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Há um problema em ser uma refugiada de guerra.

As pessoas não confiam em você ou


pensam de você menos do que é. Eu sei como é isso, porque o senti na minha pele.
Eu tinha 15 anos quando a guerra explodiu na minha cidade. Vi pessoas morrerem, tanto
das bombas quanto da fome que veio a seguir. Era difícil dizer qual era a pior parte da guerra
- estar no meio dela ou quando ela acabava e você percebia que não tinha para onde ir.
Talvez a pior parte fosse as lembranças.
As crianças mortas, a família deitada no chão, sem respirar. O sangue, o horror, o choque.
O entorpecimento, a ideia de que aquilo não pode ser real.
Tudo isso era horrível.
Havia uma menina, Xuan. Éramos vizinhas e ela tinha 5 anos. Um míssel caiu em cima da
casa dela. Eu estava na escola. Quando cheguei em casa mal pude ver os corpos. Não havia
sequer para onde voltar.
Eu lembrava de como acordei no dia que a bomba explodiu. O dia do Vietnã estava bonito
ao contrário do céu sempre cinza de São Paulo. Mas o aperto no peito, a sensação de que algo
estava errado, persistia. Chame de instinto.
Eu tinha levantado, feito minhas orações e tomado todos os cuidados. Há uma tensão que
se estabelece nos ombros de quem vive na guerra, mas ainda assim persistimos. É a realidade
que conhecemos e, quanto mais novo se é, mais facilmente se adapta a ela.
Eu havia me adaptado, minha família também. Ainda assim, ninguém estava preparado
para a perda.
Eu olhei para o lado, onde meu irmão mais novo dormia em um colchão no chão.
Ninguém estava preparado para se tornar responsável por alguém em um período tão curto de
tempo. Às vezes eu me pegava pensando o que teria acontecido se ele não tivesse fugido para
brincar naquele dia. Às vezes eu agradecia por isso, em outras eu me perguntava se não teria
sido melhor todos nós termos morrido de uma vez.
Era um pensamento cruel e egoísta, mas havia horas em que a fome falava mais alto e a
revolta gritava forte.
Inicialmente eu reprimia esses pensamentos, depois os aceitei e agora só convivo com
eles.
Meu irmão suspirou e chorou baixinho.
- Tien…
Eu fechei os olhos. Tinha sido uma noite difícil, repleta de pesadelos. E agora ele também
estava tendo um.
Eu me levantei e me aproximei.
- Shhh…
Ele acordou. Eu o abracei. Ele chorou ainda mais. An era apenas um menino de 5 anos.
Ele deveria estar chorando pelos monstros embaixo da cama, não por sua casa destruída e pais
mortos.
Ele também deveria estar bem nutrido, não um pequeno saco de ossos.
Eu me segurei para não chorar baixinho também. A comida não faltava, mas era escassa.
An voltou a dormir e eu me levantei. Deixá-lo sozinho não me agradava, mas era o
acordo. Ele ficava em casa sem causar problemas e eu voltava com comida. Alguém precisava
trabalhar.
Montei a barraquinha no centro de São Paulo às 6 da manhã. Pessoas vieram, pessoas
foram.
Um homem vomitou numa esquina próxima, antes da confusão começar.
Foi quando o primeiro sinal da crise de pânico veio. Eu não podia estar perto de brigas. Eu
também não podia perder nada do que tinha naquela barraca.
Eu encontrei o olhar de seu Antônio por cima da barraquinha, e ele imediatamente veio
em minha direção. Eu gostava do senhor de 60 anos, mesmo que eu tivesse dificuldade para
entender algumas das coisas que ele falava. 2 anos em um país te fazia entender muito da
língua nativa, mas não tudo.
Eu controlei minha respiração e encontrei três objetos que poderia identificar. Barraca,
óculos e camisa. Eu não ia surtar.
Seu Antônio se aproximou. Ele havia sido o único dono de lanchonete que não tinha me
olhado esquisito quando entrei para comprar comida. Também havia me defendido quando
outros vendedores e comerciantes me atacaram, por estar roubando sua economia.
Eu teria rido se não estivesse tão assustada na época. Tudo que eu queria era dinheiro para
comida. Eu só estava tentando ser nobre e sobreviver.
Eu não surtei, mas comecei a tremer e seu Antônio me levou para dentro do restaurante.
Ele até pediu para seus dois sobrinhos recolherem a barraca e guardarem as coisas.
Olhares atentos de fregueses à parte, seu Antônio me serviu de um suco que eu não
poderia pagar e de um salgado que guardei metade para An.
Ele me olhou por cima dos óculos de fundo de garrafa e me deu outro salgado.
- Tome, leve esse pra ele.
Eu sorri e o guardei.
Uma senhora passou e me olhou de cima abaixo. Então se voltou para a amiga que
acompanhava e sussurrou alguma coisa.
Seu Antônio acompanhou meu olhar.
- Não ligue para eles.
- Eu não ligo.
Não era totalmente verdade. Ainda doía.
- Você os culpa?
Eu abri a boca para perguntar pelo quê, achando que ele falava dos fregueses, quando ele
fez um gesto com a mão e continuou.
- Os soldados que mataram sua família?
Eu pisquei.
- Não.
Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso, e eu suspirei.
- Eu já os culpei, mas não mais. A raiva te leva até um certo ponto, mas depois te
consome. Eu não quero isso. Aqueles homens, por mais cruéis que fossem, eram peões. Eles
não são o vilão da minha história.
- E quem é o vilão?
Dessa vez, minha resposta foi firme.
- A guerra, a corrupção. O sistema. Quem quer que mande naqueles homens, mecham as
engrenagens, é ele. Os soldados foram só a ferramenta, a guerra o meio. A culpa é da
motivação por trás disso. Nenhuma daquelas bombas teriam sido lançadas se não tivesse
alguém por trás dando as ordens. Então, na ausência de um rosto a culpar - eu dei de ombros -
eu simplesmente entendo que é tudo consequência do sistema e dos interesses humanos.
Dessa vez, ele me olhava como alguém que finalmente me visse e se surpreendesse com o
que encontrasse.
Então se aproximou conspiratoriamente.
- E quem é o mocinho?
Eu sorri.
- Eu não tenho um.
E era verdade, eu não tinha. Mas tinha um ponto de luz que me fazia voltar para casa
todas as noites e que me dava motivação para trabalhar todas as manhãs. An. Não era à toa
que o nome dele significava paz.
E tudo que eu queria no fim do dia era saber que ele estava bem.
E foi exatamente o que fiz. Eu cheguei, o abracei e festejamos por eu ter levado um
salgado para casa.
Essas pequenas alegrias que nos fazem esquecer da tristeza.

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