Você está na página 1de 12

Fazia no mínimo 3 anos que eu desejava ir pra Serra Gaúcha.

Fiquei tanto tempo sentindo


que a Vindima me chamava, que não consegui ignorar a chance de ir Janeiro deste ano. Fui
por meio de uma chance de trabalho, uma vaga numa padaria artesanal de um chef
celebridade local, Rodrigo Bellora. Consegui uma moradia logo quando cheguei, mas no
segundo dia de serviço fui dispensado. Não me deram grandes justificativas, mas julgando
minhas concorrentes, duas meninas de 20 anos recém saídas da faculdade de gastronomia,
imaginei que eu não faria o perfil da vaga ofertada. Tentei ver pelo lado bom, uma
oportunidade que me motivou. De qualquer forma, sentia que havia uma razão para eu
estar em Bento, além de que ainda estava com um mês de aluguel pago numa casa que,
apesar dos donos parecerem terem algum envolvimento com o submundo, me deixaram à
vontade e se dispuseram de ajudar caso eu precisasse. Nessa casa viviam 3 famílias, a
dona era a Rosimere, que vivia com seu namorado, Valmir, e seu filho, João Vitor. Em
outros cômodos, vivia sua outra filha , que também tinha um filho chamado Vitor, e ainda em
outro cômodo uma moça bem simpática, que acabei por esquecer o nome, junto de seu
marido e seus três filhos (um deles também chamado Vitor). Todas as três famílias
quebravam o pau dia e noite, mas eu só me limitava a consolá-las quando era possível.
Adotei uma postura de humildade, afinal eu tinha acabado de chegar, e também não tinha a
pretensão de salvar o mundo. Me dei bem com eles até meu dia de saída, no qual fiquei
desejando “tudo de bom” para aquela pessoa maravilhosa que é a Rosimere. Ah,
lembro-me que quase perdi o chão num dia cinzento que fizemos churrasco para alegrar a
casa, depois que Valmir abandonou a Rosimere. Nesse dia fiz de tudo para agradá-la, até
que Vitor, o filho da moça jovem que não me lembro o nome, virou para mim na frente de
todo mundo e disse:
- Viu, você quer ser meu pai?
- Como assim, menino?
- É que a minha mãe quer se casar com você, dá pra ver do jeito que ela te olha.
Ela realmente estava me olhando naquela hora, e quando se tocou do que ouviu, recolheu
os três filhos na mesma hora e os levou para seus devidos cômodos. Fiquei com medo de
que o marido dela, macho de carteirinha, viesse tirar satisfação comigo.
Uva orgânica comprada na feira ecológica ao lado dos meus precários instrumentos.

A caminho da padaria notei um cheiro de mosto de uva. Na volta de quando fui dispensado
do serviço, fui guiado pelo olfato até o encontro com as uvas. Lá perguntei para um líder de
uma equipe de peões, chamado Oséias, sobre a chance de eu conseguir serviço, o qual me
disse:
- Cara, passa lá no escritório. Certeza que te arrumam serviço, e se puder fala pra te
mandarem pra minha equipe que gostei de ti.
Pois bem, a muito custo, consegui o endereço do escritório. Lá no distrito industrial, há uns
8 km de onde eu estava morando. Em todas as 3 vezes que passei lá, fui uma parte do
trajeto a pé e outra parte de carona. Fiquei esperando horas no saguão, enquanto
esperava, ajudei a mover móveis, limpar chão… No último dia, esperei 6 horas e nada de
me atenderem. Um dos executivos me deu carona para casa e pediu meu número. No
domingo seguinte, ele, o Matheus, me mandou um whats:
- Passa lá no escritório que o Pedro vai falar contigo.
- Mas hoje é domingo! Não pode ser amanhã?
- Cara, só vai.
Pois fui. Cheguei lá pra encontrar com o tal de Pedro, um cara que, apesar de andar com a
Hilux do ano, estava com o cabelinho separado no meio, com gel, e roupas simples. Me
recebeu no escritório e disse:
- Cara, me falaram bem de você. Tu se comunica bem, pelo currículo é estudado…
Quer liderar uma equipe de 24 pessoas na unidade Vinhedos da Aurora?
- Mas é claro!
- E quanto tu quer receber?
- R$2000, pode ser?
- Que seja R$2300, desde que não me traga problemas.

Quando estávamos indo pra vinícola o Roberto veio rindo comigo na van, mostrando um
vídeo de dois bêbados jogando uma capoeira vulgar. Era um vídeo de dois homens com
barriga de cerveja (e uma cerveja na mão), gingando de uma maneira ridícula e beijando a
virilha um do outro. Depois desse vídeo, instalou-se o termo "capoeira gaúcha". Leandro,
que é professor de capoeira disse:
- Se eu vejo uns cabra desses fazendo isso na minha frente, eu mato.
Naquela hora eu não acreditaria se me contassem o quanto eu me daria mal com essa
equipe. No início eramos 7 na Aurora Vinhedos, mas aumentamos de número
exponencialmente, e eu liderava todos esses homens vindos na Bahia, negros em sua
maioria, e mais velhos que eu.
O primeiro que me estranhei foi o Kennedy. Fui pedir pra ele descarregar um caminhão
com a equipe; ele não quis ir. Como se não bastasse, ficou me respondendo igual uma
criança, e eu não suporto isso. Falei alto, errei ao entrar no jogo dele, e quando consegui
me desviar da situação, só ficou a impressão de que não tenho pulso firme. No final do dia,
o pior aconteceu: fui instruir o Roberto a limpar o chão e ele simplesmente me mandou
vazar. Disse que não queria ver minha cara. Insisti em tentar entendê-lo, mas só piorou a
situação:
- Não quero você perto de mim! Tu não serve pra ser líder! E ainda fica escamando,
se coçando todo. Se você me passar alguma doença vou te encher de porrada!
Na semana seguinte, numa segunda-feira, tudo aconteceu extremamente rápido. Fui
trabalhar deprimido, a partir daquele semana o trabalho duraria das 7 da manhã até às 22h
da noite. Quando acordei às 4, já fui inundado pelo pensamento de que talvez esse trabalho
fosse análogo à escravidão. A única coisa que me consolava era a ideia de que minha
presença naquela equipe poderia colaborar para o bem estar daqueles indivíduos, mas eu
estava claramente me iludindo.
Logo cedo a responsável pela segurança do trabalho fez uma breve reunião conosco. Lá
eu questionei sobre o vazamento de sulfito que rolava todos os dias, que sufocava os
trabalhadores, os quais mal tinham fôlego pelo esforço braçal. Depois disso, já estava tão
desmotivado que pensei não ter mais nada a perder. Abordei o Roberto e de maneira muito
honesta pedi ajuda a ele:
- Cara, tu é muito mais antigo nesse serviço, você pode não ir com a minha cara, mas
me ajuda a lidar com o pessoal, por favor!
- Que isso, cabra, não esquenta! Esquece que isso aconteceu, por favor, vamos nos
ajudar.
Aquilo me encheu de alegria e esperança, algo que pra mim sumia e reaparecia
intensamente todos os dias. Roberto era o mais antigo e mais respeitado lá, mas notei que
quando ele causou aquela cena, todo mundo criticou ele pelas costas. Infelizmente, no
fundo, todo mundo lá agia com trairagem, mas, mais tarde, isso acabou me favorecendo.
Achei que a partir daquela reconciliação tudo seria diferente, mas o dia ainda tinha acabado
de começar.
Depois de 13 horas de trabalho, às 20h, ainda faltava o serviço da limpeza para finalizar,
logo ainda teria serviço até umas 22h. Achava que o Roberto seria um trunfo, quando surgia
caminhão ele não precisava falar nada, era só se levantar que todo mundo se levantava
junto. Já quando eu tentava levantar a equipe, era sempre a mesma história:
- Chegou caminhão, pessoal! Vamos lá… Já tem gente descarregando, vamos se
ajudar, por favor!
Mas eu já não tinha mais tanta energia. Fui agitar 6 homens que estavam parados, dentre
eles o Kennedy deitado no banco. Chamei todos, mas não tive muita resposta, a não ser a
do Kennedy, que falando pra dentro e sem sair da sua posição deitado, respondeu algo que
não entendi na hora mas só me soou uma desculpa esfarrapada pra não se levantar e
ajudar. Nessa hora me faltou paciência, meti um tapa estridente no banco e gritei:
- Levanta logo! Não quero saber, vai logo limpar aquela sala de fermentação.
Na hora o Kennedy se levantou em um pulo, cheio de ira, e gritou pra mim:
- Você tá doido? Quem você pensa que é?
- Eu sou seu líder e tô mandando você ir trabalhar!
Enquanto eu dizia isso, ele metia um indicador no meio dos meus olhos, relendo quase
sem querer na minha testa. Naquele momento éramos dois cachorros raivosos competindo
para quem latia mais alto. Empurrei o dedo dele com a minha testa, os dois de peito
estufado. Alguém implorou ao fundo para pararmos de discussão e deixar pra resolver treta
pessoal fora do trabalho. Pelo menos todo mundo se levantou e foi trabalhar…
Na hora lembrei dos retirantes d'As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, sujeitos que
cruzaram os EUA na grande depressão pra trabalhar na colheita da uva da Califórnia. Fiz
um vídeo do cilindro que empurra as uvas à centrífuga que separa os cachos das uvas que
me lembrou o versículo da bíblia que inspirou o título:
"E o anjo lançou a sua foice na terra, e colheu a videira da terra, e lançou-a no grande lagar
da ira de Deus. E o lagar foi pisado fora da cidade, e saiu sangue do vinho pressionado, até
os freios dos cavalos, pelo espaço de mil e seiscentos estádios. "
Apocalipse 14: 19-20

Esse versículo também inspirou o "The Battle Hymn of the Republic", escrito em 1861 por
Julia Ward Howe, que merece citação:

"Meus olhos viram a glória da vinda do Senhor:


Ele está pisoteando a vindima onde as uvas da ira estão armazenadas;
Ele lançou o relâmpago fatídico de Sua terrível espada rápida:
Sua verdade está marchando."

Captura de tela do vídeo feito da desengaçadeira na indústria da Aurora.

Alguns minutos depois, seu Ademilson, que é o mais velho e aparenta sempre estar alegre,
tava com uma feição séria… Fiquei com medo de ter assustado ele, então bem baixinho
perguntei:
- Seu Ademilson, você acha que errei na atitude que tive com o menino lá?
- Claro que não! Você precisa é ter pulso firme mesmo.
O alívio foi indescritível. No dia seguinte, embarquei no ônibus com a cara fechada e segui
assim o resto do dia. Surpreendentemente o Kennedy assumiu uma postura proativa o dia
todo.
Daí então eu busquei ter esse pulso firme, e a cada frase no imperativo, a cada ordem feita
de peito estufado e cara fechada, eu sentia como se usando um ópio. O prazer de ver
alguém seguindo minhas ordens era orgásmico, mas a ressaca moral era brava. Mesmo
assim, todos validavam minha tirania, e eu só desejava nunca ter lido Maquiavel.
Foram só 2 semanas que aguentei o serviço de líder na Oliveira e Santana. Quando
comecei no serviço, a certeza de que iria até o final era absoluta. Senti um dever heroico
em usar da minha posição de poder pra mediar os extremos. Eu me sentia muito forte…
Acho que ainda quero provar algo de extraordinário pros outros, pros meus avós
principalmente… Mas pior que isso, queria muito mudar. Naquele serviço de recebimento de
caminhão não tive contato com um homem sem valor. O mais devagar era cheio de
observações perspicazes, como quando ele questionou as horas, que eu pedi todo dia pra
assinar a sai da as 17, sendo que saiam às 22… Eram várias as vezes que eu ouvia
comentários sobre os episódios de agressão dentro da prestadora de serviços e tudo que
eu pensava em fazer era pedir pra agirem com cautela pra não serem também vítimas de
intimidações. Histórias de brigas gigantes controladas por meio de spray de pimenta,
funcionários acordados com coronhadas, mãos pra cima e armas apontadas pra cabeça. O
mais puro suco de virilidade. Não consegui ignorar que aquilo era um serviço semi escravo,
daqueles que dão matéria de jornal… Até fui atrás d'o Joio e Trigo pra perguntar se
interessaria cobrir a situação. Vou esperar voltar pra minha casa em segurança pra tomar
qualquer atitude.
Não pensei duas vezes antes de decidir não voltar ao trabalho. Era lua cheia naquela sexta
feira, achei essa uma boa justificativa pra decisão. Fiquei com o cú na mão até hoje, terça
feira, quando finalmente vim pro escritório conversar com o Pedro. Descobri que ele era o
"chefão", e se tem alguém que merece esse cunho de poder local era ele. Baiano há 11
anos em Bento, atirador do exército, manda e desmanda na polícia local. Depois de duas
semanas trabalhando pra ele, notei que a cidade toda o conhece. Aparentemente ele iria
me receber bem, me mandou uma mensagem me chamando de querido e pedindo pra
passar no escritório pra conversar. Pois bem estou aqui, desde as 11, já são 13… Enquanto
isso tento pensar no serviço que consegui botando meu nome pra anunciar na rádio local.
Vou ficar alojado num porão bem precário, mas não chega nem a ser um desafio o esforço
que vai ser transformar aquele espaço em lar. Se tiver meus horários respeitados e o Miguel
e Dirceu se mostrarem o mínimo respeitosos, estarei no céu naquele lugar. O salário é bom,
e o serviço é nos parreirais de um sujeito que aparente ser aspirante a chefão local, Thiago
o nome dele, mas não é 10% da mão poderosa que Pedro é… O tempo segue passando…
A quantidade de gente que passa nesse saguão atrás dele é imensa, essa situação toda
me lembra do Bill Butcher, do filme Gangues de Nova Iorque, num cenário cheio de
senhores de guerra ambiciosos por poder… Claro que a tensão que estou sentindo no
momento colabora pra essa sensação, talvez seja apenas drama… espero que seja.
Tô ouvindo incessantemente um grupo chamado Platina Jazz, que faz homenagens a
clássicos do anime. Zen Zen Zensense, Come Sweet Death e Tank! são algumas das
músicas que transformei em refúgio no dia de hoje.

"Nas almas das pessoas, as uvas da ira estão enchendo e crescendo pesadas, crescendo
pesadas para a vindima."
Trecho d'As Vinhas da Ira, de John Steinbeck

Depois dessa de ter me livrado dessa situação com a Oliveira e Santana fiquei carregado
com um instinto de sobrevivência. Um alerta constante com tudo que eu falo, com quem eu
falo e tudo que me falam por medo de algum estranhamento. Deve ser normal esse
sentimento ao estar sozinho numa terra de ninguém, quase um alerta de guerra normal à
qualquer homem, mas não normal pra mim. Ontem fiquei aguardando ser atendido pelo
Pedro por 8 horas, mas não recebi a menor atenção. Me veio uma intuição de que eu
estava sendo tratado como capacho, e depois daquele tempo todo larguei mão e fui
embora. Dali pra frente eu estaria entrando em outro um novo serviço, novo abrigo, novas
preocupações.
Arrumei minhas malas, despedi da Rosimere que me abraçou forte e desejou boa sorte.
Peguei uma carona com uma van que me levou pro porão de uma Nonna em Tuiuti. Ainda
estava em estado de nervo quando cheguei, já achando que seria algo parecido com O
Farol, dois homens hospedados em um porão por mais de mês, bebendo e se acidentado
do jeito que só homens se acidentam… Já estava até consolador com a ideia, mas vi que
era exagero meu quando cheguei lá.
Vista de dentro do quarto compartilhado no porão.

O Miguel é um senhor de 52 anos, adora repetir que é gaúcho. Chegou me dando muitas
dicas, tomou alguns goles da cachaça que pediu que eu trouxesse da cidade e já começou
a falar sem parar:
- Aqui o pessoal também é bala. Quando você disse que trabalhava pra aquele
pessoal da Bahia já sabíamos que você estava te tirando o couro. Vai ser difícil você
conseguir sua parte trabalhando de boa vontade.
- É, eu percebi que lá não tem muito papo. Tô até aliviado de ter saído daquele lugar
que agora eles sequer sabem onde estou. Não conta pra ninguém dessa desavença
que tive, viu?
- Não esquenta! Estamos juntos, se você trabalhar bem aqui vai ter trabalho pra ti ano
que vem também. O povo aqui é muito trabalhador.
- Olha, tô até mais tranquilo agora. Lá parecia que eu era animal do jeito que eu era
tratado.
- Então fica tranquilo, além do pessoal ser de bem eu também vou te ajudar. Miguel é
nome de anjo protetor.
Comecei a me sentir um pouco aliviado. Mas só um pouco, pra não perder o estado de
alerta. Aqui nos parreirais trabalham menores de idade, mulheres, homens e foragidos,
todos juntos, com calma e horário. Tem muita gente falando em armas, morte e drogas, mas
dá pra perceber a insegurança deles através desse papo, principalmente no caso dos dois
foragidos que trabalhavam com a gente, naquele momento esse trabalho é tudo que eles
têm. Tem muito assédio entre os homens, que são maioria. Muita homoafetividade
envolvida, lembrou uma cozinha profissional com piadas de duplo sentido. Lembro de ter
tropeçado e cair de quatro, daí cada um dos homens próximos fizeram uma piada sobre me
enrabar se aproveitando da situação. Respondi puto:
- Você iria fazer o que, me estuprar?
- Não! Eu só estava brincando… - e se retirou sem graça.
Naquele momento ainda não conseguia enxergar, estava meio deslumbrado com aquela
Serra. Nem notava o jeito que pegava as uvas, correndo, esmagando os diversos cachos
em uma pegada só, misturando uvas saudáveis com podres, e o suco delas escorrendo
entre as mangas da camiseta. Só lembrava da manhã linda que acabava de ver, e do cafe
da manha que tinhamos acabado de fazer, do cochilo no almoço que teríamos… de que
amanhã talvez chova e de que teríamos o dia livre, e iria poder pegar os tomates daquele
pé que crescem na esquina… O dono não sentiria falta, se tivesse dono.
Tomates de um pé que com certeza tem dono.

Rapidamente criei essa rotina onde eu acordava antes do sol nascer, passava um café
especial, moído na hora, feito no coador Melitta, e esperava até as 7 pra me esbaldar de
uvas. Comia direto do pé, tirando o cacho com a boca e engolindo tudo em segundos…
Desde o recebimento da Aurora as uvas podiam ser comidas à vontade, e eu não perdoava.
Mas lá entre os colonos, um deles me avisou:
- Paulista! Cuidado pra não passar mal de tanto comer uva.
- Mas não pretendo comer tanta uva assim! É só uma refeição de uva….
- Não se esqueça que as uvas têm veneno!
Ainda relutei um pouco pra aceitar. Conforme conhecia como era a indústria da uva, meus
primeiros pensamentos iam conforme a correnteza, me falavam das oportunidade de no ano
que vem eu poder juntar um pessoal e tirar uva a R$0,17/kg, de nos outros anos comprar
um vinhedo pra vender uva quase podre a R$2,15. Tomei várias ferroadas de abelhas e
mamangavas, acho que a apitoxina melhorou minha dermatite e isso ainda me deixava
deslumbrado.
Aquela dose de meio rural tava me turvando a visão, mas tinha algo mais turvo que eu não
enxergava. Esse dia eu estava num parreiral muito baixo, e mais de uma vez precisei me
ajoelhar pra pegar as uvas. Minha vó sempre falava pra quando ajoelhar aproveitar pra
rezar, e acabei pegando esse costume. Quando fiz o sinal da cruz no chão e agradeci, notei
um dos ramos se mexendo. Não era um ramo, era uma cobra, e ela já estava há algum
tempo parada e tranquila no meu pescoço. Ela era verde e pequena. Tirei ela com calma do
meu pescoço, e fiquei observando tranquilamente enquanto ela subia de novo num
parreiral, igualzinho ao caduceu, o verde da cobra contrastando com o marrom coberto de
musgo da madeira, fugindo dos homens que iam atrás dela... Eu devia ter levado ela pra
outro lugar discretamente porque um dos colonos amassou a cabeça da cobra de tanto
bater contra uma parreira. Ele tinha tanto medo da cobra que não conseguiu terminar e
jogou a cobra longe. Levei ela até o pé de uma parreira e fiquei pensando em São
Francisco de Assis.
Daí em diante eu lamentei, e muito. De noite veio a notícia de que o caminhão que
carregava os 20 mil quilos de uva que tiramos teve que despejar mais de 10 mil quilos para
ele para poder subir o barranco. Acho que essa é a maior diferença do alimento orgânico
pro convencional, do cuidado envolta do produzir. Vi muitas Lorenas, Isabels e Niagaras
excelentes, no auge da maturidade, e muitas podres, com cheiro de lancheira velha. E são
todos os aspectos que aderem essa forma de produzir interferem no suco ou vinho que elas
se tornaram. Cada vez que alguém cuspiu uma casca de uva de volta no contêiner de uvas
deve ter interferido na qualidade daquele produto final…
Nessa noite os dois foragidos vieram ficar comigo e com o Miguel no porão. O Miguel agia
como se estivesse num presídio, me chamando de canto pedindo pra eu ajudar ele contra
esses marginais. Me deu R$170 que ele tinha pra guardar nas minhas coisas, porque viu
que eu tinha um cadeado. Uma hora me deu um abraço demorado e pediu pra eu nao
abandonar ele, acho que até escorreu uma lágrima dele essa hora. Fui dormir mas acordei
dali a pouco com ele e os outros dois enchendo a cara. Era 1 da manhã, eu disse:
- Pessoal, já é tarde e eu não sou o único que tem que acordar às 5…
Voltei a dormir tranquilamente, só pra acordar com o Miguel perambulando pelo porão.
Levantei, fiz um café, e ele veio dizer:
- Cara, ontem os guri do KM ficaram putos contigo. Você não pode falar assim com
eles! E se eles quiserem te bater eu vou junto!
- Miguel, não quero te ouvir falando, me deixa em paz.
Notei que ele tava bebendo cachaça. já era a segunda vez que ele acordava (ou nem
dormia) bebendo, vai trabalhar com o cu virado pra lua, cagando regra pra todo lado. Deu
pra notar que ele tava se sentindo tão amedrontado que faria qualquer coisa pra estar do
lado de quem sobrevivesse. Cheguei nos “guris do KM” pra perguntar se eles acharam ruim
de eu ter pedido pra eles maneirarem de noite, e até pediram perdão por terem feito tanta
farra. Em cima do porão morava uma Nonna de quase 100 anos, e eu não fui tão rude.
Já no parreiral, o Miguel falava pra todo mundo que eu incomodei os caras do KM. Um dos
coletores, que parecia mais o Ceifador Sinistro falava em linchamento… Larguei mei
pendurico no chão e fui até o Dirceu:
- Cara, agradece pela oportunidade de trabalho, mas não vou ficar aqui ouvindo
- ameaça de agressão. - Dei as costas e fui embora a pé do parreiral.
Fiz minha mala, que ainda nem tinha desfeito totalmente. Dei os R$170 que o Miguel tinha
deixado comigo pra um rapaz entregar pra ele, recebi o que me deviam e fui embora. Tinha
caído a ficha de que aquele não era o lugar que eu queria tanto conhecer. Lá em Assis já
tinha muito mais coisa interessante envolvendo agroecologia e soberania alimentar do que
os lugares que eu tinha entrado em contato. Não que não tivesse em outros lugares, eu sei
que a Serra Gaúcha e até o estado do Rio Grande do Sul são pioneiros na agricultura
agroecológica, mas já tinha remado muito contra a corrente até aquele momento. Estava
tão sem energia, que lembrar de tudo que estava deixando de viver na minha terra natal
naquele momento me fizeram decidir voltar naquele exato momento. Eu não precisava ir tão
longe pra viver conforme os ideais que achava que só vivenciada durante a vindima em
Bento Gonçalves.

Você também pode gostar