wei
Liaozi durante a ú ltima fase de treino nas té cnicas de combate nã o
convencionais.
O equilı́brio tá tico da energia re lete-se nos extremos do Tao, disse
com a sua voz desprovida de alegria. Se tens alguma coisa, faz de conta
que nã o tens; se te falta alguma coisa, comporta-te como se a tivesses.
Até uma criança pode aprender aquele princı́pio, mas é preciso
uma robusta força de vontade para o seguir numa situaçã o de crise em
que a reaçã o natural, para um polı́cia, seria a de sacar a pistola.
Mas agora este jogo extremo é a ú nica possibilidade de que Joona
dispõ e para salvar a vida dos refé ns.
Como todos os spree killers, David Jordan elaborou um plano e
deseja segui-lo.
Se tivesse a certeza de que Joona era um polı́cia, ou de que estava
armado, disparava imediatamente. E o ú nico comportamento racional a
seguir, apesar de lhe estragar o plano. Mas se Joona for apenas uma
pessoa qualquer que icou sem gasolina, entã o convé m-lhe esperar e
deixar que ele se vá embora.
O assassino tentou por vá rias vezes dar a entender a Joona que nã o
estava armado para o levar a agir. Provavelmente, está cada vez menos
convencido de que se possa tratar de um polı́cia e que tenha uma
pistola.
– Mas entã o o que é que estã o a fazer cá em cima? – pergunta Joona.
– A caçar.
De segundo a segundo, a situaçã o vai-se tornando mais crı́tica, mas
enquanto Joona conseguir fazer de conta que nã o tem uma pistola, é
possı́vel que consiga afastar Rex e Sammy do assassino.
– Entã o vou-me embora, mas… entretanto, lembrei-me de uma
coisa – acrescenta Joona, com um sorriso. – Deve haver uma garagem de
motos de neve, aqui.
– Acho que sim – diz Rex, aproximando-se do balcã o.
– Entã o talvez eu possa conseguir alguma gasolina… Pagando,
obviamente – garante Joona, e desaperta um botã o do casaco.
– Só temos as chaves da entrada principal, e nã o funcionam para a
arrecadaçã o nem para o anexo – responde David Jordan, com um tom
nervoso.
– Percebo – conclui Joona, assentindo. – Obrigado, de qualquer
maneira.
Vira as costas a David Jordan, abre o ú ltimo botã o do casaco e
dirige-se à entrada.
– Nã o quer esperar que pare de chover? – ouve Rex dizer atrá s de
si.
– Obrigado, é muito simpá tico da sua parte.
Joona volta-se. Apercebe-se de que Sammy começou a tremer e que
David Jordan fecha os olhos por um longo instante.
Espera, espera, consegue pensar Joona.
David Jordan reage com um gesto fulminante, e no entanto parece
que precisa de arrastar o braço atravé s de uma corrente de á gua
enquanto aponta a arma e carrega no gatilho.
O percursor bate na espoleta, a explosã o da pó lvora empurra a bala
atravé s do cano e o obturador treme.
O sangue esguicha nas costas de Rex quando a bala lhe atravessa a
barriga.
David Jordan já virou a arma para Joona e sai de trá s do balcã o sem
perder a linha de mira nem por um segundo. Tem os dois olhos bem
abertos e manté m sob controlo toda a sala enquanto se desloca. Rex
parece confuso e cambaleia para trá s com uma mã o sobre o ventre
ensanguentado.
– Pai – grita Sammy.
Joona obriga-se a nã o en iar a mã o debaixo do casaco. David Jordan
tem a pistola apontada ao seu peito com o dedo no gatilho.
Aproxima-se de Rex, agarra-lhe nos cabelos por trá s e dá -lhe um
pontapé nas pernas, fazendo-o cair de joelhos, sem nunca deixar de ter
a arma apontada a Joona.
– Tu nã o tens nada a ver com tudo isto – diz-lhe. – Se icares de fora,
poderá s sobreviver.
Joona assente e levanta as duas mã os à frente dele.
– Leva o meu ilho – diz Rex, voltado para Joona. – Isto é uma coisa
que tem a ver só com nó s os dois, mais vale acabarmos com isto sem
envolver mais ningué m.
David Jordan ganha fô lego, pressiona a boca do silenciador contra a
tê mpora de Rex e fecha novamente os olhos. Joona estende uma mã o e
agarra Sammy por um braço. Arrasta-o consigo até à porta, suavemente
e com cautela. Passam à frente da mesa onde estã o as espingardas e da
lareira apagada. David Jordan ergue os olhos para eles. Parece que
sente di iculdade em manter-se acordado, apesar de os nó s dos dedos
da mã o com que empunha a pistola estarem brancos.
Joona chega à porta e carrega delicadamente na maçaneta. Os olhos
do assassino estã o de novo prestes a fechar-se e parecem ofuscados.
– Sammy, gosto muito de ti – diz Rex.
David Jordan arregala os olhos de repente e aponta-lhes a arma.
Joona puxa Sammy para o lado no instante exato em que o projé til
atravessa a placa de vidro atrá s deles.
Saem para a chuva e para o vento impetuoso. Sammy cai no
pavimento de pedra e a porta é empurrada para trá s com uma rajada tal
que o vidro se estilhaça.
Joona ajuda Sammy a levantar-se e, no meio da chuva de cacos de
vidro, vê David Jordan atravessar o lobby a correr com a pistola
apontada a eles.
– Temos de nos esconder – grita Joona no vento furioso, arrastando
o rapaz consigo.
A á gua cai do telhado, transborda das caleiras e sobe dos bueiros a
borbulhar.
– Pai – grita Sammy.
Joona arrasta o rapaz até ao outro lado das pedras redondas que
ladeiam o caminho, atravé s dos arbustos. Atiram-se ambos para lá da
beira do canteiro, caem ao chã o e deslizam por uma descida coberta de
lama. Ao cair, arrastam com eles seixos e terra revolvida.
Os ramos de algumas bé tulas jovens travam-nos, e Sammy lança
uns gemidos.
Joona já está em pé . Leva o rapaz para longe do hotel, enquanto a
chuva desaba sobre eles e a á gua continua a correr, abrindo novos
sulcos e arrastando terra e folhas.
Escondem-se por baixo de uma rocha saliente, depois ouvem David
Jordan gritar.
– Sammy – berra, avançando ao longo da margem do terreno. – O
teu pai está quase a morrer e precisa de ti.
O rapaz respira com uma di iculdade incrı́vel e tenta sentar-se.
Joona obriga-o a icar no chã o e repara que tem as pupilas dilatadas
pelo choque.
– Preciso de falar com o meu pai – murmura o rapaz.
– Fala mais baixo – diz Joona.
A luz que sai das janelas fende a cortina de chuva, e uma silhueta
passa rapidamente à frente de um dos vidros. Os passos de DJ fazem
rolar algumas pedras, e Sammy treme quando as vê cair no chã o à
frente deles.
Mas de repente os passos interrompem-se.
David Jordan parou. Está imó vel e permanece à escuta, esperando
que as suas presas saiam do esconderijo e desatem a correr como
coelhos.
114
Saga insiste até ao limite, mas nã o consegue acordar Grace antes de
o mé dico chegar ao quarto dela para o controlo habitual. Abre a porta e
vira as costas ao pessoal vestido de branco, depois chega à sala de estar
e serve-se com gestos nervosos de uma chá vena de café .
Uma mulher de meia-idade, com uns esplê ndidos olhos verdes,
olha para ela e depois abana a cabeça.
– Nã o é hora de visita – murmura, ao mesmo tempo que começa a
esmigalhar um brioche no colo.
Saga bebe um gole de café aguado, pousa a chá vena e observa a
fotogra ia de David Jordan em uniforme militar. Os olhos e as maçã s do
rosto fazem lembrar os de Rex Mü ller, mas no resto os dois homens nã o
sã o mesmo nada parecidos.
Saga pega na chá vena e bebe mais um gole de café , depois dá uma
volta pela sala, lança um olhar em direçã o ao corredor e apercebe-se de
que o pessoal está a sair do quarto de Grace para ir bater à porta
seguinte.
Espera mais uns segundos, volta rapidamente para trá s, entra e
fecha silenciosamente a porta atrá s de si, depois aproxima-se de Grace
e afaga-lhe a face.
– Acorde – sussurra.
As pá lpebras da mulher tremem, mas continuam fechadas. Saga
ouve que tem uma respiraçã o mais leve e acaricia-lhe novamente a face.
– Grace?
A mulher abre lentamente as pá lpebras pesadas, pestaneja e
observa Saga com um ar interrogativo.
– Adormeci – murmura, molhando os lá bios.
– Eu já a deixo dormir, mas antes preciso de saber porque é que tem
tanto a certeza de que o Rex é o pai do seu ilho, se ele nã o…
– Porque vi o teste de ADN – interrompe-a Grace, a tentar sentar-se.
– Mas nunca foi feito um inqué rito – replica Saga. – Nã o lhe izeram
nenhum exame, nã o se lembra? Disse que tinha sido atropelada… e nã o
contou nada sobre a violaçã o.
– Estou a falar do teste de paternidade – responde Grace.
Saga observa-a com um ar duvidoso, senta-se na beira da cama e,
de repente, percebe o que aconteceu há trinta anos.
– Esteve com o Rex antes da violaçã o, nã o é verdade?
– Eu era uma tola e estava apaixonada…
– Nã o tiveram relaçõ es sexuais?
– Eram só beijos – diz Grace, a olhar para Saga com um ar a lito.
– Só isso?
Grace ajeita a camisa de noite e baixa os olhos.
– Foi no campo atrá s da escola… Mas, quer dizer, pará mos antes
de… sabe como se faz.
– Nem sempre é su iciente, como pode imaginar.
– Mas…
Grace ergue-se e limpa as faces e as narinas com a manga da camisa
de noite.
– Ouça-me – diz Saga. – O Rex estava fechado nas cavalariças
durante a violaçã o… Se ele é o pai do seu ilho, isso signi ica que a Grace
icou grá vida antes.
Um pensamento atravessa o rosto de Grace.
– Tem a certeza de que ele estava fechado nas cavalariças? –
pergunta.
– Sim, tenho a certeza… Os outros bateram-lhe e fecharam-no lá
dentro, nã o sabia o que se estava a passar.
– Santo Deus – suspira Grace, e as lá grimas começam a sulcar-lhe as
faces.
Estende-se na cama, abre a boca e nã o consegue dizer nada.
– Tem um telefone? – pergunta Saga, acariciando-lhe uma mã o.
Em alguma parte do edifı́cio há uma janela que se parte e o alarme
começa a tocar no corredor.
Saga vê um guarda aproximar-se pelo caminho ao lado do Oak
Lodge.
– Grace – repete. – Preciso de saber se tem um telefone.
– E proibido – replica Grace.
No quarto ao lado, alguma coisa cai pesadamente ao chã o, fazendo
oscilar o quadro na parede por cima da cama.
– Nã o é hora de visita – grita uma mulher do outro lado da parede,
com uma voz quebrada. – Nã o é hora de visita.
Saga sai do quarto e começa a correr ao longo do corredor em
direçã o à saı́da, mas o guarda robusto aparece por detrá s de uma
esquina com um molho de chaves na mã o. Quando a vê , para, respira
fundo e pega no taser.
Ela prossegue em direçã o a ele sem hesitar, tira um extintor
vermelho da parede e aproxima-se a passos largos.
O guarda olha para Saga, destrava a arma e vai ao encontro dela.
O extintor é pesado. Saga levanta-o com uma mã o e depois agarra-o
també m com a outra enquanto se aproxima rapidamente do guarda.
– Preciso de um telefone – diz, ao mesmo tempo que o atinge
violentamente no peito com a base do extintor.
Ele geme ao sentir o ar abandonar-lhe os pulmõ es, depois vacila
para trá s por causa da pancada e tenta apoiar-se à parede. Saga agride-
o novamente.
O homem está prestes a cair ao chã o e larga o taser ao mesmo
tempo que estende uma mã o e faz cair um quadro pintado por uma das
pacientes.
Saga aproxima-se dele e dá -lhe um pontapé acima do tornozelo. O
pé do homem desliza no chã o, o que o faz bater com os ombros na
parede e aterrar em cima das ná degas.
– Que merda – resmunga, a tossir, e depois olha para Saga com um
ar transtornado.
A agente da Sä po atira o extintor ao chã o, insinua-se por entre as
pernas do homem e agarra-lhe na cabeça com as duas mã os, depois
puxa-a para si e agride-o no rosto com o joelho. Ouve-se um estalo: a
cabeça do guarda salta para trá s e o suor salpica o teto. O enorme corpo
do homem acompanha a cabeça e cai desamparado no chã o. O guarda
ica imó vel, deitado de costas, com os braços estendidos e a boca
ensanguentada.
– E assim tã o difı́cil conseguir um telefone? – pergunta Saga,
ofegante.
115
DJ regressa do pá tio submerso pela chuva e passa atravé s da porta
partida, depois lança um grito e atira a pistola contra a parede. Com a
pancada, os componentes da arma espalham-se pelo chã o e en iam-se
por baixo dos mó veis do lobby.
Rex está deitado de lado e respira com imensa di iculdade. A dor
in lama-lhe o ventre e cada movimento lhe provoca guinadas tã o
intensas que tem de se esforçar por nã o desmaiar.
– O que é que estiveste a fazer lá fora? – pergunta, com uma
respiraçã o arquejante.
Tenta levantar-se, mas volta a cair para a frente porque as pernas
cedem, e acaba por icar de joelhos. Aperta a mã o contra a ferida.
Durante alguns segundos, o seu campo de visã o restringe-se, mas
depois repara que DJ está outra vez a amarrar em volta da cabeça a
tirinha com as orelhas de coelho e que se dirige a ele empunhando uma
faca negra. As orelhas cortadas abanam a cada passo.
– O Sammy é apenas uma criança – diz Rex, ofegante.
Devido à dor e ao choque intensos, di icilmente consegue perceber
o que se está a passar. DJ empurra-o para a frente. Rex protege-se com
as mã os e depois sente a faca cortar-lhe as costas.
Rex cai ao chã o, sem força nos braços.
– Nã o podes fazer isso – geme, quando DJ o obriga a pô r-se de pé .
Rex nã o faz ideia da profundidade da ferida nas costas: o medo de
que Sammy esteja morto faz passar tudo o resto para segundo plano. DJ
empurra-o para a frente atravé s da porta partida, para debaixo da
chuva.
Aterrorizado, Rex olha em volta à procura do corpo de Sammy,
enquanto avançam em direçã o à igreja.
A chuva abate-se sobre ele, e a roupa ica imediatamente
encharcada e gé lida. Rex pressiona a barriga com as duas mã os e sente
o sangue quente escorrer-lhe por entre os dedos.
As bá tegas violentas de chuva desabam sobre a estrada em regatos
cheios de espuma.
Rex é empurrado para a frente, avança dois passos e parece-lhe
estar prestes a desmaiar por causa do cansaço. Tudo à volta dele se
move por saltos, como se o mundo inteiro estivesse a levar empurrõ es.
– Sammy! – grita DJ no meio da chuva.
Rex começa a chorar de alı́vio assim que percebe que Sammy
conseguiu pô r-se a salvo, e que DJ o perdeu na escuridã o.
– Sammy! – vocifera DJ, afastando as orelhas de coelho do rosto. –
Olha para o teu pai, agora!
Rex cambaleia para a frente, tenta falar, mas apenas tosse sangue.
– Chama pelo Sammy – ordena DJ. – Diz-lhe para se mostrar. Diz-lhe
que gostas dele e que vai correr tudo bem…
Rex para, arquejante, no cruzamento em T. Já nã o lhe apetece entrar
no jogo. DJ põ e-se diante dele e agride-o histericamente no rosto com o
cabo da faca. Rex oscila, mas consegue manter o equilı́brio e levantar o
queixo.
– Chama o Sammy – diz DJ, com um ar ameaçador.
– Nunca – rebate Rex, a tentar respirar pela boca.
A chuva atravessa o ar com um rugido, como se fosse uma vela
rasgada, e as poças parecem ferver. A velha igreja ao fundo do vale tem
as paredes vermelhas e riscadas, e parece um pedaço de madeira
ensanguentado no meio das cruzes brancas do cemité rio.
– Eu percebo – diz Rex. – Percebo que tu aches…
– Cala-te – berra DJ.
– Eu nã o violei…
– Corto-te o pescoço – grita DJ.
Ao longe, na estrada principal, veem-se as luzes azuis irreais dos
carros da Polı́cia que se aproximam pelo desvio que dá acesso ao hotel.
– Sammy – berra DJ.
O ilho só se vai safar se continuar escondido, pensa Rex.
– Continua a caminhar – diz DJ.
Rex olha-o nos olhos e depois cai de joelhos no meio do cruzamento.
Já chega.
DJ quer obrigá -lo a levantar-se: agride-o na face e grita-lhe que
continue a andar. Rex permanece imó vel, de joelhos. A dor que sente já
nã o tem a mesma intensidade de antes. DJ empurra-o e ele vacila, mas
nã o se levanta.
Fecha os olhos, volta a abri-los e pensa que chegou o im, mas
depois, ao longe, vê um vulto no meio da chuva. Algué m se aproxima
pelo caminho que vai dar ao cruzamento.

Joona chegou ao caminho de saibro. Avança sob a chuva em direçã o


aos dois vultos no meio do cruzamento. Todo o terreno à volta dele
parece tremer. Sabia que tinha à disposiçã o exatamente dezanove
minutos para salvar Rex, a partir do momento em que este tinha sido
atingido na barriga pela bala.
O assassino seguiu o mesmo esquema de todas as outras vezes.
Faltam dois minutos.
Joona sabia que ia conseguir afastar Sammy e regressar antes que
David Jordan procedesse à execuçã o de Rex.
A chuva escorre-lhe pelo meio das sobrancelhas e ofusca-lhe a vista.
A cada passo, a pistola oscila no coldre, por baixo do casaco molhado.
Ainda nã o revelou ao assassino que está armado.

O caçador agarra nos cabelos molhados de Rex e puxa-lhe a cabeça


para trá s, mas depois encosta-lhe a lâ mina do punhal ao ombro. Fita o
homem que se aproxima e pergunta a si mesmo o que quererá . Porque
regressou? Talvez se tenha apercebido da gravidade da situaçã o, mas
nesse caso devia ter feito os possı́veis por se manter ao largo.
Os carros da Polı́cia vã o chegar dentro de cinco minutos.
Está bem assim.
Terá tempo de levar a bom termo aquilo que deve fazer, nada mais
tem importâ ncia, pensa, enquanto olha para o reló gio.
O esquema da vingança é perfeito.
Com aquela violaçã o, Rex trouxe ao mundo o seu pró prio carrasco.
No instante exato do crime, duas cé lulas fundem-se dando origem à
vida que se desenvolve no ventre de Grace, ou seja, o feto que a segue
até Chicago, a criança dada à luz à s escondidas e que ao crescer se
transforma no caçador de coelhos, o qual, trinta anos depois, regressa
para punir o criminoso.
O desconhecido aproxima-se a passos largos.
A chuva desaba sobre os trê s homens e ataca os arbustos,
dobrando-os até ao chã o. A á gua corre rá pida sobre a estrada como
uma superfı́cie de vidro escuro.
Sem pressa, o caçador encosta a lâ mina ao pescoço de Rex. Observa
o homem alto que parece descontrair-se no meio do movimento de um
passo, depois vê -o abrir o ú ltimo botã o do casaco, en iar a mã o lá
dentro, sacar a pistola e apontar-lha num ú nico movimento luido e
preciso.
O caçador nã o consegue reagir: é como se nã o percebesse, como se
nã o pudesse aceitar aquilo que está a acontecer.

Joona avança rapidamente no meio da chuva enquanto faz pontaria


e dispara trê s vezes contra o peito de David Jordan.
A pistola salta para trá s com o impacto, e a ú ltima faı́sca branca do
disparo reluz no ar cinzento como uma pequena explosã o. Os gases
dissolvem-se na chuva fumegante e os cartuchos caem com um ruı́do
metá lico em cima do saibro do caminho.
David Jordan vacila para trá s com o choque e cai ao chã o. O som dos
trê s tiros ressoa surdamente por entre as encostas da montanha.
Joona percorre os ú ltimos metros com a pistola apontada ao rosto
do assassino, afastando a faca com um pontapé . A chuva envolve-os, a
fervilhar no chã o. David Jordan está estendido no pavimento e ita-o.
– Tiveste sempre uma pistola – diz, estupefacto.
Joona descobre os trê s orifı́cios da entrada das balas agrupados por
baixo dos mú sculos peitorais e percebe que a David Jordan nã o restam
mais de trê s minutos de vida.
E impossı́vel salvá -lo.
Joona manté m a pistola encostada à tê mpora do homem enquanto
lhe apalpa a roupa, depois volta a levantar-se e guarda a arma.
David Jordan cospe sangue sobre a barba e levanta os olhos para o
cé u negro. A chuva que cai dá -lhe a impressã o confusa de ser erguido
para cima a grande velocidade.
Rex ica ajoelhado no meio do cruzamento. Quando Joona se
prepara para o ajudar, recusa-se a deitar-se.
– Sammy – murmura, arquejante.
– Nã o corre nenhum perigo – diz Joona, e ajuda-o a estender-se
delicadamente de lado.
Rex tem os lá bios pá lidos e o corpo todo treme-lhe como se
estivesse com muita febre. Joona arranca-lhe a camisa e vê o sangue
jorrar pelo orifı́cio de entrada do projé til no ventre. Provavelmente tem
um rim dani icado. Está atordoado pela dor e vai entrar rapidamente
em choque circulató rio.
O telefone de Joona toca: é Saga. Atende e diz-lhe que naquele
momento é difı́cil falar com ela.
– E importante – explica Saga. – Estive outra vez com a Grace e ela
disse-me que o Rex é o pai do David Jordan.
– Mas ele nã o participou na violaçã o – diz Joona.
David Jordan está deitado de costas com a boca aberta, mas os olhos
voltam a fechar-se quando as gotas de chuva o atingem.
Os primeiros carros passam diante da pequena igreja. As luzes azuis
deslizam atravé s da chuva sobre a madeira vermelha.
Joona põ e o telefone em alta voz e pousa-o numa das pedras
redondas que marcam as margens da estrada.
– Ouves-me? – prossegue Saga.
– Sim – responde Joona, enquanto ajuda Rex a erguer os joelhos
para aliviar a pressã o sobre aferida cheia de sangue.
– Se calhar isto já nã o tem nenhuma importâ ncia – prossegue Saga –,
mas o David Jordan nã o foi fruto de uma violaçã o, como nó s
pensá vamos… Na realidade, é o fruto de um amor.
Saga continua a falar, mas do telefone sai agora um ruı́do que
entretanto muda e se desvanece no momento em que o ecrã se apaga.
Rex tenta virar a cabeça para observar DJ, mas já nã o tem forças. O
sangue escorre por entre os dedos de Joona e pinga na estrada.
Os polı́cias e os paramé dicos percorrem o resto do caminho a correr.
DJ deixou de respirar. O seu rosto está completamente relaxado.
Talvez tenha conseguido ouvir as ú ltimas palavras de Saga antes de
morrer, e talvez tenha percebido aquilo que ela estava a dizer.
Joona Linna levanta-se lentamente e avança pela subida, e
entretanto descobre Sammy ao lado do pai, junto da ambulâ ncia. A
chuva da cor da pedra abate-se sobre o vale e o extenso lago. Toda a
paisagem é desenhada em cinza e prata.
Epílogo
Rex aproxima-se da beira da piscina e observa o fumo que ondeia
sobre a á gua azul. Ergue os olhos e contempla as borboletas que voam
em volta das lanternas no jardim luxuriante.
Com um leve crepitar, a gordura escorre para cima das brasas e
pequenas chamas erguem-se para os bifes grossos dispostos na grelha.
Sammy pô s a mesa comprida da varanda e está a encher um grande
coelho cor-de-rosa para a piscina. Veronica está sentada mais longe, na
cama de rede, a beber vinho tinto com Umaru, um sujeito que conheceu
na Serra Leoa. A ilha dele, uma menina de nove anos, sai pela porta da
varanda com uma taça de salada na mã o.
Rex acompanhou o corpo de David Jordan até Chicago e sentou-se
ao lado de Grace durante o funeral, de mã o dada com ela. A mulher
estava de tal maneira cheia de calmantes que teve de a amparar à saı́da
da igreja. Enquanto passavam ao lado dos bancos, depois da breve
cerimó nia, ele sussurrou-lhe vá rias vezes:
– Perdoa-me.
Rex aproxima-se da grelha para virar a carne, vê que está no ponto
certo, e depois bebe um gole de á gua mineral antes de pô r no grelhador
os bifes de soja para Sammy. Decide ir à cozinha buscar o tupinambo e
as batatas gratinadas, e entretanto ouve tocar o telefone.
– Estou? – atende, enquanto veri ica com a tenaz a consistê ncia da
carne.
– Olá , Rex, é a Edith – diz uma voz cristalina.
– Olá – responde ele, com um tom interrogativo.
– Conhecemo-nos quando ganhaste o pré mio Cozinheiro dos
Cozinheiros.
– Eu sei, já tinha pensado ligar-te, mas…
– Estou grá vida – explica a rapariga.
– Parabé ns – diz Rex, sem re letir.
– Es tu o pai.

E já noite quando Valeria apanha as maçã s e leva os cestos para a


cave. A seguir entra em casa e enche a banheira no andar de cima,
depois junta na á gua ó leo essencial e algumas gotas de perfume.
Mergulha na á gua quente com um suspiro, sente relaxar os
mú sculos rı́gidos e pensa no facto de Joona nã o lhe ter voltado a ligar
depois da sua mensagem.
Obviamente, entende-o. Afastara-o sem razã o, só por ele ser aquilo
que é .
Será para sempre um polı́cia.
Valeria tinha deixado passar dois meses, sem nunca parar de
pensar em Joona. Na semana anterior conseguiu arranjar coragem e
pegou no telefone para tentar contactá -lo novamente.
Descobrira que ele nunca tinha recebido aquela mensagem.
Valeria sorri para si mesma e fecha os olhos. Escuta a sua pró pria
respiraçã o e o som das gotas que pingam da torneira da banheira com
um ritmo tranquilo, produzindo salpicos ligeiros. Por qualquer razã o,
nã o consegue lembrar-se se fechou a porta da cave antes de subir.
Nã o tem importâ ncia, mas habitualmente fecha-a.
Está quase a adormecer. Pousa um pé na beira da banheira, observa
o re lexo ondeante no teto e levanta-se devagar para evitar uma
tontura. Sai cautelosamente da á gua e começa a secar-se. Tem a pele
muito quente e o espelho do lavató rio está cinzento por causa do vapor.
Esfrega as pontas do cabelo molhadas e pendura a toalha. Abre
ligeiramente a porta da casa de banho, espera alguns segundos e
inspeciona o corredor com o olhar, observando as sombras imó veis no
papel de parede.
Nos ú ltimos dias aconteceu-lhe aperceber-se de uma presença
inquietante em casa. Normalmente nã o tem medo do escuro, mas desde
os tempos da prisã o icou-lhe o há bito de estar sempre alerta.
Valeria sai da casa de banho e atravessa nua o corredor enquanto
arranca os pensos rá pidos das mã os e dos antebraços. Dois dias antes
andou a arrancar ervas daninhas num grande campo pró ximo de
Saltsjö baden. Ao longo de um murete de pedra cresciam muitas silvas e
os picos nas hastes inas furaram-lhe as luvas.
Entra no quarto e repara que as copas das á rvores para lá da estufa
estã o ainda mais escuras do que o cé u. Aproxima-se da có moda e abre a
primeira gaveta, pega num par de cuecas e en ia-as. Depois vai ao
armá rio, tira o vestido amarelo e estende-o em cima da cama.
Ouve um ruı́do no andar de baixo. Para de repente e ica imó vel, à
escuta, mas nã o ouve mais do que silê ncio.
Nã o percebe o que possa ter sido.
Talvez a fotogra ia emoldurada da mã e tenha caı́do ao chã o depois
de o prego, inalmente, ter cedido.
Talvez as pingas da torneira tivessem feito deslocar os pratos no
lava-loiça.
Naquela noite, Valeria convidou Joona para ir a casa dela: vã o jantar
juntos, e ela pensou em preparar cordeiro com coentros, uma receita
que descobriu no novo livro de Rex.
Nã o disse a Joona que pode lá passar a noite, mas em qualquer caso
fez a cama no quarto de hó spedes.
Aproxima-se da janela e começa a baixar os estores, mas depois, de
repente, parece-lhe descortinar um vulto ao lado de uma das estufas.
Recua instintivamente, deixando fugir a ita da mã o. O estore salta
para cima e enrola-se de repente.
Valeria apaga o candeeiro, cobre os seios com as mã os e espreita
para fora.
Nã o vê ningué m, mas tem praticamente a certeza daquilo que viu
antes.
Por entre os troncos inos das á rvores, um homem de fı́sico enxuto
e com o rosto cheio de rugas itava-a.
Como um espantalho na sombra, no limite do bosque.
Era um esqueleto, repete para si mesma.
Um esqueleto com uma parca verde e a tesoura velha na mã o.
Agora vê apenas o re lexo nos vidros da estufa: as á rvores, a erva
amarelecida e o carrinho de mã o ferrugento.
Mora sozinha numa casa de campo, e nã o se pode dar ao luxo de ter
medo do escuro.
Talvez fosse um cliente, ou algum estafeta que lhe queria perguntar
alguma coisa e que acabou por ir embora depois de a ter visto nua à
janela.
Pega no telemó vel que está em cima da mesa de cabeceira, mas está
completamente descarregado.
Joona deveria chegar dentro de uma hora. Tem de começar a
cozinhar, mas ainda assim precisa de descer e inspecionar o horto.
Valeria veste um roupã o velho e desce as escadas, mas para antes
de chegar ao fundo. Uma lufada de ar frio acaricia-lhe as pernas.
Lentamente, desce os ú ltimos degraus e descobre, com um arrepio, que
a porta está aberta.
– Está aı́ algué m? – diz, com uma voz circunspecta.
Folhas molhadas estã o espalhadas pelo tapete da entrada e no
parquet claro do pavimento. Valeria en ia as galochas nos pé s descalços,
pega na lanterna que está em cima da mesa e sai.
Desce em direçã o à s estufas e veri ica se as portas estã o fechadas,
depois acende a lanterna e ilumina o interior. Gotas de condensaçã o
cintilam sobre o vidro. As folhas encostadas à s janelas parecem
acender-se com a luz, lançando para trá s a sua pró pria sombra.
Valeria dá a volta à estufa mais exterior e aproxima-se
cautelosamente do bosque. As galochas produzem um rumor sobre a
erva, e um raminho quebra-se com um estalido sob o seu peso.
– Precisa de ajuda? – diz em voz alta.
A luz da lanterna, a casca branca do salgueiro parece um mapa
geoló gico. Os troncos iluminados escondem aqueles que estã o
mergulhados na escuridã o na parte mais interior do bosque.
Valeria aproxima-se do carrinho de mã o, observa as escamas
castanhas de ferrugem e os furos no metal poroso, e depois, de repente,
sente tanto frio que começa a tremer.
Afasta-se lentamente para o lado, aponta o feixe da lanterna para
mais longe e descobre os ios cintilantes de uma teia de aranha.
Nã o se vê ningué m e a erva do campo parece intacta, mas mais
adiante, por entre as á rvores, exatamente onde começa a escuridã o do
bosque, repara num cobertor cinzento, uma manta velha que Valeria
nunca viu. Aproxima-se, apesar de o seu coraçã o ter começado a bater
loucamente.
A manta parece cobrir qualquer coisa, qualquer coisa que tem a
forma de um corpo magro: uma pessoa enroscada, sem braços.
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Epub Feito: Junho/2018
Fonte: Pdf

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