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1.

O QUE EU QUERO E O QUE EU POSSO


O conceito de terroir seduz qualquer cozinheiro. Da palavra francesa “terra”, ela
designa os produtos que vêm de determinada terra, e eu que sou cozinheiro, cedo à ela. O
problema é que o Brasil não possui muitos territórios que se enquadram na ideia de terroir;
diferente da Serra Gaúcha. Então desde que comecei a trabalhar, é pra lá que minha
atenção sempre se direcionou, mesmo que minha única intimidade com aquela região tenha
sido uma breve viagem à Gramado durante o Festival de Cinema.
No fim do ano de 2020, durante a pandemia, houve uma sensação generalizada de
que “o pior passou”, e com ela, os ânimos afloraram. Neste momento, o chef Arthur Bucco
inaugurou sua padaria artesanal na cidade de Bento Gonçalves, e o anúncio de vaga de
padeiro nesse empreendimento que surgiu no Instagram me fisgou. Como eu ainda tinha 25
anos, me sentia jovem o suficiente para tentar uma nova aventura e me candidatei à vaga.
Compareci às entrevistas via Zoom com sua esposa, Carla Bucco, que me chamou para um
período de experiência. Empacotei o que equivaleria a um mês de roupas, grãos de café
especial (que ainda eram acessíveis naquela época), aveia laminada, uma “colher-garfo”,
duas xícaras grandes, alguns instrumentos profissionais e pessoal de cozinha livros para os
momentos só. Decidi aproveitar a oportunidade para me abster de tabaco e maconha, então
não levei nenhum dos dois; como queria aproveitar pra conhecer a tradicional produção
vinícola, imaginei que os outros dois vícios seriam incompatíveis com a complexidade
sensorial dos vinhos.
Por conta das políticas públicas do governo Dilma, eu tinha acesso ao Id Jovem, o
que me permite fazer viagens interestaduais quase que de forma gratuita. Passei primeiro
por Curitiba, onde comemorei o ano novo com meu irmão e um grande amigo, e logo no dia
seguinte parti pra Caxias do Sul, cidade mais perto de Bento que tinha ônibus convencional
partindo da capital paranaense (já que o benefício vale só para ônibus interestaduais que
também devem ser da categoria convencional, o que limita as viagens). Depois de mais ou
menos 12 horas de viagem, cheguei em Caxias às 5:30 da manhã. Durante essa manhã,
assim como em outros vários momentos anteriores, investi meu tempo procurando
classificados de quartos no Facebook para o período que passaria lá da “temporada”. Meu
orçamento era bem curto, a expectativa era de me hospedar de cara naqueles hotéis que
deviam mesmo se chamar albergue, mas não o chamam pra não constranger os moradores
permanentes dele. No período que fiquei na rodoviária, acabei tendo uma resposta de um
dos anúncios: uma edícula com pia e banheiro, sem chuveiro, pelo preço de R$500 por
mês. A locadora se chamava Magda e parecia querer muito alugar aquele cômodo. Durante
uma breve ligação naquela manhã, ela explicou todos os pontos e poréns: pagamento
antecipado, não aceitava visitas e eu deveria não fazer ela de otária. Ela disse isso várias
vezes: que eu não deveria fazer ela de otária, ao mesmo tempo que depois insistia que o
imóvel atenderia às minhas expectativas. Pois bem, combinei uma visita para as 14 horas,
sem deixar claro que chegaria já de mala e cuia, na intenção de ficar. Aguardei ainda
algumas horas na rodoviária até chegar o primeiro ônibus metropolitano até Bento,
carregando um total de 25 quilos de bagagem, sendo uma mala grande de rodinhas, uma
mochila simples empanturrada e um mochilão de 65L cheio. Nesse momento dei graças por
não ter insistido na ideia de levar minha bicicleta desmontada.
Às 14 cheguei na casa da Magda: Um imóvel grande, de dois andares a duas
quadras do centro da cidade na rua Humaitá, numa descida íngreme. Ela não se assustou
com minhas malas, pareceu aliviada, sacou que eu ficaria com o imóvel. Não houve
cerimônia em explicar que não havia internet, que tinham mais duas famílias que residiam
no imóvel, e que minha edícula na verdade era uma “casinha de churrasco”, que servia
muito bem para quarto, se não fosse pela churrasqueira fedendo a fumaça no meio do
quarto que mais tarde seu marido, Valdir, tamparia com algumas tábuas. Sua filha, que era
mais ou menos da minha idade e fazia bicos de cozinha, e sua neta, moravam na metade
de frente à rua do imóvel; seu genro estava morando em outro lugar por uma briga de casal
recente. Na outra metade do imóvel, a virada para o interior do terreno, morava outra
família: de uma professora e seu marido, que não sabia ao certo a profissão, mas que
parecia ser cansativa visto que todo dia às 19 rolava uma cervejinha de lei na entrada das
duas “casas”, que eram duas portas na lateral da construção, em um longo corredor que
levava aos fundos. Eles tinham um casal de filhos, de 8 e 6 anos, que só consigo lembrar o
nome do menino, o mais velho: Vitor. Valdir era um cara grande e com cara de mal, que
surpreendentemente me ajudou em tudo que possível, foi cortês fazendo os dois cachorros,
o Paçoca e o Preto, se acostumarem comigo; apresentou a horta que estavam começando
e me chamou pra dividir uma cuia de mate. Magda tinha também um filho de 15 anos
chamado João Vitor, que junto do Valdir moravam no que era o “porão” da casa, que tinha a
entrada nos fundos; alí era confortável o suficiente para apenas se chamar térreo. A
construção tinha um total de dois andares. Fiquei aliviado em como tudo ocorreu
naturalmente, há menos de 6 horas eu não tinha nem expectativa onde me abrigaria, e ali
naquele momento já estava bem assentado. Terminei a cuia e fui atrás de um banco para
sacar o valor do aluguel.
No banco, percebi que minha conta não tinha o suficiente pro aluguel do mês, um
depósito que eu aguardava não tinha caído na conta ainda. Bateu um leve desespero
enquanto ligava pra quem me devia. O azar é que a pessoa não tinha Pix ainda, então o
depósito jamais cairia naquele dia, que era um Domingo, e talvez nem no próximo. Aceitei
as circunstâncias e fui pedir uma exceção pra Magda. Como eu não pechinchei o valor do
aluguel, esperava que ela fosse compreensível com as circunstâncias, até porque metade
do aluguel eu poderia pagar no ato.

- Você não vai me foder, né Vitor? As pessoas acham que só porque sou bacana
podem me foder. É bom que você não me foda! - Disse ela mudando de uma
expressão tranquila pra de transtornada.
- Pode contar comigo, Magda! Eu nem tenho com quem contar nessa cidade, se eu
chegar fodendo com quem me deu abrigo de cara não sei do que será de mim - Eu
disse, demonstrando uma sinceridade e medo semelhantes às de uma sessão de
tortura.
- Então tá tudo bem - Sua face voltou a ser angelical -, vou te mostrar o que fizemos
aqui pra você poder tomar banho - E me mostrou uma mangueira presa ao teto
dentro do cômodo externo que servia de lavanderia, onde ao mínimo eu teria
privacidade.

Me acomodei rapidamente, limpei todo o quarto, desfiz minha mala, e foquei no


descanso, logo na manhã seguinte seria meu primeiro dia na padaria. Acordei cedo, passei
um café com água quente emprestada pelos vizinhos, já que não tinha fogão ainda em
casa, e hidratei um pouco de aveia e uva passa com suco de laranja e fatias de banana por
cima, esse era meu café da manhã tradicional de todos os dias naquela época. Mais tarde
naquele dia conseguiria comprar um botijão de 5lt de gás, um fogaréu, e uma panela
emprestada da Magda. Decidi ir caminhando, até porque não entendia ainda como
funcionava o transporte público daquela cidade ainda. Foram 2 quilômetros tranquilos, com
belas vistas, desde a escadaria que começava na avenida principal, até uma construção
alta, antiga e chamativa, de onde vinha um cheiro de mosto de vinho. Cheguei 20 minutos
adiantado, me apresentei a todos e todas, e dediquei horas do meu dia a montar centenas
de caixas de pizza. No fim do dia, começou a chover. Esperei no ponto em frente da
padaria, onde passaram três ônibus, porém nenhum parou. O aplicativo da Uber não
sinalizava nenhum motorista disponível, mas foi caminhando até um trailer de cachorro
quente onde duas simpáticas irmãs trabalhavam, que consegui minha carona. Depois de
explicar meus motivos de estar ali em Bento, minha ocupação, que tinha apenas R$3 em
dinheiro vivo e que meu celular tinha acabado a bateria, a mais jovem e mais bonita das
duas, uma moça ruiva chamada Jéssica, se ofereceu a me ajudar:

- Um guri amigo nosso vai chegar daqui a pouco e ele te dá uma carona. Se eu
oferecer R$10 pra inteirar na gasolina, ele vai é agradecer. Posso confiar que você
vai pagar depois? - disse, depois de alguma conversa fora que trocamos sobre
lanches, pães e fermentação natural.

Agradeci tanto que ela pediu para que eu ficasse tranquilo. Quando o rapaz chegou,
percebi que ele era um senhor na realidade. Ela explicou a situação e ele pediu uma
contraproposta de R$15, mas aceitou os R$10 quando percebeu que era ela quem iria
pagar. Voltei extremamente aliviado pra casa.
Dois dias depois, no trabalho, a Carla me chamou pra conversar. Sentamos eu, ela e
o padeiro chef. Sem cerimônias, ela disse:

- Vamos dispensar seu trabalho, Vitor - Fiquei em choque. Tentei abafar minhas
preocupações: Mas não iríamos ao menos assinar um contrato de experiência de 45
dias? De 30 dias? Eu não tinha sequer dinheiro para me alimentar direito nos
próximos dias, e já tinha um mês inteiro pago de aluguel pela frente. Tentei de novo
abafar os pensamentos; fiz um exercício de fé, pensei “se eu não demonstrar
desafeto, eles ainda podem me indicar pra outros lugares, um estágio em uma
cantina quem sabe… Não posso estragar essa relação, não tenho outra
perspectiva…”. - Segundo nosso padeiro você não se encaixa na vaga, e preferimos
encerrar nossa relação desde já.

- Tudo bem… - disse eu, tentando esconder que estava quase chorando -, e como
fica o acerto?
- Acerto? - Escondi que fiquei surpreso com a pergunta.
- ...Não vou te cobrar nada pelos dias que eu trabalhei… Só leva um de cada pão seu
pro trailer de cachorro quente ali da esquina? Eu devo um favor pras irmãs que
trabalham lá, uma delas é ruiva e se chama Jéssica.
- Pode ser, eu levo os pães pra elas.

Minhas mensagens perguntando à Carla sobre os pães foram brevemente


respondidas até não serem mais, e depois da segunda vez que a Jéssica disse por Whats
não ter recebido nada, fiquei com vergonha de perguntar uma terceira vez.
2. ALGO NO CAMINHO
Depois da demissão voltei caminhando. Quando cheguei perto daquele prédio antigo
e vasto que exalava um aroma de mosto, vi que seus portões verticais de ferro estavam
abertos e vários trabalhadores estavam sentados e curtindo o horário do almoço. Percebi se
tratar do setor de recebimento de um vinícola, da Alvorada, para ser exato. Abordei um dos
funcionários de uniforme verde e galochas:

- Pessoal, o trabalho por aqui vale a pena?


- Ah, é pesado, mas paga bem. E tem de sobra - disse, enquanto tirava um cacho de
uvas de dentro da bota, como se tivessem escondidas, e comia-as tranquilamente -
Você pode conversar com o líder, o Enoque. Já já ele volta do almoço.

Esperei cerca de vinte minutos por esse líder enquanto conversava com os
trabalhadores. Absolutamente todos eram pretos, algo curioso pra uma cidade sulista, e
logo entendi o motivo: Todos vinham da Bahia. Com a chegada do líder, que também era
baiano, conversei alguns minutos sobre minha recente demissão, minha situação na cidade
e vontade de trabalhar. Ele me apoiou em buscar um trabalho naquela empresa, me
explicando que eles são prestadores de serviço da Alvorada, um serviço terceirizado. Me
indicou passar no escritório:

- Cara, passa ainda hoje lá no escritório. Videira e Santos o nome. Pra chegar
lá é simples, você pode pegar essa rua…- e me explicou um caminho nem
um pouco simples - Dependendo eles te contratam ainda hoje. E já aproveita
e pede pra eles colocarem você na minha equipe que gostei de ti!

Sorte grande. Só que não foi tão fácil encontrar o escritório. Desisti de encontrá-lo
no mesmo dia, invés disso decidi fazer o tour da unidade Matriz da Alvorada: Um complexo
industrial centenário, envolta ao qual a cidade de Bento Gonçalves foi arquitetada. Dezenas
de pipas (tonéis de mosto de uva) de milhares de litros, feitos de madeira de carvalho, que
algum dia serviram para envelhecer o vinho e lhe conferir complexidade, hoje servem
apenas para armazenar os sucos, já que os aromas da madeira foram gastos há muito
tempo. Como tradição daquela fábrica, toquei no pinto de uma estátua de Dionísio, deus
grego das festas, do vinho e promotor da paz, feita de cristais provenientes da fermentação
da uva. A superstição diz que quem toca seu falo, é abençoado com colheita abundante,
alegrias e paz, mas assim como o material que compõe a estátua sólida e reluzente, nem
tudo que brilha é relíquia ou prata. Durante o tour consegui o email da Daniela, chefa do RH
da Videira e Santos, conquista chave pra eu conseguir localizar o escritório.
Apesar do email, tentei encontrar a sede da Videira e Santos através dos meios
convencionais. Procurei no Google, que apontava a sede ser na Rua Juventude da
Enologia. Fui ao local indicado, mas era um galpão de outro negócio incerto, que não da
Videira e Santos, apesar de ter sido lá em outro momento. Pedi informações sobre a atual
localização de onde eu queria chegar mas foram ríspidos, aparentavam não terem gostado
que eu tivesse tocado no nome “Videira e Santos”. Recorri ao email. A Daniela me
respondeu com o endereço exato, uma rua no complexo industrial, quase em Garibaldi.
No dia seguinte acordei cedo e decidi ir a pé até lá. Eram oito quilômetros de
distância de onde eu residia, caminho que o Mapas não conseguia esclarecer direito. Tive
que pedir informações várias vezes, e numa delas tive a sorte de ganhar uma carona. Um
entregador de van me deixou na frente do galpão da Videira e Santos. Quando cheguei lá,
vi que só baianos trabalhavam lá, todos de galochas e uniforme verde grama. Não esperava
o chá de cadeira que iria tomar, me disseram que contratação era só com o Paulo, e que
ele estava para chegar, papo que foi repetido no decorrer das oito horas que esperei lá.
Nessa “jornada”, ajudei a limpar a parte escritório do galpão, carreguei algumas mesas e
cadeiras, e conversei com alguns funcionários. Eram plurais, homens de 18 anos à 60 anos,
dentre eles o que era conhecido como Pastor. Ele dizia:
- Se você for inteligente, vai conseguir fazer bom proveito do trabalho. Daqui a menos
de dois meses vai sair com R$4000 no bolso, eles pagam moradia, alimentação…
Com isso dá pra se manter uns seis meses lá onde eu moro, na Bahia.
- Isso com os benefícios?
- Não sei te dizer, não entendo muito bem disso… Sei que é sem os descontos. Se
você for como aqueles alí - E apontou pra uma roda de pessoas ao ar livre com um
homem engravatado no meio, onde parecia uma bronca coletiva - que só bebem e
vão pro puteiro, é aquilo ali que você tira.
- Como assim?
- É que se você faltar um único dia, com justificativa ou sem, eles descontam R$1200
reais.
Fiquei sem entender. Mas eu estava sem muita perspectiva e aquele salário me
parecia razoável, estava decidido a ficar naquele lugar até o Paulo aparecer. Chegando 18
horas, o engravatado me abordou dizendo que eu não conseguiria ver o Paulo naquele dia.
Me ofereceu carona de volta ao centro e trocamos contato. Marcelo era o nome dele, devia
ter uns quatro anos a mais que eu, e passava os finais de semana na capital. Ele era o
gerente da operação de frango, coisa que eu não entendia ainda naquele momento.
No meu primeiro dia desempregado na edícula, descobri que as três famílias
quebravam o pau dia e noite por la. Descobri também que o marido da Professora não era
pai do Vitor, apenas de sua irmã mais nova. O garoto não parecia gostar muito do padrasto.
Nesses dias matava o ócio conhecendo as missas das igrejas católicas do centro. Conheci
também a Praça do Breu, Praça da pista de skate ou Praça Centenário, segundo o Mapas,
único lugar onde consegui fazer amizades casuais e canal para comprar um baseado da
pior qualidade existente; eu realmente nunca tinha visto uma maconha tão ruim. Na Sexta,
Magda e Valdir gritavam tanto no decorrer da madrugada, que fiquei preocupado se não
estaria fazendo um mal em não chamar a polícia. Algumas horas madrugada adentro, vi
que a pessoa mais tóxica ali era a Magda. Ela jogava na cara dele podres de um aparente
passado nas ruas dele, enquanto ele tentava acalmar ela, sugerindo que não era ela quem
falava e sim o álcool. Fiquei mais tranquilo, apesar de que sabia que não deveria ficar.
Nesses dias as crianças brincavam bastante em frente a minha porta, coisa que eu não me
incomodaria muito mesmo ficando sempre com a porta aberta, se os pequenos não
entrassem sem pedir licença na minha casa. Eu apenas atuava um pouco de raiva e
mandava que eles zarpassem, mas só porque as crianças estavam querendo ficar muito
íntimas e não me pareceu apropriado.
Pela manhã tentei mais uma vez abordar a Videira e Santos. A caminhada foi
agradável, agora que sabia do caminho pelo trilho do trem. A vista era linda, o tempo
agradável, se não fosse pelo chá de cadeira que tomei novamente. Várias horas depois
voltei pra casa sem sucesso.
À noite a Mag botou as mãos em algumas parcelas atrasadas do Auxílio
Emergencial dela, e fez um churrasco pros três. Uma nova briga se iniciou e mal começou,
já fez com que o Valdir fosse embora da casa. Mal começou Magda a chorar, a Professora
já desceu com os filhos pra acalmá-la. Abri a porta da minha casa e me mostrei presente, e
já entrei no meio a convite da professora. Me perguntou meu signo:

- Sou pisciano!
- Ah, sabia que você era de água, se não fosse não estaria aqui agora com a gente.
Eu sou aquariana.
- Eu sou de Áries! - Disse Magda - É porque você é de água que você limpou tão bem
a churrasqueira assim que chegou? - Perguntou, mostrando que não entende nada
de astrologia.
- Hahaha, não! Deve ser porque sou cozinheiro…- Disse, enquanto eu ajudava a
grelhar as carnes, que Magda parecia já nem ligar mais.

Enquanto cozinhávamos e comíamos modestamente, eu limpava alguma louça


antiga da Magda. As crianças corriam envolta de mim como de pirraça, mas me juntei à elas
assim que terminei as louças, já que brincavam de “Naruto”, brincadeira que tenho
intimidade. Alguns gritos de jutsus depois, posições de mãos e cenas icônicas atuadas,
Vitor virou pra mim e disse:

- Quer ser meu pai? - Fingi naturalidade.


- Como assim, menino?
- É que minha mãe quer se casar com você. - Não consegui esconder o desconforto -
Dá pra ver no jeito que ela olha pra você.

Como por impulso, olhei pra ela: ela me olhava tão distraidamente, que sequer ouviu
o que seu filho acabara de dizer. Ele repetiu:

- Viu?

Dessa vez ela entendeu o diálogo que acabou de acontecer. Sem dizer uma palavra,
juntou seus dois filhos e se recolheu pros seus aposentos. Passei ainda algumas horas
conversando com a Magda.
Sábado era minha última chance naquela semana de conseguir algo. Acordei muito cedo
porque naquele dia tinha Feira do Produtor na Praça Centenário, sem saber que iria me
deparar com a minha futura segunda feira preferida, desde a Feira da Reforma Agrária.
Lá era um verdadeiro Mercado, com m maiúsculo. Alguns produtos só estavam
disponíveis nas primeiras horas da feira, tais como como peças inteiras de queijo, na sua
maioria frescos, já que não sobravam pra curar história; sucos frescos de uva extraídos
diretos de pipas de 250 litros, que logo começavam a fermentar na garrafa de dois litros-
modelo que iam a maioria dos vinhos daquela feira, Vinhos inclusive extremamente baratos!
Aquelas mesmas garrafas de dois litros, no caso cheio de vinho de uva americana,
custavam R$10. Alguns dos finos custavam R$12, 14… Todos da safra do ano anterior, é
claro. Se algum produtor chegou a engarrafar alguma safra excepcional, lá se ofertava
alguma garrafa de 750ml na maioria de espumantes e vinhos brancos no geral. Alguns
pacotes de arroz, na grande maioria do MST, até chegavam até o final. As nove, quando já
estão se preparando pra fechar, vendem caixas inteiras das frutas que sobraram por
R$2,50, R$8. Caixas de figos frescos, uvas, tomates, nem todas lotadas, claro, mas
basicamente com o que se restava daquelas frutas naquela barraca. Às dez a feira já tinha
acabado, mas é claro que eu não fiquei pra descobrir. Devia ainda caminhar alguns minutos
pra tentar uma última vez conversar com o Paulo.
Um dos vendedores com quem conversei me recomendou tentar o trajeto pela linha
do trem. Ouvi isso com surpresa, já que era coisa de quinta vez que perguntava sobre a
linha do trem, e pela primeira vez a resposta me animava. Perguntei pro feirante, César,
sobre:

- Mas todos falam que lá é tão perigoso que nem passam perto…
- E é porque nem passam perto que não sabem como é lá!

Saí com uma garrafa de Isabel, uma qualidade de bolacha que me escapam o
nome, mas eram muito especiais, precisei me guardar pra não devorar o pacote inteiro
invés de dois por vez. Um pote de chimia e uma peça de queijo meia cura que bravamente
durou até umas oito horas da feira. Curioso que a peça estava mais barata que os frescos.
Já lá no escritório, quatro horas Esperei mais uma vez em vão. Mas naquele momento eu
simplesmente não liguei. Foi inclusive quando escrevi pela primeira vez sobre aquela
viagem. Voltei para a cidade pela linha do trem, trajeto muito mais plano e belo que ir pelo
asfalto, e por conta de tudo que tinha na minha mochila, sorte da fome que me atacaria…

Na manhã seguinte recebi um áudio do Marcelo às sete da manhã:


- Cara, consegue ir lá no escritório às dez da manhã?
- Puts meu, hoje é domingo… Posso ir amanhã?
- Guri, só vá.

Pois fui. Demorou ainda uma hora e meia até alguém chegar pra abrir os portões:
Era o próprio Paulo e a Daniela. Paulo era também um baiano, de uns 45 anos, baixinho,
cabelo repartido no meio e lambido. Me cumprimentou e disse:

- Então aqui está o rapaz que Marcelo falou tão bem!

Fiquei sem graça e não tive abertura pra responder muita coisa, pediram pra eu
aguardar na sala de espera, e sentei naquela mesma cadeira que já estava com o formato
da minha bunda.
Mais uma hora depois chegou uma van grande, com 16 homens dentro. Todos se
juntaram à mim na sala de espera. Junto deles chegou um doutor, um médico. Ele faria o
exame admissional de todos. Pediram que eu fosse o último, concordei sem sequer querer
entender o motivo. Quando fui assinar o contrato, já na sala com o Paulo e Daniele, achei
estranho o homem que me guiou até lá - ou deveria dizer escoltou? -, era um homem baixo,
troncudo, que apontava olhares feios pra todos, menos pro seu patrão e patroa. Vestia uma
camiseta com o rosto do Bolsonaro com as palavras “Bolsonaro presidente” embaixo e uma
pistola que parecia ser uma glock pendurada na calça, apontando pras bolas. Era tensão
demais pra eu fazer qualquer coisa que não abstrair.
No escritório o Paulo me perguntou:

- Teu currículo é muito bom, cabra. Se comunica bem, não parece ser assustado…
Quer liderar uma equipe de 24 pessoas na unidade Parreiral da Alvorada?
- Mas é claro!
- E quanto tu quer receber?
- …R$2000?.. - Respondi quase que pedindo desculpas.
- Que seja R$2300, desde que não me traga problemas por horas extras ou qualquer
outra coisa. Amanhã te levo o contrato pra você assinar. Mando alguém às cinco da
manhã pra te pegar na sua casa.

Fiquei feliz tão pelo reconhecimento do meu esforço em conseguir trabalho naquele
lugar, que quase não liguei pro pequeno aumento no salário. Após essa conversa, todos se
reuniram num círculo, Paulo no meio falando em trabalho e esforço, conversa que se
encerrou com uma oração, protestante, diga-se de passagem. Naquele momento todo voltei
ao modo abstração por conta da presença e olhares do homem que parecia ser o
segurança particular do Paulo.
Acho que pelo tanto que armas são representadas na ficção, quando raramente
vemos uma pessoalmente, um choque de realidade acaba acontecendo. No final, uma arma
é apenas uma arma. Mas uma arma desleixadamente enfiada na calça de um homem com
cara de poucos amigos, vestindo uma camiseta com o rosto do Bolsonaro desperta um
alerta. Um desejo perverso assaltou minha cabeça, uma vontade de me recusar a participar
da oração ou de gritar “fora Bolsonaro”. Esses pensamentos sumiram quando percebi que
talvez eu apenas estivesse com medo. E um pouco do medo passou quando, num alívio,
lembrei ter dado meu endereço de Assis pro registro de trabalho.

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