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Rosa-cruzes e Satanás

Jan van Rijckenborgh

A ideia de Satanás ou a crença em um diabo pessoal superior está completamente


ligada à vida religiosa de todos os tempos. Os defensores e os negadores dessa ideia
estão em luta contínua, da qual participam também os esoteristas mais intelectuais.
Algumas seitas pré-cristãs, quer gnósticas quer semignósticas, veneravam Cristo
e Satanás de maneira idêntica. Assim, uma adoração elevada a Satanás surgia também
em um vida muito séria.
A palavra Satanás significa inimigo, adversário. Nesse sentido, podemos consi-
derar Satanás como uma força de tensão individualizada. Alguns esotéricos veem
nessa atividade uma lei divina necessária, cosmicamente justificável, e reconhecem
a ideia de Satanás tal como a de Cristo. Eles afirmam que, mediante a força de
tensão cósmica, mediante o atrito entre os dois Logoi, desenvolve-se calor, uma
verdadeira flama criadora, que é a condição necessária para a criação de uma natureza
manifestada. A sra. Helena Blavatsky, por exemplo, que pode ser considerada a
mais importante das esoteristas intelectuais da era moderna, defendia esse ponto
de vista. Todavia, a teologia moderna contraria energicamente essa concepção.
A teologia romana bem como o calvinismo veem em Satanás um ser fortemente
individualizado. Segundo essa concepção, Satanás é a personificação de todo o mal e
da maldade mais refinada. O resto do mundo teológico não tem muita certeza em
sua concepção e perde-se em disputas infindáveis.
Em vista disso, também estão divididas as ideias referentes à interpretação do
“Livra-nos do mal”, um verso bem conhecido do pai-nosso. Alguns afirmam “Livra-
-nos do mal” pensando no mal. Outros dizem “Livra-nos do mal” pensando na pessoa
de Satanás. Nisso há, naturalmente, uma grande diferença. Muitos teólogos já foram

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provados pela pureza de seus ensinamentos e pela maneira como rezavam o pai-
-nosso. Em nosso meio, não precisamos falar com mais pormenores sobre o erro
dos teólogos. O que nos interessa é que, na realidade, alguns esoteristas de renome e
de grande influência veem na ideia de Satanás uma necessidade divina e uma lei
de vida cosmicamente justificável.
Por isso, torna-se necessário expor o ponto de vista da Rosa-Cruz. Esse ponto
de vista, absolutamente comprovável e nascido de um conhecimento de primeira
mão, baseia-se na Doutrina Universal, sendo, portanto, pré-existente ao surgimento
do primeiro dos esoteristas intelectuais.
Primeiro temos de reconhecer que Satanás e o diabo não podem ser colocados no
mesmo nível. Entendemos o conceito “Satanás” como um estado de manifestação
cósmica, ainda que esta seja uma realidade não contida no plano divino. Já o conceito
“diabo” refere-se às consequências extremamente funestas dessa realidade que se
desviou do Logos.
Assim, fica claro que a ideia “Cristo” liga-nos com o estado de manifestação e a
realidade que desde o princípio se encontra incluída no universo divino.
Os esoteristas que acabamos de mencionar tornam-se, em suas contemplações,
vítimas do ser da dialética, da imitação da manifestação, existente desde tempos
imemoriais.
Quando falamos sobre os sete mundos originais, o Logos terrestre sétuplo e
os sete campos de vida do ser humano original, estamos comprovando com isso
as mensagens esotéricas de todos os tempos. Jamais se negou que a humanidade
original tivesse existido nessa antiga realidade. Se apenas se tratasse disso, poder-se-ia
considerar essa luta dos rosa-cruzes um combate contra inimigos presunçosos.
No entanto, para a totalidade da humanidade que se encontra hoje na ordem
mundial dialética, essa manifestação de vida é irreal. Nenhum ser possui mais
qualquer ligação com ela. As sete crateras cósmicas ou as sete colunas do mundo,
dos quais fala a Sagrada Escritura, não sustentam a nossa ordem mundial.
Quando o Livro dos Provérbios diz: “A sabedoria já edificou a sua casa, já lavrou
as suas sete colunas”, o poeta testemunha de uma realidade da qual o ser humano
das massas não participa nem de maneira ínfima.

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Por que não? Porque a humanidade é arrastada em um esforço extraordinário para
copiar a manifestação das crateras cósmicas divinas, ou melhor, a humanidade é arras-
tada pelo redemoinho de uma manifestação, de um desenvolvimento antinatural,
o qual é considerado como um novo desenvolvimento, o que é uma mistificação.
Isso ressoa como um anátema, uma maldição, e talvez se diga: “É essa a linguagem
da Rosa-Cruz ou a de um pregador penitente e fanático?”
Talvez isso ressoe como algo maometano, porque em alguns países maometanos
qualquer ocidental é chamado de “cão de Cristo” e “filho de Shaitan”, uma realidade
um tanto desagradável para ouvidos cultos. Todavia, em nossa época a análise
filosófica e científica torna-se necessária, porque o mundo já chegou inúmeras
vezes a um ponto morto nessa mistificação da manifestação.
Para nossos ouvidos, a palavra Satanás possui uma conotação desagradável. No
entanto, essa palavra significa o mesmo que “resplandecente estrela da manhã”, “filho
da alva”, “aurora”, “Lúcifer” e “luz”. Na sabedoria antiga, Satanás era designado
como anjo dos mundos manifestados. Foi esse anjo, essa resplandecente estrela da
manhã, que “caiu do céu”, conforme testemunha a Bíblia. Em sua terminologia
própria, Jacob Boehme fala pormenorizadamente sobre Lúcifer.
Inúmeras são as lendas que falam de uma guerra no céu, ou seja, de uma batalha na
casa das sete crateras cósmicas. São fragmentos de um acontecimento pré-histórico,
no qual uma parte da humanidade utilizou o seu livre arbítrio de tal modo que
a levou a um fim imensamente doloroso.
Na Bíblia, esse grupo é denominado “filhos da estrela da manhã”. Seu erro fun-
damental foi, na realidade, o de ter inflamado “a luz nas trevas”. É necessário que
compreendamos essa alusão velada. Antigamente, a ideia “trevas” possuía outro
significado. Atualmente ligamos a palavra “trevas” com a ideia de “escuridão e mal-
dade”. Portanto, segundo a compreensão atual, o príncipe das trevas, o anjo dos
mundos manifestados, Satanás, seria o diabo supremo. Nos primórdios, contudo,
a palavra “trevas” significava “o ilimitado”, o ser não manifestado, que continha
em si, de maneira irrefutável, a aurora.
Entre outras coisas, a própria aurora, a luz, a manifestação do não manifestado,
é indicada com a palavra “Cristo”.

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As sete crateras cósmicas, as sete colunas do mundo, podem ser vistas em sua
conexão, em duas fases: a fase do ser não manifestado e a fase do ser manifestado.
Quando essa conexão é perturbada, quando a ordem desse sistema é atacada, ele não
é danificado, mas o que a está perturbando é afastado com todas as correspondentes
consequências.
Na filosofia universal, isso é representado da seguinte forma: as três primeiras
colunas — as do ser não manifestado — estão sob a direção dos “filhos da estrela
da manhã”, e as três últimas — as do ser manifestado — estão sob a direção dos
“filhos do sol”. Na coluna do meio da casa de Deus — na quarta coluna — os dois
grupos se encontram. Aí o não manifestado surge como forma manifestada.
A atividade Espírito Santo das três colunas da esquerda é designada pelo nome
“Lúcifer”, e a atividade Espírito Santo das três colunas da direita é designada pelo
nome “Jeová”. Na coluna do meio da casa de Deus, os dois aspectos da atividade
encontram-se como Espírito Santo sétuplo ou como candelabro áureo sétuplo.
Quando o candelabro sétuplo é inflamado na mão direita elevada, chega o momento,
a hora matutina, em que a luz pode nascer e elevar-se como sol espiritual — Cristo
— à altura meridiana.
Esses quatro mundos do ser não manifestado, ou melhor, os três mundos e meio
do ser não manifestado, estão ligados com os quatro éteres originais, os quatro
alimentos santos.
Na primeira coluna do primeiro mundo, do primeiro campo de vida, atua o
éter químico santo como base para a multiplicidade e a organização cromática da
forma, porém sem abrir-se para ela.
Na segunda coluna do segundo mundo, do segundo campo de vida, atua o éter
de vida santo, como base para a a multiplicidade e a abundância de cores da forma,
porém sem abrir-se para ela.
Na terceira coluna do terceiro mundo, do terceiro campo de vida, atua o éter
luminoso santo, como base para a mobilidade e as propriedades dinâmicas da forma,
porém sem abrir-se para ela.

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Na primeira parte da quarta coluna do quarto mundo, do quarto campo de vida,
atua o éter refletor santo, como base para a sabedoria divina e a universalidade
ligadas à forma, porém sem abrir-se para ela.
Somente quando existe essa base quádrupla, a centelha divina pode erigir a sua
casa entre as colunas, sustentada pela coluna do meio. Então os filhos da aurora,
após a noite em claro, na escuridão do ser ilimitado, colocam a sua obra nas mãos de
Cristo. Nesse abraço, o filho de Deus torna-se filho do Pai, sem nenhum defeito
na trama de sua veste sem costuras.
Quando essa ordem é perturbada, a consequência única é uma queda, uma
exclusão. A sequência das colunas divinas é imitada, e a entidade que cometeu
fraude é aprisionada até o seu fim, em conformidade com a lei.
A ordem é perturbada quando algumas entidades impelem os campos de vida
do ser não manifestado para a manifestação, manifestando com isso o que não
pode manifestar-se.
Somente então o filho da alva torna-se em um Satanás, uma força que manifesta o
não manifestado. Segundo a mitologia, ele torna-se então o adversário de Cristo,
do segundo hierofante na casa de Deus.
Nesse momento, Cristo precisa tomar para si a proteção de todo o sistema. E
como esse sistema é sustentado pelo amor, o Espírito de Cristo mergulha no inferno
de diversas maneiras para salvar o que está perdido, para dirigir para a transfiguração
toda a ovelha desgarrada que quer ser salva.
Do que foi dito podemos deduzir que o pecado primevo da humanidade decaída
consiste na utilização errada dos quatro alimentos santos, dos quatro éteres santos.
Os quatro éteres somente podem ser inflamados para a luz quando todos eles são
preparados processualmente. Se a luz é inflamada na noite do ser não manifestado,
a “estrela da manhã” cai do céu, e grande é sua queda.
Por isso, a humanidade atual vive em um mundo e é parte indissolúvel de uma
ordem de vida que não é de Deus, apesar de essa ordem ter surgido de energias
e propriedades divinas.
A falsa criação é uma manifestação da forma de três éteres, sendo que ela possui
apenas parte do quarto éter. Por essa razão, a nossa vida culmina em um cultivo

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animalesco. Não se pode falar de manifestação em uma vida mais elevada. E estamos
ameaçados de o Senhor retirar o candelabro de nossa casa. “Recorda-te, pois, de
onde caíste, converte-te e retoma a conduta de outrora. Do contrário, virei a ti e,
caso não te convertas, removerei teu candelabro de sua posição.” Um ser humano
decaído continua a ser um ser humano. Isso quer dizer que existe para ele, dentro de
um tempo determinado, a possibilidade de regeneração, de transfiguração.
Estamos, pois, diante de duas possibilidades: ou nos perdemos, como seres
humanos orientados esotericamente, na cultura e nas ideias evolutivas, agarrando-
-nos ainda mais a esta natureza, ou, após um estudo da santa ciência do transfigurismo,
entraremos na senda da regeneração.
No primeiro caso, nosso candelabro será removido. No segundo caso, as luzes
serão acesas outra vez. Compreendamos essa linguagem figurada. Se nos acomodar-
mos tranquilamente ao subumano, então ainda não necessitamos o verdadeiramente
humano e não nos modificaremos, e nosso candelabro será removido. A degeneração
será tal que já não haverá possibilidade de regeneração. Certamente conhecemos
o ditado: “A corrupção do melhor gera o pior”. Será que as leis biológicas da natureza
relacionam-se apenas com a vida natural comum? De modo algum. Elas também
são perfeitamente válidas para o Espírito e a alma!
Em nosso microcosmo possuímos uma possibilidade de regeneração, a qual,
todavia, não continua sendo uma hipótese de trabalho apropriado pela eternidade.
Por isso, a Bíblia diz: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: ao
vencedor, conceder-lhe-ei comer da árvore da vida que está no paraíso de Deus”.
A árvore da vida é a coluna do meio. Essa árvore possui sete raios, três à esquerda
e três à direita; um eleva-se para o alto. É o candelabro com as sete luzes.
Queira Deus que sejamos encontrados no santuário, aos pés da coluna do meio,
e que aquele que era, que é e que há de vir, com as sete luzes diante de seu trono, nos
acolha como filhos na aurora, na luz de Cristo em ascensão.

Fonte: Pentagrama Ano 2, n.° 1.

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