Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Os Ofícios de Trevas, parte do antigo Ofício Divino, foram estabelecidos nos primórdios da
era cristã, modificados durante o período medieval e, com a Contrarreforma, ganharam
dramaticidade através dos efeitos de luz e sombra. Esses Ofícios consistem de uma série de
rituais litúrgicos contemplando o sofrimento, a paixão e a ressurreição de Cristo durante os
últimos três dias da Quaresma na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar da cidade de
São João del-Rei, Brasil. Essa cidade vem dando continuidade a essa tradição há mais de 300
anos devido à distinta topografia da região, à ausência da influência do poder monástico e ao
poder e autonomia que as irmandades e confrarias seculares possuem até os dias de hoje
junto à igreja e à sociedade.
Palavras-chave: Ofício de Trevas, Horas Canônicas, Semana Santa, São João del-Rei,
Catedral Basílica da Nossa Senhora do Pilar.
Abstract
The Offices of Tenebræ, part of the old Divine Office, were established at the beginning of
Christianity, modified during the medieval period and, with the Counter Reformation, gained
dramaticity through the effects of light and shadow. Those Offices consist of a series of
liturgical rituals contemplating the suffering, passion and resurrection of Christ during the last
three days of lent in the Cathedral Basilica of Our Lady in the city of São João del-Rei, Brazil.
This city has continued this tradition for the past 300 years due to the distinct topography of
the region, the absence of the influence of the monastic orders and the power and autonomy
2
that the secular brotherhoods and confraternities have until today in the church and the
society.
Key words: Office of Tenebrae, Canonic Hours, Holy Week, São João del-Rei, Cathedral
Basilica of Our Lady of the Pillar.
1 Introdução
O início do século XVI trouxe amplas reformas na Igreja Católica numa tentativa de
combater as Reformas Luteranas e um novo senso de persuasão de fé e religiosidade
foi estabelecido pelas novas leis da Contrarreforma entre os anos de 1545 e 1563. A
expressão artística barroca das primeiras décadas do século XVII no sul da Europa
tornou-se o instrumento didático-estético mais significativo da Igreja numa tentativa de
atrair e ensinar os fiéis as novas doutrinas estabelecidas pelo Concílio de Trento. A
religiosidade e os conceitos anacrônicos trazidos para domínios espanhóis e
portugueses nas Américas foram conservados até os dias de hoje, em que rituais
sacros dão continuidade a tradições iniciadas nos primórdios cristãos, modificadas
durante o período medieval e dramaticamente enriquecidas durante a era barroca.
esta uma das únicas cidades a conservar essa tradição sacra mesmo após significativas
mudanças na liturgia da Semana Santa entre 1955 e a sua extinção em 1977.2
2 Histórico
Os Ofícios de Trevas referem-se ao período litúrgico dos três dias antes do Domingo
da Ressurreição, no qual se faz a Vigília Pascoal (Cæremoniale Episcoporum, 1837). A
palavra hebraica Pasch significa “passagem”, porém os gregos a identificam com
paschein para sofrimento. No século IV, de acordo com Ætheria, os fiéis faziam uma
peregrinação ao Monte das Oliveiras ao entardecer da Quinta-Feira Santa, cantando
hinos e antífonas e fazendo leituras do Livro de Lamentações. Eles retornavam à cidade
ao amanhecer da Sexta-Feira e, ao entardecer daquele mesmo dia, faziam também a
Adoração da Cruz.3 Ritual semelhante faz parte integral da liturgia canônica da Semana
Santa organizada pela Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar em São João del-Rei,
onde se guarda a relíquia do Santo Lenho.
On the three days before Easter, Lauds follow immediately on Matins, which in
this occasion terminate with the close of day, in order to signify the setting of
the Sun of Justice and the darkness of the Jewish people who knew not our
Lord and condemned Him to the gibbet of the cross (Thurston, 1912).
5
Esse ritual é celebrado no interior da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar num
ambiente sombrio, simbolizando o Santo Sepulcro, onde a luz e a escuridão são os
únicos elementos utilizados para induzir nos fiéis sentimentos relacionados ao
sofrimento, à morte e à ressurreição de Cristo. Por meio dessa decoração austera e
iluminação apropriada de seu interior, cria-se um ambiente dramático conducente aos
três dias da paixão e morte de Cristo no Jardim das Oliveiras e no Monte Calvário.
Originada da prática judaica de recitar as orações a certas horas do dia, São Bento
escreveu o manual oficial das Horas Canônicas em 525. Mais tarde, no século XI, os
monges do Mosteiro de Cluny reformaram a liturgia oficial das atividades eclesiásticas,
sendo oficializada por meio da publicação do Breviário Romano pelo Vaticano numa
tentativa de unificar a liturgia do oeste Europeu. A partir do século XIII, essas
modificações feitas pelos Beneditinos incluíam não somente a ordem das orações,
como também o horário da recitação dos salmos e noturnos para melhor atender ao
clérigo e aos fiéis. A partir desse momento, a Rome Tenebræ começava às 16h00min-
17h00min horas da quarta-feira.5 Abgar Campos Tirado (2010) explica que:
Para essa celebração de Trevas, toda uma tradição medieval é encenada em Latim,
acompanhada por canto gregoriano e música própria. Durante esta celebração, o Latim
é a língua oficial das leituras, do coro e dos Cantos Gregorianos. Os Ofícios de Trevas
incluem Matinas e Laudes acompanhados por leituras do Livro de Lamentações do
profeta Jeremias cantados em lições. Os cinco poemas atribuídos a Jeremias
descrevem o luto e a desolação trazidos a Jerusalém e à Terra Santa pela morte do
Senhor. Os rituais consistem de três divisões noturnas conhecidas como noturnos,
vigilância ou observância, cada uma subdividida em três lições, três responsórios e três
salmos. O número três é uma constante nesSe ritual e, de acordo com Kutschker
(1843), esses três dias de luto eram tratados como um serviço fúnebre celebrando a
morte de Cristo, que descansou por três dias e três noites entre Sua morte e Sua
ressurreição. A Vigiliæ Mortuorum torna-se, dessa maneira, em dias de luto.
3 Espaço Sacro
No interior das igrejas, prepara-se minuciosamente esse espaço para uma encenação
eclesiástica. Antes do início desse ritual, os clérigos, os irmãos da Irmandade do
Santíssimo Sacramento responsáveis por essa celebração, os membros do coro e os
coroinhas se reúnem na sacristia como se estivessem em seus camarins se preparando
para entrar em cena. O altar-mor e a nave são divididos entre o palco de
apresentações onde o celebrante ocupa o altar-mor, o espaço principal e o mais
elevado da igreja, enquanto que a congregação concentra-se no corpo da nave, que é
localizada na parte inferior, criando-se, assim, um palco de apresentações onde o
celebrante se torna o ator e a congregação os espectadores. Esse espaço define a
participação do público entre momentos de integração e meditação, enquanto que o
celebrante orquestra essa encenação mediante gestos, movimentos e posições
criando-se, dessa forma, uma ópera sacra.
em fila dupla à frente do altar e a orquestra agrupada na área do cruzeiro. Por meio
das leituras canônicas, da música orquestrada e do canto gregoriano, o caráter teatral
é ampliado, conduzindo a congregação a um ato de meditação e compaixão. De
acordo com Sotuyo Blanco (2003):
A iluminação do interior da igreja reflete esses três dias de penitência em que existe
uma graduação do uso da luz. Nesta era moderna, a iluminação dos interiores das
igrejas é feita com energia elétrica, mas, num sentido mais tradicional, o uso de velas
continua fazendo parte integral dos rituais para simbolizar a fé, a vigilância e a
fidelidade de Deus. Na Quarta-Feira Santa, o Oficio é iniciado com todas as luzes do
interior da igreja acesas (ecclesia omni lumine decoretur) por quase toda a cerimônia,
exceto nos últimos minutos. Somente no final do ritual, as velas do altar, do tenebrário
e dos lustres da igreja são apagadas. A única vela a permanecer acesa é a do vértice do
tenebrário, que representa Jesus Cristo, sendo ela ocultada atrás do altar-mor por
alguns momentos. Na Sexta-Feira Santa, as velas e a luzes dos lustres são gradualmente
apagadas durante os três Noturnos, enquanto que, no Sábado Santo, todo o Ofício é
8
celebrado na escuridão do começo ao final; somente uma vela permanece acesa junto
ao celebrante para a leitura. O apagar progressivo das luzes nesses três dias demonstra
a desolação, o luto e o sofrimento pela morte de Jesus Cristo. Nos primórdios da era
Cristã, velas de cera amarela eram as únicas fontes de iluminação do ambiente que
começava à meia-noite.
representa a Virgem Maria, pois ela foi a única pessoa que acreditou na Ressurreição
de seu filho, enquanto que os apóstolos e os discípulos foram gradualmente
diminuindo a sua fé (KELLY, 2003a ou b?). Outra versão diz que as 14 velas
representam a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se vai apagando pela ignomínia
de sua paixão (Piedosas e solene, 1997, p. 132). De acordo com Antonio Gaio Sobrinho
(1996), dentro da tradição medieval, as 14 velas restantes correspondiam também ao
número total de salmos cantados (p. 58).
Essas interpretações correspondem às 14 velas, que são apagadas, uma a uma, após a
leitura de cada um dos salmos, entre o lado direito e o esquerdo do candelabro,
começando pelas velas colocadas na base do triângulo. Esse apagar das velas simboliza
“a descida gradual de Jesus Cristo para as trevas do abandono, da paixão e da morte”
(TIRADO, 2010, p. 9). A vela acesa restante no vértice, representando Cristo, é
retirada pelo acólito com a mão direita, ao som do canto da primeira antífona ao final
do Cântico de Zacarias ou Benedictus. Ela permanece acesa em cima do altar durante a
primeira antífona. Nesse momento, as seis velas dos castiçais que adornam o altar,
representando os seis versos finais do Benedictus, são também apagadas. Quando o
coro começa a cantar o Christus factus est, o acólito esconde a vela, ainda acesa, atrás
do altar.
O celebrante reza por um minuto com as luzes dos lustres acesas e, nesse momento,
todas as lâmpadas da igreja são apagadas e os fiéis batem com os pés no assoalho ou
com as mãos nos livros e bancos, criando um grande ruído dentro do recinto. O
interior da igreja permanece por alguns segundos na escuridão, daí o nome de Ofícios
de Trevas, demonstrando a desolação dos fiéis e da Igreja. De acordo com Gaio
Sobrinho (1996), “este barulho representa o cataclismo, as trevas e os terremotos
ocorridos por ocasião da morte de Jesus no Calvário” e que “(...) esse barulho teve
sua origem no século VII, quando o celebrante, para avisar que o Ofício tinha chegado
ao seu final, fechava o livro com estrépito ou batia palmas” (p. 58). Todos os
responsórios do Ofício da Quarta-Feira de Trevas relatam Cristo no Horto das
Oliveiras e a sua agonia, a traição e a prisão. De acordo com a tradição oral, esse
ruído ocasionado pelo bater dos pés e das mãos representa a chegada dos soldados no
Horto para aprisionar Jesus. Para sustentar essa afirmação, a música composta pelo
10
Padre José Maria Xavier para um dos responsórios entoa “vos haveis de fugir”, cujos
versos e sons dão a impressão de fuga e de um perigo iminente – a agonia de Jesus e a
chegada dos soldados. Outra interpretação mais otimista é oferecida pela Equipe de
Liturgia da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, pela qual se diz que esse ruído
representa a ressurreição do Senhor, porque a vela acesa que se achava escondida
atrás do altar volta a ser colocada no vértice do triângulo e, neste momento, as luzes
da igreja são acesas.
A famosa e tradicional linguagem dos sinos de São João del-Rei anuncia no decorrer do
ano, mediante seus repiques e dobres, momentos de agonia, parto, morte, incêndio,
chamadas de irmãos, reza, aviso de missas, Natal, passagem de ano e toda uma
linguagem diferente para cada uma de suas festas religiosas. Mas, durante o Tríduo
Sacro, que vai da Quinta-Feira Santa até após o Glória da Missa celebrada no Sábado
Santo, todos os sinos da cidade se calam e se ouvem somente os sons das matracas,
11
que, com o seu som de ferro sobre a tábua, representam o luto pela morte de Cristo.
A palavra matraca vem do árabe mitraqa, que significa martelo, e taraq para golpear. A
percussão desse instrumento idiófano lembra o martelar de pregos em madeira. Essas
matracas são precariamente construídas com uma tábua de madeira, tendo dos dois
lados arcos de ferro presos de tal maneira que, quando movimentada a tábua, estes
arcos oscilam, criando um som triste e lembrando o sofrimento de Jesus no Jardim das
Oliveiras. Esses toques das matracas são acompanhados pelos gritos dos meninos que,
de sentinelas nas entradas das portas das igrejas, imploram por um óbolo “para a cera
do santo sepulcro”. O matracão, de formato piramidal, é tocado pelo sacristão dentro
e ao redor das igrejas.
A observação por três dias de silêncio data do século VIII e, no período Anglo-Saxão,
era conhecida como o dia santo de guarda. Mas a conexão entre o período de silêncio
e o badalar dos sinos no Glória só foi efetivada durante a Idade Média (THURSTON,
2003). Esse momento de tristeza, recolhimento e meditação se estendia a toda a
população que, vestida de preto em luto pelo sofrimento e morte do Senhor, se
recolhia em seus atos públicos, emudecendo as buzinas e sirenes dos carros e das
fábricas, criando-se, dessa maneira, todo um ambiente fúnebre na cidade. Moraes Filho
(1979) relata em detalhe as celebrações desse Tríduo Sacro, mencionando que, “na
Quinta-Feira Santa, a partir das seis horas, a população, vestida de luto, comprava
amêndoas e visitava as igrejas” (p. 165-169). Jean Baptiste Debret, durante a sua visita
ao Brasil em 1816, documentou a família real e os mais diversos aspectos da vida e dos
costumes brasileiros. Uma de suas ilustrações documenta atividades dentro de uma
igreja, na manhã da Quarta-Feira Santa, onde todas as mulheres vestidas de preto, com
lenços sobre as cabeças, confessam os seus pecados (DEBRET, 1993, prancha 91).
Percebe-se também nessa ilustração o interior da igreja com os seus altares cobertos
por cortinados roxos, sendo essa a cor do paramento do clérigo e, no altar maior, um
panejamento preto reflete esse período de luto. O preto era recomendado como o
vestuário da Semana Santa, mas, de acordo com Carmem D’Ávila (1942), essa tradição
era como que uma obrigação para os católicos na Sexta-Feira da Paixão (p. 218). A
seleção cromática dos paramentos muda de acordo com as festividades. A cor violácea
e a branca são as cores apropriadas para a Semana Santa e são estas as usadas nos
Ofícios de Trevas.
12
Uma vez descrito e analisado esse Ritual de Trevas celebrado na Catedral Basílica de
Nossa Senhora do Pilar, resta-nos discutir as possíveis razões pelas quais esse ritual foi
perpetuado, de forma integral, na cidade mineradora de São João del-Rei. A guarda
dessa tradição, como também a formação social, moral e religiosa dessa cidade, deve-
se a três fatores: 1- a distinta topografia da região; 2- a ausência do poder monástico e
3- o privilégio e autonomia das irmandades e confrarias seculares. A riqueza do ouro
garimpado durante a primeira metade do século XVIII trouxe independência e poder a
uma população estritamente religiosa. Minas Gerais, em menos de um século, produziu
grandes obras literárias, musicais e artísticas nos campos da arquitetura, escultura e
pintura.
As cidades mineradoras, como São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana, Sabará e muitas
outras, se desenvolveram no século XVIII ao redor dos núcleos auríferos em vales,
cercadas por altas montanhas, de difícil acesso e distantes dos grandes centros
portuários da Colônia. Durante o século XVIII, a Coroa Portuguesa controlou a
abertura de caminhos e passagens para a capitania mineira, a fim de, mais
eficientemente, supervisionar a produção e o escoamento dos produtos minerados
(BETHELL, 1987, p. 194). Para ocultar a grande quantidade de ouro extraído e para
evitar uma invasão estrangeira na região, Dom João V (1706-1750) criou inúmeras leis
contra o estabelecimento das ordens monásticas na região e restringiu a fixação e a
permanência do clero que não estivesse vinculado ao seu ministério sacerdotal. A
primeira carta real proibindo a entrada do clero nas áreas mineradoras data de 1709,
sendo seguida por muitas outras, até a última em 1744 (BOSCHI, 1986, p. 79-80).
Portanto, com a ausência das ordens monásticas e de um grande número de
sacerdotes na região, as associações leigas se encarregaram não somente da
construção de seus templos, como também lhes foram transferidos todos os encargos
dos ofícios religiosos e do bem-estar da população. De acordo com Boschi (1986):
A freguesia da antiga instituição Episcopal de São João del-Rei foi elevada à paróquia
colativa em fevereiro de 1724 por intermédio de um alvará. No entanto, dois anos
antes desse alvará, a poderosa Irmandade do Santíssimo Sacramento iniciou a
construção da igreja matriz em substituição à original, que se encontrava em ruínas e
afastada do centro da vila. Em 1750, as obras da nova catedral já se encontravam
prontas e, em princípios do século XIX, uma nova ampliação foi feita pela irmandade
para atender ao crescimento dos fiéis (TRINDADE, 1998, p. 381). Essa Irmandade do
Santíssimo Sacramento, criada em 1711, tem como finalidade o culto da real presença
de Cristo na Eucaristia, daí o nome de Irmandade do Santíssimo Sacramento. Ela é
encarregada pela organização e financiamento do Ofício Divino celebrado nessa
catedral e, junto às outras irmandades e confrarias dessa cidade, resistiram à
modernização da liturgia católica, preservando, dessa maneira, os antigos cultos
religiosos.
A paróquia de São João del-Rei era subjugada à Arquidiocese de Mariana até o dia 21
de maio de 1960, quando foi elevada à diocese pelo Papa João XXIII e, sendo assim,
desmembrada da Arquidiocese de Mariana.11 Cinco anos mais tarde, a Catedral de
14
Nossa Senhora do Pilar recebeu o título de basílica. Mesmo durante o período no qual
essa catedral esteve sob a autoridade da Arquidiocese de Mariana, o controle sobre os
rituais foi mínimo. De acordo com os relatos sobre as paróquias mineiras escritos pelo
bispo Dom Frei José da Santíssima Trindade durante suas visitas pastorais entre 1821 e
1825, este somente documentou e analisou os bens imóveis quanto aos seus aspectos
construtivos e decorativos, dando mais atenção ao problema da administração
financeira de cada paróquia (TRINDADE, 1998, p. 236-243). Devido à distância entre
essa paróquia e a diocese, o controle sobre os rituais celebrados foi minimizado.
Mesmo após a criação da Diocese de São João del-Rei em 1960, seus subsequentes
bispos titulares presidiram e, presentemente, presidem os Ofícios de Trevas, cantando
as Lamentações de Jeremias.12 De acordo com Tirado, outros fatores significantes para
a preservação dessas celebrações devem-se ao grande número de composições sacras
específicas para esse ritual compostas por são-joanenses no século XIX, ao apoio do
bispado, à bicentenária Orquestra Ribeiro Bastos e à criaçao da Associação dos
Coroinhas de Dom Bosco para os cânticos gregorianos:
5 Conclusão
No decorrer dos tempos, muitas reformas foram feitas na estrutura e duração dos
Ofícios de Trevas, sendo este extinto em 1977. Entretanto, a Catedral Basílica de
Nossa Senhora do Pilar, situada na cidade de São João del-Rei, vem dando
continuidade a essa celebração, na sua mais íntegra forma, há mais de 300 anos.
Existem várias razões, políticas e religiosas, que contribuíram para a perpetuação desse
ritual. Durante a primeira metade do século XVIII, quando a mineração de ouro
enriquecia não somente a Coroa Portuguesa como também as cidades coloniais
mineiras, um grande número de leis foram redigidas para proteger a região contra
invasões estrangeiras e ocultar a grande quantidade de ouro explorado. O isolamento
dessas regiões e seu difícil acesso ocorreram devido ao controle na abertura de
caminhos e passagens para a capitania mineira. Ademais, a proibição da entrada das
ordens monásticas e do clero, como a distância da Arquidiocese de Mariana dessa
cidade, a formação moral e religiosa da população ficou entregue às associações
seculares como as ordens terceiras, irmandades e confrarias.
Com a elevação da paróquia de São João del-Rei a Arquidiocese em1960, esses Ofícios
ganharam o apoio do bispado, das associações de música e cantos gregorianos, da
paróquia e, principalmente, da Irmandade do Santíssimo Sacramento, patrocinadores
desses rituais desde 1711. Mesmo com a extinção dos Ofícios de Trevas do Breviário
Romano em 1977, este ganha maior significância na vida religiosa da cidade,
contribuindo, dessa maneira, para a perpetuação litúrgica da Semana Santa na Catedral
16
Basílica de Nossa Senhora do Pilar. Esse Ofício é tão importante dentro do contexto
religioso e social da cidade, que todos os outros rituais e procissões que fazem parte
da Semana Santa se conformam às datas desses três dias de vigília.
Notas
1 A denominação Ofícios de Trevas deve-se, de acordo com Abgar Campos Tirado, ao fato da
“caminhada para as trevas da paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo…” (Abgar
Campos Tirado, Os Ofícios de Trevas na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, em Semana
Santa em São João Del-Rei, Edição Especial 2010, editor José Mário de Araújo, p. 8-9, 2010).
2 O Papa Pio XII fez grandes reformas nas celebrações da Semana Santa, no que diz respeito
aos Ofícios de Trevas em 1955, seguidos de uma nova edição do Breviário Romano em 1962 e
1970, sendo esse ritual finalmente extinto em 1977.
3 Esse evento foi documentado pela monja espanhola Ætheria, também conhecida como Egeria,
durante sua peregrinação à Terra Santa entre os anos de 381-384, por meio de cartas
descrevendo os rituais litúrgicos diários e anuais em Jerusalém. Algumas dessas descrições
sobreviveram e foram incluídas no Codex Aretinus escritos em Monte Cassino durante o século
XI. Entretanto, estes só foram descobertos e publicados em Arezzo, na Itália, no ano de 1884.
(M. L. McClure and C. L. Feltoe, Ed. and Translator. The Pilgrimage of Etheria: Translations of
Christian Literature. Series III Litugical Texts. London: Society for Promoting Christian Knowledge,
1919).
4 A Liturgia das Horas ou Horas Canônicas são um conjunto de orações recitadas em oito
específicas horas do dia. A partir da meia-noite, o dia divide-se em oito horas canônicas, a
saber: 1- Matinas ou Vigílias Noturnas; 2- Laudes ou Matutinas; 3- Prima; 4- Tertia; 5- Sexta; 6-
Nona; 7- Vésperas; 8- Completas. As duas primeiras horas, Matinas e Laudes, são recitadas ao
amanhecer e as duas últimas, Vésperas e Completas, ao entardecer. Essas quatro horas são
denominadas de maiores, enquanto que as quatro horas intermediárias são chamadas de
menores.
7 Juan Moritz Rugendas, O Brazil de Rugendas (Belo Horizonte: Villa Rica Editôras Reunidas
Limitada, 1991); “Enterrment d’un Nègre – Bahia,” 4th Div. – Pl. 20 ilustra o enterro de um
negro, onde um candelabro triangular segue à frente da procissão fúnebre.
8 Entre muitos outros, o Mosteiro Real de Maria em Alcobaça, o Convento dos Jerônimo em
Lisboa e a Capela Real de São Francisco em Évora têm um grande número de objetos
relacionados com esses Ofícios. No entanto, o Palácio Nacional de Mafra tem uma capela
construída para atender somente a esses rituais além de um grande número de candelabros
esculpidos com o pau santo (o jacarandá brasileiro).
9 A Orquestra Ribeiro Bastos foi criada em meados do século XVIII e se associou à Venerável
Ordem Terceira de São Francisco de Assis e às Irmandades do Senhor dos Passos e do
Santíssimo Sacramento.
10 A Orquestra Lira Sanjoanense foi criada em 1776 pela Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e conduzida pelo maestro José Joaquim de Miranda. Esta era conhecida até o século
passado pelo nome Companhia de Música. O repertório musical composto no século XVIII foi
substituído por composições do famoso músico são-joanense Padre José Maria Xavier, que
criou um repertório próprio para as celebrações litúrgicas da Semana Santa e de Natal.
11 A Bula Quandoquidem novae pelo Papa Beato João XXIII cria a diocese de São João del-Rei e
desmembra esta da Arquidiocese de Mariana, da Diocese de Campanha e da então Diocese de
Juiz de Fora. Sua instalação se deu no dia 6 de novembro de 1960, às 9h, na Catedral Basílica
de Nossa Senhora do Pilar, perante o Exmo. e Revmo. Sr. Dom Oscar de Oliveira, Arcebispo
de Mariana.
12 Os bispos titulares Dom Delfim Ribeiro Guedes, Dom Antônio Carlos Mesquita e Dom
Waldemar Chaves de Araújo vêm pessoalmente presidindo os ofícios, “sendo que Dom Delfim
sempre cantava Lamentações, o que Dom Waldemar” deu continuidade (Campos Tirado,
2010, p. 9).
Referências
BETHELL, Leslie. Colonial Brazil. London, New York: Cambridge University Press, 1987.
DEBRET, Jean Baptiste. O Brasil de Debret. Belo Horizonte: Villa Rica Ed., 1993. (Coleção
Imagens do Brasil, v. 2)
DUSCHESNE, Louis. Christian worship: its origin and evolution. Transl. M. L. McClure. Virginia:
Society for Promoting Christian Knowledge, 1919.
GAIO SOBRINHO, Antonio. Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-
Rei. São João del-Rei: A Voz do Lenheiro, 1996.
KELLY, Leo A. Tenebræ Hearse, The Catholic Encyclopedia, Online Edition Copyright, 2003a by
K. Knight.
______. Ut in omnibus glorificetur Deus per Jesum Christum, The Catholic Encyclopedia,
Tradução Herman F. Holbrook, v. 2, 2003b.
MORAES FILHO, Alexandre José de Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1979. (Coleção Reconquista do Brasil, v. 55)
Piedosas e solenes tradições de nossa terra, São João Del-Rei: SEGRAC, 2 ed., 1997.
RUGENDAS, Juan Moritz. O Brazil de Rugendas. Belo Horizonte: Villa Rica Ed., 1991.
TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima
Trindade (1821-1825). Introdução de Ronald Polito de Oliveira. Belo Horizonte: CEHC/FJP,
1998.
THURSTON, Herbert. Tenebræ. The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton
Company, 1912. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/14506a.htm>. Acesso em:
8 abr. 2011.
Dados da autora: