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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ

UENP – CAMPUS DE JACAREZINHO


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE DIREITO

ADRIANO DUARTE

LIBERDADE RELIGIOSA E OS LIMITES DE


INTERVENÇÃO DO ESTADO LAICO

JACAREZINHO – PR
2015
ADRIANO DUARTE

LIBERDADE RELIGIOSA E OS LIMITES DE


INTERVENÇÃO DO ESTADO LAICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no


curso de Bacharelado em Direito na Universidade
Estadual do Norte do Paraná como requisito
parcial para obtenção do título de Bacharel.

Orientador: Professor Doutor Edinilson Donisete Machado.

JACAREZINHO – PR
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ
UENP – CAMPUS DE JACAREZINHO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE DIREITO

ADRIANO DUARTE

LIBERDADE RELIGIOSA E OS LIMITES DE


INTERVENÇÃO DO ESTADO LAICO

________________________________________________________
Orientador: Professor Doutor Edinilson Donisete Machado

Membro 2: Professor Doutor Jaime Domingues Brito

Membro 3: Professor Doutor Marcos César Botelho

Aprovado em 14 de setembro de 2015.


Dedico este trabalho àqueles que lutam incansavelmente pelos direitos humanos.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pelas bênçãos alcançadas e pelos desafios


impostos no caminho;
Ao meu Orientador, Prof. Dr. Edinilson Donisete Machado, por sua paciência
e dedicação comigo durante o período de orientação;
Aos Mestres desta Instituição de Ensino pela colaboração na minha
formação acadêmica;
À minha mãe, Maria de Lourdes da Silva Duarte (in memorian) pelo amor,
carinho, confiança, incentivo, oportunidades e alegria proporcionados em todo o
tempo em que Deus a confiou junto a nós;
À minha irmã, Rosângela, pelo carinho e dedicação nos momentos em que
mais precisei;
Aos sobrinhos, Willian, Thaís, Mateus e Maria Fernanda, pelas alegrias.
À Direção, à Coordenação, aos Funcionários e aos Professores da Escola
Municipal Dr. João de Aguiar que se dedicam e lutam com garra na formação
humana e científica dos alunos, enfrentando com determinação os obstáculos, às
vezes, injustos;
Aos meus alunos do 5º ano “A” e 5º ano “B”, porque vejo neles a esperança
de um futuro melhor.
DUARTE, Adriano. Liberdade Religiosa e os Limites de Intervenção do Estado
Laico. 2015. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Centro
de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual do Norte do Paraná,
Jacarezinho, 2015.

RESUMO

O trabalho de conclusão de curso visa analisar com olhar crítico a questão da


liberdade religiosa como sendo um dos direitos fundamentais garantidos na Carta
Magna de 1988 e acentuada como direito essencial à dignidade da pessoa humana.
Este trabalho faz um resgate desde sua evolução histórica até o atual tratamento
jurídico constitucional concedido pelo Estado laico em relação à liberdade religiosa e
até onde é a sua margem de apreciação no âmbito das confissões, ponto central
deste trabalho. Portanto, busca-se com este trabalho, chamar a atenção para o
direito à liberdade religiosa dos indivíduos, bem como das pessoas jurídicas
compostas pelas confissões religiosas, com o objetivo de evitar as intervenções
abusivas do Estado nas questões internas das religiões, como formas de professar o
credo, escolha de líderes e decisões tomadas por entidades religiosas, visando-se
para debater esse assunto tão pouco discutido pela doutrina.

Palavras-chave: Liberdade religiosa. Estado laico. Direitos


fundamentais. Confissões religiosas.
DUARTE, Adriano. Libertad Religiosa y los Límites de Intervención del Estado
Laico. 2015. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Centro
de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual do Norte do Paraná,
Jacarezinho, 2015.

RESUMEN

El trabajo de conclusión de curso se destina a analizar con mirada crítica la cuestión


de la libertad religiosa como siendo uno de los derechos fundamentales
garantizados en la Carta Magna de 1988 y acentuada como derecho esencial a la
dignidad de la persona humana. Este trabajo hace un rescate desde su evolución
histórica hasta el actual tratamiento jurídico constitucional concedido por el Estado
laico con relación a la libertad religiosa y hasta donde es su margen de apreciación
en el ámbito de las confesiones, punto central de este trabajo. Por lo tanto, se busca
con este trabajo llamar la atención para el derecho a la libertad religiosa de los
indivíduos, así como de las personas jurídicas compuestas por las confesiones
religiosas, con el objetivo de evitar las intervenciones abusivas del Estado en las
cuestiones internas de las religiones como formas de profesar el credo, eligir líderes
y decisiones tomadas por entidades religiosas, buscando debater ese tema tan poco
discutido por la doctrina.

Palabras-clave: Libertad religiosa. Estado laico. Derechos


fundamentales. Confesiones religiosas
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .....................................................................................................08

1 BREVES LEVANTAMENTOS HISTÓRICOS ACERCA DA RELIGIÃO...........11


1.1 Conceito de religião.....................................................................................11
1.2 O politeísmo................................................................................................12
1.3 O monoteísmo.............................................................................................14
1.4 A liberdade religiosa na Idade Média..........................................................16
1.5 A transformação no Renascimento.............................................................18
1.5.1 O Estado Moderno e o pluralismo........................................................21
1.5.2 A liberdade religiosa entre a secularização e a dessecularização.......22
1.6 A liberdade religiosa nos EUA e na França................................................24

2 A LIBERDADE RELIGIOSA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS.............33


2.1 As relações entre Estado e religião no império..............................................33
2.2 A liberdade religiosa na primeira república.....................................................35
2.3 Liberdade religiosa nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967/69.........37
2.4 A liberdade religiosa na Constituição de 1988................................................39
2.4.1 O preâmbulo da Constituição Federal..................................................41
2.4.2 Liberdade de crença e liberdade de culto.............................................41
2.4.3 Cooperação entre Estado e religião no princípio da laicidade.............44
2.4.4 Sobre a imunidade tributária dos templos religiosos............................46
2.4.5 O ensino religioso nas escolas públicas...............................................48
2.4.6 A liberdade de auto-organização e direito de autodeterminação.........51

3 A INGERÊNCIA DO ESTADO NO ÂMBITO DAS CONFISSÕES...................55


3.1 Neutralidade do Estado frente às religiões.....................................................55
3.2 O princípio da tolerância.................................................................................58
3.3 Quais os limites da intervenção do Estado?...................................................61
3.4 As limitações do direito à liberdade religiosa..................................................70
3.5 Alguns tópicos problemáticos.........................................................................72
3.5.1 Sacrifício de animais em rituais.............................................................73
3.5.2 Preconceitos religiosos e discriminação................................................75
3.5.3 A transfusão sanguínea e a autonomia do paciente.............................77
3.5.4 A influência da religião nas questões de políticas mistas......................79

Considerações Finais............................................................................................84

Referências Bibliográficas.....................................................................................86
8

INTRODUÇÃO

O ser humano está em constante busca pelo Transcendente, pelo Sagrado


desde épocas remotas, surgindo assim, as religiões, nas quais o ser humano se
identifica por meio de suas crenças e cultos. A religião age na sociedade como papel
importante, pois ela pode ajudar no desenvolvimento pessoal do indivíduo.
Além disso, em algumas partes do mundo, há práticas de terrorismo,
crueldades, conflitos em nome da religião e por outro lado, grupos que promovem
ajudas comunitárias em países extremamente pobres, daí se percebe que o conceito
de religião é entendido de maneira diversa entre os grupos.
O direito à liberdade religiosa no Brasil é garantido pela Constituição Federal
de 1988 como sendo um direito fundamental do ser humano. Por fazermos parte de
uma sociedade pluralista em todos os sentidos, ocorrem alguns conflitos
relacionados à religião. A liberdade religiosa está presente na maioria dos países, e
como tal também apresenta conflitos, podemos citar como exemplos, a França e os
Estados Unidos, onde a primeira apresenta um Estado totalmente laico.
Como todo direito não é absoluto, a liberdade religiosa sofre algumas
restrições, quando, por exemplo, há uma colisão com outros bens jurídicos tutelados
pelo direito como a vida, a liberdade, a saúde, entre outros. Neste sentido, a
liberdade religiosa deve obedecer ao ordenamento jurídico, observando as leis
penais e civis.
Diante do tema religião, há que se levar em consideração um fator muito
importante: a tolerância. Diante de uma sociedade pluralista como a nossa, com
várias organizações religiosas, existem pontos de vista diversos e as diferenças
religiosas são ponderadas pela tolerância. Quando esse fator não é respeitado, gera
a intolerância religiosa, responsável pelo desrespeito, pelo ódio, pelas mortes e em
alguns lugares do mundo, pelas guerras.
Da mesma forma, serão abordados neste trabalho os limites de atuação do
Estado laico no âmbito interno das confissões religiosas, como deve agir o Estado
laico, que não adotou nenhuma religião oficial, nem tampouco é ateu diante de um
conflito entre indivíduo e Igreja.
9

O direito de autodeterminação das organizações religiosas é garantido


constitucionalmente e cabe ao Estado zelar por esse direito e quando necessário,
poderá haver uma possível intervenção estatal.
O objetivo do presente trabalho é analisar com olhar crítico a tutela que o
Estado oferece ao direito fundamental de liberdade religiosa, bem como os limites da
intervenção estatal no seio das comunidades religiosas. O trabalho apresenta
também um breve levantamento histórico da religião ao longo dos tempos,
estabelecendo comparação entre os objetivos do Estado e da Igreja, bem como a
separação entre ambos que ocorreu após o Renascimento, período em que o
homem passou a ser valorizado em sua essência, substituindo a figura central que
antes era Deus, para entender a lei natural das coisas.
O estudo e desenvolvimento sobre a liberdade religiosa justificam-se pela
pouca importância que a doutrina tem dado a esse tema tão polêmico, pois de um
lado está a religião e de outro, o Estado. Diante de um conflito, o Estado não poderá
permanecer inerte, deverá solucioná-lo de uma maneira que não viole a garantia da
liberdade religiosa e da liberdade de autodeterminação das organizações religiosas,
ambas consagradas pela Carta Magna de 1988 como direitos fundamentais que se
desdobram no princípio da dignidade da pessoa humana.
Para o desenvolvimento deste trabalho de conclusão de curso foram
utilizadas pesquisas bibliográficas baseadas em obras existentes sobre o tema,
lastrando-se principalmente em algumas obras de grandes estudiosos do Direito,
bem como a utilização de artigos científicos, jurisprudências e de casos concretos
que também foram alvos de consultas para a realização do trabalho.
A metodologia utilizada neste trabalho apresenta uma pesquisa bibliográfica
e documental, na qual utilizou-se o método de análise dedutivo.
O mesmo se estrutura em três capítulos, apresentando no primeiro capítulo
a história das religiões, a influência da religião na política e a separação entre
Estado e Igreja que ocorreu na Europa após o Renascimento e tece algumas
considerações sobre a liberdade religiosa dos Estados Unidos e da França, onde o
direito brasileiro buscou algumas contribuições. No segundo capítulo, é abordada a
liberdade religiosa nas Constituições brasileiras, dando ênfase principalmente na
atual Constituição, estabelecendo também comparações às Constituições
anteriores. O terceiro capítulo caracteriza a ingerência do Estado laico no seio
10

interno das confissões religiosas, a neutralidade do Estado frente às religiões, o


princípio da tolerância e alguns problemas atuais que envolvem a liberdade religiosa.
11

1 BREVES LEVANTAMENTOS HISTÓRICOS ACERCA DA RELIGIÃO

1.1 Conceito de religião

O conceito de religião é uma pergunta que os pesquisadores investigam,


procurando diferenças e semelhanças entre as religiões, pode ser um batismo numa
igreja cristã, adoração num templo budista, os judeus com o rolo de Torá diante do
Muro das Lamentações em Jerusalém ou mesmo os peregrinos reunindo-se em
Meca.
Religião, nas palavras de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986) é a
crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada como
criadora do Universo e que tal deve ser adotada e obedecida.
A religião exerce um papel muito importante e significativo na sociedade e
também na política de todo mundo. Mas existem conflitos entre católicos e
protestantes na Irlanda do Norte, cristãos contra muçulmanos e vice-versa.
Há seitas religiosas que praticam atos de terrorismo em nome de sua
religião e ao mesmo tempo diversas religiões promovem ajudas humanitárias aos
pobres de países carentes, e é por isso que o fator religião é compreendido de
maneiras diversas entre os grupos. Neste sentido, o escritor Murilo Cisalpino
defende:

Progressivamente, o pensamento místico, que sempre acompanhou


os homens, foi tornando-se mais complexo e diversificado. Hoje
existem milhares de seitas, religiões e crenças, que vão desde as
mais simples superstições (como não cruzar com um gato preto ou
não passar debaixo de uma escada) e rituais mágicos, previsões,
vidência, leitura de cartas, búzios, mapas astrológicos, até as
religiões institucionalizadas, com regras e cultos definidos e
obrigatórios a todos os fiéis. Religiões que controlam redes de
televisão, bancos, terras e Estados. (1994, p. 8).

A religião pode ser muito importante para o desenvolvimento pessoal do


indivíduo, pois ela pode responder a perguntas que instigam os homens há muito
tempo.
Há um fator muito importante que deve ser considerado dentro da religião: a
tolerância, pois existem pontos de vista diversos aos nossos e ela vem para
12

ponderar essas diferenças. A intolerância gera guerras em nome da religião, por isso
muitas pessoas foram perseguidas até a morte, isso perdura até os dias de hoje em
alguns lugares do mundo.
Muitas tentativas de explicar como surgiram as religiões já foram registradas.
O homem acreditava que todos os seres eram animados e possuíam espíritos, como
o sol, a lua, a montanha, os rios. Essa crença foi batizada de animismo pelo
antropólogo E. B. Tylor (1832 – 1917) influenciado pela teoria de Darwin sobre a
evolução.
O sagrado tornou-se palavra chave para os pesquisadores da religião, pois
eles descrevem a religião no que ela tem de especial, o seu poder de resgatar o ser
humano de seus medos e aflições e o envolver com o mais puro sentimento de amor
a si próprio e ao próximo.

1.2 O politeísmo

As religiões do mundo antigo são individualizadas por uma fisionomia


compacta e homogênea. Religiões que possuíam diversos deuses para cada
atividade humana como pesca, caça, comércio e outros ofícios.
As divindades indo-europeias indianas, gregas, romanas e germânicas se
estruturavam em três classes da época:
- o monarca;
- a aristocracia e
- os artesãos, agricultores e comerciantes.
Esses seguidores criavam templos para adoração de seus deuses, no qual
ofereciam presentes e até alguns sacrifícios para alcançarem uma graça. Os povos
antigos do politeísmo usavam o mito, histórias acompanhadas de um rito procurando
explicar alguma coisa que com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade
passou a existir. “É, pois, a narrativa de uma criação. Conta-nos de que modo algo,
que não era, começou a ser”. (CISALPINO, 1994, p. 19).
Em relação aos grupos politeístas, Grécia e Roma se destacam referente
aos mitos. Esses países sustentavam toda a cultura ocidental no que diz respeito
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aos costumes, tradições que nasceram da influência grega e romana. A cultura


greco-romana é caracterizada pela grande importância de seus mitos.
Nesse mundo de deuses com forma humana, encontramos os mesmos
deuses cultuados pelos gregos e romanos, mas com nomes diferentes: na Grécia,
Zeus; em Roma, Júpiter. Na Grécia, Hermes; em Roma, Mercúrio. Na Grécia,
Poseidon; em Roma, Netuno.
Os romanos eram mais preocupados com questões terrenas, enquanto que
os gregos se preocupavam mais com questões intelectuais, como a filosofia. Mas a
guerra, a agricultura e o comércio suas prioridades romanas. Era comum em Roma
antes de uma decisão muito importante, os sacerdotes consultarem primeiro os
deuses, observando a natureza como sinal. O mais comum era “ler” o destino nas
vísceras de um pássaro.
Neste cenário, o sacerdote era uma figura muito respeitada. Dignas de nota
são as palavras de Momolina Marconi:

Sacerdócio babilônico. Carreira não obrigatoriamente hereditária.


Qualidades essenciais: bela presença física, legitimidade de
nascimento, certo nível cultural. Nenhuma obrigação de celibato ou
de pobreza. O sacerdote era “ungido”, prática usada em todo o
Oriente Médio: na Bíblia, ele é o “Ungido do Senhor”. Nome sumério
sanga; em assírio – babilônico, sangû. A língua sacerdotal era a
suméria, embora não usada mais pelo povo: uma língua morta isola
ainda mais do mundo externo; aliás, no rito católico, só recentemente
se passou a utilizar a língua vernácula nas missas. (2008, p. 33, grifo
do autor).

No entanto, a modernidade fecha o círculo aberto pelas religiões do mundo


antigo, pois há o confronto com a religião monoteísta e os mitos já não se fazem
mais necessários num mundo racional e científico, no qual várias questões, que
antes eram desconhecidas, explicadas apenas por um mito, hoje já não mais
carecem de histórias, são desmistificadas pelo conhecimento científico, tornando os
mitos apenas histórias de uma civilização antiga, nada mais do que isso.
Outro grupo politeísta de conhecimento mundial são os egípcios, que
cultuavam seus deuses místicos de corpos humanos com cabeças de animais que
se relacionavam com a natureza.
Os egípcios acreditavam na vida após a morte, por isso usavam uma técnica
chamada de mumificação, na qual retiravam os órgãos do corpo e o cérebro e
utilizavam um líquido no corpo para conservação. Até hoje podemos encontrar
14

corpos quase perfeitos, conservados, nas pirâmides, túmulos de faraós ou de


funcionários importantes do Estado egípcio.
Os pobres no Egito, eram desprovidos desses rituais, eram enterrados em
lençóis ou redes após uma mumificação muito simples que consistia na imersão do
corpo numa solução de água e sal por alguns dias.
O Livro dos Mortos foi elaborado pelos sacerdotes egípcios que dizia como
deveria ser uma vida digna e descrevia o julgamento das almas antes de entrarem
no paraíso. Osíris colocava numa balança de um lado a alma do morto e do outro
seus pecados. Assim, a alma só entraria no paraíso se fosse leve, se pesasse
menos que seus pecados.
Na Mesopotâmia, também observamos uma forte influência do politeísmo,
principalmente na Babilônia. As divindades não eram cultuadas como no Egito, os
reis eram representantes dos deuses, intérpretes e executores da vontade divina.
As artes divinatórias prevaleciam, os sacerdotes praticavam a hepatoscopia
(marcas no fígado de humanos e animais podiam predizer como seria o futuro). Os
estudos babilônicos influenciaram muito a astrologia, ciência que estuda a relação
entre os astros e a vida na Terra.
Já os africanos têm, desde antigamente, sua religião politeísta, baseada nos
orixás que ajudam os humanos quando lhe são ofertados uma oferenda ou um
sacrifício.
Percebe-se, então, que o politeísmo esteve presente nas crenças de vários
povos, principalmente nos mais antigos, o que influenciou muito na vida e na cultura
desses povos.

1.3 O monoteísmo

Em contraste com o politeísmo, o monoteísmo é a crença em um único


Deus. No que diz respeito ao monoteísmo, Jostein Gaarder define:

A crença que prevalece na maioria das grandes religiões ocidentais é


o monoteísmo, isto é, a convicção de que existe um só deus. Há
exemplos em muitas religiões de que o monoteísmo nasceu como
reação à adoração de vários deuses (politeísmo). O islã tem suas
raízes numa renovação ou reforma da antiga religião dos nômades
15

árabes, a qual possuía numerosos deuses tribais. (2001, p. 17, grifo


do autor).

Nesse campo complexo, existe a monolatria, uma crença situada entre o


politeísmo e o monoteísmo, no qual implica a adoração de um único deus, afirmando
a existência também de outros deuses escolhido entre os vários. Exemplo disso é a
religião germânica, que poderia escolher entre Thor ou Odin, aquele que inspirasse
maior confiança de adoração entre eles. Hoje podemos encontrar a monolatria no
hinduísmo.
O judaísmo manifesta sua peculiaridade de um monoteísmo fundamentado
em “religião” e “povo”, diferentes, mas não podem ser separados. Os judeus vivem
“enraizados” em suas tradições, dando origem a um isolamento e até conflitos com
tudo o que não diz respeito ao judaísmo. Procuram não se misturar com outras
culturas, para não perder sua identidade.
Por outro lado, o Cristianismo surgiu e se afirmou no interior do Judaísmo do
Segundo Templo. Tem em comum com o Judaísmo a fé e a crença num único deus.
O Cristianismo passa a ser, então, uma religião universal, alcançando vários povos,
transformando-se na salvação da humanidade, não de um povo apenas.
Para o islamismo, que significa “submissão a Deus”, sua fé religiosa pauta-
-se também na legislação penal e civil, na vida familiar, na alimentação, no vestuário
e até mesmo nas questões de higiene pessoal. A tradição dessa religião se
configura no Alcorão e na maneira de agir, observada por Deus. “Todo o
ordenamento social tem que refletir a vontade de Deus”. (AGNOLIN, 2013, p. 203).
Para os muçulmanos, Allah não é propriamente um ser. Ele é uma força
criadora onipotente e não há representação de Allah como imagem.
O Budismo, o Hinduísmo, o Taoísmo e o Xintoísmo são religiões orientais
entre Índia e Extremo Oriente que propoem caminhos para alcançar a imortalidade e
a libertação, religiões que se configuram também como “filosofias”.
Na Índia, ainda persiste a sociedade em castas, grupos sociais hereditários.
Os grupos são:
- Brâmanes (sacerdotes e letrados) nasceram da cabeça de Brahma;
- Xátrias (guerreiros) nasceram dos braços de Brahma;
- Vaixás (comerciantes) nasceram das pernas de Brahma;
- Sudras (servos: camponeses, artesãos e operários) nasceram dos pés de
Brahma.
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Abaixo dessa estrutura, existe um grupo que surgiram da poeira do pé de


Brahma, chamados de haridchens, haryens, dalit ou intocáveis. Não se sabe a
origem do sistema de castas, segundo o Hinduísmo, vem de Brahma, a divindade
que criou o universo.
O Cristianismo começou com a decadência do Império romano. Os cristãos
já não eram mais perseguidos e com o Edito de Milão em 313 D.C., promulgado pelo
imperador Constantino, legalizou o Cristianismo na corte imperial. Em 380 D.C., com
a promulgação do Edito de Teodósio, há a transformação do Cristianismo em
religião oficial de Estado, obrigando todos os romanos a se tornarem cristãos.
Importante ressaltar que de perseguidos, os cristãos se tornaram
perseguidores, como em 392 D.C., quando o Império decretou o fechamento de
vários templos pagãos.
O Cristianismo alcança sua superioridade teológica e passa a ter grande
influência em todos os setores da sociedade. Nesse sentido, o autor Adone Agnolin
esclarece:

Uma vez adquirida a autonomia, unicidade e universalidade da vera


religio, o Cristianismo começa a impor, portanto, uma noção de
religião que será típica do Ocidente ao longo de sua história. A partir
dela, o mito, as representações, o culto e as práticas rituais dos
“outros” (antes dos pagãos, depois de qualquer outra população não
cristã) teriam sido desqualificados e relegados no espaço do jogo e
do risível (com Tertuliano) e, perante a divina litteratura da Sagrada
Escritura, as obras poéticas dos pagãos, dedicadas aos deuses,
seriam rebaixadas ao estatuto de saeculares litteral, literatura
profana e quase ridícula (com Santo Agostinho). (2013, p. 229, grifo
do autor).

Entende-se então, que o Cristianismo adquiriu uma autonomia e


autoritarismo além de passar a perseguir os considerados pagãos. Além disso, os
que não professavam a religião do Cristianismo eram considerados inimigos e
deveriam ser castigados. Começa aí uma verdadeira “caça às bruxas”.

1.4 A liberdade religiosa na Idade Média

Essa é uma parte muito delicada da história medieval, levando em


consideração o papel da Igreja que teve forte influência, não somente no campo
17

religioso, mas ultrapassando limites, no campo da fé e intervindo em vários setores


da vida medieval, inclusive na política do feudalismo.
Devido à expansão do Cristianismo, a Igreja aproveitou-se para se tornar a
“senhora absoluta” da verdade, incontestável, castigando aqueles que não
aceitavam seus dogmas. A sociedade medieval estava dividida em Clero, Nobreza e
Servos, uma analogia da Santíssima Trindade. Desse modo, a Igreja influenciava o
modo de pensar e agir das pessoas.
Então, nesse período, a Igreja passou a acumular riquezas por meio de
doações feitas pelos fiéis o que consistia, na maior parte das vezes, em
propriedades. Devido ao seu grande poder, a Igreja passou a controlar grande parte
dos territórios feudais.
Devido ao seu crescimento e a influências exorbitantes, isso acabou
causando reações adversas dentro da própria Igreja. O poder era tanto, que os
Papas envolveram-se em conflitos com grandes monarcas dessa época. Sobre este
assunto, José D’Assunção Barros defende em seu artigo:

A oposição entre Império e papado no decurso da Idade Média, bem


como suas interações várias, desenvolveu-se de maneira
particularmente complexa sob o signo de dois grandes projetos que
se postulavam como universais: o de uma Igreja Romana, que
passaria a se apresentar na Europa Medieval como o grande fator da
unidade da cristandade ocidental, e o de um Império do Ocidente,
que já não existia mais a partir da deposição de Rômulo Augusto em
476 a. C., mas que, a partir daí, nunca deixaria de pairar sobre o
imaginário político dos novos reinos que, nessa parte ocidental do
antigo Império Romano, dava agora origem aos inúmeros reinos
europeus. Esta história deve ser recuperada a partir dos seus
primórdios, que remontam à Antiguidade Romana. (2009, p.55).

A Igreja também monopolizava o conhecimento, somente seus membros


tinham acesso ao mundo letrado, poucas pessoas eram alfabetizadas e tinham
acesso aos livros. Eram os monges encarregados, além de rezarem, a copiarem os
livros e a Bíblia nos mosteiros.
Devido ao seu grande poder de influência, a Igreja passou a interferir na
elaboração das leis (poder jurídico), estabelecia os padrões de comportamento
(poder social) e possuía muitos terrenos (poder econômico). Era a religião oficial e
não permitia posições contrárias aos seus dogmas (verdades incontestáveis).
Aqueles que os desrespeitavam, eram perseguidos e punidos severamente.
18

A partir daí, foi então criado o Tribunal do Santo Ofício, ou Inquisição no


século XIII, para combater os “pecadores” que afrontavam os dogmas cristãos da
Igreja Católica. A Inquisição prendeu, torturou e mandou para a fogueira milhares de
pessoas. Se os condenados possuíssem bens, estes eram confiscados pela Igreja,
que passava a ser a proprietária deles, aumentando assim seu poderio econômico.
Nesse período da Idade Média, importante ressaltar que a cultura também
teve destaque principalmente pinturas e esculturas com temas religiosos. Os vitrais
das igrejas traziam cenas bíblicas, uma maneira de ensinar a bíblia aos analfabetos
que eram em grande número. O Papa São Gregório criou o canto gregoriano que
transmitia os ensinamentos religiosos por meio da música e até os dias de hoje essa
arte ainda persiste na Igreja Católica.
No entanto, o Tribunal do Santo Ofício vem afirmar a influência da religião no
direito, pois fazia uso de métodos de flagelamento para que o acusado pudesse
confessar seu suposto crime. Às vezes, por não suportar mais tanta dor e
sofrimento, acabava por confessar algo que realmente não havia praticado, somente
para se ver livre dos castigos cruéis.
Percebe-se, então, que a Idade Média foi um período em que a Igreja
católica exercia uma grande influência em todos os setores da sociedade, punindo
com severidade os considerados hereges e sua interferência na elaboração das leis
permitia que ela ditasse as regras do comportamento social, além disso, possuía
várias propriedades. Era considerada a Senhora Absoluta das verdades
incontestáveis.

1.5 A transformação no Renascimento

Em direção contrária com relação ao percurso medieval, surgem os homens


do Renascimento, na Itália, que, contrários às “barbaridades” medievais, o homem
não era considerado em sua essência, mas sim um “obediente” às leis universais
preconizadas pela Igreja, a grande soberana das verdades incontestáveis.
Surge, então, um novo pensamento fundado no Renascimento italiano,
aproximadamente entre o final do século XIV e início do século XVII, fundamentado
19

no princípio da disjunção e é a partir dela que se busca recuperar a idealização do


mundo clássico, inserindo o homem nessa nova maneira de pensar renascentista.
O renascimento filosófico e literário se enriquece de conhecimentos,
estendendo-se no sistema social ocidental até tornar-se uma nova semântica
antropológica da Modernidade, valorizando o homem em todos os seus aspectos
cognitivos.
O humanismo proporcionou uma nova estrutura em relação à Idade Média.
No centro de seu discurso e de sua civitas há o homem e não mais Deus. Com isso,
abre a possibilidade de entender a lei natural das coisas e dos homens na natureza:
as leis que regulam a vida social entre os homens.
Podemos afirmar, então, que essa nova perspectiva de raciocínio coloca o
homem no centro, que antes, era espaço das divindades no período medieval. O
homem passou a ter a prioridade sobre a natureza e da ratio sobre a lex, se o
homem agisse racionalmente perante a lei, política e comportamentos, (civitas e
civilitas), a natureza também é racionalizada (razão natural). Nessa nova
centralidade do homem, a lei e a razão são neutralizadas, pensadas. Nesse sentido,
Adone Agnolin prossegue:

O projeto renascentista é, portanto, o de uma reconstrução (uma ri-


nascita, de fato), depois de um longo período de decadência. Mas,
no entanto, a “decadência” medieval havia construído e imposto,
como vimos, uma civilização própria. A força dessa civilização
medieval estava bem presente para os humanistas: é por isso que
seu projeto devia ser, enfim, propriamente ligado a uma civilização
em herança e à qual se opunham -, havia de acreditar,
necessariamente, na superioridade do homem sobre a natureza.
(2013, p. 253, grifo do autor).

A superioridade do homem sobre a natureza era fundamental para solidificar


o Renascimento Humanista, mas que poderia ser ameaçado por ter renunciado aos
princípios e dogmas da teologia medieval que imperou durante séculos, e que não
se resignava em perder seu espaço.
A civitas renascentistas começou a se constituir no interior das cidades
italianas da Baixa Idade Média. Nesse momento histórico Moderno, surge a política
de Maquiavel, uma nova teoria de Estado sugerida por Bodin. Brota um sentimento
de um novo Estado e de uma nova justiça que seria marcada pelo uso da razão e
pela valorização do homem como ser racional.
20

No meio de toda essa mudança, as confissões religiosas vêm assumindo a


função de uma identidade coletiva estatal moderna: de um lado a Igreja, já
enfraquecida, tenta realizar seu ingresso na política, ampliando sua esfera para
setores da vida que antes não faziam parte de um discurso sobre a política. Por
outro lado, há o começo de uma reavaliação do direito natural, fundamentado na
razão e na filosofia, não mais no sobrenatural e no divino, como era antes.
O objetivo é conciliar a filosofia do Estado e do direito para que caminhem
juntas e que elas tenham capacidade de repensar o mundo da natureza e dos
homens, independentemente da religio cristã.
Essa transformação também pode ser observada na própria cultura da
época Lutero conjuga, civitas e religio, repensando assim, a religião, o modo como
se estavam dirigindo a Igreja. Calvino também teve grande influência ao distinguir a
fé religiosa do poder civil.
De qualquer maneira, tanto os reformadores da religião, quanto os filósofos
e historiadores da política e do direito confirmam a separação entre o religioso e o
civil, marcando assim, toda a história moderna.
Essa mudança permitiu o desenvolvimento de vários campos como a
educação, ciência, arte e até mesmo a política sem a interferência teológica. A
liberdade religiosa seria decorrente dessa separação entre Igreja e Estado. “Foi a
partir da modernidade que a religião passou a ser compreendida como uma esfera
autônoma da sociedade e, portanto, como um objeto definido e determinado”.
(LEITE, 2014, p. 65).
Percebe-se dessa maneira que esse novo sistema defendia, na medida do
possível, a liberdade de escolha religiosa e a liberdade de opinião em geral.
Grandes descobertas científicas ocorreram no século XVII, tendo como precursores
Galileu, Kepler e Copérnico, o que levou a uma nova percepção do ambiente que
envolve os homens, uma visão mecânica da natureza. Nos dizeres de Adone
Agnolin:

Isso porque a natureza que envolve o homem moderno não é mais


homogeneamente ordenada para ele, mas lhe é absolutamente
estranha, diferente, desordenada e, portanto, somente “ordenável”
pela livre capacidade de ação do próprio homem. Nessa “segunda
modernidade”, enfim, realizou-se uma fratura essencial do homem
nela: trata-se do fim do paradigma aristotélico. (2013, p. 260-261).
21

O homem passa desse modo a fazer parte do mundo, tornando-se um ser


desordenado, com instintos, paixões e racionalidade, uma “lamentável condição” do
homem natural. Vários filósofos trataram desse tema em suas obras: Locke (Ensaio
sobre o entendimento humano – 1690); Voltaire (Tratado de Metafísica – 1736);
Elementos da filosofia de Newton – 1738 e Filósofo ignorante – 1766. Nesse sentido
Voltaire mantém uma postura pessimista em relação à natureza do homem
“recheada” de orgulho, amor e paixão.
O nível cultural do Humanismo, como premissa maior, deixou de lado uma
lei teológica eterna para cultuar o jusnaturalismo sociológico e antropológico, tendo
uma nova tolerância perante a diversidade, entre elas, a religiosa.
Nesse progresso, permitiu ao Humanismo e ao Renascimento resgatar as
culturas antigas, outras religiões, reconhecendo, portanto, - uma complexidade
cultural e social, uma nova forma de pensar o mundo, pautada na tolerância, o ser
humano em oposição ao divino ou o político em oposição ao religioso.
A partir desse momento, a visão religiosa e a civil passam a ser duas
vertentes distintas, cada qual com seus princípios e prioridades. “A religião não é
(mais) o modo de pensar o mundo, mas (torna-se) somente um deles”. (AGNOLIN,
2013, p. 267, grifo do autor).
Nesse cenário, conclui-se que o Renascimento despertou no homem o seu
valor e, por meio do uso da razão, passou a entender melhor as leis naturais e as
leis que regem a sociedade e Deus deixa de ser o centro, ocupado agora pelo
homem renascentista.

1.5.1 O Estado Moderno e o pluralismo

O Estado moderno passou, assim, a representar a afirmação de um poder


soberano que detinha o monopólio do uso até da força física em seu território, além
de manter seu poder, paralelamente, era independente internacionalmente. O
feudalismo da época medieval foi substituído por uma concentração de poder,
criando assim, uma unidade monetária administrado pelo Estado, bem como o
exército, substituindo as milícias feudais. “Assim, a consolidação das mudanças
operadas pelo Estado moderno, agora apresentado como unidade de ação militar,
22

econômica e política, demandava também uma unidade jurídica”. (LEITE, 2014, p.


67).
As normas jurídicas eram sem cunho religioso, seus destinatários agora
eram cidadãos e não fiéis. Percebe-se aí, a neutralidade das normas jurídicas
emanadas pelo Estado, que passa a ignorar o religioso. A partir de então, a religião
passa a existir apenas na esfera individual dos súditos.
Nesse novo cenário, o Estado passa a garantir a liberdade religiosa aos
indivíduos, sem impor crenças ou conversões, nem haveria perseguições ou
discriminação em relação à escolha de um credo, desde que as condutas religiosas
não contrariassem as normas jurídicas impostas pelo Estado.

1.5.2 A liberdade religiosa entre a secularização e a dessecularização

A secularização pode ser entendida como um processo pela qual a religião


deixa de ser o aspecto cultural agregador, ou seja, o objeto em análise já não é mais
determinado diretamente pela religião. Há a perda de sua influência. Assim,
recorremos às palavras de Fábio Carvalho Leite:

A tese da secularização como a conhecemos, paradigma das


reflexões sobre Estado e religião no Ocidente, desempenha um
papel fundamental e ao mesmo tempo peculiar na construção da
matriz história da liberdade religiosa. Se o Estado porque soberano,
desconhece grupos religiosos e subordina a ele as autoridades
eclesiásticas, também o Estado, porque secular, ignora em seus atos
qualquer conteúdo de caráter religioso, o que faz com que a
liberdade religiosa assegurada exclusivamente pelo Estado seja
também por ele limitada a partir de normas gerais e abstratas
desprovidas – assim presume-se de qualquer vestígio de religião.
(2014, p. 70, grifo do autor).

Por outro lado, o processo de dessecularização consiste no retorno do


religioso e no fortalecimento de igrejas e nos movimentos religiosos.
No entanto, essa desconsideração do religioso pelo Estado e o avanço da
modernidade conduziriam a um declínio significativo da religião, tanto no meio
social, quanto na mentalidade dos indivíduos e muitos pensadores, como Sigmund
Freud, acreditavam que a religião iria definhar-se com o avanço da indústria, que
porventura, não parava de crescer na Europa.
23

A ideia da secularização é assegurar ao Estado neutralidade que impede


qualquer favorecimento a religiões majoritárias ou perseguição às minoritárias.
Atualmente, esta tese está sendo revisada pelo fato de não ter cumprido
suas previsões, ainda persiste um controle eclesiástico perante a sociedade.
Peter Berger critica a tese da secularização que ajudou a construir,
defendendo então a dessecularização. Para o autor, as instituições religiosas podem
desempenhar papel social ou político mesmo quando poucas pessoas praticam essa
religião. “Para dizer o mínimo, a relação entre religião e modernidade é bastante
complicada”. (2001, p. 10).
Para Peter Berger (2001), se a tese da secularização estiver correta, as
religiões deveriam adotar novas estratégias, pois deveriam saber lidar com a
rejeição ou a adaptação. Algumas religiões não conseguiram adaptar-se a essa
tese, nas suas exigências.
Nesse cenário, vimos que a modernidade pode ter diminuído a influência
religiosa, mas não afastou sua autoridade e comando perante os fiéis. Na prática, a
religião nunca foi descartada no plano político e social, colocando em evidência a
tese da secularização.
Na formação dos Estados no Brasil, a religião católica teve significativa
importância. Podemos destacar sua relevância também na política, mesmo depois
da proclamação republicana.
Verifica-se, que o Estado moderno não anulou por completo a influência da
religião que ficou “camuflada”, sendo divergente às teses da secularização, que
desde o início da modernidade até os dias atuais, é bastante discutida entre
renomados autores, especializados no campo desse conhecimento.
Segundo o autor Fábio Carvalho Leite, o conceito de liberdade religiosa dita
que “todos têm o direito a professar e exercer qualquer religião, respeitadas as leis
do Estado”. (2014, p. 76).
Hoje, debate-se o conceito de religião nos campos filosóficos e nas ciências
sociais, mesmo assim, não apresenta uma definição totalmente aceita e muitos
acreditam que nunca apresentará. No entanto, prevalece uma ideia de que a religião
desenvolve um papel específico individual ou social.
A prestação jurídica acerca da liberdade religiosa deve oferecer uma
compreensão no mínimo consensual ao seu sentido e alcance. Existem duas
concepções, a substantiva, que deve oferecer segurança, e a funcional, que oferece
24

inclusividade. Ambas são necessárias, mas não suficientes para a abrangência da


liberdade religiosa. A concepção funcional tem compreensão mais ampla do
fenômeno religioso, no qual inclui às crenças tradicionais, outras manifestações que
se fazem presentes na vida das pessoas.
Para este direito fundamental, deve o intérprete lançar mão de uma certa
empatia para sua concretização na sociedade, seja no âmbito administrativo, no
normativo ou no jurisdicional.

1.6 A Liberdade religiosa nos EUA e na França

A concepção de desagregação entre religião e Estado ainda está bem longe


de se concretizar definitivamente. Alguns países, republicanos, ou não legitimam o
princípio da laicidade na sua organização constitucional, e adotam o sentido do
princípio em pauta, mas não ele em si.
Todo e qualquer país trata do religioso, às vezes, de forma peculiar, no
entanto, cada qual com seu modelo próprio de organização. A doutrina apenas faz
um estudo no que se refere à religião de alguns países, sem privilegiar ou criticar a
forma com são professadas.
Nos EUA e na França, a questão religiosa é bem discutida por meio de dois
modelos antagônicos. Nos EUA, por exemplo, é bem aberta a questão religiosa,
inserida na esfera pública, o que permite uma adaptação ao meio social. Já na
França, a religião não interfere na política e vice-versa; é um modelo mais fechado.
Portanto, esses dois modelos são alvos de críticas: nos EUA pela religião
ser aberta em locais públicos, não se pode controlar o que entra, e pode ter limites
não definidos em relação à França, por esta discriminar o ingresso do religioso na
sociedade.
O governo federal dos EUA atua em vários assuntos religiosos, como por
exemplo, o aborto, a natalidade, a orientação sexual, lá onde se percebe que por
causa dessa relação Igreja/Estado, a Corte fica dividida em seus julgamentos de
forma frequente, ao passo que a laicidade francesa está sempre presente em seus
casos polêmicos, posta sempre em primeiro lugar.
25

A Constituição dos EUA, aprovada em 1787, nada tratava sobre religião ou


liberdade religiosa, não fazia menção a Deus em seu preâmbulo, apenas proibia a
exigência de requisitos religiosos como condição para a ocupação de cargos
públicos (art. 6º). Em 1791 que passou a assegurar o direito à liberdade religiosa nos
seguintes termos:
“O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou
proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de
imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo
petições para a reparação de seus agravos”. Neste sentido, Fábio Carvalho Leite
declara:

Tanto a doutrina como a jurisprudência nos EUA identificam na


primeira parte norma constitucional duas cláusulas distintas
envolvendo o fenômeno religioso (religion clauses), a saber: a
cláusula de estabelecimento (establishment clause) e a cláusula de
livre exercício (free exercise clause). De acordo com a primeira, o
Estado não deve adotar uma religião específica, e, de acordo com a
segunda, tem o dever de permitir e assegurar o livre exercício das
religiões. Tais normas, no entanto, não podem ser interpretadas de
forma absolutamente autônoma. Não apenas porque toda
interpretação constitucional sistemática seja uma exigência do
princípio da unidade da Constituição, mas também, porque ambas,
ao fim, encerram uma mesma questão: a relação entre Estado e
religião (2014, p. 91, grifo do autor).

Uma lei que cria uma religião oficial cria uma tensão no direito de livre
exercício da cidadania, ao contrário, que a lei não deve provocar um excessivo
envolvimento entre Estado e religião, isso deveria ser considerado constitucional.
São dirigidos às Cortes americanas casos complexos envolvendo religião
por três religiões minoritárias instaladas no país: Mórmons, Adventistas do Sétimo
Dia e Testemunhas de Jeová. Na maioria desses casos, não envolve discórdia entre
governo e religiões, envolve conflitos oriundos de práticas de algumas religiões, o
que exige a delimitação da liberdade religiosa, mesmo os EUA terem sido formados
fortemente pelo fenômeno religioso.
Há um antagonismo de pensamento, há os que defendem a religiosidade
dos EUA, outros defendem a secularização e essa variedade de pensamentos tem
graves consequências na forma de se interpretar constitucionalmente a liberdade
religiosa nesse país.
26

Houve casos no judiciário americano em que determinados indivíduos se


defenderam das acusações relacionadas ao uso de drogas, alegando que em seu
país de origem, essa prática é permitida, a tal religião que permitia o uso chamada
de “Boo Hoos”. Por isso, a Suprema Corte americana nunca pretendeu definir
“religião” pelo fato de que em determinadas religiões, seus costumes, permissões
variam muito. Mas a Suprema Corte estabeleceu certas orientações que devem ser
respeitadas entre os indivíduos que professam religiões diferentes.
De acordo com a Suprema Corte, o Poder Judiciário não pode investigar se
as crenças de uma determinada religião são verdadeiras ou falsas, pode apenas
verificar se elas são honestamente seguidas. Mas essa visão não é tão simples, há
divergências entre a própria Corte em relação a isso.
Já houve casos em que o indivíduo ingressou em uma determinada religião
apenas para obter vantagens pessoais como, por exemplo, não trabalhar aos
domingos porque esta religião não permite. A crença deve ser sincera e não apenas
para garantir uma vantagem concedida pela religião a que se professa.
Às vezes, há uma colisão entre o direito de livre exercício e dos interesses
do Estado, como ocorreu com o caso Wisconsin v. Yoder em 1972, no qual um
adolescente de 15 anos reivindica o direito de não frequentar a escola a partir do
ensino médio pois sua religião, “amish” incentivava isso, contrariando a lei estadual
que obrigava o ensino até os 16 anos. O que foi aprovado pela Suprema Corte,
defendendo o direito de uma religião minoritária, diferentemente do caso
Employment Division Department of Human Resources v. Smith, no qual a Suprema
Corte entendeu constitucional a não concessão de seguro-desemprego a dois
indivíduos que foram demitidos por estarem consumindo uma substância chamada
de “peyote”, por motivos religiosos e proibida no Estado de Oregon. A Suprema
Corte alegou observância à norma geral, não fazendo uso da ponderação ou
concessão, nesse caso em tela, e ainda que não contrariava a jurisprudência da
cláusula de livre exercício.
Percebe-se, então, que o direito constitucional norte-americano não possui
um posicionamento sólido e nem pacífico no que se refere à religião. O tema oferece
uma hermenêutica muito diversificada. A Suprema Corte se tem envolvido em vários
casos que se relacionam a exceções religiosas frente às normas do Estado,
diferenciando-se da Constituição brasileira que, após assegurar que “ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
27

política”, impõe uma ressalva: “salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal
a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Fábio
Carvalho Leite esclarece:

[...] a cláusula de livre exercício da Primeira emenda não permite,


mas também não proíbe nem condiciona uma eventual objeção, por
motivos religiosos, ao cumprimento de uma norma jurídica a todos
imposta, oferecendo assim, certa margem ao intérprete a optar por
leituras distintas [...] (2014, p. 127).

Por falta dessa vedação normativa, a Corte americana desenvolveu uma


interpretação menos histórica e literal e mais atual e ainda mais sensível no que
concerne à religião, enfrentando com isso, as limitações cristãs, dando importância
às minorias religiosas que dificilmente eram protegidas pelas normas gerais do
Estado. Além disso, certos direitos fundamentais poderiam sofrer restrições em favor
do funcionamento das instituições do Estado.
Agora passaremos a analisar a liberdade religiosa na França onde,
diferentemente dos EUA, impera o princípio da laicidade; as medidas jurídicas e
administrativas são pautadas na separação entre política e religião, duas esferas
que não se misturam, mas com prioridade voltada para a política.
Podemos afirmar que o catolicismo é a religião principal na Europa. No
antigo regime, a França era considerada a filha mais velha da Igreja, o rei sempre
teve laços com o Papa.
Apesar de uma população protestante residir na França, eles já foram
perseguidos pelo Estado. Após 1598, os calvinistas (huguenotes) foram
considerados pelo Estado como hereges e cismáticos. O Édito de Nantes levou o
país ao secularismo e à tolerância. Este documento concedeu anistia aos
protestantes, restabelecendo seus direitos civis como poder trabalhar até para o
Estado e também reivindicar perante o rei.
A separação efetiva entre Estado e religião se concretizou na segunda
metade do século XIX, com a edição de várias leis como foi proibido o uso de
imagens religiosas nas escolas, bem como substituir a matéria de educação moral e
religiosa, por educação moral e cívica. Houve também a supressão das faculdades
de teologia católica mantidas pelo Estado em 1855.
No que diz respeito ao direito de família, foi restabelecido o casamento civil e
o divórcio (Lei Naquet, de 17 de julho de 1884).
28

Nesse novo cenário, foi proibida a presença de religiosos em hospitais. Em


1883, o poder das forças armadas foi separado das igrejas, enfim, uma série de
mudanças que visavam afirmar a substituição de Deus pelo culto à Pátria, abolindo
os juramentos religiosos, exaltando os atos políticos e judiciais.
Ainda nessa mudança, foi extinguindo-se os feriados religiosos em prol dos
civis, introdução do registro civil como obrigatório, embora podendo até proceder as
cerimônias religiosas. As opções e práticas religiosas ficaram reservadas ao
particular de cada indivíduo.
Apesar dos franceses se orgulharem da Lei de 1905, que veio reafirmar a
separação Estado/Igreja, esse regime jamais fora aplicado em alguns de seus
territórios coloniais como Guiana, Mayotte, Nova Caledônia, Marquesas, Wallis,
entre outras. Nesses locais, podem ser encontrados calendários com feriados
cristãos, o que realça o não alcance da laicidade francesa.
Outro problema encontrado na laicidade francesa está relacionado às seitas,
o que já foi muito discutido no parlamento nos anos 1980 e 1990. Essas seitas
segundo acusações, podem provocar no meio social desestabilização, como: a
doutrinação de crianças, a infiltração nos serviços públicos, entre outras,
consideradas de tamanha periculosidade.
É de suma importância ressaltar que o princípio da laicidade é contemplado
pela maioria dos cidadãos franceses que reconhece nela o valor da unidade
nacional e que ao mesmo tempo garante a liberdade individual para professar uma
religião. A República francesa foi construída em torno deste princípio que possui três
valores que não podem se separar: liberdade de consciência, igualdade de escolha
e neutralidade do poder político, nos quais o Estado se limita em suas
competências, sem intrometer-se na esfera religiosa.
Mas vale lembrar que a França sofreu dois modelos de laicidade, um
anticlerical, defendido por Emily Combes, e outro mais liberal, representado por
Aristide Briand, Jules Ferry e Jean Jaurès, e prevaleceu o modelo liberal.
A laicidade se adaptou num território onde dominava a Igreja Católica.
Adaptou-se às várias mudanças que ocorreram durante anos na sociedade. Ela foi
também marcada por crises.
Ademais, foi constituída na França a primeira Comissão Parlamentar sobre
as atividades de culto, a Comissão Stasi ou simplesmente Comissão por iniciativa do
presidente Jacques Chirac através do decreto 2003-607, de 3 de julho de 2003. A
29

Comissão era composta de vinte membros (quatorze homens e seis mulheres),


sendo nove de representantes do quadro universitário, três da Educação Nacional,
dois membros do Conselho do Estado, três personalidades políticas, dois
representantes de associações e um representante do ramo empresarial.
A Comissão concluiu seus trabalhos em 11 de dezembro de 2003, chegando
a um relatório que registrou, dentre outros, um número de seitas consideradas
perigosas. A respeito do relatório, houve críticos e defensores que expuseram seus
pontos de vista em relação à pesquisa sobre as seitas. Os críticos alegaram que o
relatório interferia diretamente no direito à liberdade religiosa, ao passo que os
defensores alegavam que era apenas uma pesquisa que não interferia na esfera.
O relatório é bem claro quando afirma que o Estado não deve intervir no
campo religioso, não impor um credo obrigatório, nem privilegiar qualquer religião
em especial, nem tomar para si qualquer postura antirreligiosa, respeitando assim, o
princípio da igualdade.
A Comissão também apreciou uma questão muito importante, a influência da
religião no campo político, que pode apresentar-se de diversas maneiras, sendo que
os representantes religiosos são apoiados a intervirem nesse espaço público, muitas
vezes, com o apoio da própria sociedade.
A Comissão também propõe uma aproximação dos alunos com uma cultura
religiosa apenas como objeto de estudo e não de doutrinação. Neste caso, não viola
o princípio da laicidade, o que contribui na formação intelectual e crítica desses
alunos para que escolham suas crenças por vontade própria, livres de pressões. No
entanto, esta proposta poderia ser questionada pelos pais que ficariam receosos de
ver seus filhos sendo influenciados por outras crenças.
Ao mesmo tempo, o cidadão deve limitar-se às suas crenças
individualmente, respeitar o espaço público para tornar a convivência na sociedade
harmônica, sem discussões sobre credos, assegurando o respeito à diversidade
confessional e ao seu equilíbrio. De acordo com o relatório francês: “Cada um deve
poder, em uma sociedade laica, tomar distância em relação à tradição. Não há nisso
nenhuma negação de si mesmo, mas um movimento individual de liberdade que
permita definir-se em relação às suas diferenças culturais ou espirituais sem
subordinar-se a elas”.
Neste mesmo sentido, entende-se que os servidores públicos devem manter
um comportamento neutro em relação à religião, mas deve ser assegurado a ele,
30

quando fora do serviço, o direito de professar uma crença, mas que esta não tenha
nenhuma repercussão no seu trabalho.
Outra característica relativa à neutralidade é a implicação da laicidade no
plano financeiro, o que impede que o Estado detenha qualquer tipo de vantagem
econômica de qualquer culto religioso.
Atualmente, têm surgido na França várias questões relacionadas à religião,
em sua grande parte pelo islamismo, o que rende muitas notícias na mídia. Há
também a assistência religiosa nos presídios, presente também nas Forças
Armadas.
Outro problema observado é a ausência de amparo religioso nos hospitais,
já que nesse setor, lida-se com a vida e a morte diariamente. As mulheres
muçulmanas recusam-se a ser atendidas por médicos do sexo masculino e alguns
empregados recusam-se a obedecer a ordens de seus superiores do sexo feminino.
Segundo a Comissão Stasi, esses comportamentos são prejudiciais, pois as
mulheres muçulmanas se submetem às tarefas subalternas, atitudes de
autodiscriminação. Questões estas marcadas pelo cunho religioso.
Na escola também se observa a alteração de seu curso normal; há pedidos
de alunos de dispensa em dias da semana por motivo de reza ou jejum,
comportamentos contrários em relação aos programas das disciplinas de história e
ciências, que questionam a origem da vida. Professoras e diretoras de escolas veem
sua autoridade desrespeitada por alunos ou seus pais muçulmanos.
Neste sentido, a jurisprudência tem tomado alguns posicionamentos como,
um aluno (a) muçulmano (a) poderá deixar de frequentar as aulas quando cumprir as
obrigações de estudos, a recusa de não participar da aula de educação física não é
admitida e até se pode pedir às alunas a tirarem o véu durante essas aulas. Toda a
manifestação religiosa dentro de uma escola que cause grave tumulto ou
perturbação será punida (Conselho de Estado 27.11.1996 – Liga Islâmica do Norte).
No que se refere às escolas, Fábio Carvalho Leite comenta:

Uma atuação do Estado, a partir da criação de normas, seria não


apenas adequada como também desejável, a fim de trazer clareza e
propiciar um mínimo de segurança jurídica ao ambiente escolar, que,
como dito, tem sido alvo de “pressões exercida por grupos de
interesses locais”. No entanto, a solução proposta – “uma lei que
proíba o uso de qualquer símbolo visível” – incorre, aparentemente,
em dois problemas: escapa ao que se tem revelado comum e
efetivamente central nos problemas apresentados, a saber, as mais
31

variadas objeções levantadas em ambiente escolar e motivadas por


razões religiosas, e ainda atinge um ponto delicado, relacionado à
liberdade religiosa. Objeção de consciência por motivos religiosos e
uso de símbolos religiosos são aspectos distintos da liberdade
religiosa e assim deveriam ser tratados. Uma legislação tal como
proposta, pode ser restritiva em relação a um direito fundamental,
deveria se ater àquelas poucas situações em que ambos os aspectos
estarão relacionados, como na recusa de uma aluna em retirar o véu
para uma aula de educação física. (2014, p. 160, grifo do autor).

No entanto, esta jurisprudência defrontou-se com algumas dificuldades, os


diretores tiveram problemas em assumir tais responsabilidades e também os juízes
encontraram entraves ao avaliarem juízos sobre símbolos religiosos.
É difícil estabelecer um parâmetro, normas ao que se refere e envolve o
fenômeno religioso; e essas pessoas esperam uma solução por parte do Estado. Em
consequência do surgimento de novas práticas religiosas, há carência de uma
reformulação do princípio da laicidade. A Comissão Stasi propôs neste sentido, a
elaboração de uma “Carta da laicidade” desprovida de valor normativo, que define
os direitos e obrigações de cada indivíduo. Ela deve ser afixada em lugares públicos.
A Comissão citou a “Carta do Paciente” em relação aos hospitais, no qual o
paciente deverá seguir com seus preceitos religiosos, sem intervir ou atrapalhar o
andamento do serviço neste local, sendo proibido às mulheres muçulmanas recusar
ser atendidas por profissionais do sexo masculino. O relatório também propõe
auxílio religioso nas prisões para os muçulmanos, sendo que isso não estava
acontecendo, os outros presos tinham ajuda religiosa e este grupo era desprovido
de tal conduta.
A Comissão pede ajuda do Estado, para que ele não seja omisso, pois
alguns pais impoem a seus filhos o uso de símbolos religiosos contra a vontade
destes, como o uso do véu islâmico, muitas vezes impostos às meninas, porque a
escola é um espaço de emancipação e liberdade para os jovens.
De acordo com a jurisprudência francesa, um trabalhador não deverá exigir
do seu empregador o respeito às suas manifestações religiosas se não estiver
expressa no contrato de trabalho, bem como, da recusa, por exemplo, de trabalhar
em um setor de corte de carne de porco, ou ainda, recusar-se à consulta médica por
motivos religiosos.
Percebe-se então que a França tem uma maneira peculiar de tratar a
laicidade, separando o religioso do político, mas a neutralidade do Estado gera
32

algumas consequências negativas no meio social. A França preocupa-se muito em


construir um espaço público de cidadãos livres e iguais. O mesmo tem interesse o
direito constitucional brasileiro.
Quando a questão se refere ao Estado e à religião, cada república tem uma
maneira diversa de tratar o tema, não apresenta o mesmo grau de importância
diante de outras questões a serem recepcionadas para a solução mais adequada.
A Comissão Stasi defende a ideia de limitar algumas exigências e objeções
religiosas a fim de assegurar a autonomia individual e conservar os direitos
fundamentais de seus cidadãos.
Conclui-se, então, que nos EUA a neutralidade do Estado volta-se ao
respeito à autonomia individual, enquanto que, na França, volta-se à formação desta
autonomia. Percebe-se aí uma diferença na perspectiva em relação aos valores da
laicidade e autonomia individual, ambos enfrentam consequências em relação a
isso.
33

2 A LIBERDADE RELIGIOSA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

2.1 As relações entre Estado e religião no império

A Constituição imperial de 1824 foi outorgada pelo imperador Dom Pedro I,


depois de dissolvida a Assembleia Constituinte. Essa constituição oculta a realidade
social e política da época e o tema de liberdade religiosa dividiu a Constituinte.
Quando foi colocado em pauta o dispositivo que limitava a incluir a liberdade
religiosa no rol de direitos individuais sem definir o seu alcance, um grupo minoritário
manifestou-se contra esse dispositivo com argumentos de que poderia prejudicar a
estabilidade do Império e a igreja Católica poderia ser alvo de críticas. Por outro
lado, os defensores desse dispositivo eram majoritários, alegaram seus argumentos
em aspectos relacionados à liberdade de consciência, aos perigos da intolerância, à
divisão de espaço entre religião e Estado e admitiam ainda que todas as religiões,
com exceção da católica, eram falsas, ou então, possuíam costumes opostos aos
dos brasileiros, como a religião maometana, que tem como prática, a poligamia.
A Assembleia Constituinte discutiu e votou os seguintes artigos relacionados
à liberdade religiosa:
Art. 14. A liberdade Religiosa no Brasil só se estende às comunhões Cristãs:
todos os que professarem podem gozar dos Direitos Políticos no Império;
Art. 15. As outras Religiões, além da Cristã, são apenas toleradas, e a sua
profissão inibe o exercício dos Direitos Políticos;
Art. 16. A Religião Católica Apostólica Romana é a Religião do Estado por
excelência e única mantida por ele.
Percebe-se, desse modo que a Constituição imperial de 1824 elegeu a
religião Católica como oficial e, por conseguinte, retirou os direitos políticos de quem
professasse outra religião que não fosse a católica, consideradas “religiões
toleradas”. Em seu artigo, o Padre José Scampini aposta para a exteriorização
desses credos:

Quando porém o culto passa a ser externo manifestando o indivíduo


publicamente seu pensamento, sua crença, pelo ensino ou prédica,
pelas cerimônias, ritos ou preces em comum, quando não se trata
34

mais somente da liberdade de consciência, e sim de liberdade de


culto, então tem lugar a intervenção do legítimo poder social em
defesa da ordem pública e dos bons costumes. (1974, p.83).

Então, a prática de outras religiões era permitida, desde que praticadas em


casas, sem forma alguma de exteriorização do templo, de acordo com o artigo 5º da
Constituição de 1824.
Por detrás disso tudo havia um interesse, tendo o Brasil uma religião oficial,
no caso a Católica, chamaria a atenção de estrangeiros cristãos que porventura
quisessem fixar moradia no Brasil como industriais, por exemplo, tendo um governo
hospitaleiro que garantiria sua religião. Por outro lado, praticantes de outras religiões
que quisessem também fixar moradia no país, tinham sua religião tolerada, desde
que exercida no seio interior de sua casa. Tudo isso estava ligado a interesses
econômicos, políticos e sociais.
No preâmbulo da Constituição, Dom Pedro I faz menção à Santíssima
Trindade, apenas os católicos exerciam os direitos políticos; a religião oficial era um
direito de família, o poder executivo nomeava bispos e a liberdade religiosa de
crença e de culto era limitada. Era assegurado o culto doméstico, respeitando a
religião do Estado e não poderia ofender a moral e os bons costumes. Essas eram
as categorias que tratavam da matéria religiosa.
Os “acatólicos”, que ousassem exteriorizar sua religião, sofriam penalidades,
como multa e quando morriam, eram confinados a cemitérios públicos, sendo
recusados pela administração local. À medida que novos imigrantes foram chegando
ao Brasil, novas leis e medidas foram adotadas pelo governo. Neste sentido, Fábio
Carvalho Leite esclarece:

Assim, em 1861, foi aprovada a Lei 1.144, que permitiu a realização


de matrimônios mistos e entre acatólicos, sendo que os primeiros
não poderiam ser realizados por clérigos protestantes, sob pena de
multa, mas apenas pelos clérigos católicos, e estavam ainda
condicionados a uma declaração de compromisso com e educação
católica dos filhos. Em 1863, foi editado o Decreto 3.069, que
estabeleceu que os cemitérios públicos deveriam reservar um local
separado para o sepultamento dos acatólicos. (2014, p. 175-176).

Outro ponto relevante seria destacar as dificuldades que os protestantes


encontraram no seu exercício da liberdade religiosa no Império, pois as reações
adversas partiam do clero católico e não do governo, este, até então não criava
obstáculos às investiduras dos missionários protestantes. A Igreja se tornava cada
35

vez mais crítica e intolerante em relação às outras religiões, tratavam-nos como


hereges.
No entanto, a relação entre Estado e religião sofreu mudanças profundas
com a proclamação da República e a edição do Decreto 119-A, a qual cuidava da
separação entre as duas instituições. Esse novo regime iria tratar da reorganização
entre Estado e religião, mudança essa que era de interesse de todas as confissões
religiosas.

2.2 A liberdade religiosa na primeira república

Com a proclamação da República em 1889, havia diversos pontos ainda


indefinidos. O país passava por uma mudança radical, pois ainda perduravam
resquícios da Monarquia por parte de alguns simpatizantes desse regime que havia
caído. Eles não aceitavam a República e a viam apenas como interesses
institucionais em jogo sem garantia de legitimidade.
O novo regime trazia alguns pontos definidos como a Federação e a
separação entre Estado e religião, mas com conteúdo indefinido.
O Governo Provisório recebeu várias apelações do clero religioso, que
reivindicava a supremacia da religião Católica. Isso foi negado porque a Constituinte
não estava disposta a dar privilégio a nenhuma religião em face das outras.
Houve divergências entre os constituintes em relação à liberdade religiosa.
O constituinte Justiniano Serpa defendia a mais ampla liberdade de religião; já o
constituinte Coelho e Campos criticava a mais ampla liberdade religiosa,
argumentando que a mesma traria atos imorais e criminosos, ressaltando que
algumas religiões, como o Islamismo permite a mulher se suicidar, o que obrigavam
a sepultá-la com o cadáver do marido; e também havia os mórmons, que praticava a
poligamia. No seu ponto de vista, eram práticas que acabariam por violar a moral e
os bons costumes entre os brasileiros.
No entanto, a Constituição de 1891 vedava aos Estados e a União
estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos (art. 11, n.
2); vedava o alistamento eleitoral (aos pleitos federais e estaduais) os religiosos de
ordens monásticas, companhias, congregações, ou comunidades de qualquer
36

denominação sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto, que importasse


renúncia da liberdade individual (art. 70, n. 4); assegurava a liberdade religiosa a
todos os indivíduos e confissões, poderiam exercer pública e livremente o seu culto,
associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do
direito comum (art. 72, n. 3); dispunha que a República reconheceria apenas o
casamento civil, cuja celebração seria gratuita (art. 72, n. 4); determinava a
secularização dos cemitérios, que seriam administrados pela autoridade municipal,
ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação
aos crentes, desde que não ofendessem a moral pública e as leis (art. 72, n. 5);
dispunha que o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos deveria ser leigo
(art. 72, n. 6); estabelecia que nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção oficial,
nem teria relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos
Estados (art. 72, n. 7); assegurava que, por motivo de crença ou função religiosa,
nenhum cidadão brasileiro poderia ser privado de seus direitos civis e políticos nem
eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico (art. 72, n. 28); dispunha que, os
que alegassem motivo de crença com o fim de se isentarem de qualquer ônus que
as leis da República impusessem aos cidadãos, perderiam todos os direitos políticos
(art. 72, n. 29).
Em relação à laicidade, Rui Barbosa defendia que a separação entre Estado
e religião no Brasil deveria seguir o modelo americano e não o francês. Aristides
Milton lamenta que a Constituição brasileira não tivesse seguido o modelo
americano.
Não havia por parte da doutrina uma compreensão homogênea em relação
ao Estado e a religião na Constituição de 1891, já que a liberdade religiosa não era
absoluta, seus limites iam até “desde que não ofenda a moral pública e as leis”.
No tocante ao ensino religioso nas escolas, seria o de inspirar sentimentos
morais, o respeito por todos os direitos e liberdades, o amor ao próximo sem
distinção de crenças, a caridade, a responsabilidade, o respeito aos superiores, o
patriotismo, entre outros.
Portanto, na prática, a teoria foi outra, esse direito sofreu inúmeros reveses,
há relatos históricos de apedrejamento e invasão de templos, queima de bíblias dos
protestantes, crimes que ficaram sem punição e as autoridades locais permaneciam
inertes. Em sua obra História das Perseguições Religiosas, Pedro Tersier anota
também vários fatos ocorridos nesse sentido, como um Reverendo da igreja
37

metodista, Sr. Justus H. Nelson que ficou preso durante um mês só porque não tirou
seu chapéu enquanto passava uma procissão católica. Caso que chegou ao
conhecimento do Presidente dos Estados Unidos que exigiu medidas diplomáticas
junto ao governo brasileiro.
Neste cenário, a doutrina espírita também sofreu muito preconceito por parte
das autoridades e da sociedade. Médiuns receitistas eram enquadrados no Código
Penal de 1890, assim também os que se dispusessem a curar por meio do
espiritismo, delito como curandeirismo – artigos 156 a 158 do Código Penal de 1890.
Percebe-se, destarte, que a liberdade religiosa na Constituição de 1891
deixou muito a desejar. As minorias religiosas quando se viam prejudicadas,
recorriam à Carta e o direito lhes era negado, diferentemente da maioria que sempre
tinha seus direitos garantidos. Portanto, não teve nenhuma eficácia o dispositivo na
prática, pois a Constituição favorecia somente a religião Católica.

2.3 Liberdade religiosa nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967/69

O texto constitucional de 1934 trazia no preâmbulo a menção a Deus e


vedava à discriminação por motivo de crença religiosa; direito à objeção de
consciência; inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença e direito à
assistência religiosa nos estabelecimentos oficiais; liberdade de culto nos cemitérios
e direito ao sepultamento em cemitérios particulares; laicidade do Estado;
equiparação do casamento religioso ao casamento civil; ensino religioso e facultativo
nas escolas públicas; tratamento diferenciado para o serviço militar de eclesiásticos;
representação diplomática junto à Santa Sé.
Essa Constituição vigorou apenas por três anos, até 1937. Há criticas no que
se refere à menção a Deus no preâmbulo da Constituição.
Já a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, foi bastante
sucinta às questões religiosas, dispondo o seguinte:
Art. 32. É vedado à União, aos Estados e aos Municípios: (...).
b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;
Art. 122, n. 4 – todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer
pública e livremente seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens,
38

observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos


bons costumes;
Art. 122, n. 5 – os cemitérios terão caráter secular e serão administrados
pela autoridade municipal;
Art. 133 – o ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso
ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém,
constituir objeto e obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência
compulsória por parte dos alunos.
A Constituição de 1937 não trazia em seu preâmbulo a menção a Deus,
como a de 1934, não repetiu o dispositivo relativo ao serviço militar dos eclesiásticos
que na Constituição anterior, seria prestado sob a forma de assistência espiritual e
hospitalar às Forças Armadas.
Ainda não tratou do casamento religioso e nem do civil. A Constituição de
1937 volve a ser como a de 1891, indiferente. Também não fazia referência
expressa quanto à liberdade de consciência.
No entanto, no plano material, a Constituição de 1937 pouco alterou a
realidade no que se refere às normas em questão. O período constitucional de 1946
não foi diferente.
A Constituição de 1946 foi elaborada a partir de 1934 que serviu de
anteprojeto e apresentou as seguintes características em relação à religião: menção
a Deus no preâmbulo; laicidade e liberdade de culto; imunidade tributária aos
templos de qualquer culto, bens e serviços de Partidos políticos, instituições de
educação e de assistência social, desde que suas rendas sejam aplicadas
integralmente no País para os respectivos fins; liberdade de consciência, de crença
e de culto; objeção de consciência; assistência religiosa em estabelecimentos
oficiais; liberdade de culto nos cemitérios e direito às confissões religiosas de manter
cemitérios particulares; equiparação do casamento religioso ao casamento civil;
ensino religioso nas escolas públicas; tratamento diferenciado para o serviço militar
de eclesiásticos; representação diplomática junto à Santa Sé.
O constituinte baiano Aliomar Baleeiro tinha a seguinte opinião, “os bons
costumes deveriam continuar como limite à liberdade religiosa, mas as autoridades
deveriam deixar de considerar as religiões negras contrárias aos bons costumes”.
Segundo o constituinte, as práticas da religião negra na Bahia não são contrárias
aos bons costumes, é fetichismo e não imoral.
39

Aliomar Baleeiro e Hermes Lima defendiam que, além do direito pela


liberdade de consciência, fosse também garantida a liberdade de não crer, de
duvidar, de não possuir nenhuma religião, ambas foram rejeitadas no processo
constituinte.
Já a Constituição de 1967 não sofreu alteração da Emenda 1/69, sendo
tratada como Constituição de 1967/69. E apresentou as seguintes características
relativas à matéria de religião: menção de Deus no preâmbulo; laicidade e liberdade
de culto; imunidade tributária; liberdade de consciência, de crença e de culto;
objeção de consciência; assistência religiosa em estabelecimentos oficiais; liberdade
de expressão limitada em casos de preconceitos de religião; ensino religioso nas
escolas públicas.
Percebe-se que pouco se acrescentou sobre a laicidade em comparação às
Constituições anteriores.
Enfim, conclui-se que a dificuldade hoje de se compreender a liberdade
religiosa, mais inclusiva e abrangente, voltada às religiões minoritárias, tem suas
raízes desde a Constituição Imperial e o preconceito com as religiões não católicas
perduraram nas seguintes Constituições republicanas. Dificuldades e violências
sofridas pelos não católicos, sem amparo por parte do Estado, que considerava esse
direito não absoluto, eram eivadas de limites e restrições às religiões consideradas
minoritárias.

2.4 A liberdade religiosa na Constituição de 1988

No que refere à liberdade religiosa como direito fundamental, ela está


inserida como direito fundamental de primeira geração.
De acordo com o artigo 5º incisos VI, VII e VIII da CF/88:
Art. 5º - todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
40

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o


livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa
nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal
a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Antes de adentrarmos nos estudos de liberdade religiosa, convém conceituar
certos parâmetros em relação aos direitos fundamentais, que é onde a liberdade de
religião está inserida na Constituição Federal de 1988.
A Constituição de 1988 veio ampliar os direitos fundamentais, seguidos dos
direitos sociais e individuais. Ela reconheceu os direitos de solidariedade que são os
direitos fundamentais de terceira geração. Mas a Constituição não definiu muito bem
o seu conteúdo, referindo-se a ele de uma forma não organizada. No que diz
respeito ao conceito de direitos fundamentais, Vladimir Brega Filho afirma:

Assim, tentando construir um conceito de direitos fundamentais,


poderíamos dizer inicialmente, que os direitos fundamentais seriam
os interesses jurídicos previstos na Constituição que o Estado deve
respeitar e proporcionar a todas as pessoas. É o mínimo necessário
para a existência da vida humana. [...] Dessa forma, dentro do
conteúdo dos direitos fundamentais devemos incluir todos os direitos
necessários para a garantia de uma vida humana digna, sejam eles
individuais, políticos, sociais e de solidariedade. (2002, p. 66-67).

Importante saber a diferença entre direitos fundamentais e garantias


fundamentais, assim, de acordo com Pedro Lenza:

[...] “os direitos são bens e vantagens prescritos na norma


constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através
dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos
(preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados”. (2012,
p. 961, grifo do autor).

Acerca da abrangência dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos


pela CF/88, o art. 5º que estabelece que todos são iguais perante à lei, sem
distinção de qualquer natureza, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País à liberdade, o direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, em
seus 78 incisos e parágrafos. Esse rol é meramente exemplificativo, outros direitos
41

e garantias fundamentais podem ser recepcionados pela Constituição Federal, como


por exemplo, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos.

2.4.1 O preâmbulo da Constituição Federal

Desde o advento da República existe a separação entre Estado e Igreja. O


Brasil é um país leigo, laico ou não confessional, não adotando qualquer religião
como oficial como outrora na Constituição de 1824 outorgada por Dom Pedro I. Mas
apesar disso, traz em seu preâmbulo a menção a Deus, com exceção ao Estado do
Acre, em todos os Estados brasileiros isso se repetiu. Digno de nota são as palavras
de Pedro Lenza:

[...] o preâmbulo não tem relevância jurídica, não tem força


normativa, não cria direitos ou obrigações, não tem força obrigatória,
servindo apenas, como norte interpretativo das normas
constitucionais. Por essas características e, ainda, por ser o Estado
brasileiro laico, podemos afirmar que a invocação à divindade não é
de reprodução obrigatória nos preâmbulos das Constituições
Estaduais e leis orgânicas do DF e dos Municípios. (2012, p. 983,
grifo do autor).

Nesse sentido, o STF declarou a irrelevância jurídica no preâmbulo e essa


reprodução não é obrigatória nas Constituições estaduais (ADI 2.076, Rel. Min.
Carlos Velloso).

2.4.2 Liberdade de crença e liberdade de culto

O inciso VI do art. 5º CF/88, enaltece o princípio da tolerância e o respeito à


diversidade religiosa. A respeito disso, merece nota os comentários de José Afonso
da Silva:

Na liberdade de crença entre a liberdade de escolha da religião, a


liberdade de aderir à qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o
direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade
de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de
42

descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.


(2007, p. 94, grifo do autor).

Mas é claro que esse direito não é absoluto, ele sofre limitações, ele vai até
onde começa outro direito fundamental. Diante de uma colisão, pondera-se os
interesses e se harmonizá-los for impossível, um deverá prevalecer em face do
outro.
O inciso VI do art. 5º da Constituição garante a liberdade de crença e de
culto, garante que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. A liberdade de crença também é
protegida pelo inciso VII do mesmo artigo: “ninguém será privado de direitos por
motivo de crença nos quais os poderes públicos e as entidades privadas devem
respeitar, no qual se cria uma esfera jurídico-subjetiva ao redor do indivíduo”.
Com isso, o indivíduo é livre para crer nas suas divindades e poderá mudar
de religião ou crença quando bem quiser e também de não crer em nenhuma
religião ou transcendente.
Cabe aqui, uma distinção entre liberdade de crença e liberdade de culto,
Humberto Martins aduz que “a liberdade de religião implica escolher uma fé
religiosa, alterar seu vínculo com a igreja escolhida ou mesmo deixar de acreditar
em determinada expressão da religiosidade”. (MARTINS, 2009, p. 161). Refere-se
aqui à liberdade de crença.
Por outro lado, a liberdade de culto seria uma exteriorização da crença que
poderá manifestar-se de várias formas como reuniões em igrejas, cultos, ritos,
dentre outros. Sobre a liberdade de culto, sábias são as palavras de José Afonso da
Silva:

A religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na


simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a
Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua
característica básica se exterioriza na prática de ritos, no culto, com
suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos,
às tradições, na forma indicada pela religião escolhida. (2006, p.
249).

É importante observar que a liberdade de crença e a de culto têm em


comum a exteriorização da religião professada e ambas podem sofrer restrições, já
que não existem direitos absolutos no nosso ordenamento jurídico.
43

Podemos mencionar as constituições brasileiras de 1946 e 1967 que


previam que a liberdade religiosa deveria estar de acordo com os bons costumes e a
ordem pública. Essa previsão foi retirada da Constituição de 1988 porque parece
impensável existir uma religião que possua um culto contrário aos bons costumes e
à ordem pública. As restrições à liberdade religiosa serão comuns à medida que
apresentem condutas que ultrapassem a esfera individual de cada um e atinja
terceiros que não compartilham do mesmo credo. Podemos destacar o
entendimento de Aldir Guedes Soriano:

Se a pessoa humana tem o direito de escolha em razão de sua


dignidade, então o Estado-juiz não pode restringir as liberdades
públicas injustificadamente – alicerçado, apenas, em critérios de
conveniência e oportunidade. (2009, p. 175).

A liberdade de consciência pode agregar outros valores morais e espirituais


que não fazem parte de nenhuma religião. Podemos citar como exemplo os
movimentos pacifistas que têm, como núcleo central, a paz e o repúdio às guerras,
que não implicam nenhuma fé religiosa e que lutam para o bem comum de todos os
cidadãos.
Então, para que haja a garantia e proteção dessas liberdades, de crença,
culto e consciência, o Estado não pode estar agregado a nenhuma Igreja, não deve
priorizar uma determinada religião em detrimento das demais confissões religiosas.
Neste sentido, importante destacar ainda os dizeres de Fernando de Brito Alves e
Vladimir Brega Filho:

[...] o Estado leigo deve salvaguardar a autonomia do poder civil de


toda forma de controle exercido pelo poder religioso e, ao mesmo
tempo, defender a autonomia das igrejas em sua relação com o
poder temporal. Assim, é garantida tanto a separação política e
jurídica entre Estado e Igreja, com são garantidos os direitos
individuais de liberdade em relação a ambos. Hoje, a imensa maioria
dos Estados reivindica os princípios da laicidade, principalmente no
que diz respeito à liberdade religiosa dos cidadãos, reconhecida pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada em 1948
pela Assembleia Geral da ONU. (2008, p. 3.575).

Então, o dever do Estado é garantir direitos tanto ao indivíduo de escolher


qual será sua confissão religiosa, até mesmo em não crer em nada, assim como é
dever dele garantir a autonomia das Igrejas com o seu poder temporal, limitando-se
a adotar ou simpatizar com uma determinada religião, respeitando assim, o princípio
44

da laicidade, visto que a luta para o reconhecimento da liberdade religiosa é histórica


e remonta desde a proclamação da República.
Ademais, alguns tribunais têm reduzido o direito à liberdade religiosa,
oferecendo proteção constitucional tão somente ao culto objetivo, ou aos lugares de
reverência religiosa e não se deram conta de que há práticas de adoração que
precisam exteriorizar-se fora dos templos. O Estado tem o dever de garantir que
determinada religião cumpra com seus deveres quando a matéria se tratar de culto,
família ou de ensino.
Não adianta nada o Estado garantir às pessoas o direito de professarem
uma religião, mas ficarem restritos somente nos templos seus ensinamentos,
impedindo os devotos de praticá-los. Se isso acontecer, não haverá liberdade
religiosa.
No entanto, a laicidade do Estado não pode ser interpretada em uma
completa omissão. Um Estado omisso é um Estado que está contra qualquer
religião.

2.4.3 Cooperação entre Estado e religião no princípio da laicidade

Reza em seu artigo 19, I da Constituição Federal de 1988:


Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes
o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público;
[...]
Quanto a essa separação, Jayme Weingartner Neto esclarece:

Quanto à separação, Walter Ceneviva vê no artigo 19 em apreço o


“Estado laico”, com a ressalva da colaboração de interesse público,
sendo efeito simultâneo (do Estado laico e da liberdade religiosa) o
“impedimento da privação de direitos por motivos de crença religiosa”
– todavia, a separação “não é absoluta”, mantidos o casamento
religioso com efeitos civis e o ensino religioso na escola pública. Ao
45

analisar o inciso VII do art. 5º da CF 88, Manoel Gonçalves Ferreira


Filho assevera que a prestação de assistência religiosa “não importa
em violação da neutralidade religiosa do Estado brasileiro (...) [que]
não reclama que o Estado sonegue aos seus cidadãos que têm
crença religiosa e assistência para o culto a que se filiem”. Já Aldir
Soriano, no trato da liberdade de organização religiosa, articula os
arts. 5º, VI, e 19, I, da CF 88, de modo que o Estado não pode
embaraçar as manifestações religiosas, desde que “organizadas na
forma da lei; nem subsidiar a religião e estabelecer culto”. (2007, p.
178-179).

Diante desse quadro, observa-se uma dificuldade agravada pela menção de


Deus no preâmbulo da Constituição, o que se entende que o Estado não é
totalmente laico, conceito que merece ser revisto. Por outro lado, se for valer da
ideia de que o Estado é ateu, seria um Estado hostil às religiões, o que causaria
muito repúdio por parte dos cidadãos que professam uma religião.
Neste caso, o mais correto então seria um atributo conferido ao Estado
como agnóstico. Esse caráter de agnosticismo encontra-se em perfeita harmonia
com o respeito às religiões e ao pluralismo social, pois “não é possível conceber um
Estado que crê em Deus ou nega sua existência”. (LEITE, 2014, p. 326).
Esse caráter agnóstico, portanto, torna possível a coexistência de diversas
religiões, credos ou cultos, permitindo entre as pessoas, a convivência entre
diversos valores; permite até a prática do ateísmo, é o que mais se aproxima do
princípio da isonomia.
Em respeito a esse princípio é que existe a laicidade no texto constitucional,
que veda a qualquer Estado ou Município, por razões culturais ou até mesmo
políticas, atos que resultem em tratamentos desiguais aos cidadãos em razão do
credo professado, mesmo de forma que alguns se sintam privilegiados ou
favorecidos em face de outros. Mesmo que a laicidade mantenha uma aproximação
com as religiões, oferecendo um espaço público que todos possam compartilhar,
não pode separar-se do princípio da isonomia.
Existem algumas entidades religiosas que realizam atividades ou serviços
que são de interesse público, e neste caso, é legítima uma aliança com os poderes
públicos. De acordo com o princípio da isonomia, essa aliança só será legitimada se
o interesse for para um bem social e aberto, se for confessional e fechado,
caracterizada estará sua ilegitimidade, pois o Estado estaria beneficiando uma
religião em detrimento das demais, quebrando o princípio da laicidade e da isonomia
declarados na Carta Maior.
46

Essa aliança deve ser interpretada de maneira restritiva. Não é regra, trata-
-se de uma ressalva concedida pela Constituição, pois na maioria das vezes, há
transferência de recursos públicos para a manutenção de programas de interesse
comunitário promovidos pela instituição religiosa e de preferência que haja uma
previsão legal. “Separação é separação, não confessionalidade é não
confessionalidade, a par da tolerância, mas todos devem ser otimizados e
harmonizados”. (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 180).
Conclui-se, portanto, que ao Estado está vedado a manter aliança ou
dependência com qualquer entidade religiosa, com exceção para colaborar com o
interesse público. Nesse caso, não estará violando o princípio da laicidade, pois a
própria Constituição Federal autoriza o vínculo entre Religião e Estado somente
nestas condições.

2.4.4 Sobre a imunidade tributária dos templos religiosos

Os países, que tutelam a liberdade religiosa, nem sempre trazem essa


garantia nas suas Constituições, como os Estados Unidos, por exemplo, não prevêm
na sua Constituição, mas concedem isenções por meio de legislação ordinária.
Na Constituição brasileira, essa garantia está prevista, concedendo um
tratamento isonômico entre as diversas religiões. No Brasil, esta garantia está
prevista desde a Constituição de 1946. Antes disso, a imunidade dos templos era
garantida por meio de legislação ordinária.
O autor Ricardo Lobo Torres (1999) aduz que a imunidade dos templos não
pode ficar sem controle administrativo ou judicial, pois há limites e fronteiras que
devem ser observados, se houver alguma forma de abuso nos templos, seja porque
simulam para obterem vantagens fiscais ou praticam atos que são contrários aos
bons costumes e à moral, a sua imunidade tributária não deverá ser reconhecida.
Há certa convergência doutrinária a respeito da imunidade dos templos.
Alguns doutrinadores defendem que não importa a religião, pode ser católico,
protestante, espírita kardecista, terreiro de umbanda e candomblé, desde que seus
seguidores possuam fé e se reúnam em local dedicado ao culto de sua confissão,
este lugar é um templo e gozará de imunidade tributária. A dúvida que surge a
47

respeito é em relação ao culto em residência dos sacerdotes, Aliomar Baleeiro


defende que quando diz “templos de qualquer culto”, e que o mesmo não tem
capacidade econômica, o templo não deve ser somente a igreja ou outro local onde
se celebra o culto, a casa do pároco ou pastor deve ser abrangidos pela imunidade
tributária, desde que não tenha fins econômicos, com exceção das casas de aluguel
ou terrenos da paróquia e do Bispado.
Sasha Calmon Navarro entende que a residência dos padres não é imune
aos tributos por não ser templo, mas sim moradia, que embora seja um sacerdote,
também é um cidadão e tem obrigação de pagar seus tributos, assim como os
demais.
Ademais, aplica-se também aos edifícios anexados às igrejas que deverão
ser tributados, pois sua natureza não se equipara a elas, não são templos, são bens
da igreja.
Neste mesmo sentido, Sacha Calmon Navarro diz que num terreiro de
religião afro-brasileira, por exemplo, o barracão que agrega os seguidores, há de ser
abrangido pela isenção tributária, mas a casa do pai-de-santo, que porventura pode
estar no mesmo terreno, não gozará dessa imunidade.
Portanto, devemos admitir que a isenção tributária limita-se aos templos, o
que não exclui a possibilidade de concessão de eventuais benefícios fiscais por
meio de isenção.
Importante lembrar ainda que durante o processo constituinte, a
subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição de Receitas, havia incluído na
imunidade tributária dos templos os bens imóveis anexados de igrejas, sendo
suprimidas na versão definitiva, concedendo apenas isenção de tributos aos templos
de qualquer culto, excluindo assim, da isenção, suas propriedades anexas.
Foi proposta no senado federal uma legislação para por fim à imunidade
tributária dos templos religiosos, motivado pelos vários escândalos financeiros
envolvendo representantes de organizações religiosas. 1
Neste sentido, se a organização permite o enriquecimento de seus líderes e
membros, não deverá ser abrangida pela imunidade tributária, tirando esse
privilégio.

1
Fim da imunidade tributária para as entidades religiosas. Disponível em
<http://www12.senado.gov.br/ecidadania/visualizacao?id=38723>. Acesso em 02/07/2015.
48

2.4.5 O ensino religioso nas escolas públicas

Assim como nas Constituições anteriores, a de 1988 garante o ensino


religioso nas escolas públicas, mas deixou muitas questões a serem resolvidas no
plano infraconstitucional e também foi pouco detalhista a respeito.
A redação do dispositivo estabelece que “o ensino religioso, de matrícula
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental”.
Isso deixou muitas dúvidas como, por exemplo: o ensino religioso deveria
ser de competência federal ou estadual? Caberia selecionar os professores?
Deveria o Estado definir o conteúdo programático da disciplina? Trata-se de um
direito subjetivo apenas dos alunos da rede pública? Podem as Constituições
Estaduais estenderem o ensino religioso ao ensino médio?
O dispositivo não ofereceu respostas a essas questões levantadas. Há um
consenso na doutrina sobre uma necessidade de regulamentação desse dispositivo
constitucional para assegurar a sua aplicabilidade.
O referido artigo 210 e seu § 1º estabelecem:
Art. 210 - serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de
maneira a assegurar formação básica comum a respeito aos valores culturais e
artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Em relação ao ensino religioso nas escolas públicas, Maria Garcia defende:

[...] em face da vedação constitucional do artigo 19, I, (pois


“subvencionar significa auxiliar ou contribuir financeiramente, arcar
com despesas, suportar quaisquer cultos ou igrejas”) “ a disciplina de
ensino religioso impõe ao Estado tão somente o dever de reservar,
na grade curricular, horários para que os alunos interessados no
ensino religioso estejam liberados de outras atividades, de modo que
possam dirigir-se à instituição religiosa mais próxima de sua escola
ou de sua residência, escolhida por eles ou pelos seus responsáveis,
para que ali recebam a instrução religiosa que melhor aprouver”.
(2009, p. 241, grifo da autora).

Pode ser de caráter facultativo a matrícula do aluno na disciplina de ensino


religioso, pois será impossível impor qualquer critério de avaliação, reprovação ou
49

aprovação na disciplina, quando os alunos são liberados para frequentarem a


instituição religiosa que escolheram, as obrigações estatais impostas pelo art. 210 e
§ 1º se exaurem.
São inúmeros os pontos em aberto no que se refere ao ensino religioso por
ser carente de regulamentação, sem natureza pública subjetiva, por isso,
encontramos obstáculos quando há exigência perante o Estado. Mais fácil seria se
essa regulamentação definisse que o ensino religioso nas escolas públicas fosse
confessional regido pelas autoridades religiosas e não por professores credenciados
e remunerados pelo Estado.
Não podemos esquecer de que ao longo da história constitucional brasileira,
sempre foi expressa a opção pelo ensino professional, no texto de 1934 dizia que “o
ensino religioso será... ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa
do aluno... e de 1946 “o ensino religioso... será ministrado de acordo com a
confissão religiosa do aluno... Já a Constituição de 1967/69 abandonou essa ideia,
estabelecendo que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina
dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio”.
Um representante da CNBB, Sr. Israel José Néri, frisou em audiência pública
junto à subcomissão de Educação, Cultura e Esportes (19ª reunião em 5 de maio de
1987) que o ensino religioso nas escolas não poderia ser uma doutrinação ou uma
catequese que ensinasse somente histórias bíblicas, mas que fosse trabalhado
valores éticos e básicos do ser humano, afastando-se da concepção confessional
religiosa e doutrinação. Neste sentido, Jayme Weingartner Neto assevera:

[...] a necessidade de uma norma expressa autorizativa do ensino


religioso na escola pública decorre do princípio da separação, sem a
qual qualquer norma infraconstitucional violaria o art. 19, I, CF 88. [...]
o “ensino religioso não integra o currículo mínimo do ensino
fundamental”, sendo apenas uma disciplina de matrícula facultativa,
pelo que “fica ao arbítrio do aluno cursá-la ou não, desistir de cursá-
la, mudar de religião, optar pelo seu ensino a qualquer tempo ou
simplesmente não optar”. Diz respeito ao ensino de uma religião
(seus preceitos e dogmas característicos), a ser ministrado
“conforme a fé e as convicções religiosas do aluno”. Definitivamente
descabe ao Estado ministrá-lo, pois, por sua própria natureza, isso
“deve ser feito pela entidade confessional”. (2007, p. 258-259).

Por outro lado, Ives Gandra Martins (1995, p.82) entende que o Estado não
deve transferir uma obrigação que é sua, por isso, é de responsabilidade a cessão
de salas de aula para o ensino religioso, bem como a remuneração dos professores.
50

E também que o ensino religioso seja o da Igreja Católica Apostólica Romana, e


como o constituinte conheceu a realidade de outros cultos, permitir assim que a
matrícula fosse facultativa aos alunos, ou seja, aquele que não professasse a
religião Católica, não precisaria frequentar as aulas de ensino religioso e a igreja
católica ficaria encarregada do conteúdo da disciplina.
Estas considerações chocam-se com o princípio da não confessionalidade,
pois os entes federados estariam formando aliança com a igreja Católica, violando a
posição de que o ensino público não pode ser confessional.
O ensino religioso nas escolas públicas é um direito individual e somente as
confissões religiosas que poderiam ministrar o ensino religioso. O aluno poderá
somente exigir do Estado que assegure que nos horários normais, esse ensino
possa ser ministrado.
Também não se deve discriminar a escola particular, que também poderá
ofertar o ensino religioso para seus alunos, para não ferir o princípio da isonomia.
Mas é sempre bom afirmar que a matrícula é facultativa, não devendo ser o
aluno prejudicado por não frequentar as aulas e deve-se evitar a qualquer custo o
constrangimento.
Em relação ao conteúdo do ensino religioso nas escolas, alguns autores
entendem que se trata de ensino de religião, o que poderá contribuir para eliminar os
conflitos religiosos que existem no mundo. Anna Ferraz (1997, p. 25) entende que o
Estado não será obrigado a fornecer materiais como cadernos, livros, enfim,
qualquer material que possa ser utilizado nas aulas de ensino religioso. O Estado
deve atuar positivamente para abrir o espaço e oferecer condições para que o
ensino religioso seja ministrado e deve atuar ainda, negativamente, no sentido de
não intervir em matéria religiosa.
Outra divergência doutrinária é em relação à remuneração dos professores,
Pontes de Miranda (1967, p.56) defende que é obrigação do Estado em remunerar
os professores que trabalharão com o ensino religioso, já Anna Ferraz (1997, p. 37)
contraria essa ideia, inviabilizando que o Estado nomeie, contrate ou remunere os
professores, em face da separação entre Estado e Igreja.
Diante desse pensamento, conclui-se que o Estado não pode ofertar o
ensino religioso por meio de professores a ele nomeados e vinculados; e também
não poderá contratar professores para este fim.
51

A autora ainda defende que não é de responsabilidade do Estado fixar os


conteúdos pertinentes a esta disciplina, assim como frequência e regras de
aproveitamento. Ele pode exercer somente a fiscalização, para que a prática das
aulas do ensino religioso nas escolas não perturbe ou embarace o andamento do
ensino fundamental, pois é essência do Estado assegurar a sua qualidade.
Contrariando essa visão, Jayme Weingartner Neto defende:

[...] É como se o ensino religioso, pese o preceito constitucional, não


fizesse parte do ensino fundamental. Professores do Estado podem,
sim, na visão que defendo, ministrar o ensino religioso (que, de resto,
vem ocorrendo no cotidiano escolar), verdade que de modo mais
tranquilo na modalidade interconfessional. Avançar para o ensino
confessional, o que se considera perfeitamente possível, exigirá
atenção para que não haja envolvimento excessivo do Estado em
matéria religiosa. (2007, p. 263).

Percebe-se, então, que a falta de regulamentação do ensino religioso, como


um direito individual, abre brechas para várias interpretações na doutrina. São
inúmeros os pontos em aberto que permitem uma discussão ampla acerca do
assunto.

2.4.6 A liberdade de auto-organização e direito de autodeterminação

A auto-organização é uma competência das comunidades religiosas e que o


Estado deve garantir e regulamentar seu exercício, porque os poderes públicos não
podem pré estabelecer de forma arbitrária um modelo. O Estado deve propiciar a
maximização da liberdade religiosa, sendo ilegítimas quaisquer cláusulas que
possam interferir ou embaraçar o direito de auto-organização das comunidades
religiosas.
Quando se confere personalidade jurídica às confissões religiosas, é
importante discutir as consequências que podem originar desse estatuto da pessoa
jurídica que irão se encaixar, no público ou no privado. Neste sentido, Jayme
Weingartner Neto aponta:

Insere-se, aqui, o problema da personalidade jurídica das confissões


religiosas, discutindo-se as implicações constitucionais de conferir-
lhes, na legislação infraconstitucional, o estatuto de pessoas jurídicas
52

de direito público ou privado. As ideias de complementaridade e de


relações de coordenação entre Estado e Igreja sustentam a
compatibilidade da personalidade pública com os dados
constitucionais de liberdade religiosa, o que exprimiria a autonomia e
especificidade das confissões e o caráter originário de sua
autoridade, sem significar assimilação da Igreja ao Estado ou sua
subordinação à fiscalização. Em sentido contrário, fala-se de uma
disfunção sistêmica, identificando-se um certo jus imperii com o
financiamento da religião e consolidando privilégios e discriminações,
pelo que a tendência contemporânea aponta para a igualdade entre
as confissões religiosas e as demais pessoas jurídicas de direito
privado, o que não imita suas “aspirações de performance no espaço
público”, nem desvaloriza ou degrada a religião (ou a relega para o
foro privado da consciência individual). (2007, p. 137, grifo do autor).

A personalidade de direito privado não retira das confissões religiosas sua


autonomia funcional e normativa, ao passo que a opção pelo direito público só vai
mostrar-se cabível em um estado confessional ou quase confessional.
Quando se reme as confissões religiosas ao regime geral do direito privado,
pode ocasionar problemas, já que as confissões estarão sujeitas à base democrática
do código civil. Este se apoia em assembleia geral, órgão administrativo e conselho
fiscal, podendo violar a autocompreensão de alguma confissão religiosa.
No nosso direito brasileiro, as confissões religiosas são enquadradas na
categoria de pessoas jurídicas de direito privado, na modalidade de associações,
como reza o artigo 44, inciso I, do Código Civil de 2002:
Art. 44 – São pessoas jurídicas de direito privado:
I – as associações;
II – as sociedades;
III – as fundações;
IV – as organizações religiosas;
V – os partidos políticos.
§ 1º - São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o
funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-
lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu
funcionamento.
[...]
Nesse sentido, Aldir Guedes Soriano defende que as igrejas devem atuar
como pessoas jurídicas:
53

Há liberdade para a formação de uma pessoa jurídica religiosa,


conquanto se consubstancia em ato que expressa a vontade
humana. Entretanto, há que se seguir os requisitos legais, por que a
entidade possa existir como personalidade jurídica. Assim, é livre a
organização religiosa na forma da lei, como determina a Constituição
Federal (de um Estado Democrático de Direito). Essa organização
depende, inclusive, da aprovação estatal, que, aliás, estimula
atividade religiosa com as imunidades tributárias. (2002, p.13).

Quanto ao direito de autodeterminação, é garantida pela Constituição


Federal às comunidades religiosas, autonomia ampla de medidas referentes às
próprias questões dessas comunidades, assegurando a neutralidade do Estado e
sua não identificação em matérias religiosas, merecem destaque os direitos de
autodefinição, autocompreensão, autojurisdição, auto-organização, autodissolução e
autoadministração, sendo reconduzidos ao direito geral de autodeterminação. Este
direito deve ser exercido em conformidade com os princípios fundamentais,
principalmente da igual liberdade de todos os cidadãos.
De acordo com o direito de autodeterminação, todas as confissões religiosas
devem ser consideradas como sociedades perfeitas, no que diz respeito às suas
matérias amplas e diversificadas, como a fixação dos pressupostos de
admissibilidade dos seus membros, o exercício das funções de cultos, sua estrutura
interna, seja orgânica ou funcional, a adoção de um modelo congregacional e a
hierarquia entre os membros de uma determinada confissão religiosa. Matérias
estas reservadas exclusivamente às confissões religiosas que não devem ser
definidas pelo Estado, respeitando sua competência negativa nesse âmbito das
confissões.
Conclui-se que em relação a essa autonomia das confissões religiosas, o
poder público não deve interferir, tutelando assim, o direito constitucional conferido
às confissões de qualquer natureza, seja judicial, legislativa ou administrativa,
respeitando essa autonomia sem realizar qualquer juízo de mérito que diz respeito
ao conteúdo teológico dessas confissões.
Nesse sentido, cabe às entidades religiosas resolver seus conflitos,
funcionais, organizatórios e doutrinários sem ter que obedecer ao cumprimento das
linhas do Estado. Além do mais, as entidades religiosas devem manter-se em seu
círculo de atuação e competência, se por acaso ultrapassarem estes limites
pessoais e materiais, dentro da sua autonomia, não poderá estar protegida do direito
à liberdade religiosa.
54

Um dos objetivos da liberdade religiosa é obter proteção jurídica da


autonomia das diferentes confissões religiosas, mas essa proteção não alcança
todas as atividades que elas desenvolvam, caso contrário, haveria um abuso desse
direito fundamental.
Percebemos que algumas atividades realizadas pelas pessoas jurídicas
como divulgação e ações de beneficência e assistência social, bem como a
divulgação de conteúdos religiosos, são amparadas pela proteção da liberdade
religiosa.
Agora, a situação se torna mais complexa quando as atividades estão
ligadas à finalidade de uma igreja, mas mesmo estando ausente qualquer intenção
lucrativa, possui algum relevo econômico, como por exemplo, a alienação ou
aquisição de bens ou serviços, criação de uma nova pessoa jurídica, prática de atos
de comércio, assistência hospitalar privada, exploração comercial de discos e livros,
radiodifusão. Fica difícil defender que o direito de autonomia religiosa, que abrange
todos os aspectos de práticas, pode ser justificado pelas entidades religiosas e que
essa natureza comercial serve para financiar a confissão.
Deve-se, então, evitar o enfraquecimento da norma da liberdade religiosa,
prevenindo sua utilização abusiva por parte de algumas confissões religiosas,
consideradas igrejas de fachada, para obterem vantagens em nome dessa
liberdade.
Portanto, considera-se como diferença entre as confissões religiosas e as
outras entidades, seja pública ou privada, o culto como atividade principal de uma
comunidade religiosa. Algumas comunidades podem até praticar outras atividades
que não sejam culturais, mas o culto deverá ser a sua atividade principal e
preponderante, não podendo estar num patamar inferior em relação às outras
práticas, que porventura, as comunidades habitualmente desenvolvam.
55

3 A INGERÊNCIA DO ESTADO NO ÂMBITO DAS CONFISSÕES

3.1 Neutralidade do Estado frente às religiões

A relação entre Estado e Igreja é abordada nas constituições atuais de


modelo ocidental que sempre se preocuparam com a liberdade religiosa tendo como
apoio documentos internacionais e o jusnaturalismo.
Existem Estados que ainda adotam uma religião oficial, sendo do tipo
confessional. Estes Estados teocráticos afastam-se do modelo de Estado de direitos
humanos, mas não é por conta disso que impeçam a prática de outras religiões.
Exemplo disso é o que ocorre na Argentina. Neste sentido, André Ramos Tavares
aduz:

[...] É o que ocorre com a atual Constituição da Argentina, cujo art. 2º


reconhece que “El Gobierno federal sostiene el culto católico
apostólico romano”. Em outros casos, como a brasileira, está
assegurada a liberdade religiosa. Em algumas constituições está
proclamada solenemente a separação entre Estado e Igreja, ou foi
ela entendida estritamente, como no caso dos EUA, por meio da
jurisprudência da Suprema Corte. (2009, p. 54).

No Brasil, o Estado deve assegurar ampla liberdade religiosa ao cidadão e


garantir que esse direito não seja violado, nem por ele mesmo, nem por terceiros.
Nesses moldes, o indivíduo não deve ter seus direitos cerceados por conta de sua
crença declarada, são direitos de primeira dimensão, ou seja, direitos individuais que
devem ser preservados.
Para que seja garantida a plena liberdade religiosa, é preciso que haja a
separação entre Estado e religião. Quando um Estado é confessional e adota uma
religião oficial, não há que se falar em liberdade religiosa plena, mesmo que esse
Estado permita a prática de outras religiões, sempre terá preferência pela religião
oficial adotada e terá neste caso, apenas tolerância às outras religiões.
A Constituição brasileira, no art. 19, inciso I, deixa claro que é vedado ao
Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
56

dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse


público”. Sobre a neutralidade do Estado, Valerio de Oliveira Mazzuoli esclarece:

Cumpre observar que o chamado Estado laico não é um Estado ateu


ou pagão, e tampouco um Estado confessional. O Estado laico é
neutro. Ou seja, não é nem ateu e pagão e nem confessional. Tanto
o Estado ateu e pagão quanto o Estado confessional são Estados
hostis às liberdades individuais. O atual Estado Constitucional e
Humanista de Direito não aceita essas construções e prima sempre
pela neutralidade do Poder Público em matéria religiosa ou em
assuntos que lhes sejam conexos. (2009, p. 256-257, grifo do autor).

O que pode ocorrer é que alguns interesses da religião podem coincidir com
os do Estado, como por exemplo, a proteção da cultura e do patrimônio histórico
nacional. Nisso podemos perceber que não há um total distanciamento entre Estado
e religião.
No Estado não-confessional, a aproximação do Governo, por meio de suas
entidades públicas ou órgãos a alguma religião, é uma burla ao princípio da
separação entre Estado e Igreja, com exceção de alguns casos em que a própria
Constituição autorizou a participação do Estado em assuntos religiosos, como por
exemplo, a colaboração para o interesse público, como reza o inciso I do art. 19 da
Constituição Federal.
O Estado deve manter uma igualdade entre entidades religiosas, indivíduos
e crenças para garantir a plena liberdade religiosa. “Se houver tratamento desigual,
cai por terra a liberdade religiosa ampla, que cede espaço a algumas exceções que
prejudicam o todo”. (TAVARES, 2009, p. 60).
Por outro lado, deve ter um tratamento diferenciado para as confissões
religiosas, pois há uma situação em que há elementos culturais fortes, neste caso,
não estará o Estado desrespeitando a igualdade, porque esses elementos culturais
fortes exigem uma diferenciação pontual. É um tratamento especial, não privilegiado.
O privilégio não tem justificativa concreta, é concedido arbitrariamente, já o
tratamento especial é aplicado em virtude de uma situação fática que exige a sua
aplicação para manter um equilíbrio de igualdade. Neste contexto, defendem
Vladimir Brega Filho e Fernando de Brito Alves:

Poder-se-ia alegar que esse tratamento “desigual” poderia levar a um


confronto, a um sectarismo religioso. Acredita-se exatamente o
contrário. O tratamento desigual visa garantir todos os direitos
constitucionalmente assegurados, promovendo a inclusão de todas
57

as pessoas, independente da religião que professem [...] (2008, p.


3.582).

Essa aproximação do Estado com algumas religiões é admissível, mas


aceita somente em certas circunstâncias necessárias que necessitam de um
tratamento especial em virtude de uma realidade social de uma comunidade ou de
sua cultura. Neste sentido, assevera André Ramos Tavares:

[...] Esses elementos fáticos são objeto de preocupação de diversas


outras normas constitucionais, muitas das quais também são
principiológicas, e uma retirada do Estado em todos esses casos
seria conceder à separação entre Estado e religião e à neutralidade
daquele um caráter absoluto e de superioridade em relação a
qualquer outra preocupação constitucional. (2009, P. 61-62).

No entanto, essa aproximação do religioso não deverá concretizar-se se


atingir outros direitos fundamentais quando seus resultados são colocados em
prática.
No Brasil, há várias manifestações religiosas com a formação de uma
identidade e de uma cultura que são próprias e com isso o Estado se vê na
obrigação de agir para proteger essa grande gama de manifestações em suas
diversas dimensões, garantindo-lhes uma liberdade religiosa ampla.
Deve-se também observar o princípio da igualdade religiosa subjetiva, que
quer dizer que ninguém poderia isentar-se de dever a todos exigível em nome de
uma determinada religião. Sobre isso, Humberto Martins esclarece:

[...] Assim, o dever de voto, o alistamento militar obrigatório e a


participação em guerras externas são obrigações comuns a todos os
súditos ou cidadãos de um Estado. A profissão de fé do indivíduo
não poderia ser usada para escudar um crente ao desempenho
desses deveres universalmente particulares. [...] (2009, p. 107).

O princípio da separação institucional foi desenvolvido pelo Direito


Constitucional moderno que expressa a distinção jurídico-política dos organismos
religiosos e o Estado.
De acordo com esse princípio, não é permitido ao Estado interferir na
nomeação ou no afastamento de líderes religiosos; a organização interna das igrejas
como escolha de líderes, dízimos, dentre outros.
No Estado Democrático de Direito prevalece o princípio da
anticonfessionalidade que garante aos cidadãos que o Estado não adotará nenhuma
58

religião oficial, não se manifestando em questões de fé, nem interferindo na


economia teológica das entidades religiosas.
No município de Carandaí, Estado de Minas Gerais, por meio da Resolução
03/2002, obriga a leitura do versículo da Bíblia Sagrada no início de suas reuniões
na Câmara Municipal. Diante disso, o Procurador Geral de Justiça do Estado de
Minas Gerais impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da
resolução do município onde foi julgado procedente o pedido inicial da ADIN. 2
Portanto, percebe-se que o Estado deve garantir a todos os cidadãos, no
Estado Democrático de Direito, a ampla liberdade de religião e também manter um
tratamento igual entre as entidades religiosas, embora possa haver um tratamento
diferenciado entre as religiões, em casos em que há elementos culturais fortes,
considerado, portanto, um tratamento especial, o que não significa privilégio.

3.2 O princípio da tolerância

Deve o Estado fomentar, por meio de campanhas e leis, o respeito à


diversidade religiosa, pois o Brasil é um país que apresenta um amplo pluralismo
religioso. Nos dizeres de Humberto Martins:

No plano subjetivo, a tolerância perpassa a aceitação das diferenças


religiosas; o acatamento às formas de culto; o respeito ao
proselitismo; a coibição do proselitismo abusivo, como o emprego de
formas de pregação que ultrapassem os limites da liberdade
individual, da intimidade, da privacidade e da autodeterminação.
(2009, p. 109).

Este princípio é complementar ao direito de liberdade religiosa, respeito


pelas diversas formas de professar e de crenças alheias. É o respeito e boa-fé que
os cidadãos devem ter frente a uma diversidade religiosa que terá grande
importância nos casos como, por exemplo, de reuniões públicas de natureza
religiosa, ou mesmo nas divulgações de mensagens religiosas.

2
Disponível em <www.//tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/205022309/acao-direta-inconst-
10000140725037000-mg>. Acesso em 10/07/2015.
59

Cabe ao Estado tomar medidas apropriadas para proteger o respeito mútuo


que deve existir entre os cidadãos; por isso ele é considerado o “guardião da
tolerância”.
A intolerância religiosa faz com que determinados grupos sejam vítimas de
perseguições e de matanças em massa por causa do preconceito e da
discriminação. Dentre os perseguidos, podemos destacar os negros e os índios que
foram grandes vítimas dessa intolerância, sendo lembrados nas literaturas de José
de Alencar, Castro Alves e Gonçalves Dias, os quais relataram em suas obras o
sofrimento, a agonia, a luta e a morte desses grupos.
Devemos nos lembrar também da Alemanha nazista que, ao comando de
Hitler, sangrou os judeus no maior genocídio da história da humanidade. Diante
dessas atrocidades cometidas contra o ser humano, instalou-se em Nuremberg, com
a participação da França e dos Estados Unidos, um tribunal que julgou os
responsáveis de crimes contra a paz, contra a humanidade. Julgamento esse feito
pelos crimes de perseguição por motivos religiosos.
O crime de genocídio passou a ser considerado hediondo através da Lei nº
8.072, de 25 de julho de 1990. Este crime é insuscetível de anistia, graça ou indulto
e o réu cumpre sua pena em regime integralmente fechado. No que diz respeito ao
direito brasileiro, digno de nota são as palavras de Leon Fredja Szklarowsky:

O Direito brasileiro, não obstante, teceu uma crescente e salutar


evolução no que diz respeito à proteção das minorias, para integrar
seus membros na sociedade e, assim, banir o preconceito ou a
discriminação. A questão, todavia, não é apenas jurídica, senão e
principalmente econômica, social, educacional e de formação, sem
se apartar da consciência. Tal fenômeno está extremamente ligado à
liberdade e à consciência de cada ser humano. [...] Afinal, o
verdadeiro direito é aquele que anda de mãos dadas com a justiça
social e a realidade. E, sem dúvida, com a evolução do espírito
humano. (2009, p. 330).

No passado, os negros e os índios eram considerados coisas, podendo ser


vendidos como parte da terra; e os judeus foram segregados por leis que tinham, por
assim dizer, um respaldo divino.
Ademais, o Brasil não é um exemplo de tolerância e tampouco de igualdade
social, apesar de serem direitos assegurados na Carta Magna de 1988. Por isso
foram criadas leis para que as minorias tivessem acesso aos direitos, como a Lei de
Cotas (Lei nº 10.558, de 13 de novembro de 2002), com fonte na Medida Provisória
60

nº 63/02, alterada pela Lei nº 11.507, de 20 de julho de 2007, que criou o Programa
de Diversidade na Universidade com o intuito de criar estratégias para promover o
acesso ao ensino superior de indivíduos que fazem parte de grupos que são
desfavorecidos socialmente como os indígenas e negros. Até hoje esse assunto
gera grande polêmica na sociedade brasileira.
Mas apesar disso, ainda persiste no meio social o preconceito, muitas vezes
camuflado. Cabe aqui uma distinção entre preconceito e discriminação, segundo
Szklarowsky (2007, p. 339), preconceito é um conceito, opinião antecipada que se
faz de alguém, de um grupo que leva a intolerância, o ódio ou a aversão às raças, às
religiões, etc. Já a discriminação é ato de separar, segregar, apartar do mesmo meio
de convívio pessoas ou grupos por não aceitarem suas características próprias.
A lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, instituiu o Dia Nacional de
Combate à Intolerância Religiosa a ser comemorado no dia 21 de janeiro em todo o
território nacional.
No dia 07 de junho de 2015, domingo, na Parada Gay de São Paulo se
protestou contra o preconceito que a LGBT vem sofrendo em decorrência de suas
orientações sexuais. Não obstante, a atriz e modelo Viviany Beleboni desfilou nesse
evento imitando Cristo crucificado, o que provocou muita polêmica entre os
religiosos que viram este ato como uma afronta e uma intolerância religiosa. A atriz
alega que a intenção era alertar contra a violência sofrida pelos homossexuais. O
caso foi noticiado da seguinte maneira:

A imagem de um transexual crucificada na 19ª Parada Gay de São


Paulo provocou polêmica entre religiosos e defensores dos direitos
LGBTs. A atriz e modelo Viviany Beleboni, 26 anos, desfilou neste
domingo, com uma placa onde se lia “basta homofobia”, no trio
elétrico da organização não governamental Ação Brotar pela
Cidadania e Diversidade Sexual (ABCDS). Personalidades
evangélicas consideraram a manifestação ofensiva. Já a ONG e a
artista responsável pela performance alegam que o intuito não era
criticar qualquer religião, mas chamar a atenção para crimes de
homofobia no país. O evento paulista é considerado um dos maiores
do mundo e reuniu mais de 2 milhões de pessoas neste fim de
semana, segundo estimativa dos organizadores. [...] o Diretório
Regional do Distrito Federal do Partido Trabalhista Nacional (PTN)
informou que vai protocolar ação no Ministério Público Federal
pedindo que a Associação da Parada do Orgulho GLBT seja
investigada por crime de injúria. Uma prévia do texto afirma que “o
descaso com a imagem de Jesus Cristo desrespeitou princípios
basilares da fé cristã. [...] (Disponível em
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2015/06/09/
61

internas_polbraeco,485934/atriz-crucificada-na-parada-gay-diz-que-
nao-quis-afrontar-religiosos.shtml>. Acesso em 14/06/2015.

Então neste caso, cabe averiguar se o objetivo da Parada era promover a


intolerância religiosa ou simplesmente foi mesmo alertar a todos sobre os crimes
sofridos pelos homossexuais. Quando envolve o Sagrado de uma determinada
religião, devem-se tomar precauções, pois o terreno religioso é muito delicado, está
a lidar com a fé alheia e podem surgir conflitos como neste caso em tela.
Outro caso ocorreu no ano de 2012, no qual um funcionário do Ministério
Público, Regis Montero, foi retirado à força da Câmara de Vereadores de Piracicaba,
Estado de São Paulo, porque não ficou em pé durante a leitura da bíblia, que faz
parte do Regimento Interno da Câmara. Este ato acaba por ferir a laicidade do
Estado.3
Numa sociedade pluralista, como no Brasil, existem várias crenças
religiosas, cada qual com suas regras e costumes, todas sem distinção têm seus
direitos de liberdade religiosa garantidos pela Constituição Federal. Cabe ao Estado
zelar e garantir esses direitos e é dever de cada cidadão respeitar a crença alheia e
manter o respeito e a solidariedade entre as entidades religiosas.

3.3 Quais os limites da intervenção do Estado?

Como sabemos, a jurisdição tem seus limites, mas poderão ocorrer algumas
colisões entre a autodeterminação das entidades religiosas com o princípio da
inafastabilidade da jurisdição que na realidade se converteu ao princípio da
onipresença do Judiciário o que nos remete a uma reflexão sobre tais limites. Nessa
linha de raciocínio, Aloísio Cristovam dos Santos Júnior oferece alguns exemplos:

Os mais eloquentes exemplos desse fenômeno são oferecidos por


decisões judiciais que, apreciando conflitos entre organizações
religiosas e seus associados, impõem àquelas a prática de atos que
se situam no espectro das atividades estritamente religiosas. São
casos paradigmáticos, porquanto largamente noticiados pela
imprensa, a decisão de um magistrado de Goiânia, que determinou o

3
Servidor que não ficou em pé para leitura da bíblia é expulso de Câmara de Vereadores. Disponível
em <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/10/servidor-leitura-biblia-piracicaba-expulso-
camara-vereadores.html> Acesso em 25/05/2015.
62

arrombamento do templo da Primeira Igreja Batista daquela cidade


para que fosse realizada uma cerimônia religiosa de casamento que
a igreja se recusava a celebrar e a decisão de um juiz da comarca de
Viamão (RS) que ordenou a um padre católico que celebrasse
casamento de pessoa que, nos termos do direito canônico, era
casada. (2010, p. 38).

Por se tratar de um assunto muito delicado, talvez não encontremos


respostas definitivas porque necessita de um reexame contínuo por parte dos
estudiosos do direito quando, se está diante de um confronto entre a
autodeterminação das organizações religiosas e os limites da atividade do judiciário.
Lembrando ainda que o direito à liberdade religiosa, garantida como direito
fundamental na Constituição Federal, não abrange somente a liberdade de crença e
de culto, mas garante também a liberdade de autodeterminação das organizações
religiosas.
Para que se tenha tratamento jurídico adequado, o judiciário deve ter
conhecimento amplo sobre a liberdade de autodeterminação das organizações
religiosas; caso contrário, esse desconhecimento gera obstáculos, dificultando e
embaraçando esse direito conferido pela Carta Maior.
Ademais, a liberdade religiosa do indivíduo não fica apenas na sua esfera
íntima, estende-se para o coletivo, abrangendo a liberdade de autodeterminação
das organizações religiosas. A Constituição Federal assegura o livre exercício dos
cultos religiosos, desbordando dos limites individuais de fé e adentrando no espaço
coletivo de vivência religiosa, que é organizado de acordo com as convicções e
crenças. É garantido também a proteção do lugar de culto e seus rituais religiosos.
O direito fundamental de autodeterminação não abrange apenas as
entidades jurídicas de direito civil, beneficia também as organizações
despersonalizadas.
Podemos afirmar que não poderá haver nenhuma interferência estatal no
ordenamento jurídico interno das organizações religiosas, cabendo somente a essas
organizações estabelecerem sua estrutura interna e seu funcionamento,
estabelecendo regras de admissão e de desfiliação de seus membros, assim como
as regras de conduzir, formas de governar, adotar regras que são usadas por outras
entidades que, de algum modo estejam associadas a elas.
A igreja ou culto pode adotar seu próprio ordenamento jurídico e suas
normas, que não precisam ser necessariamente escritas, podem ser costumeiras. A
63

Igreja Católica, por exemplo, prefere a forma escrita, que é o Código Canônico.
Também a Igreja Presbiteriana do Brasil é regida por uma Constituição de 152
artigos.
Os cultos afro-brasileiros preferem a tradição oral, apresentando um
ordenamento totalmente costumeiro. “Em qualquer caso, a autorregulamentação das
organizações religiosas sempre é livre”. (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 40).
O Estado não se resume apenas ao Executivo, estende-se também ao
Legislativo e ao Judiciário, ou seja, os três poderes. Estende-se também o conceito
de Estado às unidades federativas. Vimos isso claramente quando o texto
constitucional veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios,
embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos ou igrejas.
Uma vez que as organizações religiosas são pessoas jurídicas de direito
privado, são titulares da garantia de serem defendidas e respeitadas pelo Estado em
seu direito de autodeterminação.
Esse direito de autodeterminação das organizações religiosas, incluindo o de
autorregulamentadora é instituído em prol dos grupos religiosos e de seus indivíduos
e sua violação constitui ofensa à liberdade religiosa para cada um de seus membros.
Um exemplo é quando há uma intervenção indevida do judiciário no âmbito interno
de uma organização religiosa para privilegiar somente um dos integrantes de um
determinado grupo religioso que se desvia do padrão de comportamento imposto
pela entidade religiosa. Afastar uma sanção aplicada, de acordo com o ordenamento
dessa instituição, é ofendido nesse caso, não somente o direito de
autodeterminação da igreja ou do culto, mas também o direito de todos os indivíduos
que professam de tal religião, de verem o ordenamento ser aplicado de acordo com
suas regras, que na verdade, todos os membros a aderiram democraticamente.
Também nas regras das organizações religiosas pode ocorrer a
discriminação, como por exemplo, uma função a ser exercida apenas por homens ou
mulheres. Qualquer medida do Estado para obrigar qualquer organização religiosa a
não discriminar, ofende a liberdade religiosa. Aloísio Cristovam dos Santos Júnior
defende:

[...] É crucial lembrar, nesse passo, que quando alguém adere a uma
organização religiosa está se sujeitando ao seu ordenamento
peculiar, tanto no que diz respeito aos direitos quanto aos deveres
que lhe são atribuídos como integrante do grupo. (2010, p. 41).
64

Percebe-se, então, que a condição para o indivíduo permanecer na


confissão religiosa é agregar para si uma conduta que seja compatível com as
regras ditadas pela organização religiosa pois, ao aderir à determinada crença, o
indivíduo já estava ciente da ordem interna e como ele é amparado pela liberdade
religiosa, poderá abandonar a confissão a qualquer momento.
Neste sentido, o indivíduo não poderá esperar do Estado uma tutela contra
decisão tomada pela organização religiosa. Há essa impossibilidade da intervenção
estatal frente aos casos de conflitos entre aderentes e confissão religiosa, que
apresenta matéria, exclusivamente, doutrinária.
As organizações religiosas podem aplicar sanções de natureza confessional
como bem entenderem, como já comentado, pois possuem liberdade de
autodeterminação garantida pela Constituição Federal.
Ademais, as confissões religiosas têm livre iniciativa em escolher pessoas
para ajudar na realização de suas atividades, apresentando um vínculo
empregatício. A essas pessoas também se estende o dever de obedecer às regras e
princípios elegidos pela organização, caracterizando assim, o direito de autonomia
religiosa.
O Direito Constitucional moderno desenvolveu o princípio da separação
institucional que expressa a distinção jurídico-política das organizações religiosas e
o Estado. Sobre o assunto, assevera Humberto Martins:

Sob a égide desse princípio, manifestam-se as seguintes


consequências: i) não é permitido ao Estado interferir na nomeação
ou no afastamento de líderes religiosos; ii) a organização interna das
igrejas e comunidades religiosas é infensa ao controle político,
doutrinário ou econômico do Estado. (2009, p. 108).

O inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal se refere ao princípio da


inafastabilidade da jurisdição e tem grande relevância para a sustentação do Estado
Democrático de Direito. Este princípio está ligado à limitação do arbítrio das
autoridades estatais, sendo indispensável no que diz respeito aos direitos
fundamentais dos cidadãos frente a uma violação abusiva, seja aquela praticada por
particulares ou até mesmo pelos órgãos do Estado. Aldir Guedes Soriano esclarece
neste sentido:
No Brasil, em decorrência do atributo de direito subjetivo, o cidadão
pode recorrer ao judiciário em face de eventual lesão ou ameaça ao
direito à liberdade religiosa, em conformidade com o art. 5º, XXXV,
65

da CF/88. Conflitos relacionados com a religião podem ocorrer no


âmbito dos direitos público e privado. Litígios podem ser
estabelecidos entre os indivíduos (cidadãos), entre o cidadão e o
Estado, entre o cidadão e as organizações religiosas e, também,
entre as organizações religiosas (confissões religiosas e o Estado).
(2009, p. 166-167).

Podemos citar, como exemplo do assunto aqui tratado, uma decisão judicial
com liminar que determinou que a igreja realizasse o casamento de uma seguidora
que estava grávida, mesmo contrariando valores, regras e princípios de uma
confissão religiosa. A imprensa brasileira noticiou a decisão judicial da 12ª Vara
Cível de Goiânia no ano de 2005.4
É óbvio que esta decisão judicial violou gravemente o direito à liberdade
religiosa garantida às confissões religiosas. Destarte, violou também o direito de
autodefinição doutrinária e autodeterminação das organizações religiosas.
Neste caso, os noivos aderiram às regras da igreja e estavam cientes disso
e decidiram ser submetidos a esses preceitos. Se num dado momento não
concordaram mais com a doutrina da igreja, eram livres para abandonarem a
crença, sem precisarem recorrer ao judiciário. Isso cerceia o direito dos outros
indivíduos dessa mesma religião que desejam ver o ordenamento interno da igreja
sendo respeitado e aplicado a todos que professam dessa religião: “o indivíduo que
adere voluntariamente a uma confissão submete-se aos dogmas e práticas da igreja
respectiva; se não for aderente, tais dogmas e práticas das igrejas não lhe podem
ser impostos”. (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 246).
Para as organizações religiosas se resguardarem neste sentido, foi sugerida
a Proposta de Emenda Constitucional 99/2011, que acrescenta ao art. 103 da
Constituição Federal, o inciso X, que dispõe sobre a capacidade postulatória das
Associações Religiosas para propor ação de inconstitucionalidade e ação
declaratória de constitucionalidade de leis, atos normativos ou decisões judiciais
quando contrariarem os interesses dessas organizações religiosas, da autoria do
Deputado João Campos de Araújo do PSDB/GO. Projeto este que foi arquivado em
31/01/2015 nos termos do art. 105 do Regime Interno da Câmara dos Deputados e
desarquivada em 14/05/2015 nos termos do art. 105 do RICD, em conformidade
com o despacho exarado no REQ-48/2015.

4
Juiz obriga igreja a fazer casamento. Disponível em
<http://expresso-noticia.jusbrasil.com.br/noticias/135807/juiz-obriga-igreja-a-fazer-casamento>.
Acesso em 15/06/2015.
66

Situação em 21/08/2015: Aguardando criação de Comissão Temporária pela


Mesa; Aguardando Instalação de Comissão Temporária; Aguardando Parecer do
Relator na Comissão Especial destinada a proferir parecer à PEC. 5
Sabe-se que ocorrem no Brasil discriminações religiosas que podem gerar
demandas judiciais. “São comuns as queixas de muçulmanos cujos filhos são
discriminados por se recusarem a dançar quadrilha na escola”. (SORIANO, 2009,
p.167).
Assim como adeptos da religião afro-brasileira sofrem agressões físicas e
têm seus templos destruídos por fanáticos religiosos, também são vítimas de
discriminação religiosa os católicos por adorarem imagens e símbolos religiosos.
Evangélicos também relatam o descaso de assistência religiosa nos presídios e
hospitais.
Também não escapam da discriminação os ateus em ambientes de trabalho
ou nas escolas. Não obstante, é comum reclamações de vizinhos por decorrência
dos barulhos produzidos por cultos religiosos.
O exercício da liberdade religiosa gera conflitos entre cidadãos e Estado e
até mesmo entre os cidadãos, pois, em alguns ambientes de trabalho, vê-se a
discriminação quanto ao direito de observar dias de descanso religioso como o da
Igreja Adventista do Sétimo Dia, na qual os seguidores guardam o dia de descanso
a partir do pôr-do-sol de sexta-feira e o sábado todo. Esses conflitos são frequentes,
visto que, muitas empresas acabam não contratando indivíduos que professam
dessa religião porque têm expediente no sábado, causando assim, uma
discriminação religiosa.
Muitos alunos têm conseguido liminar no judiciário para se ausentar das
aulas de sextas-feiras noturnas em universidades, o que acabou gerando também
intolerância por parte de outros alunos de religiões diversas.
No Brasil, não há uma casuística como tais conflitos são solucionados pelo
judiciário, portanto, a ocorrência deles não deve ser irrelevante. Os operadores do
direito não podem manter-se inertes diante desses conflitos, pois não é somente a
paz social que está em evidência, é a convivência harmônica das organizações
religiosas diversas e ateias pertencentes à sociedade. Aldir Guedes Soriano
complementa:

5
Disponível em <www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=52459>.
Acesso em 21/08/2015.
67

[...] O direito à liberdade religiosa é então confrontado com outros


valores importantes como a discricionariedade da administração
pública, a autonomia das universidades, a igualdade, o princípio da
supremacia do interesse público e a separação entre a igreja e o
Estado. A propósito disso, o fundamento liberal constitui parâmetro
idôneo para a solução de eventuais colisões de valores e, também,
impõe limites razoáveis ao direito de religião. (2009, p. 168-169).

O princípio da autodeterminação das organizações religiosas impõe a


autoridade judicial, que ao apreciar o conflito da demanda, decidir a partir do
estatuto da organização religiosa e não no ordenamento estatal, não ignorando as
regras estabelecidas pela confissão religiosa, colocá-la em segundo plano ou
simplesmente ignorá-la. Isso constitui verdadeiro desrespeito à liberdade de
autodeterminação que gozam as organizações religiosas perante o Estado.
Neste sentido, o julgador deve ter uma ideia clara do que seja e no que se
baseia esse ordenamento interno das confissões religiosas, considerando ainda que
muitos ordenamentos são costumeiros e não escritos. Novamente Aloísio Cristovam
dos Santos Júnior esclarece:

[...] a liberdade que as organizações religiosas têm de estabelecer o


seu ordenamento jurídico sem interferência do poder público, inclui,
por exemplo, regras que estabelecem os critérios de admissão e de
desligamento dos seus filiados, regras que tratam do
autofinanciamento da instituição e regras que distribuem
internamente o poder e estipulam a forma de governo escolhida por
seus fundadores ou associados. (2010, p. 46).

Como já foi explicado no capítulo anterior, segundo seu poder de


autodeterminação, a organização religiosa pode escolher sua forma de governar
bem como mudá-la como bem entender sem a intervenção estatal, por mais
estranha que possa parecer essa forma de governo. Assim como definir quem vai
controlar o poder de decisão interno da confissão religiosa, até mesmo quem irá
representar a confissão religiosa externamente perante o poder público.
Esse poder que é administrado no âmbito das confissões religiosas pode ser
distribuído democraticamente entre seus membros ou pode ser concentrado nas
mãos de somente um dos membros, fica a critério de cada organização religiosa
essa distribuição de poder.
Quando um juiz estiver frente a um conflito, não cabe a ele fazer juízo
considerando suas próprias convicções filosóficas ou religiosas. Deverá entender
que não lhe cabe ajuizar valores que dizem respeito ao ordenamento da
68

organização religiosa, devendo, portanto, respeitar as crenças desse grupo,


buscando a solução dentro do ordenamento jurídico da organização religiosa. Por
exemplo, um seguidor do terreiro de candomblé poderá ser expulso se comparecer
ao culto usando bermudas. Pode parecer irrelevante aos olhos de quem observa,
mas é um costume elegido por este grupo e como tal, deve ser respeitado, pois a
forma de se vestir de modo respeitoso é um critério que deve ser observado entre
seus seguidores. Situação esta que diz respeito aos direitos de autodeterminação,
autocompreensão e autodefinição das confissões religiosas. Sobre o assunto em
tela, Jónatas Machado defende:

[...] do ponto de vista religioso, o direito de autodefinição doutrinal de


uma confissão religiosa, a partir de uma compreensão da revelação
divina, faz parte do conteúdo essencial do seu direito de liberdade
religiosa. Uma tentativa de limitar o discurso ontológico das
confissões religiosas em domínios como a vida, o ser humano, a
sexualidade, os géneros e a orientação sexual não deixaria de
significar uma grave intromissão no modo com as confissões
religiosas procuram gerir a sua relação com o que consideram ser
verdade revelada. Além do mais, a mesma eliminaria o papel, que as
confissões religiosas podem desempenhar, de salvaguardar dos
indivíduos perante a tentativa estadual de padronizar a sociedade de
acordo com critérios politicamente correctos. (2009, p. 149).

No entanto, a autoridade judicial poderá manifestar-se diante de uma


punição que foi imposta a um indivíduo de uma organização religiosa sempre
observando o conteúdo dessas normas disciplinares que fazem parte do
ordenamento dessa religião. Em alguns casos, é inquestionável a atuação da
autoridade judicial para anular uma punição, especialmente quando todo o
procedimento não é observado corretamente pela organização religiosa, seja porque
exagerou na punição ou esta punição é aplicada por quem não tem competência
para aplicá-la.
Ademais, as decisões proferidas pelas organizações religiosas podem ser
revistas, se a pessoa se sentir prejudicada, poderá recorrer à instância interna. Isso
deve ser respeitado pelo ordenamento jurídico, caso contrário, estará
desrespeitando a liberdade de autodeterminação das confissões religiosas. Se o
ordenamento interno de uma igreja prevê essa possibilidade de revisão, não tem o
porquê de o indivíduo requerer a tutela estatal sem antes interpor recurso nos
tribunais eclesiásticos, esgotando toda a via recursal que se tem direito, nesse caso
“vulnera a liberdade de organização religiosa, uma vez que a manifestação da
69

vontade da instituição religiosa somente se completa quando profere uma decisão


definitiva sobre o assunto”. (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 48).
Quando o judiciário interfere nesse âmbito interno das comunidades
religiosas, a vontade destas é substituída pela vontade do Estado, suprimindo o
pronunciamento da instância eclesiástica, constitui verdadeira violação ao
ordenamento jurídico interno das confissões religiosas. Sobre o estatuto jurídico das
organizações religiosas, Aloísio Cristovam dos Santos Júnior esclarece.

[...] O estatuto jurídico de uma organização religiosa nem mesmo


reflexamente pode ser assimilado ao de qualquer órgão da
Administração Pública, direta ou indireta, ou a qualquer instituição
que preste serviço de natureza pública por delegação ou concessão
do poder público. Lembre-se, ademais, que o ordenamento jurídico
eclesiástico, com todas as suas regras e mecanismos jurisdicionais
internos, deriva sua legitimidade diretamente do princípio
constitucional da separação e do direito fundamental à
autodeterminação das organizações religiosas e não da legislação
infraconstitucional. (2010, p. 49).

Outro aspecto relevante que merece ser considerado é quanto ao prazo para
interpor recurso perante as autoridades eclesiásticas preclui e o interessado não
observa o prazo que essa organização religiosa estabeleceu para que ele recorra
contra decisão que lhe foi desfavorável. Mesmo que a ninguém possa ser vedado o
acesso ao Judiciário quando um direito é lesionado, deve-se verificar que esse
indivíduo, tendo o direito de interpor recurso mediante a autoridade eclesiástica para
modificar a decisão não o faz, permanecendo inerte, essa omissão deve ser
considerada como uma aceitação da punição imposta, como pode ele obter uma
decisão judicial favorável? Diferentemente das organizações religiosas que em seus
ordenamentos não preveem recursos internos de revisão das suas decisões, neste
caso, o indivíduo poderá acessar diretamente o Judiciário.
Repita-se que o poder estatal, em decorrência da laicidade, não caberá
ajuizar-se nos conceitos teológicos e doutrinários que integram o conjunto de
crenças das organizações religiosas, seja no sentido de invalidar ou de interpretar,
caso contrário, o Estado estará simplesmente substituindo as crenças dos grupos
religiosos pelas suas próprias convicções filosóficas ou religiosas.
O magistrado deverá decidir com base no conteúdo objetivo do ordenamento
jurídico religioso e não em suas próprias convicções teológicas ou filosóficas,
70

resguardando assim, como bem afirmado neste trabalho, a liberdade religiosa dos
cidadãos e a liberdade de autodeterminação das organizações religiosas.
Nesse cenário existem problemas: o poder público dificilmente poderá
declarar quais práticas adotadas por uma organização religiosa e se apresenta ou
não matéria exclusivamente religiosa sem que isso possa incorrer em ofensa ao
princípio da laicidade do Estado.
No entanto, se algumas práticas podem ser identificadas como
exclusivamente religiosas como o ato de cultuar em uma celebração pública, outras
são de difícil constatação, como por exemplo, a eleição e a destituição de ministros
que representarão a entidade religiosa externamente. “A organização religiosa não
possui duas naturezas jurídicas, mas uma só”. (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 51).
A Constituição Federal atribui tratamento diferenciado às organizações
religiosas e reconhece a sua existência mesmo antes de sua inscrição no Ofício de
Pessoas Jurídicas.
Ademais, não existe nenhum amparo legal que possa limitar a autonomia
das organizações religiosas, sendo em vários casos impossível tentar separar o que
é da essência do culto com o que é um mero desdobramento da natureza jurídica.
Exemplo disso é um ato no qual o ordenamento jurídico confere os mesmos efeitos
jurídicos de um casamento celebrado perante o magistrado civil.
Portanto, as organizações religiosas merecem respeito e amparo do Estado
e este deve conceder-lhes uma proteção especial, que é garantida pelo texto
constitucional. Esse tratamento diferenciado fundamenta-se na singularidade de sua
natureza jurídica que não se deve confundir com personalidade jurídica.

3.4 As limitações do direito à liberdade religiosa

Os interesses constitucionalmente protegidos e os direitos fundamentais


servem como base para as restrições do direito à liberdade religiosa, de acordo com
Jayme Weingartner Neto (2007, p. 192).
Sabemos que o Estado tem o dever de proteger a liberdade religiosa do
indivíduo, que tem seu direito de escolha de filiar-se em uma organização religiosa,
mudar de religião como bem entender ou até mesmo não ter nenhuma religião.
71

Porém, poderão ocorrer colisões entre a liberdade religiosa com outros valores
estatais.
A Constituição de 1988 foi fundada nos princípios da democracia liberal e os
direitos fundamentais devem ser ponderados e interpretados no caso de uma colisão
com outros valores, pois não há direitos absolutos em nosso ordenamento jurídico.
Os direitos fundamentais podem sofrer restrições por parte do Estado,
inclusive a liberdade religiosa. Merece atenção as palavras de Aldir Guedes Soriano
neste sentido:

Em suma, a liberdade religiosa deve ser compatível com a ordem


pública e os bons costumes, como previam as constituições
brasileiras de 1946 e 1967. Não se pode violar a legislação civil,
penal ou tributária em nome do direito à liberdade religiosa. Nesse
sentido, é, por exemplo, inadmissível a prática do sacrifício humano
em rituais religiosos, uma vez que a legislação penal coíbe o
homicídio. (2009, p. 175).

No entanto, a lei só pode proibir ações maléficas à sociedade e deverá


intervir quando os bens jurídicos, elegidos pelo legislador como a vida, a saúde, a
integridade física, o ambiente e qualidade de vida estiverem em risco. Cabe ao
Estado resguardar esses bens jurídicos.
A liberdade religiosa assim como os demais direitos fundamentais não
devem servir de escudo para proteger atividades ilícitas ou atos que atentem contra
a moral, os bons costumes e a ordem pública.
Como já foi dito neste trabalho, as comunidades religiosas devem observar e
respeitar o ordenamento jurídico. As reuniões de cunho religioso não podem ter fins
violentos, não deve cercear direitos fundamentais de seus seguidores.
O Estado tem o dever de proteger os direitos de seus cidadãos, podendo,
inclusive, intervir na liberdade daqueles que possam prejudicar de alguma maneira a
segurança pública. No caso de uma colisão seria correto estabelecer uma restrição
quando agredir direitos de terceiros ou princípios de hierarquia constitucional. Nesse
ponto de vista, Jayme Weingartner Neto assevera:

Na minha ótica, também para a livre manifestação do pensamento


religioso é vedado o anonimato (art. 5º, IV, CF 88), a reunião
religiosa há de ser pacífica e sem armas, não podendo frustrar outra
reunião anteriormente convocada para o mesmo local e exigível o
“prévio aviso à autoridade competente”. (CF 88, art. 5º, XVI); é livre a
criação de associações religiosas, desde que para fins lícitos e sem
caráter paramilitar (art. 5º, inc. XVII, CF 88) – os fins lícitos, aqui,
72

devem escoimar-se da chamada “infecção de preconceitos


majoritários” (infection of majoriarian bias), pena de tornar-se retórica
a garantia constitucional. (2007, p. 197, grifo do autor).

O autor ainda prossegue em seu raciocínio:

[...] Também as reuniões religiosas, por outro lado, podem ser


restringidas (mesmo que exercidas no seio das confissões religiosas)
na vigência do estado de defesa (art. 136, § 1º, I, ‘a’, CF 88) e
suspensas por decreto de estado de sítio (art. 139, IV, CF 88) –
reuniões religiosas, bem entendido, não o “exercício dos cultos
religiosos” (liberdade posta em patamar superior pelo inciso VI do
artigo 5º da CF 88). A liberdade de expressão religiosa
(inviolabilidade de correspondência, sigilo das comunicações, direito
de informação, liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão),
todavia, submete-se às restrições do estado de sítio, nos termos do
regime geral do art. 139, inc. III, da CF (certo que com expressa
reserva de lei). (2007, p. 197-198, grifo do autor).

Diante disso, a tarefa é de harmonização, ponderar os bens que estão em


colisão sempre com base em critérios materiais, sem, com isso, sacrificar qualquer
um dos bens ou princípios que estão em conflitos, realizando cortes nos valores ou
nos bens que estão em jogo, deixando-os gradualmente mais finos, mais leves,
extraindo toda sua acidentalidade, para que, assim, todos caibam no mesmo
espaço. Há de permanecer a realidade mais expressa quando uma colisão é
incontornável.

3.5 Alguns tópicos problemáticos

Pretende-se aqui visitar alguns temas que já vêm há algum tempo


levantando polêmica. E tratam-se da concretização deste trabalho. A questão de
sacrifício de animais em rituais religiosos tem sido muito discutida entre a doutrina,
sendo também alvo de conflitos entre os ambientalistas e os religiosos que praticam
esse tipo de ritual, restando ao Estado dirimir esses conflitos. A seguir, os
instrumentos legais que devem ser utilizados nos casos de preconceito religioso e
discriminação que pode sofrer um indivíduo por parte do Estado ou de terceiros.
Outro tema tratado refere-se à questão da transfusão de sangue por parte dos
membros da Igreja Testemunha de Jeová. Encerrando, rápidas considerações sobre
73

a influência da religião nas questões de políticas mistas, além de seu conteúdo de


fé, algumas entidades religiosas mantêm um posicionamento nas questões políticas,
científicas, econômicas, de saúde e sociais.

3.5.1 Sacrifício de animais em rituais

Nesta questão, existem menções no direito ambiental, mas a reflexão ainda


é carente. O Candomblé e a Umbanda, em sua liberdade de culto usam a prática de
sacrifício de animais gerando conflitos entre a liberdade religiosa desses grupos com
o direito ambiental.
A imolação era praticada por grupos como os Incas e os Astecas. Era uma
oferenda por meio de um sacrifício animal. De um lado, o direito de liberdade
religiosa dos grupos praticantes em seu direito de culto em sacrificar animais em
oferenda a seu Transcendente; e de outro, as restrições do direito ambiental em
tutelar a vida e segurança dos animais. Jayme Weingartner Neto defende:

[...] Num quadro similar ao utilizado para avaliar a “farra do boi”, os


“rodeios”: o sacrifício de animais “não violaria o direito ambiental”;
sequer “haveria colisão de direitos”. Prevaleceria a preservação da
cultura, em detrimento do direito dos animais. (2007, p. 280, grifo do
autor).

A lei de Liberdade Religiosa portuguesa, no seu art. 26, dispõe que o “abate
religioso de animais deve respeitar as disposições legais aplicáveis em matéria de
proteção dos animais”. Já o Tribunal Constitucional Alemão (TCA) decidiu pela
prevalência do componente religioso diante de casos concretos que envolviam
crentes sumitas (muçulmanos que usavam a degola para alimentar-se da carne de
animais sacrificados, como ordena as regras de sua religião).
Por outro lado, a lei de proteção aos animais é garantir seu bem estar, pois
eles merecem respeito e cuidados, porque nenhum animal deve ser submetido, sem
justo motivo, à dor e ao sofrimento. Isso é de interesse da comunidade. No caso em
tela, esse açougueiro muçulmano deveria buscar outra maneira de subsistência,
abandonando assim a degola.
74

A lei autoriza a degola excepcionalmente por motivos religiosos das crenças


judaicas e islâmicas, surgindo, com tudo isso várias críticas públicas sobre o assunto
que oferece margens as várias opiniões.
Em 2003, foi editada uma Lei Estadual nº 11.915, de 21/05/2003 no Estado
do Rio Grande do Sul em virtude da edição do Código Estadual de Proteção aos
Animais. Esta lei proibia as religiões de origem afro-brasileiras a sacrificarem
animais em seus cultos. Esses grupos se sentiram constrangidos diante da situação:
caso este que foi amplamente noticiado pela mídia.
De um lado, os ambientalistas e de outro, os religiosos desses grupos que
alegavam que suas práticas religiosas eram lícitas. Adveio, no entanto, a Lei
Estadual nº 12.131, de 22/7/2004, acrescentando o parágrafo único ao artigo 2º da
Lei nº 11.915/2003 o qual expressa que não se enquadra, nessa vedação de
sacrifícios de animais, o livre exercício de cultos e liturgias das religiões de matriz
africana.
Houve entendimento que a Lei Estadual nº 12.131/2004 era inconstitucional,
visto que é vedado ao Estado legislar sobre matéria penal, competência que é
exclusiva da União. O Procurador-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul promoveu
Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Pleno do Tribunal de Justiça,
alegando que, no aspecto material, essa lei favorecia às religiões afro-brasileiras,
privilégio este incompatível com a laicidade do Estado, alegando também, de acordo
com o art. 32 da Lei nº 9.605/98 (Lei Federal dos Crimes Ambientais) ser crime
maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos
ou exóticos. Essa mesma Lei, em seu art. 37, permite justificadamente o abate
desses animais, como por exemplo, em casos de estado de necessidade, fome,
para proteger lavouras, pomares e rebanhos.
O Órgão Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
julgou improcedente a Ação por maioria, afirmando a constitucionalidade da lei,
explicitando não infringir o Código Estadual o sacrifício de animais em rituais ou
cultos das religiões afro-brasileiras, desde que esses sacrifícios não sejam de forma
excessiva e que não apresente qualquer forma de crueldade que possa provocar
muita dor e sofrimento ao animal.
Diante do exposto, também devem ser observados alguns parâmetros como:
abatimento de animais em extinção, provocação exagerada de dor nos animais, ritos
75

sem significação cultural, dentre outros, isso descaracterizaria a legitimidade da


expressão cultural dessas religiões, constituindo em infração penal.

3.5.2 Preconceitos religiosos e discriminação

O crime de discriminação e preconceito religiosos está previsto na Lei


Federal nº 7.716/89, em seu artigo 20 com redação determinada pela Lei nº
9.459/97. O artigo 20 da Lei nº 7.716/89 expressa:
Art. 20 – Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
A lei nº 9.549/97 acrescentou o § 3º ao art. 140 do Código Penal, o qual
pune, com reclusão de um a três anos e multa, a injúria consistente na utilização de
elementos que se referem à cor, à raça, à religião, à origem e à etnia.
Também é vedado, de acordo com a Lei nº 7.716/89, impedir o acesso a
cargos da administração pública por motivos de discriminação religiosa e também se
estende a cargos em empresas privadas.
Nosso Código Penal de 1940 prevê apenas um único crime contra o
sentimento religioso.
Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou
função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso;
vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena: detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.
De acordo com João Paulo Orsini Martinelli (2009, p. 81), escarnecer
significa zombar em razão de sua crença e vilipendiar quer dizer humilhar ou
desonrar utilizando algum objeto religioso.
Em relação às minorias religiosas, existem outros mecanismos previstos na
Constituição Federal para a tutela de seus interesses. Neste sentido, Vladimir Brega
Filho e Fernando de Brito Alves defendem em seu artigo:

Tratando-se de omissão legislativa, num primeiro momento devemos


indagar a possibilidade da utilização do Mandado de Injunção e da
Ação Direta de Inconstitucionalidade para buscar obrigar o legislador
76

a editar uma lei que garantisse o direito à liberdade religiosa. [...] o


Mandado de Injunção será cabível o mesmo sempre que a falta de
norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, soberania, e à cidadania. [...] A Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão está prevista no art. 103, § 2º da
Constituição, onde o Constituinte estabelece que declarada a
inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva
norma constitucional, será dada ciência ao poder competente para a
adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão
administrativo, para fazê-lo em 30 dias. (2008, p. 3.583).

São novidades na Constituição de 1988 esses dois institutos que têm o


escopo de concretizar os direitos constitucionais assegurados que, por algum
motivo, deixam de ser efetivados pelos governantes, superando também quando os
poderes públicos permanecem inertes em regulamentar a Constituição.
Não existe uma imposição constitucional no que se refere à matéria do
direito à religião e, portanto, esses dois institutos Mandado de Injunção e Ação
Direta de Inconstitucionalidade não são adequados para a solução de conflitos que
envolvam a liberdade religiosa.
Quanto ao Mandado de Segurança, parece-nos que não seja o instrumento
ideal para efetivar o direito de religião, mesmo que, individualmente, alguns
seguidores de uma organização religiosa o tenha utilizado para garantir seus
direitos. Por exemplo, se um concurso público ou vestibular é marcado para o
sábado, alguns seguidores de uma religião não poderão participar, sendo excluídos
da seleção; mas um candidato persistente pode obter judicialmente o direito de
participação, realizando as provas em outro dia ou outro horário, mas isso não quer
dizer que essa decisão atingirá outros que professam da mesma religião, pois
desestimulados com o dia de realização das provas, deixaram de efetivar a
inscrição. “Seria o mesmo que o Estado fornecesse medicamentos apenas àqueles
que ingressassem com mandados de segurança, deixando órfãos todos os outros
cidadãos que não buscaram o Poder Judiciário”. (BREGA FILHO; ALVES, 2008, p.
3.584).
O conteúdo da liberdade religiosa é complexo, podendo haver uma gama
imensa de decisões diversas relacionadas ao mesmo tema o que pode contribuir
para que a segurança jurídica entre em risco. Por isso para maior efetividade da
liberdade religiosa, mostra-se mais adequado o controle concentrado.
77

Ademais, os direitos fundamentais estão atrelados à universalidade, isto


quer dizer que um direito fundamental tem efetividade quando os cidadãos em
conjunto passam a praticá-lo.
Para Vladimir Brega Filho e Fernando de Brito Alves (2008, p. 3.585), a
liberdade religiosa pode ser objeto de ADPF (Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental) de ação autônoma e caráter preventivo, com objetivo de
reparar ou evitar lesão ao direito provocada pelo poder público.
Também a ADPF, em seu caráter preventivo, irá impedir que as minorias
religiosas sejam proibidas de exercerem seus direitos, como vestibulares, acesso à
educação e a cargos públicos. Sua decisão terá efeito vinculante principalmente na
realização de vestibulares, concursos público e outras atividades relacionadas à
educação, respeitando a diversidade de religião existentes no Brasil, sendo portanto,
a ADPF o instrumento principal para efetivação do direito à liberdade de religião.
Portanto, se algum cidadão se encontrar numa situação de preconceito ou
discriminação, existem leis que salvaguardam os seus direitos, bem como as
minorias religiosas podem alcançar a tutela de seus interesses por meio de
instrumentos garantidos pela Constituição Federal como o Mandado de Segurança
e, para obter uma tutela de caráter preventivo, o instrumento mais adequado é a
ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

3.5.3 A transfusão sanguínea e a autonomia do paciente

Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, no seu direito à liberdade


religiosa, se recusam a receber sangue de outras pessoas devido à obediência a
seus preceitos religiosos. Isso não ocorre somente no Brasil, mas em todos os
países onde existem seguidores dessa religião.
Nos Estados Unidos, essa questão da autonomia do paciente em não querer
se submeter a tratamento médico ou transfusão sanguínea é respeitada, pois
entendem que o indivíduo tem direito ao seu próprio corpo, tornando ilegítimo
quando ocorre qualquer intervenção médica sobre o corpo de um adulto sem o seu
consentimento como decidiu o Tribunal de Apelação de Nova Iorque. Em relação à
autonomia do paciente, assevera Carmela Salsamendi de Carvalho:
78

A autonomia do paciente, a seu turno, é, “considerada como o


respeito à sua vontade, ao seu respeito de autogovernar-se e à
participação ativa no seu processo terapêutico. [...] A autonomia
refere-se a uma determinada pessoa, a liberdade para consentir se
concretiza no consentimento ou dissentimento informado dado por
cada pessoa individualmente. Isso é importante, pois ninguém pode
consentir por outro que possua autonomia plena. Assim, o médico ou
um familiar não pode consentir ou dissentir pelo indivíduo-paciente
plenamente capaz. (2009, p.7-8).

Na mesma linha de raciocínio, Fábio Carvalho Leite defende:

[...] a liberdade religiosa tem como matriz a liberdade de consciência,


o que permite reconhecer aos indivíduos o direito a uma efetiva
autodeterminação existencial e ética, sem que o julgador emita um
juízo de valor pessoal a este respeito, atendendo assim ao pluralismo
e permitindo até mesmo a empatia que o tratamento dado à
liberdade religiosa tanto demanda. Este direito, embora não seja
admitido como ilimitado, é reconhecido assim como um direito amplo
a abrangente, devendo-se apenas verificar, à luz das peculiaridades
dos casos concretos, as suas eventuais limitações. (2014, p. 422).

Voltando aos Estados Unidos, se o adulto é incapaz, o costume dos tribunais


é de autorizar o tratamento médico, porém, em se tratando de adulto capaz,
consciente de suas ações, o Estado não interfere, em respeito às convicções
religiosas do indivíduo, exceto em casos em que uma mulher, por exemplo, esteja
grávida, ou mesmo quando possui filhos pequenos, questões em que o Estado norte
americano interfere, pois o bem estar dos filhos pode estar em perigo. Autoriza
também o tratamento médico em estado de necessidade, quando a pessoa está
inconsciente, se for necessário operá-la antes que seja possível obter o seu
consentimento para a realização da cirurgia ou transfusão de sangue. Fora desses
parâmetros, o Estado permanece inerte, respeitando a vontade dos seguidores da
religião Testemunhas de Jeová.
Em casos de menores de idade, os tribunais têm ordenado a transfusão de
sangue, sendo de interesse do Estado a segurança e bem estar dos menores de
idade, predominando, assim, sobre a autoridade dos pais. Outros países também
adotam essa jurisprudência norte-americana como Canadá, Austrália, Alemanha e
Itália.
No Brasil, se o paciente encontra-se em risco de morte, ainda que seja
adulto e capaz, a sua vida deve prevalecer sobre suas condutas religiosas e suas
crenças, porque a doutrina brasileira entende que a vida é um bem jurídico
indisponível de maior valor tutelada pela Constituição Federal.
79

Encontra-se também amparo legal na Resolução 1.021, de 1980, que adota


os fundamentos do Conselho Federal de Medicina que assim expressa:
“Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico,
obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:”
1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade
do paciente ou de seus responsáveis;
2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de
sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus
responsáveis.
O entendimento que a doutrina brasileira tem é de que a vida deve sempre
prevalecer sobre a vontade do paciente, motivada ou não pela religião, consagrando
assim, o princípio da dignidade da pessoa humana, pois sem vida não há liberdades,
nem dignidade. A vida é condição necessária para que o indivíduo exerça qualquer
tipo de liberdade e direito.
Há vários autores contrários à doutrina majoritária e das jurisprudências em
não respeitar a objeção do paciente quanto à transfusão sanguínea, afirmando que
tais indivíduos, depois da transfusão, podem ter suas vidas insuportáveis, não serem
mais aceitos em sua comunidade religiosa, ou até mesmo no círculo familiar,
tornando-se rejeitados e excluídos. Em se tratando de menores, impõe-se o
tratamento mesmo contra a vontade dos pais.
Em síntese, a Constituição Federal tutela a vida como o bem jurídico
indisponível, e surgem controvérsias entre a doutrina, quando a objeção do paciente
Testemunha de Jeová não é levada em consideração, frente a um risco de morte,
tendo que ser submetido à transfusão de sangue.
O Superior Tribunal de Justiça entende que a transfusão de sangue pode ser
possível mesmo sem a autorização do paciente, se ele estiver em risco iminente de
morte.

3.5.4 A Influência da religião nas questões de políticas mistas

Quando falamos em separação entre Estado e Igreja, não nos referimos


somente aos limites de intervenção estatal no âmbito das confissões religiosas.
80

Estende-se também aos limites de influências religiosas na adoção de políticas


públicas, principalmente em assuntos polêmicos, como casamento homossexual,
contraceptivos, aborto e células-tronco. Neste contexto, Maria Cláudia Bucchianeri
Pinheiro defende em seu artigo:

[...] a cláusula da separação entre Estado e Igreja não se reveste do


requisito da autonomia existencial, pois retira sua razão de ser e
seus fundamentos legitimadores dos próprios direitos densificadores
do princípio maior da liberdade religiosa, a exigirem, para sua integral
concreção, um regime no qual ente estatal e movimentos religiosos
mantenham uma postura de recíproca neutralidade e não-ingerência.
O que implica dizer que o regime de separação e as limitações
comportamentais a ela inerentes só fazem sentido no contexto de um
Estado que tenha como objetivo e como fonte de sua legitimação a
proteção e a defesa intransigente da liberdade religiosa dos
cidadãos. (2008, p. 348).

A separação entre Estado e Igreja, como vimos, é uma garantia fundamental


voltada à proteção dos direitos de liberdade religiosa. A associação entre Estado e
Igreja gera o aniquilamento das liberdades, promovendo perseguições e intolerância.
O Estado não deve intervir em assuntos de fé, o mesmo se aplica às organizações
religiosas que não devem interferir em assuntos que dizem respeito ao Estado
resolver.
Um Estado não confessional laico deve manter-se neutro, abster-se de influir
no dissenso interconfessional, não exerce qualquer influência nas ideias religiosas,
nem tampouco se identificar com determinado pensamento religioso. Uma crença
religiosa deve crescer e avançar com o apoio voluntário de seus seguidores, sem
interferência estatal.
Como já foi explicado neste trabalho, os direitos dos indivíduos e entidades
não podem ser cerceados, por isso, é vedado proibir que fiéis ou autoridades
eclesiásticas possam assumir cargos públicos, e um dos critérios para o ingresso,
não pode ser pautado em elementos valorativos de crenças, pois o Estado não
possui competência para tecer análise de mérito sobre qualquer crença religiosa e
seus conteúdos de fé, nem tampouco apresentar um caráter hostil em relação às
organizações religiosas. Novamente recorremos às palavras de Maria Cláudia
Bucchianeri Pinheiro:

Da mesma maneira, tanto fiéis como autoridades eclesiásticas


podem legitimamente se habilitar à ocupação de cargos eletivos,
desde que presentes os demais requisitos exigidos pela lei eleitoral e
81

pela Constituição. [...] sendo legítimos, portanto, aqui, a criação de


partidos “cristãos”, partidos “muçulmanos”, partidos “judeus”, e assim
por diante, pois a primeira adotada é a de que a filiação religiosa de
pessoas e entidades, ou a ideologia predominantemente religiosa de
partidos políticos, não deve ser escamoteada e não pode gerar
qualquer restrição de direitos por parte do poder público. (2008, p.
359).

Os movimentos religiosos por sua vez, baseando-se em suas convicções,


mundividência, que entendem verdadeiras, tentam influenciar a sociedade ou até
mesmo plantar uma disputa para conquistar mais fiéis. São grupos de interesses,
desejam que suas ideias se propaguem e convençam a sociedade e suas crenças
sejam materializadas através de atos do Estado.
Isso não deve ser visto de modo negativo, pois numa sociedade pluralista,
toda variedade de ideias deve ser estimulada e cabe a cada indivíduo refletir e se
posicionar. Algumas organizações religiosas, além de se posicionarem sobre
assuntos de fé, também apresentam convicções políticas, econômicas, científicas,
sociais e de saúde.
O princípio da separação não pode impedir as organizações religiosas de
ajudar a desenvolver soluções de alguns problemas que assolam a sociedade, pois
suas contribuições podem ser de grande valia.
Deve-se reconhecer também que as Igrejas veiculam ideias que anseiam ser
recepcionadas pela sociedade e pelo Estado. Isso deve ser encarado como
inofensivo ao princípio da separação entre Estado e Igreja. Num Estado
Democrático de Direito, os grupos religiosos, inseridos numa sociedade pluralista,
devem ter garantido seu lugar em espaços públicos.
Essa influência deve ser ponderada, jamais deve chegar ao extremo ao
ponto de motivar comportamentos que possam violar o princípio da separação, o
que pode comprometer os direitos às liberdades. Se isso ocorrer, não se poderá
falar em legítima atuação de grupos religiosos que usaram de meios coercitivos
como leis sobre pensamento ético ou religioso, este deveria ter permanecido na
esfera íntima do indivíduo e foi imposto a todos, sendo como coações emanadas
pelo poder público, fundadas em convicções exclusivamente confessionais. Esses
limites de atuação dos grupos religiosos encontram-se na própria cláusula de
separação Estado e Igreja.
Pode-se assim dizer que o Estado pode sofrer uma legítima influência de
alguns grupos religiosos, desde que não resulte em ofensa à neutralidade axiológica
82

pela adoção de políticas públicas que elegem um determinado pensamento


religioso, comprometendo nesse contexto, a liberdade religiosa de outros indivíduos.
Considera-se também neste caso, que a legitimação de atuação do Estado pode ser
colocada sob suspeita. As influências devem apresentar, sobretudo, caráter
compreensível e pertinente que seja útil não somente para seus seguidores fiéis,
mas para todos de uma sociedade.
Em determinadas situações delicadas que envolvem juízos, seja científico,
moral, religioso ou ético, essa linha de separação não parece tão nítida. Envolve
também coloração religiosa, saúde pública, biodireito, orientação sexual. Essa
interação, chamada políticas mistas, ao envolver todos esses valores de juízos, é
objeto de polêmica, tanto no Judiciário, quanto na sociedade. Visto que a religião se
pauta na fé e não na razão, acaba por trazer conflitos quando são colocados em
pauta, são exemplos: o aborto, os contraceptivos, casamento homossexual, células-
tronco, entre outros.
As discussões dessas matérias envolvem premissas seculares com
premissas religiosas que podem sofrer influências de alguns candidatos a cargos
eletivos ou até mesmo de magistrados, em decorrência de suas crenças que são
relevantes em suas decisões. Mais uma vez Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro
esclarece:

Por esse modo de ver as coisas, o limite da influência do


pensamento religioso em tema de políticas estatais será
necessariamente condicionado por um juízo antecedente, sobre se o
Estado deve ser laico e conviver com a religião de seus cidadãos, ou
se o Estado deve ser religioso, admitindo a descrença de alguns de
seus cidadãos. A opção por um ou outro modelo, pois, vinculará o
grau de permeabilidade estatal às verdades religiosas. (2008, p. 367-
368).

Quando as matérias tratarem de políticas mistas, que são aquelas que


envolvem ao mesmo tempo pensamentos religiosos e políticas laicas estatais, o
Estado deve abster-se de medidas que tornem um determinado comportamento
como obrigatório ou proibido, com efeito erga omnes, caso em que o Estado exercia
um juízo valorativo nas questões de religião, o que contraria a cláusula da
separação entre Estado e Igreja.
Se o Estado impedir os indivíduos de professarem uma crença e de praticá-
83

-la não haverá liberdade religiosa. E de nada adiantaria ter plena liberdade em crer e
ser proibido em praticar e seguir seus mandamentos.
Quando um indivíduo ou grupo adota uma religião, as crenças e valores
dessa religião são absorvidos e seguidos pelos fiéis que passam a questionar
valores que englobam política, ética, moral, cultura e sociedade, influenciando assim
no modo de agir desses seguidores, formando verdadeiros grupos de interesses.
Voltando às questões de políticas mistas, o Estado deve manter posturas de
não imposição, não adotar posturas que possam obrigar ou proibir comportamentos,
deixando os cidadãos construírem suas próprias convicções e seu destino. O
Estado, ao tratar das políticas públicas que se referem a assuntos polêmicos já
citados, como, contraceptivos, aborto, casamento homossexual e células-tronco,
deve manter uma postura de total neutralidade, respeitando assim, as escolhas
individuais de cada cidadão. Se o Estado obrigar ou proibir os cidadãos, estará
privilegiando as concepções de uma determinada organização religiosa em
detrimento das demais que não tiveram acolhido, pelo Estado, seu pensamento.
Percebe-se, então, a impossibilidade do Estado em solucionar questões
referentes às políticas mistas em que apresentam matérias de forte cunho religioso,
moral, ético ou filosófico, um campo muito delicado. Neste sentido, deve o Estado
abster-se de substituir a vontade dos cidadãos.
Portanto, espera-se das autoridades públicas, incluindo o Judiciário e o
Supremo Tribunal Federal, que reconheçam suas obrigações em definir a proteção
da liberdade de todos.
84

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve o objetivo de tratar do direito à liberdade religiosa


como um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, sendo
um assunto não muito abordado pela doutrina no Brasil. O Estado brasileiro é laico,
não adotou para si nenhuma crença religiosa, mas preserva o direito à crença e à
diversidade. O ser humano tem necessidade de expressar-se e constrói uma
identidade dentro de um Estado laico que tem o dever de garantir a existência de
todas as religiões e o direito de autodeterminação das organizações religiosas. Além
disso, as confissões têm livre competência para escolher seus membros, autonomia
ampla de medidas referentes às próprias questões dessas comunidades, a adoção
de um modelo congregacional, sua estrutura interna e a hierarquia entre os
membros, não cabendo ao Estado, interferir nesses assuntos. Ele deve abster-se de
uma intervenção nesse sentido.
Ao Estado laico é proibido manter qualquer tipo de relação com as
confissões religiosas, preservando o princípio da separação, mas há uma exceção
somente quando a atividade da organização religiosa for de interesse público. A
Constituição Federal permite a colaboração do Estado, o que não fere o princípio da
laicidade, uma vez que uma das funções do Estado laico é proibir que a consciência
autoritária de uma religião viesse a prevalecer na sociedade. O Estado deve manter
uma igualdade entre entidades religiosas, indivíduos e crenças para garantir a plena
liberdade religiosa.
Ademais, as organizações religiosas podem aplicar sanções de natureza
confessional de acordo com suas regras que foram eleitas entre seus membros e o
Estado poderá intervir para a anulação dessa sanção, mas para isso deverá
observar certos critérios, se o ordenamento interno da confissão confere ao
indivíduo que se sente prejudicado e recurso interno para os tribunais eclesiásticos.
Neste caso, o indivíduo deverá esgotar todos os recursos que lhe são oferecidos, e
mesmo assim, se a decisão não for favorável, terá o direito de procurar o Judiciário,
que é um direito constitucionalmente garantido, como reza o inciso XXXV do artigo
5º da Constituição Federal “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito”.
85

Quando o magistrado estiver analisando um conflito que envolve indivíduo e


organização religiosa, não caberá a ele fazer juízos, considerar pelas suas próprias
convicções religiosas ou filosóficas. Deve, portanto, respeitar as crenças de tais
grupos religiosos e buscar a solução dentro do ordenamento jurídico interno da
organização religiosa. A atuação do Judiciário, no entanto, deve ser o último recurso
do indivíduo, pois qualquer intervenção estatal poderá por em risco a liberdade
religiosa, quando uma intervenção for abusiva, como ocorreu no caso citado neste
trabalho, quando um juiz obrigou o pastor a realizar a cerimônia de casamento em
uma Igreja Batista.
O Judiciário poderá atuar no âmbito das confissões religiosas para anular
uma sanção, quando esta não apresentar, em seu ordenamento interno, recurso
para os tribunais eclesiásticos, ou então quando a sanção punitiva ultrapassar os
limites coerentes, quando um procedimento não é corretamente observado ou essa
punição é aplicada por quem não tem competência.
Como todo direito não á absoluto, a liberdade religiosa também sofre
algumas limitações por parte do Estado, quando entra em colisão com os bens
jurídicos como a vida, liberdade, meio ambiente e integridade física. A liberdade
religiosa deve ser harmonizável com os bons costumes e a ordem pública. Deste
modo, não pode violar as leis penais, civis e tributárias em nome da liberdade de
religião. Se alguma confissão religiosa atenta contra algum dos bens jurídicos, a lei
poderá atuar para proibir essas ações maléficas à sociedade.
Portanto, a função da religião é transcender o indivíduo para melhorar sua
vida, e é exatamente neste sentido que o Estado laico deve garantir às religiões o
direito de autodeterminação e intervir somente quando for necessário ou inevitável.
É importante que o presente tema seja mais discutido entre os doutrinadores
do Direito, com o objetivo de evitar que movimentos possam pôr em risco o direito à
liberdade religiosa, tutelada pela Carta Maior.
86

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