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The

fundamental tension, in our experience, is between letting the other happen to me and
holding my own ground. This tension characterizes dialogue in every context where we have
experienced it.

*

A tensão fundamental, em nossa experiência, é entre deixar o outro acontecer para mim e
me manter no meu próprio lugar. Essa tensão caracteriza o diálogo em todo contexto no
qual já o experimentamos.
Capítulo 1

Você é pago pela hora da conversa.

Mas, seu foco está no processo terapêutico como um todo.

Comecei a atender Camila, uma mulher de 32 anos, no início do ano passado. Desde o

início, percebi o seu jeito tímido e desconfiado, de quem dizia com frequência “eu fico com

vergonha de te falar isso...”, e que parecia sempre tensa, tanto ao falar, quanto ao me ouvir.

Essa tensão aparecia até no seu jeito de se sentar: braços e pernas cruzados, expressão séria

e uma postura enrijecida. A sensação de que tudo que eu fizesse ou falasse poderia intimidar

ou constranger Camila me atravessava em muitos momentos. Nossas conversas se

construíam em torno de seu dilema sobre continuar ou não em um relacionamento e dos

entendimentos que sustentavam sua escolha: “não consigo terminar, eu o amo muito, tenho

baixa autoestima”... Essas eram, quase sempre, as conclusões das nossas sessões,

independente do caminho que percorríamos ao longo daqueles 60 minutos de conversa. Em

uma sessão, Camila me diz: “eu gosto de vir aqui, porque é como se eu conversasse comigo

mesma e pudesse me ouvir em voz alta”. Minha conversa interna, ao ouvir essa frase,

representa bem o que eu senti algumas vezes ao longo deste processo terapêutico: minhas

perguntas e reflexões não eram boas o suficiente para ajudar Camila, e minha participação

naquela história seria facilmente dispensável. A sensação de que repetíamos a mesma

conversa (quase) toda semana fez com que eu me sentisse frustrada, pensando que aquele

atendimento sem novidades não valeria o valor que eu cobrava por ele. Por isso, a pergunta

“por que ela continua vindo aqui toda semana?”, volta e meia me ocupava.
Quando terminamos uma conversa terapêutica com a sensação de que não saímos

do lugar, é comum questionarmos o quanto merecemos ser pagos por aquela sessão, que

aparentemente não fez diferença nenhuma na vida do cliente. Parte deste desconforto é

sustentado pela lógica dos honorários, já que somos pagos por cada hora de atendimento.

Pensando nesta lógica, achamos muito útil estabelecer critérios orientadores que nos

ajudam a medir a qualidade das nossas conversas para além de seus conteúdos específicos.

São eles:

• Compartilhe com o cliente a responsabilidade pela construção de uma boa conversa2.

Somos responsáveis pela condução de uma conversa terapêutica, mas, não devemos

assumir esta tarefa sozinhos. A dedicação do cliente à terapia, propondo assuntos

que sejam de seu interesse e/ou se debruçando sobre nossas perguntas e reflexões,

é tão importante quanto nossas intervenções.

• Avalie o que você ofereceu ao cliente a cada sessão. Desconecte-se um pouco dos

resultados imediatos da conversa e comece a avaliar o que você ofereceu ao cliente

naquele encontro. É necessário que você reconheça qual a sua versão preferida

como terapeuta e quais são os seus critérios para tal, por exemplo: a capacidade de

estar radicalmente atento e presente ao que o cliente diz e como ele diz; a sua

habilidade em ser criativo e responsivo na conversa; a sensibilidade em perceber as

demandas do cliente em cada sessão; a clareza sobre quais são suas hipóteses e

intenções a cada intervenção terapêutica utilizada; etc3.


• Pergunte. Sabe quando temos a sensação de que estamos, literalmente, jogando

conversa fora? Quando isso acontece, uma boa estratégia é perguntar para o seu

cliente “qual a sua esperança/expectativa nesta conversa”? A resposta dele tanto

informa os seus movimentos seguintes na sessão, quanto dissolve a sua conversa

interna, que até então está tomada pela dúvida do que vocês estão fazendo juntos.

• Tenha paciência. Um último conselho, muito importante: às vezes, para chegarem

em uma conversa extraordinária, vocês passarão por algumas conversas ordinárias...

e está tudo bem!

No entanto, sabemos que aquilo que oferecemos às pessoas em terapia não se

encerra no tempo e no espaço de uma única sessão: passamos horas estudando e nos

preparando para conduzir conversas que sejam terapêuticas (pense em quanto tempo você

vai gastar lendo este e-book, por exemplo); dispendemos nosso tempo e energia para

sustentar as relações com os clientes, mesmo em sua ausência (quem nunca se lembrou

daquele cliente enquanto assistia à um filme no final de semana, ou até enquanto dormia,

acordando inspirado para fazer aquela pergunta na sessão seguinte, não é mesmo?); temos

gastos com a construção e a manutenção do nosso espaço de trabalho; investimos nosso

dinheiro em cursos e especializações; etc. Assim, ao calcularmos o valor que cobramos por

uma sessão de terapia, devemos considerar todos estes investimentos, sejam eles concretos

ou subjetivos.

Para além da questão dos honorários, enquanto avaliamos a qualidade de um

atendimento, estamos na verdade comprometidos com a análise do processo terapêutico

como um todo. Ou seja, ao mesmo tempo que participamos de cada conversa como se ela

fosse única e especial, nos dedicando ao máximo para que seja útil e transformadora para o

cliente, avaliamos também os seus sentidos e efeitos sempre em relação ao que


construímos ao longo de toda a terapia. Lembre-se sempre: cada conversa deve ser pensada

a favor da história do cliente em sua totalidade. Vamos voltar ao exemplo de Camila para

explicar como este lembrete funciona na prática:

Apesar da minha sensação de que não estávamos caminhando, e do momento difícil

que Camila passava financeiramente, ela continuava comprometida com a terapia: não

faltava, não se atrasava, não desmarcava. Diante do seu comprometimento, comecei a

pensar que talvez estivéssemos construindo em terapia algo que fosse importante para ela.

Mas... o quê? Em uma das tentativas de responder a minha própria pergunta, passei a

refletir sobre como Camila mudou ao longo do tempo em que estamos juntas. Nos últimos

três meses, comecei a percebê-la mais tranquila e confortável no contexto terapêutico. Ela

ainda anuncia sua vergonha, mas faz isso sorrindo com descontração; ela fala palavrão, dá

risada e chora; se acomoda no sofá, e os braços e as pernas não se cruzam mais. Ao me dar

conta de como eu e Camila transformamos nossa relação ao longo do tempo, começo a

entender o processo terapêutico dela como um processo de construção de confiança – tanto

em relação a mim, quanto em relação a ela mesma. Assim, passei a me ocupar de outras

perguntas, diferentes daquela que eu me fazia no início. São elas: em que outros contextos e

relações esta Camila, confiante em si mesma e confiando nos outros, aparece? A história da

terapia como um processo de construção de confiança seria uma história inédita na vida de

Camila?

A mudança de perspectiva que estas perguntas trazem em relação ao processo

terapêutico mostram que diferença faz avaliar o trabalho a partir de uma conversa

específica, ou considerá-la como parte de um processo mais amplo. Para que uma mudança

como essa seja possível, alguns critérios orientadores podem ser úteis:
• Esteja atento à performance. Quando o conteúdo da conversa parece não ter

novidade alguma, dedique sua atenção a “como” vocês têm conversado. É como se

você observasse cada conversa com o botão MUTE ativado, prestando muita atenção

nas expressões do cliente. A forma como ele se expressa pode inaugurar diferenças

na conversa, mesmo que o conteúdo seja parecido com o de encontros anteriores.

Não se esqueça que estamos sempre buscando por diferenças significativas para o

cliente, e elas podem estar tanto no “quê” conversamos, quanto em “como” fazemos

isso.

• Tenha clareza das mudanças na relação de vocês ao longo do tempo. Mantenha-se

consciente de como o cliente chegou na terapia e como foram as primeiras

interações com ele. Ao compará-las com o momento atual da terapia, você pode

perceber sinais significativos que contam sobre as mudanças que foram possíveis ao

longo do processo.

• Saiba qual é o “pano de fundo” da terapia de cada cliente. Mesmo que vocês

transitem por muitos assuntos diferentes, é importante que tanto você quanto o

cliente tenham clareza sobre o que ele busca transformar em terapia. Isso é muito

útil na construção de pontos de aproximação entre a conversa imediata e aquilo que

vocês esperam alcançar. Para isso, dividimos nossa atenção entre os aspectos

emergentes, específicos de cada sessão, e em como/o que aquilo que estamos

ouvindo compõe a história mais ampla sobre o processo terapêutico.

A conversa com Camila desta semana, é um bom exemplo de como isso acontece em

nosso cotidiano. Nela, ouvi Camila dizer que a reflexão que eu ofereci ao final da sessão fazia

muito sentido para ela. Emocionada, ela me diz “vai parecer que eu estou te julgando, mas

não é isso... Mas eu percebo você sempre faz comentários em cima do que eu tinha falado,
ou que ficavam umas reflexões soltas no final... Hoje não, hoje eu entendi o que você quis

dizer e fez total sentido”! Ao ouvi-la, fiquei dividida: me senti feliz por saber que minha

reflexão tinha sido útil, e ao mesmo tempo frustrada por confirmar algo que eu pensava

desde o início da terapia, que não estávamos caminhando. No entanto, ao olhar para o

processo terapêutico de Camila como um todo a frustração foi logo dissolvida. Eu entendi

que, tão importante quanto a boa reflexão que construímos ao final da conversa, foi o fato

de Camila conseguir me dizer com sinceridade suas percepções sobre a terapia. Esta fala foi

muito significativa para o nosso processo de construção da confiança. Confiança dela em

mim, ao ponto de fazer um comentário que poderia parecer um julgamento, e também em si

mesma, ao falar em voz alta o que pensava sobre a terapia. Com isso, inaugurei uma nova

pergunta: “com quantas conversas medianas se faz uma conversa excelente”? O fato é que

precisei aprender muito sobre Camila, antes que pudesse ensinar algo a ela.


Capítulo 2

A relação terapêutica é o mais importante.

Mas, a terapia é atravessada por muitas outras questões.

Conheci Alice como minha aluna em um workshop de terapia familiar. Depois do

curso, ela me escreveu, dizendo que gostaria de conversar comigo sobre uma possível tutoria

ou supervisão em sua formação como terapeuta. Começamos a fazer isso através de uma

plataforma digital, já que moramos em cidades diferentes. Este pedido inicial focado em uma

demanda profissional logo se expandiu, de forma orgânica, tornando-se uma frutífera

relação terapêutica. O pedido de tutoria profissional, descobrimos juntos, estava muito

atrelado à revisão de Alice sobre sua própria vida pessoal, seus modos de estar no mundo e

suas relações com muitas pessoas ao seu redor. Isso é bastante comum, afinal, a prática do

terapeuta é atravessada por suas questões pessoais e olhar para elas faz parte de qualquer

supervisão que se preze. Ao longo de 11 meses, tivemos conversas muito importantes sobre o

que Alice chamava de “os lugares” que ela queria ocupar na vida. Sua formação como

terapeuta familiar, o conhecimento adquirido e a entrada em uma nova comunidade de

prática impactavam profundamente em como Alice se via. A terapia se construiu, assim,

sobre as bases de nossa relação marcada por três lugares diferentes, para além daquele de

terapeuta e cliente: por sermos professor e aluna; por sermos colegas em muitos cursos e

workshops, já que participarmos de uma mesma comunidade de conhecimento; e por termos

uma clara afinidade pessoal.

A relação terapêutica é a base da terapia. É por meio do encontro entre cliente e

profissional, na construção de um espaço seguro para as pessoas poderem falar sobre si


mesmas, suas vidas e seus dilemas, que o potencial terapêutico se constrói. Aqui estão

algumas reflexões importantes sobre esta relação:

• Oriente-se por uma fundamentação teórica sólida. Terapia é conversa. Mas, nem

toda conversa é terapêutica. Cada teoria e comunidade de prática conceituam a

relação terapêutica e o que conta como boa prática de sua própria maneira. Como

profissional, esteja consciente de como sua própria base teórica compreende a

relação terapêutica e quais são os elementos aos quais você deve estar atento ao

participar dela.

• Seja humano e ético na relação. Apesar das diferenças de conceituação teórica

acerca da relação terapêutica, lembre-se que você é um ser humano se encontrando

com outros seres humanos em sua prática. Ofereça acolhimento. Escute muito. Faça

perguntas interessadas. Não julgue o que está ouvindo. Lembre-se que você está

conversando com uma pessoa e que a história que ela te conta é, possivelmente, a

coisa mais significativa para ela naquele momento. Trate-a como tal. Cuide do sigilo

profissional. Esteja atento à ética de sua prática, tanto conforme os manuais cabíveis,

mas, tão importante quanto, atento ao desenvolvimento das relações.

• Dedique-se à construção do contexto de relação4. Para que a relação terapêutica

possa se desenvolver de forma produtiva, é muito importante que ela se estabeleça

sobre as bases de confiança mútua. Dedique tempo e atenção à negociação dos

termos dessa relação5. Explique ao seu cliente o seu trabalho de maneira inteligível.





Pergunte sempre se o caminho que você está propondo faz sentido para a pessoa.

Coloque-se verdadeiramente disposto a negociar e mudar esse caminho, caso o

cliente não entenda como útil ou adequado. Mostre que está de fato interessado no

que está ouvindo. Disponha-se a sempre parar para refletirem juntos sobre os rumos

da relação terapêutica.

Alguns meses depois de termos iniciado, Alice me escreveu dizendo de uma notícia

muito difícil que ela havia recebido sobre uma relação familiar, e que não estava se sentindo

bem. Eu estava de férias neste dia, e só voltaria na semana seguinte. Conversamos um pouco

por mensagem e perguntei se ela gostaria que eu falasse com ela em algum horário. Ela

preferiu não interromper minhas férias, e disse que, se precisasse de ajuda, me avisaria.

Quando retornei das férias, marcamos uma sessão on-line. Nela, Alice me contou que, por

estar mal naqueles dias, optou por ligar para sua antiga terapeuta na cidade para ter apoio.

Eu disse a ela que estava tudo bem e que entendia. Conversamos sobre sua questão familiar

e pensamos alguns encaminhamentos possíveis. Na próxima semana, quando conversamos,

chegamos à conclusão de que, naquele momento, talvez fosse melhor que Alice tivesse

mesmo um atendimento terapêutico presencial.

Qualquer terapia se desenvolve em um espaço e tempo específicos. Assim, a relação

terapêutica não acontece de forma abstrata, solta no ar. Ao contrário, todo encontro é

marcado por muitos aspectos estruturais: local de atendimento, possibilidade de acesso

geográfico e social para o cliente, valor cobrado, forma de pagamento, condições do espaço

(como acessibilidade, conforto e estética, para citar apenas alguns exemplos). Além disso,

questões sociais mais amplas também estão presentes nestes aspectos materiais da terapia:

gênero, orientação sexual, raça e classe. Mais ainda, as redes de inserção de cliente e
terapeuta também fazem parte dessa equação6. Se têm pessoas em comum, se há

possibilidade de se encontrarem ou não em outros contextos e como lidar com isso, quem

esteve envolvido no encaminhamento e indicação... Enfim, existe uma infinidade de

elementos que marcam a relação terapêutica – alguns mais fortemente, outros menos,

dependendo de cada relação – mas, que não podem e nem devem ser ignorados pelo

profissional.

• Reconheça os aspectos que atravessam a relação terapêutica7. Imaginar que a

terapia é uma atividade descolada da realidade em que se produz é um erro.

Reconheça que existem diferentes fatores que perpassam o relacionamento

terapêutico e esteja atento a como eles o influenciam.

• Reconheça como esses aspectos ampliam as possibilidades da terapia. Existem

questões que favorecerão o contexto e a conversa terapêutica. Pode ser que o

cliente se identifique com você. Pode ser que ache sua poltrona confortável. Talvez

ele goste da forma atenta como você o olhe. Talvez, seu humor seja compatível com

o dele. Não há formula específica. Fique atento aos sinais, sejam eles verbais ou não,

oferecidos pelo cliente. Observe como ele reage às suas colocações. Preste atenção à

sua respiração, forma de falar, jeitos de se mexer na cadeira. Escute quando ele

disser que algo fez sentido ou quando se entusiasmar com alguma colocação. Preste

atenção aos detalhes.

• Reconheça como esses aspectos limitam as possibilidades da terapia. Esta dica

funciona como a anterior, porém, com o conteúdo reverso. Muitos atravessamentos

da terapia podem limitar sua possibilidade de atuação e produção. Talvez o cliente





tenha visto sua posição política diferente da dele na internet e se incomode com isso.

Pode ser que ele não sinta que você compreenda sua experiência de exclusão por

nunca ter vivido algo parecido. O preço de sua sessão pode ter ficado caro demais,

diante da perda de um emprego. Não negligencie a importância de estar atento a

esses aspectos. Converse abertamente sobre eles, quando possível, com o cliente.

Utilize-os como uma forma de o processo terapêutico caminhar em direção ao que

aquele limite diz ser importante para a pessoa. Pense em encaminhamentos, se for

esse o caso diante do limite colocado.

Na relação com Alice, os diferentes lugares que marcavam nossa relação nunca se

constituíram como um problema para a terapia, mas, sim, como um potencial. Tornou-se um

hábito marcarmos de onde estávamos falando “estou pensando isso no meu self professor”

ou “digo isso a partir de alguém que um dia já se formou terapeuta”. Diante dessas

demandas, o fato de nossas conversas não serem presenciais nunca havia se constituído

como um problema. Contudo, a partir do momento em que ela estava vivendo uma crise, isso

se tornou um limite importante. O fato de eu estar de férias logo naquele momento também

participou da construção deste limite. Como Alice e eu sempre tivemos uma relação

terapêutica muito bem negociada, compreendemos juntos que esses limites, naquele dado

momento, poderiam ser cuidados de forma mais adequada com outra profissional. Limites

não precisam se tornar problemas, e nossa boa relação, que perdura em outros contextos

até hoje, é um ótimo exemplo disso.


Capítulo 3

O seu conhecimento especializado é importante.

Mas, esteja sempre disposto a ser corrigido.

Sou terapeuta de Rafaela há 2 anos e 10 meses, e os desafios enfrentados por ela na

relação com sua mãe constituem um tema recorrente nos nossos encontros. Em uma das

conversas que tivemos sobre o assunto, ao ouvi-la contar de suas tentativas frustradas em

conversar com sua mãe, sugiro que elas participem de um encontro de Mediação de

Conflitos, que consiste em uma conversa facilitada por um terceiro imparcial (o mediador).

Fiz essa sugestão com base em minha experiência profissional, que informava o quanto o

contexto e o formato em que as conversas acontecem, influenciam seus caminhos e

desfechos. Em resposta à minha sugestão, ela disse que já tentou conversar com a mãe de

muitos jeitos diferentes, e que não se tratava simplesmente de mudar o jeito de conversar.

Segundo ela, “na frente do mediador a conversa vai fluir bem, mas, eu sei que quando

chegar em casa vai voltar tudo ao normal”. Ao longo da sessão, continuei apostando na

mediação como uma boa estratégia de mudança, enquanto Rafaela insistia em tentar me

fazer entender que esse não seria um bom caminho. Terminamos a conversa de uma forma

estranha. Pela sua expressão séria, suas respostas curtas e longas pausas, tive a impressão

de que Rafaela estava chateada comigo. Por isso, descrevi o que estava percebendo de uma

forma concreta, “me parece que você ficou chateada com o que eu disse, porque está com

essa cara de brava, me respondendo com falas curtas e diretas...”, e em seguida lhe

perguntei “... é isso mesmo que você está sentindo”? Ela respondeu que não, que só estava

“reflexiva”.
Ao ler as histórias contadas neste livro, você vai perceber que os incômodos que

sentimos no cotidiano são ótimos professores. Eles nos convidam a revisar o nosso trabalho

reflexivamente, a partir de questionamentos como “o que nesta conversa me incomodou”?,

e ainda, “o que eu poderia ter feito de diferente”? Quando nos fazemos estas perguntas,

estamos comprometidos a transformar a nossa prática de acordo com o que nossos clientes

nos ensinam a cada dia. Ou seja, a transformação em terapia é mútua: tanto o terapeuta,

quanto o cliente devem deixam a sala de terapia diferentes do que entraram8.

Esta não é uma tarefa fácil, afinal, vamos entendendo ao longo da nossa formação

que quanto mais sabemos sobre alguma coisa, quanto mais especializados nos tornamos em

determinado assunto, mais rápido conseguiremos sucesso na profissão. Sim, em muitos

momentos esta consigna é verdadeira, e nossos saberes de especialista ajudam muitas

pessoas. Ao mesmo tempo, quando apostamos todas as nossas fichas em um só caminho ou

estratégia para lidar com os problemas de nossos clientes, nos desconectamos da conversa

imediata em andamento e daquilo que eles estão tentando nos ensinar sobre as suas

histórias. Assim, além de nos tornamos terapeutas menos curiosos, criativos e reflexivos,

corremos o risco de anular a complexidade das histórias de nossos clientes, resumindo suas

experiências a termos empobrecidos e estratégias reducionistas. No nosso dia a dia de

trabalho, alguns recursos nos ajudam a estar nas conversas em uma postura mais

colaborativa, e menos especializada9. São eles:






• Esteja atento à fluidez da conversa10. Estamos o tempo todo sensíveis às respostas

do cliente em relação ao que dizemos ou fazemos em sessão, afim de avaliarmos se a

conversa continua caminhando ou se a sua fluidez está ameaçada. Alguns

indicadores que usamos para medir tal fluidez são: as pausas reflexivas, as

expressões de interesse do cliente, o engajamento deste diante das nossas perguntas

e reflexões, e a construção de entendimentos inéditos ao longo da sessão. Essa

avaliação é imprescindível para fazermos boas escolhas em direção a uma conversa

que seja adequadamente diferente para o cliente.

• Lembre-se de checar as suas percepções com o cliente11. Esta é uma ferramenta

valiosa que usamos o tempo todo na clínica. Quando ficamos em dúvida sobre os

efeitos da nossa fala para o cliente, compartilhamos com ele a nossa conversa

interna e em seguida fazemos uma pergunta de checagem.

Mesmo que no dia da conversa com Rafaela sobre a mediação de conflitos ela tenha

dito que não estava chateada, a sessão seguinte retomou este ponto...

Rafaela abriu a conversa falando sobre o encontro passado. “Eu fiquei com raiva de

você aquele dia... Porque não sinto que a terapia tem conseguido me ajudar nessa questão

com a minha mãe. Tem hora que acho uma besteira essa história de que tudo é conversa...

Porque não é só isso! Minha mãe tem muitas questões, ela é uma pessoa muito difícil de

lidar... não acho que só mudar o jeito de conversar poderia ajudar. Eu já tentei muito falar

com ela, de tudo quanto é jeito que você possa imaginar, e nunca funcionou”! Em um

primeiro momento, eu me senti criticada por Rafaela. Afinal, como uma terapeuta


especialista em diálogo, era difícil ouvir que, para ela, isso seria uma “besteira” que não

ajudava em nada. Logo em seguida, comprometida em sustentar o andamento da conversa,

abandonei intencionalmente a posição de “terapeuta criticada” – que parecia pouco

promissora - e passei a ouvir com atenção o que ela tinha para me dizer, apesar da crítica.

Ao exercitar uma escuta curiosa e interessada, percebi que a minha sugestão na sessão

anterior (de que elas fossem para a mediação de conflitos) tinha mais a ver com aquilo que

meu saber de especialista acreditava ser útil para Rafaela, do que com as demandas e

expectativas que ela mesma tinha para a sessão. Pude ouvir que ela esperava se sentir

acolhida pela terapia num momento de sofrimento e, mais do que isso, ser enfim

reconhecida pelas tentativas de melhorar a relação com sua mãe. Neste encontro, entender

que o meu silêncio e minha curiosidade genuína eram o que eu podia oferecer de mais

valioso para Rafaela foi imprescindível para que a conversa continuasse caminhando.

Quando conversamos com o cliente a partir de uma postura especializada demais, ou

seja, quando estamos certos, em um dado momento, de qual o melhor caminho para a vida

daquela pessoa, precisamos ter cuidado como terapeutas: estamos de fato ouvindo a

demanda do cliente, ou nos lançamos a uma tarefa diferente, qual seja, a de convencê-lo de

algo que supostamente seria melhor para sua vida? Em momentos como esse, muitas vezes,

é mais válido deixar de lado nosso entendimento especializado do que seria melhor para as

pessoas e, em lugar disso, apostarmos em conversas exploratórias, nas quais possamos criar

junto ao cliente outros caminhos e estratégias que lhe parecessem mais interessantes.

Quando assumimos o compromisso de manter a conversa em andamento, entendemos que

isso é feito artesanalmente, passo a passo, analisando cada movimento do cliente. Por isso

não podemos, a priori, supor que aquilo que sabemos ou pensamos ser útil, servirá para
qualquer pessoa em qualquer circunstância12. Algumas orientações nos ajudam nesta

confecção artesanal do diálogo terapêutico:

• Seja curioso. Faça perguntas. Suas dúvidas e curiosidades sobre a história do cliente

são ferramentas importantíssimas na construção de conversas que fazem diferença.

Afinal, como inaugurar novidades se nos mantivermos apegados ao que já sabemos?

Além de explorar caminhos até então inéditos nas histórias que lhe são contadas, ao

se mostrar curioso você também convida seu cliente a olhar com curiosidade para

suas próprias questões. O interesse e a curiosidade genuínos são contagiantes.

• Tome cuidado para não colonizar a história do outro13. Não podemos fugir da

construção conjunta de significados enquanto conversamos. Toda e qualquer ação

do terapeuta, inclusive o silêncio, influencia a narrativa do seu cliente. Ainda assim -

ou melhor, justamente por isso - devemos cuidar para que não façamos da nossa

influência um processo de dominação, em que subjugamos as palavras dos nossos

clientes em favor das nossas. Temos uma pergunta específica que é bem útil nesta

tarefa e que ofertamos ao final de muitas das nossas falas: “isso faz sentido pra

você?”. Lembre-se, porém: não adianta fazer essa pergunta, se você não estiver

disponível para ouvir a resposta... especialmente quando o cliente te disser que “não,

não faz sentido”!

• Questione os efeitos das suas intervenções. Isso não faz de você um terapeuta

inseguro. O mundo vai nos contando que é preciso ter certeza sobre muitas coisas se

queremos ser bem-sucedidos. Porém, no campo da terapia não é bem assim. Muitas


vezes, ter certezas demais pode nos atrapalhar a colaborar com os clientes na

construção de soluções adequadas para seus problemas. Nesse sentido, avaliar a

utilidade de suas intervenções e questionar os seus efeitos em cada conversa, a fim

de construir soluções sob demanda para cada cliente, não significa que você está

abrindo mão de toda a sua expertise e conhecimento. Significa, sim, que você está

mais comprometido com a construção de entendimentos que façam a diferença na

vida daquela pessoa, do que com o seu conhecimento especializado.

Na história de Rafaela eu estava, ao mesmo tempo, apostando e desprezando a

potência do diálogo. A aposta estava na minha sugestão de que a conversa facilitada pelo

mediador poderia ajudar ela e sua mãe a se entenderem. Contraditoriamente, ao fazer isso,

eu estava me esquecendo de cuidar do diálogo que eu e Rafaela estávamos construindo em

sessão. Ao me manter mais conectada à ideia da mediação do que às falas e expressões dela,

me esqueci da condição primordial para que um diálogo transformador aconteça: é preciso

abrir espaço na minha própria conversa interna, para que a conversa com o outro possa

acontecer em mim. Desde então, nós seguimos conversando sobre este e outros assuntos,

sempre atravessadas por mais perguntas do que respostas. Isso não significa que desistimos

de encontrá-las, mas, sim, que estamos mais interessadas nos caminhos que percorremos

até lá.


Capítulo 4

Reconheça o que você sabe.

Mas, saiba que você não sabe tudo.

Marcelo chegou até a terapia com a demanda de pensar suas relações no trabalho.

Passamos alguns meses investindo na conversa com esse foco. Houve uma sessão em que eu

propus ampliar o foco de nosso diálogo saindo apenas do trabalho, em direção aos valores

que, para ele, eram importantes na vida. Com essa conversa, eu tinha a intenção de ajudá-lo

a nomear quais eram as coisas importantes para ele, para então refletirmos sobre as

maneiras como essas coisas estavam ou não presentes em sua vida laboral e, mais ainda, se

era possível cuidar desses valores em outros contextos que não apenas do trabalho. Essa

sessão trouxe para o foco um valor importante de Marcelo: os vínculos de sua vida. Por um

lado, essa conversa nos ajudou muito a progredir com as reflexões sobre seu trabalho. Por

outro lado, nomear esse valor nos levou a um novo terreno de exploração em terapia:

Marcelo, um homem solteiro de quase quarenta anos, tem muita vontade de ter sua própria

família, na qual possa compartilhar de um tipo de vínculo especial que conheceu em sua

família de origem. Para ele, isso pode acontecer na forma de casamento, mas,

principalmente, da paternidade. Aqui, adentramos uma conversa cujo conteúdo, como

terapeuta, não me é teoricamente nada familiar: a adoção. Como posso ajudar Marcelo a

caminhar nessa reflexão?

Cada perspectiva em Psicologia e decorrentes práticas terapêuticas conceituam

indivíduo, problema e mudança de sua própria forma. Existem escolas de terapia que focam

no tratamento de problemas específicos, como ansiedade ou depressão, por exemplo.


Contudo, em sua maioria, a formação do terapeuta costuma estar voltada para se pensar o

ser humano e suas formas de estar no mundo. Dentro deste escopo, o foco está na postura

terapêutica. Isso faz sentido, se pensarmos que não somos (ou não deveríamos) ser

treinados para atender diagnósticos, mas sim, pessoas. É claro que existem profissionais

com mais experiência e conhecimento em uma ou outra área. Mas, na prática terapêutica da

vida real, tipicamente, não escolhemos nossos clientes pela demanda. Eles chegam até nós

por redes de indicação que confiam em nosso trabalho. Como terapeuta, portanto, sua

função é criar um ambiente seguro em que o cliente possa organizar suas próprias

concepções, ouvir a si mesmo falar em voz alta e ampliar seus entendimentos a respeito das

questões que lhe são importantes. Você não precisa ter todas as respostas, mas, precisa

proporcionar um ambiente fértil para sua construção.

• Confie no processo. Mantenha sempre a conversa em andamento com perguntas

curiosas. Escute atentamente. Pergunte sobre o que lhe parece mais interessante.

Utilize seus recursos teóricos como forma de tornar entendimentos mais complexos,

quando necessário. Busque recursos em outros lugares da vida cultural: poesia,

cinema, teatro14.

• Faça apenas aquilo que tem confiança. Apesar de você não ter que saber tudo,

lembre-se: você sabe muitas coisas. Algumas vezes, temos a tendência de naturalizar

nosso conhecimento. É como se qualquer pessoa pudesse fazer aquilo. Lembre-se:

não é bem assim. Se você chegou ao ponto de estar sentado de frente a um cliente

que te procurou, isso provavelmente se baseia em um histórico de formação.

Reconheça o que este histórico te permite fazer com confiança e aposte nisso.




A conversa de adoção com Marcelo despertou em mim um senso de responsabilidade

importante, tanto pela magnitude de uma possível decisão que possa decorrer dessas

reflexões, quanto pelo fato de não ser uma temática que eu tivesse estudado com qualquer

profundidade. Quando me conecto com a conversa a partir deste enquadre, minha vontade é

parar tudo e me matricular imediatamente em algum curso de especialização sobre adoção.

Porém, Marcelo está ali, na minha frente, se conectando de forma sensível com algo tão

importante para ele. Respiro fundo e converso comigo mesmo, em silêncio: “quais dos meus

conhecimentos e repertórios culturais podem me auxiliar a estar aqui com Marcelo?” Penso

em nosso vínculo, construído ao longo dos últimos meses, e em como é especial que ele volte

a pensar sobre a paternidade a partir de uma conversa que tivemos. Conecto-me com minha

formação como psicólogo e terapeuta de família. O que mais aprendi nesta trajetória foi a

ouvir as pessoas, estar com elas, e fazer boas perguntas. Lembro-me de um livro sobre

adoção que ganhei de uma amiga psicóloga, mas, nunca li. Penso também nessa amiga:

posso ligar para ela e conversarmos um pouco... o que ela me orienta neste caso? Esse

diálogo interno me reposiciona na conversa. Sei algumas coisas. Outras não. Posso seguir em

diálogo com Marcelo a partir daí.

A não familiaridade com algum tema em terapia pode ser assustadora. Porém, se

pensarmos com calma, perceberemos que possivelmente isso vai acontecer com mais

frequência do que gostaríamos. Afinal, as vidas das pessoas são múltiplas. Não existe

possibilidade de qualquer terapeuta ter domínio, em termos de conteúdo, da possivelmente

infinita variedade de temáticas que atravessa as vidas das pessoas. Como proceder, então?

Considere o seguinte enquadre: não conhecer sobre algo te oferece uma perspectiva única,

na qual você pode estar inteiramente curioso em aprender com o cliente sobre aquele
mundo estrangeiro para você15. Suas perguntas podem funcionar como a de um explorador

em um novo território, guiado por alguém nativo. Neste encontro, o nativo redescobre seu

próprio lugar a partir de um olhar de fora, de quem se encanta como novidades por aquilo

que, para o outro, já parecia conhecido e comum demais.

• Aprenda com o conhecimento do cliente. Toda pessoa sabe mais sobre sua própria

vida do que você mesmo. Coloque-se disponível para aprender com ela sobre o que

lhe é importante. Ouça suas dúvidas e angústias, mas, também, seus recursos e

potencialidades. Ajude o cliente a dar nome – forma e contorno – para sua

experiência. Mas, lembre-se: qualquer fala do terapeuta não deve ser encarada como

uma verdade, mas, como um convite a fazer sentido de uma situação.

• Continue se formando. A formação de um bom terapeuta nunca está finalizada.

Quanto mais você praticar, mais conhecerá novas questões de interesse. Novas

oportunidades de revisitar o que você já sabe acontecerão todos os dias. Portanto,

continue estudando. E muito! Faça supervisão. Esteja inserido em grupos de

discussão de casos e de teoria.

• Saiba quando encaminhar. Algumas vezes, a demanda do cliente está para além do

seu conhecimento. Outras, a conversa te toca como terapeuta de uma maneira

improdutiva, que te paralisa. Seja qual for o motivo, você não precisa dar conta de

todas as demandas. Saiba reconhecer quando atingiu seus limites e encaminhar para

outros profissionais que poderão ajudar melhor a pessoa que te procurou. Isso não é

um problema, mas, sim, uma grande virtude. Tenha bons parceiros – tanto em sua




própria profissão, quanto de outras especialidades – com quem possa contar para

este tipo de encaminhamento.

Ligo para minha amiga. Ela me passa muitas informações valiosas sobre o processo

legal de adoção e, principalmente, caminhos práticos pelos quais posso ajudar Marcelo a

caminhar: grupos de apoio, serviço social, vara de família, etc. Ela me conta ainda sobre

aspectos que, em sua experiência atendendo futuros pais e mães, parecem-lhe importantes:

motivação para a adoção, e condições materiais e emocionais para a vida em família.

Enquanto a ouço, tomo nota de todas essas informações, sabendo que serão muito úteis no

processo com Marcelo. Ao fim de nossa conversa, contudo, ela me diz algo que acaba por

ser, para mim, o mais útil de tudo: “Pedro, que bom que ele está aí com você pensando

nessas coisas. Você é um bom companheiro de conversa. Tenho certeza de que poderá ajudá-

lo muito nessa decisão importante16”.



Capítulo 5

Esteja comprometido com a transformação.

Mas, não defina o sucesso da terapia só por isso.

Gustavo, um garoto de 12 anos de idade, chegou em meu consultório acompanhado

pelos pais. Eles tinham uma expectativa muito clara em relação à terapia: fazer com que a

enurese noturna (xixi na cama) desaparecesse da vida de seu filho. Receber esta demanda foi

um desafio e tanto, já que eu não trabalhava com técnicas e recursos específicos para alívio

da enurese. Deixei isso claro para os pais desde a nossa primeira conversa. Também esclareci

para eles que meu primeiro objetivo no processo terapêutico de Gustavo seria separar as

histórias dele e da enurese noturna, que estavam misturadas desde o seu nascimento.

Criamos, assim, uma personagem para representá-la – batizada por Gustavo com o nome de

Companheiro. A partir daí só conversamos sobre ela nestes termos17. A maior parte das

nossas sessões eram organizadas em torno do Companheiro, e nós dois nos empenhamos em

entender melhor quais eram os efeitos dele na vida de Gustavo: suas vantagens e

desvantagens, que outras pessoas o conheciam, em que contextos ele aparecia com mais ou

menos frequência... Gustavo fez até um relatório de pesquisa bastante profissional, onde

registrava em um diário o que acontecia em cada dia da semana, e se/como o Companheiro

apareceu naquela noite. Nesta pesquisa, chegamos a algumas hipóteses sobre seu

aparecimento: a quantidade de água que ele bebia à noite, como ele se sentiu durante o dia

(descobrimos que a alegria, confiança e tranquilidade faziam o Companheiro sumir por um


tempo), e quais eram suas expectativas para o dia seguinte. Construímos muitos

entendimentos e estratégias inéditos ao longo dos nossos encontros. Mas, apesar disso, o

Companheiro não deixou de aparecer.

Ao longo da nossa trajetória na clínica vamos nos encontrar com muitas pessoas que,

assim como Gustavo e sua família, chegam até nós com expectativas claras em relação à

resolução de seus problemas, estejam eles relacionados a sintomas fisiológicos ou não.

Ansiedade, depressão, pânico, insônia, continuar ou não em um relacionamento, resolver a

insatisfação com o trabalho... Independente da questão, nossos clientes nos apresentam a

ela com a esperança de que vamos resolvê-la... E fazem isso com razão! Construímos a

legitimidade da nossa profissão a partir da eficiência em transformar a relação das pessoas

com os seus problemas. Por isso, ao reconhecermos que o trabalho do psicólogo clínico é

sempre organizado em torno destes problemas, passamos a conduzir e a avaliar o processo

terapêutico com base em sua resolução.

• Deixe claro o que você tem a oferecer. Ao receber demandas muito específicas para a

terapia, especialmente aquelas que envolvem o alívio de sintomas fisiológicos, tenha

o compromisso ético de esclarecer para o cliente quais seriam suas propostas de

intervenção diante dos pedidos que lhe foram feitos. Mesmo reconhecendo que

estamos sempre sujeitos à frustrações e desencontros entre o que os clientes

esperam da terapia e seus efeitos reais, saber desde o início qual o acordo entre

vocês minimiza este risco.

• Lembre-se que o pedido pode mudar com o tempo. As conversas terapêuticas

transformam não só a relação entre o cliente e o problema, mas também, aquilo que

é reconhecido como tal. Os novos entendimentos sobre o que o problema é,

inauguram também novas expectativas e planos de ação em direção à mudança. Por


isso, é importante que você esteja disposto a revisar e, se preciso, renegociar com

seu cliente quais são seus pedidos e esperanças em relação à terapia.

Nos comprometermos com a solução do problema é parte importantíssima do nosso

trabalho. Ao mesmo tempo, não podemos resumi-lo a isso. Em primeiro lugar, porque a

complexidade da relação construída entre cliente e terapeuta extrapolam o foco simplista e

objetivo que a resolução do problema sugere. Em segundo lugar, porque quando dedicamos

toda a nossa atenção ao problema, deixamos de olhar para muitos outros aspectos da

história do cliente que estão livres de sua influência. Cuidar ativamente para que o problema

seja apenas um dos muitos elementos da narrativa das pessoas que nos procuram é um

compromisso ético do terapeuta, já que, na maioria das vezes, o sofrimento é consequência

do efeito empobrecedor e limitante que a história do problema exerce nas suas narrativas.

Muitas vezes, um problema não pode ser resolvido, tanto quanto dissolvido, ou seja, perder

influência sobre a vida da pessoa ao ponto de não mais ter o status de problema18.

O Companheiro foi o motivo que trouxe Gustavo ao meu consultório. Isso o tornou um

organizador importante das nossas conversas. Ainda assim, eu estava a todo tempo me

perguntando “o que estamos fazendo juntos, enquanto conversamos sobre ele?”. Essa

pergunta foi inspirada pela lição de uma supervisora brilhante que tive a sorte de encontrar

ao longo da minha formação19. Enquanto supervisora de um grupo de estagiários que

trabalhavam em uma ONG que atendia crianças, ela era muito questionada, “para que eu

fico indo lá pentear cabelo de menino!?”. Ao que ela respondia, “o que de extraordinário

você está fazendo enquanto penteia aquele cabelo? Quais os sentidos e efeitos desse gesto

na relação de vocês? Quem vocês se tornam ao fazer isso?”. Nunca vou me esquecer destas





perguntas. Foram elas que ampliaram o meu olhar para o processo terapêutico de Gustavo.

Conversar sobre o Companheiro com uma estranha (no caso, eu), já era por si só um

movimento extraordinário na história dele, pois, muitas vezes, sua timidez o impedia de

conversar com pessoas fora do contexto familiar, ainda mais sobre um assunto tão secreto e

constrangedor quanto a enurese. Além da confiança que construímos ao longo da terapia,

Gustavo também passou a ocupar uma posição ativa e engajada na sua relação com o

Companheiro. Ao convidá-lo para o papel de “investigador” do mesmo, ele pôde

experimentar esta relação a partir de uma outra perspectiva, mais curiosa e potente, muito

diferente daquela de uma criança refém dos efeitos da enurese noturna. A ludicidade e o tom

descontraído dos nossos encontros também foram valiosos neste processo, afinal, antes da

terapia o Companheiro só aparecia em conversas de tons sóbrios e marcadas de

preocupação. Confiança, engajamento, descontração, curiosidade e potência – essas

palavras passaram a nomear os motivos pelos quais Gustavo estava em terapia, e que a

história dominante sobre o Companheiro tentava esconder.

Estar atento ao processo como um todo, e não apenas à queixa, pode ser um aliado

poderoso na construção de transformações importantes em terapia. Para isso, algumas dicas

são muito úteis:

• Incentive a construção de narrativas inéditas. Devemos nos engajar na narrativa do

cliente sobre o seu problema e, ao mesmo tempo, resistir para que esta seja sua

única ou mais importante história. Fazemos isso quando estimulamos narrativas

marginalizadas pela história dominante sobre o problema, dedicando a elas nossa

atenção e curiosidade com o objetivo de adensá-las. Ao convidar o cliente para

experimentar outras posições e perspectivas, em narrativas que não estão


condicionadas ao problema, estimulamos sua criatividade no desenvolvimento de

estratégias mais úteis e sustentáveis para a dissolução de suas questões.

• Deixe o problema de lado. Muitas vezes, um problema é resolvido justamente

quando não damos atenção a ele. Esta estratégia desafia uma lógica tradicional de

resolução de problema que nos diz que precisamos, primeiro, esgotar todos os

entendimentos possíveis sobre ele e, só depois, encontrar sua solução. Na prática,

isso pode não funcionar, porque enquanto falamos sobre o problema estamos

também reforçando sua centralidade e, consequentemente, a sua influência na vida

da pessoa. Devemos nos perguntar “quem estamos nos tornando, e o que o

problema se torna quando conversamos sobre ele deste jeito?”. Se a resposta se

parece com “estamos nos tornando reféns do problema, dedicando a ele todo o

nosso tempo e atenção”, devemos cuidar para que outras histórias, livres de sua

influência, também possam participar do contexto terapêutico.

• Não limite a terapia ao que o cliente quer transformar. Aquilo que fazemos e quem

nos tornamos enquanto tentamos resolver problemas são as maiores potências da

terapia. É por isso que estamos sempre muito atentos ao processo terapêutico como

um todo, e que qualquer mudança alcançada em terapia só pode fazer sentido a

partir dele. A oferta de um espaço de acolhimento e escuta generosa, em uma

relação construída a partir do respeito e do interesse profundo pela história do

outro, pode ser revolucionária e transformadora na vida dos clientes. Logo, limitar a

terapia somente ao alcance de resultados palpáveis e objetivos, é injusto diante da

complexidade do encontro terapêutico.

As semanas passavam e falávamos cada vez menos sobre o Companheiro, que foi

substituído por conversas sobre a escola, sobre o medo, sobre a timidez, sobre os desenhos
de avião, sobre o sonho de conhecer a Disney... À medida que as conversas foram se

tornando mais complexas, o Companheiro foi deslocado do lugar de protagonista do

processo terapêutico, e Gustavo foi convidado à ocupar novamente esta posição. Por mérito

e por direito, a história de Gustavo foi devolvida a ele, assim como a autoridade para

escolher como continuaria a escrevê-la. Coincidentemente (ou não), no ponto em que

encerramos a terapia, o Companheiro havia diminuído significativamente suas visitas para

Gustavo. Mas, este não foi o ponto final da história. Há 4 meses atrás, passados dois anos

desde este encerramento, Gustavo voltou para a terapia, explicando: “estava me sentindo

triste e ansioso com algumas coisas na escola”. As palavras escolhidas por ele para justificar

seu retorno para a terapia são muito significativas. Isso porque o Companheiro ainda faz

parte de sua vida – de um jeito mais sutil, quando comparado ao passado - mas, essa não é

mais a coisa mais importante sobre ele. Hoje em dia, conversamos sobre muitas outras

coisas, e ao Companheiro só cabe uma pergunta ao final de cada sessão: “e aí, como ele

está?”. Quando libertamos a história de Gustavo da influência do Companheiro, nos

libertamos também da ideia de que qualquer mudança significativa em sua vida só seria

possível depois do desaparecimento da enurese. Assim, conseguimos construir uma narrativa

na qual, apesar de ainda ser acompanhado pelo seu Companheiro, Gustavo poderia

continuar caminhando pela vida sem que esteja refém dele.


Capítulo 6

A mudança é individual.

Mas, também é social.

Era uma pessoa jovem, dezesseis anos, quando entrou no meu consultório pela

primeira vez. A colega de profissão que havia feito o encaminhamento para mim tinha dito

um nome feminino. Porém, no WhatsApp, por onde marcamos, notei que tinha um nome

diferente: Alex. Quando fui até a recepção chamar a pessoa nova daquele dia, notei seu

olhar assustado. Era uma figura andrógina, sem uma definição clara de gênero, segundo os

padrões sociais mais tradicionais. Pedi que se sentasse, e escolhi começar com a questão que

me ocupava a mente: “Me falaram que você se chama... (eu disse o nome feminino que eu já

sabia pelo encaminhamento)”. A resposta veio com um aceno afirmativo da cabeça.

Prossegui: “É assim que você gosta que te chame”? Dessa vez, o aceno foi negativo. “Qual

nome você gosta”? “Alex”. “Este é um nome diferente! Onde você o encontrou”? Alex me

contou, então, uma história sobre como conheceu este nome que, em inglês, é de gênero

neutro. Enquanto ele dizia isso, notei que referia a si mesmo com pronomes masculinos.

Comentei sobre isso, e ele confirmou. Perguntei o por quê. Alex me explicou que

definitivamente não se sentia confortável com pronomes femininos. Se nossa linguagem

permitisse, referiria a si com pronomes neutros. Na ausência dessa opção, contudo, os

pronomes masculinos lhe soavam mais adequados. Combinei com ele, então, que o chamaria

dessa forma. Pedi que, caso eu errasse em algum momento, ele imediatamente me

corrigisse. Surpreso, ele concordou. Ao fim de nossa conversa, já na porta da sala, Alex me
parou, com um movimento cuidadoso, e, com os olhos marejados, disse: “Eu nunca pensei

que fosse encontrar alguém que me entenda. Hoje, eu encontrei”.

Histórias como essa são um presente na vida de qualquer terapeuta. Em nossa

formação, enquanto estudamos as teorias e nos preparamos para estar com as pessoas, é

exatamente este tipo de relação que temos em nosso imaginário, quando o encontro

terapêutico proporciona uma diferença importante na vida do cliente. A mudança, vista

assim, é um processo individual, singular, referente àquela pessoa específica, naquele

encontro, em que cada palavra, gesto e olhar pode fazer a diferença para alguém no

microcosmo da interação. Esteja sempre atento a cada um desses encontros especiais, e

lembre-se dos seguintes conselhos:

• Mude o mundo, uma conversa de cada vez20. Enquanto teorizamos sobre as pessoas

e o mundo, muitas vezes, perdemos de vista que tudo o que existe para nós está

sendo configurado e reconfigurado a cada momento, em cada novo encontro.

Aposte na terapia como um contexto potente de encontro. Busque, com cada

pessoa, formas novas e inéditas de compreender sua história. Explore como seus

entendimentos teóricos podem se ajustar àquela vida particular. Nunca tome por

certo o desenvolvimento da interação. Lembre-se: o que você e seu cliente fazem

juntos na conversa faz da conversa algo especial21.

• Preste atenção aos detalhes da interação22. Essa dica é uma decorrência da anterior.

Cada detalhe na interação terapêutica, tudo o que você faz junto do seu cliente,

pode ser transformador em alguma medida. Dedique sua atenção plena ao que a







pessoa fala. Lembre-se: suas perguntas e interesses podem conferir importância

inédita àquela história e àquela pessoa. Preste atenção não apenas ao conteúdo da

conversa, mas, de forma igualmente importante, a como ela se desenvolve:

respiração, pausas, emoções e palavras fazem toda a diferença na construção da

mudança.

Como Alex generosamente me contou ao fim de nossa primeira sessão, aquela

conversa foi transformadora para ele, na medida em que encontrou, pela primeira vez,

alguém que o compreendeu em sua maneira particular de existir. Mas, a história de Alex não

é apenas individual, ela acontece em um mundo cheio de outras pessoas...

Três anos já se passaram desde nosso primeiro encontro. Escuto apreensivo enquanto

Alex chora me contando que está sem esperança. A ideia de contar sobre sua identidade

para a própria família é assustadora demais. Ele se sente constrangido em ir a locais onde

vai ser chamado pelo nome de registro. Naquela semana, estava particularmente triste

porque seus amigos mais próximos – aqueles que supostamente o compreendem – estavam

tendo uma conversa que Alex chamou de “transfóbica” sem nem mesmo se darem conta

disso. Deixo que ele chore e concordo: ao longo de todo este tempo que nos conhecemos,

acompanhei de perto com Alex o que significa ser uma pessoa trans neste mundo. Estar com

ele me aproxima de uma realidade de exclusão social que, de outro modo, eu jamais poderia

ter ideia. Ao mesmo tempo, peço licença para lembrá-lo que, em nosso tempo juntos, ele já

caminhou muito: atualmente, usa seu nome social na faculdade, tem uma aparência um

tanto mais próxima de seu ideal do que quando nos conhecemos pela primeira vez, fez

alguns amigos que, na maior parte do tempo, o escutam e compreendem sobre a questão do

gênero. Ele diz que concorda, mas, que isso parece muito pouco diante do seu sofrimento e

do que ainda imagina que terá que enfrentar. O que posso dizer a Alex? Eu concordo.
Esta conversa com Alex é muito difícil de ser vivida, porque, em última instância, ela

nos lembra que sua experiência no mundo não acontece de forma separada dos aspectos

sociais e materiais onde existe23. Frases motivacionais como “você pode ser o que quiser” e

“basta mudar sua mentalidade para alcançar o que deseja” podem até ser espalhadas na

cultura com uma boa intenção e, quem sabe, serem úteis para algumas pessoas. Contudo,

tomá-las como realidades ao pé da letra é não apenas um movimento inocente para um

terapeuta, mas, também, muito perigoso. Como a história com Alex sugere, não basta que

ele mude sua mentalidade para ser aceito como uma pessoa transgênero no mundo em que

vivemos. Apenas para ilustrar a dificuldade de sua posição, o Brasil lidera hoje o ranking

mundial de assassinatos de pessoas transgênero. Esta é uma realidade dura na qual a

experiência individual de Alex se produz. Como podemos lidar com ela no contexto da

clínica?

• Reconheça os aspectos sociais que atravessam a experiência individual24. Essa dica

pode parecer quase óbvia, mas, infelizmente, não é. Muitas de nossas práticas

terapêuticas partem do pressuposto do indivíduo autocontido, cujos problemas são

todos interiores e, portanto, assim devem ser resolvidos. Então, um primeiro passo

para uma prática sensível aos aspectos individuais e sociais como interligados é

simplesmente reconhecer sua existência. Enquanto conversa com seu cliente,

pergunte-se sempre (e pergunte a ele também): como os grupos sociais dos quais ele

faz parte têm a ver com a história sendo contada? Como seu gênero, raça, classe

social, etnia, corpo físico, etc., têm a ver com a construção do problema contado?


Uma conversa sobre estes aspectos pode ser útil para ampliar a compreensão da

pessoa sobre seu dilema e suas possíveis ações a este respeito.

• Amplie as ações terapêuticas para outros contextos da vida da pessoa25. Temos uma

tradição de terapia que se limita muito ao contexto clínico em si. Você pode ajudar

seu cliente com os aspectos sociais de seu dilema ao ampliar suas ações para outros

contextos. Convide pessoas importantes de sua vida para participar da terapia26.

Converse sobre os contextos de vida da pessoa para entender como funcionam e, se

possível, interfira neles. Use seu lugar de especialista, socialmente legitimado, para

ajudar o cliente em contextos onde ele não tem tanto poder quanto você.

• Compreenda que o “terapêutico” está também em ações sociais para além da sala de

terapia27. Questões sociais amplas como injustiça social, preconceitos e inequidade,

por exemplo, extrapolam a possibilidade de uma “resolução” no campo da terapia.

Nem é este seu objetivo. Porém, como terapeuta, você pode (e, se nos permite,

deve) se enxergar como um agente de transformação social. Você tem uma formação

específica e um lugar social. A quais causas você se dedica? Quando fala sobre sua

prática, está atento a elas? Com este conselho, buscamos chamar atenção para o

seguinte: se dedicarmos nossos esforços de transformação em outras esferas que

não apenas a sala de terapia, certamente, a longo prazo, outros clientes (e até

mesmo aquele à sua frente) terão suas histórias transformadas, mesmo sem estarem

em terapia.

De volta a Alex...







As relações entre problemáticas sociais e individuais são complexas e não têm apenas

uma resposta. Minhas conversas com Alex sempre me colocavam diante desta complexidade

de forma sensível, quando nossa forma de organização social sobre o gênero claramente

afeta sua vida individual todos os dias. Em um plano maior do que a própria terapia de Alex,

estou sempre atento a como políticas públicas LGBT+ estão sendo construídas. Em todos os

contextos que tenho oportunidade, procuro falar sobre isso e intervir conforme possível. Isso

não quer dizer que não seja possível ampliar as possibilidades de Alex com a terapia

também. Neste caso, busquei convidar seus amigos para participarem da terapia sempre que

pude. Além disso, sempre estive disponível para usar meu “poder” a seu favor, em lugares

onde isso pudesse ser útil. Foi o caso, por exemplo, de quando conversei com sua família, de

forma genérica sobre questões de gênero. Juntos, também buscamos informações legais

sobre a possibilidade de Alex usar seu nome social na faculdade. Entre o limite e a esperança

colocados na prática terapêutica sob esta ótica, vislumbro no futuro um Alex que, por se

entender, se aceitar e ter redes de apoio, possa também fazer diferença na vida de outras

pessoas transgênero como ele.


Capítulo 7

Você vai conseguir ajudar muitas pessoas.

Mas, nem todo mundo.

Eu atendia Bruno por Skype, e a questão que o trouxe à terapia tinha exatamente a

ver com essa distância: ele se mudou de cidade para estudar, mas, estava achando muito

ruim sua nova vida. Conheceu ali uma versão de si que não gostava. Vinha chorando muito, e

tinha crises de ansiedade, algo que não conhecia até então. Ele queria abandonar a

faculdade e voltar para sua cidade de origem, mas, essa não lhe parecia uma opção viável.

Que tipo de pessoa abandona a própria vida que escolheu? Quem ele se tornaria diante

daquela desistência? Ao longo de seis meses de terapia, nossas conversas foram muitos

potentes no sentido de Bruno entender como a distância e sua nova rotina o afetaram, qual

futuro ele queria para si e como alinhar isso aos seus valores. Essas conversas culminaram

em uma decisão tranquila para que ele pudesse voltar para sua cidade de origem e pensar

um novo plano. Com essa decisão e seu consequente retorno à cidade, a constante

ansiedade em que ele se encontrava, assim como as crises de choro e a angústia de ter que

tomar uma decisão, melhoraram. Apesar disso, ele continuava a ter sintomas de ansiedade,

ainda que bem mais leves, e algumas crises eventuais que o incomodavam muito.

O campo da terapia é múltiplo. Contamos com conhecimentos advindos de

diferentes áreas do conhecimento: Psicologia, Psiquiatria, Comunicação, Antropologia,

Sociologia, Serviço Social, dentre outros. Em nossa formação, é ideal que estudemos muito

e, se queremos ser capazes de compreender o ser humano em sua complexidade, a fim de

produzir relações de ajuda, precisamos mesmo fazer isso. Nestes estudos, é natural que
foquemos nas possibilidades de mudança e potenciais das teorias para produzir

transformações. Para que isso aconteça...

• Tenha domínio da sua teoria e práticas decorrentes. Para ser capaz de ajudar alguém

de forma adequada e competente, é fundamental que você, terapeuta, tenha um

domínio e conforto com sua própria teoria. Conheça as bases filosóficas de sua

prática. Tenha clareza dos conceitos teóricos que a sustentam. Como os autores

conceituam pessoa, problema e mudança? Pratique com supervisão.

• Foque na singularidade da pessoa à sua frente. As teorias que embasam a terapia nos

ensinam muito sobre as pessoas e as relações. Porém, cada cliente chega até nós

com uma história singular, um encontro único de atravessamentos, que só acontece

daquele jeito, daquela forma, uma única vez. Permita-se surpreender com a

novidade e especificidade de cada pessoa. Escute-a com interesse, para aprender

sobre o que lhe importa e o que valoriza. Não tente reduzir a riqueza de sua história

ao encaixá-la em modelos teóricos rígidos e pré-determinados.

• Seja transparente sobre seus potenciais e limites. Para todo encontro terapêutico,

existem potenciais e também limites. Isso não precisa ser um problema

necessariamente. Reconheça quais são seus limites. Entenda para quais tipos de

casos e clientes sua teoria te capacita a atender e quais estão fora deste escopo. Seja

transparente com os clientes sobre seus limites e dificuldades. Ser transparente não

significa “confessar” tudo, mas sim, refletir abertamente com outros – seja o próprio

cliente, seja um supervisor ou colega e confiança – quando encontrar limites teóricos

e pessoais em algum caso específico.

Voltando, então, à história de Bruno...


Em minha conversa com ele, ficava claro, algumas vezes, que ele estava frustrado

com o caminho da terapia, já que os sintomas de ansiedade não estavam desaparecendo.

Sempre que ele trazia esta questão, eu tomava um caminho de conversa que conheço a

partir da minha postura teórica: a ansiedade surgiu na vida dele em um contexto de sentido,

e nós estávamos sendo bem-sucedidos em conhecer e transformar este sentido. Ao mesmo

tempo, dizia a ele que, apesar de eu conhecer algumas técnicas simples de manejo de

ansiedade, essa não era minha especialidade, e que poderíamos pensar juntos na indicação

de algum outro profissional que trabalhasse especificamente assim. Bruno ficou de pensar.

Alguns dias depois, ele desmarcou a sessão da semana seguinte. Faltou na próxima. Naquele

ponto, entendi que ele estava deixando a terapia. Ponderei se deveria falar com ele e,

compreendendo que eu precisava liberar o horário, se esse fosse o caso, escrevi. Ele disse que

ia mesmo parar, mas, não me deu maiores explicações. Me coloquei pronta para recebê-lo

de volta a qualquer momento, se ele quisesse, e não nos falamos mais. É claro que, sozinha,

criei hipóteses sobre esta finalização. Mas, com alguma experiência clínica, já sabia àquela

altura que esse tipo de situação acontece muitas vezes e não têm um sentido único. Neste

caso, me limitei a reconhecer: foi possível ajudar Bruno com uma de suas demandas, mas,

não com a outra.

Como terapeuta, você vai conseguir ajudar muitas pessoas... e também não vai

conseguir ajudar outras. Às vezes, como na história com Bruno, você vai conseguir ajudar a

mesma pessoa de algumas formas, e não de outras. E isso está tudo bem. É esperado que

seja assim. Estar em conversas de processo terapêutico é sempre reconhecer que algumas

coisas são possíveis e outras não. Não é ético de nossa parte vender tratamentos como se

eles fossem universais e garantidos quando, sabemos, funcionam de forma artesanal.


Atentos a isso, algumas dicas para lidar com a possível frustração diante da dificuldade ou

impossibilidade de ajudar alguém:

• Não leve para o lado pessoal. Quando um cliente desiste da terapia ou você

reconhece que não está sendo capaz de ajudá-lo, não tome isso pessoalmente. Em

um contexto de relação tão específico como a terapia, existe muito mais em jogo do

que só apenas a competência do profissional. Tem um certo encaixe entre terapeuta

e cliente, empatia e identificação que são muito importantes. Está tudo bem que não

se agrade a todos. Além disso, parta também do pressuposto que o contrário se

aplica. Afinal, há clientes que você provavelmente acha mais fácil e agradável de

atender do que outros, e isso não quer dizer nada sobre aquela pessoa, mas sim, do

encontro entre vocês. O mais importante, é ser coerente com sua ética e

competência profissional, e usar essas oportunidades como formas de aprendizado.

• Aprenda com a situação. Quando se deparar com um limite de ajuda em sua prática,

não passe rápido demais por cima da situação. Pause, tome nota, observe o

processo. Pergunte-se: quais das minhas ações nos trouxeram até este ponto? Eu

poderia ter feito algo diferente? O que preciso estudar mais para que isso não se

repita? É uma questão de estudo ou de outra ordem?28 Os casos que, teoricamente,

“não dão certo” têm muito a nos ensinar, e vale a pena prestar atenção cuidadosa a

eles, de forma didática para se tornar um melhor profissional.

Para finalizar a história com Bruno...

Passaram-se sete meses desde que Bruno deixou a terapia, quando recebi um cliente

novo que chegou até mim dizendo ter sido indicado por ele. Neste encontro, fiquei feliz em


ouvir sobre como Bruno estava e perceber que ele confiava no meu trabalho o suficiente para

indicar que outras pessoas fossem até lá. O encontro com seu amigo, meu novo paciente, me

lembra que cada caso é um caso, que a história da terapia não necessariamente é definida

pelo seu fim, e que reconhecer os limites de quem podemos ajudar, de que maneiras e em

quais momentos e contextos talvez seja mesmo um grande potencial.


Capítulo 8

O terapeuta é muito importante na vida do cliente.

Mas, nem tanto.

Rodrigo foi meu cliente por dois anos e quatro meses. Encerramos o processo

terapêutico há três meses, quando ele se mudou de cidade, para um intercâmbio. Aos 16

anos, essa mudança surgiu como um resultado da própria terapia: Rodrigo chegou ao

entendimento de que seria bom para ele estar em um novo ambiente, conhecer pessoas,

diferentes, viver novas relações. Passamos os meses finais da terapia nos preparando para

essa mudança – buscando entender a quais valores de Rodrigo essa decisão respondia

(liberdade, paz, novidade) quais seus principais pontos fortes para viver a situação

(inteligência, vontade de viver a experiência, fluência na língua) e também desafios

(dificuldades de falar com pessoas novas, medo da cultura diferente, ficar sem apoio

psicológico). Dedicamos também algum tempo pensando sobre como eu poderia ser útil para

ele, mesmo à distância. Esses foram alguns de nossos combinados: ele poderia falar comigo

por mensagens, contando de novidades e desafios sempre que quisesse e, também, solicitar

uma sessão on-line a qualquer momento, sem precisar se justificar. Era, então, uma quarta-

feira, (coincidentemente, o dia em que eu costumava atender Rodrigo), eu estava saindo da

clínica às 9 da noite, já cansado do meu dia, quando recebi uma mensagem:

“Oi, Pedro, tudo joia? Aqui é o Rodrigo. Estou mandando mensagem porque estão

passando uns pensamentos ruins recentemente na minha cabeça e estou tendo uns

relapsos na depressão diariamente agora, porque tive uns problemas aqui. Gostaria
de ver se em algum tempo próximo teria como a gente conversar, mesmo que seja

por mensagem. Abraços e boa noite”.

Essas são as palavras que capturaram minha atenção ao ler a mensagem:

Pensamentos ruins. Relapso. Depressão. Problema. Conversar.

Respiro fundo, enquanto uma onda de preocupação e cansaço percorre o meu corpo.

Como posso responder? Minha vontade naquele momento é ligar para ele e entender o que

está acontecendo. Ver como posso ajudar. Entro no carro e decido mandar mensagem. Nela,

digo que podemos, sim, conversar, e ofereço um horário para o dia seguinte. Checo se é

possível para ele assim, ou se a urgência é maior do que isso. Como estamos em fusos

horários diferentes, sua resposta nessa hora é: “estou na aula, já te respondo”. Ele não

respondeu. Só voltamos a nos falar uma semana depois, quando enviei uma mensagem

perguntando como ele estava.

A prática clínica nos permite construir um tipo de relação muito especial com as

pessoas. Há coisas que o cliente, de fato, só fala com o terapeuta. Há problemas que não

podem ser compartilhados com os outros. O sistema terapêutico costuma ser organizado

em torno de um problema sobre o qual o cliente está se sentindo impotente ou paralisado.

Conforme a relação se desenvolve, novas histórias podem ser contadas sobre sua vida.

Existem muitas histórias compartilhadas entre profissional e cliente.

É comum, também, que essas histórias surjam em um momento da vida do cliente no

qual ele não considera estar vivendo a melhor versão de si mesmo e de sua vida. É natural,

então, que a relação terapêutica se torne um ponto de apoio importante para muitos

clientes, enquanto continuam a levar suas vidas no cotidiano, para além da terapia. Isso é

muito especial, mas, também, é um processo que exige atenção. Como podemos, como
terapeutas, cuidar para que as pessoas se sintam amparadas de forma ética e cuidadosa,

mas, sem que isso se torne também um peso para nossas próprias vidas pessoais?

De forma muito prática, essas quatro dicas podem ser úteis:

• Garanta que você tem uma sólida relação terapêutica. É a qualidade dessa relação

que permitirá qualquer ação de ajuda em um momento de dificuldade ser de fato

útil. Toda a base da relação terapêutica é o que oferece contexto para as ações de

ajuda neste momento. Então, lembre-se: a ajuda não está situada neste ponto

específico do tempo. Ela é mais ampla.

• Faça combinados bem estabelecidos com os clientes sobre a possibilidade destes

pedidos existirem. Em tempos de conexão extrema, estabelecer uma política de

comunicação fora da sessão é fundamental. Sugerimos o seguinte combinado com os

clientes: “Você pode falar comigo sempre que achar necessário. Eu vou responder

quando puder. Se for algo urgente, me ligue”. Dessa forma, você pode estar de

alguma forma tranquilo que o cliente vai te acionar conforme sua necessidade, e não

precisa adivinhar que tipos de ajuda ele de fato precisa em um dado momento.

• Estimule e ajude o cliente a buscar outras redes de apoio29. Em momento de crise e

pedidos para além do momento da sessão, é importante que você, profissional,

acolha, escute e busque saídas com o cliente para aquele ponto em que se encontra.

Ao mesmo tempo, ajude-o a reconhecer quem são as pessoas relevantes em sua vida

que podem oferecer-lhe apoio e cuidado mais próximo enquanto vive este

momento.




• Combine um esquema de checagem periódica. Após o primeiro contato, busque ter

uma conversa honesta sobre como sua ajuda pode ser útil nas horas e dias seguintes.

Peça para que o cliente te dê notícias conforme achar possível e necessário.

De volta à história com Rodrigo...

Eu me lembro dos meus primeiros anos de prática clínica. Se isso tivesse acontecido,

eu teria ficado muito preocupado e ido atrás de Rodrigo naqueles dias. Teria tentado marcar

com ele logo que me escreveu. Por que, então, não mandei mensagem perguntando ou

“cobrando”, se ele me disse que precisava tanto de ajuda? Porque, depois de todos estes

anos de prática, hoje entendo que o terapeuta é mesmo muito importante na vida do cliente.

Mas, nem tanto assim! Quando finalmente entrei em contato alguns dias depois, a resposta

que recebi foi:

“Pedro, desculpa. Eu acabei esquecendo, aconteceu muita coisa por aqui. Está tudo

certo já, aqui melhorou muito. Pode deixar que te atualizo assim que possível”.

Independentemente de como nós, terapeutas, conceituamos o processo terapêutico,

a vida das pessoas, lá fora, continua acontecendo. Temos acesso apenas a recortes,

momentos específicos com as pessoas. Entre o momento em que elas nos pedem ajuda e

nossa possiblidade de responder, a vida segue. Pode ser um café que tomou. Pode ser que

simplesmente enviar a mensagem pedindo ajuda já tenha servido para a pessoa entender

que tem uma rede de apoio, e a acalmou. Até mesmo, pode ser que a própria dificuldade em

encontrar e falar com o terapeuta ofereça tempo para que a pessoa se conecte com outras

coisas, pessoas e recursos que, por si mesmos, transformem sua situação. Então, esta

reflexão é um convite que pode trazer muito alívio: nossa importância na vida das pessoas é

limitada! E isso não é um problema, senão um potencial. Aqui estão algumas dicas de como

se beneficiar desse potencial.


• Relembre (a si mesmo e ao cliente) dos recursos que ele possui30. Na prática clínica,

ouvimos muitas histórias de problema. Ao mesmo tempo, sempre estamos em

contato com muitas histórias de recursos e resiliência. No momento de crise ou

fragilidade, é importante não entrar completamente na história do problema. Estar

conectado com outras versões conhecidas do cliente – aquelas que lhe permitiram

chegar aonde está – e lembrar-se disso é fundamental.

• Confie que as pessoas sabem pedir ajuda. Se seus combinados com o cliente estão

bem estabelecidos e ele decidiu não falar com você, é possível que tenha boas razões

para isso. Deixe que ele peça e aceite ajuda conforme avaliar necessário.

• Dose o seu próprio senso de importância31. Ouvimos muito em nossa formação

sobre os potenciais da terapia. De fato, acreditamos em nossa possibilidade de

acompanhar e promover processos transformadores nas vidas das pessoas. Mas,

talvez seja prudente dosarmos este senso de importância com uma pitada de

humildade: somos apenas uma pequena peça na trajetória das pessoas. Sua vida

existe para muito além da terapia, antes dela e também depois. Reconhecer o limite

de nossa importância nos coloca mais sensíveis à possibilidade de estar com o outro

quando possível e necessário... e de não estar, quando este for o caso.

Então, para finalizar a história com Rodrigo...

Ele disse em sua última mensagem que me atualizaria assim que possível. Outros três

meses já se passaram, e isso ainda não aconteceu. Fico curioso sobre o que se passou com

ele desde então. Meu interesse, porém, está muito mais focado em que vida ele está

construindo no intercâmbio do que no problema que o levou a me escrever naquela quarta-





feira específica. Sei que todas as outras quartas-feiras que vivemos antes são muito mais

importantes do que essa, e isso me deixa tranquilo de entender que, se e quando for preciso,

Rodrigo e eu nos falaremos.


Conclusão

Afinal, o que Faz um Bom Terapeuta?



É domingo à noite. Estamos conversando por mensagem de texto sobre uma festa

que fomos com alguns amigos na noite anterior. A conversa é sobre a festa: a música, o

ambiente, a bebida, as pessoas... Uma conversa entre amigos. Não demora até que um de

nós pergunta ao outro sobre um acontecimento específico da noite.

“Pedro, foi tranquilo para você encontrar sua cliente lá ontem”?

“Acho que sim, Marina. Mas, me preocupei um pouco. Eu algumas vezes sinto que

sou melhor terapeuta quando tenho alguma distância do cliente”.

“Concordo, eu vivo isso também. Mas, também já vivi o contrário. Me lembro de uma

cliente que a terapia deslanchou justamente depois de nos encontrarmos num dia

assim, acredita? Ela me disse depois que me encontrar na “vida real” a deixou mais à

vontade para falar comigo. Se sentir mais próxima tornou a terapia mais útil para

ela”.

A conversa continua em muitas conjecturas: sobre ser terapeuta na mesma cidade

em que crescemos; sobre como este tipo de encontro fora da clínica é muito diferente,

dependendo de quem é o cliente; sobre como diferentes colegas de profissão lidariam com a

situação. Já se passou uma hora desde que começamos a conversar e, empolgados com

nossas reflexões, o assunto não parecia de forma alguma perto de um fim.

“Marina, olha nós aqui de novo, trabalhando no domingo à noite! Alguém precisa

parar a gente”!

Estamos caminhando para o fim de nossa tarefa de refletir sobre como ser um bom

terapeuta. A esta altura, enquanto escrevemos, nos vemos muito curiosos em imaginar
como você, leitor, consegue tornar útil para si mesmo nossas reflexões. Que aspectos mais

se destacaram para você? Com quais limites você se deparou nesta jornada? Que

ampliações em sua própria prática consegue enxergar agora?

Talvez nossa curiosidade seja tão grande por uma razão especial: em nosso

entendimento, um bom terapeuta se envolve continuamente em bons contextos de diálogo.

Com os clientes, sim, mas, também, com seus colegas, supervisores, professores... e, mais

ainda, em todos os lugares por onde circula em sua vida. Essa é a beleza e a dificuldade do

que fazemos: nos constituímos profissionais a todo tempo. Talvez por isso uma festa de

sábado à noite se torne uma boa conversa sobre terapia no dia seguinte... Essa conversa, por

sua vez, tem efeitos no que podemos e escolhemos fazer quando estamos com os nossos

clientes na segunda-feira!

Dialogar é, portanto, central. Por isso, queremos recorrer à nossa concepção

preferida de diálogo, que apresentamos na epígrafe deste livro. John Stewart e Karen

Zediker32 definem o diálogo como uma tensão fundamental entre “me manter no meu

próprio lugar” e “deixar o outro acontecer para mim”33.

“Me manter no meu próprio lugar” significa reconhecer de onde você vem. Quais

conceitos, ideias e contribuições conhecidas traz para o contexto da conversa. “Deixar o

outro acontecer para mim” significa também reconhecer que seu interlocutor traz seus

próprios conceitos, ideias e contribuições para a interação e, por sua vez, estar disposto a

conhecê-los e se transformar a partir deste encontro. A palavra chave nesta compreensão

do diálogo é “tensão”. Dialogar é tenso e, justamente por isso, produtivo. Ao encontrar

formas de estarmos juntos com o outro, buscamos criar tensões suficientes para que





continuemos com nosso próprio senso de identidade, mas, nos permitamos ser

transformados pelos encontros que vivemos.

Tomando emprestada essa definição, propomos que ser bom terapeuta tem a ver

com aprender a criar níveis adequados de tensão nos diferentes contextos da vida pelos

quais alguém circula. Buscamos tensão:

• Para ouvir e respeitar a história que as pessoas nos contam e, ao mesmo tempo,

desafiá-las para que as pessoas possam enxergar e viver algo inédito, diferente e

mais útil para si.

• Para nos envolvermos e nos importarmos com as pessoas e com nosso trabalho,

ao mesmo tempo em que aprendemos a nos distanciar de tudo isso quando

necessário.

• Para nos lembrarmos que somos terapeutas, mas, não apenas terapeutas e que

podemos e devemos cuidar dos outros aspectos da nossa vida.

• Para reconhecer os potenciais incríveis de nossa prática. E também seus

inevitáveis limites.

Como já dissemos, não podemos te ensinar a ser um bom terapeuta em algumas

poucas páginas. Mas, se formos nos arriscar a colocar um conselho no centro de toda a

prática, aí vai: viva a terapia (e tudo o que a envolve) como um contexto de tensão produtiva.

Isso tem a ver com o que, primeiro, o antropólogo e ciberneticista Gregory Bateson e,

depois, o terapeuta familiar Tom Andersen34, chamaram de buscar a “diferença

adequadamente incomum” ou “a diferença que faz diferença”. Onde estiver, produza

diferença. Porém, busque fazer apenas a diferença mínima necessária para que a vida – sua

e de quem está com você – possa ser diferente o suficiente.



Esperamos que este livro seja um convite suficientemente flexível para que você

possa levá-lo, de sua própria maneira, para sua prática. Ao mesmo tempo, desejamos que

ele seja, também, tenso o suficiente para te convidar a olhar de forma desafiadora para o

terapeuta que você pode ser.

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