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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Patrícia Casoy

DIREITO E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA


EDUCACIONAL BRASILEIRO

São Paulo
2006
2

Patrícia Casoy

DIREITO E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA


EDUCACIONAL BRASILEIRO

Dissertação de mestrado apresentada à


Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito Político e Econômico.

Orientador: Prof. Dr. Alysson Leandro B.


Mascaro

São Paulo
2006
3

Casoy, Patrícia
Direito e Educação: Políticas públicas no Sistema
Educacional Brasileiro / Patrícia Casoy. – 2006.
85f; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito Político e


Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, 2006.
Bibliografia: f. 81-85.

1. Direito. 2. Educação – Educação Básica. 3. Política


Pública. I. Título.
4

Patrícia Casoy

DIREITO E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS NO


SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO

Dissertação de mestrado apresentada à Universidade


Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Direito Político e
Econômico.

Aprovada em agosto de 2006.

Banca Examinadora

______________________________________________________
PROF. DR. ALYSSON LEANDRO. B. MASCARO
Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________
PROF. DR. GILBERTO BERCOVICI
Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________
PROFª . DRª . MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES
Universidade de São Paulo
5

Aos meus pais, por toda força, amor, carinho e

incentivo.

À minha querida irmã Tatiana.

Ao professor Alysson Leandro Mascaro, mestre e

amigo, com quem sempre dividirei a busca pelo

justo.
6

Agradecimentos

Agradeço ao programa de Mestrado em Direito Político e Econômico da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, na pessoa de seu coordenador, o ilustre

Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto;

A todos os meus queridos amigos, em especial Ilan Kruglianskas, primeiro a

incentivar-me a ser protagonista nesta jornada; Giovana Barbosa de Souza, pelo

auxílio na produção deste trabalho, obrigada pela alegre e doce companhia em

minhas novas descobertas; e Denise Harari, irmã e amiga, pela constante força e

cuidado.

Aos amigos e colegas do curso de Mestrado, Renato Aparecido Gomes, Evandro

Zuliani e Silvio Luis de Almeida.

À querida professora Maria Victoria Benevides, pelas valiosas dicas na banca de

qualificação, disponibilidade e doçura, minha completa admiração.


7

"O homem razoável adapta-se ao mundo; o homem que não é razoável

obstina-se a tentar que o mundo se lhe adapte. Qualquer progresso,

portanto, depende do homem que não é razoável."

George Bernard Shaw


8

Resumo

O presente trabalho tem a intenção de promover um debate institucional entre o


direito e a educação, duas poderosas ferramentas para a transformação social, além
de apontar a importância das políticas públicas como agentes de aproximação entre
lei e realidade posta.
Ao longo do texto, procuraremos demonstrar como ambos têm o condão para
transformar ou para manter a ordem vigente, consubstanciada hoje na lógica
capitalista, que segrega social e economicamente, os indivíduos da sociedade
moderna.
Desta maneira, a primeira parte do trabalho se concentrará na análise desta
dualidade, na contradição ínsita aos dois elementos no âmbito da estrutura das
relações sociais. Em seguida, procuraremos construir um pequeno panorama da
Educação no Brasil de hoje, entrelaçando aspectos teóricos e práticos das
concepções acerca da Educação. Na investigação teórica, discutiremos o alcance
ideal da Educação, qual seja o da formação de indivíduos artífices plenos de sua
cidadania. Assim, esta qualidade de Educação é posta como única alternativa para
que os indivíduos se emancipem à categoria de atores sociais conscientes e
disseminadores dos valores de justiça, solidariedade e democracia.
No que tange à investigação prática fragmentaremos, num primeiro momento, o
sistema educacional brasileiro, com recorte na educação básica (que engloba a
educação infantil e os ensinos fundamental e médio) de modo a facilitar a análise de
sua legislação, estratégias e ações. Neste mesmo panorama, se investigará também
a atuação da sociedade civil organizada.
Ao final da dissertação, os esforços se concentrarão em identificar as conquistas e
falhas que permearam e permeiam o processo da consolidação dos princípios,
direitos e garantias da Carta de 88, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Palavras-chave: Direito; Educação – Educação Básica; Políticas Públicas;


Cidadania, Emancipação.
9

Abstract

The present dissertation aims at promoting an institutional debate between education


and law, two powerful tools to social transformation, besides revealing the
importance of public policies as helpers for an approximation between law and
today’s reality.
Throughout this text, we will try to demonstrate how these two items actually possess
a magic wand to change or maintain the order in force, currently based on the
capitalist logic, which promotes social and economic segregation of modern society
individuals.
Thus, the first part of this work will focus on the analysis of this duality, this
contradiction present in both elements, on the structure of social relations level. Next,
we will try to depict a brief view of today’s Education in Brazil, mixing theoretical and
practical aspects of the definitions of Education.
During the theoretical investigation, we will discuss the ideal performance of
Education, as means to form individuals responsible for their own full citizenship.
Thus, this Education quality is presented as the only way for the emancipation of
individuals to the level of conscious social actors, disseminating values such as
justice, brotherhood and democracy.
As far as practical investigation goes, we will fragmentate, at first, the Brazilian
educational system, focusing on basic education (which comprises kindergarten,
elementary and high school), so as to facilitate the analysis of its laws, strategies and
course of actions. On the same view, we will also investigate the role of organized
civil society.
At the end of the dissertation, we will concentrate our efforts on identifying the
conquests and flows that have characterized and still characterize the principles
consolidation process, rights and guarantees of the Federal Constitution of 1988,
from the Child and Adolescent Statute, and of the Directions and Basis of National
Education Law.

Key-words: Law; Education – Basic Education; Public Policies;


Citizenship; Emancipation.
10

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ..................................................................................... 1

I. EDUCAÇÃO PARA UMA SOCIEDADE DESEDUCADA

1. A Justiça na dialética do Direito nos dias atuais.................................... 6

2. O papel da Educação............................................................................ 13

II. ASPECTOS POLÍTICO-JURÍDICOS DA EDUCAÇÃO

1. Introdução ............................................................................................ 26

2. A infância e a juventude na pauta jurídica internacional ..................... 27

3. A estrutura jurídica dos direitos da infância e da juventude ..................30

3.1. Histórico: o processo de construção da Lei estatutária .......... 30

3.2. O Estatuto da Criança e do Adolescente hoje ........................ 33

4. Legislação educacional brasileira........................................................ 36

4.1. A educação nas Constituições Federais ................................ 36

4.2. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ............... 39

4.2.1. Um breve histórico ................................................... .39

4.2.2. Uma leitura crítica da Lei nº 9.394/96 ....................... 42

4.2.3. Competências ........................................................... 45

5. O sistema de garantia dos direitos previstos........................................ 47

5.1. A filosofia do Estatuto ............................................................ 47

5.2.Os Conselhos de Direitos ....................................................... 50

5.3. A atuação do terceiro setor .................................................... 51


11

III. O DESCOMPASSO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FRENTE À

REALIDADE EDUCACIONAL BRASILEIRA

1. Conceito de Política Pública............................................................... 55

2. As propostas do Estado Brasileiro...................................................... 57

3. Orçamento para a Educação.............................................................. 65

3.1. Aspectos Gerais .................................................................... 65

3.2. Passos para a elaboração do orçamento federal ................... 66

3.3.Justificativas para o investimento em educação ...................... 68

3.4. Perspectivas e conclusão ....................................................... 72

IV. ESPERANÇAS DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA... 75

CONCLUSÃO.........................................................................................78

BIBLIOGRAFIA..................................................................................... 81
12

INTRODUÇÃO

Embora norteado por uma carta constitucional há muito esperada, o

Brasil ainda não conseguiu erradicar suas mazelas sociais. Não obstante venha se

assistindo à intensificação de movimentos de mudança, a maioria das conquistas é

isolada, causando pouco impacto. O Estado continua a procurar a solução para a

realidade da desigualdade socioeconômica brasileira apenas na elaboração de leis e

construção de programas sociais incipientes, mergulhados no caráter

assistencialista. Conseqüentemente, perdura a realidade social das diferenças e da

injustiça, que emoldura o diário aviltamento aos direitos fundamentais dos indivíduos

da nossa sociedade. O reconhecimento e conquista de direitos e garantias ficam no

limite da letra da lei, não se traduzindo em realidade palpável.

Este Direito que aí se coloca não é suficiente para resolver as questões

sociais mais que urgentes de nosso país, já que seus esforços estão centrados

apenas no caráter do formalismo jurídico, e não na distribuição de eqüidade e

justiça. O constante fazer e refazer de leis não é a prática essencial da democracia,

é apenas o uso hipócrita não somente dela, mas também do instrumento mais

importante para sua conservação, o próprio Direito.

Em um país que perpetua a proteção de interesses de restritos grupos

em detrimento dos da maioria da população, onde reside o Direito que pode levar à

justiça e à democracia?
13

Verifica-se, sem muito espanto, a velha dissociação entre teoria e

prática; o Brasil foi pioneiro ao concretizar, em forma de estatuto, a doutrina da

formação integral de crianças e adolescentes, para elevá-los à condição de sujeitos

de direitos. Contudo, dados oficiais demonstram que a realidade de milhares de

crianças e adolescentes brasileiros distancia-se da do enunciado claro da letra da

lei.

Outrossim, desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, texto que nasceu já com o respaldo filosófico do Estatuto da

Criança e do Adolescente, no tocante à defesa de um público portador de direitos

específicos dada a sua condição de seres em desenvolvimento, já se passaram dez

anos. À época, não vinha solitária: a viabilização da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação já estava estruturada pelo Plano Nacional de Educação3, que previa, no

prazo acima mencionado, as implementações e concretizações de mudanças que

revertessem o quadro da infância e adolescência brasileiras, tido como preocupante.

Recentemente, foi divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a

Infância (UNICEF) o Relatório sobre a Situação da Infância no Brasil. Ele aponta

que, no tocante à legislação, o país apresentou um avanço nos últimos anos. A

grande dificuldade, conclui o documento, é fazer com que as leis sejam cumpridas.

Há um grande esforço no sentido de se elaborar as leis, mas nenhuma atenção é

dispensada à fiscalização do seu cumprimento ou à punição pelo seu

descumprimento. É exatamente nesta lacuna que o Brasil aprofunda suas

diferenças, e consagra a celebrada igualdade formal, presente nos discursos da elite

3
Muito embora o Plano não consolidasse, efetivamente, soluções objetivas às falhas que à época já
se identificavam no sistema educacional brasileiro, devemos considerá-lo como um importante ponto
de partida para a viabilização prática da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
14

econômica, traduzidos em leis. E é precisamente nesta lacuna que devem operar as

políticas públicas, concretizando as boas intenções que inspiraram mudanças para a

transformação social.

Assim, colocam-se duas relações dialéticas sobre as quais

buscaremos refletir ao longo destas linhas. A primeira, fundamental, é a contradição

dentro do próprio Direito e da própria Educação: ambos podem ser tanto

instrumentos mantenedores como transformadores da dinâmica social posta, cujas

regras são ditadas pela lógica capitalista; a segunda é a contradição que ocorre nas

relações sociais que produzem constantemente remédios inócuos, formatados para

dirimir as injustiças sociais. Ou seja, os produtos tanto do Direito quanto da

Educação, destinados a abordar e resolver problemas específicos no sistema

educacional brasileiro, ainda são falhos.

Em relação à segunda dialética posta, percebemos que a plena

transformação social só ocorrerá quando as contradições forem abordadas do ponto

de vista estrutural das relações sociais. Enquanto isto não ocorrer, continuaremos a

priorizar a elevação do superávit primário em detrimento da não-liberação do recurso

total destinado ao Programa de Desenvolvimento da Educação Infantil. Ou seja, os

aspectos que cuidam da preservação do capital vêm à frente e com prioridade

absoluta sobre questões que privilegiem o ser humano em seu desenvolvimento

pleno.

Sim, é sabido que a desigualdade em nosso país é histórica, e ainda

não há vontade política suficiente que a conduza ao seu fim. Mas há vontade para
15

fazer uso dos instrumentos democráticos de pressão desta vontade política. E,

alegremente, no campo da educação, temos colecionado pequenas conquistas, já

que esta vem se tornando uma prática crescente. Como exemplos temos o

movimento da sociedade civil para a promulgação do Estatuto da Criança e do

Adolescente, há pouco mais de quinze anos atrás e a mobilização em torno do

FUNDEB hoje.

Todavia, há concorrência dentro do próprio segmento educacional.

Educação básica e ensino superior disputam a atenção nacional nos últimos anos

para conquistar uma fatia maior do investimento do Estado. Este, diga-se de

passagem, ainda não definiu, em dez anos de vigência da Lei de Diretrizes e Bases,

seu plano de prioridades na educação.

Não basta garantir o direito à educação como fundamental, é

necessário que o Estado forneça condições para que todos possam usufruir desse

direito. Entretanto, o Estado brasileiro não logrou ainda alcançar uma educação

pública nacionalmente democrática, nem em relação ao seu conteúdo, nem no

tocante à acessibilidade.

O desafio é, sem dúvida, gigantesco. Contudo, ele deve ser encarado

de maneira crítica, evitando que intervenções de caráter assistencialista ganhem o

status de consolidação da transformação social em marcha. As soluções fáceis, que

suprimem as angústias em sua superfície são, na realidade, a negação da

emancipação do indivíduo de sua condição social mergulhada na desigualdade e

injustiça.
16

Mas, se são difíceis as soluções – tanto para identificá-las como para

colocá-las em prática - de que vale a retórica da justiça?

O valor dessa retórica está na provocação da indignação. Enquanto

ainda formos capazes de nos indignar, saberemos que não temos que nos contentar

com a liberdade de escolher apenas entre destinos indignos ao ser humano.


17

CAPÍTULO I

Educação para uma sociedade deseducada

1. A justiça na dialética do Direito nos dias atuais

A dialética primeira que se coloca em questão é em relação à escolha

que os indivíduos devem fazer quanto ao papel social que desempenharão enquanto

cidadãos: o de meros espectadores da história, ou seus atores, artífices de

mudanças de uma realidade insatisfatória no que diz respeito à dignidade humana.

A partir do momento em que pensamos o mundo de maneira

consciente, lutando para manter uma visão crítica do mesmo, fugindo à

conformidade em relação à realidade posta, já envergamos o segundo papel.

Partindo de um ponto de vista otimista, apoiado no pressuposto que o

ser humano em essência é bom, conclui-se que todo o indivíduo busca a felicidade,

tanto no âmbito privado (que concentra seus desejos e sentimentos humanos,

buscando ao atendimento de suas necessidades básicas para a sobrevivência),

como no âmbito público (espaço em que o indivíduo lança-se ao mundo, realizando

suas atividades sociais, produzindo objetos que garantam não apenas sua própria

reprodução, mas também a do mundo).

Para que os indivíduos alcancem a felicidade coletivamente, ou seja,

no espaço público, a sociedade deve ser justa. A justiça é uma prerrogativa para a

existência da felicidade no âmbito social.


18

Mas qual é o significado desta justiça social? No intuito de empreender

uma tentativa para determiná-lo, há que se proceder a uma análise da estreita1

articulação existente entre justiça e Estado. Assim, deve-se compreender as

diversas interpretações de justiça de acordo com o tempo histórico em que estão

inseridas, ou seja, de acordo com a forma de Estado instaurada.

O Estado liberal, individualista por excelência, guardava, igualmente,

esta característica em relação à justiça. Esta dizia respeito, sobretudo, à proteção do

direito individual da propriedade privada, que conseqüentemente se distanciava do

conceito aristotélico de justiça distributiva, a partir da equidade. Assim, com a ruptura

da ordem econômica feudal, imutável por natureza, instaura-se a máxima da

igualdade de todos perante a lei: o que era tido como justo pela burguesia nada mais

era do que a universalidade do Direito.

Assistia-se ao fim dos privilégios absolutistas, e a inauguração de uma

suposta convivência de iguais, com base nos conceitos de liberdade formal e direitos

civis. Fim de privilégios para uns, início deles para outros, que, para igualmente

preservá-los de maneira absoluta, encontraram habilmente no Direito um meio para

fazê-lo. Lança-se mão do positivismo jurídico (o que está posto por lei é o justo), que

mascara as desigualdades da vida econômica do homem, legitimando a

1
ESTEVÃO, Carlos V. Educação, justiça e democracia: um estudo sobre a geografia das injustiças
em educação. São Paulo: Cortez, 2004. p. 11: “É possível pensar, então, as relações entre justiça e
o Estado como relações íntimas, embora não se possa dizer que a justiça seja instaurada pelo Estado
(apenas lhe confere um carácter público). Por outro lado, a justiça para o Estado não é só uma
questão funcional ou acessória mas tem a ver, também, com a sua legitimação, interferindo inclusive,
na definição de sua própria natureza (Fisk, 1989)”.
19

transferência dos privilégios outrora fervorosamente combatidos. Conforme ilustra o

Prof. Alysson Mascaro:4

O universal é essencialmente o burguês. A burguesia é a


classe universal, e um direito universal esconde no fundo a sua
grande perversão: a luta por dizer que todos são iguais perante a
lei acaba com o antigo privilégio absolutista, mas esconde as
diferenças de fundo que são o eixo de estrutura da sociedade
moderna. (...) A diferença entre exploradores e explorados, o
conflito de classes e a desarmonia latente da sociedade somem
perante a concórdia promovida pelo direito. A instância política e
jurídica da vida social apaga as diferenças profundas da própria
vida produtiva. Inauguram-se, numa superfície político-jurídica de
iguais, a cidadania, a liberdade formal e os direitos civis, e
enterram-se longe das vistas da sociedade as desigualdades da
vida econômica do homem.

Assim, a associação de uma legalidade abstrata a um comando

impessoal, aliada a uma lógica imperativa, racional, fruto de um mundo politicamente

organizado, acabaram por consolidar, pacificamente, as injustiças sociais daquela

época.

Em oposição a este modelo surge o Welfare State (Estado Social), que

propugnava a justa distribuição dos benefícios sociais, defendendo um padrão

comum de justiça, inclusive entre grupos com interesses incompatíveis. É o que

constata Estevão5

O Estado social visava, de facto, compensar as


desigualdades e as injustiças e assegurar sobretudo os direitos
sociais. Isto não significava, porém, que houvesse
necessariamente mais justiça social. É que o Estado social servia
uma multiplicidade de funções (promoção da economia,
estabilidade da governação, procura de bem-estar social, por
exemplo) nem sempre compatíveis entre si e funcionava não
4
MASCARO, Alysson Leandro. O direito para a transformação social in Fronteiras do Direito
Contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p.8.
5
ESTEVÃO, Carlos V. Educação, justiça e democracia: um estudo sobre a geografia das injustiças
em educação. São Paulo: Cortez, 2004, p. 13.
20

apenas para reconciliar a democracia com o capitalismo mas


também para reproduzir o capitalismo através de mecanismos de
manutenção de um alto patamar de procura (...).

Nos dias de hoje, dentro do Estado neoliberal de direito, presenciamos

o resgate da essência dos conceitos de igualdade, bem comum e justiça. O bem-

estar não mais é um direito reclamável; a justiça passa a ser um produto do próprio

mercado, e os pilares do Estado liberal, acima mencionados, vêm situados no livre

jogo dos mercados internacionais.

Assim, ao longo da história, o conceito de justiça vem sendo objeto de

diversas e conflituosas interpretações, passando pelas filosofias concernentes ao

direito natural, ao utilitarismo e ao marxismo, para citar algumas. Percebe-se, pois, a

complexidade das relações entre justiça e Estado.

Feito este breve esclarecimento, passemos ao questionamento de

como utilizar as ferramentas já existentes para efetivamente alcançar-se a justiça.

Dentro deste raciocínio, cabe frisar que inócua seria qualquer discussão acerca da

ordem social como se esta estivesse desvinculada da ótica econômica. E que a

justiça não está, portanto, limitadamente inserida na legalidade formal, como

afirmam os positivistas.

Se assim o fosse, uma das piores mazelas sociais hodiernas, qual

seja, o trabalho infantil, não mais existiria em virtude da ratificação, pelo Brasil, de

Convenções Internacionais sobre o tema, ou da aprovação de leis específicas que o

coíbem. Existe uma ordem econômica que agasalha a prática inescrupulosa do

trabalho infantil; ela deve ser questionada, inclusive, no estratégico e oportuno


21

momento em que a sociedade brasileira assiste a cortes no orçamento federal

destinado à infância e à juventude.

A legalidade não é sinônimo de democracia, embora seja

freqüentemente hasteada como sua principal bandeira. É, sem dúvida, uma

condição para a sua existência. No entanto, assim como o processo democrático é

dinâmico e deve constantemente ser revisto e discutido, o mesmo deveria ocorrer

com a legalidade formal que o ampara, para que esta não seja um mero tecnicismo

intocável da essência democrática.

O Direito não se limita, portanto, à estrita legalidade. Ele vai muito além

de um conjunto de normas jurídicas reguladoras da vida social, ele é, a própria

busca da justiça:

Não é que o direito (a busca do justo) possa prescindir de


regras. Elas são necessárias, desde que o direito aí esteja
relatado (entendendo-se a regra como o relato breve da coisa
justa) seja emergente da justiça (virtude) com os olhos voltados
para o econômico. Neste sentido, o justo é a verdade; e o
econômico é identificado com a verdade ontológica. A ponte entre
o justo e a verdade é o cuidado, a necessidade de sobreviver no
cotidiano mundano; e muito mais do que isto, o justo,
autenticamente, é a realização do ser, em geral e de cada um.
(grifo da autora)6

Voltando-nos à ordem econômica vigente, esta indica, contudo, que o

único caminho de sobrevivência possível é o da adaptação e dependência de

situações já existentes, e em relação às quais os indivíduos são impotentes. Sob

6
MAMAN, Jeanette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico
brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 90.
22

este prisma, o homem fica permanentemente condenado a uma situação de não-

emancipação, de não-liberdade, de não-justiça.

Para superar esta questão, mais uma decisão deve ser tomada:

escolheremos ser o sujeito (aquele envergado de autonomia, pronto para o

questionamento crítico, pronto para pensar alternativas) ou o objeto (elaborar crítica

sem perspectiva de possibilidade de mudança, de alternativa à lógica vigente, adotar

postura conformista, adaptável à situação posta)?

A gigantesca responsabilidade inerente ao Direito como sendo uma

das ferramentas para a transformação social passa, infelizmente, desapercebida por

muitos. Os chamados operadores do Direito (expressão que torna seus estudiosos e

profissionais como meros reprodutores de uma técnica esvaziada de conteúdo, que

os reduz – injustamente a todos, adequadamente a muitos - a bancos de dados

legais, amorfos, sem consciência social e política) não podem esquivar-se de

esforçar seu olhar não apenas para a constatação óbvia de que vivemos em uma

sociedade injusta, mas que o próprio Direito é aliado poderoso, por vezes, na

manutenção destas mesmas injustiças.

É o que reitera o Prof. Alysson Mascaro7

Ao jurista, o dilema da transformação social é angustiante,


pois que ele é agente e operador de um espaço dito público e
democrático mas que, no fundo, é uma grande arena de domínio
social e legitimação de injustiças. O investimento no direito, no
diálogo, na possibilidade de argumentação, na possibilidade
democrática, deve ser o investimento na possibilidade real de

7
MASCARO, Alysson Leandro. O direito para a transformação social in Fronteiras do Direito
Contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 14 e 15.
23

argumentar, de ter voz, de saber dizer se já se tem voz, do


contraditório efetivo. Esta ação do jurista é certamente
angustiante, na medida em que os propósitos não se
consubstanciam em realidades plenas, na medida em que as
ações são incompletas, localizadas e circunscritas a uma situação
estruturalmente opressora. No entanto, a resposta tradicional dos
juristas, que é a de contemplação de seus castelos jurídicos, já
não vai bastando como explicação de sua realidade.Seus
impasses éticos no plano individual já não salvam suas almas em
face de suas responsabilidades sociais. Viver pelo justo, cada vez
mais, é entender o injusto social, é saber trabalhar não só
tecnicamente mas politicamente com o direito (...). O sentido novo
do direito, para uma maior justiça social e popular, não está no
campo da própria legalidade apenas, não está também nos
limites de nossa vontade individual, mas é antes um sentido
social, prático, para a ação transformadora.

Sob esta ótica, vale a pena esclarecer que, muito embora seja diversas

vezes utilizado como mantenedor da lógica capitalista eminentemente injusta (que

visa principalmente à proteção ao direito da propriedade privada e, às vezes,

cordialmente lança mão de medidas de natureza demagógica), o Direito guarda em

sua própria essência a capacidade de promover a justiça. A mesma contradição se

verifica na Educação, que pode ser utilizada tanto para construir os indivíduos

chamados por Freire de “homens livres”, quanto para prover uma formação técnica,

burocrática, que dê aos indivíduos subsídios apenas para que encontrem função no

mercado de trabalho.

De frente para a dialética atual do direito, a oposição entre a igualdade

jurídico-formal e a desigualdade sócio-econômica real, o abismo existente entre o

aquilo garantido pelos instrumentos jurídicos e a realidade, percebe-se, cada vez

mais, que a redenção coletiva ocorrerá quando da conquista do justo e,

conseqüentemente, da felicidade.
24

2. O papel da educação

“Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos”.

João Cabral de Melo Neto.

Assim como o Direito, pode também a Educação8 ser utilizada tanto

como ferramenta para a transformação como para a manutenção da desigualdade

vigente.

Theodor Adorno enxerga a educação como instrumento de erradicação

da barbárie, a qual define como sendo o atual estado de contradição social, em que

se assiste à evolução do mundo tecnológico e à involução do ser humano. O autor

esclarece9 :

Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que,


estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico,
as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente
disforme em relação à sua própria civilização – e não apenas por
não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação
nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas
também por se encontrarem tomadas por uma agressividade

8
Não se trata da educação jurídica, mas da educação em amplo sentido, enquanto formação
humanista e aquisição de conhecimento aliados, esculpindo uma consciência crítica em cada
indivíduo.
9 a
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3 edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.
155-156.
25

primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso


de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo
de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência
imanente que a caracteriza.

E completa seu pensamento ao dizer que a tentativa de superar a

barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade, composta por homens,

mulheres e crianças sujeitos, não objetos. Enriquecendo este posicionamento está

Paulo Freire, no qual enxergamos a similaridade da idéia de barbárie de Adorno nas

conseqüências, propagadas pelo mestre brasileiro, da massificação. Esta

“desintegra” o indivíduo do mundo em que ele vive, e assim, reafirma a lógica

individualista. A massificação acarreta o “desenraizamento do homem. A sua

‘destemporalização’. A sua acomodação. O seu ajustamento.”10

Para o filósofo alemão, a educação seria a produção de uma

consciência verdadeira, não apenas conformada à lógica posta. Daí que a

emancipação (e é quase impossível não querer de pronto associar o emancipar ao

educar) só ocorre quando da tomada de consciência. Quem deseja educar para a

cidadania precisa ter muito claro quais são as falhas da democracia e, ainda assim,

demonstrar que há maneiras de superá-las, para construir uma sociedade de

indivíduos artífices de sua própria cidadania, uma sociedade, enfim, justa.

Assim, esta tomada de consciência ocorre, em um primeiro momento,

em relação à cidadania do próprio indivíduo. É ela pilar essencial quanto à revelação

do papel social que cada um tem e dos direitos a cada um cabíveis e exigíveis.

10
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 28ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p.
50.
26

Desta forma, a educação deve ser voltada, desde o início, para a cidadania

democrática.

Segundo a visão da Profa Maria Victoria Benevides, é necessário que

separemos as leis e princípios fundantes de liberdades e direitos da própria

consciência de tais direitos, além da existência de mecanismos que garantam a sua

prática, quando nos propomos a discutir a consciência da cidadania numa

determinada sociedade.

No Brasil, como resultado de uma necessidade de ruptura definitiva ao

cerceamento da liberdade na época da ditadura, o país assistiu a todo um processo

de abertura política, que culminou na promulgação da Constituição de 88, também

conhecida como Constituição Cidadã. Referido processo colocou a salvo os direitos

políticos, mas pôs um pouco de lado os direitos sociais. Um bom exemplo é a

garantia do sufrágio universal, inegável conquista da democracia, mas que ainda

assim não garante, apenas, mediante o livre direito de voto a todos os cidadãos, a

dignidade de cada um deles.

Os direitos políticos, por si sós, não conseguem obter a emancipação

aqui tão discutida; só atingirão esse objetivo se forem exercidos em conjunto com os

direitos econômicos e sociais. Desta forma, a prática da cidadania extrapola o

simples ato de votar. Há que se atentar, neste contexto, pela não-redução ao

binômio‘ excesso de verbalismo e ausência de conteúdo’, evitando incorrer,

simplesmente, na defesa de alegoria democrática.


27

A bandeira da cidadania vem, cada vez mais, sendo referida nos

diálogos da sociedade civil sobre sua relação com o Estado de Direito. Importante

frisar que além da prática dos direitos, o conceito de cidadania engloba, outrossim,

os deveres dos indivíduos para com a sociedade. A reivindicação dos direitos

garantidos pela Carta Maior é, sem dúvida, de extrema importância para que a

cidadania seja efetiva. Entretanto, não podemos nos esquecer de que todos nós,

como cidadãos, temos o dever de contribuir para o desenvolvimento qualitativo da

sociedade em que vivemos, e não apenas exigir dela o que nos é de direito.

Não se trata de evocar o contrato social vislumbrado por Rousseau, já

que o que se postula não são somente as concessões que devemos fazer para se

viver em sociedade, mas também a postura necessária para que se efetive a

cidadania plena. O meio em que esta ocorre não é o das relações de natureza

privada; este lugar é o âmbito público, hoje cotidianamente aviltado pela falta de

ética na política. A noção da exclusiva exigência dos direitos garantidos (e

incontestáveis), sem a devida contrapartida e participação dos indivíduos à melhoria

deste espaço público é meramente um ato individualista.

Identifica-se, pois, a necessidade de mudança de paradigma, cujo

embrião está na disseminação de uma educação para a cidadania. É a educação

sonhada por Paulo Freire, dirigida para a decisão, para a responsabilidade política e

social. E ao falar-se em educação para a emancipação, segundo Adorno, ou em

pedagogia para homens livres, nas palavras de Freire, é relevante que seja inserida
28

no contexto das estruturas econômicas das classes sociais. É o que destaca Aníbal

Ponce11:

O conceito da evolução histórica como um resultado das


lutas de classe nos mostrou, com efeito, que a educação é o
processo mediante o qual as classes dominantes preparam na
mentalidade e na conduta das crianças as condições
fundamentais da sua própria existência. (...) A classe que domina
materialmente é também a que domina com a sua moral, a sua
educação e as suas idéias. Nenhuma reforma pedagógica
fundamental pode impor-se antes do triunfo da classe
revolucionária que a reclama, e se essa afirmação parece ter sido
desmentida alguma vez pelos fatos é porque, freqüentemente, a
palavra dos teóricos oculta, conscientemente ou não, as
exigências das classes que representam. (grifos do autor).

Por isso, não devemos nos limitar a pensar, tão-somente, na

emancipação das classes sociais mais pobres, cujos membros, enquanto cidadãos

detentores de uma consciência política verdadeira, consigam questionar e mudar a

sociedade em que vivem, participando ativamente dos processos decisórios na

esfera pública. A emancipação deve acontecer também para as elites, no sentido do

entendimento genuíno de que não se pode viver em uma sociedade justa mantendo-

se uma política de privilégios.

A educação (assim como a justiça) não é um privilégio, é um direito

fundamental de todos. Sob este prisma, constatamos que a deseducação atinge

também a elite brasileira, defensora da lógica capitalista e, portanto, negligente

quanto aos conceitos ideais de justiça e solidariedade.

Imersa em sua própria alienação, esta elite entende que deve pensar

em propostas de solução para a pobreza somente na medida em que esta lhe vem

11
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes: 21ª edição. São Paulo: Cortez, 2005, p. 171.
29

como estorvo, como por exemplo, em relação às crescentes ondas de violência

urbana e rural. A violência introduz um elemento novo, que não se aloca diretamente

na ordem das relações econômicas. Ao cidadão burguês escapa o conhecimento em

saber lidar com esta irrupção. O elemento em questão é o medo, que traz distúrbios

à ordem social, campo onde a burguesia não desempenha atuação tão segura

quanto no palco das relações econômicas do mercado neoliberal.

Assim, a elite burguesa vai se empenhar, até um limite satisfatório de

comprometimento, em equilibrar as forças na balança das relações sociais, através

de ações de caráter assistencialista12.

Neste contexto é que se enaltecem qualidades de uma educação

compensatória que, por oferecer pseudo-soluções (dado seu já mencionado caráter

assistencialista) à questão da desigualdade, acaba por sobrepujar a educação para

a cidadania. Esta é projeto mais trabalhoso, de longo prazo e perigoso por fomentar

nos indivíduos oprimidos o questionamento acerca da injustiça social da qual são

vítimas.

A liberdade, igualdade e garantia aos direitos fundamentais dos outros

- que não a elite - habitam o discurso burguês, mas não as suas ações práticas.

12
“A educação foi trazida para o contexto da assistência social através da correlação entre níveis
mais baixos de educação, de um lado, e índices de desemprego mais altos e salários mais baixos, de
outro. Surgiu a idéia de um ‘ciclo de pobreza’ auto-alimentado, no qual baixas aspirações e carências
no cuidado com a criança levavam a um baixo rendimento na escola, que por sua vez levava ao
fracasso no mercado de trabalho e à pobreza na próxima geração. A educação compensatória foi
vista, então, como um meio de romper este ciclo e de interromper a herança da pobreza.” CONNEL,
R. W.Pobreza e educação. In: GENTILI, Pablo (org.). Pedagogia da exclusão: crítica ao
neoliberalismo em educação. 10ª edição.Petrópolis,RJ: Vozes, 2002, p. 15.
30

Incutir, principalmente nas elites, o conceito, da impossibilidade da

coexistência perpetuada entre o abismo sócio-econômico e a sociedade cidadã-

democrática já seria significativa conquista na luta contra uma sociedade

deseducada.

Contudo, ao nos referirmos a uma sociedade democraticamente

sustentável, a educação proposta não é aquela da oportunidade dada aos pobres.

Ela se distancia da visão paternalista, abandona a postura cortês da burguesia,

sempre apoiada no discurso liberal da legalidade universalizada e da justiça formal

acima mencionadas. Esta legalidade controla, quase que homeopaticamente, as

dosagens de participação popular dentro do sistema democrático.

A emancipação ocorre dentro de uma democracia que abre espaço

para que aqueles que não têm, a priori, condições de participar de seu processo,

sejam beneficiados com a oportunidade de serem formados para tal, dentro de uma

dinâmica estabelecida em regras de eqüidade. A participação de todos nos

processos decisórios concernentes à esfera pública, independentemente da

segregação social imposta pela ordem econômica é o maior indicador da

consolidação de uma democracia real, e não apenas formal.

Muitos julgam que a transformação social para a concretização da

justiça é uma utopia e por isso, a filosofia que a sustenta já é condenada ao mesmo

fracasso que as alternativas à lógica capitalista vigente.


31

Primeiramente, cabe esclarecer que a busca por um modelo de

desenvolvimento sócio-econômico não está na recuperação daquilo que a história já

provou não ter dado certo. As utopias, enquanto um primeiro passo, são um fato da

própria transformação social. Elas devem servir para alavancar o movimento da

mudança.

Enfim, para consolidar a questão, vale a pena mencionar Pierre

Furter13, que sintetiza:

Talvez seja útil distinguir aqui a utopia de outras atitudes


próximas do desejo. Assim, a utopia não é um mero sonho,
pretende realizar algo aqui nesta terra. Depois, a utopia não é
mera visão profética; nela o pensamento utópico prevê uma
possibilidade dentro de nosso espaço. O pensamento utópico,
portanto, ao pretender chegar a resultados bem definidos –
poder-se-ia criticá-lo, ao contrário, pelos seus excessos de
definição -, bem colocados, é um fator de transformação social. A
utopia é uma maneira de preparar a opinião pública para certas
realidades possíveis.

O direito à educação é o primeiro passo a ser dado no necessário

“projeto de reconstrução social humana”14, dentro das perspectivas hegeliana e

marxista de que a história é uma ação social, e não um processo biológico,

inexorável. Há uma óbvia necessidade histórica, no conceito trazido por Marx, de se

elaborar alternativa ao cenário de desigualdade construído pela lógica capitalista. E,

dentro desta sombria perspectiva de contínua propagação de desigualdades

socioeconômicas, é que o homem se coloca como ser questionador, criativo, artífice

desta urgente mudança.

13 a
FURTER, Pierre. Educação e reflexão. 7 edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973, p. 41-42.
14
MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin,
2003, p. 135.
32

Acreditamos que a única maneira de alcançar este perfil de agente

transformador é através da educação para a cidadania democrática. O necessário

projeto de reconstrução social humana tem como primeiro passo o acesso à

educação de qualidade, desde a primeira infância. Trata-se de uma educação que

forme atores sociais questionadores e críticos, e não meros reprodutores da lógica

imposta.

É o paralelo que se verifica em Marx15, quando analisa o trabalhador

esvaziado de valor na condição de ser humano, sendo interessante à sociedade

apenas pela sua capacidade de produção:

Com a valorização do mundo das coisas aumenta em


proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O
trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao
trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que
produz mercadorias em geral. (...) O produto do trabalho é o
trabalho que se fixou num objeto, se fez coisal, é a objetivação do
trabalho.

A partir do momento em que há a desvalorização do mundo dos

homens em detrimento da valorização das coisas, o indivíduo vai gradualmente

sendo extirpado de sua consciência crítica. Assim, se a palavra de ordem é a

produção para obtenção apenas do lucro, se fará uso de maneira exponencial dos

instrumentos que potencializam a geração do mesmo. Dentro deste contexto, a

Educação é destinada somente à formação para o trabalho, que por sua vez produz

e reproduz objetos, num ciclo opressor, que se repete infinitamente.

15
MARX, Karl. Trabalho alienado e superação positiva da auto-alienação humana. In FERNANDES,
Florestan (org.). K. Marx e F. Engels. Coleção “Grandes Cientistas Sociais”, volume 36. 3ª edição.
São Paulo: Ática, 2003,p. 148-149.
33

Despida de sua subjetividade (que possibilita a multiplicidade de

enfoques sobre o mundo e agasalha o valor democrático e a emancipação em seu

bojo), a educação não valoriza o processo de formação do ser humano16, apenas se

volta para potencializar a qualificação do indivíduo para que possa produzir mais,

reduzindo a criatividade para um nível quase que inexistente. Ela se torna,

objetivamente, um instrumento para a dominação; reproduz o interesse do

capitalismo nas formas e conteúdos dos conhecimentos de maneira a aumentar a

produção para o trabalho, ao mesmo tempo em que silenciosamente sufoca

qualquer possibilidade de reflexão crítica sobre o exercício desta dominação.

Desta forma, percebemos que a Educação, assim como o Direito,

pode, contraditoriamente, vir a assumir o papel de importante instrumento de

dominação e reprodução da lógica capitalista, em seu sentido mais óbvio, qual seja,

a manutenção das diferenças para a preservação do status quo da classe

dominante.

Esta “manutenção” pode se dar nas diferentes relações da sociedade

com o indivíduo. Se observada sob o prisma da formação do ser humano para o

trabalho, temos de um lado a educação para a profissão manual, que exige

meramente a execução de tarefas delimitadas. De outro, temos a educação como

formação para as profissões intelectuais, que requerem amplo embasamento

teórico, a fim de preparar as elites e representantes das classes dirigentes do país.


16
O fim da educação democrática é o próprio ser humano na condição de cidadão, para que ele dela
faça uso de modo a evoluir tanto individualmente, quanto como parte da coletividade onde está
inserido (contribuindo para a promoção de iguais oportunidades de acesso nas searas política,
econômica e social). Este processo é sabotado pela ótica capitalista, pela prioridade que esta destina
à capacidade de produção do indivíduo e ao acúmulo de bens materiais, em contraponto à evolução
do mesmo como ser humano ou cidadão. Nesta dinâmica inescrupulosa, a educação para a
cidadania não encontra morada, sendo claramente afastada do espaço onde naturalmente
floresceria: a escola pública.
34

Nas duas hipóteses, a educação não funciona como elemento de afirmação da

essência humana, mas sim como instrumento de “coisificação” do indivíduo.

Se transpusermos a educação para o contexto da cultural, a dualidade

se dá na exigência concomitante da universalização da alta cultura frente às

crescentes dificuldades colocadas pelas relações sociais burguesas para que se

construa uma política de cultura, que culmine em última instância no

desenvolvimento humano. Assim, o resultado é a coexistência do “rebaixamento

vulgar da cultura para as massas com a sofisticação esterilizadora da cultura das

elites”17 que acarreta nas culturas do mimetismo e da dominação, apontadas por

Boff.18

O discurso que se encerra apenas na Educação como mecanismo de

transformação da sociedade, tão somente, é inócuo, quase ingênuo. Ele deve,

necessariamente, vir inserido no contexto da luta de classes.

Em uma sociedade moderna como a nossa, apoiada no modo de

produção capitalista, os meios de produção são detidos pela burguesia. Dada a sua

característica inerente de sempre renová-los, ela tende, nas palavras de Saviani, “a

17
SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. 9ª edição. Campinas:
Autores Associados, p. 193.
18
BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 2003, p.
45-46: “Há a cultura da dominação que é pura reprodução de valores, hábitos, gostos, saberes,
tecnologias daqueles povos e centros de poder que nos subalternizaram e subalternizam. Criam-se
então subjetividades coletivas, hipnotizadas por tudo o que vem dos centros metropolitanos, que
nada tem a ver com o nosso meio eco-social. (...). Há a cultura do mimetismo: ao invés de criação
existe imitação servil e adaptação subtropical da cultura dos outros. (...) Tanto a cultura da dominação
quanto a do mimetismo são hegemônicas nos setores dominantes da sociedade. Eles dominam o
espaço público da comunicação e conseguem introjetar-se na cultura popular. Esta se apresenta
cindida entre os elementos antipopulares presentes no popular e os elementos autenticamente
populares que traduzem a vida e a luta do povo. Tal constatação demanda permanentemente um
discernimento crítico para não cairmos no populismo e para reforçarmos as matrizes populares da
cultura.”
35

converter todos os produtos do trabalho em valor-de-troca cuja mais-valia é

incorporada ao capital que se amplia insaciavelmente”19. Assim, a educação, tida

como uma potência científica será trabalhada pela burguesia para que possa ser um

importante ingrediente de ampliação do capital:

“O predomínio da cidade e da indústria sobre o campo e a


agricultura tende a se generalizar e a esse processo corresponde
a exigência da generalização da escola. Assim, não é por acaso
que a constituição da sociedade burguesa trouxe consigo a
bandeira da escolarização universal e obrigatória. Com efeito, a
vida urbana, cuja base é a indústria, rege-se por normas que
ultrapassam o direito natural, sendo codificadas no chamado
‘direito positivo’ que, dado o seu caráter convencional,
formalizado, sistemático, se expressa em termos escritos. Daí a
incorporação, na vida da cidade, da expressão escrita de tal
modo que não se pode participar plenamente dela sem o domínio
desta forma de linguagem. (...) A escola é a instituição que
propicia de forma sistemática o acesso à cultura letrada
reclamado pelos membros da sociedade moderna. (...) onde (...)
não é possível compreender a educação sem a escola, mas é
possível compreender a escola sem a educação”.20

Não se trata, com a transcrição acima, de se desvalorizar a capacidade

da escola como ferramenta para a conquista da eqüidade entre os indivíduos em

uma mesma sociedade. O educador, tendo ou não consciência, é politicamente

comprometido. O que se aponta é a falta de vontade política em relação à

consecução de leis que podem ser satisfatórias, ou até mesmo extremamente

positivas no papel, mas que não solucionam as problemáticas sociais estruturais.

Destarte, referidas problemáticas acabam por manifestar-se no âmbito coletivo. No

contexto da educação, o espaço por excelência é o da escola pública, que passa a

ser, assim, o palco para a reprodução das injustiças sociais.

19
SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição.Campinas: Autores Associados, 2004, p. 2.
20
Idem, p. 2-3.
36

Por outro lado, a partir do momento em que a educação é encarada

como um dos motores que levam à transformação social (relações estruturais), e

não apenas à melhoria de vida dentro de padrões já delimitados pela dinâmica das

relações sociais burguesas (relações superficiais), reaproximamo-nos da “tomada de

consciência” a que se refere Adorno. Passamos a discutir a educação que se opõe a

reificar o individuo e favorece o desenvolvimento de uma visão crítica sobre o

mundo, propiciando, a cada um, a liberdade de escolha para se “encaixar” na

sociedade de acordo com seus talentos, competências e desejos. É libertação,

como coloca Paulo Freire, do “homem simples, minimizado e sem consciência desta

minimização (...)”.21

Assim, conclui-se que há muitas contradições, mas apenas duas

eminentes transformações: a primeira diz respeito ao direito à educação, ao acesso

propriamente dito, dentro do prescrito na Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional. A segunda diz respeito à revolução da educação enquanto ciência, para

que se constitua em instrumento de formação de cidadãos críticos, que adquirem

conhecimento para interferir de maneira positiva nas relações sociais.

Embora trilhem caminhos distintos, ambas transformações partem de

um pressuposto comum: a superação da lógica individualista.

21
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 28ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p.
43.
37

CAPÍTULO II

Aspectos político-jurídicos da Educação

1. Introdução

A educação é colocada pela Carta Constitucional no artigo 205, como

direito de todos, o que importa em traduzi-la concretamente na ordem social como

serviço público essencial. Aprofundando-se um pouco mais neste conceito, fica

evidente que estamos lidando com um direito fundamental, inato à personalidade

humana, que se inicia com o nascimento e finda apenas com sua morte.

A esse respeito, Machado Júnior22 acrescenta que

Esse direito não se refere tão somente à uma liberdade de


aprendizagem (liberdade de pensamento, de expressão e de
acesso à informação), mas se caracteriza como direito social,
pois todos podem exigir do Estado a criação de serviços públicos
para atendê-lo, tendo características de direito absoluto,
intransmissível, irrenunciável e inextinguível.

Quanto à realização, na prática, dos objetivos da educação inseridos

no texto constitucional, aponta José Afonso da Silva:

A consecução prática dos objetivos da educação


consoante o art 205 - pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho – só se realizará num sistema educacional democrático,
em que a organização da educação formal (via escola) concretize
o direito ao ensino, informado por princípios com ele coerentes,
que, realmente, foram acolhidos pela Constituição, como são:
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

22
MACHADO JÚNIOR, César Pereira da Silva. O direito à educação na realidade brasileira. São
Paulo: LTr, 2003, p. 3.
38

liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o


pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de
concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas
e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais do ensino
garantido na forma da lei; planos de carreira para o magistério
público, com piso salarial e profissional e ingresso exclusivamente
por concurso público de provas e títulos; gestão democrática;
garantia de padrão de qualidade (art. 206). Grifos do autor.

Dado que o recorte feito no presente estudo em relação à Educação

tangencia os limites da educação básica, é necessária análise acerca da estrutura

jurídica que se refere ao público sujeito de direito deste segmento do sistema

educacional brasileiro, as crianças e os adolescentes. Passaremos, em seguida, a

examinar as legislações infraconstitucionais referentes a este público, bem como as

convenções na ordem internacional, para identificar onde e como vem assegurado o

direito à educação. Na seqüência, passaremos a investigar a legislação sobre

educação, com o foco no segmento já mencionado.

2. A infância e a juventude na pauta jurídica internacional

A proteção aos Direitos Humanos firmou-se como questão central na

ordem internacional. Contudo, para que este cenário se tornasse efetivo, “foi

necessário redefinir o âmbito e o alcance do tradicional conceito de soberania

estatal, a fim de que se permitisse o advento dos direitos humanos como questão de

legítimo interesse internacional.”23

As duas Guerras Mundiais mudaram, cada qual em seu tempo, a

situação geopolítica do planeta. Não obstante, nenhum êxito palpável havia sido

23 a
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5 edição. SP: Max
Limonad, 2002, p. 46.
39

atingido no campo da preservação dos direitos humanos, tanto individuais como

coletivos.

A fundação, em 1945, da Organização das Nações Unidas, é marco

importante no processo de internacionalização dos direitos humanos. Referido órgão

solidificou a intenção de proteger os direitos fundamentais do homem no mundo pós-

guerra, bem como garantir o progresso social ao redor do planeta. Para tanto,

estabeleceu, em sua Constituição, a justiça e a dignidade como conditio sine qua

non nas relações entre as nações e os indivíduos.

Cabe informar que, historicamente, no ano de 1924 houve a primeira

manifestação internacional em prol dos direitos das crianças e adolescentes: a

Convenção de Genebra. Contudo, é o documento firmado em 1959 que acaba por

impactar o cenário internacional de maneira significativa: a Declaração Universal dos

Direitos da Criança influenciou fortemente o surgimento de muitos pactos

internacionais acerca da matéria, sobretudo a partir das décadas de 80 e 90.

O movimento de reconhecimento e conseqüente consolidação desta

categoria específica de direitos intensificam-se a partir de 1979, declarado ano

internacional da criança. A partir disso, foi elaborado, no âmbito da comissão de

direitos humanos da Organização das Nações Unidas, o texto da Convenção dos

Direitos da Criança, adotado pela Assembléia Geral da Organização das Nações

Unidas em 20 de novembro de 1989, e assinado pelo governo brasileiro aos 26 de

janeiro de 1990.
40

Referido documento demonstra sua importância ao concretizar os

preceitos erigidos trinta anos antes, fazendo com que os países signatários

adaptassem suas normas e princípios às legislações internas. Neste sentido nota-se

que o Estatuto incorporou os três princípios básicos da Convenção dos Direitos da

Criança: proteção especial dada à condição da criança como ser em

desenvolvimento, a família como âmbito ideal para seu desenvolvimento e

obrigatoriedade das nações em constituir a criança como prioridade, adaptando-os,

devidamente à conjuntura social, cultural, política e econômica. Destarte, conforme

esclarecimento de Pereira de Souza24, “(...) o Estatuto e a Convenção não

estabelecem entre si um confronto hierárquico e de conteúdo, representando, o

Estatuto, instrumento complementar da Convenção, necessário à sua adequação à

nossa realidade”.

Ainda, sob a influência do texto de 59, podemos destacar, em relação à

matéria em questão as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas para a

administração da Justiça Juvenil e para os jovens privados de liberdade, as

Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência Juvenil, o Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos (especificamente os arts. 23 e 24) e o

Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art.10), além de

diretrizes específicas das agências internacionais especializadas que visam o bem-

estar da criança.

O movimento mundial em relação à sedimentação de um sistema de

proteção da infância exerceu grande influência na ordem jurídica brasileira. Até

24
PEREIRA DE SOUZA, Sérgio Augusto Guedes. Os Direitos da Criança e os Direitos Humanos.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 130.
41

então tutelados pela Constituição de maneira geral, os direitos da criança e do

adolescente ganharam força quando da promulgação do Estatuto. O mundo assistia,

no período pós-guerra, à eclosão de uma nova geração de direitos humanos, os

pertencentes às categorias de pessoas que eram singularizadas por sua condição

de vulnerabilidade, como crianças, idosos, mulheres, etc.

3. A estrutura jurídica dos direitos da infância e juventude

3.1. Histórico: o processo de construção da Lei estatutária

Hodiernamente, é quase impossível que se discutam os direitos

relativos à infância e juventude, sem menção nominal e direta ao Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA). Juntamente com o Código de Proteção e Defesa

do Consumidor, trata-se de uma legislação especial que já foi assimilada e é

amplamente conhecida pela sociedade.

A história da evolução jurídica no que diz respeito ao reconhecimento,

proteção e garantia destes direitos no Brasil é recente. Na verdade, o efetivo

reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros consagrou-se

com a Carta Constitucional, e foi sublinhado pelo já aludido Estatuto.

O marco inicial é em 1927, com o Código Mello Matos (Decreto no

17.943-A), primeira legislação especial sobre a matéria, que consagra a doutrina da

situação irregular, instaurando a nomenclatura “menor” para definir todos os


42

indivíduos cuja faixa etária não excedia a dos dezoito anos de idade, e coloca a

infância pobre como potencialmente perigosa.

No ano de 1964, já durante a ditadura militar, surge a FUNABEM –

Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, instituída pela Lei no 4.513 daquele

mesmo ano, da qual surgiram as conhecidas unidades da FEBEM (Fundação

Estadual do Bem-Estar do Menor). A questão da infância e juventude era, naquela

época – quando prevalecia a lógica da situação irregular-, tida como problema

social, o que contrariava diametralmente a filosofia de proteção e promoção de

direitos.

O Código de Menores, de 1979, ou Novo Código de Menores, veio

atualizar, terminologicamente, ambas as legislações sobre a matéria. Por muitos, foi

tido como retrocesso, devido à postura adotada quanto ao tratamento dos jovens

autores de atos infracionais: o encarceramento. Ao longo do período da ditadura

militar, iniciaram-se movimentos de defesa dos direitos das crianças e adolescentes,

com diversas tendências em torno da causa.

Com a abertura democrática, no início da década de oitenta, diversos

movimentos sociais que promoviam ações de caráter assistencialista (especialmente

a Igreja) ganharam espaço para a atuação política. Na Assembléia Constituinte de

1986, entidades mobilizaram a opinião pública para que fosse incorporada ao texto

constitucional a questão da infância e da juventude. O resultado desta pressão

popular foi a criação de duas emendas aos arts. 204 e 227, da Constituição Federal.
43

Relata Antônio Chaves25 que, em junho de 1987, foi apresentada ao

Congresso Nacional a emenda popular “Criança, Prioridade Nacional”, resultado de

um trabalho em conjunto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do

Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, da Sociedade Brasileira de

Pediatria, da Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi, da Frente Nacional de

Defesa dos Direitos da Criança e do Serviço Nacional Justiça e Não-Violência. O

objetivo era o de alertar para a já considerada grave situação da infância e juventude

brasileiras na época e contribuir para a incorporação, na Carta Constitucional, de

dispositivos legais de promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Após a promulgação da Carta de 1988, a mobilização se manteve, e

rapidamente encontrou abrigo oficial no Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do

Adolescente. Deste Fórum, que reuniu pensadores e representantes da sociedade

civil de diversas correntes de pensamento, nasceu o Estatuto da Criança e do

Adolescente – o ECA - no ano de 1990, em plena era Collor, que se apropriou da

bula legal como signo da modernidade.

De fato, o ECA foi a primeira legislação, em toda a América Latina, a

romper drasticamente com a doutrina da situação irregular e adotar a doutrina da

proteção e promoção integral dos direitos. Além disso, o Estatuto faz com que

crianças e adolescentes, antes objetos de direitos, passem a ser sujeitos de direitos,

ou seja, passam a ter proteção da ordem jurídica vigente caso seus direitos não

sejam efetivados.

25
CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2ª edição. São Paulo:
LTr, 1997, p.43.
44

3.2. O Estatuto da Criança e do Adolescente hoje

Passados pouco mais de quinze anos da promulgação da lei

estatutária, são inquestionáveis os avanços conquistados: todos os indivíduos

abaixo da faixa etária dos dezoito anos passaram a ser considerados sujeitos de

direitos, o número de vagas nas escolas aumentou, e a luta pela erradicação do

trabalho infantil em território brasileiro já alcança resultados extremamente

positivos26.

Todavia, faz-se também necessária uma avaliação crítica sobre

algumas lacunas em seu texto. Observando-se o país em um processo democrático

26
Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD), 2003/IBGE.
A Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI) realizou um interessante levantamento acerca
do respaldo dado pela mídia em relação à luta pela erradicação do trabalho infantil, especificamente
em suas quatro piores formas, citadas pela Convenção 182 da Organização Internacional do
Trabalho, e já ratificada pelo Brasil. A reportagem da Agência investigou a forte presença da mídia
nas manifestações do dia 12 de junho, considerado o dia mundial da luta pela erradicação do trabalho
infantil: “Os jornais abriram espaço para noticiar a realização de dezenas de ações, entre caminhadas
e debates, nas mais diversas regiões, além de anunciarem decisões governamentais de
enfrentamento da prática. As notícias trouxeram ainda informações da atuação dos Fóruns Estaduais
de Erradicação do Trabalho Infantil. E registraram a entrega a alguns governadores da cópia do
Termo de Compromisso – assinado por todos os titulares dos Executivos Estaduais e Distrito Federal
e pelo Presidente da República – no qual todos se comprometeram com o combate à exploração do
trabalho precoce no País. A assinatura do Termo de Compromisso foi o resultado da Caravana
Nacional pela Erradicação do Trabalho Infantil, que percorreu todo o Brasil, entre junho e dezembro
de 2004, no marco do décimo aniversário do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil. (...) A ANDI identificou, entre 1º de abril e 30 de junho de 2005, um total de 925
matérias em mais de 60 jornais e revistas de todo país. A maior parte das matérias (56,76%) tratou de
quatro das piores formas abordadas pela Análise de Mídia (agricultura familiar, narcotráfico, trabalho
infantil doméstico e informal urbano), além de outras formas de exploração do trabalho infantil. As
demais reportagens analisadas neste boletim (400 matérias) trataram exclusivamente de questões
ligadas à exploração sexual e crianças e adolescentes.
Desta vez, incentivadas pela pauta dos eventos acima mencionados, notícias sobre ações de
enfrentamento das situações de exploração da mão-de-obra infanto-juvenil – sejam do setor público,
sejam de entidades não-governamentais –, tiveram praticamente o mesmo espaço dado ao Programa
de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), tradicionalmente o assunto mais abordado. As ações de
combate representaram 18,47% do material analisado, enquanto o Peti somou 20,19% do total. Em
relação ao programa governamental, mais uma vez, o enfoque principal foi a verba destinada às
bolsas, de atraso do repasse a irregularidades na distribuição. A participação do Peti nas atividades
em torno das datas comemorativas também foi destacada nas matérias analisadas, sobretudo
naquelas sobre o dia 12 de junho”..Análise de Mídia: Piores Formas do Trabalho Infantil. Edição nº 4
(abril/junho 2005), ANDI e OIT, p. 2 e 4. Disponível em http:// www.andi.org.br.
45

um pouco mais maduro comparado à época de eclosão da luta sempre permanente

pelos direitos humanos, pergunta-se quais os efetivos resultados que trouxe o

Estatuto, especificamente em relação à educação básica?

Para tanto, é imprescindível que se observe cuidadosamente o

processo de transição entre a doutrina da situação irregular para a de proteção

integral. A vigência do Estatuto, que rompeu drasticamente com o sistema anterior

tanto pela filosofia e valores instaurados (os Juízes passaram a ser conhecidos

como Juízes da Infância e Juventude, não mais como Juízes de Menores) como pela

prática das ações (a criação dos Conselhos Tutelares descentralizou a ação dos

magistrados e passou-se a discutir medidas alternativas à simples internação de

adolescentes autores de atos infracionais), foi imposta à maioria dos membros da

magistratura, que se abstiveram de participar do processo de construção do

Estatuto, pela divergência em relação a esta nova linha de pensamento. De fato,

conforme relata o juiz Moacir Rodrigues27, a maioria dos juízes acreditava que uma

simples reforma em alguns aspectos do Código de Menores bastaria para que se

resolvesse o chamado “problema da infância e juventude brasileiras” que começava

(!) a alarmar a sociedade.

Esta visão, extremamente reducionista, no sentido de não enxergar a

criança e o adolescente como sujeito de direitos (que eram logicamente diluídos no

direito de família), conseguia apenas tratar do problema do crescimento da

criminalidade entre adolescentes, mas nunca da situação específica da infância e da

adolescência no país, como queria o discurso que sustentava a legislação vigente.

27
CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2ª edição. São Paulo:
LTr, 1997, p. 45.
46

Dado o fervor provocado pela forte mobilização em prol da mudança da

lei, o ECA foi posto em vigor sem consenso, já que construído sem a participação

deste setor importante da sociedade. Os reflexos deste processo ainda são

percebidos nos dias de hoje, principalmente no que diz respeito à questão da

criminalidade praticada por adolescentes e na maneira adotada pelo Estatuto para a

resolução do problema, ainda, vale dizer, muito incipiente.

Este aspecto é, sem dúvida, o grande calcanhar-de-aquiles da lei

estatutária. Toda a discussão que gira em torno da diminuição da maioridade penal

e da falência da FEBEM por vezes é alimentada com os ideais retrógrados e

certamente não simpáticos à causa dos direitos humanos por aqueles que são os

herdeiros do discurso da lei revogada.

A questão da criminalidade adolescente não deve se voltar

exaustivamente à diminuição da idade juridicamente permitida para uma punição

mais severa ou da qualidade e quantidade de órgãos de internação – esta discussão

é secundária. A partir do momento em que se aprofundar o debate, será cristalina a

resposta para sua resolução: investimentos em maior quantidade e qualidade em

educação, além da garantia da acessibilidade ao ensino de maneira justa para

todos.

Especificamente sobre educação, aspecto que é objeto do presente

estudo, dispõe o Estatuto, em seu artigo 54, § 3º, inciso VII, sobre o atendimento

assegurado no ensino fundamental, dizendo que compete ao Poder Público a

responsabilidade última pela freqüência das crianças à escola. Aqui avistamos uma
47

falha grave na legislação: embora o artigo seja de natureza programática do artigo

em epígrafe que não oferece detalhamentos nem impõe sanções acerca do

descumprimento da norma estabelecida. Conseqüentemente, não se identifica a

priorização de ações, na lei, em relação à qualidade dos investimentos em

educação, ou a existência de qualquer legislação complementar que o faça.

Assim, se é clara a constatação de que o ECA ainda tem um longo

caminho pela frente, no sentido de ser aplicado de maneira efetiva na realidade

complexa que o cerca, é também indubitável que seus ajustes e cumprimento

integral dependam de dois elementos: vontade política e mudança cultural.

4. Legislação educacional brasileira

4.1. A Educação nas Constituições Federais.

A primeira referência feita à educação em um texto legal consta na

Constituição do Império, datada de 1824. No tocante à educação básica, a menção

se reduzia à garantia do acesso gratuito à instrução primária.

A Constituição de 1891 trata da educação no capítulo “Das Atribuições

do Congresso”, desalojando-a do espaço que ocupava entre as garantias dos

direitos civis e políticos, na Carta de 1824, e colocando-a como tarefa a ser realizada

pelos deputados e senadores. À matéria é dedicado pouco espaço, dado que a

Carta primava pela autonomia das unidades federativas, subentendendo que a

legislação referente à educação deveria ser elaborada em âmbito estadual. Cabia à


48

União apenas o ensino superior da capital (art.34), a instrução militar (art. 87) e a

tarefa, não exclusiva, de “animar, no país, o desenvolvimento das letras, artes e

ciências” (art. 35).28

A Constituição de 1934, por sua vez, amplia o escopo quando trata da

matéria. Estabelece a competência privativa da União para traçar as diretrizes da

educação nacional e divide a responsabilidade da difusão da instrução pública, em

todos os seus graus, entre a União e os estados. Ainda, prevê um capítulo

específico que trata da educação e da cultura, estabelecendo a primeira como um

direito de todos. Ela deveria ser ministrada pela família e pelos poderes públicos,

visando o desenvolvimento da consciência da solidariedade humana (art. 149).

Nesta mesma Carta constitucional, previa-se um plano nacional de educação, que

deveria ser elaborado pelo Conselho Federal de Educação, detentor do papel de

não apenas sugerir ao Governo as medidas que julgasse necessárias para a melhor

solução dos problemas educativos, mas também de opinar quanto à distribuição

adequada dos fundos especiais (art. 152). Assim, aliando-se a unidade gerada por

um plano nacional de educação à escolaridade primária obrigatória, pretendia-se

combater a ausência de unidade política entre as unidades federativas. Contudo,

evitava-se usurpar a autonomia dos estados na implantação de seus sistemas de

ensino.

No período que abrange o final da década de 20 e início da década de

30, um novo movimento vem se contrapor ao ensino oligárquico no país, herança

28
Interessante informar que somente em 1931 foi criado o Ministério da Educação. Até então, todos
os assuntos ligados à educação eram submetidos ao jugo do Departamento Nacional de Ensino,
ligado ao Ministério da Justiça.
49

direta do monopólio da educação pela Igreja desde a Colônia; verifica-se, nesta

época a marca, segundo Gadotti29, da

“(...) pregação liberal da educação que defendia a


gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário, bem como a
laicidade e a co-educação. Essa pregação opunha-se à
concepção dominante na educação, representada pelos católicos.
Concretamente, católicos e liberais se defrontavam para garantir
a hegemonia de sua concepção na elaboração da Carta
Constitucional de 1934. (grifos do autor).

Estes aspectos permeiam o texto da nova Constituição de 1937, que já

denota seu caráter paternalista quando reserva ao Estado o papel de prover conforto

e cuidados indispensáveis à preservação física e moral em caso de abandono físico,

moral ou intelectual das crianças e jovens, e de garantir aos pais miseráveis auxílio

para a subsistência e educação de seus filhos (art. 127). É neste texto constitucional

que os municípios, pela primeira vez, são igualmente chamados a assegurar o

acesso a uma educação adequada (art. 129). E se formam, sob a responsabilidade

das indústrias e dos sindicatos, as escolas de aprendizes, destinadas aos filhos dos

operários ou associados.

A Carta de 1946, sem trazer muitas novidades concretas, atesta a

necessidade de se elaborar novas leis que direcionem a educação no país. É o

início da longa construção da Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, que

só viria a ser aprovada em 1961. Já a Carta Constitucional de 67 tratou do acesso à

educação especial e gratuita dos deficientes físicos, e estabeleceu o ensino primário

obrigatório para todos, a partir dos sete até os catorze anos de idade. Houve

redução, também, da participação dos municípios enquanto garantidores do acesso

29 a
GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 9 edição. São Paulo:
Cortez, 1995, p. 117.
50

à educação, sendo que esta tarefa passou a ser exclusiva dos Estados e do Distrito

Federal.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a educação é

classificada como um direito social. A União teve seu papel reduzido no que se

refere à intervenção nos Estados e no Distrito Federal, salvo no caso de aplicação

abaixo do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais (Emenda nº

14, de 12/09/96 e, posteriormente, Emenda nº 29, de 13/09/2000, ambas ao artigo

34).

No capítulo que trata especificamente da educação, cultura e desporto,

o legislador garantiu a valorização dos profissionais do ensino (art. 206, alterado

pela Emenda Constitucional nº 19).

Uma outra mudança importante trazida pela Emenda nº 14 foi o

estabelecimento da competência do município em relação à educação infantil e a

dos Estados e Distrito Federal no tocante à oferta dos ensinos fundamental e médio.

4.2. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

4.2.1. Um breve histórico

A primeira Lei de Diretrizes e Bases foi promulgada no governo de

João Goulart. O projeto desta primeira Lei, contudo, chegou à Câmara Federal no

ano de 1948, só sendo oficialmente debatido pelos deputados nove anos depois,
51

tramitando, neste ínterim, entre a Comissão Mista de Leis Complementares e a

Comissão de Educação e Cultura daquela Casa Parlamentar.

Em sua primeira versão, a Lei de Diretrizes detinha caráter

notoriamente descentralizador. Contudo, o relator designado para avaliação do

projeto, o deputado Gustavo Capanema, entendeu diferentemente, recomendando a

reelaboração ou emenda do texto que, ato contínuo, foi arquivado.

Em 1951, é solicitado o seu desarquivamento. Novamente, o projeto

tramita na mesma Comissão de Educação e Cultura, por mais cinco anos, até o

momento em que é finalmente entregue a um novo relator, o deputado Lauro Cruz.

No final do ano de 1957, depois de muitas discussões acerca do projeto, este era

apresentado à Câmara, com número considerável de emendas. Em 1960 é

finalmente aprovado e encaminhado ao Senado, onde recebeu mais 238 emendas30

e ao final, foi aprovado, em agosto de 1961.

O embate em torno da elaboração do texto da lei dava-se,

basicamente, entre os partidos de esquerda, conhecidos como estatistas e os

ligados aos partidos de centro e de direita, ou liberalistas.

Os primeiros sustentavam que, sendo a finalidade da educação o

preparo do indivíduo para o bem da sociedade, a competência para educar deveria

ser centralizada pelo Estado. As escolas particulares, nesta ótica, poderiam existir

como uma concessão do poder público. Por outro lado, os opositores a esta corrente

30
SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2004,
p.17.
52

filosófica defendiam que ao Estado caberia apenas a função de traçar as diretrizes

do sistema educacional e garantir o acesso às escolas particulares a pessoas de

baixa renda por meio de bolsas, já que a educação era vista como um dever da

família.

Ao final, venceu a “estratégia da conciliação”, conforme aponta Saviani.

A lei, publicada aos 20 de dezembro de 1961, não correspondeu totalmente às

expectativas de nenhum dos lados envolvidos na disputa. Tal fato levou muitos a

classificá-la, de imediato, como incapaz de gerar qualquer impacto significativo.

Dez anos depois, durante o regime militar, a lei sofre alterações,

justificadas pela necessidade de se adequar seu conteúdo à nova realidade política

instaurada. As adequações foram efetuadas através da Lei nº 5.540/68, que

reformou a estrutura do ensino superior, e da Lei nº 5.692/71, que procedeu à

alteração das nomenclaturas de ensino primário e médio, que passariam a se

chamar ensino de primeiro e segundo graus.

Contudo, após a promulgação da Carta Constitucional de 88, já era

considerada obsoleta.31

Assim, dotado de algumas emendas, o projeto da nova Lei foi

submetido à Comissão de Constituição, Justiça e Redação o projeto da nova Lei no

ano de 1989, sendo relator o deputado Jorge Hage. Contrariamente ao processo de

31
“A situação educacional configurada a partir das reformas instituídas pela ditadura militar logo se
tornou alvo da crítica dos educadores que crescentemente se organizavam em associações de
diferentes tipos, processo esse que se iniciou em meados da década de 70 e se intensificou ao longo
dos anos 80 “. Ibid., p. 33.
53

debate (restrito) que circundou a LDB de 61, o projeto da atual Lei de Diretrizes e

Bases teve ampla representatividade da sociedade acadêmica do país, percebida

nos fóruns estaduais e municipais constituídos como desdobramentos do Fórum em

Defesa da Escola Pública. O projeto foi finalmente aprovado na Câmara em 1993.

Mas foi apenas em 1996 que foi sancionada a nova Lei, em vigor até

os dias de hoje. Contudo, o texto aprovado não foi exatamente aquele de 1993. Isso

porque, tendo sido solicitada sua volta à Comissão de Constituição, Justiça e

Cidadania, o relator designado foi o senador Darcy Ribeiro. Este, no mesmo ano da

vitória do projeto na Câmara, já havia tentado a aprovação de idéias diferentes em

relação às diretrizes para a educação nacional.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na forma do

Substitutivo Darcy Ribeiro, foi novamente remetida à Câmara, que a aprovou aos 17

de dezembro de 1996, não sofrendo qualquer veto presidencial, e promulgada no dia

20 daquele mesmo mês.

4.2.2. Uma leitura crítica da Lei nº 9.394/96

Já tratamos antes da recorrente contradição que se verifica, na

ideologia neoliberal, entre as pequenas liberdades conquistadas e a manutenção da

dominação. Em um recorte pragmático, esta dualidade se manifesta na lei em

análise.
54

Em uma primeira leitura são constatadas diversas mudanças em

relação às leis anteriores, entre as quais a inclusão da educação infantil como

primeira etapa da educação básica. Também consta a instituição do Conselho

Nacional de Educação (antigo Conselho Federal), que pela primeira vez passa a

contar com a participação de membros indicados pela sociedade. Igualmente, a Lei

nº 9.394/96 contribui para o processo de descentralização executiva do processo

educativo para as esferas estaduais e municipais, dando certa autonomia às escolas

e flexibilizando também a gestão dos centros de ensino superior32.

Contudo, analisando o texto com mais cuidado, sob que aspectos os

cidadãos brasileiros dela se beneficiam, percebemos detalhes interessantes, a

começar pelo próprio trâmite irregular, por vezes turbulento, do projeto que se

consolidou na presente Lei.

Uma primeira contradição que nos chama a atenção é a discrepância

entre os textos da LDB e da Constituição Federal em relação ao que é por ambos

considerado direito público subjetivo. No texto constitucional (art. 208), o legislador

entendeu o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como sendo este direito, ao

passo que a lei infraconstitucional o configurou apenas em relação ao acesso ao

ensino fundamental.

Houve omissão no texto da LDB, tanto quanto ao restante da educação

básica, como à condição de gratuidade do ensino.

32
RAMAL, Andrea Cecília. A nova LDB: destaques, avanços e problemas. Salvador: Revista de
Educação CEAP, ano 5, nº 17, junho de 1997, p. 05-21.
55

Por outro lado, a consolidação do conceito de educação básica é uma

das grandes vitórias da LDB, já que indica, nas palavras de Saviani33, um

(...) caminhar em direção a um verdadeiro sistema nacional de


educação abrangente e universalizado, isto é, capaz de garantir a
plena escolaridade a toda a população do país. (...) É preciso, no
entanto, não perder de vista que o conceito de educação básica
adotado implica não apenas uma reordenação do ensino
fundamental, mas o empenho decidido em universalizar o ensino
médio na perspectiva de uma escola unificada, capaz de articular
a diversidade de experiências e situações em torno do objetivo de
formar seres humanos plenamente desenvolvidos e, pois, em
condição de assumir a direção da sociedade ou de controlar
quem dirige.

Especificamente em relação à educação infantil, a lei apenas indica

sua finalidade (art. 29) e organização; não aborda, contudo, o que pensamos ser

obrigatório: a necessidade de autorização para funcionamento das escolas de

educação infantil e a fiscalização das mesas, no sentido de se constatar se as

escolas trabalham com um efetivo programa de educação voltado para este público

específico ou se aplicam cursos livres (que se encaixam na lógica da assistência

social, mas não da educação).

Tal aspecto é preocupante, já que a educação infantil é de extrema

importância, conforme será demonstrado adiante; o acompanhamento, pelo Poder

Público competente, se faz necessário primeiramente por reforçar a categoria de

direito público subjetivo (ainda que não expressa na lei), e também por garantir a

plena realização das finalidades desta etapa da educação.

33
SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2004,
p. 210.
56

Ao tratar do ensino fundamental, a LDB indica o critério da expansão

de jornada escolar para o período integral. Ainda que não mandatório, abre a

possibilidade – tida por muitos educadores como positivo, por influenciar diretamente

no aumento da qualidade do desempenho escolar, principalmente em relação às

crianças de baixa renda – de ser concretizado futuramente.

No tocante à regulamentação do ensino médio, a lei atual não traz

muitas novidades em relação ao texto anterior, estabelecendo a necessidade da

articulação entre os estudos teóricos e os processos práticos.34

A Lei nº 9.394/96 se apresenta como um instrumento jurídico que não

trouxe rupturas tanto positivas como negativas ao sistema educacional brasileiro. Ao

mesmo tempo em que não traz a resolução de muitos aspectos práticos em relação

à situação do ensino no Brasil, também não restringe possibilidades de melhoria do

mesmo, por ser um texto bastante aberto. Ao mesmo tempo que não restringe

altamente novas propostas de atuação, não projeta, para o país um plano de

educação sólido e estruturado.

4.2.3. Competências

A Lei organiza, no título IV, as competências para a gestão da

educação nacional. À União fica designado o papel de coordenadora da política

nacional de educação (art. 8º, § 1º), sendo responsável pela elaboração do Plano

34
SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2004,
p. 213.
57

Nacional de Educação e pelo estabelecimento das competências para a Educação

Básica. Esta abrange desde a educação infantil até os ensinos fundamental e médio.

Sob a responsabilidade dos municípios está a educação infantil, que é

aquela oferecida às crianças de zero a seis anos de idade. O atendimento a este

público divide-se em creches (para crianças de zero a três anos de idade), pré-

escolas (para crianças de quatro a seis anos) e centros de educação infantil, que

oferecem de maneira não-fragmentada (por comportar a creche e a pré-escola em

um mesmo local) o atendimento global a este público. Interessante esclarecer que

até o ano de 1996, a verba direcionada às creches estava vinculada à pasta de

Assistência Social, devido ao entendimento de que se tratava de um direito da

mulher dispor de um local em que pudesse deixar seus filhos durante o período de

trabalho. Contudo, este caráter de assistência perde força quando do advento do

Estatuto da Criança e do Adolescente, que enuncia a educação como direito

fundamental desde a primeira infância. Cinco anos mais tarde, a LDB vem reforçar

este entendimento, conforme se depreende dos artigos 29, 30 e 31.

Não obstante, ainda é comum encontrarmos nos municípios creches

vinculadas tanto à Secretaria de Educação quanto à de Promoção Social.

O ensino fundamental, que comporta a faixa etária dos sete aos

catorze anos, é de responsabilidade tanto do Estado como do município, ao passo

que a providência do ensino médio, que atende alunos dos 15 aos 18 anos de idade,

é atribuída ao Estado.
58

Finalmente, vale mencionar que as funções do Ministério da Educação

e Cultura (MEC), estão descritas no texto da Lei nº 9.131/95. Assim, com a

colaboração do Conselho Nacional de Educação e das Câmaras que compõem este

último, cabe-lhe formular e avaliar a política nacional de educação, além de zelar

pela qualidade do ensino e velar pelo cumprimento das leis que o regem (art. 6º,

caput).

5. O sistema de garantia dos direitos previstos

5.1. A filosofia do Estatuto

Quando se faz referência aos direitos de crianças e adolescentes

previstos no texto constitucional, a alusão é principalmente em relação ao art. 227,

que enuncia:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado


assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.

Seguindo este raciocínio, enuncia o ECA:

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da


sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade
compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias;
59

b) precedência de atendimento nos serviços


públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das
políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas
áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Desta forma, entende-se que, na visão do legislador, o cumprimento de

todos os direitos e garantias pertencentes a este grupo só é possível mediante a

combinação do exercício adequado do poder familiar com o acesso a políticas

públicas.

O primeiro diz respeito ao poder-dever dos pais em assistir, educar e

criar seus filhos. O dever do Estado é o de possibilitar meios para que estas ações

possam se concretizar fora do ambiente doméstico, ou seja, deve prover os serviços

públicos que materializem o previsto em Lei.

Quanto ao acesso a políticas públicas, a filosofia seguida pelo próprio

Estatuto reza que qualquer política pública bem-sucedida inclui descentralização,

mobilização e participação.

A descentralização diz respeito, de acordo com o texto legal, com a

mudança do papel da União (que antes instaurava uma política hermética, e imposta

de cima para baixo – a FUNABEM), que é mera coordenadora das esferas político-

administrativas. A partir do momento em que as políticas públicas devem ser

realizadas pelos Estados e municípios, há sem dúvida, uma aproximação do Estado

com seu público-alvo.


60

Há que se considerar, também, a descentralização sob o aspecto da

gestão compartilhada de políticas públicas entre as esferas pública e privada,

almejando-se maior eficiência no serviço oferecido à população, de acordo com o

anteriormente exposto.

O modelo centralizador do Estado não é efetivo; pelo contrário, por ser

extremamente burocratizado, o Estado não conta com um modelo de gestão

eficiente. Desta forma, o modelo que se busca é o de gestão compartilhada,

conforme acima ilustrado, atingindo-se, assim, os resultados buscados.

Já a mobilização diz respeito às forças inerentes à comunidade na

tentativa de solucionar os problemas. Trata-se uma diretriz de política pública, já que

é mencionada no Estatuto como indispensável a participação dos diversos

segmentos da sociedade.

A participação é, por sua vez, uma tendência expressa na Carta

Constitucional de 88, que em seu art. 1o, parágrafo único, prevê a democracia

participativa, alinhada à representativa. Estabelece ainda algumas de suas

ferramentas, tais como iniciativa popular de projetos de lei, o referendo, o plebiscito

e a ação popular, além da ação constante da sociedade civil através das

organizações não-governamentais, conselhos de direitos e conselhos tutelares.


61

5.2. Os Conselhos de Direitos

Como alternativa à limitação da participação popular no processo

democrático, surge, no final da década de oitenta a experiência brasileira –

significativa - com os Conselhos Populares.

O Estatuto estabelece, em seu art. 88, inciso II, a criação de conselhos

municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente

pressupondo, através dos mesmos, a participação popular paritária.

Assim, são instalados, nas esferas nacional, estadual e municipal,

respectivamente, o CONANDA35, os CONDECA36 e os CMDCA37.

A participação é a maneira de se romper com a não-integração entre

atuação popular e programas sociais propostos pelo governo. Os conselhos são

criados pelo poder executivo, para que seja efetiva a participação da sociedade no

processo democrático, ampliando a mesma para além dos períodos de eleição.

Cabe, contudo trazer a arguta observação de Liberati e Cyrino, ao apontar que esta

integração não inclui a participação do povo no processo decisório38, limitando-o ao

estudo do problema em si (sua origem, razão e alternativas para sua solução),

excluindo-o do momento da decisão.

35
Conselho Nacional dos Direitos
36
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
37
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
38
LIBERATI, Wilson Donizeti e CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e Fundos no Estatuto da
Criança e do Adolescente. 2ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 54: “Assim, os governos
buscam legitimar suas ações já consumadas, sem que o povo tenha tomado parte no processo
decisório, dando, pois, uma falsa idéia de respaldo popular”.
62

5.3. A atuação do terceiro setor

Os grupos organizados da sociedade civil – organizações não-

governamentais, fundações, institutos, associações comunitárias – têm, por sua vez,

papel relevante quanto à providência destes serviços, já que, constantemente em

busca do aperfeiçoamento de seus conhecimentos, e muitas vezes caminhando lado

a lado com as universidades, têm muito a contribuir no “como fazer”.

Até o início dos anos 90, os programas sociais do Estado vinham

revestidos pelo manto do assistencialismo (que, por meramente resolver os conflitos

sociais em curto prazo, acaba postergando sua resolução definitiva). Aí se resume

todo o know-how do Estado no tocante à elaboração e execução das políticas

públicas.

A ampliação do espaço de atuação dos grupos civis organizados indica

a efetiva realização, conforme já previsto no texto constitucional quanto às formas

democráticas do modelo participativo, concomitante ao representativo (já que não

são excludentes, e sim complementares).

Trata-se de um modelo de ação conjunta: o papel do Estado é de

extrema importância haja vista sua capacidade em atingir um extenso número de

pessoas de maneira não-fragmentada, potencializando o resultados das ações. Ele

tem a verba e a estrutura para fazê-lo. Já as organizações civis reúnem o

conhecimento sobre as garantias e direitos que devem ser tornados tangíveis


63

através das políticas públicas, além do conhecimento específico e experiência

acerca de sua área de atuação.

Da mesma maneira que o Estatuto é um avanço, a realidade ainda é

carente do que é implementado pela Lei. Como então pode a Lei no 8.069/90

efetivamente se concretizar? Especialistas, estudiosos e profissionais da área da

infância concordam em que o primeiro passo a ser dado é a construção de uma

educação sólida, tanto no que diz respeito à qualidade e quantidade dos

equipamentos (centros de educação infantis e escolas de ensino fundamental e

médio), como também na formação dos professores e educadores.

A divisão recorrente em relação aos setores, propagada especialmente

para estabelecer-se uma divisão de papéis e isenção de responsabilidades dentro

de uma nação democraticamente constituída também deveria ser objeto de reflexão.

A divisão do Estado de Direito em setores, tendo cada setor uma responsabilidade,

acaba por reforçar ainda mais o entendimento de que o exercício da cidadania é a

mera reclamação de políticas públicas por parte da sociedade civil quando o Estado

deixa de prover estes serviços, quando se ausenta de sua responsabilidade. Ocorre

que a construção deste Estado de direito deve ser feita democraticamente, não

apenas quanto à identificação de problemas e responsabilidades, mas

principalmente no que diz respeito à superação das dificuldades para que a

sociedade, em sua totalidade, seja favorecida.

A cidadania aloja-se, também, na propositura de soluções em conjunto,

mas relevante ressaltar que isso não é sinônimo de uma substituição de papéis. Se
64

por vezes o Estado se ausenta de efetivar os direitos garantidos em esfera

constitucional pela não execução (e em certos casos até de não formulação) de

políticas públicas, não quer dizer que a sociedade civil, através do chamado terceiro

setor tenha que fazer as vezes deste. Ela deve se organizar para identificar estas

lacunas e mobilizar-se para que o Estado venha a supri-las.

O Estado mínimo é necessário. Ele é o único ente, dada a sua

característica inerente de ser para e pelo público, de promover a justiça e a

eqüidade no âmbito sócio-político. Ele deve ser o mediador dos conflitos de

interesses para que prevaleça sempre aquele que atenda à maior parte dos

concidadãos, da maneira mais justa possível.

O Brasil assistiu a um crescimento exponencial de organizações não-

governamentais nos últimos dez anos39. Contudo, tal aspecto não denota que o

chamado terceiro setor tenha capacidade de gerir a nação no âmbito das políticas

sociais. Tal posicionamento seria, inclusive, antidemocrático. Referidas organizações

surgem para contribuir para a construção de uma sociedade mais equilibrada

socialmente, complementando a atuação do Estado.

A democracia participativa clama pela atuação em conjunto de todos

os setores da sociedade. Sob esta ótica, poderíamos nos libertar da divisão entre

primeiro, segundo e terceiro setores. Estamos nos referindo à sociedade como um

39
O Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) acusou um crescimento de 208% em sua
rede de associados em dez anos. Hoje, especificamente na área de educação, conta com 75
associados (www.gife.org.br). Já a Associação Brasileira de Organizações Não – Governamentais, a
ABONG, identifica 93 organizações atuando na área de educação no Brasil atualmente. Dados
disponíveis em http://www.abong.org.br.
65

todo, que colabora com seus diferentes talentos e capacidades na tentativa da

resolução de suas necessidades econômicas, sociais e políticas.


66

CAPÍTULO III

O descompasso das políticas públicas frente à realidade

educacional brasileira

1. Conceito de política pública

As políticas públicas são o modo efetivo do Estado de responder às

demandas que emergem da sociedade e do seu próprio interior, através da previsão

legal de direitos e garantias. São também expressão do compromisso público de

atuação, em longo prazo, em uma determinada área.

Seriam, nas palavras de Maria Paula Dallari Bucci40, uma “evolução em

relação à idéia da lei em sentido formal”.

A política social é um tipo de política pública, cuja expressão se dá

através de um conjunto de princípios, diretrizes, normas e objetivos, de caráter

permanente e abrangente, que orientam a atuação do poder público em uma

determinada área.

Uma política pública educacional deve ser orientada pelos valores de

igualdade e eqüidade de oportunidades na educação. O primeiro vem inserido em

uma meta social na qual se estabelece que as pessoas ou grupos de pessoas

devem ser tratados de forma igual - ou desigual - o que denota sua íntima ligação

40
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p.
252.
67

com normas de distribuição de benefícios e custos. A distribuição igualitária de

determinado recurso pode não ser eqüitativa.

Já o conceito de eqüidade, mais amplo que o primeiro, pode ser

traduzido como o de igualdade de oportunidades. Se entendemos, sem dúvida

alguma, como já exaustivamente exposto anteriormente, que a educação é o

instrumento que tem o poder de romper com a perpetuação da injustiça social (que

por sua vez é sustentada pela desigualdade na distribuição de renda), ela deve estar

ao alcance de todos. Assim, o acesso à educação de qualidade é condicionante

para o acesso às oportunidades.

Interessante mencionar, brevemente, a questão da descentralização; o

conceito vem sendo popularmente disseminado, sendo reclamada sua incorporação

às políticas públicas. Isso porque a participação popular no que tange à colaboração

na formulação e fiscalização das mesmas é mais acessível quando falamos em

políticas públicas em nível municipal, posto que a proximidade entre governo e

sociedade é mais visível nesta esfera.

Contudo, a descentralização traz em seu bojo alguns problemas,

consoante a sensata observação de Gilberto Bercovici41

O grande problema da repartição de rendas realizada pela


Constituição de 1988 foi ter sido realizada a descentralização de
receitas e competências sem nenhum plano ou programa de
atuação definido entre União e entes federados. (...) No entanto,
após a Constituição de 1988, de modo lento, constante e
desordenado, os Estados e Municípios vêm substituindo a União

41
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad,
2003, p. 180.
68

em várias áreas de atuação (...), ao mesmo tempo em que outras


esferas estão sem qualquer atuação governamental graças ao
abandono promovido pelo Governo Federal.

No que se refere à Educação, fica claro que o financiamento das ações

chega na frente das próprias ações. Inexiste, conforme já apontado, um plano que

priorize ações dentro do sistema educacional brasileiro. Da mesma forma, consoante

se verificará no item 2 deste capítulo, muitas falhas no sistema de educação vêm

sendo constatadas exatamente pela ausência de planejamento.

2. As propostas do Estado brasileiro

O período a ser analisado neste item será delimitado a partir da

promulgação da Carta Constitucional, em 1988.

Primeiramente, destacamos o FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do

Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), implantado em 1998. Até este

ano, a legislação estabelecia que 50% das verbas vinculadas à educação deveriam

ser usadas na erradicação do analfabetismo e universalização do ensino

fundamental, dispositivo constitucional que nunca foi cumprido. Com a criação do

Fundo, 60% dos recursos vinculados à educação passaram a ser destinados ao

ensino fundamental.

Contudo, esta atual estrutura deixa de atender importantíssimo

segmento: o da educação infantil. Frente a esta problemática, foi elaborado o projeto

do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de


69

Valorização dos Profissionais da Educação), que amplia o repasse da verba de

modo a incorporar esta relevante etapa da educação.

O FUNDEB é composto de vinte e sete fundos estaduais, que são

alimentados por parte dos impostos municipais e estaduais, como, FPM, ICMS, IPI,

IRRF e IPVA42. Os impostos exclusivos dos municípios (IPTU, ISS e ITBI)43, com

exceção do ITR44, não são direcionados ao Fundo, contrariamente ao ITCMD45,

imposto de arrecadação exclusivamente estadual. A contribuição inicia-se em

16,25%, com o intuito de alcançar 20% no quarto ano de vigência do Fundo único,

assim permanecendo até o término de vigência do FUNDEB. A emenda que cria o

Fundo prevê vigência de catorze anos, de 2006 a 2019.

O montante das contribuições é repartido entre a administração

estadual e as municipais, de acordo com o número de matrículas que cada esfera

administra. Os Estados recebem o repasse pelos alunos dos ensinos fundamental e

médio, e pelos matriculados na educação de jovens e adultos, bem como pelos

alunos dos cursos profissionalizantes. Já aos municípios o repasse é direcionado

para que financie as crianças inseridas na pré-escola e nos estabelecimentos de

ensino fundamental sob sua responsabilidade.

Os valores de financiamento variam segundo o nível do sistema de

ensino (pré-escola, fundamental ou médio). O valor estabelecido por aluno em cada

42
As siglas significam, na ordem do texto: Fundo de Participação dos Municípios; Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços; Imposto sobre Produtos Industrializados; Imposto de Renda
Retido na Fonte e Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores.
43
Os impostos municipais acima referidos são: Imposto Predial e Territorial Urbano; Imposto sobre
Serviços e Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis.
44
Imposto Territorial Rural.
45
Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos.
70

uma dessas modalidades também difere de acordo com a região (em um estado

com maior capacidade fiscal, ou seja, maior poder de arrecadação, o valor do

repasse referente a um aluno do ensino médio será maior), mas nunca poderá ser

inferior ao valor nacional. Nesses casos, atestada a incapacidade do repasse

mínimo por parte de um estado, a União complementará o investimento até o teto

definido nacionalmente. O valor real por aluno será ainda definido pela lei que

regulamentará o FUNDEB, após sua aprovação.

O investimento é feito diretamente na conta do Fundo, cabendo à

administração estadual redistribuí-lo aos municípios. A proposta do FUNDEB prevê

exclusivamente para este fim R$ 4,3 bilhões do orçamento federal, a serem

repassados nos primeiros quatro anos do Fundo46.

A Proposta de Emenda Constitucional ainda estabelece que, dos 18%

de impostos da União vinculados à Educação (art. 212 da Constituição Federal), só

poderão ser aplicados, no máximo, 30% no FUNDEB. Isso equivale a R$ 1,3 bilhão

dos R$ 4,3 bilhões previstos. Segundo o texto, o restante deve advir da redução

permanente de outras despesas em ações e programas educacionais. 47

A proposta inicial do FUNDEB incorreu em grave erro: a não-inclusão

da faixa etária dos 0 aos 3 anos, o que acarretaria a exclusão imediata de treze

milhões de crianças das creches.48 Tal falha foi felizmente corrigida, após intensa

46
Os valores serão corrigidos pelo IPC.
47
Boletim da Agência Nacional dos Direitos da Infância, nº 66, julho de 2005.
48
Dados divulgados pela Ação Educativa. Disponíveis em http://www.acaoeducativa.org.br.
71

mobilização da sociedade em diversos fóruns nacionais e estaduais sobre a

matéria.49

Outros dois aspectos críticos, mas (ainda) não vencidos dizem

respeito, respectivamente, à não-reserva de verbas para novas matrículas, o que

culmina por manter a decisão sobre o custo por aluno nas mãos da União (sendo

que a Educação Infantil e o Ensino Médio são, respectivamente, de competência do

município e Estado), e a uma política apontada por muitos profissionais da educação

como sendo de curto prazo (catorze anos).

De acordo com a proposta aprovada pela Câmara, o FUNDEB será

composto de 20% das receitas dos estados e do Distrito Federal, ficando a cargo da

União a complementação de recursos quando o valor anual por aluno não alcançar o

mínimo definido.

Este valor complementar, conforme aprovado pela Câmara, será

progressivo, iniciando-se em R$ 2 bilhões, aumentando para R$ 2,85 bilhões no

segundo ano de vigência, para R$ 3,7 bilhões no terceiro ano e, finalmente, para R$

4,5 bilhões no quarto ano, valor que será mantido até o término da vigência do

fundo. Serão diretamente beneficiados cerca de 48 milhões de alunos. A previsão

dos recursos no quarto ano de vigência do FUNDEB gira em torno dos R$ 50

bilhões50.

49
Destaque para o Movimento da Rede de Monitoramento da Educação Infantil, que congregou
diversas organizações da sociedade civil a fim de pressionar o governo pela inclusão das creches no
FUNDEB.
50
Dados oficiais do Ministério da Educação. Disponíveis em http://www.mec.gov.br.
72

Ocorre que até a data de conclusão deste texto, o Senado não havia

aprovado o projeto do Fundo, o que é extremamente alarmante, já que foi concebido

para substituir o vigente FUNDEF, que perde a validade no final do ano de 2006.

Destarte, não havendo FUNDEB para substituí-lo, para onde seguirá a Educação no

Brasil, que aguarda um repasse certo por parte da União para o ano de 2007, mas

não tem aprovado o Fundo legal para recebê-lo?

Ainda, outro aspecto preocupante e até o momento não abordado pelo

Governo no âmbito de discussão do FUNDEB é a fiscalização dos recursos

destinados à educação. O Ministério da Educação, em dez anos de vigência do

FUNDEF não desenvolveu qualquer mecanismo de controle visando à coibição da

evasão do dinheiro. O governo federal, contudo não se posiciona no sentido de

definir de quem é a responsabilidade pela fiscalização da aplicação idônea das

verbas, se do próprio Ministério da Educação, se do Tribunal de Contas da União, se

dos Tribunais Estaduais e Municipais. O crítico é que, muito embora o problema

para qualquer ação ou programa seja sempre o de falta de verbas para tal, não se

contemplou, no FUNDEB, verba para a fiscalização da aplicação dos recursos.

Ainda que se entenda a não-competência da alocação de verba para

ações dessa natureza dentro do Fundo de Financiamento para a Educação, esta é

uma estratégia que necessariamente deve ser pensada para o sucesso de um

programa de governo. Este fato é extremamente discutível, dado que a fiscalização

das verbas passa a ser tão importante quanto a construção de escolas ou

capacitação de professores; na realidade é condição primeira para que todos esses

resultados aconteçam.
73

Finalmente, cabe fazer referência à Lei nº 10.172/01, que aprova o

Plano Nacional de Educação. Desta forma, fica determinado que Estados, Distrito

Federal e Municípios deverão elaborar seus planos decenais de educação (art. 2º),

assim como processos de avaliação periódica no tocante à implementação do Plano

(art. 3º).

Nestes processos de avaliação encontra-se abertura à participação da

sociedade, através de fóruns sobre o tema nas respectivas localidades onde as

metas são buscadas.

O Relatório de Diagnóstico Regional51, elaborado pelo Ministério da

Educação, estabelece o acompanhamento e avaliação do Plano Nacional e dos

planos decenais correspondentes. Com o intuito de se esboçar uma pequena

fotografia da situação da educação no Brasil hoje, autorizamo-nos a transcrever

alguns dados referentes à educação básica.

Dentro do cenário da Educação Infantil, uma das metas é a ampliação

da sua oferta para até 50% à população de zero a três anos de idade até o ano de

2010. Para as crianças na faixa etária dos quatro aos seis anos, a meta é que a taxa

de atendimento chegue, no mesmo ano, a 80%. Contudo, a projeção da taxa para o

atendimento na primeira infância (dos zero aos três anos de idade) mostra que,

mantido o crescimento histórico, a meta não será alcançada, chegando a apenas

51
As informações aqui transcritas não foram, ainda, publicadas oficialmente pelo Ministério da
Educação. Os dados foram socializados no Seminário Regional de Avaliação do Plano Nacional de
Educação e Planos Estaduais e Municipais correspondentes, na cidade do Rio de Janeiro, no período
de 19 a 21 de junho de 2006.
74

17,5%. No caso da população de quatro a seis anos de idade, há grandes

possibilidades de cumprimento integral da meta pretendida.

De maneira geral, o relatório estabelece como maiores desafios para

este segmento o aumento progressivo da escola integral na pré-escola, o aumento

da oferta de creches, melhor capacitação dos professores e melhor infra-estrutura

dos equipamentos.

Quanto ao ensino fundamental, o foco é a redução em 50% das taxas

de repetência e evasão no período de cinco anos.Segundo dados do Censo Escolar

2003, 28,9% dos alunos que cursavam a primeira série não conseguiram progredir;

e, em relação à taxa de evasão, o país concentra as taxas mais elevadas nas séries

finais: em 2003, 12,5% dos alunos que cursavam a oitava série abandonaram o

curso antes de seu término. Em uma projeção futura, o país conseguiria apenas

atender a meta referente à repetência.

O Relatório acrescenta ainda que a redução da repetência e da evasão

está diretamente ligada à infra-estrutura das escolas, que está aquém do padrão

desejável; em 2003, apenas 57,4% dos alunos cursavam escolas com bibliotecas,

30,9% freqüentavam escolas com laboratório de informática, 19,9% dos alunos

tinham acesso a laboratório de ciências, 54,7% usufruíam de quadra de esportes em

sua escola e apenas 33,1% cursavam escolas com acesso a Internet. A formação de

docentes é outro aspecto preocupante (apenas 36,1% dos professores das séries

iniciais têm curso superior).


75

Finalmente, quanto à universalização (garantia de acesso e

permanência de todas as crianças na escola), a Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios (PNAD) de 2003 já apontava em 97,2% a taxa de atendimento, o que

denota uma tranqüilidade em se alcançar plenamente esta meta.

Já no âmbito do Ensino Médio, o Plano estabelece a redução em 5%

da repetência e evasão, objetivando diminuir para quatro anos o período deste nível

de ensino.

A análise histórica da taxa de repetência no país durante o período de

1998 a 2003 mostra praticamente uma estagnação, o que igualmente ocorre com a

evasão. Se mantida esta tendência histórica, as projeções destas taxas apontam a

impossibilidade do cumprimento das metas. Mas, semelhantemente ao verificado no

Ensino Fundamental, a infra-estrutura das escolas influencia na variação destas

taxas, assim como a melhor preparação dos professores. Uma das metas do Plano

é poder oferecer vagas para atender 100% da demanda (população dos quinze aos

dezessete anos de idade) até o ano de 2010, mas de acordo com as projeções

realizadas, conseguirá fazê-lo para apenas 65,7% do seu público-alvo.

Concluindo, o Relatório aponta, em todos os níveis da Educação

Básica o longo caminho que o Brasil ainda tem pela frente, no que se refere ao

atendimento mínimo das metas estabelecidas a partir de suas atuais diretrizes.


76

3. Orçamento para a Educação

3.1. Aspectos gerais

A problemática da educação, como se vê, é extremamente complexa.

Tornando os olhos para o campo das realizações, a direção primeira que se deve

mirar é a do orçamento, que revelará claramente o encontro ou desencontro do

discurso com a vontade política.

A Constituição Federal Brasileira determina que a União deve aplicar

pelo menos 18% de sua receita líquida proveniente de impostos (excluídas as

transferências) na manutenção e desenvolvimento do ensino. Os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios, por determinação da mesma natureza, devem aplicar pelo

menos 25% de suas receitas líquidas de impostos com a mesma finalidade. Há

ainda, no texto constitucional, o salário educação como fonte adicional de

financiamento do ensino fundamental.

Antes da Emenda nº 14, que criou o Fundo de Manutenção do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o artigo 60 do Ato das

Disposições Transitórias previa o investimento de “não menos que 60%” das verbas

vinculadas à educação, acima mencionadas, na erradicação do analfabetismo e na

universalização do ensino fundamental, por um período de dez anos. Referido

dispositivo constitucional nunca foi cumprido.


77

Em sua proposta original, a Emenda nº 14 eliminava esta exigência,

mas a proposição acabou sendo aprovada com a obrigação do investimento de pelo

menos 30% do equivalente às vinculações previstas.

Fica clara a ausência de uma política de educação séria e planejada

por parte do Estado brasileiro nas últimas décadas. O prazo decenal estabelecido

pela Constituição nunca foi respeitado, ou seja, inexiste um planejamento a longo

prazo em relação à educação para que esta atinja um nível digno de qualidade.

O planejamento técnico deve estar vinculado ao orçamento, e ambos

devem ser pensados em longo prazo, para que se atinjam resultados efetivos.

Contudo, o governo brasileiro somente se propõe a estabelecer um planejamento

orçamentário de quatro anos, o chamado plano plurianual.

Alie-se a isso a característica permissiva do orçamento, no sentido de

sua não-executabilidade. Ainda que a Constituição enuncie a prioridade das

crianças e adolescentes no planejamento orçamentário (art. 227), são freqüentes os

cortes e remanejamentos nessa área. Isso porque o orçamento é meramente

autorizativo e não obrigatório.

3.2.Passos para a elaboração do orçamento federal

O processo desde a elaboração até a sanção do orçamento federal

ocorre da seguinte forma: os grandes investimentos que serão feitos em quatro anos

de gestão são de antemão identificados no plano plurianual. Este, por sua vez, entra
78

em vigência a partir do segundo ano do mandato em curso e se extingue ao fim do

primeiro ano do mandato do governo seguinte.

Nos quatro primeiros meses do ano, os trabalhos concentram-se em

torno da elaboração do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias52, primeira etapa

na construção do orçamento público anual, que deve ser enviado ao Congresso

Nacional, para aprovação nas duas Casas, onde será votado.

Ato contínuo, o Executivo formula o projeto da Lei Orçamentária Anual,

que detalha o orçamento público do ano. A única exigência é que a mesma seja,

logicamente, compatível com os programas e previsões constantes tanto no Plano

Plurianual quanto na Lei de Diretrizes Orçamentárias. O projeto deverá, então, ser

enviado à apreciação dos parlamentares até a data de 31 de agosto. Uma vez no

Congresso, o projeto segue para a Comissão Mista de Orçamento, onde a proposta

é dividida em dez comissões setoriais53, que têm quinze dias para apresentar

emendas, cujo único impedimento é a dotação abaixo do valor estabelecido em texto

constitucional. Finalizados os relatórios, são enviados, no formato de documento

único, à Plenária do Congresso, que deverá realizar a votação até o fim do ano

fiscal, encaminhando-o, na seqüência, para a sanção presidencial.

52
Esta lei é a responsável por orientar o direcionamento do orçamento do ano seguinte, servindo de
base para a Lei Orçamentária Anual, que fixa os valores das despesas governamentais e estima as
receitas públicas.

53
Constituem os dez setores da Comissão Mista de Orçamento: Justiça e Defesa; Fazenda e
Desenvolvimento; Agricultura e Desenvolvimento Agrário; Infra-estrutura; Educação, Cultura, Ciência
e Tecnologia, Esporte e Turismo; Saúde; Previdência e Assistência Social; Integração Nacional e
Meio Ambiente; e Planejamento e Desenvolvimento Urbano.
79

O processo é similar nas esferas estadual e municipal, que elaboram

seus projetos da Lei de Diretrizes Orçamentárias por meio de suas respectivas

secretarias de planejamento, e aguardam sua aprovação ou eventuais ofertas de

emendas por parte das Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais. Os prazos

para encaminhamento, aprovação e devolução ao Chefe do Poder Executivo tanto

da Lei de Diretrizes Orçamentárias quanto da Lei de Orçamento Anual são

determinados, em cada estado, pelas Constituições Estaduais.

3.3. Justificativas para o investimento em educação

Não há que se discutir que o investimento em educação básica afeta

diretamente o desenvolvimento qualitativo de uma nação. É o principal propulsor dos

países para a elevação de seu índice de desenvolvimento humano (IDH). Dados

divulgados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em

setembro de 2005, apontam que o investimento sério em educação mostra

resultados concretos. É o caso da Uganda54 que com pesados investimentos em

educação durante a década de 90, conseguiu elevar seu IDH (Índice de

Desenvolvimento Humano) a ponto de ultrapassar a marca de 0,500, que, para o

estudo, separa as nações de médio e baixo desenvolvimento humano55.

O investimento público naquele país em ensino básico subiu de US$

5,3 milhões para US$ 7,6 milhões, entre 1997 e 2003. Ainda, as taxas de matrículas

entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos passaram a ser as mesmas; a

diferença percentual entre meninos e meninas nas escolas foi eliminada. O estudo

54
INFANTE, Alan. Uganda aposta na educação e salta no IDH. Disponível em
http://www.pnud.org.br/noticias.
55
PNUD. Desenvolvimento Humano e IDH. Disponível em http:// www.pnud.org.br/idh.
80

indica que ainda há problemas, principalmente em relação ao controle da taxa de

evasão escolar, mas é indiscutível a existência de um resultado concreto devido ao

investimento ao longo da década passada.

Da mesma forma, estudos56 realizados nos últimos vinte anos já não

deixam dúvida:

Os primeiros anos da infância correspondem ao período


de maior sensibilidade, quando o cérebro precisa de estímulos
para criar ou fortalecer estudos mentais, cognitivos e emocionais.
Isso porque até os 6 anos de idade formam-se 90% das sinapses
cerebrais.(...) é o período no qual, neurologicamente, as crianças
estão mais propensas a desenvolver várias habilidades.

O investimento em educação infantil traz benefício direto óbvio a

milhares de crianças, como o desenvolvimento integral na faixa de 0 a 3 anos de

idade, e o impacto na vida social, garantindo uma vida adulta melhor. Foi igualmente

constatado que crianças inseridas em programas de educação infantil têm melhor

colocação profissional e maiores salários, assim como enfrentam menor

probabilidade de engravidarem na adolescência ou de cometerem crimes, do que

crianças excluídas da educação infantil.57

Uma outra pesquisa58, elaborada pelo Banco Mundial, também aponta

a economia que o Estado faz no futuro investindo na educação infantil, divulgando

que a criança que teve acesso a ela incorre em menor probabilidade de repetir ou de

sofrer defasagem entre a idade e a série. Assim, fica claro que centrar esforços na

56
UNICEF. Relatório da situação da infância brasileira 2006, p. 67.
57
Idem.
58
BANCO MUNDIAL.Desenvolvimento da primeira infância: foco sobre os impactos da pré-escola.
Brasília, 1999.
81

educação até os quatro anos de idade (sobretudo nas famílias de baixa renda) é

investimento com retorno garantido.

O estudo Desenvolvimento da Primeira Infância, realizado pela mesma

organização em conjunto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),

registra:

As intervenções de desenvolvimento da primeira infância


permitem que as crianças pobres entrem na escola com uma
base de desenvolvimento em equilíbrio com a de seus colegas
mais ricos, quebrando assim o ciclo persistente de transferência
de pobreza entre as gerações.59.

As creches hoje não mais detêm o mero papel de local para acolhida

de crianças pertencentes a famílias de baixo poder aquisitivo, no período em que

suas mães estão trabalhando. São, como já apontado, espaços para a realização da

primeira e fundamental etapa da formação daquela criança, que tem direito de

freqüentá-la.

O não-investimento60 em educação infantil é uma irresponsável

concordância com o apontado determinismo que espreita o futuro de milhares de

crianças brasileiras.

59
Boletim da Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI), nº 66, julho de 2005. Disponível em
http:// www.andi.org.br.

60
De acordo com o divulgado no Boletim nº 66 da ANDI, “apesar da importância da Educação Infantil,
é pequena a parcela de meninos e meninas brasileiros que a freqüentam em sua totalidade (...)
somente 11,7% estão inseridos nas creches. Apenas 8% desses beneficiados pertencem a grupos
familiares com renda per capta de até ½ salário mínimo. A título de comparação, a situação de
crianças de 7 a 14 anos oriundas de famílias nessa mesma condição é bem diferente: 95,7%
freqüentam escolas.
Os dados levam à conclusão de que uma das parcelas da população infantil mais necessitadas de
apoio governamental está excluída da proposta do Fundeb. De acordo com as entidades integrantes
da mobilização, somente com o aumento dos investimentos públicos no setor será possível reverter
esse quadro.”.
82

A atenção neste segmento do ensino, e especialmente na faixa etária

de zero aos três anos é enfatizada nestas linhas porque se trata também de aceitá-

la culturalmente, aspecto que, já é mais tranqüilo ao se falar do investimento nos

ensinos fundamental e médio. As creches e pré-escolas só foram oficialmente

reconhecidas como um direito da criança e integradas à educação básica há dez

anos atrás. Esta mudança implica em ajustes e orientações para que referidas

instituições evoluam do cuidado básico à prática educacional, que guarda extrema

relevância neste período da vida da criança, conforme exaustivamente justificado

acima.

Destarte, incorporadas à Educação Básica, creches e pré-escolas

passam a disputar seu espaço também no orçamento. Contraditoriamente, há um

embate interno, entre Educação Básica e Ensino Superior. O Estado, que não

prioriza a educação como um todo no país (haja vista o decrescente orçamento

destinado para a área desde 1998), acaba por cometer a atrocidade de escolher a

educação em que irá investir.

A reforma universitária proposta pelo governo, e que hoje aguarda

apenas a assinatura do presidente para sua aprovação, mina toda a discussão

acerca do aumento da destinação orçamentária à educação básica. O projeto

propõe que o Ministério da Educação (MEC) repasse 75% de sua verba para as

universidades federais, o que aumentará em R$ 1 bilhão o custeio das

universidades61. É inevitável que nesta matemática o prejudicado seja o ensino

61
O Estado de São Paulo, 13/05/06, p. A6.
83

básico, já que não há previsão de aumento do orçamento global destinado à

educação.

O corte orçamentário em uma agenda prioritária ao desenvolvimento

nacional não encontra justificativa racional. A escolha em relação à alocação do

recurso arrecadado pelo Estado não é condizente com o clamor da própria

sociedade. Neste sentido, pontua Hayek:62

The economic problem of society is thus not merely a


problem of how to allocate ´given´resources (...). It is rather a
problem of how to secure the best use of resources known to any
of the members of society, for ends whose relative importance
only these individuals know.

Este recorte da realidade denota mais uma vez que as pequenas

conquistas para o justo (a vitória da inclusão das creches no FUNDEB), estes

pequenos fragmentos de libertação, são engolidos pela totalidade injusta, que

impede as transformações sociais, mantendo a lógica da exclusão.

3.4. Perspectivas e Conclusão

No Brasil, se analisarmos o gasto público com educação como

porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), no período de 1994 a 1999, veremos

que houve um crescimento relativamente baixo, de 0,4%.63. Não podemos esquecer

de que se trata do investimento em educação como um todo, ou seja, desde o

62
HAYEK, Friedrich August. The use of knowledge in society/ The American Economic Review,
number four, volume XXXV. Setembro, 1954.
63
IPEA/DISOC, IBGE/MP e INEP/MEC – Anexo 14. Gasto Público como Porcentagem do PIB de
1994 a 1999.
84

ensino básico até o superior. Os feitos dos governos em relação à educação no país

estendem-se apenas à promulgação de leis, ou sanções de emendas e decretos;

estes são, sem dúvida, o primeiro passo. Mas o que justifica nunca seguir adiante?

O que justifica os esforços em se aprovar leis com forte impacto no financiamento da

educação, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o FUNDEF

e o próprio Plano Nacional de Educação se a porcentagem do PIB gasto com ensino

é de 4%, ao passo que 8% ficam reservados aos juros e encargos da dívida

pública?64

Ultimamente, vem se discutindo acerca da negociação pela troca de

parte da dívida externa dos países em desenvolvimento por investimentos em

educação, recém-aprovada, unanimemente, pela Organização das Nações Unidas

para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em sua 33ª Conferência Geral. O

Brasil, ao lado de países como Argentina, Venezuela e Costa Rica teve importante

papel para a aprovação do apoio à conversão. E vem trabalhando no sentido de

conseguir o benefício, a exemplo do que concretizou a Argentina, que obteve o

perdão de parte de sua dívida (60 milhões de euros) com a Espanha.

Atualmente, a dívida líquida brasileira é de R$ 192,75 bilhões, sendo

que 79% desse valor não podem ser convertidos, por se tratar de dívida mobiliária.

O débito com o Clube de Paris - grupo de credores formado por países do primeiro

mundo - é de R$ 8,81 bilhões.65

64
Dados referentes ao período de 1995 a 2002.
65
Disponível em http:// www.mec.gov.br.
85

Ao se discutir seriamente um plano de desenvolvimento nacional,

torna-se imprescindível a elaboração de uma política nacional de educação como

um dos pilares deste necessário programa. A escolha acerca do investimento do

dinheiro público é a concretização da vontade política de se cuidar de pontos

prioritários ao país. Estas questões não devem estar em níveis inferiores ao da

política econômica. As políticas sociais e econômicas se complementam, não se

determinam66. Destarte, não há que se pensar em desenvolvimento apenas pela

ótica da economia, mas pela perspectiva de um engrandecimento da nação, tendo

por base a superação individual do índice de desenvolvimento humano dos países.

66
DEMO, Pedro. Política Social, Educação e Cidadania. Coleção “Magistério: Formação e Trabalho
a
Pedagógico”. 4 edição. Campinas: Ed Papirus, 2001, p. 16.
86

CAPÍTULO IV

Esperanças de uma educação emancipadora

Para que se viabilize, praticamente, esta educação emancipadora, há

que se ter claro, primeiramente, que o espaço social em que ela ocorre é o da

escola. “Se a educação é um processo de transformação do indivíduo e da

sociedade, a escola não pode ficar isolada das lutas mais globais da sociedade”67. A

escola pública, que por ser exatamente pública, no sentido de possibilitar a

convivência das diferenças e de fortalecer a atuação política, deve ser o local onde

esta educação acontece.

Também, é preciso investir no educador, não no especialista. O

educador observa a realidade social e educacional de uma maneira global, não

recortada, como o faz o especialista. Este elege como principal objetivo a mais

perfeita formação técnica de seus alunos, pondo de lado sua formação humana e

política.

O educador ao qual nos referimos é aquele comprometido não com a

burocracia do sistema educacional, mas com os alunos, os pais dos alunos, a

comunidade em que estão inseridos, e com todos aqueles indivíduos excluídos da

escola. Seu papel é o de organizar a cultura, não de reproduzir a lógica injusta

estabelecida. É o de formar cidadãos, motivando-os a participar da vida pública,

superando os obstáculos no processo de identificação do como realizar tal

empreendimento. “Apesar das dificuldades encontradas, o educador pode ainda

67 a
GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 9 edição. São Paulo:
Cortez, 1995, p. 155.
87

ensinar não só a ler e escrever, mas ensinar a falar. Ensinar a falar, a gritar, que é o

papel político do educador.”68

A educação é um processo de transformação do indivíduo e da

sociedade, adquirindo papel essencial na construção de um novo paradigma que

indique alternativas à lógica vigente, injusta, conformada na consciência coletiva.

Ilustra, nesse sentido, Hannah Arendt69

Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus


níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era
exclusivamente do lar doméstico. Ao invés da ação, a sociedade
espera de cada um dos seus membros um certo tipo de
comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas
tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los
‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou reação
inusitada.

A educação para a emancipação não cabe nos estreitos limites do

conformismo. Ela encontra seu sentido na medida em que é concebida como ação e

como autonomia. A esperança na abolição desta condição de não-ação encontra

grandes aliados tanto na educação quanto no Direito; aquela enquanto educação

para a cidadania democrática, este enquanto busca do justo. Ambos direcionando

seus esforços para a transformação social.

Quando Bobbio70 discorre acerca de resistência e contestação como

meios para se combater a opressão, estabelecendo que a contestação extrapola o

caráter de mero comportamento, passando a figurar como uma “ruptura, uma atitude

68
Ibidem, p. 156.
69
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p.
50.
70
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 144.
88

de crítica, que põe em questão a ordem constituída sem necessariamente pô-la em

crise”, entendemos que este questionamento, por si próprio, já inicia o processo de

transformação. Neste momento é que se revela o protagonismo indelével da

educação, já que ela instrumentaliza a contestação, que, em um segundo momento,

culminará na mudança do modelo cultural que legitima as injustiças.

Do Brasil, dizem as letras das músicas que é o país do futuro. Este

futuro, que implica em uma vida social com dinâmicas de relações menos violentas

em todos os seus sentidos (político, humano e econômico), começa a ser construído

pela educação que sua sociedade escolhe praticar, trocar, disseminar.

A transformação, sem dúvida, é lenta. A educação promove a

transformação no cotidiano, de forma imperceptível a olho nu, mimetiza um escultor

em seu trabalho, no ato de modelar, aos poucos, seu objeto: o ser humano.
89

CONCLUSÃO

Indiscutível que as desigualdades sociais brasileiras carregam o peso

de uma herança histórica; mas esta mesma história em que estão inseridas é

dinâmica, avança para o futuro, possibilita mudanças.

O Estado tem o papel de planejar propostas de enfrentamento das

desigualdades sociais. Este enfrentamento, que hoje se traduz na roupagem das

políticas sociais, note-se, não chegará à completa eliminação destas desigualdades,

mas possibilitará significativa redução das mesmas.

71
A Organização Internacional do Trabalho divulgou recentemente, em

seu Relatório Global, a concreta relação entre freqüência escolar e trabalho infantil.

Paralelamente, não se constata um compromisso real quanto ao investimento na

qualidade das escolas, e não só com relação ao ensino, mas também a projetos de

inclusão social que contribuam no combate à evasão escolar. Consoante o exposto

no capitulo anterior, as políticas que cuidem deste aspecto específico nem sequer

foram elaboradas depois de dez anos passados desde a promulgação da LDB.

71
Disponível em http://www.estadao.com.br/educacao/noticias/2006/mai/04/288.htm. "A forma que a
criança vive a infância vai determinar toda a vida dela quando adulta". De acordo com o relatório,
lançado no Palácio do Planalto, os números de trabalhadores infantis em todo o mundo caíram 11%
entre 2000 e 2004 - de 246 milhões para 218 milhões. No Brasil, os índices de crianças de cinco a
nove anos que trabalham caíram 61% de 1992 a 2004. Na faixa etária de dez a 17 anos, a
exploração diminuiu 36%. O documento avalia que políticas sociais de manutenção das crianças na
escola e seu sucesso escolar, conjugadas com a melhoria dos rendimentos familiares, têm
alto impacto na redução do trabalho infantil. O relatório da OIT atribui a redução do trabalho infantil à
vontade política, à conscientização e a ações concretas, particularmente no campo do combate à
pobreza e da educação. De acordo com o texto, a América Latina e o Caribe tiveram a queda mais
rápida do trabalho infantil nos últimos quatro anos.”
90

Vivemos em uma sociedade que produz para produzir; o interesse se

encerra na produção de bens úteis, que tragam lucro e, conseqüentemente, a

acumulação do capital. É uma sociedade formalmente igualitária, mas efetivamente

(e historicamente) desigual. Como inserir, nesta lógica, esta educação

emancipadora?

O grande desafio da Educação é colocado: sobrepor a qualificação

humana às leis do mercado, quebrando sua potencialidade inerente de figurar como

instrumento de dominação. Como bem lembra Frigotto72,

A qualificação humana diz respeito ao desenvolvimento de


condições físicas, mentais, afetivas, estéticas e lúdicas do ser
humano (condições omnilaterais) capazes de ampliar a
capacidade de trabalho na produção dos valores de uso em geral
como condição de satisfação das múltiplas necessidades do ser
humano no seu devenir histórico. Está, pois, no plano dos
direitos, que não podem ser mercantilizados e, quando isso
ocorre, agride-se elementarmente a própria condição humana

A educação que desejar uma sociedade justa objetiva a construção do

cidadão, incutindo-lhe a noção de convivência solidária para além da competição e

da concorrência, provocando-lhe a contínua auto-educação para o exercício de sua

cidadania tanto individualmente como em relação a outros sujeitos.

Uma revolução nos destinos do país como se pretende não se dará a

partir da ação individual, mas de um bloco de forças que se unem, visando o projeto

comum de um Brasil mais justo. Esta revolução se inicia na educação que

escolhemos praticar.

72
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 5ª edição. São Paulo: Cortez,
2003, p. 31-32.
91

Constata Cristóvão Buarque73

O Brasil carrega toda a tragédia e toda a potencialidade


do final do século XX. E está descobrindo a necessidade de
mudança. Diferentemente de outros países ricos, que não têm
necessidade de mudanças, dos muito pobres e pequenos que
não têm condições de imaginar ou construir mudanças, ou de
países como a China e a Índia, que não sofrem nossas pressões
internas, o Brasil tem todos os ingredientes da crise e de sua
alternativa. Por isso, pode ser o local onde uma nova
modernidade ética poderá surgir. Uma modernidade ética que
coloque os valores éticos da sociedade como os valores
determinantes dos objetivos sociais, estes como definidores da
racionalidade econômica, para se ter a opção técnica mais
conveniente, afinal. Isso representa uma subversão total na atual
hierarquia do avanço técnico definindo a racionalidade
econômica, que determina os objetivos sociais a serem
atendidos, relegando os valores éticos da sociedade.

Resta aí a esperança de uma educação para a cidadania democrática:

a derradeira emancipação dos indivíduos, em prol de uma sociedade não excludente

e solidária. De uma sociedade, enfim, mais justa.

73
BUARQUE, Cristóvão. A segunda abolição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 38.
92

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