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2010
Resumo: Este breve artigo realiza uma reflexão em torno do samba de bumbo na cidade de
Pirapora do Bom Jesus, estado de São Paulo, que, desde um estudo realizado por Mário de
Andrade na década de 1930, hoje considerado “clássico”, vem sendo valorizado como
expressão cultural popular singularmente paulista. Até meados de 1960-70, Pirapora do
Bom Jesus era local privilegiado da confluência de diversas modalidades do samba de
bumbo paulista. Partindo da história do samba na cidade, o artigo objetiva ressaltar as
mudanças mais relevantes, re-significações, pelas quais passou a manifestação cultural na
cidade, problematizando algumas questões atuais como a concepção do samba enquanto
representação de “autenticidade” e sua dimensão turística na cidade de Pirapora.
1
Este artigo é parte modificada de minha dissertação de mestrado denominada Na Batida do Bumbo:
um estudo etnográfico do samba na cidade de Pirapora do Bom Jesus – SP, orientada pelo Prof. Dr.
Alberto T. Ikeda, da Universidade Estadual Paulista-UNESP, 2008, e apoiada pelo FAPESP.
2
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (2005) e mestrado
em Música/etnomusicologia pela Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes de São Paulo
(2008). Trabalhou como gestora em projetos culturais apoiados pelo Ministério da Cultura e
Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, tendo como enfoque a continuidade de manifestações
culturais ligadas à cultura popular paulista. Atualmente trabalha na redação/edição de um livro sobre
o universo da música caipira na cidade de São Carlos-SP, com o apoio da SEC-SP.
3
Município da Grande São Paulo situado a aproximadamente 50 quilômetros da capital paulista.
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O autor realizou sua pesquisa em 1936, descrevendo a festa realizada do Bom Jesus e apontando
pequenas modificações observadas em sua segunda ida à Pirapora em 1937.
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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
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A palavra “samba” neste contexto, como ressalta Andrade (1937), podia tanto significar o conjunto
de todas as danças da noite, como alguma especificamente, ou também para designar o “batalhão”
que se apresentava.
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“É exatamente porque as experiências são incontáveis, mas devem ser contadas, que os narradores
são apoiados pelas estruturas mediadoras da linguagem, da narrativa, do ambiente social, da religião
e da política. As narrativas resultantes – não a dor que elas descrevem, mas as palavras e ideologias
pelas quais são representadas – não só podem como devem ser entendidas criticamente.”
(PORTELLI, 2006, p. 108).
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Termos utilizados pelos sambadores locais.
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O autor utiliza esse termo enquanto conceito de época atrelado, sobretudo, às mudanças em
contexto mundial ocorridas a partir da segunda metade do século XX.
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Em 2003 foi criado em Pirapora o grupo “Vovô da Serra Japi”, outra organização de samba de
bumbo fundada por Márcio Risonho.
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Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. O Samba Rural Paulista. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo:
Departamento de Cultura, ano IV, v. XLI, 1937.
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Arquivo Municipal, São Paulo: Departamento de Cultura, ano IV, v. XLI, 1937.
IANNI, Octavio. O samba de terreiro. In: Uma cidade antiga. Campinas: Ed. da Unicamp;
São Paulo: Museu Paulista da USP, 1988. p. 87-111.
MANZATTI, Marcelo Simon. Samba Paulista, do centro cafeeiro à periferia do centro: estudo
sobre o Samba de Bumbo ou Samba Rural Paulista, 2005. Dissertação (mestrado)–
Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2005.
SLENES, Robert W. Malungu, Ngoma vem!: África coberta e descoberta no Brasil. In: Negro
de corpo e alma (catálogo). São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
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“BAMO SAMBÁ”
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Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP). Mestre em Antropologia Cultural pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
do Curso de Comunicação Social da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid). Diretor do Projeto
Cultural Samba Autêntico. Coordenador do Projeto Rua do Samba Paulista.
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ANDREWS, Georg Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998. p. 55.
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atingindo mais de 160.000 pessoas das quais 55,00% eram estrangeiros.
[...] pequenos prédios térreos [...] eram habitados por casais de pretos
africanos que, depois que conseguiram libertar-se do cativeiro,
estabeleciam-se com quitanda, nos mesmos prédios em que residiam, [...]
procurando, logo que podiam, comprar uma ou duas crioulas ou mulatas,
4
que tinham a infelicidade de ser suas escravas.
Cocadinha, Sinhá!
[...] Óia o bolinho de bagre!
Óia o pinhão miquiquerê!
3
MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas. A música popular na cidade de São
Paulo (final do século XIX – início do século XX). Dissertação (Mestrado em História)– Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 1990. p. 35.
4
MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo – 1554-1910. São Paulo: Paz e Terra, 2003. (Coleção
São Paulo, 4). p. 325.
5
DELLA MÔNICA, Laura. História da banda de música da polícia militar do Estado de São Paulo. 2.
Ed. São Paulo: Tipografia Edance, 1975. p. 27.
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Óia o içá p’rá vassuncê!
No entanto, essa nova condição dos negros, escravos ou libertos, não estava em
consonância com o projeto urbano de modernização da cidade, conforme os modelos de
civilidade considerados mais adequados pelos padrões estéticos europeus. Tratando de
extinguir possíveis oposições e focos contrários a essas pretensões, os poderes públicos
trataram de adotar de forma imediata uma série de medidas destinadas a controlar, restringir
e obstruir essa experiência da população negra. Em 1886 é adotado o Código de Posturas,
que deslocava os mercados para os bairros, impedia as quitandeiras de comercializarem e
os pais de santos de exercerem suas atividades. Mesmo as Irmandades, como a de Nossa
Senhora do Rosário, localizada na Praça Antonio Prado e, posteriormente, transferida para
o Largo do Paissandu sob pressão do poder municipal, são afetadas por essa prática da
administração pública7.
Assim, no processo de renovação urbana e de instauração de uma “nova ordem
social”, a população negra da cidade de São Paulo é submetida a um processo nefasto e
hostil de inserção social, econômica e – porque não dizer – política, sendo instada a
permanecer nas fímbrias sociais, à margem de todo curso de acontecimentos, e nos
espaços recônditos, mais sombrios e afastados.
Escravo, ex-escravo ou liberto. Ao passar por essas três condições, o status social
da população negra é acompanhado por um processo de redefinição do seu espaço social.
De escravo ele passa a ser livre, mas marginal, com uma cidadania precária
mesmo em relação aos imigrantes pobres; sua alternativa é esquivar-se
para modos informais de sobrevivência – como já ocorria antes da abolição.
Nestas condições adversas e num espaço social exíguo e excludente, suas
expressões culturais teriam papéis importantes para minimizar ou, ao
menos sublimar os obstáculos impostos pela sociedade e sua “nova” ordem
8
urbana.
6
MUNIZ JÚNIOR, José. Do batuque a escola de samba. São Paulo: Ed. Símbolo, 1976. p. 105.
7
MOURA, CLÓVIS. Organizações negras. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius C. (Orgs.). São Paulo,
o povo em movimento. 2. Ed. São Paulo: Vozes; Cebrap, 1981. p. 143.
8
MOURA, CLÓVIS. Organizações negras. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius C. (Orgs.). São Paulo,
o povo em movimento. 2. Ed. São Paulo: Vozes; Cebrap, 1981. p. 36.
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Esses bairros, que abrigavam uma vasta proporção da população negra da cidade,
também acolhiam uma população pobre de origem local ou imigrante, mas com uma divisão
espacial peculiar: os brancos ocupavam as ruas mais urbanizadas; os negros habitavam as
ruelas, os becos e os locais alagadiços.
Barra Funda, Bexiga e Baixada do Glicério são as regiões onde foram se instalar as
várias famílias, com graus distantes ou próximos de parentesco, pessoas recém saídas da
zona rural e negros paulistanos, os maridos que desempenhavam pequenos bicos,
trabalhavam nos armazéns da E. F. São Paulo Railway e as esposas que trabalhavam como
empregadas domésticas nos bairros nobres dos Campos Elíseos, da Paulista e da
Liberdade. Ao tornar-se densamente povoada por negros, a região da Barra Funda passa a
ser palco das atividades ligadas à vivência de suas tradições e cotidiano. Como descreve
Seu Zésinho do Morro da Casa Verde: “[...] lá era esburacado, então era lá que nóis fazia
samba, lá que nóis fazia tudo aqueles negócio. Foi dali, da confluência da Rua Souza Lima
com Vitorino Carmilo, da casa de Dionísio Barboza, que em 1914 saiu o primeiro desfile do
Cordão Camisa Verde, reunindo seus parentes e amigos no folgar carnavalesco.”11
O Bexiga, inicialmente povoado pela população negra, tem suas origens assentadas
no século XIX. Ali, em meados do citado século, foi fundado um quilombo semi-rural, o
quilombo da Saracura. Dado que a região era de difícil acesso, era para lá que os negros
escravos fugitivos se dirigiam a fim de obter refúgio. Apesar de sua formação populacional
9
LOWRIE, Samuel H. O elemento negro na população de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal
de São Paulo, v. 4, São Paulo, 1938.
10
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: EDUSC, 1988. p.
113-114.
11
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. Op. cit. p. 85.
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discriminação da qual era vítima, visando sua inserção e integração social, foi marcada, no
transcorrer da história, por inúmeras iniciativas voltadas à sua organização e mobilização.
Apesar de segregados por uma sociedade que insistia, e insiste, em não reconhecer essa
população como coparticipante do processo de construção dessa sociedade. Porém, a
história da vida associativa da população negra no Brasil remonta aos tempos coloniais,
quando essa empreendia formas de associação que envolviam escravos e ex-escravos
negro-africanos e afrodescendentes. Abertas e públicas como as irmandades religiosas,
secretas e disfarçadas como a capoeira e o candomblé, todas essas ações tinham por pano
de fundo satisfazer as necessidades culturais, religiosas, econômicas e humanas da
população negra.
A abolição, não contribuiu para a resolução das necessidades prioritárias da
população negra, antes trouxe um contingente novo de problemas e necessidades, mas
abriu possibilidades de organizações diversas serem empreendidas – com graus de
autonomia, independência e liberdade notáveis quando comparados às experiências
anteriores.
As irmandades religiosas sobreviveram intactas à abolição e, em São Paulo, a
Irmandade do Rosário, fundada em 1711, e a Irmandade da Nossa Senhora dos Remédios,
fundada em 1836, não somente desempenharam papel fundamental no processo da
abolição como também guardam um caráter emblemático: a realização das danças em seus
terreiros ou na rua. Fato que originou uma grave tensão entre essas irmandades e as
autoridades hierárquicas da Igreja, que consideravam essas manifestações – a música e a
dança negro-africanas ou afrodescendentes – disparates que desonravam e humilhavam a
dignidade da Igreja.
Abolida a escravidão, outras organizações tomam corpo, como um aproveitamento
da oportunidade de se organizar em conformidade com o grau de autonomia, liberdade e
independência possibilitado pelo novo regime. Várias organizações são criadas, com caráter
e organização inerentes às aspirações sociais dos membros. Organizações informais
destinadas apenas a promover a agregação da população negra, que se reuniam
regularmente para cantar, conversar, tocar música, organizar bailes, viagens, levantar
fundos etc., posteriormente desencadearam processos de formação dos grupos de carnaval.
Em sua maioria, tais organizações tinham por recorte a sua concentração em atividades de
lazer e de recreação.
Imperceptível para a “nova” ordem urbana, a população negra, cujas conquistas são
tímidas, busca tornar sua história também história da cidade de São Paulo. A história da
população negra não está registrada nas faces dos edifícios, nos viadutos, nos nomes
internacionalizados das companhias de serviços urbanos e das companhias teatrais. No
entanto, essa população buscava outras formas de se manifestar e inscrever na cidade suas
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experiências.
Assim, além de marcar presença nos espaços urbanos da cidade concentrando-se
em regiões que se tornavam autênticos territórios negros, onde podiam viver de acordo com
regras que eles próprios estabeleciam informalmente, abrindo possibilidades para o
exercício de suas práticas sociais e culturais, constitui-se uma leitura, ainda que diminuta e
rarefeita, mas certamente diferenciada da cidade, renovando seus trajetos e formas
culturais, recriando suas práticas com o fim de tentar sobreviver e de afirmar e reafirmar
sua, ainda que precária, cidadania, elaborando, de modo modesto e criativo, novas formas
de “manter vivas suas tradições”.
Danças, cantos e músicas, independente de suas variações locais, provindas do
Batuque negro-africano, outrora comumente denominados por batuques, passam, a partir do
século XIX, a ser conhecidos e denominados como Samba. Não obstante essa condição, o
Batuque assumiu, nas diversas regiões do país, feições diversas, próprias e bastante
particulares.
Diverso, em São Paulo, o Batuque assumiu feitio, tempero e sabor peculiar,
elementos presentes em inúmeras abordagens narrativas que, apesar do ranço racista e
preconceituoso dos autores, trataram de registrar essas diversas manifestações. Affonso A.
de Freitas descreve que, por volta do final do século XIX
figurante distinguida pela preferência sair a terreiro. [...] Então, entre os dois,
desenvolvia-se um jogo de negaças amorosas que se desdobrava, tardio às
vezes, às vezes rápido, terminando invariavelmente em recíproca
13
umbigada, lúbrica, lasciva, obscena [...]
Em meio aos debates, confrontos entre os batuqueiros das diversas cidades por
intermédio de versos improvisados, a dança, a música e o canto tomavam corpo e tomavam
o corpo. Mário Wagner Vieira da Cunha, relatando o que ocorria nos barracões na Festa de
São Bom Jesus de Pirapora, nota que no desenvolvimento da performance
[...] houve até um Rei Batuqueiro, o famamaz Pai Felipe, que chefiava o
Quilombo da Vila Mathias, que ficava nas fraldas do Monte Serrat, e que
ficou famoso devido às batucadas que promovia... Dizem até que, durante
os festejos da Abolição da Escravatura, Pai Felipe saiu com sua gente pelas
ruas da cidade, batucando com seus ‘tambaque’ e ’adufos’, e que, junto do
Largo do Carmo, formou uma grande roda onde sambaram lado a lado com
os brancos abolicionistas. [...] Existiam também as famosas ‘batucadas’,
cujas rodas se formavam lá no alto do Monte Serrat e durante os festejos
consagrados à Padroeira da Cidade... onde se defrontavam os ‘bambas’ do
16
samba ‘pesado’, da ‘pernada’.
13
FREITAS, Affonso A. de. Tradições e reminiscências paulistanas. 2.ed. rev. e aum. São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1955. p. 150-151.
14
CUNHA, Mário Wagner da. Descrição da Festa do Bom Jesus de Pirapora. Revista do Arquivo
Municipal, São Paulo, Ano IV, v. 41. p. 5-36, 1937.
15
LIMA, Rossini Tavares de. Op. cit. p. 66. e FREITAS, Affonso A. de. Tradições e reminiscências
paulistanas. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1955. p. 152-153.
16
MUNIZ JÚNIOR, José. Do Batuque à Escola de Samba. São Paulo: Ed. Símbolo, 1976. p. 100.
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São Bento, Chafariz da Misericórdia, Igreja de São Benedito, Largo do Rosário. Após a
concessão oficial de licença para a realização de danças de pretos ou danças de negros, a
população negra, escrava e liberta, realizava suas “[...] danças e os cantores rompiam ao
ruído seco do ‘reque-reque’, ao som rouco e soturno dos ‘tambus’, das ‘puítas’ e dos
urucungos que, com a marimba solitária, formavam a coleção dos instrumentos africanos
conhecidos em nossa terra.”17
17
Freitas, Affonso A. de. Op. cit. pp. 149-150.
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Referências bibliográficas
ANDREWS, Georg Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998.
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Arquivo Municipal, São Paulo, ano 4, v. 41, 1937.
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Paulo. 2. ed. São Paulo: Tipografia Edance, 1975.
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(Coleção São Paulo, 4).
MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas. A música popular na cidade
de São Paulo (final do século XIX – início do século XX). Dissertação (Mestrado em
História)– Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1990.
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Paulo, o povo em movimento. 2. ed. São Paulo: Ed. Vozes; Cebrap, 1981.
MOURA, Paulo Cursino. São Paulo de outrora (evocações da metrópole). São Paulo: Ed.
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MUNIZ JÚNIOR, José. Do Batuque à Escola de Samba. São Paulo: Ed. Símbolo, 1976.
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– 1914-1988. Tese (Doutorado em Antropologia Social)– FFLCH/USP, São Paulo, 1989.
WILHEIM, Jorge. São Paulo – Metrópole. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965.
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Rodrigo Linhares1
Pode-se dizer que a festa que hoje conhecemos teve como centralidade inicial, no
final da década de 1960, a Avenida São João. Lá foram erguidas as arquibancadas e os
palanques da primeira competição unificada de agremiações carnavalescas. Anos depois,
em 1977, o desfile foi transferido para a Avenida Tiradentes. As interferências no trânsito
desta via, porém – impostas pela realização das festividades –, logo tornaram precário este
novo endereço. Em 1991, a centralidade dos desfiles carnavalescos transfere-se para o
“sambódromo”, no Parque Anhembi, onde permanece até hoje.
Este equipamento urbano peculiar, o sambódromo, foi concebido segundo uma
oposição fundamental entre, de um lado, os desfilantes – que percorrem a avenida – e, de
outro, a plateia – que ocupa as arquibancadas que a ladeiam. Nas extremidades deste
conjunto linear existem dois largos pátios: mais a leste, a concentração – onde permanecem
organizadamente os carros alegóricos até que a escola de samba, então em desfile, venha
retirá-los –; mais a oeste, a dispersão – ocupada pela escola que, terminando sua
apresentação, precisa agora “desarmar-se”. Mas a separação não é apenas entre avenida e
plateia, partida e chegada – ela se propaga em vários níveis. Na avenida, exemplarmente,
sob a aparência de uma unidade linear movente encontramos algumas divisões: os que
desfilam no chão, os que desfilam em cima dos carros e os que desfilam em lugares
privilegiados na organização dos elementos cênicos do carro. Há uma espécie de hierarquia
1
Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. Mestre em Geografia Urbana pelo
Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da FFLCH-USP
com a dissertação: “Da Festa da Representação à Representação: apontamentos sobre a
transformação do tempo-espaço carnavalesco”. O artigo aqui apresentado inspira-se nesta
dissertação.
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da visão organizando estas categorias segundo uma oposição entre alto e baixo – sendo
que o alto é, ao mesmo tempo, o mais visível e o mais destacado do conjunto. A plateia, por
seu turno, além da separação mais pronunciada que a dispõe em margens distintas da
avenida, secciona-se também em blocos. Cada um deles compõe-se de uma arquibancada,
de um camarote – que, ocupando o desvão entre o cimo da arquibancada e o chão, dá em
grandes janelas para a avenida – e, finalmente, de uma espécie de passeio que acompanha
a pista e onde estão dispostas mesas e cadeiras. Na plateia, que por sua vez também é
vista, o mais alto é que tem menos destaque e somente é visível em conjunto; ao contrário,
o mais recluso dos lugares – os camarotes – torna-se, através das lentes da imprensa,
detalhadamente publicizado. Através destas lentes, outro público – completamente invisível
e sem destaque – espalha-se ao redor do centro carnavalesco como uma plateia oculta: a
audiência televisiva.
A unidade que a falsa centralidade do carnaval espetáculo promove é apenas uma
unidade entre separados de antemão. Revela-se na aparência mesma do “sambódromo”:
um conjunto formado por simples justaposições de unidades isoladas. Nada deve lembrar
aquela porosidade áspera dos espaços de negociações, tensões e atritos, característica de
carnavais mais antigos; os fluxos são disciplinados, controlados. Por todo o lugar a limpidez
escorregadia, o privilégio imperial concedido ao mais abstrato dos sentidos – o olhar –, o
plano analiticamente fragmentado que se entrega facilmente ao esquadrinhamento.
Na história da festa carnavalesca quais rupturas podem ser reconhecidas entre, na
origem, aquela integridade centralizada e concentrada e, no ponto que estamos, suas
múltiplas fragmentações?
Até meados do século XIX – ou um pouco mais além –, a prática festiva na cidade de
São Paulo não havia ainda se desligado de seus conteúdos religiosos. Romarias, como
aquelas que anualmente dirigiam-se para a Igreja de Nossa Senhora da Penha, festas de
patronos de igreja e celebrações de datas importantes, como a do Divino Espírito Santo,
reuniam a maior parte da população da cidade e de seus visitantes. De outro lado, as
distâncias sociais também não pareciam determinar, ainda, qualquer cisão na unidade da
festa – descontando-se o fato, incipiente, de que algumas das famílias mais abastadas
preferissem assistir a tudo do alto de suas janelas. De qualquer modo, caso se insista em
tentar aplicar, neste momento, a dualidade agente/expectador, ela terá de implicar uma
ênfase, e não uma exclusividade de papéis.
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Nas terras coloniais da Coroa Portuguesa, por mais de dois séculos, o entrudo reinou
como a grande manifestação carnavalesca. Aqui, como lá, conservavam-se nesta prática as
mesmas características dos carnavais medievais: o entrudo associava a glutonaria
desenfreada às bebedeiras descuidadas; os excessos da mesa, por sua vez, num ambiente
de licenciosidade sexual, conjugavam-se com os da cama; por fim, pautando todos os
desbragamentos, cá e acolá pipocava constantemente a brincadeira selvagem e
escatológica do suja, molha e xinga.
Sob aquele nível de representações carnavalescas de anulação das distâncias
sociais, a brincadeira do entrudo, na verdade, desenvolvia-se segundo distâncias sociais
definidas:
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para o antigo bairro do Brás quanto para o da Água Branca, tratava-se do avanço de um
processo de especialização funcional que dissolvia a antiga complexidade da vida local na
nova complexidade, de feições analíticas, do todo metropolitano em expansão. Num caso,
como no outro, aquela característica implicação das moradias familiares com os
estabelecimentos comerciais, surgida como uma pequena unidade ao redor da estação de
trem, de algumas importantes fábricas – e sob a vigilância do pároco –, foi rompida com a
intensificação dos processos de integração dos bairros na futura metrópole. No Brás, a
progressiva concentração industrial e comercial ao longo de terminais de importantes eixos
de transporte – que faziam a ligação de São Paulo com a cidade do Rio de Janeiro e com
toda a região do Vale do Paraíba – expulsou boa parte das famílias para alguns bairros mais
a leste, como Tatuapé, Penha e Vila Matilde. Na Água Branca, surpreendentemente e de
maneira inversa, foi justamente a chegada de mais famílias, de acordo com as feições
estritamente residenciais que passariam a caracterizar aquela região, que fez dissolver a
antiga vida carnavalesca do bairro.
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Há, portanto, que se considerar a ação de uma espécie de resistência étnica como
importante fator de um esplendor carnavalesco das agremiações negras no momento,
precisamente, em que a centralidade carnavalesca era desbastada pela emergência de uma
formação metropolitana. É bem conhecido o modo como, em meados da década de
quarenta, por ocasião de uma grande elevação dos aluguéis na cidade, as famílias negras
que foram obrigadas a abandonar a Bela Vista por bairros distantes, de além-Tietê ou em
outras regiões da cidade, continuaram a relacionar-se com o então cordão do Vai-Vai. Cedo,
esta agremiação teve testada a sua capacidade de sustentar uma teia de ramificações que
se dispersavam com a cidade.
Se o incremento das associações negras desenvolve-se linearmente na primeira
metade do século XX, na década de 1950 e na seguinte os cordões paulistanos conhecem
sua grande crise: o descompasso entre o que já se havia acumulado em pessoas, coisas e
técnicas e a precariedade dos meios de sustento material e financeiro desta acumulação.
Surgidos ainda numa cidade de bairros, onde o trajeto das apresentações limitava-se a
algumas paradas entre a vizinhança e, depois, pondo-se num caminho um pouco mais
longo, ao comparecimento a alguns poucos centros foliões, os cordões atiraram-se
dramaticamente em caminhadas cada vez maiores – em alguns dias tinham de cobrir
regiões tão distantes entre si como Penha, Lapa e Parque do Ibirapuera. O que estava em
jogo não era apenas a necessidade das recompensas financeiras acenadas por essas
diversas organizações de lojistas e por empresários do entretenimento, mas a conquista de
um espaço carnavalesco liberado recentemente pelo recuo e desaparecimento de
importantes folguedos – como o corso e o desfile das grandes sociedades.
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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
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Referências bibliográficas
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval Brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SIMSON, Olga Rodrigues Von. A Burguesia se Diverte no Reinado de Momo: sessenta anos
de evolução do carnaval de São Paulo (1855 – 1915), 1984. Dissertação (Mestrado)–
FFLCH-USP, São Paulo, 1984.
______. Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano (1914 – 1918), 1989. Tese
(Doutorado)– FFLCH-USP, São Paulo, 1989.
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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
Tiarajú D’Andrea1
Resumo: A intenção deste pequeno ensaio é discorrer sobre a localização das escolas de
samba na cidade de São Paulo, correlacionando a disposição dessas localizações ao processo
histórico de urbanização da cidade e à desigual distribuição de recursos materiais e simbólicos
pelas distintas regiões da cidade. Realizando uma análise sociológica das escolas de samba
enquanto organizações sociais, a principal hipótese que se quer lançar para discussão é a de
que a consolidação de uma escola de samba enquanto potência no meio carnavalesco se deve,
dentre outros fatores, à possibilidade de concentração de recursos materiais e humanos numa
dada entidade. No entanto, essa possibilidade estaria fortemente vinculada à localização das
escolas de samba no município.
1
Tiarajú D’Andrea é doutorando em Sociologia Urbana pela Universidade de São Paulo. É também
compositor.
2
Agradeço a Alessandro Dozena pela interlocução.
3
Cabe destacar que onde hoje é a avenida Nove Julho, corria o córrego Saracura. Às margens desse
córrego, no século XIX, existia uma densa área de mata utilizada como esconderijo de negros
escravizados que fugiam de fazendas. O barateamento dos terrenos na região – dado que inundáveis – e
a proximidade como o centro de São Paulo – fato que facilitava a busca por recursos para a
sobrevivência – fez com que um alto índice de população negra se fixasse na região e nos arredores.
Cabe destacar que o surgimento da primeira escola de samba de São Paulo em atividade, a Lavapés,
ocorreu no bairro do Glicério, cuja presença negra ocorria pelos mesmos motivos que no bairro do Bixiga.
1
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
desdobramento do “Grupo Carnavalesco Barra Funda”, fundado em 19144, cuja base social
para sua existência foram os negros que viviam e trabalhavam na região e os operários da
então nascente zona industrial5.
Se, de fato, a estação da Barra Funda e a estrada de ferro circundante ao bairro foram
fatores essenciais para o desenvolvimento econômico e o assentamento das classes populares
naquela região – fato que se desdobraria na forte presença negra nas expressões culturais do
bairro –, é interessante notar que, em outro canto da cidade, algo similar ocorria nas primeiras
décadas do século XX. Fundada em 1949, a escola de samba Nenê de Vila Matilde surge das
mãos de um grupo de sambistas que se reunia naquela parte da zona leste do município. No
entanto, a existência do dito grupo e a posterior consolidação dessa escola enquanto potência
carnavalesca só foram possíveis pela junção de dinâmicas sociais já presentes na região: a alta
concentração de população negra; a forte presença operária e uma tradição carnavalesca
expressa no famoso carnaval da Vila Esperança, cujo cerne residia na presença de mais de
vinte blocos carnavalescos na região durante as primeiras décadas do século XX (URBANO,
2006). Seguramente, a existência desses blocos assegurou uma tradição carnavalesca na
região que sustentou socialmente a existência de uma escola de samba tão grande e tão
importante como a Nenê de Vila Matilde.
De certo, se há uma regularidade expressa no surgimento e na consolidação dessas
importantes escolas de samba do município de São Paulo, ela reside na alta concentração de
população negra, em particular, e de pobres em geral nos bairros de surgimento dessas escolas
de samba. Partindo desse pressuposto com relação ao surgimento destas escolas de samba,
mas tentando entender a dinâmica social do universo das escolas atualmente, este ensaio
pretende problematizar uma questão principal: quais são, hoje em dia, os principais elementos
necessários para a consolidação e a manutenção das escolas de samba nos altos escalões da
competição carnavalesca de São Paulo, ou seja, o Grupo Especial e o Grupo 1?6 Como se
4
Há quem afirme que o atual Camisa Verde e Branco é uma continuação direta do Grupo Carnavalesco
Barra Funda, sendo assim a mais antiga entidade carnavalesca do Brasil.
5
Sobre o assunto, cabe destacar as palavras do sambista Geraldo Filme, que aponta como as
oportunidades de trabalho informal na região – trabalhos estes realizados principalmente por negros –
ocorria pela presença dos trens e da possibilidade de embarque e desembarque de mercadorias. Nas
horas de folga, esses trabalhadores jogavam tiririca e faziam samba. Depoimento extraído do LP Plínio
Marcos, em Prosa e Samba.
6
Para a finalidade deste estudo, às vinte e duas escolas que compõem esses dois grupos se dará o
nome grandes escolas. As vinte e duas escolas de samba no qual se centra este estudo são, do Grupo
Especial: Acadêmicos do Tucuruvi, Águia de Ouro, Gaviões da Fiel, Imperador do Ipiranga, Império da
Casa Verde, Leandro de Itaquera, Mancha Verde, Mocidade Alegre, Pérola Negra, Rosas de Ouro, Tom
Maior, Unidos de Vila Maria, Vai-Vai e X-9 Paulistana. Do Grupo 1: Barroca Zona Sul, Camisa Verde e
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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
verá, este ensaio entende que a localização geográfica de uma escola de samba é um quesito
fundamental para a resposta da pergunta acima efetuada. A partir deste ponto do texto,
problematizar-se-á o referido argumento a partir da análise da disposição geográfica de 107
entidades carnavalescas do município de São Paulo. Abaixo do mapa segue a denominação
das 107 entidades mapeadas com uma numeração para localizá-las7.
MAPA 1: Lista das entidades carnavalescas (escolas de samba e blocos) com numeração
8
referente à posição no mapa .
Branco, Dragões da Real, Flor de Liz, Morro da Casa Verde, Nenê de Vila Matilde, Uirapuru da Moóca e
Unidos do Peruche.
7
Agradeço ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM) pela cessão do mapa e, especialmente a Daniel
Waldvogel pela confecção dele. O referido mapa foi confeccionado pelo sistema SIG de
Geoprocessamento a partir de uma base de endereços de 2002. No entanto, foram atualizados os
endereços das 22 escolas de samba dos grupos Especial e 1 de acordo com o atual (fevereiro - 2010)
endereçamento dessas entidades, a fim de ser possível a realização da argumentação exposta no texto.
Logo, o mapa foi confeccionado a partir de uma base de endereços de 2010 que dá conta do universo de
22 entidades, e de uma base de endereços de 2002, que dá conta de um universo de 85 entidades. Por
problemas na digitalização do mapa, nem todos os números referentes a cada entidade podem ser
visualizados nele.
8
1- G.R.C.C. Flor de Liz, 2- G.R.C.E.S. Dragões da Real, 3- G.R.C.E.S. Gaviões da Fiel Torcida, 4-
G.R.C.E.S. Leandro de Itaquera, 5- G.R.C.E.S. Mancha Verde, 6- G.R.C.E.S. Mocidade Alegre, 7-
G.R.C.E.S. Nenê da Vila Matilde, 8- G.R.C.E.S. Uirapuru da Mooca, 9- G.R.C.E.S. Unidos do Peruche,
10- G.R.C.E.S. Vai-Vai, 11- G.R.C.E.S. X-9 Paulistana, 12 - G.R.C.S.E.S. Acadêmicos do Tucuruvi, 13-
G.R.C.S.E.S. Império de Casa Verde, 14- G.R.E.S. Águia de Ouro, 15- G.R.E.S. Perola Negra, 16-
G.R.E.S. Tom Maior, 17- G.R.E.S.M. Camisa Verde e Branco, 18- G.R.S.C.E.S. Unidos de Vila Maria, 19-
S. Rosas de Ouro, 20- S.C. Morro da Casa Verde, 21- S.E.S. Imperador do Ipiranga, 22-
S.R.C.S.E.B.F.S. Barroca Zona Sul, 23- A.R.C.B. Chorões da Tia Gê, 24- A.R.C.E.S.E.S. Portela da Zona
Sul, 25- B.C. Amizade da Zona Leste, 26- B.S. Unidos do Guaraú, 27- C.R.C.A.E.S. Estrela Cadente, 28-
G. Galo de Pirituba Torcida, 29- G.E.R.C.B. Independente, 30- G.R.B.C. Afro de Nagô na Arte do Samba,
31- G.R.B.C. Bloco Flor Imperial do Grajaú, 32- G.R.B.C. Me Engana Que Eu Gosto, 33- G.R.B.C.
Mocidade Independente da Zona Leste, 34- G.R.B.C. Niagara, 35- G.R.B.C. Unidos de Vila Carmosina,
36- G.R.B.S. Unidos de Santa Bárbara, 37- G.R.C. Bloco de Samba Vamo Q Vamo, 38- G.R.C. Os
Bambas, 39- G.R.C.B. Caprichosos do Piqueri, 40- G.R.C.B. Mocidade Amazonense, 41- G.R.C.B.
Unidos do Pe Grande, 42- G.R.C.B.C. Garotos da Vila Santa Maria, 43- G.R.C.B.C. Imperiais Unidos da
Vila Palmeira, 44- G.R.C.B.C. Não Empurra Que E Pior, 45- G.R.C.B.C. Só Falta Você, 46- G.R.C.B.C.
Torcida Jovem do Santos FC, 47- G.R.C.B.C. União da Trindade, 48- G.R.C.B.C. Vovo Bolão de Pirituba,
49- G.R.C.B.C.T. Uniformizada do Palmeiras, 50- G.R.C.B.E.S. Brinco da Marquesa, 51- G.R.C.B.S.
Folha Verde, 52- G.R.C.B.U. de Perus de Valença Samba, 53- G.R.C.C. São Paulo Zona Sul, 54-
G.R.C.E.B.C. Caprichosos da Zona Sul, 55- G.R.C.E.E.S. Boêmios da Vila, 56- G.R.C.E.S. acadêmicos
do Ipiranga,57- G.R.C.E.S. Cachoeira império do Samba, 58- G.R.C.E.S. Camisa 12, 59- G.R.C.E.S.
Combinados de Sapopemba, 60- G.R.C.E.S. Comunidade Independente do Imirim, 61- G.R.C.E.S.
dragões de São Miguel Paulista, 62- G.R.C.E.S. dragões de Vila Alpina, 63- G.R.C.E.S. Em Cima da
Hora Paulistana, 64- G.R.C.E.S. Ermelinense, 65- G.R.C.E.S. Estação Invernada, 66- G.R.C.E.S. Estrela
do Terceiro Milênio, 67- G.R.C.E.S. Explosão da Zona Norte, 68- G.R.C.E.S. Flor da Zona Sul, 69-
G.R.C.E.S. Flor de Vila Dalila, 70- G.R.C.E.S. Flor do Morro, 71- G.R.C.E.S. Folha Azul dos Marujos, 72-
G.R.C.E.S. Imperial, 73- G.R.C.E.S. império do Cambuci, 74- G.R.C.E.S. Malungos, 75- G.R.C.E.S.
Paraíso do Samba de Vila Mazei, 76- G.R.C.E.S. Passo de Ouro, 77- G.R.C.E.S. Primeira da Aclimação,
78- G.R.C.E.S. Príncipe Negro Cidade Tiradentes, 79- G.R.C.E.S. Prova de Fogo, 80- G.R.C.E.S. Raiz da
Zona Sul, 81- G.R.C.E.S. Só Vou Se Você For, 82- G.R.C.E.S. Tradição da Zona Leste, 83- G.R.C.E.S.
Tradição do Campo Limpo, 84- G.R.C.E.S. união Independente da Zona Sul, 85- G.R.C.E.S. união de
3
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
Vila Albertina, 86- G.R.C.E.S. Unidos de Guaianazes, 87- G.R.C.E.S. Unidos de São Lucas, 88-
G.R.C.E.S. Unidos de são Miguel, 89- G.R.C.E.S. Zum Zum de Itaquera, 90- G.R.C.E.S.M.A. Sai da
Frente, 91- G.R.C.E.S.U. Independente da Vila Prudente, 92- G.R.C.S. Iracema Meu Grande Amor, 93-
G.R.C.T.C.D. Pavilhão Nove, 94- G.R.E.E.S. Caprichosos de Vila Brasilândia, 95- G.R.E.S. acadêmicos
do Tatuapé, 96- G.R.E.S. Candeia do Cangaíba, 97- G.R.E.S. Colorado do Brás, 98- G.R.E.S. Dom
Bosco, 99- G.R.E.S. estação Primeira do Itaim, 100- G.R.E.S. Imperatriz da Paulicéia, 101- G.R.E.S.
Mocidade Unida da Mooca, 102- G.R.E.S. Primeira Lá de Casa, 103- G.R.E.S. Unidos do Vale
Encantado, 104- S.A.S. Falcão do Morro Itaquerense, 105- S.R.B.E.E.S. Lavapes, 106- S.R.C.E.S.
Primeira Cidade Líder, 107- S.R.E.S. império Lapeano.
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Se nos primórdios dos desfiles carnavalescos a força de uma escola de samba residia
na qualidade dos sambistas, no compromisso dos participantes com dita expressão cultural e
na capacidade de organização coletiva, hoje em dia o panorama é bem distinto. A efetivação de
um desfile carnavalesco depende de inúmeros fatores. Esses fatores, no entanto, são
subsumidos fundamentalmente a três capacidades colocadas em prática por uma escola de
samba: a capacidade criativa que fundamenta o fazer artístico; a capacidade organizativa de
racionalização do processo de confecção do desfile em todos os seus âmbitos; a capacidade de
mobilização de recursos materiais e humanos que sustentam essa organização social e
possibilitam a expressão artística.
Dentro dos moldes atuais da produção do desfile carnavalesco, este ensaio sustenta
que o terceiro fator, juntamente aos outros dois, é de vital importância para a existência de uma
grande escola. Todavia, é de se notar que a capacidade de mobilização de recursos materiais e
humanos está diretamente relacionada à localização geográfica de uma escola de samba.
A conceituação teórica que fundamenta o argumento disposto acima, de que a
localização é fator fundamental para a mobilização de recursos, é dada pelos pesquisadores R.
Kaztman e C. Filgueira, e diz respeito à concatenação entre estruturas sociais dispostas numa
dada localidade e a possibilidade de utilização dos ativos dessa localidade. Tal dinâmica foi
conceituada pelos autores como estrutura de oportunidades. Segundo os autores:
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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
para o interior. Como essa população trazia o samba rural, germe do samba paulista, a zona
norte do município teria sido um caldeirão efervescente de sambistas. Este ensaio assume o
argumento, mas ainda acredita que é insuficiente para a explicação que se busca.
Historicamente, está comprovado que bairros como o Parque Peruche, a Casa Verde e o
Tucuruvi eram grandes redutos de bambas. Essa presença de fato condicionou o surgimento de
escolas de samba como a Unidos do Peruche, a Morro da Casa Verde, a Império da Casa
Verde, a Mocidade Alegre, a Acadêmicos do Tucuruvi e a X-9 Paulistana. O que não se
explicou ainda de maneira convincente é a permanência de todas essas agremiações tão
próximas geograficamente no grupo das grandes escolas. Este ensaio sustenta que a estrutura
de oportunidades e os capitais material e social gerados por esses distritos de classe média e
classe média baixa são fundamentais. No entanto, este ensaio acredita que a presença de
redutos de sambistas e o poder aquisitivo concentrado nesses distritos não explicam em sua
totalidade tal fenômeno.
Cabe destacar que, no livro Batuqueiros da Paulicéia, Osvaldinho da Cuíca e André
Domingues afirmam que as escolas de samba Mocidade Alegre e Rosas de Ouro foram as que
mais se estruturaram enquanto instituição a partir das boas relações que estabeleceram com a
classe média paulistana, sendo essas duas as pioneiras da dita relação. Hoje, pode-se afirmar
que a presença da classe média está generalizada nas grandes escolas, sendo inclusive um
dos fatores de sustento delas9.
Para este ensaio, não existe uma maior concentração de sambistas em algumas regiões
da cidade em detrimento de outras regiões e nem há uma presumível melhor qualidade de
sambistas em algumas regiões. O caso exemplar é o baixo número relativo de grandes escolas
localizadas na zona leste de São Paulo. Com uma população de 3 milhões e meio de habitantes
e com a maior concentração de negros e pobres do município, a região por suas condições
precárias não consegue firmar muitas escolas entre as grandes, dada a necessidade de capitais
social e material para sustentar as escolas de samba. Localizadas em bairros pobres e longe de
grandes vias de acesso, Nenê de Vila Matilde e Uirapuru da Mooca, do Grupo 1, e Leandro de
Itaquera, do Grupo Especial, dobram seus esforços para se manterem vivas no meio do
concorrido e enriquecido carnaval paulistano. De certo, escola de samba é questão de
infraestrutura e patrimônio, questões relacionadas com espaço, localização e também com cor
de pele. Já foi o tempo em que bastava samba no pé e amor à escola.
9
Na mesma senda argumentativa está a cantora Leci Brandão, para quem a presença da classe média
teria enriquecido as escolas, mas também ajudado na democratização das mesmas. Depoimento cedido
ao jornal O Estado de São Paulo de 18/01/2010.
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Referências bibliográficas
CASTRO, Márcio Sampaio. Bexiga. Um Bairro Afro-Italiano. São Paulo: Annablume, 2008.
MARCOS, Plinio. Plinio Marcos em Prosa e Samba com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e
Toniquinho Batuqueiro. [S. l.]: Chantecler, p1974. 1 disco sonoro (LP).
URBANO, Maria Aparecida. Carnaval & Samba em Evolução na Cidade de São Paulo. São
Paulo: Editora Plêiade, 2006.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel; Fapesp; Lincoln
Institute, 1998.
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Resumo: Esse texto pretendeu reconstruir a memória musical do sambista Geraldo Filme e
suas relações com os grupos negros na cidade de São Paulo. Ao analisar e refletir sobre
essa memória, concluí que Geraldo Filme e os grupos negros elaboraram aquilo que
denominei de áfricas como expressões culturais de resistência para imprimir suas marcas,
projetos, fazeres e saberes em espaços específicos da cidade. Diante de uma cidade
impregnada pela urbanização, metropolização e verticalização que fora transformada em
projeto hegemônico das elites paulistas, as áfricas se configuraram como um contraponto
dissonante às formas culturais dominantes para operar outras cidades e outras vivências.
Quando conheci Geraldo Filme, não pessoalmente, mas através de sua música, me
pareceu sublime, singelo, bonito, sincero. Isso ocorreu através de um amigo músico2, que o
apresentou numa noite em 2001, não me lembro exatamente da data; lembro do som que
me encantara.
Após aquele encontro, a música de Geraldo Filme ficou ali comigo, habitando-me,
fazendo bem e me provocando uma vontade de querer saber mais. No fim do ano de 2002,
Geraldo Filme retorna, dessa vez não só pelos ouvidos, mas também pela imagem através
de uma entrevista que assisti. Aí tudo se confirmou. A admiração que eu havia construído
por ele no primeiro encontro ampliou-se, pois pude agora ver a força daquele homem negro,
de voz grave e intimista. Os seus sambas me soaram de forma intensa, fazendo-me
perceber que ali naquela música haveria possivelmente algo de diferente. Aquilo que soara
diferente era a extensa memória que envolvia aquele canto. Mas eu não sabia disso ainda.
O que eu comecei a ter naquele momento foi um desejo de pesquisa que nascia para saber
mais sobre aquele homem, sua música e sua história.
Na memória do samba em São Paulo, “Seu Geraldo” ou “Geraldão da Barra Funda”,
como assim o chamavam, ocupou um lugar de respeito e admiração entre as pessoas
envolvidas, pois foi um dos homens que traduzia e trazia em si o que era o samba paulista.
Esse respeito e admiração eu percebi e guardei na memória quando estive em um ensaio
da escola de samba Quilombo do Educandário3. Nesse ensaio perguntei a um passista
1
Prof. Dr. do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). É Professor de História da África e Secretário do CECAFRO
(Centro de Estudos Africanos e da Diáspora) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP).
2
“Lê Menestrel”, músico.
3
Essa escola não chegou a sair nos carnavais. Ela ficou restrita às rodas de samba que ocorriam aos
finais de semana na Cohab Educandário.
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quem era Geraldo Filme. Em seu rosto abriu-se um sorriso e uma mistura de respeito e
alegria que respondiam a minha pergunta. Ali percebi a importância de Geraldo Filme como
uma memória a ser preservada.
O contato com sua obra e com sua imagem levaram-me a pensar sobre as memórias
africanas que foram recompostas em São Paulo. As Áfricas4 emergem nos ritmos,
vocábulos, cantos com significados históricos e culturais seja como memória e imaginário,
mas também de modo concreto nas atitudes culturais. A obra de Geraldo permitiu esse olhar
para as Áfricas, onde elas surgem ressignificadas do lado de cá do Atlântico em certos
territórios da cidade de São Paulo, como os bairros do Bixiga, Barra Funda e Liberdade com
costumes e sentimentos vividos em torno do samba, do carnaval e em aspectos de sua vida
íntima, amorosa e familiar.
Essa ligação entre samba e os afro-paulistas com as Áfricas não é automática nem
mecânica, o que se percebe na experiência social de Geraldo Filme e suas músicas são
sinais dessa ligação que aparecem como fragmentos, retalhos de uma memória africana
que fora acessada e recomposta entre os afro-paulistas através dos saberes orais
manifestados nas relações de família, amizade, práticas de trabalho, musicalidades, nos
salões de dança, cordões carnavalescos e escolas de samba.
Os estudos culturais sobre as memórias negras e mestiças no século XX ainda estão
se fazendo. No que diz respeito às práticas musicais, já existem reflexões historiográficas
que se propuseram a descobrir e problematizar quais foram os caminhos escolhidos, os
desejos e as intenções que a população negra teve em São Paulo nesse século. Tais
estudos mapearam, entre o pós-abolição e as décadas de 1930 e 40, suas novas formas de
sociabilidade como a vivência em rodas de sambas, a instituição de cordões e escolas
carnavalescas, a frequência de salões de dança, o que significaram estratégias para resistir
culturalmente na cidade5. A partir da década de 1950, essas atividades culturais, sociais e
4
O termo Áfricas significa pensar que a África não é um território homogêneo. Ao contrário, há
diferenças entre as culturas, os tempos históricos e os povos que a habitam. Nesse sentido, há uma
diversidade de áfricas que multiplicam as memórias que lá foram e são vividas. O termo “África” vai
aparecer no singular e no plural. Ambas as possibilidades devem ser consideradas, pois a
historiografia que trata dessa temática considera os dois conceitos viáveis para a compreensão das
memórias e culturas de suas populações. E ao longo do texto vou utilizar o termo “Áfricas” com “A”
maiúsculo para tratar do continente e suas populações, o que difere do termo “áfricas” com “a”
minúsculo por se tratar do conceito que explica as vivências e memórias negras em São Paulo.
5
Iêda Marques Brito. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência
cultural, 1986. José Geraldo Vinci. Metrópole em Sinfonia: História, cultura e música popular na São
Paulo dos anos 30, 2000. José Geraldo Vinci, Sonoridades Paulistanas, 1989. Raquel Rolnik.
Territórios Negros. Uma História. José Carlos Gomes da Silva. Negros em São Paulo: espaço público,
imagem e cidadania, 1998. Carlos José Ferreira dos Santos. Nem Tudo era Italiano. São Paulo e
pobreza (1890-1915), 1998. Maria Cristina Wissembach. Ritos de Magia e Sobrevivência:
sociabilidade e práticas mágico-religiosas (1890-1940), 1997. Maria Cristina Wissembach. Da
escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível, 1998. Em minha leitura, todos
esses estudos apresentam formas de como os grupos negros resistiram culturalmente na cidade à
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
imposição de uma urbanidade que foi sendo gestada como dominante e como projeto hegemônico
que tentava apagar as dissonâncias culturais ligadas às práticas populares.
6
Georg Reid Andrews. Negros e brancos em São Paulo, p. 294-295, 1998. Roger Bastide e Florestan
Fernandes, Brancos e Negros em São Paulo, 1971. Roger Bastide. Brasil: Terra de Contrastes, 1968.
7
Eudes Campos, São Paulo na visão classi(ci)sta de Prestes Maia. Revista do Patrimônio Histórico:
Secretaria Municipal de Cultura, n. 4, p. 43, 1996.
8
Kwame Anthony Appiah. Na Casa de meu Pai: A África na Filosofia da Cultura, 1997, p. 11.
Kabengele Munanga. Negritude: Usos e Sentidos, 1986.
9
Roberto Moura. Tia Ciata e pequena África no Rio de Janeiro, 1983. A expressão utilizada por
Roberto Moura foi pensar a pequena África na cidade do Rio de Janeiro de modo singular. O que
proponho no meu texto é refletir sobre as áfricas de modo plural a partir de São Paulo e que não
estiveram circunscritas a um ou outro espaço, mas espalhadas por toda a cidade.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
10
E. P. Thompson apud Déa Ribeiro Fenelon. E.P. Thompson - História e Política, Projeto História 12,
São Paulo, 1993, p. 81.
11
Walter Benjamim. Magia e técnica, Arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura,
1985.
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O samba como projeto de vida permitiu também refletir sobre as conexões com o
mundo atlântico ligado à África. Foi possível pensar em alguns aspectos das culturas de
povos bantos da África Central que permaneceram na musicalidade e na experiência social
de Geraldo e foram ressignificadas no espaço urbano da cidade, sendo fundamentais na
construção de uma cultura afro-paulista com especificidades e marcas singulares em
relação a outras culturas.
Entre os séculos XVI e XIX o Atlântico se configurou como um espaço líquido por
onde teias de comunicação entre as Áfricas, as Europas, as Américas e especificamente o
Brasil se fizeram constantemente. Mesmo com o fim do tráfico humano, da escravidão e
com o pós-colonialismo, os registros culturais dos povos do continente africano não se
apagaram. Nem tudo foi desagregado com a tentativa de dominação cultural. Isso se deve
às evidências históricas na contemporaneidade que nos mostram a permanência dessa
cultura que foi ressignificada em terras americanas e brasileiras.
Um olhar mais atento e arejado considera esses registros uma perspectiva
historiográfica onde a História das Áfricas surge como um novo horizonte possível de
reflexão. Não é possível negar a força dessas Áfricas, sobretudo no campo religioso e
estético onde artes, música, design, decoração, indumentária como tecidos e cores,
religiosidades, tipos de cabelos, gestualidade corporal, modos de dançar, falar e cantar
revelam fazeres e saberes oriundos de um modo de pensar africano enraizados na vida
social dos negros. Essas Áfricas estiveram vivas na experiência social de Geraldo Filme,
não como recorrência a um passado, mas como forças ativas e reimpressas na cidade como
projeção de futuro12.
Na sua produção discográfica, especificamente o disco “Canto dos Escravos” de
1982, percebe-se as nuances de africanidades que existiram nos visungos cantados por
escravos de Minas Gerais no século XVIII e que foram regravados e reinterpretados por
Geraldo Filme em parceria com Clementina de Jesus e Doca da Portela. Esse disco registra
esses “africanismos” sonoros, mesmo sob um processo de intensa urbanização, que tentou
alisar as experiências urbanas de uma maneira geral. No disco de Geraldo, essas
musicalidades não desapareceram; ao contrário, aparecem como uma perspectiva possível
de música que reafirma as culturas africanas em São Paulo.
O disco com suas letras, capa, cores, musicalidades, instrumentações e ritmos
permitiu-me perceber um registro histórico que tem na grafia sonora o vestígio de uma
memória musical. Essa grafia imprime uma africanidade nas formas de tocar, cantar e na
perpetuação de ritmos. A audição dos sons dos instrumentos, como tambores, agogôs e
tamborins significam a tradução de uma cultura material com seus saberes e fazeres
12
Stuart Hall. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, 2003.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
baseados na oralidade. Esses instrumentos e seus sons sinalizam para um gosto estético e
uma consciência de preservação da cultura ao serem, em um primeiro momento,
produzidos; em um segundo, executados, e em um terceiro, com a evocação dos ritmos que
atualizam e conservam um modo de tocar, dançar e sentir o mundo.
As suas letras significam uma concepção estética onde a arte tem uma interferência
política no mundo. E Geraldo, ao fazer essa inferência, recorre aos instrumentos que lhe
estão à mão para projetar a história num horizonte prospectivo. Operando no terreno da arte
Geraldo faz uso da ambiguidade de sentidos que é próprio dessa linguagem, porque ela não
está no mundo para responder, e sim para indagar, questionar e romper com formas
dominantes da cultura13.
Nesse sentido, suas letras e músicas provocam sensações e criam mundos que
ainda não se cristalizaram como ideologias, convenções ou práticas dominantes14. Nelas,
tem-se a oportunidade de perceber o real a partir da sua subjetividade, de onde aparecem
sinais dos seus sentimentos íntimos, projetos não consumados, perspectivas que avisam as
visões de mundo em que acreditava e que não se impuseram por completo devido ao
campo de forças hegemônicas da cidade15. As letras, como microtexto literário, não são
espelhos ou reflexo da realidade, mas como Geraldo sentia a realidade e desejava um
mundo ainda não vivido16.
Geraldo explorava nas letras os modos de vida dos negros e como esses teimavam
em não acompanhar algo determinado pela urbanização que projetava a cidade
monumental. Outros projetos de cidade foram possíveis para se viver no espaço urbano da
metrópole como resistência cultural, que ora enfrentou, ora se desviou, ora incorporou os
projetos hegemônicos para redefinir e rearticular as práticas culturais17. Na música
“Reencarnação” Geraldo narra o crescimento urbano da cidade, o desaparecimento da “mãe
preta” que sobrevivia do pequeno comércio da venda de café, pipoca, pamonha e quentão e
do seu desejo de reencarnar-se como negro. O desaparecimento da “mãe preta” e suas
práticas de trabalho revelam como uma ideia de urbanidade foi gestada em um processo de
13
Beatriz Sarlo. Paisagens Imaginárias, 1997.
14
Raymond Willians apud Beatriz Sarlo, Paisagens Imaginárias, p. 90.
15
Nicolau Sevcenko. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira
República, 1983.
16
Maria do Rosário da Cunha Peixoto. E as Palavras têm Segredos- Imagens de Criança na
Literatura Infantil Brasileira de Resistência. 1997, p. 10.
17
Stuart Hall. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais, 2003, p. 255.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
hegemonia18 que excluiu, segregou, invisibilizou e impôs uma determinada cidade. Como
contraponto a essa imposição, Geraldo, ao dizer que gostaria de “nascer negro novamente”,
cria uma contra-hegemonia que se faz também em processo vivo e histórico mesmo no
campo do desejo que seria o do renascimento. Nesse sentido, na sua cidade as áfricas têm
lugar garantido como memória e território se colocadas em perspectiva como expressão
cultural que existem, de forma desobediente ao campo de forças das relações de poder e
dominações culturais. Desse modo, a cultura popular negra funcionou sob essas
possibilidades de relação com o espaço urbano e com as formas dominantes, e em tensão
por sofrer obliterações e interferências. O que se vê com isso é que a cultura popular negra
não se manteve intacta, pura e autêntica; ao contrário, ela teve que se redefinir nessa
tensão entre imposições e resistências para continuar existindo19.
A revelação dessas múltiplas cidades e vivências não dominantes se fez a partir do
exercício artístico musical estimulado por Geraldo durante toda a sua vida, como analisado
nos seus discos. Esse exercício de Geraldo, transformado em músicas e letras, permitiu-lhe
capturar pequenos gestos, práticas e formas de sobrevivência.
Geraldo teve uma pequena produção discográfica ao longo de sua carreira artística.
Ele foi um daqueles casos de músicos pobres que só conseguiram gravar seu primeiro disco
após muitos anos de carreira musical vivido fora dos círculos da indústria fonográfica. No
caso específico de Geraldo ele grava o primeiro disco solo aos 53 anos de idade, em 1980.
Os discos que Geraldo gravou não permitiram deixar registrada toda a sua obra.
Nesses discos estão apenas algumas músicas que significam fragmentos daquilo que ele
produziu20. Seu filho Ailton contou que seu pai possuía um caderno com incontáveis
composições que não foram gravadas, o que significa dizer que os discos foram apenas
parte de sua obra.
Mesmo sendo restrita sua produção fonográfica, as canções que ali estão recobrem
um período específico que esteve circunscrito entre as décadas de 1960 e 1980. As
gravações desses discos permitiram a Geraldo imprimir no mundo do samba uma
singularidade que se expressa na voz, na interpretação e na forma de compor os temas,
além de personagens com vivências históricas que se passam no ambiente urbano e rural.
Esses discos definem minimamente o estilo, a especificidade, a estética particular desse
sambista que se configurou pelo samba-protesto, pelo samba-denúncia, em que um olhar
político sobre a sociedade, a cidade e o presente histórico dele se fez de forma crítica.
18
Raymond Willians. Marxismo e Literatura. 1979.
19
Stuart Hall. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais, 2003.
20
Geraldo gravou em 1968 o primeiro disco em parceria com a intérprete Carmélia Alves. Nesse disco
ele canta seis músicas, sendo uma delas de sua autoria. Em 1970, gravou sete samba-enredos, num
disco produzido pela escola de samba Unidos do Peruche. Em 1980, grava seu primeiro disco solo
chamado “Geraldo Filme” e em 1982, em parceria com Clementina de Jesus e Doca da Portela, grava
o disco “O Canto dos Escravos”.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
O primeiro disco, “Em prosa e samba”, foi feito em parceria com o dramaturgo Plínio
Marcos e com os sambistas Toniquinho do Batuque e Zeca da Casa Verde na década de
1960. Desse disco pouco se sabe, pois não se encontra mais em catálogo e nem mesmo
nos chamados “sebos” de discos, um comércio informal que havia na cidade nas décadas
finais do século XX, os quais eram verdadeiros arquivos sonoros.
O segundo disco, gravado em 1980 pela gravadora Eldorado, foi de fato o primeiro
LP em que Geraldo teve a oportunidade de gravar suas composições e expor seu trabalho
ao público. Nele, várias são as temáticas, personagens e ambientes sociais que compõem a
poética e os arranjos sonoros do disco. Nesse disco aparecem curandeiros, operários,
meninos de rua, mulheres negras trabalhadoras, sambistas, escolas de samba como o
Paulistano da Glória, espaços como o Bixiga, narrativas sobre a cidade de São Paulo e
sobre o afro-brasileiro, formando um mosaico poético e social que definem o sentido desse
Long Play. Denunciava a situação desfavorável dos grupos negros diante do processo de
urbanização e industrialização que se intensificara na segunda metade do século XX,
imprimindo novos rumos para a sociedade, cujo epicentro mais emblemático se fez em São
Paulo. Revela as experiências e perspectivas incongruentes com aquilo que passaria a ser
chamado de modernidade, pois a pobreza e a exclusão social vividas pelos negros revelam
o fracasso que foi a industrialização. Nesse sentido, a leitura e a experiência particular de
Geraldo ganham relevos mais acentuados quando é posto o contexto da urbanização como
pano de fundo por onde a sua vida e a vida das personagens que construiu se passaram.
As vivências das camadas populares e negras são capturadas e explicitadas nas
letras e músicas, quase imperceptíveis e sufocadas frente à cidade que se transformou na
metrópole dos edifícios, negócios, serviços e indústrias nas últimas décadas do século XX.
Ao fazer desaparecer práticas populares como da “mãe preta”, o processo ativo de
modernização urbana como hegemonia cultural passou pela construção/imposição de um
tempo único e cidade única. Em oposição a isso, as cidades de Geraldo apresentam
múltiplas temporalidades e vivências.
Com a música há sinais de que outras vivências, sonhos e realizações foram
possíveis. A concretização desses projetos passou pelo espaço da criatividade artística para
sua efetivação, ocorridas em zonas alternativas ao enquadramento e à normatização da
cultura. Sua música, ao insinuar outras possibilidades, projetou-se, com estética própria,
como ruptura e projeção de novos rumos21. A música como conjunto que engloba literatura,
instrumentação e som pode ser vista como “produto do comportamento humano na
sociedade na qual está inserida culturalmente”22, e enquanto tal traz indagações, conflitos,
21
Beatriz Sarlo. Paisagens Imaginárias, p. 55.
22
Kazadi Wa Mukuna. Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: Perspectivas
Etnomusicológicas, p. 31.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
desejos e delírios íntimos, que se apresentam às vezes como possibilidade de futuro. Como
expressão sonora e literária, a música possibilita explorar sensibilidades e pensamentos que
se processam social e psiquicamente numa conjuntura histórica específica.
Ao capturar o miúdo, o não estabelecido, o não dominante postos nas vivências
negras e populares, protegeu memórias na cidade que foi cruel e apartava os
desafortunados. Mais do que dar respostas, a arte de Geraldo produziu inquietações23 ao
revelar as desigualdades: comprometeu-se mais com aquilo que poderia ser, ao questionar
a ordem de como a cidade era, e de como os menos favorecidos a viveram. Não há
oposições entre realidade, ficção e desejo. Essas dimensões se misturam para trazer à tona
outras realidades históricas pela via da música. Suas letras indagavam sobre os
preconceitos étnicos, apontando as feridas sob os efeitos nefastos da marginalização que as
personagens viviam ao estarem em zonas trágicas da urbanização de São Paulo. Ao
retratar essas experiências de desajustamento em meio a uma estrutura social injusta,
sinaliza desejos de mudança. Incorporou a alma do poeta ao apontar o futuro por se afligir
com o presente. Moveu-se por um sentimento de descontentamento.
Os seus discos se inscrevem num contexto de redemocratização, anistia política e
luta contra a ditadura. Engajado contra o militarismo, Geraldo não se furta de por em
evidência as mazelas do país e da cidade de São Paulo por meio das letras de música.
Denuncia a pobreza, o racismo, a sensação de modernidade que as classes privilegiadas
sentiam, valoriza a experiência da população afro-descendente no processo de formação do
país. É um sambista que adota a postura de um militante político e cultural. Opôs-se ao
autoritarismo do regime militar mesmo não falando diretamente sobre isso em suas músicas.
Utilizou de um caminho diferente dos movimentos políticos e sociais da época que se
opunham à ditadura, militou como um músico do samba-protesto, do samba-indignação, do
samba-enredo e do samba-de-festa.
Nos limites e espaços que ainda sobravam naquele momento em que produziu seus
discos entre os anos de 60 e 80, trabalhou artisticamente o imponderável, o não organizado,
a história dos pormenores das vivências que foram abafadas pelo sistema urbano-industrial
e pela ditadura, criticou a legitimidade da urbanização e insinuou rumores para uma história
que ainda poderia ser vivida.
A tarefa de reconstruir a memória de Geraldo Filme e das áfricas pode ser sinal de
uma história que pode ser vista em perspectiva. Sua memória possibilitou perceber, no
tempo presente, que o futuro das áfricas estará nas formas de como os grupos negros terão
que resistir cultural e politicamente para reinventá-las cotidianamente, seja no âmbito
23
Beatriz Sarlo. Paisagens Imaginárias, p. 56.
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público ou privado. Essa postura política pode projetar as áfricas paulistanas como uma
perspectiva de cidade em coexistência com outras cidades e outros modos de vida.
Devido às formas de resistência terem sido operadas das mais diferentes maneiras,
Geraldo Filme e os grupos negros forjaram modos de viver modulados pela reconstrução e
ressignificação de valores culturais com traços africanos. As cidades com marcas negras
existiram sob uma experiência social que se fez no entre-lugar da cidade hegemônica,
através da criação de outros projetos, possibilidades e temporalidades. Por dentro da cidade
objeto e dominante emergiram vivências movidas por um forte sentimento de comunidade e
de tradição oral. As relações familiares, de amizade e musicais tiveram na vivência
comunitária e na tradição de oralidade os valores norteadores das escolhas pessoais e
posicionamentos políticos para construir as áfricas. A partir dessas estratégias elas foram
vividas de forma múltipla e difusa, que se fez em práticas culturais no espaço público, em
relações afetivas no espaço privado, na gestualidade corporal, nos falares, saberes, nas
danças, musicalidades, nos carnavais, nas organizações culturais e educacionais através de
blocos, cordões e escolas de samba e, no caso específico de Geraldo Filme, amplia-se
também para o teatro e a pesquisa histórica, pois se dedicou a essas atividades.
Elas funcionaram também em negociação com outras culturas onde tiveram que
compartilhar espaços comuns, como foi o caso, por exemplo, do bairro do Bixiga, da Barra
Funda e da Liberdade. Desse modo, uma relação de coexistência cultural teve que ser
incorporada pelos mais diferentes grupos étnicos na cidade para tornar a vida possível.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
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MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte,
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SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
Discografia
______. O Canto dos Escravos. São Paulo: Eldorado, 1982. Número de série: 64820347.
GERALDO FILME - Por seus autores e intérpretes. São Paulo: Sesc, 2000.
MÚSICA BRASILEIRA deste século: por seus Autores e Intérpretes. São Paulo: Sesc, 2000.
Documentário
GERALDO FILME: Criolo Cantando Samba Era Coisa Feia. Direção: Carlos Cortez. São
Paulo: 1998. Documentário.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
Fotografia
GERALDO FILME- imagem da capa. São Paulo: OESP, [19--]. Cedida pelo arquivo das
escolas de samba de São Paulo.
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Resumo: O samba é um gênero ligado diretamente ao carnaval, tendo sofrido influência das
diferentes fases dessa festa em seu processo de formação e de transformação. As escolas
de samba do Rio de Janeiro exerceram influência determinante na caracterização rítmica do
samba. Em São Paulo, os cordões carnavalescos executavam a chamada marcha-
sambada, influenciada pelos sambas rurais do interior do estado. Este artigo trata da relação
entre o carnaval e o samba, apontando os diálogos e rupturas no processo de
transformação desse gênero.
3
Desfile de carros enfeitados.
2
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O primeiro cordão carnavalesco paulistano foi criado por Dionísio Barbosa em 1914 e
chamava-se Cordão da Barra Funda (posteriormente Camisa Verde e Branco). Dionísio
morou no Rio de Janeiro, onde teve contato com os ranchos carnavalescos de lá, além das
bandas militares, populares no início do século XX. Assim, Dionísio resolveu criar um grupo
carnavalesco em São Paulo. No entanto, o contexto cultural, social e histórico da capital
paulista era bem diverso do da capital fluminense e os primeiros cordões carnavalescos
paulistanos exibiriam características peculiares. Visualmente, os cordões se caracterizavam
pela presença do Baliza, personagem que executava malabarismos com um bastão e abria
caminho para a agremiação carnavalesca passar entre os foliões, além de defender o
estandarte do grupo, o próprio estandarte, símbolo maior do cordão, e corte com rei, rainha,
príncipe etc. Os elementos musicais característicos eram a batucada, responsável pela
manutenção do ritmo do desfile por meio da execução de instrumentos de percussão e
sopro, com destaque para o bumbo, e o chamado choro, grupo responsável pelo
acompanhamento melódico e harmônico, com instrumentos de corda, cavaquinho e violão, e
também de sopro, como trompete, trombone e saxofone. O ritmo interpretado pelos cordões
era a chamada marcha-sambada, que mesclava elementos dos sambas rurais paulistas e
da marcha.
3
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
4
Manzatti discute em seu trabalho Samba Paulista: do centro cafeeiro a periferia do centro (2005) a
terminologia adotada por Mário de Andrade e aponta sua origem e adequação à denominação dos
sambas paulistas analisados por Mário.
4
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maxixe era dançado em par e sua rítmica, teoricamente, não colaborava para um desfile.
Um dos principais nomes do grupo de sambistas do Estácio, Ismael Silva, explica: “É que,
quando eu comecei, o samba da época não dava para os grupos carnavalescos andarem na
rua... O estilo não dava pra andar” (CABRAL, 1996, p. 28). Maximo e Didier, que também
entrevistaram o mesmo sambista complementam: “Segundo Ismael, a necessidade que os
blocos têm de cantar sua música marchando e não dançando, se deve ao samba do Estácio
de Sá suas características” (MAXIMO; DIDIER, 1990, p. 118). Entretanto, os mesmos
autores, bem como Sandroni (2001), apontam essa postura mais como um rompimento com
a forma “amaxixada” de fazer samba do que propriamente uma questão de adequamento
musical coreográfico à nova maneira de brincar o carnaval.
Já em São Paulo, a marcha-sambada também se aproximava da marcha, mas com a
influência dos sambas rurais, ou samba de bumbo, com rítmica diversa do samba carioca. A
presença do bumbo parece ser a característica mais marcante dessa manifestação, e o
termo “samba de bumbo” torna-se emblemático. Tal terminologia engloba uma família de
manifestações negras de canto, percussão e dança originária dos batuques negros
cultivados em toda a América desde o início do tráfico de escravos. Segundo Manzatti, as
distinções apontadas por antigos folcloristas como Rossini Tavares Lima e o próprio Mário
de Andrade, com o uso de denominações distintas para as manifestações, confundem
quando da identificação desse gênero como oriundo da mesma matriz africana, e os nomes
“samba lenço”, “samba rural”, “samba de Pirapora”, “samba campineiro”, entre outros,
designariam variações do mesmo ritmo, chamado por este autor de samba de bumbo, ou
simplesmente samba paulista (MANZATTI, 2005, p. 50). Em cada região essas
manifestações adquirem peculiaridades, resultando em nomes distintos, sem perder, no
entanto, características comuns a todas elas, frutos de uma raiz africana. Devido a essa
matriz comum do samba carioca, amaxixado e pós-Estácio, e do samba paulista é possível
identificar as similaridades e diferenças entre os estilos, bem como de que maneira foram
influenciados pela marcha.
Seu Nenê de Vila Matilde, importante líder carnavalesco da escola de samba
homônima, explica como aprendeu com Paulo da Portela5, durante um show realizado na
capital paulista no fim da década de 1930, as diferenças e similaridades entre o samba e a
marcha:
Paulo Benjamin, ele que falou pra gente que o ritmo é um só, a marcação
do surdo na marcha é um só, e daí ele marcou no teatro — o samba é
assim: um dois, um dois; eu vou chamar um surdo. Primeiro a marcha,
vamos ver — aí mandou marcar, tum dum, tum dum [toca ritmo de marcha
ao pandeiro], e falou: — tá vendo, isso é a marcha, agora na mesma
5
Líder carnavalesco da tradicional escola de samba carioca Portela.
5
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
marcação que vem é o samba, tum dum, tum dum [toca ritmo de samba ao
pandeiro]. Aí tá vendo [...] (Alberto Alves da Silva apud SEU NENÊ, 2000).
6
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
Nesse texto de Muniz Sodré, extraído do livro Samba o dono do corpo, podemos
observar uma sintética descrição do processo de transformação pelo qual passou o samba,
desde suas origens escravas até sua transfiguração para subsistir em novas situações
sociais e históricas. Se no Rio de Janeiro as influências urbanas deram novas feições ao
samba, em São Paulo o contexto de transformação dos batuques negros foi outro e o
samba paulista manteria características diversas das da vertente carioca até meados do
século XX com o samba de bumbo. Essas diferenças “evolutivas” do samba refletem-se na
criação das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo de maneiras distintas,
culminando na sobreposição das características cariocas a partir da imposição do
regulamento carnavalesco do Rio no contexto paulistano em 1968. Até então, as
agremiações paulistanas carnavalescas mantinham características inerentes ao universo do
samba rural (ou de bumbo), cultivado nas antigas festas religiosas no interior e na capital do
estado paulista.
No fim de 1967, alguns líderes carnavalescos paulistanos, com apoio do radialista
Moraes Sarmento, conseguiram que o então prefeito paulistano Faria Lima oficializasse o
carnaval de São Paulo. O desfile realizado no Vale do Anhangabaú passou a ter
arquibancadas e iluminação adequadas à festa e o concurso entre os grupos deixaria a
partir de então de ser organizado por jornais e estabelecimentos comerciais, passando a ser
também responsabilidade do poder público. O Prefeito Faria Lima, carioca e simpatizante
dos folguedos populares, encomendou a um carnavalesco carioca um regulamento para o
concurso entre agremiações paulistanas que, consequentemente seguiu o modelo do
carnaval da capital fluminense, que era dominado pelas escolas de samba (SIMSON, 2007,
p. 216). O radialista Evaristo de Macedo, incentivador do carnaval paulistano, foi
7
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pessoalmente à sede da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e obteve, com o
presidente dessa entidade, o regulamento carnavalesco, que seria adaptado ao carnaval
paulistano6. Entretanto, tal regulamentação não considerou as características paulistas dos
grupos carnavalescos, que tinham origem diversa daquela das escolas de samba cariocas.
O novo concurso estabeleceria no carnaval de São Paulo os padrões das escolas de samba
do Rio de Janeiro, criando a urgente necessidade de adequações estruturais, estéticas,
musicais e coreográficas das agremiações paulistanas ao novo modelo. A inauguração
dessa nova fase marcou o fim de diversos elementos tradicionais das agremiações
carnavalescas paulistanas. Em 1972, como resultado, os principais cordões, Vai-Vai,
Camisa Verde-e-Branco e Fio de Ouro, acabaram se tornando escolas de samba. Assim, a
figura do Baliza seria extinta, o estandarte se transformaria em bandeira, os instrumentos de
sopro deixariam de figurar nas baterias, a temática livre não seria mais permitida, dando
lugar ao desenvolvimento de um enredo, e a ala de baianas tornar-se-ia obrigatória. Os
grupos carnavalescos de São Paulo davam início a um processo de padronização, que se
mantém até os dias de hoje tendo como modelo aspectos das escolas de samba do Rio de
Janeiro.
Se a oficialização do carnaval acabou por suprimir características inerentes ao
carnaval paulistano, algumas agremiações se beneficiaram do fato, como a escola de
samba Nenê de Vila Matilde. Essa agremiação foi criada em 1949 por um grupo de amigos
da zona leste de São Paulo, liderados por Alberto Alves da Silva, posteriormente chamado
de Seu Nenê da Vila Matilde. A Nenê foi pioneira na implementação de elementos cariocas
em seus desfiles, já que o líder maior da agremiação tinha familiares na capital fluminense e
pode ter contato com as principais escolas de lá. Seu Nenê admirava muito as agremiações
cariocas e sempre buscou inspiração nelas. Assim, quando o regulamento do carnaval
oficializado paulistano forçou as agremiações a adaptarem-se à nova realidade dos
concursos carnavalescos, a escola de samba Nenê de Vila Matilde saiu na frente, pois já
possuía diversos elementos cariocas, como ala de baianas, mestre-sala e porta-bandeira e
um ritmo mais próximo do samba típico do Rio de Janeiro. Assim, a Nenê de Vila Matilde se
tornou uma das principais escolas de samba paulistanas, mantendo sua força até os dias de
hoje7.
O samba é um dos principais gêneros da música brasileira. Ao longo da história, ele
se mostrou extremamente dinâmico, assim como o carnaval, relacionando-se diretamente
com as transformações dessa festa. O samba sempre se adaptou a novos cenários sociais
6
Segundo depoimento do mesmo no documentário Samba à Paulista, fragmentos de uma história
esquecida.
7
Embora no carnaval de 2009 a agremiação tenha sido rebaixada com a penúltima colocação no
concurso entre as escolas.
8
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 40, fev. 2010
8
O livro Sambeabá, de Nei Lopes, apresenta um panorama de diversos estilos de samba.
9
No entanto, cada estilo de samba apresenta peculiaridades.
10
Ver A Batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de
samba paulistana.
9
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10