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fundamental tension, in our experience, is between letting the other happen to me and
holding my own ground. This tension characterizes dialogue in every context where we have
experienced it.
*
A tensão fundamental, em nossa experiência, é entre deixar o outro acontecer para mim e
me manter no meu próprio lugar. Essa tensão caracteriza o diálogo em todo contexto no
qual já o experimentamos.
Capítulo 1
Comecei a atender Camila, uma mulher de 32 anos, no início do ano passado. Desde o
início, percebi o seu jeito tímido e desconfiado, de quem dizia com frequência “eu fico com
vergonha de te falar isso...”, e que parecia sempre tensa, tanto ao falar, quanto ao me ouvir.
Essa tensão aparecia até no seu jeito de se sentar: braços e pernas cruzados, expressão séria
e uma postura enrijecida. A sensação de que tudo que eu fizesse ou falasse poderia intimidar
entendimentos que sustentavam sua escolha: “não consigo terminar, eu o amo muito, tenho
baixa autoestima”... Essas eram, quase sempre, as conclusões das nossas sessões,
uma sessão, Camila me diz: “eu gosto de vir aqui, porque é como se eu conversasse comigo
mesma e pudesse me ouvir em voz alta”. Minha conversa interna, ao ouvir essa frase,
representa bem o que eu senti algumas vezes ao longo deste processo terapêutico: minhas
perguntas e reflexões não eram boas o suficiente para ajudar Camila, e minha participação
conversa (quase) toda semana fez com que eu me sentisse frustrada, pensando que aquele
atendimento sem novidades não valeria o valor que eu cobrava por ele. Por isso, a pergunta
“por que ela continua vindo aqui toda semana?”, volta e meia me ocupava.
Quando terminamos uma conversa terapêutica com a sensação de que não saímos
do lugar, é comum questionarmos o quanto merecemos ser pagos por aquela sessão, que
aparentemente não fez diferença nenhuma na vida do cliente. Parte deste desconforto é
sustentado pela lógica dos honorários, já que somos pagos por cada hora de atendimento.
Pensando nesta lógica, achamos muito útil estabelecer critérios orientadores que nos
ajudam a medir a qualidade das nossas conversas para além de seus conteúdos específicos.
São eles:
Somos responsáveis pela condução de uma conversa terapêutica, mas, não devemos
que sejam de seu interesse e/ou se debruçando sobre nossas perguntas e reflexões,
• Avalie o que você ofereceu ao cliente a cada sessão. Desconecte-se um pouco dos
naquele encontro. É necessário que você reconheça qual a sua versão preferida
como terapeuta e quais são os seus critérios para tal, por exemplo: a capacidade de
estar radicalmente atento e presente ao que o cliente diz e como ele diz; a sua
demandas do cliente em cada sessão; a clareza sobre quais são suas hipóteses e
• Pergunte. Sabe quando temos a sensação de que estamos, literalmente, jogando
conversa fora? Quando isso acontece, uma boa estratégia é perguntar para o seu
interna, que até então está tomada pela dúvida do que vocês estão fazendo juntos.
encerra no tempo e no espaço de uma única sessão: passamos horas estudando e nos
preparando para conduzir conversas que sejam terapêuticas (pense em quanto tempo você
vai gastar lendo este e-book, por exemplo); dispendemos nosso tempo e energia para
sustentar as relações com os clientes, mesmo em sua ausência (quem nunca se lembrou
daquele cliente enquanto assistia à um filme no final de semana, ou até enquanto dormia,
acordando inspirado para fazer aquela pergunta na sessão seguinte, não é mesmo?); temos
dinheiro em cursos e especializações; etc. Assim, ao calcularmos o valor que cobramos por
uma sessão de terapia, devemos considerar todos estes investimentos, sejam eles concretos
ou subjetivos.
como um todo. Ou seja, ao mesmo tempo que participamos de cada conversa como se ela
fosse única e especial, nos dedicando ao máximo para que seja útil e transformadora para o
a favor da história do cliente em sua totalidade. Vamos voltar ao exemplo de Camila para
que Camila passava financeiramente, ela continuava comprometida com a terapia: não
pensar que talvez estivéssemos construindo em terapia algo que fosse importante para ela.
Mas... o quê? Em uma das tentativas de responder a minha própria pergunta, passei a
refletir sobre como Camila mudou ao longo do tempo em que estamos juntas. Nos últimos
três meses, comecei a percebê-la mais tranquila e confortável no contexto terapêutico. Ela
ainda anuncia sua vergonha, mas faz isso sorrindo com descontração; ela fala palavrão, dá
risada e chora; se acomoda no sofá, e os braços e as pernas não se cruzam mais. Ao me dar
em relação a mim, quanto em relação a ela mesma. Assim, passei a me ocupar de outras
perguntas, diferentes daquela que eu me fazia no início. São elas: em que outros contextos e
relações esta Camila, confiante em si mesma e confiando nos outros, aparece? A história da
terapia como um processo de construção de confiança seria uma história inédita na vida de
Camila?
terapêutico mostram que diferença faz avaliar o trabalho a partir de uma conversa
específica, ou considerá-la como parte de um processo mais amplo. Para que uma mudança
como essa seja possível, alguns critérios orientadores podem ser úteis:
• Esteja atento à performance. Quando o conteúdo da conversa parece não ter
novidade alguma, dedique sua atenção a “como” vocês têm conversado. É como se
você observasse cada conversa com o botão MUTE ativado, prestando muita atenção
nas expressões do cliente. A forma como ele se expressa pode inaugurar diferenças
Não se esqueça que estamos sempre buscando por diferenças significativas para o
cliente, e elas podem estar tanto no “quê” conversamos, quanto em “como” fazemos
isso.
interações com ele. Ao compará-las com o momento atual da terapia, você pode
perceber sinais significativos que contam sobre as mudanças que foram possíveis ao
longo do processo.
• Saiba qual é o “pano de fundo” da terapia de cada cliente. Mesmo que vocês
transitem por muitos assuntos diferentes, é importante que tanto você quanto o
cliente tenham clareza sobre o que ele busca transformar em terapia. Isso é muito
vocês esperam alcançar. Para isso, dividimos nossa atenção entre os aspectos
A conversa com Camila desta semana, é um bom exemplo de como isso acontece em
nosso cotidiano. Nela, ouvi Camila dizer que a reflexão que eu ofereci ao final da sessão fazia
muito sentido para ela. Emocionada, ela me diz “vai parecer que eu estou te julgando, mas
não é isso... Mas eu percebo você sempre faz comentários em cima do que eu tinha falado,
ou que ficavam umas reflexões soltas no final... Hoje não, hoje eu entendi o que você quis
dizer e fez total sentido”! Ao ouvi-la, fiquei dividida: me senti feliz por saber que minha
reflexão tinha sido útil, e ao mesmo tempo frustrada por confirmar algo que eu pensava
desde o início da terapia, que não estávamos caminhando. No entanto, ao olhar para o
processo terapêutico de Camila como um todo a frustração foi logo dissolvida. Eu entendi
que, tão importante quanto a boa reflexão que construímos ao final da conversa, foi o fato
de Camila conseguir me dizer com sinceridade suas percepções sobre a terapia. Esta fala foi
mesma, ao falar em voz alta o que pensava sobre a terapia. Com isso, inaugurei uma nova
pergunta: “com quantas conversas medianas se faz uma conversa excelente”? O fato é que
precisei aprender muito sobre Camila, antes que pudesse ensinar algo a ela.
Capítulo 2
curso, ela me escreveu, dizendo que gostaria de conversar comigo sobre uma possível tutoria
ou supervisão em sua formação como terapeuta. Começamos a fazer isso através de uma
plataforma digital, já que moramos em cidades diferentes. Este pedido inicial focado em uma
atrelado à revisão de Alice sobre sua própria vida pessoal, seus modos de estar no mundo e
suas relações com muitas pessoas ao seu redor. Isso é bastante comum, afinal, a prática do
terapeuta é atravessada por suas questões pessoais e olhar para elas faz parte de qualquer
supervisão que se preze. Ao longo de 11 meses, tivemos conversas muito importantes sobre o
que Alice chamava de “os lugares” que ela queria ocupar na vida. Sua formação como
sobre as bases de nossa relação marcada por três lugares diferentes, para além daquele de
terapeuta e cliente: por sermos professor e aluna; por sermos colegas em muitos cursos e
• Oriente-se por uma fundamentação teórica sólida. Terapia é conversa. Mas, nem
relação terapêutica e o que conta como boa prática de sua própria maneira. Como
relação terapêutica e quais são os elementos aos quais você deve estar atento ao
participar dela.
com outros seres humanos em sua prática. Ofereça acolhimento. Escute muito. Faça
perguntas interessadas. Não julgue o que está ouvindo. Lembre-se que você está
conversando com uma pessoa e que a história que ela te conta é, possivelmente, a
coisa mais significativa para ela naquele momento. Trate-a como tal. Cuide do sigilo
profissional. Esteja atento à ética de sua prática, tanto conforme os manuais cabíveis,
termos dessa relação5. Explique ao seu cliente o seu trabalho de maneira inteligível.
Pergunte sempre se o caminho que você está propondo faz sentido para a pessoa.
cliente não entenda como útil ou adequado. Mostre que está de fato interessado no
que está ouvindo. Disponha-se a sempre parar para refletirem juntos sobre os rumos
da relação terapêutica.
Alguns meses depois de termos iniciado, Alice me escreveu dizendo de uma notícia
muito difícil que ela havia recebido sobre uma relação familiar, e que não estava se sentindo
bem. Eu estava de férias neste dia, e só voltaria na semana seguinte. Conversamos um pouco
por mensagem e perguntei se ela gostaria que eu falasse com ela em algum horário. Ela
preferiu não interromper minhas férias, e disse que, se precisasse de ajuda, me avisaria.
Quando retornei das férias, marcamos uma sessão on-line. Nela, Alice me contou que, por
estar mal naqueles dias, optou por ligar para sua antiga terapeuta na cidade para ter apoio.
Eu disse a ela que estava tudo bem e que entendia. Conversamos sobre sua questão familiar
chegamos à conclusão de que, naquele momento, talvez fosse melhor que Alice tivesse
terapêutica não acontece de forma abstrata, solta no ar. Ao contrário, todo encontro é
geográfico e social para o cliente, valor cobrado, forma de pagamento, condições do espaço
(como acessibilidade, conforto e estética, para citar apenas alguns exemplos). Além disso,
questões sociais mais amplas também estão presentes nestes aspectos materiais da terapia:
gênero, orientação sexual, raça e classe. Mais ainda, as redes de inserção de cliente e
terapeuta também fazem parte dessa equação6. Se têm pessoas em comum, se há
possibilidade de se encontrarem ou não em outros contextos e como lidar com isso, quem
elementos que marcam a relação terapêutica – alguns mais fortemente, outros menos,
dependendo de cada relação – mas, que não podem e nem devem ser ignorados pelo
profissional.
cliente se identifique com você. Pode ser que ache sua poltrona confortável. Talvez
ele goste da forma atenta como você o olhe. Talvez, seu humor seja compatível com
o dele. Não há formula específica. Fique atento aos sinais, sejam eles verbais ou não,
oferecidos pelo cliente. Observe como ele reage às suas colocações. Preste atenção à
sua respiração, forma de falar, jeitos de se mexer na cadeira. Escute quando ele
disser que algo fez sentido ou quando se entusiasmar com alguma colocação. Preste
tenha visto sua posição política diferente da dele na internet e se incomode com isso.
Pode ser que ele não sinta que você compreenda sua experiência de exclusão por
nunca ter vivido algo parecido. O preço de sua sessão pode ter ficado caro demais,
esses aspectos. Converse abertamente sobre eles, quando possível, com o cliente.
aquele limite diz ser importante para a pessoa. Pense em encaminhamentos, se for
Na relação com Alice, os diferentes lugares que marcavam nossa relação nunca se
constituíram como um problema para a terapia, mas, sim, como um potencial. Tornou-se um
hábito marcarmos de onde estávamos falando “estou pensando isso no meu self professor”
ou “digo isso a partir de alguém que um dia já se formou terapeuta”. Diante dessas
demandas, o fato de nossas conversas não serem presenciais nunca havia se constituído
como um problema. Contudo, a partir do momento em que ela estava vivendo uma crise, isso
se tornou um limite importante. O fato de eu estar de férias logo naquele momento também
participou da construção deste limite. Como Alice e eu sempre tivemos uma relação
terapêutica muito bem negociada, compreendemos juntos que esses limites, naquele dado
momento, poderiam ser cuidados de forma mais adequada com outra profissional. Limites
não precisam se tornar problemas, e nossa boa relação, que perdura em outros contextos
Capítulo 3
relação com sua mãe constituem um tema recorrente nos nossos encontros. Em uma das
conversas que tivemos sobre o assunto, ao ouvi-la contar de suas tentativas frustradas em
conversar com sua mãe, sugiro que elas participem de um encontro de Mediação de
Conflitos, que consiste em uma conversa facilitada por um terceiro imparcial (o mediador).
Fiz essa sugestão com base em minha experiência profissional, que informava o quanto o
desfechos. Em resposta à minha sugestão, ela disse que já tentou conversar com a mãe de
muitos jeitos diferentes, e que não se tratava simplesmente de mudar o jeito de conversar.
Segundo ela, “na frente do mediador a conversa vai fluir bem, mas, eu sei que quando
chegar em casa vai voltar tudo ao normal”. Ao longo da sessão, continuei apostando na
mediação como uma boa estratégia de mudança, enquanto Rafaela insistia em tentar me
fazer entender que esse não seria um bom caminho. Terminamos a conversa de uma forma
estranha. Pela sua expressão séria, suas respostas curtas e longas pausas, tive a impressão
de que Rafaela estava chateada comigo. Por isso, descrevi o que estava percebendo de uma
forma concreta, “me parece que você ficou chateada com o que eu disse, porque está com
essa cara de brava, me respondendo com falas curtas e diretas...”, e em seguida lhe
perguntei “... é isso mesmo que você está sentindo”? Ela respondeu que não, que só estava
“reflexiva”.
Ao ler as histórias contadas neste livro, você vai perceber que os incômodos que
sentimos no cotidiano são ótimos professores. Eles nos convidam a revisar o nosso trabalho
e ainda, “o que eu poderia ter feito de diferente”? Quando nos fazemos estas perguntas,
estamos comprometidos a transformar a nossa prática de acordo com o que nossos clientes
nos ensinam a cada dia. Ou seja, a transformação em terapia é mútua: tanto o terapeuta,
Esta não é uma tarefa fácil, afinal, vamos entendendo ao longo da nossa formação
que quanto mais sabemos sobre alguma coisa, quanto mais especializados nos tornamos em
estratégia para lidar com os problemas de nossos clientes, nos desconectamos da conversa
imediata em andamento e daquilo que eles estão tentando nos ensinar sobre as suas
histórias. Assim, além de nos tornamos terapeutas menos curiosos, criativos e reflexivos,
corremos o risco de anular a complexidade das histórias de nossos clientes, resumindo suas
trabalho, alguns recursos nos ajudam a estar nas conversas em uma postura mais
• Esteja atento à fluidez da conversa10. Estamos o tempo todo sensíveis às respostas
indicadores que usamos para medir tal fluidez são: as pausas reflexivas, as
valiosa que usamos o tempo todo na clínica. Quando ficamos em dúvida sobre os
efeitos da nossa fala para o cliente, compartilhamos com ele a nossa conversa
Mesmo que no dia da conversa com Rafaela sobre a mediação de conflitos ela tenha
dito que não estava chateada, a sessão seguinte retomou este ponto...
Rafaela abriu a conversa falando sobre o encontro passado. “Eu fiquei com raiva de
você aquele dia... Porque não sinto que a terapia tem conseguido me ajudar nessa questão
com a minha mãe. Tem hora que acho uma besteira essa história de que tudo é conversa...
Porque não é só isso! Minha mãe tem muitas questões, ela é uma pessoa muito difícil de
lidar... não acho que só mudar o jeito de conversar poderia ajudar. Eu já tentei muito falar
com ela, de tudo quanto é jeito que você possa imaginar, e nunca funcionou”! Em um
primeiro momento, eu me senti criticada por Rafaela. Afinal, como uma terapeuta
especialista em diálogo, era difícil ouvir que, para ela, isso seria uma “besteira” que não
promissora - e passei a ouvir com atenção o que ela tinha para me dizer, apesar da crítica.
Ao exercitar uma escuta curiosa e interessada, percebi que a minha sugestão na sessão
anterior (de que elas fossem para a mediação de conflitos) tinha mais a ver com aquilo que
meu saber de especialista acreditava ser útil para Rafaela, do que com as demandas e
expectativas que ela mesma tinha para a sessão. Pude ouvir que ela esperava se sentir
acolhida pela terapia num momento de sofrimento e, mais do que isso, ser enfim
reconhecida pelas tentativas de melhorar a relação com sua mãe. Neste encontro, entender
que o meu silêncio e minha curiosidade genuína eram o que eu podia oferecer de mais
valioso para Rafaela foi imprescindível para que a conversa continuasse caminhando.
seja, quando estamos certos, em um dado momento, de qual o melhor caminho para a vida
daquela pessoa, precisamos ter cuidado como terapeutas: estamos de fato ouvindo a
demanda do cliente, ou nos lançamos a uma tarefa diferente, qual seja, a de convencê-lo de
algo que supostamente seria melhor para sua vida? Em momentos como esse, muitas vezes,
é mais válido deixar de lado nosso entendimento especializado do que seria melhor para as
pessoas e, em lugar disso, apostarmos em conversas exploratórias, nas quais possamos criar
junto ao cliente outros caminhos e estratégias que lhe parecessem mais interessantes.
isso é feito artesanalmente, passo a passo, analisando cada movimento do cliente. Por isso
não podemos, a priori, supor que aquilo que sabemos ou pensamos ser útil, servirá para
qualquer pessoa em qualquer circunstância12. Algumas orientações nos ajudam nesta
• Seja curioso. Faça perguntas. Suas dúvidas e curiosidades sobre a história do cliente
Além de explorar caminhos até então inéditos nas histórias que lhe são contadas, ao
se mostrar curioso você também convida seu cliente a olhar com curiosidade para
• Tome cuidado para não colonizar a história do outro13. Não podemos fugir da
ou melhor, justamente por isso - devemos cuidar para que não façamos da nossa
clientes em favor das nossas. Temos uma pergunta específica que é bem útil nesta
tarefa e que ofertamos ao final de muitas das nossas falas: “isso faz sentido pra
você?”. Lembre-se, porém: não adianta fazer essa pergunta, se você não estiver
disponível para ouvir a resposta... especialmente quando o cliente te disser que “não,
• Questione os efeitos das suas intervenções. Isso não faz de você um terapeuta
inseguro. O mundo vai nos contando que é preciso ter certeza sobre muitas coisas se
queremos ser bem-sucedidos. Porém, no campo da terapia não é bem assim. Muitas
vezes, ter certezas demais pode nos atrapalhar a colaborar com os clientes na
de construir soluções sob demanda para cada cliente, não significa que você está
abrindo mão de toda a sua expertise e conhecimento. Significa, sim, que você está
potência do diálogo. A aposta estava na minha sugestão de que a conversa facilitada pelo
mediador poderia ajudar ela e sua mãe a se entenderem. Contraditoriamente, ao fazer isso,
sessão. Ao me manter mais conectada à ideia da mediação do que às falas e expressões dela,
abrir espaço na minha própria conversa interna, para que a conversa com o outro possa
acontecer em mim. Desde então, nós seguimos conversando sobre este e outros assuntos,
sempre atravessadas por mais perguntas do que respostas. Isso não significa que desistimos
de encontrá-las, mas, sim, que estamos mais interessadas nos caminhos que percorremos
até lá.
Capítulo 4
Marcelo chegou até a terapia com a demanda de pensar suas relações no trabalho.
Passamos alguns meses investindo na conversa com esse foco. Houve uma sessão em que eu
propus ampliar o foco de nosso diálogo saindo apenas do trabalho, em direção aos valores
que, para ele, eram importantes na vida. Com essa conversa, eu tinha a intenção de ajudá-lo
a nomear quais eram as coisas importantes para ele, para então refletirmos sobre as
maneiras como essas coisas estavam ou não presentes em sua vida laboral e, mais ainda, se
era possível cuidar desses valores em outros contextos que não apenas do trabalho. Essa
sessão trouxe para o foco um valor importante de Marcelo: os vínculos de sua vida. Por um
lado, essa conversa nos ajudou muito a progredir com as reflexões sobre seu trabalho. Por
outro lado, nomear esse valor nos levou a um novo terreno de exploração em terapia:
Marcelo, um homem solteiro de quase quarenta anos, tem muita vontade de ter sua própria
família, na qual possa compartilhar de um tipo de vínculo especial que conheceu em sua
família de origem. Para ele, isso pode acontecer na forma de casamento, mas,
terapeuta, não me é teoricamente nada familiar: a adoção. Como posso ajudar Marcelo a
indivíduo, problema e mudança de sua própria forma. Existem escolas de terapia que focam
ser humano e suas formas de estar no mundo. Dentro deste escopo, o foco está na postura
terapêutica. Isso faz sentido, se pensarmos que não somos (ou não deveríamos) ser
treinados para atender diagnósticos, mas sim, pessoas. É claro que existem profissionais
com mais experiência e conhecimento em uma ou outra área. Mas, na prática terapêutica da
vida real, tipicamente, não escolhemos nossos clientes pela demanda. Eles chegam até nós
por redes de indicação que confiam em nosso trabalho. Como terapeuta, portanto, sua
função é criar um ambiente seguro em que o cliente possa organizar suas próprias
concepções, ouvir a si mesmo falar em voz alta e ampliar seus entendimentos a respeito das
questões que lhe são importantes. Você não precisa ter todas as respostas, mas, precisa
curiosas. Escute atentamente. Pergunte sobre o que lhe parece mais interessante.
Utilize seus recursos teóricos como forma de tornar entendimentos mais complexos,
cinema, teatro14.
• Faça apenas aquilo que tem confiança. Apesar de você não ter que saber tudo,
lembre-se: você sabe muitas coisas. Algumas vezes, temos a tendência de naturalizar
não é bem assim. Se você chegou ao ponto de estar sentado de frente a um cliente
Reconheça o que este histórico te permite fazer com confiança e aposte nisso.
A conversa de adoção com Marcelo despertou em mim um senso de responsabilidade
importante, tanto pela magnitude de uma possível decisão que possa decorrer dessas
reflexões, quanto pelo fato de não ser uma temática que eu tivesse estudado com qualquer
profundidade. Quando me conecto com a conversa a partir deste enquadre, minha vontade é
Porém, Marcelo está ali, na minha frente, se conectando de forma sensível com algo tão
importante para ele. Respiro fundo e converso comigo mesmo, em silêncio: “quais dos meus
conhecimentos e repertórios culturais podem me auxiliar a estar aqui com Marcelo?” Penso
em nosso vínculo, construído ao longo dos últimos meses, e em como é especial que ele volte
a pensar sobre a paternidade a partir de uma conversa que tivemos. Conecto-me com minha
formação como psicólogo e terapeuta de família. O que mais aprendi nesta trajetória foi a
ouvir as pessoas, estar com elas, e fazer boas perguntas. Lembro-me de um livro sobre
adoção que ganhei de uma amiga psicóloga, mas, nunca li. Penso também nessa amiga:
posso ligar para ela e conversarmos um pouco... o que ela me orienta neste caso? Esse
diálogo interno me reposiciona na conversa. Sei algumas coisas. Outras não. Posso seguir em
A não familiaridade com algum tema em terapia pode ser assustadora. Porém, se
pensarmos com calma, perceberemos que possivelmente isso vai acontecer com mais
frequência do que gostaríamos. Afinal, as vidas das pessoas são múltiplas. Não existe
infinita variedade de temáticas que atravessa as vidas das pessoas. Como proceder, então?
Considere o seguinte enquadre: não conhecer sobre algo te oferece uma perspectiva única,
na qual você pode estar inteiramente curioso em aprender com o cliente sobre aquele
mundo estrangeiro para você15. Suas perguntas podem funcionar como a de um explorador
em um novo território, guiado por alguém nativo. Neste encontro, o nativo redescobre seu
próprio lugar a partir de um olhar de fora, de quem se encanta como novidades por aquilo
• Aprenda com o conhecimento do cliente. Toda pessoa sabe mais sobre sua própria
vida do que você mesmo. Coloque-se disponível para aprender com ela sobre o que
lhe é importante. Ouça suas dúvidas e angústias, mas, também, seus recursos e
experiência. Mas, lembre-se: qualquer fala do terapeuta não deve ser encarada como
Quanto mais você praticar, mais conhecerá novas questões de interesse. Novas
• Saiba quando encaminhar. Algumas vezes, a demanda do cliente está para além do
improdutiva, que te paralisa. Seja qual for o motivo, você não precisa dar conta de
todas as demandas. Saiba reconhecer quando atingiu seus limites e encaminhar para
outros profissionais que poderão ajudar melhor a pessoa que te procurou. Isso não é
um problema, mas, sim, uma grande virtude. Tenha bons parceiros – tanto em sua
própria profissão, quanto de outras especialidades – com quem possa contar para
Ligo para minha amiga. Ela me passa muitas informações valiosas sobre o processo
legal de adoção e, principalmente, caminhos práticos pelos quais posso ajudar Marcelo a
caminhar: grupos de apoio, serviço social, vara de família, etc. Ela me conta ainda sobre
aspectos que, em sua experiência atendendo futuros pais e mães, parecem-lhe importantes:
Enquanto a ouço, tomo nota de todas essas informações, sabendo que serão muito úteis no
processo com Marcelo. Ao fim de nossa conversa, contudo, ela me diz algo que acaba por
ser, para mim, o mais útil de tudo: “Pedro, que bom que ele está aí com você pensando
nessas coisas. Você é um bom companheiro de conversa. Tenho certeza de que poderá ajudá-
Capítulo 5
pelos pais. Eles tinham uma expectativa muito clara em relação à terapia: fazer com que a
enurese noturna (xixi na cama) desaparecesse da vida de seu filho. Receber esta demanda foi
um desafio e tanto, já que eu não trabalhava com técnicas e recursos específicos para alívio
da enurese. Deixei isso claro para os pais desde a nossa primeira conversa. Também esclareci
para eles que meu primeiro objetivo no processo terapêutico de Gustavo seria separar as
histórias dele e da enurese noturna, que estavam misturadas desde o seu nascimento.
Criamos, assim, uma personagem para representá-la – batizada por Gustavo com o nome de
Companheiro. A partir daí só conversamos sobre ela nestes termos17. A maior parte das
nossas sessões eram organizadas em torno do Companheiro, e nós dois nos empenhamos em
entender melhor quais eram os efeitos dele na vida de Gustavo: suas vantagens e
desvantagens, que outras pessoas o conheciam, em que contextos ele aparecia com mais ou
menos frequência... Gustavo fez até um relatório de pesquisa bastante profissional, onde
apareceu naquela noite. Nesta pesquisa, chegamos a algumas hipóteses sobre seu
aparecimento: a quantidade de água que ele bebia à noite, como ele se sentiu durante o dia
tempo), e quais eram suas expectativas para o dia seguinte. Construímos muitos
entendimentos e estratégias inéditos ao longo dos nossos encontros. Mas, apesar disso, o
Ao longo da nossa trajetória na clínica vamos nos encontrar com muitas pessoas que,
assim como Gustavo e sua família, chegam até nós com expectativas claras em relação à
ela com a esperança de que vamos resolvê-la... E fazem isso com razão! Construímos a
com os seus problemas. Por isso, ao reconhecermos que o trabalho do psicólogo clínico é
• Deixe claro o que você tem a oferecer. Ao receber demandas muito específicas para a
intervenção diante dos pedidos que lhe foram feitos. Mesmo reconhecendo que
esperam da terapia e seus efeitos reais, saber desde o início qual o acordo entre
transformam não só a relação entre o cliente e o problema, mas também, aquilo que
trabalho. Ao mesmo tempo, não podemos resumi-lo a isso. Em primeiro lugar, porque a
objetivo que a resolução do problema sugere. Em segundo lugar, porque quando dedicamos
toda a nossa atenção ao problema, deixamos de olhar para muitos outros aspectos da
história do cliente que estão livres de sua influência. Cuidar ativamente para que o problema
seja apenas um dos muitos elementos da narrativa das pessoas que nos procuram é um
do efeito empobrecedor e limitante que a história do problema exerce nas suas narrativas.
Muitas vezes, um problema não pode ser resolvido, tanto quanto dissolvido, ou seja, perder
influência sobre a vida da pessoa ao ponto de não mais ter o status de problema18.
O Companheiro foi o motivo que trouxe Gustavo ao meu consultório. Isso o tornou um
organizador importante das nossas conversas. Ainda assim, eu estava a todo tempo me
perguntando “o que estamos fazendo juntos, enquanto conversamos sobre ele?”. Essa
pergunta foi inspirada pela lição de uma supervisora brilhante que tive a sorte de encontrar
trabalhavam em uma ONG que atendia crianças, ela era muito questionada, “para que eu
fico indo lá pentear cabelo de menino!?”. Ao que ela respondia, “o que de extraordinário
você está fazendo enquanto penteia aquele cabelo? Quais os sentidos e efeitos desse gesto
na relação de vocês? Quem vocês se tornam ao fazer isso?”. Nunca vou me esquecer destas
perguntas. Foram elas que ampliaram o meu olhar para o processo terapêutico de Gustavo.
Conversar sobre o Companheiro com uma estranha (no caso, eu), já era por si só um
movimento extraordinário na história dele, pois, muitas vezes, sua timidez o impedia de
conversar com pessoas fora do contexto familiar, ainda mais sobre um assunto tão secreto e
Gustavo também passou a ocupar uma posição ativa e engajada na sua relação com o
experimentar esta relação a partir de uma outra perspectiva, mais curiosa e potente, muito
diferente daquela de uma criança refém dos efeitos da enurese noturna. A ludicidade e o tom
descontraído dos nossos encontros também foram valiosos neste processo, afinal, antes da
palavras passaram a nomear os motivos pelos quais Gustavo estava em terapia, e que a
Estar atento ao processo como um todo, e não apenas à queixa, pode ser um aliado
cliente sobre o seu problema e, ao mesmo tempo, resistir para que esta seja sua
quando não damos atenção a ele. Esta estratégia desafia uma lógica tradicional de
resolução de problema que nos diz que precisamos, primeiro, esgotar todos os
isso pode não funcionar, porque enquanto falamos sobre o problema estamos
parece com “estamos nos tornando reféns do problema, dedicando a ele todo o
nosso tempo e atenção”, devemos cuidar para que outras histórias, livres de sua
• Não limite a terapia ao que o cliente quer transformar. Aquilo que fazemos e quem
terapia. É por isso que estamos sempre muito atentos ao processo terapêutico como
outro, pode ser revolucionária e transformadora na vida dos clientes. Logo, limitar a
As semanas passavam e falávamos cada vez menos sobre o Companheiro, que foi
substituído por conversas sobre a escola, sobre o medo, sobre a timidez, sobre os desenhos
de avião, sobre o sonho de conhecer a Disney... À medida que as conversas foram se
processo terapêutico, e Gustavo foi convidado à ocupar novamente esta posição. Por mérito
e por direito, a história de Gustavo foi devolvida a ele, assim como a autoridade para
Gustavo. Mas, este não foi o ponto final da história. Há 4 meses atrás, passados dois anos
desde este encerramento, Gustavo voltou para a terapia, explicando: “estava me sentindo
triste e ansioso com algumas coisas na escola”. As palavras escolhidas por ele para justificar
seu retorno para a terapia são muito significativas. Isso porque o Companheiro ainda faz
parte de sua vida – de um jeito mais sutil, quando comparado ao passado - mas, essa não é
mais a coisa mais importante sobre ele. Hoje em dia, conversamos sobre muitas outras
coisas, e ao Companheiro só cabe uma pergunta ao final de cada sessão: “e aí, como ele
libertamos também da ideia de que qualquer mudança significativa em sua vida só seria
na qual, apesar de ainda ser acompanhado pelo seu Companheiro, Gustavo poderia
Capítulo 6
A mudança é individual.
Era uma pessoa jovem, dezesseis anos, quando entrou no meu consultório pela
primeira vez. A colega de profissão que havia feito o encaminhamento para mim tinha dito
um nome feminino. Porém, no WhatsApp, por onde marcamos, notei que tinha um nome
diferente: Alex. Quando fui até a recepção chamar a pessoa nova daquele dia, notei seu
olhar assustado. Era uma figura andrógina, sem uma definição clara de gênero, segundo os
padrões sociais mais tradicionais. Pedi que se sentasse, e escolhi começar com a questão que
me ocupava a mente: “Me falaram que você se chama... (eu disse o nome feminino que eu já
Prossegui: “É assim que você gosta que te chame”? Dessa vez, o aceno foi negativo. “Qual
nome você gosta”? “Alex”. “Este é um nome diferente! Onde você o encontrou”? Alex me
contou, então, uma história sobre como conheceu este nome que, em inglês, é de gênero
neutro. Enquanto ele dizia isso, notei que referia a si mesmo com pronomes masculinos.
Comentei sobre isso, e ele confirmou. Perguntei o por quê. Alex me explicou que
pronomes masculinos lhe soavam mais adequados. Combinei com ele, então, que o chamaria
dessa forma. Pedi que, caso eu errasse em algum momento, ele imediatamente me
corrigisse. Surpreso, ele concordou. Ao fim de nossa conversa, já na porta da sala, Alex me
parou, com um movimento cuidadoso, e, com os olhos marejados, disse: “Eu nunca pensei
formação, enquanto estudamos as teorias e nos preparamos para estar com as pessoas, é
exatamente este tipo de relação que temos em nosso imaginário, quando o encontro
encontro, em que cada palavra, gesto e olhar pode fazer a diferença para alguém no
• Mude o mundo, uma conversa de cada vez20. Enquanto teorizamos sobre as pessoas
e o mundo, muitas vezes, perdemos de vista que tudo o que existe para nós está
pessoa, formas novas e inéditas de compreender sua história. Explore como seus
entendimentos teóricos podem se ajustar àquela vida particular. Nunca tome por
• Preste atenção aos detalhes da interação22. Essa dica é uma decorrência da anterior.
Cada detalhe na interação terapêutica, tudo o que você faz junto do seu cliente,
pode ser transformador em alguma medida. Dedique sua atenção plena ao que a
pessoa fala. Lembre-se: suas perguntas e interesses podem conferir importância
inédita àquela história e àquela pessoa. Preste atenção não apenas ao conteúdo da
mudança.
conversa foi transformadora para ele, na medida em que encontrou, pela primeira vez,
alguém que o compreendeu em sua maneira particular de existir. Mas, a história de Alex não
Três anos já se passaram desde nosso primeiro encontro. Escuto apreensivo enquanto
Alex chora me contando que está sem esperança. A ideia de contar sobre sua identidade
para a própria família é assustadora demais. Ele se sente constrangido em ir a locais onde
vai ser chamado pelo nome de registro. Naquela semana, estava particularmente triste
porque seus amigos mais próximos – aqueles que supostamente o compreendem – estavam
tendo uma conversa que Alex chamou de “transfóbica” sem nem mesmo se darem conta
disso. Deixo que ele chore e concordo: ao longo de todo este tempo que nos conhecemos,
acompanhei de perto com Alex o que significa ser uma pessoa trans neste mundo. Estar com
ele me aproxima de uma realidade de exclusão social que, de outro modo, eu jamais poderia
ter ideia. Ao mesmo tempo, peço licença para lembrá-lo que, em nosso tempo juntos, ele já
caminhou muito: atualmente, usa seu nome social na faculdade, tem uma aparência um
tanto mais próxima de seu ideal do que quando nos conhecemos pela primeira vez, fez
alguns amigos que, na maior parte do tempo, o escutam e compreendem sobre a questão do
gênero. Ele diz que concorda, mas, que isso parece muito pouco diante do seu sofrimento e
do que ainda imagina que terá que enfrentar. O que posso dizer a Alex? Eu concordo.
Esta conversa com Alex é muito difícil de ser vivida, porque, em última instância, ela
nos lembra que sua experiência no mundo não acontece de forma separada dos aspectos
sociais e materiais onde existe23. Frases motivacionais como “você pode ser o que quiser” e
“basta mudar sua mentalidade para alcançar o que deseja” podem até ser espalhadas na
cultura com uma boa intenção e, quem sabe, serem úteis para algumas pessoas. Contudo,
terapeuta, mas, também, muito perigoso. Como a história com Alex sugere, não basta que
ele mude sua mentalidade para ser aceito como uma pessoa transgênero no mundo em que
vivemos. Apenas para ilustrar a dificuldade de sua posição, o Brasil lidera hoje o ranking
experiência individual de Alex se produz. Como podemos lidar com ela no contexto da
clínica?
pode parecer quase óbvia, mas, infelizmente, não é. Muitas de nossas práticas
todos interiores e, portanto, assim devem ser resolvidos. Então, um primeiro passo
para uma prática sensível aos aspectos individuais e sociais como interligados é
pergunte-se sempre (e pergunte a ele também): como os grupos sociais dos quais ele
faz parte têm a ver com a história sendo contada? Como seu gênero, raça, classe
social, etnia, corpo físico, etc., têm a ver com a construção do problema contado?
Uma conversa sobre estes aspectos pode ser útil para ampliar a compreensão da
• Amplie as ações terapêuticas para outros contextos da vida da pessoa25. Temos uma
tradição de terapia que se limita muito ao contexto clínico em si. Você pode ajudar
seu cliente com os aspectos sociais de seu dilema ao ampliar suas ações para outros
possível, interfira neles. Use seu lugar de especialista, socialmente legitimado, para
ajudar o cliente em contextos onde ele não tem tanto poder quanto você.
• Compreenda que o “terapêutico” está também em ações sociais para além da sala de
Nem é este seu objetivo. Porém, como terapeuta, você pode (e, se nos permite,
deve) se enxergar como um agente de transformação social. Você tem uma formação
específica e um lugar social. A quais causas você se dedica? Quando fala sobre sua
prática, está atento a elas? Com este conselho, buscamos chamar atenção para o
não apenas a sala de terapia, certamente, a longo prazo, outros clientes (e até
mesmo aquele à sua frente) terão suas histórias transformadas, mesmo sem estarem
em terapia.
De volta a Alex...
As relações entre problemáticas sociais e individuais são complexas e não têm apenas
uma resposta. Minhas conversas com Alex sempre me colocavam diante desta complexidade
de forma sensível, quando nossa forma de organização social sobre o gênero claramente
afeta sua vida individual todos os dias. Em um plano maior do que a própria terapia de Alex,
estou sempre atento a como políticas públicas LGBT+ estão sendo construídas. Em todos os
contextos que tenho oportunidade, procuro falar sobre isso e intervir conforme possível. Isso
não quer dizer que não seja possível ampliar as possibilidades de Alex com a terapia
também. Neste caso, busquei convidar seus amigos para participarem da terapia sempre que
pude. Além disso, sempre estive disponível para usar meu “poder” a seu favor, em lugares
onde isso pudesse ser útil. Foi o caso, por exemplo, de quando conversei com sua família, de
forma genérica sobre questões de gênero. Juntos, também buscamos informações legais
sobre a possibilidade de Alex usar seu nome social na faculdade. Entre o limite e a esperança
colocados na prática terapêutica sob esta ótica, vislumbro no futuro um Alex que, por se
entender, se aceitar e ter redes de apoio, possa também fazer diferença na vida de outras
Capítulo 7
Eu atendia Bruno por Skype, e a questão que o trouxe à terapia tinha exatamente a
ver com essa distância: ele se mudou de cidade para estudar, mas, estava achando muito
ruim sua nova vida. Conheceu ali uma versão de si que não gostava. Vinha chorando muito, e
tinha crises de ansiedade, algo que não conhecia até então. Ele queria abandonar a
faculdade e voltar para sua cidade de origem, mas, essa não lhe parecia uma opção viável.
Que tipo de pessoa abandona a própria vida que escolheu? Quem ele se tornaria diante
daquela desistência? Ao longo de seis meses de terapia, nossas conversas foram muitos
potentes no sentido de Bruno entender como a distância e sua nova rotina o afetaram, qual
futuro ele queria para si e como alinhar isso aos seus valores. Essas conversas culminaram
em uma decisão tranquila para que ele pudesse voltar para sua cidade de origem e pensar
um novo plano. Com essa decisão e seu consequente retorno à cidade, a constante
ansiedade em que ele se encontrava, assim como as crises de choro e a angústia de ter que
tomar uma decisão, melhoraram. Apesar disso, ele continuava a ter sintomas de ansiedade,
ainda que bem mais leves, e algumas crises eventuais que o incomodavam muito.
Sociologia, Serviço Social, dentre outros. Em nossa formação, é ideal que estudemos muito
produzir relações de ajuda, precisamos mesmo fazer isso. Nestes estudos, é natural que
foquemos nas possibilidades de mudança e potenciais das teorias para produzir
• Tenha domínio da sua teoria e práticas decorrentes. Para ser capaz de ajudar alguém
domínio e conforto com sua própria teoria. Conheça as bases filosóficas de sua
prática. Tenha clareza dos conceitos teóricos que a sustentam. Como os autores
• Foque na singularidade da pessoa à sua frente. As teorias que embasam a terapia nos
ensinam muito sobre as pessoas e as relações. Porém, cada cliente chega até nós
daquele jeito, daquela forma, uma única vez. Permita-se surpreender com a
sobre o que lhe importa e o que valoriza. Não tente reduzir a riqueza de sua história
• Seja transparente sobre seus potenciais e limites. Para todo encontro terapêutico,
necessariamente. Reconheça quais são seus limites. Entenda para quais tipos de
casos e clientes sua teoria te capacita a atender e quais estão fora deste escopo. Seja
transparente com os clientes sobre seus limites e dificuldades. Ser transparente não
significa “confessar” tudo, mas sim, refletir abertamente com outros – seja o próprio
Sempre que ele trazia esta questão, eu tomava um caminho de conversa que conheço a
partir da minha postura teórica: a ansiedade surgiu na vida dele em um contexto de sentido,
tempo, dizia a ele que, apesar de eu conhecer algumas técnicas simples de manejo de
ansiedade, essa não era minha especialidade, e que poderíamos pensar juntos na indicação
de algum outro profissional que trabalhasse especificamente assim. Bruno ficou de pensar.
Alguns dias depois, ele desmarcou a sessão da semana seguinte. Faltou na próxima. Naquele
ponto, entendi que ele estava deixando a terapia. Ponderei se deveria falar com ele e,
compreendendo que eu precisava liberar o horário, se esse fosse o caso, escrevi. Ele disse que
ia mesmo parar, mas, não me deu maiores explicações. Me coloquei pronta para recebê-lo
de volta a qualquer momento, se ele quisesse, e não nos falamos mais. É claro que, sozinha,
criei hipóteses sobre esta finalização. Mas, com alguma experiência clínica, já sabia àquela
altura que esse tipo de situação acontece muitas vezes e não têm um sentido único. Neste
caso, me limitei a reconhecer: foi possível ajudar Bruno com uma de suas demandas, mas,
Como terapeuta, você vai conseguir ajudar muitas pessoas... e também não vai
conseguir ajudar outras. Às vezes, como na história com Bruno, você vai conseguir ajudar a
mesma pessoa de algumas formas, e não de outras. E isso está tudo bem. É esperado que
seja assim. Estar em conversas de processo terapêutico é sempre reconhecer que algumas
coisas são possíveis e outras não. Não é ético de nossa parte vender tratamentos como se
• Não leve para o lado pessoal. Quando um cliente desiste da terapia ou você
reconhece que não está sendo capaz de ajudá-lo, não tome isso pessoalmente. Em
um contexto de relação tão específico como a terapia, existe muito mais em jogo do
e cliente, empatia e identificação que são muito importantes. Está tudo bem que não
aplica. Afinal, há clientes que você provavelmente acha mais fácil e agradável de
atender do que outros, e isso não quer dizer nada sobre aquela pessoa, mas sim, do
encontro entre vocês. O mais importante, é ser coerente com sua ética e
• Aprenda com a situação. Quando se deparar com um limite de ajuda em sua prática,
não passe rápido demais por cima da situação. Pause, tome nota, observe o
processo. Pergunte-se: quais das minhas ações nos trouxeram até este ponto? Eu
poderia ter feito algo diferente? O que preciso estudar mais para que isso não se
“não dão certo” têm muito a nos ensinar, e vale a pena prestar atenção cuidadosa a
Passaram-se sete meses desde que Bruno deixou a terapia, quando recebi um cliente
novo que chegou até mim dizendo ter sido indicado por ele. Neste encontro, fiquei feliz em
ouvir sobre como Bruno estava e perceber que ele confiava no meu trabalho o suficiente para
indicar que outras pessoas fossem até lá. O encontro com seu amigo, meu novo paciente, me
lembra que cada caso é um caso, que a história da terapia não necessariamente é definida
pelo seu fim, e que reconhecer os limites de quem podemos ajudar, de que maneiras e em
Capítulo 8
Rodrigo foi meu cliente por dois anos e quatro meses. Encerramos o processo
terapêutico há três meses, quando ele se mudou de cidade, para um intercâmbio. Aos 16
anos, essa mudança surgiu como um resultado da própria terapia: Rodrigo chegou ao
entendimento de que seria bom para ele estar em um novo ambiente, conhecer pessoas,
diferentes, viver novas relações. Passamos os meses finais da terapia nos preparando para
essa mudança – buscando entender a quais valores de Rodrigo essa decisão respondia
(liberdade, paz, novidade) quais seus principais pontos fortes para viver a situação
(dificuldades de falar com pessoas novas, medo da cultura diferente, ficar sem apoio
psicológico). Dedicamos também algum tempo pensando sobre como eu poderia ser útil para
ele, mesmo à distância. Esses foram alguns de nossos combinados: ele poderia falar comigo
por mensagens, contando de novidades e desafios sempre que quisesse e, também, solicitar
uma sessão on-line a qualquer momento, sem precisar se justificar. Era, então, uma quarta-
“Oi, Pedro, tudo joia? Aqui é o Rodrigo. Estou mandando mensagem porque estão
passando uns pensamentos ruins recentemente na minha cabeça e estou tendo uns
relapsos na depressão diariamente agora, porque tive uns problemas aqui. Gostaria
de ver se em algum tempo próximo teria como a gente conversar, mesmo que seja
Respiro fundo, enquanto uma onda de preocupação e cansaço percorre o meu corpo.
Como posso responder? Minha vontade naquele momento é ligar para ele e entender o que
está acontecendo. Ver como posso ajudar. Entro no carro e decido mandar mensagem. Nela,
digo que podemos, sim, conversar, e ofereço um horário para o dia seguinte. Checo se é
possível para ele assim, ou se a urgência é maior do que isso. Como estamos em fusos
horários diferentes, sua resposta nessa hora é: “estou na aula, já te respondo”. Ele não
respondeu. Só voltamos a nos falar uma semana depois, quando enviei uma mensagem
A prática clínica nos permite construir um tipo de relação muito especial com as
pessoas. Há coisas que o cliente, de fato, só fala com o terapeuta. Há problemas que não
podem ser compartilhados com os outros. O sistema terapêutico costuma ser organizado
Conforme a relação se desenvolve, novas histórias podem ser contadas sobre sua vida.
qual ele não considera estar vivendo a melhor versão de si mesmo e de sua vida. É natural,
então, que a relação terapêutica se torne um ponto de apoio importante para muitos
clientes, enquanto continuam a levar suas vidas no cotidiano, para além da terapia. Isso é
muito especial, mas, também, é um processo que exige atenção. Como podemos, como
terapeutas, cuidar para que as pessoas se sintam amparadas de forma ética e cuidadosa,
mas, sem que isso se torne também um peso para nossas próprias vidas pessoais?
• Garanta que você tem uma sólida relação terapêutica. É a qualidade dessa relação
útil. Toda a base da relação terapêutica é o que oferece contexto para as ações de
ajuda neste momento. Então, lembre-se: a ajuda não está situada neste ponto
clientes: “Você pode falar comigo sempre que achar necessário. Eu vou responder
quando puder. Se for algo urgente, me ligue”. Dessa forma, você pode estar de
alguma forma tranquilo que o cliente vai te acionar conforme sua necessidade, e não
precisa adivinhar que tipos de ajuda ele de fato precisa em um dado momento.
acolha, escute e busque saídas com o cliente para aquele ponto em que se encontra.
Ao mesmo tempo, ajude-o a reconhecer quem são as pessoas relevantes em sua vida
que podem oferecer-lhe apoio e cuidado mais próximo enquanto vive este
momento.
• Combine um esquema de checagem periódica. Após o primeiro contato, busque ter
uma conversa honesta sobre como sua ajuda pode ser útil nas horas e dias seguintes.
Eu me lembro dos meus primeiros anos de prática clínica. Se isso tivesse acontecido,
eu teria ficado muito preocupado e ido atrás de Rodrigo naqueles dias. Teria tentado marcar
com ele logo que me escreveu. Por que, então, não mandei mensagem perguntando ou
“cobrando”, se ele me disse que precisava tanto de ajuda? Porque, depois de todos estes
anos de prática, hoje entendo que o terapeuta é mesmo muito importante na vida do cliente.
Mas, nem tanto assim! Quando finalmente entrei em contato alguns dias depois, a resposta
“Pedro, desculpa. Eu acabei esquecendo, aconteceu muita coisa por aqui. Está tudo
certo já, aqui melhorou muito. Pode deixar que te atualizo assim que possível”.
a vida das pessoas, lá fora, continua acontecendo. Temos acesso apenas a recortes,
momentos específicos com as pessoas. Entre o momento em que elas nos pedem ajuda e
nossa possiblidade de responder, a vida segue. Pode ser um café que tomou. Pode ser que
simplesmente enviar a mensagem pedindo ajuda já tenha servido para a pessoa entender
que tem uma rede de apoio, e a acalmou. Até mesmo, pode ser que a própria dificuldade em
encontrar e falar com o terapeuta ofereça tempo para que a pessoa se conecte com outras
coisas, pessoas e recursos que, por si mesmos, transformem sua situação. Então, esta
reflexão é um convite que pode trazer muito alívio: nossa importância na vida das pessoas é
limitada! E isso não é um problema, senão um potencial. Aqui estão algumas dicas de como
conectado com outras versões conhecidas do cliente – aquelas que lhe permitiram
• Confie que as pessoas sabem pedir ajuda. Se seus combinados com o cliente estão
bem estabelecidos e ele decidiu não falar com você, é possível que tenha boas razões
para isso. Deixe que ele peça e aceite ajuda conforme avaliar necessário.
talvez seja prudente dosarmos este senso de importância com uma pitada de
humildade: somos apenas uma pequena peça na trajetória das pessoas. Sua vida
existe para muito além da terapia, antes dela e também depois. Reconhecer o limite
de nossa importância nos coloca mais sensíveis à possibilidade de estar com o outro
Ele disse em sua última mensagem que me atualizaria assim que possível. Outros três
meses já se passaram, e isso ainda não aconteceu. Fico curioso sobre o que se passou com
ele desde então. Meu interesse, porém, está muito mais focado em que vida ele está
feira específica. Sei que todas as outras quartas-feiras que vivemos antes são muito mais
importantes do que essa, e isso me deixa tranquilo de entender que, se e quando for preciso,
Conclusão
É domingo à noite. Estamos conversando por mensagem de texto sobre uma festa
que fomos com alguns amigos na noite anterior. A conversa é sobre a festa: a música, o
ambiente, a bebida, as pessoas... Uma conversa entre amigos. Não demora até que um de
“Acho que sim, Marina. Mas, me preocupei um pouco. Eu algumas vezes sinto que
“Concordo, eu vivo isso também. Mas, também já vivi o contrário. Me lembro de uma
cliente que a terapia deslanchou justamente depois de nos encontrarmos num dia
assim, acredita? Ela me disse depois que me encontrar na “vida real” a deixou mais à
vontade para falar comigo. Se sentir mais próxima tornou a terapia mais útil para
ela”.
em que crescemos; sobre como este tipo de encontro fora da clínica é muito diferente,
dependendo de quem é o cliente; sobre como diferentes colegas de profissão lidariam com a
situação. Já se passou uma hora desde que começamos a conversar e, empolgados com
“Marina, olha nós aqui de novo, trabalhando no domingo à noite! Alguém precisa
parar a gente”!
Estamos caminhando para o fim de nossa tarefa de refletir sobre como ser um bom
terapeuta. A esta altura, enquanto escrevemos, nos vemos muito curiosos em imaginar
como você, leitor, consegue tornar útil para si mesmo nossas reflexões. Que aspectos mais
se destacaram para você? Com quais limites você se deparou nesta jornada? Que
Talvez nossa curiosidade seja tão grande por uma razão especial: em nosso
Com os clientes, sim, mas, também, com seus colegas, supervisores, professores... e, mais
ainda, em todos os lugares por onde circula em sua vida. Essa é a beleza e a dificuldade do
que fazemos: nos constituímos profissionais a todo tempo. Talvez por isso uma festa de
sábado à noite se torne uma boa conversa sobre terapia no dia seguinte... Essa conversa, por
sua vez, tem efeitos no que podemos e escolhemos fazer quando estamos com os nossos
clientes na segunda-feira!
preferida de diálogo, que apresentamos na epígrafe deste livro. John Stewart e Karen
Zediker32 definem o diálogo como uma tensão fundamental entre “me manter no meu
“Me manter no meu próprio lugar” significa reconhecer de onde você vem. Quais
outro acontecer para mim” significa também reconhecer que seu interlocutor traz seus
próprios conceitos, ideias e contribuições para a interação e, por sua vez, estar disposto a
formas de estarmos juntos com o outro, buscamos criar tensões suficientes para que
continuemos com nosso próprio senso de identidade, mas, nos permitamos ser
Tomando emprestada essa definição, propomos que ser bom terapeuta tem a ver
com aprender a criar níveis adequados de tensão nos diferentes contextos da vida pelos
• Para ouvir e respeitar a história que as pessoas nos contam e, ao mesmo tempo,
desafiá-las para que as pessoas possam enxergar e viver algo inédito, diferente e
• Para nos envolvermos e nos importarmos com as pessoas e com nosso trabalho,
necessário.
• Para nos lembrarmos que somos terapeutas, mas, não apenas terapeutas e que
inevitáveis limites.
poucas páginas. Mas, se formos nos arriscar a colocar um conselho no centro de toda a
prática, aí vai: viva a terapia (e tudo o que a envolve) como um contexto de tensão produtiva.
Isso tem a ver com o que, primeiro, o antropólogo e ciberneticista Gregory Bateson e,
diferença. Porém, busque fazer apenas a diferença mínima necessária para que a vida – sua
Esperamos que este livro seja um convite suficientemente flexível para que você
possa levá-lo, de sua própria maneira, para sua prática. Ao mesmo tempo, desejamos que
ele seja, também, tenso o suficiente para te convidar a olhar de forma desafiadora para o