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Coordenadora Editorial

Simone Ottoni

Educando filhos
para a vida
Copyright ® 2019 by Editora Conquista Edição e Treinamento Ltda.
Todos os direitos desta edição são reservados à Editora Conquista.

DIRETORA EDITORIAL
Bárbara Chagas

SUPERVISORA EDITORIAL
Ana Carolina Chagas

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Simone Ottoni

DIAGRAMAÇÃO
Nilton Teodoro dos Reis

CAPA
Carlos Renato

REVISÃO
Marcos Toledo

ISBN
978-85-5765-039-8

Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por even-


tuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados desta publicação.

(21) 2146-2592
www.conquistaeditora.com.br
COAUTORES

Simone Ottoni
Fernanda Ligeiro
Patricia Pires
Karla Brando
Mônica Pessanha
Carla Almas
Karine Brock
Nelson Ferreira
Laura Borges
Rafaela Di Guimarães
Nataly Correia
Lyana Juffo
Cibele Vogel
Angela Lupo
Mariana Ferreira
Thainá Matos
Ana Paula Eckert
Mariana Boschi
Marina Magalhães
Grace Falcão
Eder Magri
Denise Franco
Milena Blanco
Beatriz Pakrauskas
Letícia Cordeiro
Raquel Tezelli
PREFÁCIO

Educar filhos para a vida não é uma tarefa fácil, pois é mais do que cuidar
e ensinar boas maneiras. Para alcançar esse objetivo é necessário que os
pais sejam dedicados a dar bons exemplos e a auxiliar seus filhos a en-
frentarem os desafios próprios de cada etapa do desenvolvimento deles.

Enquanto os filhos crescem, os pais se deparam com inúmeros desafios


e com a necessidade de exercitar a paciência, coragem e persistência. Ao
mesmo tempo, quando esses pais entram em contato com suas fragili-
dades, buscam formas de aprender para melhor exercerem seus papeis.

Este livro nasce do desejo de facilitar esse processo, levando mais infor-
mações aos pais e cuidadores, capacitando-os para essa difícil missão.
No entanto, não deve ser visto como um manual que dita regras a serem
seguidas, mas que possa contribuir para uma reflexão e oferecer formas
de atuação mais assertivas.

Para que esse projeto fosse possível, foi importante contar com a expe-
riência de diferentes profissionais atuantes na área da Parentalidade, com
o mesmo propósito, que é o de auxiliar as famílias a identificarem suas
dificuldades, bem como oferecer alternativas para que elas lidem com
as mais variadas situações, resultando em um ambiente familiar mais
harmônico e saudável.

Em nome de toda a equipe, desejo que faça uma boa leitura!

Com carinho,
Simone Ottoni.
SUMÁRIO
Simone Ottoni
Os Desafios da Maternidade e da Paternidade................................10

Fernanda Ligeiro
A Conexão com o Bebê Durante o Processo Gestacional..............18

Patricia Pires
Agora, Pais. Como Adaptar-se à Rotina do Bebê?..........................26

Karla Brando
Primeiros Passos, Primeiras Palavras.............................................. 32

Mônica Pessanha
Birra: O Que é e Como Lidar com Ela............................................. 38

Carla Almas
A Importância da Brincadeira no Desenvolvimento Infantil...... 44

Karine Brock
A Chegada de Um Irmãozinho: Como Lidar?................................ 52

Nelson Ferreira
A Criança e o Processo de Socialização........................................... 58

Laura Borges
A Criança como Membro de Uma Família Ampla: Relação com Ma-
drasta/Padrasto e Meios-Irmãos......................................................66

Rafaela Di Guimarães
A Entrada no Universo Escolar, e os Desafios Desta Fase..............74

Nataly Correia
Dificuldade de Aprendizagem: É Possível Aprender Mesmo Assim?....80

Lyana Juffo
A Visão que a Criança Tem de Si e do Mundo................................. 86

Cibele Vogel
Filhos por Adoção: A Importância de Revelar a Verdadeira História.....92
Angela Lupo
Como Falar dos Cuidados com o Corpo para Previnir o Abuso Se-
xual?..................................................................................................100

Mariana Ferreira
O Limite da Manifestação do Carinho: Cama Compartilhada, Beijo
na Boca, Banho, Etc.........................................................................108

Thainá Matos
Relação da Criança com Animais de Estimação...........................116

Ana Paula Eckert


Como Falar de Morte e Doenças com Crianças............................124

Mariana Boschi e Marina Magalhães


Pode Castigo? Considerações Sobre o Uso do Castigo Como Ferra-
menta Educativa...............................................................................132

Grace Falcão
Disciplina Positiva: Educar Requer uma Dose Equilibrada de Fir-
meza e Gentileza..............................................................................140

Eder Magri
Pais Permissivos, Autoritários ou Negligentes: Quais os Riscos?.... 148

Denise Franco
Inteligência Emocional na Infância: Uma Conversa para Pais e Fi-
lhos....................................................................................................156

Milena Blanco
Como Lidar com o Uso da Internet?..............................................164

Beatriz Pakrauskas
Como Adotar uma Comunicação Não Violenta?.........................170

Letícia Cordeiro
A Organização Como Fator Diferencial na Educação Infantil...176

Raquel Tezelli
Automutilação na Adolescência: Um Grito Silencioso.................184
Simone Ottoni
CRP 06/119232
(11) 95756-7194
simone@clinicadafamiliapsi.com.br
@psicologasimoneottoni
clinicadafamiliapsi
www.clinicadafamiliapsi.com.br

• Psicóloga Infantil e Familiar, especialista em Psicologia Clínica

• É apaixonada pelo atendimento clínico e vive a missão de tornar as relações


familiares mais harmônicas e saudáveis. Através de seu blog e redes sociais,
compartilha dicas para que os pais possam melhor entender as necessidades
dos seus filhos.

• Graduada em Psicologia pela Universidade Cruzeiro do Sul

• Pós-graduada em Psicopatologia e Psicossomática pela Universidade São


Camilo

• Formação em Ludoterapia pelo Instituto Cinco – Desenvolvimento Humano

• Educadora Parental certificada em Disciplina Positiva pela Positive Disci-


pline Association

• Formação em Psicologia Perinatal e Parental pela EPP-Escola de Profissio-


nais da Parentalidade

• Pós-graduanda em Suicidologia: prevenção e posvenção, processos autodes-


trutivos e luto, pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul

• Coautora dos livros: “Conectando Pais e Filhos”, “O Desafio de Educar 2 – A


educação abre as portas para um mundo melhor!” Editora Conquista (2019)

• Autora do e-book: “Colo de Mãe”.

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Os Desafios da Maternidade e da Paternidade

Educar filhos é um dos maiores desafios que um adulto pode enfrentar, pois
enquanto os filhos crescem, surge novos desafios e não há um “manual de
instruções” que atenda a todas as necessidades.

A simples ideia de tornar-se pai ou mãe suscita inúmeros sentimentos e ques-


tionamentos. Questões como estar preparado emocional ou financeiramente,
permeiam os medos e muitos tendem a adiar o “projeto de ter filhos”. Mas, por
alguma razão, acabam assumindo esse papel, planejando ou não a gravidez.

O nascimento dos pais

Muitos acreditam que o papel de pais começa a ser exercido com o nasci-
mento dos filhos, mas após uma reflexão sobre a mudança gerada durante
a gravidez, boa parte dessas pessoas passa a concordar que esse papel já era
exercido antes mesmo de ter o bebê nos braços.

Durante a gestação, o bebê já ocupa um lugar muito especial na vida da


família. Os pais seguem fazendo planos e sonhando com o bebê que está se
formando. A escolha do nome, do enxoval, do quartinho do bebê, etc. são
aspectos que compõe a chegada de um novo membro na família.

A mulher vivencia as mudanças hormonais e corporais, sente a vida brotar


a cada movimento que o bebê faz em seu ventre, se imagina com o filho nos
braços e fantasia inúmeras situações que poderá vivenciar quando ele nascer.

O homem, apesar de não passar por essas transformações, sente uma mu-
dança significativa em seu jeito de pensar sobre a paternidade, entrando em
contato com inúmeras preocupações (especialmente a financeira) como ser
capaz de prover as necessidades da esposa e filho. Poderá sentir-se ainda mais
impactado ao se conectar com o bebê, se permitindo conversar e acariciar a
barriga da mamãe, acompanhar os exames, participar ativamente das escolhas
e planejamento familiar.

Ao casal, caberá cuidar da própria relação, de maneira que não se perca o


carinho e cuidados entre si. Dar espaço para o papel de pais, não significa
abdicar do papel de casal, mas, sim, de aprender a conciliar os papeis.

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Desafios dos pais de bebês

Essa é uma das fases mais importantes, tanto para o bebê quanto para os
pais. A criança demanda maior cuidado e é totalmente dependente. Vale
ressaltar que os pais são as primeiras figuras reconhecidas pelo bebê e, por
meio do contato com eles, se estabelecerá a forma como irá se relacionar com
as demais pessoas.

Especialmente nos primeiros dias após o nascimento, os pais tentam se ajustar


à nova rotina e prover as necessidades do bebê. Nem tudo sai como o esperado,
de maneira que podem se sentir despreparados e frustrados. Ter uma rede
de apoio, como os pais e os amigos mais próximos, pode aliviar considera-
velmente as dificuldades encontradas nessa primeira etapa.

Além da alimentação, banho e troca de fraldas, os pais precisarão desenvolver


habilidades para melhor entender as necessidades do bebê. É um período im-
portantíssimo para formação de vínculo e fortalecimento de laços familiares.
Um bebê que tem suas necessidades básicas atendidas (além dos cuidados com
alimentação e higiene, recebe afeto) tem maiores chances de se desenvolver
de maneira saudável.

Geralmente, nessa fase, a relação sexual é posta de lado por conta das deman-
das diversas. Por mais felizes que estejam com a chegada do bebê, o cansaço
é forte companheiro de ambos. Assim, é importante reconhecer e respeitar
os limites de cada um, compreendendo que é uma fase passageira e que, com
o tempo, encontrarão um momento para o casal.

Desafios dos pais na infância

É na infância que as crianças mais aprendem. Além da linguagem, aprendem


a se relacionar e a descobrir o mundo. Essa é uma fase marcada por inúmeras
descobertas e grande desenvolvimento: “os pequenos aprendem algo novo
a cada dia”.

A primeira infância (compreendida até os cinco ou seis anos de idade) é o


período mais importante na vida de uma pessoa, pois é nessa fase que se
estabelece as habilidades fundamentais na vida de todos, surtindo efeito até
mesmo na vida adulta.

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O cérebro de uma pessoa se desenvolve até os vinte e um anos, mais ou menos,
mas é na primeira infância que ocorre o maior desenvolvimento, de maneira
que a criança aprende com mais facilidade. Tais experiências servem para
preparar a área do cérebro que desenvolverá todo o conhecimento adquirido.
Sendo assim, estimular a criança fará a grande diferença na aquisição de
conhecimentos, habilidades, atitudes e interesses.

Por volta dos três anos, os pequenos vão adquirindo certa independência
e querem fazer várias coisas sozinhos, como se vestir. Aos poucos, vão ga-
nhando o senso de responsabilidade, aprendendo o que é certo e errado e
entendendo que há coisas permitidas e outras não. Mas tudo isso dependerá
muito de como os pais os orienta.

Durante a primeira infância a criança terá o desafio de desenvolver a psico-


motricidade (que tem finalidade pedagógica e psicológica) de maneira que
reconheça o próprio corpo e aprenda a ter controle do mesmo; consciência
fonológica (a habilidade de manipular os sons) preparando-os para a alfabe-
tização; a fala (aquisição da linguagem e vocabulário); interação social (irá
atribuir significado às coisas e pessoas) descobrindo gestos e pessoas, além
da formação de vínculos de amizade e fortalecimento das emoções, por meio
do convívio com outras crianças e adultos.

Num período em que ocorrem tantas mudanças e aprendizados, os pais en-


frentam um imenso desafio: estimular e servir de exemplo para a construção
de comportamentos de base. Nesse sentido, é importante citar que os peque-
nos aprendem muito mais com o que observam do que com o aquilo que
ouvem; desta forma, não basta dizer-lhes o que é adequado, é preciso praticar
e seguir as recomendações que faz a eles.

Desafios dos pais na adolescência

A adolescência é uma fase marcada por conflitos, mudanças corporais e com-


portamentais. A forma como os pais se relacionaram com os filhos nas fases
anteriores terá forte influência nesse período.

Todo pai e mãe já foi criança e adolescente, mas na maioria das vezes se
esquecem de como é ser mais jovem e ter que acatar as ordens dos pais. Es-
pecialmente na adolescência, as relações tendem a ficar “estremecidas”, pois
é a fase em que os filhos começam a questionar e discordar de muitas coisas.

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Saber lidar com os conflitos da idade é o grande segredo para manterem uma
relação harmoniosa e garantir que os filhos continuem se desenvolvendo de
maneira saudável.

É importante entender que o adolescente vive uma fase intermediária: já não


é mais criança, mas ainda não é adulto. Assim, é preciso ter em mente que
estamos lidando com uma pessoa que ainda está “em construção”, podendo
ainda apresentar mudanças significativas de personalidade, caráter e de ha-
bilidades sociais.

Para garantir que se tornem adultos emocionalmente saudáveis, eles preci-


sam de um adulto que sirva de exemplo, que seja uma figura de autoridade
respeitável para que possam se espelhar. Até porque tendem a seguir boa
parte dos comportamentos dos pais, especialmente quando tiverem filhos.

O campo de conversa que foi criado nas fases anteriores poderá ser um grande
aliado nesse momento. Pais que adquirem o hábito de conversar com os filhos
sobre temas diversos, conseguem acompanhar os conflitos da adolescência
mais de perto, tendo abertura para falar sobre drogas, gravidez, entre outros
temas.

Levando em consideração que os adolescentes ainda estão em formação, é


preciso entender que não é possível exigir uma maturidade de quem está
totalmente formado. Adolescentes tendem a ser mais impulsivos e apresentar
dificuldade para considerar riscos e consequências, isso porque a região do
cérebro responsável por isso ainda não está formada. Assim, são os pais que
farão esse papel, ajudando-os a desenvolver esse recurso.

Sabemos que não adianta proibir, pois quando querem realizar algo encon-
tram uma maneira de fazê-lo às escondidas. Para evitar maiores aborreci-
mentos e danos, sugiro que sejam próximos de seus filhos e os levem a refletir
sobre as consequências de seus atos. Uma proibição deve ser acompanhada de
justificativa convincente, ou seja, que não seja baseada apenas na autoridade.

O desafio de educar filhos para a vida

Quando recebo pais no meu consultório, sempre os levo a refletir como se


sentiam e agiam quando tinham a idade de seus filhos. Penso que essa é a
melhor forma de conectá-los e ajudá-los a entender as necessidades e os limites

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dos seus filhos. Explico também que é preciso considerar que nascemos em
uma época diferente, de maneira que se faz necessário ajustar aspectos de
como fomos criados e de como pretendemos educar.

Da mesma forma que os filhos não nascem com manual de instrução, os pais
não nascem sabendo o que é melhor para seus filhos, tudo isso é construído
com o tempo e convivência. Sem perceber, a maioria acaba repetindo compor-
tamentos que foram aprendidos com os pais e que nem sempre são eficazes.

Reforço que não existem pais perfeitos, mas para quem deseja o melhor para
os filhos, deve dar o seu melhor em tudo o que for realizar.

Para ajudá-los nesse grande desafio de educar filhos para a vida, vou listar
alguns aspectos que considero fundamentais nesse processo:

Demonstre afeto: em qualquer idade, os filhos precisam sentir que são amados.
A demonstração de afeto não é sentida apenas em palavras, aliás, o afeto tem
maior efeito quando é sentido nas atitudes e detalhes: no preparo da comida
favorita, no afago fora de hora, no apoio em um momento difícil (especialmente
quando achamos que não é merecido, como quando tira notas ruins). Cuidado,
amor e atenção são os maiores responsáveis pelo desenvolvimento da criança.

Mais presença, menos presentes: vivemos em uma era em que a ausência tende
a ser compensada com presentes, mas nada substitui a presença dos pais.
Grande parte dos pais trabalha fora e acaba terceirizando muito a educação
do seu filho, mas nem tudo é possível terceirizar, e você deve ter clareza disso.
Trabalhar mais para garantir que os filhos tenham tudo o que não puderam
ter e/ou satisfazer as vontades deles é um caminho muito delicado e perigoso.
Lembre-se de que momentos felizes são vivenciados pela interação e simpli-
cidade; isso custa bem menos!

Sejam pais e não amigos: é importante ser próximo dos filhos, mas até isso
deve ter um equilíbrio. Amigo é com quem trocamos confidências e, por mais
que você deseje estar a par de tudo o que acontece com seus filhos, não é sau-
dável manter uma relação tão estreita a ponto de um se tornar confidente do
outro. Os papeis podem ficar confusos e seus filhos podem ter problemas em
desempenhar esse papel quando precisarem. Portanto, sejam pais próximos,
mas permita que seus filhos elejam alguém para o papel de amigo.

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Dê apoio e incentivo: quando se sentem apoiados, desenvolvem autoconfiança
e elevam a autoestima, de maneira que são capazes de realizar inúmeras
tarefas da melhor maneira possível. O incentivo é sempre um ingrediente
especial, principalmente em um momento em que os filhos acreditam não
serem capazes de fazer algo.

Mantenha um tempo de qualidade: passar algum tempo com seus filhos,


fazendo algo que eles realmente gostam, pode fazer toda a diferença. Além
de fortalecer os laços familiares, você estará valorizando os interesses deles.
Existem inúmeras formas de garantir esse tempo de qualidade, mesmo na
correria da semana: reservando alguns minutos para falarem sobre como
foi o dia, brincar um pouco, tomar um sorvete no caminho de volta para a
casa... explorem as possibilidades!

Dar autonomia: muitas vezes, acabamos fazendo muito por eles (para que
seja feito mais rápido) e vamos tirando deles a possibilidade de cuidarem de
si mesmos. Incentive, encoraje e valorize cada tentativa, ainda que não saia
perfeito, pois é com a repetição que eles mais aprendem.

Respeito pela singularidade: é importante aceitar que os filhos são pessoas


diferentes de nós. Além dos aspectos genéticos, a identidade deles é formada
por meio das relações com outras pessoas. Aceitar os filhos como são, ainda
que seja contrário à nossa vontade, garante também que não sofram por não
atenderem às expectativas dos pais.

Campo de conversa: creio que essa é uma das dicas mais valiosas, pois quando
estabelecemos um canal de diálogo, sem julgamentos e imposições, criamos
uma relação de respeito e proximidade. Pais que conseguem conversar com
os filhos sobre temas diversos evitam inúmeros adoecimentos e conflitos.

Espero que a leitura deste capítulo possa levá-lo a refletir e adotar hábitos
mais eficientes, para que você caminhe na direção de uma educação mais
assertiva e positiva.

Não se esqueça de que não é preciso buscar a perfeição, mas é fundamental


oferecer a sua melhor versão para educar filhos para a vida. Assim, estará
contribuindo para um futuro melhor para sua família e para o mundo!

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Referências Bibliográficas

BRAZELTON, T. B. Tornar-se família. Lisboa: Terramar, 1992.

BRAZELTON, T. B. Aprendendo a ouvir: uma vida dedicada às crianças.


São Paulo: Martins Fontes, 2014.

EYRE, L.; EYRE, R. Família em primeiro lugar: o livro da valorização da


família. São Paulo: M. Books, 2016.

NELSEN, J. Disciplina positiva: o guia clássico para pais e professores que


desejam ajudar as crianças a desenvolver autodisciplina, responsabilidade,
cooperação e habilidades para resolver problemas. Barueri: Manole, 2015.

SAVASTANO, H.; et al. Seu filho de 0 a 12 anos: guia para observar o desen-
volvimento e crescimento das crianças até 12 anos. São Paulo: IBRASA, 2006.

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FERNANDA LIGEIRO
CRP 06/122426
(17) 99615-1233
nandaligeiro@hotmail.com
@maesqueseconectam
maesqueseconectam

• Psicóloga Clínica e Perinatal, mãe da Clara e da Laura, atua na cidade de


Catanduva-SP

• Pós-graduanda em Psicologia da Saúde/Hospitalar pela FAMERP- Facul-


dade de Medicina de São José do Rio Preto

• Formação em Psicologia Perinatal e Parental pela EPP-Escola de Profissio-


nais da Parentalidade

• Realiza trabalho clínico na abordagem Cognitivo Comportamental, de


forma presencial e on-line para adultos, especialmente mulheres gestantes,
mães e pais no puerpério

• Trabalha promovendo autoconfiança, motivação e saúde emocional.

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A Conexão com o Bebê Durante o Processo Gestacional

A gestação é um período de muitas mudanças corporais e psicológicas na


mulher. Os hormônios que são liberados em seu organismo para a adaptação
e formação do bebê são os responsáveis por essas mudanças.

Gestar um bebê é ao mesmo tempo gestar uma mãe, essa simbiose vai ser
determinante para que a mulher defina seu papel de mãe, despedindo-se de
seu papel de filha, assumindo, assim, um novo papel parental na sociedade.

Falar sobre este tema me remete às lembranças que tenho sobre a minha ex-
periência gestacional, logo não poderia começar este texto sem compartilhar
essa experiência!

A maternidade para mim nunca foi algo idealizado, meu discurso era aquele
famoso “nunca vou ter filhos” típico de uma mulher independente profissio-
nalmente, que visava apenas ao crescimento profissional e viver bem a vida,
viajando e compartilhando finais de semana em festas de família e de amigos,
ou seja, egoísta demais para abrir mão de tanta independência e cuidar de
outro ser humano.

Mas a nossa genética é sábia, e quando me diziam que meu “reloginho bio-
lógico” iria me avisar o momento de ser mãe, eu não acreditava. E não é que
isso aconteceu de fato!

Aos trinta e dois anos fui tocada por uma necessidade em ser mãe, meu corpo
e minha cabeça pediam essa novidade em minha vida, aos poucos fui me
permitindo pensar e desejar cada dia mais a maternidade.

Como engravidar de forma planejada não é algo simples e fácil (quem já vi-
venciou essa espera sabe o quanto é difícil aceitar o tempo do universo para
que isso aconteça), comigo não foi diferente, foram longos dezoito meses
de espera para conseguir meu primeiro positivo e não foi como esperado,
pois pude experimentar a felicidade plena da realização de um desejo, mas
também tive a dura e difícil experiência de ver esse sonho ir embora sem
que ao menos eu pudesse saber ou conhecer se em meu ventre abrigava um
menino ou uma menina.

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Após três meses da perda espontânea, para minha surpresa, fui realmente
abençoada. Por que digo isso? Porque sem ansiedade, sem pressão emocio-
nal, sem esperar, engravidei naturalmente de gêmeos! E assim pude iniciar
a minha jornada na maternidade. Com a confirmação da realização do que
antes ainda era apenas um desejo, comecei a me conectar com aquelas bebês
(estava gestando duas meninas) que começaram a se desenvolver dentro do
meu ventre, assim como muitas mulheres que a partir uma perda gestacional
ressignificam esse vínculo para assim se conectar ao bebê.

Muitos estudos relatam que durante a gestação a mulher vai aumentando


seu repertório de comportamentos para se adaptar à gravidez, baseado nas
representações cognitivas e imaginárias que ela tem sobre as características
físicas e emocionais do feto, tecendo, dessa forma, seu vínculo com o bebê.
A medida em que a mulher vivencia cada semana gestacional e se permite
conectar-se ao desenvolvimento de seu filho, a intensidade desse vínculo
intrauterino aumenta, favorecendo positivamente essa conexão.

Diante disso, lembro-me que assim que descobri a gravidez minhas preocu-
pações com relação à minha alimentação, meus hábitos sociais, meu estilo
de vida em geral se tornaram foco de mudanças, ou seja, minhas escolhas
começaram a se transformar, pois a prioridade era oferecer às minhas filhas
um desenvolvimento seguro e saudável. Essa preocupação de mudar hábitos
alimentares, evitar uso de substâncias nocivas como álcool, tabaco e drogas,
demonstram que a mulher antes mesmo de ter seu filho nos braços já está
estreitando seu vínculo materno fetal.

Em contrapartida, para muitas mulheres, sabemos também que a mater-


nidade pode ser experimentada de forma negativa, principalmente se essa
gestação não for proveniente de uma escolha consciente da mulher ou de um
planejamento familiar, e ainda se o ambiente em que ela estiver inserida for
repleto de incompreensões, julgamentos e falta de apoio social e emocional,
tendo como consequência um vínculo prejudicado e negligenciado.

O período fetal vem sendo validado como um período também de vinculação,


evidenciando que o apego materno fetal é um preditor do apego pós-natal
entre mãe e bebê, ou seja, estudos confirmam a existência de capacidades
sensoriais intrauterinas, que ao longo da gravidez o feto vive experiências e vai
sendo influenciado pelas experiências da mãe. O bebê, mesmo que ainda em
formação, é capaz de sentir todas as emoções de sua mãe, por isso, a gravidez
já é o momento em que se inicia o vínculo entre a mãe e o bebê.

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No primeiro trimestre da gestação, o embrião já sente as emoções e des-
confortos que sua mãe vivencia positiva e negativamente, percebendo desde
muito cedo o amor e a rejeição. Com a evolução da gestação, o bebê aprende a
dar significado aos sentimentos maternos. E é por volta do terceiro trimestre
da gravidez que ele começa a formar sua personalidade. Vale ressaltar que
a gestação é contada em semanas e não meses (como muita gente diz), isso
porque o desenvolvimento fetal ocorre a cada semana.

Porém as preocupações cotidianas e passageiras não são nocivas ao bebê,


apenas as emoções mais fortes, como o estresse, é que são capazes de estimular
a liberação de hormônios que chegam até o bebê.

Nessa perspectiva de que o bebê percebe sentimentos agradáveis ainda no úte-


ro, lembro-me de estar sentada em uma cadeira na varanda de casa, tomando
o sol matinal para ajudar a repor o déficit de vitamina D no organismo, eu
estava por volta da vigésima semana de gestação, já sentia os movimentos que
elas faziam dentro de mim e com tranquilidade coloquei uma música que
sempre me emocionava quando ouvia e acariciando minha barriga comecei a
cantar para elas, sentindo que elas respondiam ao meu estímulo, elas realmen-
te pareciam dançar levemente com aquela canção, me emocionei ao perceber
a fantástica conexão em que já tinha desenvolvido com minhas filhas.

De acordo com Brazelton, esse vínculo se refere ao desejo da mãe introduzir o


filho do ventre materno em sua história de vida já em uma perspectiva social.
O modo como a mãe se relaciona com o feto em sua barriga, portanto, mani-
festa a forma como este será recebido e acolhido pela mesma e introduzido,
imaginariamente, em seu mundo.

Todavia, muitos fatores podem influenciar na relação da mãe com seu bebê,
como: características de personalidade da mãe incluindo empatia, ansiedade
e depressão, atitudes para com a gravidez, situações diversas vivenciadas
durante a gestação, apoio social recebido, relacionamento marital, estágio da
gestação, sintomas físicos, o planejamento desse bebê, a idade da mãe, número
de gestações e perdas perinatais. Todos esses fatores são determinantes para
que essa relação seja desenvolvida e construída de forma positiva ou negativa.

Entre as variáveis que influenciam positivamente no vínculo materno fetal


está o avanço da idade gestacional, a presença dos movimentos fetais, a histó-
ria da gravidez, a história de vínculo da própria mãe e o apoio social da família

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e do(a) parceiro(a). Ou seja, à medida que a mulher se dispõe a vivenciar suas
transformações corporais e emocionais com o avanço da gestação, respei-
tando seus limites, seus desejos e recebendo compreensão e acolhimento da
família e do parceiro perante às suas escolhas, consequentemente oferecerá
afeto, carinho e muito amor ao seu bebê. Mas se essas transformações foram
veladas, consequentemente não formará um bom vínculo materno, causando
prejuízos emocionais e psicossociais para mãe e para o bebê.

Há trinta anos, pediatras, filósofos e psicólogos pensavam que bebês eram


irracionais, egocêntricos, que não entendiam causa e efeito e que não tinham
capacidade de desenvolver empatia. Nos últimos trinta anos a ciência provou
que é exatamente o oposto, mesmo bebês muito novos aprendem mais do
que imaginamos ser possível.

Do nascimento aos três anos de idade os bebês se desenvolvem como nunca


e aprendem muitas coisas de uma maneira eficaz em que nenhuma outra
fase da vida irá aprender.

No ocidente, durante muito tempo se pensou que o cérebro só registrava algo


quando o bebê já estivesse maduro e formado, mas hoje se sabe que mesmo
em desenvolvimento o bebê registra as vibrações do ambiente e as funções
associativas funcionam antes mesmo do bebê nascer.

No útero da mãe, o bebê percebe as vibrações de som começando pela voz


da mãe e tudo fica registrado, sendo assim, em uma gravidez a termo (37 a
42 semanas incompletas), esse bebê ao nascer irá reconhecer a voz da mãe.

Por isso, a importância da mãe estar sempre conversando com o bebê ainda na
barriga, falar sobre seu dia, seus desejos, seus sentimentos, tentando transmitir
a ele afeto e carinho, pois por meio desse vínculo, dessa experiência, é que
o bebê será capaz de reconhecer essas vibrações, contribuindo assim para o
seu desenvolvimento após o nascimento.

O bebê não é um ser biológico e sim psicossocial, ele conhece a voz e os bati-
mentos da mãe formando assim uma conexão com o ambiente mesmo ainda
dentro do útero. Por isso, não há nada que a mãe faça que não vá influenciar
no desenvolvimento do bebê mesmo ainda na gestação.

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A mãe libera alguns hormônios, sobretudo os neurotransmissores, e passa
para o bebê pelo cordão umbilical. O bebê percebe o comportamento da
mãe associado ao tipo de hormônio, ou seja, se a mãe está muito inquieta,
agitada, nervosa, vai liberar catecolaminas, hormônios liberados em situações
de estresse, transmitindo uma condição insegura e instável ao bebê. Se a
mãe está tranquila, feliz, vai liberar endorfina, e vai transmitir ao bebê uma
condição de bem-estar.

Em contrapartida, uma mãe depressiva, triste, que não é capaz de se co-


municar com o seu bebê, poderá ter surpresas negativas. A ausência dessa
ponte com a criança vai dificultar a formação do vínculo. Consequentemente,
o bebê terá uma formação comprometida, sem apego. Poderá desenvolver
problemas psicossociais e terá problemas na sua vida futura que o impedirão
de ser plenamente feliz.

Nesse período da vida é comum que a mulher apresente uma ambivalência


de sentimentos frente à gestação e ao bebê; muitas inseguranças, medos e
emoções invadem seus pensamentos e sua rotina, por isso é muito importante
que a mulher receba apoio familiar nessa fase em especial. Se o contexto
em que ela está inserida for de muita compreensão, segurança, respeito, isso
favorecerá seu vínculo materno. Uma relação saudável com sua mãe, com o
companheiro(a) e com as pessoas que são importantes na vida dessa mulher,
fará com que ela se sinta segura, acolhida e compreendida, fortalecendo essa
ligação com o bebê.

Diante da minha experiência com a maternidade passei a me dedicar mais


em estudos sobre esse universo, acreditando poder ajudar as mulheres. Por
isso, compartilho alguns fatores importantes para favorecer esse vínculo
materno ainda na gestação:

• Cuide-se fisicamente: faça seu pré-natal ginecológico, promova mudanças


em seus hábitos alimentares e sociais, fazendo escolhas mais saudáveis que
irão beneficiar o desenvolvimento do feto durante a da gestação.

• Durma de oito a dez horas por noite: as mudanças físicas que estão aconte-
cendo em seu corpo para que seu bebê se desenvolva sugam suas energias, por
isso a sensação de cansaço e sonolência em algumas horas do dia, importante
respeitar seus limites e, sempre que possível, descansar.

22
• Cante para seu bebê: ele é capaz de reconhecer sons a partir da décima oitava
semana; este estímulo dará a sensação de bem-estar ao bebê, e a sua voz será
um calmante a ele quando estiver em seus braços.

• Converse com o bebê: aproveite o momento em que está sozinha, o banho


pode ser o momento ideal para contar a seu bebê como foi seu dia, como se
está se sentindo, quais seus medos e suas expectativas, demonstrar afeto e
felicidade por sua espera. Isso é imprescindível para que seu desenvolvimento
seja seguro e confiante.

• Faça carinho em sua barriga e permita receber esse carinho se isso for lhe
agradar: um bom momento para isso é hora em que estiver hidratando sua
barriga, aproveite e massageie à vontade. Quando descobrimos a barriga, o
bebê começa a perceber a diferença entre a luz e a escuridão, desenvolvendo
sua visão. Não tenha vergonha de acariciar o ventre a qualquer hora do dia e
de receber essa carícia das pessoas que te admiram e estão felizes por você!

• Cuide-se psicologicamente: sua saúde emocional é tão importante quanto


sua saúde física, cultive pensamentos positivos, veja filmes que te emocionam,
dê risadas e faça programas com as pessoas que te inspiram confiança e
alegria. Se possível faça um pré-natal psicológico, para entender suas am-
bivalências sentimentais, as inseguranças, as dúvidas que permeiam nosso
psicológico nesse momento especial da vida!

Espero que nesse momento você já esteja se permitindo e se sentindo ainda


mais conectada com seu bebê.

Referências Bibliográficas

ALVARENGA P. et al. Relações entre a saúde mental da gestante e o apego


materno-fetal. Estudos de Psicologia, 2017.

BORSA J. B. D. Considerações acerca da relação mãe – bebê da gestação ao


puerpério. Rev. Contemporânea – Psicanálise e Transdisciplinariedade. 2007.

BRAZELTON, T. B.; Cramer, B. G. (1992). As primeiras relações. São Paulo:


Martins Fontes.

23
CASTELLO, L. N.; Moraes, K. F. B. O estabelecimento do contato afetivo
durante a gestação, sob a perspectiva da Gestalt-Terapia; IGT na Rede, Rio
de Janeiro, RJ, 6.10, 29 05 2009. Disponível em: <https://www.igt.psc.br/
ojs/viewarticle.php?id=253>. Acesso em: 12 06 2019.

MALDONADO, M. T. Psicologia da gravidez: gestando pessoas para uma


sociedade melhor. São Paulo: Ed. Ideias & Letras, 2017.

OLIVEIRA, M. et al. Conectando Pais e Filhos: a construção do vínculo


mãe-bebê. São Paulo: Conquista: 2019.

SCHMIDT, E. B.; ARGIMON, I. I. L. Vinculação da gestante e apego ma-


terno fetal. Paidéia (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto, v. 19, n. 43, p. 211-220,
ago. 2009. Disponível em: Acesso em: 21 ago. 2019.

“O começo da Vida”. Episódio 1 – Série: O bebê fantástico. 1ª Temporada.


Netflix, 2016.

24
PATRICIA PIRES
CRP 05/33337
(21) 98171-3332
psipatpires@gmail.com
@psipatpires
www.psipatpires.com.br

• Graduação em Psicologia pela PUC – RJ

• Formação em Coaching Psychology – Academia do Psicólogo

• Pós-graduação em NeuroPsicoTerapia - AEDP da Santa Casa de


Misericórdia-RJ

• Especialização em Terapia Cognitivo Comportamental – CPAF

• Curso de Terapia Cognitivo Comportamental para crianças e adolescentes


– CPAF

• Formação em Terapia Floral – HealingHerbs

• Psicóloga clínica de adultos, adolescentes e casais em seu consultório no


RJ e online

• Idealizadora do ProjetoCria, em parceria com a psicóloga Karla Brando.


(www.projetocria.com.br).

25
Agora, Pais. Como Adaptar-se à Rotina do Bebê?

A chegada do bebê em casa

Pense em uma mudança grande na sua vida. Pensou? Agora multiplica essa
mudança várias vezes. Não há como negar. Para o bem e para o mal, quando um
filho chega, a dinâmica do casal é totalmente alterada. Existem diversos mitos
envolvendo a chegada do primeiro filho. A verdade é que tudo muda mesmo!

“A chegada do primeiro filho é uma delícia, sinônimo de festas, sorrisos


e esperanças, mas pode também produzir angústias, medos e irritações,
com repercussão direta na harmonia do casal, por conta da nova rotina.”
(Projetocria, 2016)

Todo bebê causa uma tremenda mudança na vida dos novos pais. Esse início
da parentalidade é como a chegada a uma cidade nunca antes visitada, um
passeio no desconhecido. Por mais que a gente tenha se organizado para
aquilo, nem tudo vai sair como esperávamos. É como se o nosso centro e
todas as nossas prioridades mudassem.

Nos primeiros meses, as mudanças se intensificam como se alguém esbarrasse


no nosso tabuleiro da vida e bagunçasse tudo o que antes estava certo no seu
lugar. Nesse primeiro momento será necessário fazer novos arranjos, mudar
de papeis, sintonizar referências de infância, e enfim, transformar o que era
vida a dois em uma vida familiar. Um bebê muda a rotina de uma casa inteira.

Estudo de caso

Imagine a seguinte cena: Bianca* e Fabio*1 saem felizes do hospital com a


pequena Sophia* em seus braços. Foram três dias de alegrias, sendo papa-
ricados, cuidados e pronto-atendidos na maternidade. Quando chegam em
casa, Bianca passa a apresentar dificuldades para amamentar; ela começa a ter
sensações estranhas de angústia, melancolia e tristeza por conta do puerpério
(período que decorre desde o parto até que os órgãos genitais e o estado geral
da mulher voltem às condições anteriores à gestação) e um grande mal-estar
por conta da mudança na rotina do sono se instaura na casa. Fabio, por sua

1. (*Os nomes originais foram omitidos para preservar a identidade das pessoas)

26
vez, se sente inútil, deslocado e com certo ciúme? Isso, ciúme. Quando chega
em casa do trabalho espera encontrar “a mulher”, mas só encontra “a mãe”.
Paralelamente, também sente medos nunca antes vivenciados como: medo de
ficar desempregado, medo das responsabilidades novas e até medo de morrer.

Os dois vivem um silêncio solitário, uma autocensura. Afinal, todos estão


felizes com a chegada do novo membro da família, e eles sentindo um “mix
de sentimentos” bons e ruins ao mesmo tempo.

Adaptando-se à nova rotina: o famoso baby clash

“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente,


mas o que melhor se adapta às mudanças”
Leon Megginson

Casos como o relatado acima são bastante comuns e ainda se repetem, mesmo
com tanta informação disponível. Por mais que o casal se conheça, há um
fenômeno comum que acontece: o baby clash (choque do bebê). Isso ocorre
pela entrada de um novo membro na dinâmica do casal e pode gerar alguns
conflitos. É natural e extremamente comum que os novos pais enfrentem
milhões de dúvidas, medos e inquietações.

A chegada do primeiro filho significa a inauguração de uma família, que


é um sistema complexo de relações, onde cada membro exerce seu papel
familiar por meio de uma interdependência de três gerações: a própria, a
que gerou e a que gerou nossos pais. E todos os pais de primeira viagem,
iniciarão um processo desafiador. Desprovidos de qualquer informação que
seja uma verdade absoluta, encontram-se com um bebê no colo. Terão que
conhecê-lo, saber por que chora, quando tem fome e sono, pois nem tudo é
instintivo como a literatura fala.

A mudança de rotina é inevitável, porém essencial para tudo começar a


fazer sentido e vocês assimilarem que: quando nasce um filho, nasce uma
mãe, um pai e, enfim, uma “nova” família. Socialmente, vocês poderão sen-
tir-se um pouco perdidos, todas as decisões giram em torno da criança, e
é de extrema importância que contemplem a visão de ambos. Cabe à mãe
integrar o pai – caso isso não aconteça naturalmente. A clara comunicação
é fundamental para o fortalecimento do casal, pois há muita idealização en-
volvendo a chegada de um filho e o tal momento mágico vem acompanhado

27
de muitas dúvidas e inseguranças. Mesmo que brevemente, é necessário se
despedir de uma época da vida, afinal, o tempo livre de obrigações ficará mais
escasso, as responsabilidades e cobranças aumentam. É necessário passar por
um período de adaptação para que tudo se ajeite. A rotina com um filho é
dinâmica, intensa e até a relação sexual precisará se moldar a ela.

Rede de apoio e autocuidado

Não há glamour em ser “multitarefa”, fazer isso é romantizar algo que adoece.
Infelizmente, a sociedade ainda cobra que mulheres trabalhem como se não
tivessem filhos e que sejam mães como se não trabalhassem. É extremamente
necessário criar uma rede de apoio, ela será fundamental para acolher a nova
mãe nesse momento em que ela irá precisar de ajuda para concluir tarefas
domésticas simples, como fazer comida, lavar a louça e organizar a casa, e
também na rotina mais básica, auxiliando no cuidado do bebê quando a
mãe precisa se alimentar, tomar banho e descansar um pouco para voltar a
se dedicar plenamente ao pequeno. A rede de apoio pode ser formada por
qualquer pessoa que faça a mãe se sentir mais segura, que não julgue suas
decisões e que a ajude a viver uma maternidade mais feliz e tranquila.

O lema é: mamãe feliz, bebê feliz. E para essa felicidade virar um círculo vir-
tuoso, o autocuidado é indispensável. Reservar um tempo para cuidar de você
mesma, será quase uma necessidade básica. Pode ser um café com os amigos,
ir para a academia, fazer as unhas, sair para namorar ou um tempo para não
fazer nada! O importante é sentir-se bem, cuidada e feliz consigo mesma!
Isso fará uma diferença tremenda para sua saúde física, emocional e mental.

Comunicação não violenta (CNV) e responsabilidade afetiva

Acredito fortemente que essa duas habilidades sociais sejam indispensáveis


para uma adaptação saudável à nova rotina do casal.

O psicólogo americano Marshall Rosenberg que desenvolveu o método da


CNV acredita que “por trás de todo comportamento existe uma necessida-
de”. Algo dito no calor da emoção como: “você nunca me ajuda nas tarefas
de casa” não irá fortalecer o relacionamento. Ninguém gosta de se sentir
acusado, encurralado, sobrecarregado ou invadido e acabamos fazendo isso
quando estamos frágeis emocionalmente. Já se usarmos as técnicas da CNV,
que consiste basicamente em a pacificação de uma guerra cotidiana por

28
meio de uma comunicação empática, faríamos a mesma colocação dessa
forma “sem você não consigo terminar todas as tarefas de casa e isso me deixa
extremamente cansada(o)” aumentando drasticamente a possibilidade da
resolução dos conflitos. Infelizmente, nos habituamos a expressar o que
queremos de forma impositiva e desatenta e isso certamente prejudica
o relacionamento.

Outra habilidade social importante nessa nova fase é desenvolver a respon-


sabilidade afetiva. Quando entendemos que a maneira como agimos pode
impactar diretamente a vida do outro somos mais cautelosos. Tratar com em-
patia e respeito os sentimentos do outro evita muitos combates desnecessários.

Diálogo – a cereja do bolo

Para finalizar este capítulo, queria enfatizar que os primeiros meses, talvez
até anos, podem ser estressantes, assustadores, cansativos e carregados de
emoção. O sucesso na rotina envolve parceria, divisão de tarefas, acolhimento
das vulnerabilidades, responsabilidade afetiva e a prática sistemática de uma
comunicação não violenta.

É fundamental que cada um consiga expor seus sentimentos, sem jogar as


culpas pelos problemas no outro. Que um se coloque sempre no lugar do
parceiro. Ser empático faz a diferença.

Falar que o diálogo é a melhor ferramenta que os pais poderiam usar soa
meio clichê, mas é exatamente o que pode salvar uma relação que porven-
tura degringolou com a chegada do bebê. Entender que o aquilo que não é
dito não é sabido, e o que pode ser óbvio para você, para o outro pode não
fazer sentido algum. Entendam que tanto quanto o bebê que chegou, os pais
dessa relação precisam de cuidados. Cuidem-se! E saibam que mesmo que
prolongada, é só uma fase.

29
Referências Bibliográficas

MASSA, L. Sete coisas que mudam no casamento após a chegada dos filhos.
Abril, 2017. Disponível em: <https://bebe.abril.com.br/familia/7-coisas-que-
-mudam-no-casamento-apos-a-chegada-dos-filhos/>. Acesso em: 23 ago. 2019.

HACKRADT, T. De mulher para mãe: como se adaptar à nova rotina sem


trauma. Ig, 2014. Disponível em: <https://delas.ig.com.br/filhos/2014-04-23/
de-mulher-para-mae-como-se-adaptar-a-nova-rotina-sem-trauma.html>.
Acesso em: 23 ago. 2019.

ProjetoCria – www.projetocria.com.br/ebook

Revista Crescer. Disponível em: <https://revistacrescer.globo.com>. >. Acesso


em: 23 ago. 2019.

ROSENBERG, M. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar re-


lacionamentos pessoais e profissionais. 1.ed. São Paulo: Ágora, 2006.

30
KARLA BRANDO
CRP 05/29125
(21) 99295-7178
projetocria@gmail.com
@projetocria

• Graduada em Psicologia pela Universidade federal de Juiz de Fora

• Especialista em Psicologia Hospitalar

• Formação em terapia cognitiva comportamental e terapia sistêmica familiar

• Psicóloga Clínica de adultos, adolescentes, psicoterapeuta de casais, família


e grupos

• Idealizadora do ProjetoCria (www.projetocria.com.br) em parceria com a


psicóloga Patricia Pires.

31
Primeiros Passos, Primeiras Palavras...

A maioria de nós gostaria de ter um manual colorido e ilustrado que nos


ensinasse a melhor maneira de criar filhos e, que ainda respondesse a todas as
nossas dúvidas, oferecendo garantias de acerto e reduzindo nossa vulnerabi-
lidade como pais. Será? Nossa busca é realmente essa? Que tipo de educação
estamos priorizando? O que caracteriza os primeiros passos de nossos filhos
para seu aprendizado e desenvolvimento? Como as ideias sobre os processos
de desenvolvimento e aprendizagem de Piaget e Vygotsky podem nos ajudar
a pensar o conhecimento como uma construção diária que nunca estará
completa? A partir dessas questões, proponho a vocês seguirmos juntos em
uma reflexão sobre desenvolvimento infantil. Talvez eu tenha mais perguntas
a oferecer do que respostas prontas. Uma escolha proposital, pois acredito
que cada desenvolvimento é um processo individual e respeitar essas par-
ticularidades é um exercício diário maravilhoso para todos os envolvidos.

A comparação que limita


Quando nasce uma criança, surge com ela uma história que compreende
várias gerações com suas expectativas, delegações e projeções. Nasce com
ela uma nova família, o início de um novo ciclo vital.

Todos nós somos influenciados pelos nossos modelos familiares. Quando nos
referimos aos sentimentos de amor, aceitação e valorização, somos estrutural-
mente moldados por nossa família de origem, pelo que escutamos, pelo que
nos contam e, talvez o mais importante, pela maneira como vemos nossos
pais se relacionarem com o mundo. Desta forma, temos que a coerência entre
nossas ações como pais e os valores que queremos passar aos nossos filhos
precisam estar em fina sintonia. Já pararam para refletir sobre as mensagens
claras ou veladas que ensinamos constantemente no dia a dia a eles?

Ora, vivemos uma época de superexposição da vida privada. E o que acontece


em uma sociedade em que, necessariamente, precisamos esconder nossas
dificuldades para nos sentirmos seguros e certos o bastante? Como aprender
em uma cultura que não valoriza o erro como um caminho possível de se
atingir o saber? Como desenvolver integralmente se temos como parâmetro
o coleguinha ao lado? Como crescer com a sombra das comparações ilumi-
nando nossas ações? Não se aprende nada de cabeça baixa e boca fechada.

32
Ao entrarmos em contato com a ideia de criar um filho temos como referência
a criança que imaginamos. Deslizamos, assim, muito rapidamente para as
imagens que nos lembram alguém perfeito, sem falhas, com grandes qualida-
des e feliz. Sabemos, no entanto, que essas imagens são idealizadas, carregam
nossos sonhos, desejos, expectativas e projetos não realizados.

Em algum nível sempre haverá algum tipo de projeção dos pais sobre seus
filhos. É uma viagem muito maluca mesmo. Contudo, se este processo torna
as partes reféns de uma cadeia geracional onde um deverá cumprir o que o
outro não cumpriu temos um conflito entre realizar a missão pretendida
pela família e a própria necessidade de individuação. É no equilíbrio entre
as expectativas da família e as reais possibilidades da criança que vamos
caminhando para um processo de desenvolvimento e aprendizado integral.

Cada criança é única


Vygotsky nos dizia que todo aprendizado e desenvolvimento é um processo
sócio histórico. A ideia central é que o todo ser humano está imerso em um
contexto histórico e seu desenvolvimento e transformação ocorre a partir
dessa interação. É por meio da relação interpessoal concreta com os outros
que cada um vai interiorizando as formas culturalmente estabelecidas de
funcionamento psicológico. O processo pelo qual o indivíduo internaliza o
aprendizado não é uma absorção passiva, mas de transformação, de síntese.

Para Vygotsky existe um percurso de desenvolvimento, em parte definido


sobre o processo de maturação do organismo individual, pertencente à espécie
humana e outra parte pelo ambiente. É o aprendizado que possibilita o des-
pertar de processos internos de desenvolvimento que, se não fosse o contato
do indivíduo com certo ambiente cultural, não ocorreriam. Por exemplo,
imagine uma criança que viva em um grupo cultural isolado onde não há
escrita. Se continuar ali, jamais será alfabetizada. Só o processo de leitura e
escrita é que poderia despertar os processos de desenvolvimento internos do
indivíduo. Desta forma, o ponto central dessa teoria é a valorização de uma
postura ativa da criança e seu processo de aprendizagem.

Já Piaget que foi muito criticado por não ter levado em conta esses fatores
sociais e culturais tão valorizados por Vygotsky, tinha seu interesse maior
focado no entendimento de como o conhecimento é formado ou construído.
O aprender para ele é um ato puramente da criança em que uma nova cons-
trução é sempre realizada sobre uma construção anterior. Afirmava que uma
criança só aprende algo quando já está madura o suficiente para desenvolver
a habilidade necessária para tal aprendizagem. A partir da maturidade bioló-

33
gica, consegue assimilar o conhecimento e por intermédio da acomodação o
saber vai se consolidando. Na concepção de Piaget, a criança pode empregar
todas a fontes e formas de informação no processo de construção. O processo
não é recriar o modelo, mas inventá-lo.

Apesar dessas diferenças, ambos entenderam o conhecimento como adapta-


ção e como construção individual e pensaram a aprendizagem e o desenvol-
vimento como autorregulados. Viram o desenvolvimento da aprendizagem
como necessariamente ativo, não ocorrendo de maneira automática. O que
nos parece muito evidente a partir desses pensadores é que o desenvolvimento
é único, cada criança é única, aprende e se desenvolve a seu tempo e cada
uma à sua maneira.

Que caminho escolher?


Nos meses iniciais à chegada do bebê, o trabalho físico é tão exaustivo que a
real preocupação com o desenvolvimento biopsicossocial vai se realizando
com o passar do tempo. E quando vamos nos dando conta de todo esse pro-
cesso, muitas vezes, ficamos diante de impasses, de dúvidas sobre o melhor
caminho a seguir. Acompanhado dessas situações, vivemos experiências e
sentimentos que vão da frustração ao terror.

Somos educadores do dia a dia, das situações mais simples às mais comple-
xas. Coerência é o esperado. De nada adianta dizer algo que será negado por
nosso comportamento mais adiante. Nossos filhos percebem imediatamente
a distância entre o falado e o executado. Dá uma confusão na mente.

Quando crianças, a espontaneidade é que vai norteando a existência. Na pri-


meira infância, não há tanto esforço para esconder o medo e a dúvida. As más-
caras sociais vão sendo moldadas à medida que vão expandindo suas relações.

Tenho percebido um aumento significativo da ideia de que precisamos ser


aceitos pelos outros, mesmo que isso possa significar a supressão de caracte-
rísticas essenciais da personalidade. De onde vem essa necessidade de ade-
quação? Acredito que esse enquadramento deva começar a ser questionado
já no próprio ambiente familiar.

Se perguntarmos agora aos pais o que desejam para os filhos, a maioria res-
ponderia que desejam que sejam felizes. Mas será que na prática é essa mesma
a mensagem que passamos? Estamos comprometidos em facilitar o desenvol-
vimento das potencialidades de nossos filhos ou buscamos o enquadramento
para criarmos sujeitos do sucesso?

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Comprometimento, com a coerência em formar seres humanos, exige o in-
vestimento de tempo e energia. Isso significa sentar com nossos filhos e tentar
entender seus mundos, interesses e histórias. Pais engajados e plenos podem
ser achados em todos os lados do polêmico debate sobre a criação de filhos.
Eles vêm de tradições e culturas diferentes e defendem valores distintos. O que
têm em comum é colocarem em prática os seus valores, adotarem a postura
do não saber, não ser perfeito, não estar sempre certo, mas estar aqui, aberto,
atento, amando e estando presente.

Não há dúvida de que criar filhos requer envolvimento e sacrifício, mas foi
com isso que nos comprometemos quando decidimos ser pai e mãe.

Nessa rotina de tantas exigências competindo com o tempo reservado à aten-


ção a eles, podemos nos perder no caminho a escolher. Uma das estratégias
mais universais de entorpecimento no momento atual é viver loucamente
atarefado. Aceitamos a ideia de que se estivermos sempre muito ocupados,
as dificuldades da vida não nos alcançarão. Na verdade, as dificuldades da
vida nos fortalecerão.

Não podemos dar a nossos filhos o que não temos. Quem somos importa infi-
nitamente mais do que sabemos ou queremos ser. A distância entre a prática e
a teoria é a lacuna de valores. Quantas vezes, muitos de nós, não permitimos
que os filhos façam as coisas do jeito deles? Corremos apressadamente para
apresentarmos a maneira mais fácil e adequada de lidar com os desafios.
Aprender, aprender, aprender... o tempo todo em busca de melhorar sempre.
Calma, muitas vezes está ótimo do jeito que está. Só cabe a nós aproveitarmos
o presente. Celebrarmos as conquistas do agora. Se quisermos que nossos
filhos desenvolvam altos níveis de esperança, precisamos deixá-los travar
suas próprias batalhas, escolher o caminho a seguir, ganhando e perdendo.

Criar um filho que seja esperançoso e que tenha coragem de ser ele mesmo,
significa recuar da superproteção e deixá-lo experimentar a decepção, lidar
com conflitos, aprender a ser impotente, dar a ele a oportunidade de falhar.
Assim é a vida. Para se estar inteiro é preciso acolher nossas dificuldades e
celebrar nossas inúmeras potencialidades.

Conclusão
Ser responsável em conduzir filhos para uma vida significativa é uma tare-
fa desafiadora e constante. Viver bem não tem nada a ver com ganhar ou
perder. Tem a ver com coragem. Em um mundo onde a escassez e a vergonha
dominam e sentir medo tornou-se um hábito, ser real, imperfeito, incomoda.
É até perigoso.

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Podemos ajudar nossos filhos a entender, potencializar e aproveitar a estru-
tura emocional familiar e como lhes ensinamos a combater as insistentes
mensagens da sociedade que diz que devemos buscar sempre a vitória. Nem
sempre dá para ganhar. Somos a soma de nossas decisões. Escolhas e renún-
cias. Somos os melhores que podemos ser.

O fato é que cada um de nós pode lançar mão das ideias e teorias apresentadas.
Mas o propósito desse artigo é trazer para reflexão que, em linhas gerais, há
marcas biológicas importantes no processo de desenvolvimento, mas que cada
criança tem seu tempo de maturação. Se houver um distanciamento muito
evidente entre a idade cronológica e determinada habilidade própria da faixa
etária, procure um especialista para ajudá-lo e buscar caminhos alterativos.
Em educação nada é pronto, tudo é construção.

Esperamos que nossas crianças possam aprender a aprender, tenham con-


fianças em si mesmas, sejam respeitadas e sintam compromisso em relação
a ideias, objetos e pessoas. Educar requer apoio e ligação humana, respeito,
autonomia, consideração, confiança. Sem essas ligações humanas adequadas,
a vivacidade murcha.

Referências Bibliográficas
BROWN, Brené. A coragem de ser imperfeito. Sextante, 2016.

GROISMAN, Moises. Além do paraíso: perdas e transformações na família.


Núcleo pesquisas, 2010.

OLIVEIRA, M. K. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento – um processo


sócio-histórico. Editora Scipione, 1997.

Pioneira educação, 1997.

ROSENBERG, Marshall. Vivendo a comunicação não violenta. Sextante, 2019.

WADSWORT, J. B. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget.

36
MÔNICA PESSANHA

(11) 96512-6887
monicapessanha28@icloud.com
@monicapessanhapsi
www.monicapessanha.com

• Psicoterapeuta de crianças, adolescentes e mães

• Escritora e Palestrante sobre as dificuldades vividas pela família e pela escola

• Professora de Ludoterapia no Instituto Cinco

• Colunista nas revistas MALU, no Blog Cheguei ao mundo (da atriz Fer-
nanda Rodrigues) e colaboradora em diversas revistas do país sobre educar
os filhos sem traumas

• Mantenedora das oficinas psicoterapêuticas BRINCADEIRAS AFETIVAS


e A MÃE SUFICIENTE

• Em 2004 recebeu homenagem na Câmara dos Vereadores de SP e diplo-


ma de Honra ao Mérito pelos serviços prestados as crianças em situação de
abandono afetivo

• Há 3 anos faz trabalho voluntário organizando brinquedotecas em escolas


públicas de São Paulo

• Mônica Pessanha é esposa do Flávio Azeredo, casados há 20 anos e mãe


da Melissa de 13 anos.

37
Birra: O que é e Como Lidar com Ela

Imagine você na seguinte situação: sábado à tarde, toda a família reunida para
o passeio no parque. Vocês esperaram a semana inteira para esse evento. No
fatídico dia, tudo se passa tranquilo e muito próximo do planejado: sol, calor,
passeio de bicicleta, sorvete entre outras coisas. Você, pai ou mãe, idealizador
do passeio, suspira aliviado. Por dentro e por fora, é nítida sua felicidade. Na
hora de ir embora, tendo que devolver a bicicleta alugada no parque, seu pe-
queno ou sua pequena entra numa crise de frustração e começa um episódio
de birra. Ele chora, esperneia, rola no chão. Você, por outro lado, começa a
desejar que a terra abra um buraco para que, como avestruz, consiga esconder
seu rosto. Não pela falta de saber como agir, mas como estratégia para fugir
do julgamento dos outros, que mesmo sem emitir uma só palavra, já olham
para você com desaprovação.

Por mais dramático que esse quadro imaginário possa parecer, tenho certeza
de que há muitos pais que o reconhecem muito bem, pois já o vivenciaram
ou conhecem alguém que passou por ele. Esse cenário é típico daquilo que
conhecemos como birra.

Antes de entender as birras e o porquê de serem tão comuns, sobretudo no


período que vai dos dois aos três anos de idade, é preciso compreender o
comportamento da criança nessa faixa etária. Quando a criança tem por
volta de dois anos, ela começa a se perceber, a cada dia que passa, como sujeito
diferenciado dos outros. Ela passa, nesse momento, a ter uma compreensão
melhor do que acontece dentro e fora dela. Não é à toa que nesse período, a
criança abandona a sua fala em terceira pessoa (por exemplo, Pedrinho quer)
e passa a utilizar o pronome eu e expressões do tipo “é meu!”.

Como está se tornando consciente das suas próprias habilidades, a criança


começa a desejar fazer tudo sozinha, sem auxílio dos adultos. Acostumadas
até o momento em ouvir “não” sempre dos pais e cuidadores, agora é sua vez
de se apropriar e usar essa palavra. E não apenas isso, agora ela também vai
querer dar ordens. O “não” é dito por ela como forma de reafirmar sua auto-
nomia. Diante disso, ela começa a perceber que essa palavra provoca certas
reações nos adultos e assim, diverte-se repetindo-a para ver o que acontece.

38
Percebe-se que esse período é muito importante para o desenvolvimento da
criança entre 24 e 36 meses. Atravessando essa fase, a criança constrói duas
coisas importantes para ela mais tarde: autonomia e confiança.

Não é por acaso, que justamente nessa fase, os pais costumem dizer que seus
filhos têm personalidade e temperamento fortes. Porque é nesse período que
eles terão que lidar com as birras e acessos de fúria. Aqui fica um aviso, ou
melhor, um lembrete: crianças de dois anos reagem com grande veemência
motora ao serem contrariadas. Essa contrariedade pode vir de fontes distintas:
os limites colocados pelos adultos; a incapacidade de executar uma tarefa,
devido à defasagem existente entre a vontade e a competência, por exemplo,
tentar amarrar o tênis; fome ou sono.

Você, leitor, deve estar pensando: quando ela vai falar de birra mesmo? Acal-
me-se, pois o momento chegou! Como havia avisado no início, não dá para
falar de birra sem entender um pouco do desenvolvimento do seu pequeno
ou da sua pequena. Então, vamos começar com uma pergunta crucial: o que
é birra? De forma muito simples, birra é a expressão de sentimentos. É por
meio dela que as crianças manifestam sua frustração e raiva. Acho que aqui
cabem algumas considerações importantes.

Muitas vezes, nos esquecemos que não somos seres apenas psicológicos. Há
em nós uma clara porção biológica, que irá influenciar no nosso desenvol-
vimento. Você deve estar se perguntando: o que isso tem a ver com birra?
Lembre-se de que a birra é uma expressão da raiva, e raiva, por sua vez, nada
mais é do que uma expressão do medo. Medo da perda. Existe em nosso
cérebro uma área chamada amígdalas cerebrais. Essa área do cérebro está
relacionada à nossa reação ao medo. Para vocês terem uma ideia, essa área já
está em pleno funcionamento desde a formação do feto na barriga da mãe, a
partir dos 45 dias, para que possamos nos proteger dos perigos ao nascimento.
É exatamente por isso que um bebê reage aos barulhos externos ou aos mo-
vimentos bruscos da mãe: por medo, por não conseguir saber o que se passa.
É uma reação instintiva e não racional. Assim, toda vez que as amígdalas
cerebrais recebem a informação do meio de que há algo que pode ocasionar
perigo ou perda, elas serão acionadas (Cf. Capeletto&Capeletto, 2012).

Como reação, podemos ter o comportamento de paralisação ou fuga, mas


geralmente é de raiva. No caso da birra, as manifestações de raiva podem
ser velhas conhecidas dos pais: choro, gritos, pontapés, atirar-se ao chão, es-

39
pernear, atirar objetos. Assim, quando uma mãe pede para filho parar uma
brincadeira e ir tomar banho, isso gera na criança o medo de perder aquele
prazer que estava tendo. Nesse momento, temos uma reação de causa e con-
sequência. O medo de ficar sem a brincadeira aciona as amígdalas que, por
sua vez, aciona a defesa por meio da raiva.

Bem, ninguém nasce sabendo as regras sociais ou como se comportar. Muito


pelo contrário, nós reagimos ao ambiente e aos limites que nos são impostos.
Por isso, não podemos perder de vista o fato de que, quando uma criança
responde a essas imposições com birra, ela nos mostra que é mentalmente
saudável. Uma criança apática ao corte do que lhe causa satisfação é que nos
deve deixar no mínimo atentos. Isso porque a birra é uma forma de ela reagir
ao desconforto provindo muitas vezes do aprendizado das regras sociais e
limites impostos pelos seus pais e cuidadores.

Nunca é demais lembrar: a raiva da criança de dois anos é que vai dar início
a uma vida psicológica que tem que ser administrada pelos pais. São eles, os
cuidadores, a escola e a sociedade que vão de maneira hábil e afetuosa, com
limites, ensinar a criança a lidar com esse desconforto.

Agora vou te contar um segredo: como as amígdalas nunca param de fun-


cionar (só quando morremos), sempre iremos sentir esse desconforto que
experimentamos na infância, ou seja, sempre nos sentiremos desconfortáveis,
irritados e com raiva quando algo contrário ao nosso desejo não se realizar.
Por isso, é importante nunca esquecer que esse sentimento é instintivo e,
portanto, não podemos escolher não o ter. Por outro lado, cabe enfatizar que
apesar de não podermos controlar o sentimento, podemos tentar controlar
o comportamento que ele desencadeia.

Nesse processo em que a criança experimenta a frustração e a raiva e aprende


a lidar com elas, ela desenvolve a resiliência. Como se sabe a resiliência é a ca-
pacidade de lidar com os desafios da vida. A possibilidade de enfrentar fatores
de risco e de aproveitar os fatores de proteção torna a criança resiliente, uma
vez que o resiliente utiliza os recursos positivos que possui para enfrentar as
adversidades. Não nos esqueçamos, porém, de que para que a criança apren-
da a lidar com essas emoções e a desenvolver resiliência, é necessária uma
boa dose de compreensão e firmeza por parte dos pais e cuidadores na hora
de mostrar às crianças as maneiras adequadas de expressar sua frustração,
definindo os limites para isso. Esses limites precisam ser apresentados de

40
forma firme, objetiva e, acima de tudo, afetuosa. Quanto menos os limites
estiverem claros e definidos, maior será a necessidade de a criança experimen-
tar seu poder, até que consiga aprender até que ponto ir. Às vezes, a situação
demandará mais rigor do adulto, desde que não se confunda rigor com raiva.

É justamente no instante em que o adulto tenta impor algum limite ou


restrição à criança que os acessos de birras acontecem. Sejamos sinceros: seria
ingenuidade de nossa parte achar que as crianças não oferecerão nenhuma
forma de resistência aos limites que lhes impomos, por mais afetivos que
tentemos ser nesse momento.

Feito esses apontamentos, agora podemos passar por uma parte mais prática em
relação às birras. Aqui iremos pontuar aquilo que devemos fazer e o que não deve-
mos fazer quando os momentos de birras acontecerem. Alguns desses pontos são:

1. Mantenha a calma: muitos pais, diante da explosão da birra da criança,


acabam ficando nervosos e perdidos, deixando de lado tudo aquilo que apren-
deram a respeito de como podem agir para manter o controle da situação
nesses momentos.

2. Uma vez iniciada a birra, não vale a pena chamar a criança à razão: nessas
ocasiões, em vez de insistir para que a criança pare de chorar, o adulto deve
explicar que vai esperar que ela se acalme para retomar a conversa.

3. Caso a crise de disrupção corporal seja muito grande: o adulto poderá


pegar a criança no colo, com tranquilidade e firmeza, para evitar que ela se
machuque ou para ajudá-la a se acalmar.

4. Espere algum tempo para que a criança possa se reorganizar emocional-


mente: se necessário, leve-a para um local onde possa dar-lhe apoio e con-
versar sem que outras pessoas fiquem dando palpite sobre o que fazer ou
como agir.

5. Quando a criança se recompuser e a birra houver cessado: deixe que a


criança volte para atividade que estava realizando, se julgar esse ser o caso.

6. Uma outra forma de evitar as birras consiste em avisar a criança, com


alguma antecedência, o que irá ocorrer que fuja da sua rotina.

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Sim, sei que aplicar essa lista não é fácil porque entendo que diante de um
acesso de birra você precisa respirar fundo e fazer um exercício exemplar de
autodomínio. Não é fácil, mas é possível! Agora, vale uma última palavra
sobre birras. Mesmo que, como vimos, a birra possa ser vista como uma
desorientação da criança e maneira como muitas vezes irá comunicar a frus-
tração que está sentindo, ela pode ser também uma forma de chantagem.
Esta ocorre muitas vezes em locais onde as crianças sentem que terão certa
blindagem, imunidade. Na maioria das vezes em locais públicos ou onde há
pessoas conhecidas que estão familiarizadas com seu dia a dia. Nesses casos,
não se deve ter medo de dizer “não”. Como pais, ajude seu filho ou a sua filha
a perceber que a birra, a desorganização e a falta de lucidez e de autocontrole
não resolvem nada e tampouco são armas permitidas. Dessa forma, estare-
mos preparando nossas crianças não só para serem bons cidadãos, mas para
serem adultos preparados para lidar com as vicissitudes e surpresas – boas e
ruins – que a vida nos traz.

Referências Bibliográficas

BETTELHEIM, B. Uma vida para seus filhos. 21.ed. Rio de Janeiro: Cam-
pus, 1990.

CAPELETTO, I.; CAPELETTO, I. A equação da afetividade: como lidar


com a raiva de crianças e adolescentes. Campinas: Papirus, 2012.

SALEK, V. A. A criança até 4 anos: um guia descomplicado para pais e


educadores. São Paulo: Summus, 2010.

WINNICOTT, D. W. Conversando com os pais. 2.ed. São Paulo: Martins


Fontes, 1999.

42
CARLA ALMAS
CRP 06/119462
(11) 96382 2859
carlaf.psico@hotmail.com
@carlaf.almas

• Psicóloga inscrita sob CRP 06/119462

• Pós-graduanda em Análise do Comportamento Aplicada ao TEA e Desenvolvi-


mento Atípico - Paradigma Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento

• Pós-graduanda em Intervenções Precoces no Autismo - CBI of MIAMI

• Psicóloga Clínica - Atendimento a crianças e adolescentes com TEA, atrasos


no desenvolvimento em geral, ciência ABA e terapia baseada no modelo de
intervenção precoce Denver

• Avaliação e aplicação do protocolo VB-MAPP.

43
A Importância da Brincadeira no Desenvolvimento Infantil

Tempos atrás não havia preocupação com o desenvolvimento da criança,


elas eram tratadas como pequenos adultos. Ainda em idade precoce (entre
três ou quatro anos) eram submetidas ao trabalho, realidade que ainda hoje
podemos observar em nossa sociedade. Não raro, vemos crianças traba-
lhando em uma fase da vida em que deveriam estar brincando, estudando,
ou ainda fazendo outras atividades que ofertariam a elas estímulos que
contribuiriam para um desenvolvimento sadio e adequado.

Ainda no século XVII, a Igreja exerceu um papel importante para que


esse cenário começasse a se modificar, alegando que crianças expostas
às mesmas atividades dos adultos teriam seu desenvolvimento moral e
caráter prejudicados. A partir de então começaram a ser direcionadas
para atividades que contribuíssem para seu desenvolvimento moral, con-
sequentemente psíquico, cognitivo e para seu próprio bem-estar.

Desde então, as escolas começam a se constituir como espaços para o


desenvolvimento dessas crianças e a necessidade de se pensar em uma
educação mais ampla e formal aparecem no inicio do século XX, esta-
belecendo, assim, um crescimento visível da preocupação com questões
envolvendo crianças e sua formação, apesar de não ter evitado a forma
agressiva como as mesmas eram tratadas pelos adultos, em escolas e no
seio familiar. Muito ainda precisaria ser feito para que uma criança fosse
vista como um ser em formação, com suas singularidades e merecedoras de
respeito como em qualquer outra fase de seu ciclo de vida. A educação era
rígida e imposta às crianças mesmo que fosse necessário utilizar métodos
agressivos em ambiente escolar ou mesmo em casa. A brincadeira, neste
período, não fazia parte da realidade dessas crianças.

Neste sentido, a Psicologia, a partir de estudos científicos, já neste século


teve contribuição fundamental para a mudança de olhar, ao que se refere
às necessidades para um crescimento adequado a cada fase do desenvol-
vimento infantil. Como ciência do comportamento, preocupou-se em
descrever os comportamentos típicos de cada faixa etária e organizar es-
calas para medidas do desenvolvimento, assim sendo possível estabelecer
parâmetros que pudessem demonstrar se uma criança apresentava um
desenvolvimento considerado “normal” ou não.

44
Também em contribuição, a Psicologia pretende descrever e explicar com-
portamentos durante todo ciclo de desenvolvimento humano, infância,
adolescência ou fase adulta.

Podemos dizer que crianças com desenvolvimento típico (classificados


como “normal” na linguagem popular), quando avaliados por testes, apre-
sentarão os parâmetros necessários ao que se é esperado para sua idade,
no entanto, algumas crianças que não atingirem os mesmos marcos, ou
pontuações, apresentarão um desenvolvimento irregular ou atípico com
relação à mesma idade.

Para melhor entendimento, é importante conhecermos alguns aspectos


esperados para cada criança em sua fase de desenvolvimento cognitivo,
físico e psicossocial após o nascimento até o início da adolescência.

Na primeira infância (do nascimento aos três anos de idade), o cérebro


aumenta em complexidade e é altamente sensível à influência ambiental.
O crescimento físico e o desenvolvimento das habilidades motoras são
rápidos. As capacidades cognitivas de aprender e lembrar estão presentes,
mesmo nas primeiras semanas. A compreensão e o uso da linguagem se
desenvolvem rapidamente. Formam-se os vínculos afetivos com os pais
e com outras pessoas. Tornam se mais independentes e o interesse por
outras crianças aumenta. Essa é uma fase em que as crianças adquirem
inúmeras habilidades por meio das brincadeiras, que servem de estímulos.

No período dos três aos seis anos de idade (segunda infância), o cresci-
mento é constante, o apetite diminui e são comuns os problemas com o
sono, aprimoram-se habilidades motoras finas e gerais e aumenta a força
física. O pensamento é um tanto egocêntrico, mas aumenta a compreensão
do ponto de vista dos outros. Aprimoram-se a memória e a linguagem, a
inteligência torna-se mais previsível. Aumenta a independência, a iniciativa
e o autocontrole. Desenvolve-se a identidade de gênero e, o brincar, torna-se
mais imaginativo, mais elaborado e, geralmente, mais social, pois a criança
passa a utilizar a fantasia como componente para muitas brincadeiras.
Podem realizar atividades manuais utilizando tintas, papéis e cores para
expressarem sua imaginação, música e danças que irão contribuir também
para sua capacidade de escuta e habilidades psicomotoras, entre diversos
outros brinquedos ou brincadeiras correspondentes a essa faixa etária.

45
Na terceira infância, entre os seis e os onze anos de idade, o crescimento
torna-se mais lento, a força física aumenta e de um modo geral a saúde é
melhor do que em qualquer outra fase do ciclo de vida. As habilidades de
memória e linguagem aumentam e ganhos cognitivos permitem à criança
beneficiar-se da instrução formal na escola. O autoconceito torna-se mais
complexo, afetando a autoestima, e nessa fase também os colegas assumem
importância fundamental.

Nessa etapa também há mudanças nas brincadeiras e formas de se rela-


cionarem. Começam as distinções entre meninos e meninas, que tendem
a assumir uma preferência pela companhia de crianças do mesmo sexo.

Após uma análise crítica, com conhecimento, instrumentos utilizados


devidamente, observação clínica, histórico familiar e da criança, é possível
mensurar se o desenvolvimento está acontecendo de forma regular ou não.

Crianças que não correspondem aos critérios definidos para análise de


um desenvolvimento considerado normal, após orientação aos pais, ne-
cessitarão de um plano de intervenção individual (PI) que buscará, junto
a uma equipe multidisciplinar, desenvolver os déficits apresentados pela
criança em questão, e, assim, buscar igualar ou se aproximar das habili-
dades esperadas para sua idade.

O brincar, neste contexto, desempenha uma função fundamental para um


desenvolvimento adequado ou como forma de intervenção para crianças
com déficits. Quanto mais cedo forem estimuladas adequadamente com
brincadeiras estruturadas e objetivos definidos, maior será a possibili-
dade de se desenvolverem em todas as áreas de maneira plena mediante
suas potencialidades. A capacidade de rápida aprendizagem das crianças
sugere, porém, que a primeira infância é um período de grande plastici-
dade e mudança. A plasticidade neural permite ao cérebro formar novas
conexões sinápticas, criar novos caminhos para aquisição de habilidades
não apresentadas por crianças com atrasos, ou seja, quanto mais tempo de
estimulação, brincadeiras e um acompanhamento especializado com inter-
venções científicas e em idade precoce, mais capacidade do cérebro “reor-
ganizar-se” criando outras conexões para aquisição de novas habilidades.

Desde muito pequenas as crianças com desenvolvimento normal brincam


sozinhas, buscando vivenciar, reconhecer a sua maneira os estímulos que

46
a cercam, mas também quase que naturalmente desenvolvem uma ação
compartilhada com os pais que irá fortalecer seus vínculos sociais, a co-
municação, a linguagem e o prazer em compartilhar suas descobertas com
um parceiro, princípios fundamentais para um bom desenvolvimento.
Regadas de possibilidades nas brincadeiras, no decorrer do tempo, as com-
petências adquiridas ludicamente darão oportunidades de experiências e
competências mais sofisticadas no contexto das práticas sociais, possibi-
litando uma compreensão maior de si mesmo, das interações sociais que
serão fundamentais para construção de um ser critico, reflexivo e útil para
sociedade, como também da compreensão do mundo e de suas infinitas
mudanças e possibilidades.

A brincadeira permite vivenciar, por meio do imaginário, possibilidades


de criação, autonomia, independência e compreensão dos estados men-
tais do outro, desenvolvendo, assim, processos cognitivos importantes
para adaptação mais favorável frente às demandas que irão encontrar
em sua vida. Poder inferir o que se passa com outro, por intermédio de
uma árdua comunicação, ou simplesmente pela sutileza de gestos, olha-
res ou quem sabe por uma expressão facial, permite que se tenha uma
compreensão, ou podemos dizer empatia pelo próximo, e nos aproxima
mais dos grupos sociais indispensáveis para nossa construção. De ma-
neira lúdica, a criança age ativamente, desenvolve seu potencial criativo,
passa a compreender as intenções do outro, ganha autonomia quando
determina de que maneira irá brincar, ou quando mesmo recusa brincar
com algo, indicando tomada de decisão.

A brincadeira também é uma forma de comunicação em contexto terapêu-


tico, a ludoterapia possibilita que a criança expresse o que está sentindo e
vivenciando, permite também que entre em contato com sua história real,
seus medos, suas angústias e demonstre suas emoções.

As possibilidades de imaginação são ilimitadas no ato de brincar, tudo


pode ser utilizado para representar outra coisa e fazer parte de uma brin-
cadeira lúdica, compartilhada ou não. Os animais podem falar; o controle
remoto pode ser um trem ou a escova de cabelo, um microfone, tudo faz
parte da criatividade, brincadeiras também presentes em fase pré-escolar,
momento em que se desenvolvem brincadeiras simbólicas, o faz de conta,
e que representam acontecimentos reais, vivenciados por elas em seu co-
tidiano, e na fase intermediaria da infância, ou fase escolar a apreciação

47
de se brincar com seus pares, com prazer de compartilhar suas novas
experiências positivas ou não, e novos aprendizados.

O faz de conta, por estar relacionado à linguagem e a outros pensamen-


tos, exerce influência fundamental para o desenvolvimento cognitivo ou
mental. As crianças utilizam processos de pensamento de ordem superior
como no jogo de faz-de-conta, que assume um papel central no desen-
volvimento da aquisição da linguagem e das habilidades de solução de
problemas (Meira, 2003).

Crianças pequenas usam as brincadeiras também para desenvolver novas


competências: escalam paredes, sobem e descem varias vezes no escorre-
gador e escadas, encaixam peças de quebra-cabeças, utilizam um objeto
para representar qualquer outro, colocam e retiram peças de recipientes,
testam brinquedos de causa e efeito, constroem casas, empurram carrinhos
e diversos outros temas.

Também usam a brincadeira para praticar competências que já dominam:


é fácil ver o quanto as crianças se sentem satisfeitas ao exercitarem as suas
competências durante a brincadeira. Variam a brincadeira e experimentam
novas formas criativas de utilizar os brinquedos e outros objetos.

As crianças pequenas também usam as brincadeiras com brinquedos para


praticar as suas aptidões sociais. Isso é facilmente percebido em prática
clínica, na escola com outras crianças ou em casa, quando demonstram
o prazer de compartilhar suas brincadeiras com alguém. Aprendem pela
observação daquilo que os outros fazem com os brinquedos e aprendem
a partilhar, a tomar a vez e a cooperar com os outros durante as brinca-
deiras. Assim como nos jogos de faz de conta, quando reproduzem o que
vivenciam em suas rotinas e por meio daquilo que observam os outros
fazerem na vida real.

As possibilidades de brincadeiras e jogos são diversas, e quase todos os ma-


teriais podem ser transformados em brinquedos e utilizados de maneiras
diferentes. Tudo dependerá da imaginação e possibilidade de acesso a um
ambiente facilitador para a criação de um universo lúdico e encantador.

Por fazer parte de seu desenvolvimento natural, esse ambiente cheio de


aprendizagem despertará o interesse genuíno de uma criança em explo-

48
rar o que estiver ao seu redor, apreender o mundo, conhecer a si mesma,
aumentar suas habilidades e testar suas competências.

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (MEC, 1998)


estabeleceu a brincadeira como um de seus princípios norteadores, que
a define como um direito da criança para desenvolver seu pensamento e
capacidade de expressão, além de situá-la em sua cultura.

Desde 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as crianças


e os adolescentes são reconhecidos como sujeitos de direitos e estabelece
que a família, a sociedade e o Estado são responsáveis pela sua proteção, já
que são pessoas que estão vivendo um período de intenso desenvolvimento
físico, psicológico, moral e social. Muito ainda precisa ser feito para que
nossas crianças e adolescentes possam aproveitar estes períodos de maneira
adequada. Ainda hoje, nos deparamos diariamente com o trabalho infantil
em grandes cidades, nas ruas, semáforos, zonas rurais, sendo exploradas
de todas as formas e, consequentemente, excluídas de seus direitos.

A promoção de um ambiente sadio em casa, na escola, com respeito às


necessidades individuais, desde o início da vida, e o conhecimento e a
aplicação das particularidades presentes em cada etapa deste ciclo é o que
permitirá ao indivíduo desenvolver-se adequadamente, construindo sua
história, criando, mudando, reinventando e, principalmente, contribuindo
para uma sociedade melhor.

Por fim, a participação dos pais ou cuidadores nas brincadeiras é funda-


mental para um bom desenvolvimento, devendo favorecer igualmente
brincadeiras com outras crianças, a fim de que aprendam a partilhar e
desenvolvam suas habilidades sociais.

Referências Bibliográficas

QUEIROZ, N. L. N. et al. Brincadeira e desenvolvimento infantil: um


olhar sociocultural construtivista. Ribeirão Preto: Paidéia, 2006.

PAPALIA, D.; OLDS, S.; FELDMAN, R. Desenvolvimento humano. 10.


ed. São Paulo: McGraw-Hill, 2009.

49
RAPPAPORT, C.; FIORI, W.; DAVIS, C. Teorias do desenvolvimento:
conceitos fundamentais: v 1. São Paulo: EPU, 1981.

ROGERS, S.; DAWSON, G. Intervenção Precoce em Crianças com Au-


tismo: Modelo Denver para a promoção da linguagem, da aprendizagem
e da socialização. Lisboa: LIDEL, 2010.

ROGERS, S.; DAWSON, G.; VISMARA, L. Autismo: compreender e agir


em família. Lisboa: LIDEL, 2012.

Estatuto da Criança e do Adolescente. Previdência da República – Casa


Civil. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
Acesso em: 20 ago. 2019.

50
KARINE BROCK
CRP 04/33870
(32) 98492-9256
karinebrock@hotmail.com
@karinebrock
Psicologa Karine Brock

• Psicóloga pelo Centro de Ensino Superior (Ces-JF)

• Especialista em Psicologia Corporal (Cento Reichiano - Curitiba)

• Pós-graduada em Gestão de Pessoas (Puc - MG)

• Especialista em Recursos Humanos (FGV -RJ)

• Psicóloga clinica, atende crianças, adolescentes, adulto, casais e idosos

• É apaixonada pelo universo infantil e acredita que o trabalho familiar junto


a terapia, traz melhores resultados

• Realiza cursos e palestras para Pais

• Atua na região de Além Paraíba/ MG.

51
A Chegada de Um Irmãozinho: Como Lidar?

Planejada ou não, a gravidez é sempre um motivo de reorganização em di-


versos aspectos do cotidiano individual e familiar, visto que altera a relação
familiar. O que muitos pais se perguntam, quando ocorre a segunda gravidez,
ou melhor, quando deixam de serem pais de um único filho é como agir
com o primogênito. Diante disso, este capítulo pretende orientar, de forma
generalista, os genitores.

A redefinição da relação com os genitores e o novo papel ocupado (de irmão)


pelo primogênito pode gerar um complexo fraterno para ele e para os pais,
uma vez que a criança busca referências alternativas aos pais; em alguns
casos mais autonomia/independência e em outros dependência emocional e
afetiva associada a comportamentos regressivos que provocam a impaciência/
afastamento dos genitores, diminuição da troca de carinhos; e sensação de
abandono e rejeição.

Para os pais é necessário a reflexão de algumas questões, tais como: parti-


cipação do primogênito na gestação da mãe (e no período pós-nascimento)
observação em regressões comportamentais e mudanças emocionais do pri-
mogênito, a manutenção da rotina anterior à gravidez e cuidados para evitar
a comparação entre os irmãos, potencializando a união.

São momentos importantes para a “aceitação” de um novo membro na fa-


mília – pelo primogênito: a forma como se noticia a chegada de um irmão,
a escolha do nome da nova criança e até a delegação de funções de cuidado
e lazer do primogênito para o caçula.

É comum que o medo de “perder o lugar” ou “deixar de ter a atenção e o amor


dos pais” perpassa pelo primogênito, e se não forem questões bem trabalha-
das, podem trazer grandes conflitos familiares. Tendo isso claro, a chegada
de um novo membro na família precisa ser bem exposta para o “antigo filho
único”, a aproximação entre os irmãos tende a ser bem-sucedida uma vez
que o primogênito percebe que pode ser “amigo” do irmão caçula, e isso só
é possível quando ele participa de todo processo gestacional e de pós-parto.

Mas como? É a pergunta que muitos pais se fazem, e não obstante, “agora é
tudo dele” é a indignação que os primogênitos mais enfrentam. Tudo isso

52
pode ser bem resolvido, uma vez que os pais consigam demonstrar ao primo-
gênito a igual importância dos dois filhos. Não existe uma fórmula mágica
para evitar o ciúmes entre irmãos, mas em um primeiro momento existem
dicas importantes, como: contar sobre a chegada de um novo membro em um
momento propício, como em um passeio ou no momento da refeição; deixar
que o primogênito ajude a escolher o nome e enxoval do caçula; identificar
cuidados que o primogênito pode oferecer; criar brincadeiras entre os irmãos
e, dentre outras coisas, ter o cuidado para que a rotina do recém-nascido não
altere o sono e horários, como de alimentação, lazer, atividades escolares do
primogênito.

Em um segundo momento, verifica-se a importância da observação em re-


gressões comportamentais e mudanças emocionais do primogênito. É comum
que os filhos mais velhos tendam a chamar a atenção dos pais, como forma
de não perder a atenção que era exclusiva deles, no entanto é necessário que
os genitores fiquem atentos aos comportamentos e emoções dos seus filhos.

Engatinhar (quando já andam), limitações e alterações nas falas, isolamento


social, choros sem motivos, voltar a fazer xixi na cama, pedir por chupeta e/
ou mamadeira (quando já deixaram o costume de lado) são alguns dos sinais
de regressão comportamental e alterações emocionais dos primogênitos com
a chegada de um irmão. Mas o que fazer nesses momentos?

Alguns estudos destacam o comportamento regressivo como negativo e o de


independência como positivo, no entanto, aqui não estigmatizarei as crianças
que vivenciam este momento de regressão como negativo, mas darei ênfase
e ressaltarei os apontamentos sobre a importância de trabalhar a carência
emocional e afetiva dos primogênitos, apontando que, em situações agrava-
das, a terapia é o melhor caminho para a análise individualizada e subjetiva
da situação.

Respondendo a indagação acima, sobre como lidar com a regressão com-


portamental e com as emoções proponho aos genitores o resgate da relação
próxima e de confiança com o primogênito, demonstrando as diferenças de
cuidados exigidas pela idade, reforçando, estimulando a independência e dan-
do atenção às pequenas mudanças comportamentais deles, sem julgamentos
ou culpabilização. Lembre-se de que esse comportamento é a maneira que
a criança encontra de comunicar um incômodo com o qual não sabe lidar.

53
Ressalto que tanto o excesso de zelo quanto a impaciência com os com-
portamentos do primogênito são prejudiciais. É comum atender pais (no
consultório) que estimulam a lógica consumista (por meio de presentes) e
não regram horários e “mimos” dos primogênitos, como forma de suprir a
carência emocional promovida pela chegada de um novo membro na família.
Também se torna frequente os atendimentos as crianças que verbalizam que
os seus genitores são agressivos quando os corrigem, que não esperam elas
terminarem as frases, ou contar algo novo que vivenciaram no dia a dia, por
falta de tempo gerada pelos cuidados exigidos pelo irmão caçula.

Os pais que estão lendo este artigo devem estar se perguntando: como agir
diante de falta de tempo? A contemporaneidade exige muito dos genitores.
Trabalho externo, doméstico, trânsito, contas... e filhos. Enfatizei no primeiro
parágrafo deste capitulo a palavra-chave para uma família com primogênitos
sem carências emocionais: organização/reorganização.

Cabe ressaltar que a atenção solicitada por meio da regressão de compor-


tamento e problemas emocionais pode estar associada à dificuldade que os
genitores encontram para a manutenção da rotina do primogênito. É evi-
dente que os genitores não irão conseguir realizar todas as atividades antes
realizadas, neste momento revezar é necessário. Passeios, participação em
eventos escolares, auxílio na arrumação do material e atividades escolares,
orientações quanto aos cuidados de higiene e até mesmo assistir televisão ou
ler um livro juntos não podem ser extintos da relação pais e filhos e, neste
caso, da relação entre genitores e filho primogênito.

O cuidado com as mudanças bruscas da participação dos pais na rotina dos


filhos é essencial.

Enfatizo que as orientações dadas neste capítulo estão sinalizando para a


atenção dos pais ao primogênito, nessas eu não abordo apenas os pais que
vivenciam uma união estável, destaco que para genitores divorciados os ele-
mentos aqui enfatizados devem ter uma atenção redobrada.

Como último ponto a ser apresentado neste inesgotável tema, destaco a im-
portância dos genitores e outros membros da família (avós, tios, primos,
etc.) em relações de episódios de comparação entre o caçula e primogênito.
É importante que pais, avós, tios, primos e outros familiares evitem a com-
paração e aceitem a individualidade do caçula e primogênito. Dessa forma,
contribuirão também para potencializar a união e parceria entre os irmãos.

54
Ainda que os filhos tenham sido gerados pelo mesmo pai e mesma mãe,
apresentarão diferentes características ligadas à personalidade e isso não deve
ser apontado como aspecto negativo, ao contrário, espera-se que possam ser
aceitos em sua individualidade.

O excesso de comparações pode produzir um efeito cascata e uma compe-


tição entre irmãos, que mais contribui para separá-los do que para uni-los.
É necessário respeitar as diferenças, o tempo e as individualidades de cada
um. Quando os pais fazem isso, evitam uma série de problemas, tais como
problemas relacionados à inferioridade e aceitação.

É certo que não existe manual de instruções de “como lidar com a chegada de
um irmãozinho” ou “como cuidar para que o primogênito não sofra com este
momento”, mas existem diversas atitudes dos genitores que podem propor-
cionar este momento mais saudável para a relação familiar, e principalmente
para o primogênito.

Os quatro elementos destacados são importantes e servem como instruções


necessárias e executáveis diante de um planejamento (passível de alterações)
na rotina familiar, este deve ter como elemento primordial o diálogo.

Da ansiedade, angústia e insegurança da espera até a potencialização da


união entre o irmão caçula deve nortear a relação estimulada pelos genitores.
Conforme já mencionado, cada situação é única e o apoio de especialistas é
essencial, seja ele o pedagogo da escola do primogênito ou a orientação de
profissionais da psicologia.

Outro aspecto importante é o cuidado que se deve ter para não exigir demais
do filho primogênito, esperando que este passe a atuar como um “ajudante da
mãe” nas tarefas domésticas e cuidados com o bebê. Especialmente quando o
primogênito também é uma criança. Cuidados devem ser responsabilidade
dos pais, às crianças cabe serem cuidadas e viverem a infância. Com isso, não
quero dizer que não possam ajudar nos cuidados, mas sim que não se deve
cobrar do filho mais velho uma responsabilidade que não lhe cabe.

O grande desafio de ser mãe/pai de uma criança exige paciência e amor, mas
se tratando de duas ou mais, é necessário a conciliação da atenção e educação
filtrada de comparações, assim como cuidados com todos e consigo mesmo.

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Por fim, reforço que realizar atividades com o filho mais velho, ser tolerante
diante de comportamentos negativos e reservar um tempo exclusivamente
com o primogênito são ações essenciais, assim como são ações prejudiciais
a retirada de algum objeto/espaço de convivência, excesso de presentes para
amenizar as relações de ciúmes e preferir ou comparar os filhos.

Referências Bibliográficas

RUFO, M.. Irmãos: Como entender essa relação. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 2003.

OLIVEIRA, D. Os comportamentos de dependência e de independência


do primogênito e as percepções maternas no contexto de gestação do se-
gundo filho. Dissertação de mestrado não-publicada, PGPD, UFRGS, 2006.

OLIVEIRA, D.S.; LOPES, R. C. S. Regressão e crescimento do primogênito


no processo de tornar-se irmão. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.
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PEREIRA, C.; PICCININI, C. O impacto da gestação do segundo filho na


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dução M. B. Cipolla. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Original
publicado em 1965).

56
NELSON FERREIRA
CRP 06/127710
(11) 98213-8994
nelson.psicologo@yahoo.com.br
NelsonFerreiraPsicologo
www.nelsonferreirapsicologo.com.br

• Graduado em Psicologia pela (UNIP) Universidade Paulista

• Curso de extensão: Família: Origens, transformações na contemporaneidade


e seus efeitos na educação escolar - (PUCSP) Pontifica Universidade Católica
de São Paulo

• Pós-graduação: Neuropsicologia - (Uniara) Universidade de Araraquara

• Psicólogo Clínico: atendimento de crianças através de atuação lúdica. - Sinto


imenso prazer diante da oportunidade de fazer parte da magia do mundo
infantil contribuindo com seu desenvolvimento e ajudando a criança a lidar
com suas dificuldades e angústias envolvendo diversos problemas educacio-
nais, familiares e sociais.

57
A Criança e o Processo de Socialização

“O Sujeito se constrói na interação entre objetividade e subjetividade e


coletividade, de acordo com a afirmação de que a realidade interna e a
realidade externa se compõem na experiência de viver”. Essa afirmação de
Winnicott (1994) vai se fazer presente em todo este texto, é um conceito
fiel sobre representação social. E pensando no processo de socialização da
criança, acredito na relação entre aprendizagem por meio da experiência
vivida e o meio ambiente influenciando nesta socialização.

Este texto tem o objetivo de mostrar as inúmeras possibilidades de con-


vivência da criança que contribui com o processo de socialização, por
intermédio de um diálogo simples, claro e objetivo para que possamos
entender e ajudar os pequenos a lidarem com os desafios que agem como
preparo para uma vida.

O processo de aprendizagem de uma criança começa muito cedo. Desde


antes de seu nascimento já é possível perceber interação dela com os
fatores externos à barriga da mãe, a resposta da criança aos estímulos
recebidos é, muitas vezes, imediata. Seja pela percepção de ruídos com
a voz dos que falam, ou tato das pessoas que tocam a barriga da mãe,
ou um posicionamento da mãe que possivelmente incomoda o bebê e
acaba por se mover na intenção de ficar mais confortável. Essa interação
entre bebê e fatores externos já pode ser percebida como uma tentativa
de socialização.

Após o nascimento podemos perceber o ambiente influenciando no seu


aprendizado, notando a capacidade da criança aprender pela interação
com as demais pessoas. Assim, percebemos sua socialização com o am-
biente em que está inserida em situações rotineiras de sua vida. O ato de
chorar quando sente fome, pode ser um ótimo exemplo de socialização,
porque ao chorar, inconscientemente, a criança está utilizando os recur-
sos aprendidos para atrair pessoas que compreendem o seu interesse e,
assim, facilitem aquisição do que ela deseja. Para se comunicar, o bebê
estabelece uma relação de vínculo na fase anterior e, depois, desenvolve
esta forma primária de expressão de cargas emocionais; o choro é um
sinal de vinculação. Mais tarde, a criança entenderá que é um indivíduo e
não uma extensão da mãe, o que gera certa ansiedade devido ao processo

58
de separação. Apesar de ser muito importante para o processo de socia-
lização da criança, esse é um período que requer nova adaptação, pois ao
ser deixada com outra pessoa ou na creche, a criança deverá se acostumar
a essa ausência e aprender que a mãe se afasta, mas retorna algum tempo
depois. Mais adiante, a criança começa a escolher as pessoas com quem se
relaciona: não vai no colo de qualquer pessoa, estranha algumas outras,
passa a selecionar alguns amigos, etc. Dessa forma, sinaliza se percebe
como um indivíduo e que está se desenvolvendo de maneira saudável.

Podemos perceber outro sinal de socialização quando, por exemplo,


durante um almoço de família, a criança estende os braços solicitando
o colo de um adulto com a intenção de olhar de um ponto mais alto se
há algo sobre a mesa que lhe interessa. Atitudes semelhantes a essas se
repetirão na criança durante seu desenvolvimento em outras situações,
não é difícil fazer comparação desses comportamentos com outras situa-
ções de relacionamento entre adultos que se utilizam de investimentos
afetuosos em troca de benefício do objeto desejado. O aprendizado da
criança estabelece padrões de relacionamentos com o meio ambiente, e
estes padrões podem influenciar às suas relações futuras.

As regras e a disciplina as quais a criança está submetida, geralmente


impostas pelos pais, contribuem imensamente no seu processo de so-
cialização. Um aprendizado que está intimamente relacionado aos seus
gostos e desejos, e que evidencia possibilidade de teste de autoridade
de seus pais. Os resultados destes testes e suas consequências validarão
estas relações. Nesse contexto, as crianças desenvolvem habilidades, es-
tabelecendo especificações próprias de sua personalidade. O que antes
era uma dependência absoluta em relação ao ambiente físico e emocio-
nal se transforma em uma independência conhecida pela criança que,
gradualmente, adquire a capacidade de expressar sua vontade quando
necessita de atenção.

Durante o processo de desenvolvimento das crianças, as relações sociais


vão se estabelecendo de uma forma muito simples e objetiva, sem julga-
mento de certo ou errado, testando vários padrões de relacionamento.
A criança está em processo de aprendizagem, todas as relações são per-
mitidas, não existe ainda uma definição do que é certo ou errado, é na
interação com o adulto e o ambiente que as regras são definidas, e por
meio da rotina, esta criança vai se permitir experimentar diversas formas

59
de se relacionar com o mundo. A criança nutre um afeto, um sentimento
interindividual de respeito pelos indivíduos que julga superiores a ela
como pais e professores. Diante disso, podemos perceber a possibilidade
de socialização da criança na sua rotina diária: durante seu convívio é
necessário estabelecer uma forma de negociação com seus cuidadores,
para que possa experimentar outras formas de vivenciar tais experiências,
além das que são determinadas por regras impostas por esses cuidadores.

Olhando pela ótica de construção, desenvolvimento e socialização, po-


demos perceber esta tentativa de negociação como fator positivo, porque
isso contribui com a capacidade da criança de se relacionar com am-
biente, defendendo seus interesses, socializando com personagens que,
muitas vezes, têm perfis que diferem do seu, pessoas que já tem tudo
pronto, já estabeleceram uma rotina e tentam reproduzi-las na rotina
das crianças. E geralmente é nesse em que os conflitos ocorrem, pois as
crianças estão em busca de autonomia e precisam do equilíbrio de uma
rotina pré-definida pelo adulto.

Essa autonomia vai de encontro a um sentimento de aceitação em uma


sociedade marcada por regras sociais que eles ainda não conhecem, mas
que necessitam conhecer. Assim, buscam intermédio da criatividade,
uma forma de compreenderem tais regras, treinando e reproduzindo
por meio de brincadeiras. Dessa forma, eles vão percebendo da forma
mais simples, que o processo de socialização já começou.

No âmbito familiar, com a necessidade de dividir o espaço com outros


membros e ter que se adaptar a uma rotina, ainda tentando validar o seu
espaço como sujeito pertencente a aquela família, a criança deve desen-
volver-se buscando nas relações uma referência que sirva como modelo
a ser seguido. A mãe é capaz de desempenhar esse papel.

A imposição de limites durante a infância principalmente pelos pais,


também contribui com o processo de socialização. O sentimento de frus-
tração vivenciado pelas limitações impostas é que vão ajudar a criança
a entender a necessidade de aceitação das regras e leis.

Faz sentido pensar que a criança desenvolve e até reproduz modelos


educacionais por meio das relações. Podemos citar, por exemplo, a inte-
ração das crianças com os animais de estimação: quando eles aplicam o

60
que aprendem, geralmente se colocando no papel de pais de seus bichos,
geralmente tratam o animal semelhantemente ao tratamento que recebe
dos pais, é uma forma de mostrar um empoderamento. Embora este
sentimento seja inconsciente, elas assumem esse poder que aprenderam
dos pais que ditavam as regras. A criança tem, a partir daí, a oportuni-
dade de transferir para seu animal de estimação a mesma fala de seus
pais, a mesma postura, as mesmas disciplinas, as mesmas regras, como
se fossem dela. O processo de socialização da criança com os animais
não se limita a isso apenas, precisamos concordar que a criança, assim
como recebe dos pais, tem a capacidade de oferecer aos animais, edu-
cação, carinho, amor e dedicação para o bem-estar desta relação sem
condicionais. Afinal, as crianças acreditam que na hierarquia familiar
elas não são as últimas, acham que são os responsáveis por garantir o
bem-estar de seus animais como se eles fossem seus filhos. O mesmo
ocorre com irmãos caçulas ou crianças menores.

A segurança que uma boa estrutura familiar proporciona no desenvolvi-


mento infantil também contribui para seu aprendizado e, consequente-
mente, com sua socialização. A interação entre parentescos da criança
tem grande influência nesse processo: o compartilhamento de ideias
durante um dia de convivência com os primos, tios e avós da criança
possibilita uma interação entre personagens muitas vezes bem diferen-
tes uma das outras, momento que as diferenças culturais e sociais não
importam. Mesmo os conflitos são bem revolvidos entre eles, o que tam-
bém contribui para o processo de socialização, pois estão aprendendo a
lidar com frustrações, angústias, divergência de ideias, fazendo acordos
e negociações.

Os conflitos envolvendo a criança durante o ato de brincar, que muitas


vezes são vistos pelo adulto como desnecessário, na verdade têm grande
contribuição no processo de socialização; é neste momento que a criança
lida com seus maiores desafios e, muitas vezes, se vê sozinha para resolvê-
-los. Pela divergência cultural envolvendo duas ou mais crianças, quando
ocorre algum conflito, eles são obrigados a se posicionar, negociar, recuar,
avançar, se frustrar, se valorizar ou se decepcionar durante a interação e,
consequentemente, poder continuar fazendo parte de um grupo. Esse pro-
cesso faz com que a criança aprenda a lidar com a multiplicidade cultural
que o acompanhará durante toda a vida.

61
A criança, pelo processo de socialização, desenvolve habilidades cog-
nitivas, capacidade de relacionamento, percepção de lugar no mundo,
visão do papel que ocupa na sociedade, a interação entre personagens e
sua diversidade cultural, compreensão de mudança e evolução global e
sua capacidade de adaptação, aceitação de suas limitações, exploração
de suas capacidades e criatividades, autoconfiança, segurança em si mes-
ma, resolução de conflitos, capacidade de lidar com fatores emocionais,
tolerância, frustrações, respeito ao próximo, interação saudável com au-
toridades, capacidade de organização, preservação, evolução... enfim, são
muitos os benefícios que o processo de socialização é capaz de produzir
no desenvolvimento da criança.

Embora o processo de socialização ocorra tanto na escola quanto na fa-


mília, é importante entender que o papel da escola é acadêmico enquanto
o papel da família é educacional, ou seja, possuem responsabilidades
distintas. No entanto, precisamos considerar que há uma confusão de
responsabilidades em ambos os setores. Assim como percebemos a es-
cola transferindo para a família a responsabilidade acadêmica, também
percebemos a família transferindo para a escola a responsabilidade de
educação. Com isto, vemos profissionais que assumem esta difícil missão
de educar e famílias sentindo-se despreparadas para ensinar. Olhando
para esta inversão de papeis e como ocorre a socialização da criança na
escola, percebemos que muitos dos adultos que trabalham com crianças
e que também são pais, mães, tias, tios, avós, avôs, e por amor a profissão
sem julgar as consequências, aceitam esta responsabilidade transmitin-
do para a criança um conceito de valor preparando-a para enfrentar a
sociedade. Como exemplo dessa interação, podemos pensar no papel da
professora, pois a criança tem um sentimento muito íntimo com esta
profissional, ocorre um estreitamento dos laços afetivos, de maneira que
a criança poderá buscar atender uma demanda afetiva que não é recebida
em casa, em muitos casos a criança fica mais tempo com a professora do
que com a própria mãe e isto lhe dá uma imensa importância no processo
de socialização.

Novas referências ainda surgem no ciclo de relacionamento da criança


quando pensamos na interação social por meio da internet. As mídias
sociais já estão influenciando e atingindo o público infantil, que amplia
a capacidade de interação com este mundo existencial na forma virtual,
ignorando completamente as limitações geográficas e culturais. Essa

62
interação com o mundo utilizando-se da tecnologia possibilita aos pe-
quenos um relacionamento mais próximo com outras pessoas, além de
influenciar e serem influenciados por diversos conteúdos.

Durante a adolescência, acontece algo muito interessante no processo


de socialização, visto que o adolescente está vivenciando uma etapa da
vida considerada como transição entre o ser criança e o vir a ser adulto.
Passando da dependência infantil à aquisição da autonomia, influen-
ciados por modelos parentais de relacionamento, o adolescente entrará
em contato com mudanças significativas em seu jeito de pensar. Vejo a
adolescência como um período de experimentação de valores, de papéis
sociais e de identidade marcada pela ambiguidade de ser criança e ser
adulto. A cultura em que este adolescente está inserido diz muito sobre a
forma de socialização, pois tende a promover modificações nas formas de
relacionamento entre os jovens, suscita maior necessidade de pertencer
a um grupo, podendo deixá-los mais suscetíveis a outros riscos. Dessa
forma, os adolescentes redefinem sua identidade social.

Diante disto, penso que as relações familiares saudáveis precisam ser


protagonistas no processo de socialização da criança e, principalmente,
no período da adolescência. A família que baseia suas relações no diálogo,
na participação, na igualdade e na compreensão de todos os membros e
resolve seus conflitos de forma afetuosa e acolhedora, proporciona ao jo-
vem a capacidade de sentir-se confiante na tomada de suas decisões. Nas
suas relações futuras terão como parâmetro o relacionamento saudável
com seus pais, e esta forma de relacionamento fortalece o processo de
socialização do indivíduo. Precisamos refletir que as relações familiares
servem de pilares para as demais relações que a criança vai estabelecer
com o mundo, buscando formas de tornar as relações familiares mais
harmônicas e saudáveis.

63
Referências Bibliográficas

A construção do eu na modernidade: da Renascença ao século XIX – Um


texto didático. Ribeirão Preto: Holos, 1998. p. 27.

A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes,


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Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva,


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WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Mé-


dicas, 1994. p. 3.

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so>. Acesso em: 23 ago. 2019.

64
LAURA BORGES
CRP 06/121033
(11) 98213-5410
lauraborgespsi@outlook.com
@psicologalauraborges
Laura do Carmo Ferreira Borges

• Psicóloga inscrita sob o CRP 06/121033

• Graduada em 2013 pela Universidade Cruzeiro do Sul

• Pós-graduada em Gestão Estratégica de Pessoas, em 2017 pelo SENAC

• Psicóloga Clínica, com foco em atendimento a adolescentes, adultos e casais

• Atua na Terapia e Psicoterapia Breve, com a abordagem Psicanalítica

• Realiza orientação vocacional e de carreira

• Em empresas, atua como Psicóloga com foco em Desenvolvimento Humano


e Organizacional.

65
A Criança como Membro de Uma Família Ampla: Relação
com Madrasta/Padrasto e Meios-Irmãos

A Psicologia e outras áreas das ciências humanas pesquisam e debatem


sobre as mudanças que ocorreram na família, em especial nas últimas
décadas. Uma dessas mudanças está relacionada ao referencial histórico do
modelo de família tradicional, também conhecida como nuclear, composta
por pai, mãe, filhos e irmãos.

Com o passar do tempo o modelo de família modificou-se e atualmente nos


deparamos mais frequentemente com casos de divórcios e separações, bem
como com a formação de novas famílias, conhecidas como “recasadas”.

A família nuclear é composta por dois adultos e um ou mais filhos, todos


relacionados aos pais (biológicos e/ou adotivos). Já a família recasada é
formada também por dois adultos, porém os filhos trazidos para esta nova
família são relacionados com um dos membros do casal.

A família recasada pode ser composta após viuvez, divórcio ou separa-


ção, na qual posteriormente um ou ambos assumem uma nova união.
Nesta nova união, um ou ambos, trazem pelo menos um filho da relação
anterior, sendo este o tipo mais comum. O mais complexo é quando os
dois possuem filhos do antigo relacionamento. Porém, nas duas situações
podem existir um desafio importante: o relacionamento dos filhos com a
madrasta, padrasto, meios-irmãos, avós e outros integrantes da família,
ainda não conhecia pela criança (que também podem interferir na sua
educação e relacionamento).

Após a separação, o vínculo da criança com o pai ou a mãe separado(a)


que mora com ele, frequentemente pode tornar-se mais intenso, podendo
dificultar a aceitação por parte dos filhos de um novo membro na família.

Uma outra diferença entre as duas composições familiares é que na tra-


dicional as tarefas parentais geralmente são de responsabilidade do casal
(educação, finanças e afetividade são exemplos), enquanto que na família
recasada os cuidados com os filhos podem ser compartilhados por mais
pessoas: geralmente os pais em conjunto com um padrasto ou madrasta,

66
podendo acarretar em um maior desafio na educação da criança e até
mesmo na assimilação das informações transmitidas para ela.

Os papéis de mãe, pai, avós, irmãos, tios, entre outros, são claramente
definidos na família tradicional, enquanto que na recasada, não há uma
uma definição plausível. No caso do padrasto e madrasta pode ocorrer
o anseio de se envolverem na educação e responsabilidades quanto aos
cuidados dos enteados, contudo, é importante compreenderem que este
papel cabe aos pais e se estes estiverem confortáveis, poderão envolvê-los
nestes assuntos.

É neste momento que surgem dúvidas como: a madrasta e o padrasto


podem se envolver na educação do filho do parceiro?

Quando dúvidas como essas permeiam o casal, é de grande relevância o


diálogo entre eles para que se estabeleçam os limites quanto ao envolvi-
mento na educação do filho por parte do parceiro. Logo após o recasa-
mento, o foco precisa estar no acolhimento e na adaptação às mudanças
que o pequeno enfrentará, sejam estas em relação ao padrasto, madrasta,
meios-irmãos ou até mesmo de outros membros da família (tios, avós e
primos, por exemplo).

Nestes momentos, é de suma importância que além do diálogo entre o


casal, que os pais tenham proximidade e um bom relacionamento com seus
filhos para conversarem sobre esta nova fase. A criança precisa sentir-se
segura, acolhida e confortável, o que será primordial para o fortalecimento
dos laços afetivos com a família constituída.

Nos casos das famílias formadas após um divórcio ou separação, a criança


poderá ou não ter acompanhado de perto este período vivenciado por seus
pais, o que pode ter sido um momento delicado ou não em sua vida. Este
fator é relevante, pois ela levará consigo lembranças e sentimentos que
poderão influenciar na maneira de se relacionar com os membros que
fazem parte da nova família formada pelo pai ou mãe.

Outro fator que deve ser levado em consideração é a idade da criança.


Geralmente quando menores tendem a ter boas lembranças quanto ao
período de convivência com os integrantes da família recasada (tanto pa-
drasto, madrasta e/ou meios-irmãos), pois desde pequenos interagiram

67
com eles. Já as mais velhas ou adolescentes, podem ter memórias menos
agradáveis, já que compreendem mais claramente a separação dos pais e
podem permanecer do lado de um destes, sendo resistentes à convivência
com seu padrasto, madrasta e meios-irmãos.

Em alguns casos, os pequenos não aceitam positivamente o novo parceiro


do pai ou da mãe e travam com este uma “briga”, envolvida por ciúmes, bir-
ras, desobediência, entre outros comportamentos, que têm como objetivo
chamar a atenção para si, sentir que está controlando a situação e que não
está sendo “deixado de lado ou esquecido”. Comportamentos gerados pela
insegurança e medo do momento que estão vivenciando. Toda a mudança
causa certo desconforto, não é mesmo?

Um dos sentimentos que ocorre frequentemente quando a criança se re-


laciona bem e nutre boas emoções para com seu padrasto ou madrasta é
o de ser infiel ao seu pai/mãe, traindo-o ou magoando. Isto também pode
ocorrer no relacionamento com os meios-irmãos. Este sentimento ambíguo
pode agravar-se e gerar culpa na criança que o internaliza e, mais uma
vez, é relevante observar seu comportamento e estimular o diálogo, com
o objetivo de auxiliá-la no enfrentamento e na adaptação ao novo cenário.

Por outro lado, há também a percepção positiva de algumas crianças que


podem enxergar os pais felizes e tranquilos com sua nova relação, além
da perspectiva de sentirem-se pertencentes à uma família completa nova-
mente, o que pode lhes trazer um sentimento de segurança.

Também pode ocorrer o ciúme por parte do filho que vê o pai ou a mãe
relacionando-se com seus meios-irmãos: agindo de forma a chamar a
atenção dos pais, demonstrando superioridade ou, ao contrário, se tornar
mais introspectiva e carente. Nesses momentos, podem surgir pensamentos
como: “ele gosta mais dele do que de mim”, “porque ele pode fazer isso e eu
não?”. Um pouco mais adiante falaremos sobre algumas dicas que podem
auxiliar os pais e envolvidos, a fim de minimizar estes sentimentos.

Além disso, a criança inconscientemente pode incomodar-se com a separa-


ção de seus pais e vislumbrar a nova família como intrusos que querem to-
mar o lugar de seu pai, mãe ou irmãos. Por isso, os pais têm um importante
papel na vida do filho, buscando por meio do diálogo demonstrar que o
novo parceiro não está tomando o lugar do pai ou da mãe, mas ao contrá-
rio, uma pessoa que quer seu bem e que está ali para acolhê-la e apoiá-la.

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É comum que crianças com a mesma idade se relacionem melhor com
seus meios-irmãos, já que geralmente possuem gostos parecidos, brinca-
deiras e forma de comunicar-se equivalentes, identificando-se uns com
os outros. No caso de idades muito distintas, este será um novo desafio a
ser enfrentado: integrá-las e aproximá-las.

É preciso compreender que esta aproximação e relacionamento afetuoso


se dará com o tempo e quanto mais a família se integrar, socializar e se
dedicar a conhecer e compreender uns aos outros, mais fácil será essa fase
de adaptação.

No recasamento é comum a expectativa de que o relacionamento entre seus


integrantes seja positivo e não conflitante. Por vezes, os pais almejam que a
criança aceite de forma imediata o novo parceiro e/ou seus meios-irmãos.
Nesta fase inicial o papel parental deve ser desenvolvido pelo pai/mãe e
não pela madrasta ou padrasto. Com o passar do tempo e da idade dos
enteados, pode haver o desenvolvimento da confiança entre a criança e
estes e o papel do padrasto/madrasta se tornar mais ativo.

É neste momento crucial, no início da convivência com os membros


da família recasada, que as figuras parentais têm uma função de suma
importância na vida dos pequenos, fazendo-os sentirem-se acolhidos,
pertencentes e seguros ao lado desta família. Eles possuem a missão de
demonstrar para o filho a imagem positiva de seu novo relacionamento e
envolvê-lo em atividades com a família que despertem nela o interesse e
a alegria em estar com eles.

Não há uma receita infalível para que a relação da criança com os mem-
bros da família recasada seja mais fácil, mas há algumas atitudes por parte
dos pais e também do parceiro destes que podem auxiliar no manejo das
relações, fazendo com que o convívio seja menos conflituoso e prazeroso
para todos. Aqui deixo algumas dicas e reflexões para os pais, madrastas
e padrastos:

Lazer em Família: envolver a criança em momentos de lazer junto com


seus meios-irmãos, madrasta e padrasto. Seja em festas, passeios em par-
ques, cinema, shopping, entre outras atividades que podem ser feitas em
casa (preparar o almoço, assistir a um filme juntos, etc.), com o objetivo
de inseri-la afetivamente na família.

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Brincadeiras: brinque com seu filho, envolva os meios-irmãos nas brin-
cadeiras e crie um momento em que possam interagir uns com os outros
(opte por atividades em que todas as crianças, independentemente da idade,
possam ser inseridas). Envolva o parceiro neste momento de descontração.

Pequenas escolhas: permita que a criança participe das escolhas que en-
volvem a decoração do quarto, roupa de cama, brinquedos, etc., mesmo
que ela frequente ocasionalmente a casa ou que divida o ambiente com
outras pessoas, é interessante que se sinta pertencente à família e que tenha
seu próprio espaço na residência (decorar o quarto com objetos pessoais,
brinquedos que mais goste, porta-retratos, são opções interessantes).

Para as madrastas e padrastos: seja cuidadoso em relação aos comentários


que envolvam o pai/mãe ou irmãos do enteado. Muitas vezes, o melhor
é guardar a opinião para si mesmo ou conversar com um terapeuta ou
psicólogo sobre suas emoções e pensamentos. Como falamos, a tendência
da criança é ser fiel aos pais e esse tipo de comportamento pode prejudicar
o relacionamento entre vocês ou até mesmo afastá-la.

Ouça, acolha e reflita antes de responder: quando a criança disser à ma-


drasta ou ao padrasto que ele não é sua mãe/pai, que “não manda” nela ou
frases de enfrentamento, respire fundo e lhe diga que você não é a mãe/
pai, mas uma pessoa que preocupa-se com ela. Responda positivamente
e tente não ser reativo. Vale conversar com seu parceiro sobre o ocorrido.

Crie regras e explique-as: as crianças precisam saber que existem regras


e que na casa do pai é de um jeito e na mãe pode ser de outro. Expliquem
para ela e deem espaço para que pergunte e esclareça suas dúvidas.

Igualdade: é importante tratar a todos com igualdade, sem exceções ou


privilégios entre meios-irmãos. Isso evitará desconforto e conflitos entre
eles (isso vale para hora de dormir, estudar, brincar, mesada, sobremesa...).

Aproxime-se e conquiste a confiança: é comum as crianças testarem a


autoridade da madrasta, padrasto, podendo compará-los ao pai ou à mãe. É
importante usar de sua compreensão e não levar o assunto para o lado pes-
soal. Busque conhecer os gostos do enteado, assuntos em comum e encontre
formas de criar vínculo com ele. Peça ajuda do parceiro e pergunte a ele o
que a criança gosta, como é sua personalidade, quais assuntos lhe interessam.

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O diálogo do casal: conversem sobre o que caberá financeiramente a cada
um, esclareçam o que podem ou não em relação aos enteados. Façam per-
guntas sobre as dúvidas que possuam acerca do assunto:

• Qual é meu limite na relação com o enteado?

• Posso chamar a atenção se estiver desobedecendo a alguma regra?

• Qual é o meu papel nesta relação?

• Delimitem o espaço um do outro na relação com o enteado e em caso de


dúvida, discutam sobre os assuntos.

Em qualquer relacionamento a empatia deve ser utilizada. Colocar-se no


lugar do outro e buscar entender o que ele está passando é uma boa alterna-
tiva para aliviar as tensões. Se para nós adultos essa adaptação pode ser ex-
tremamente difícil, imagine para a criança que está passando por tudo isso?

Lembre-se também que o fardo pode ser pesado e difícil de carregar e que
não há mal algum em pedir ajuda. Para auxiliá-lo a trilhar este caminho
existem diversas alternativas: conversar com o parceiro, com o professor
da criança pedindo-lhe orientações sobre a melhor forma de enfrentar este
desafio, ler e pesquisar sobre o assunto ou buscar o apoio de um profissio-
nal, como, por exemplo, um psicólogo ou pedagogo. Não se sinta sozinho.

O mais importante na configuração da família ampla é que os membros


se sintam pertencentes, acolhidos, seguros e busquem a harmonia por
meio do respeito e da compreensão. Para que isso ocorra, é necessário
perseverança e paciência por parte de todos os envolvidos.

71
Referências Bibliográficas

COSTA, J. M.; DIAS, C. M. S. B. Famílias recasadas: mudanças, desafios


e potencialidades. Psicologia: teoria e prática, v. 14, n. 3, p. 72-87, 2012.

OLIVEIRA, A. L. Irmãos, meio-irmãos e co-irmãos: a dinâmica das re-


lações fraternas no recasamento. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.

Os conflitos da nova família. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.


com/Revista/Epoca/0,,EDG83741-6014-522,00-OS+CONFLITOS+DA+-
NOVA+FAMILIA.html>. Acesso em: 14 de jul. 2019.

SOUSA, D. H. M. A. V.; DIAS, C. M. S. B. Recasamento: percepções e vivências


dos filhos do primeiro casamento. Estudos de Psicologia. Campinas, 2014.

TRAVIS, S. Construções familiares: um estudo sobre a clínica do recasa-


mento. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Rio de Janeiro, 2003.

72
RAFAELA DI GUIMARÃES
CRP 01/13804
rafadigui@gmail.com
@donoqueviralaco
www.facebook.com/donoqueviralaco

• Psicóloga inscrita sob o CRP 01-13804, formada pela PUC-GO, em 2000

• Psicanalista infantil. Terapeuta de crianças e adolescentes atuando na clínica


desde 2001

• Psicopedagoga pelo EPSIBA- Buenos Aires, sob a supervisão da mestra


Alicia Fernández. Neuropedagoga – Instituto Saber

• Proprietária do SEMEAR Espaço Psicoterapêutico, em Brasília- DF

• Palestrante e facilitadora de grupos de pais. Idealizadora do projeto “Escola


de crescimento para pais”, juntamente com a psicóloga Cibele P. Vogel

• Idealizadora e coautora da página “do nó que vira laço”- Espaço de Conexão


entre Pais e Filhos

• Coautora no livro “Conectando Pais e Filhos”, sob a coordenação de Aline


Cestaroli, Editora Conquista, 2019

• Mãe da Ingrid, do Gustavo e do Gabriel.

73
A Entrada no Universo Escolar, e os Desafios Desta Fase

Parece que foi ontem, as noites mal dormidas, o choro que parecia que nunca
acabaria, os remédios de cólica que nunca davam certo, as mamadeiras, pa-
pinhas, suquinhos. Em um piscar de olhos, os primeiros passos, as primeiras
palavras, o desfralde e um mundo de desafios.

Chega o tempo da escolinha! Agora: lancheiras, mochilas, livrinhos, cader-


ninhos... a escola, muitas vezes é um divisor de águas na vida de nossos pe-
quenos. Sutilmente inaugura o “tempo de crescer”. Muitas vezes, a escola é o
primeiro estabelecimento físico de convívio social, que possui regras de rotina
e convivência, em que a criança se insere. Nela ocorre um grande encontro, de
vários universos particulares. Ocorre ali, uma junção de famílias, de valores,
de seres e de personalidades. Todos, em um mesmo lugar chamado ESCOLA.

É na da escola que, muitas vezes, teremos que lidar com algumas questões,
antes para nós desconhecidas. Bem-vindos, então, ao universo escolar!

Para algumas crianças, o início será muito angustiante, e o choro na hora de


ficar na escola, será inevitável. O choro recorrente nos primeiros dias ou meses
escolares caracteriza a famosa “angústia de separação”, momento em que a
criança fica excessivamente ansiosa quando separada dos pais. As crianças
que apresentam esse comportamento sentem-se inseguras e desprotegidas
sem a presença dos pais por perto. Quando o ambiente escolar é o primei-
ro “local físico de separação”, esta pode ser uma reação corriqueira diante
da angústia experimentada. Fica implícito um medo de ser abandonado, e
podem surgir outros sintomas, como: palpitações, pesadelos, enurese, dores
somáticas, etc. Esse quadro de sintomas, incluindo o choro recorrente, tende
a desaparecer, à medida em que a criança se sente segura na escola, e também
se sente capaz de permanecer, por um período de tempo razoável, longe das
figuras materna e paterna. Em alguns casos, pode ser prudente uma ajuda
psicoterápica, para o fortalecimento de suas emoções, e para que prossiga
bem na adaptação escolar.

É importante que desde os primeiros passos, a criança seja estimulada à


autonomia e à autoconfiança, aspectos que devem ser revistos pela mãe, pois
sua insegurança também pode refletir nos comportamentos dos pequenos.
Dessa forma, é importante que tanto a mãe quanto a criança sejam sempre
encorajadas ao crescimento físico e emocional, e não fiquem presas às teias
da insegurança e da superproteção.

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Ensine a criança a enfrentar os desafios, e quando não puder superá-los, ensi-
ne-a á ser resiliente. A autonomia é a chave para se ter autoestima e acreditar
em si mesma. Tudo isso pode ser feito por meio de brincadeiras, das tarefas
do dia a dia, e da rotina. Seja verdadeiro em suas colocações, cumpra o que
prometer e, se não puder cumprir, renegocie. Ensine seu filho a acreditar
em você, isso será muito importante para que ele acredite que você voltará à
escola para buscá-lo. Não reprima, nem critique a fragilidade que pode surgir
no momento da iniciação escolar. Reconheça essa angústia como legítima,
e fortaleça a criança; sempre no caminho do enfrentamento e crescimento
emocional; prosseguindo para novas etapas.

Existem crianças que, de outro modo, não demonstram angústia de sepa-


ração no momento de ficar na escola; porém nos primeiros meses escolares,
apresentam uma crescente agressividade para com os colegas. Batem, chutam,
cospem, puxam cabelos... na maioria das vezes, agridem a “troco de nada”.
É claro que as agressões não ocorrem “por nada”, mesmo que não percebam
motivos aparentes, eles sempre existem. Pode ser apenas uma forma (não
adequada) de demonstrar suas angústias e conflitos, porém pode também ser
um transtorno; ou um sinal de dificuldade para se adaptar ao novo contexto.
Como já disse, a escola reúne personalidades e universos emocionais bem
diferentes, e a junção de todos eles, pode não ser sentida de forma agradável
e confortável para todos.

A raiva é um sentimento aceitável; porém a agressividade não. Como edu-


cadores de tempo integral que somos, devemos propor à criança maneiras
de expressar sua raiva, de forma que ela não machuque ninguém e nem a si
mesma, e tampouco estrague ou quebre nenhum objeto. Estes deslocamentos
da raiva vão variar sempre, de acordo com o ambiente em que a criança se
encontrar em tais momentos. Em casa, poderá deslocar sua raiva de certas
formas, na escola e na rua de outras formas, e assim por diante. O importante
é que sejam combinadas, maneiras aceitáveis para a criança expor sua raiva,
de forma que se sinta “autorizada” e não culpada, ao demonstrá-la.

Sentir raiva é um sentimento legítimo, inerente a qualquer ser humano. A


maturidade e a demonstração de crescimento emocional vêm por meio destes
deslocamentos aceitáveis, para demonstrar tal sentimento. E, mais uma vez,
sinalizo: se a agressividade persiste e as estratégias adotadas parecem “não
funcionar”, procure ajuda psicoterápica. Em algumas situações os sintomas
que a criança apresenta sinalizam apenas a ponta de um iceberg, e precisamos
de ajuda para cuidar do real conflito que pode habitar por trás dos compor-
tamentos agressivos demonstrados.

75
É claro que para convivermos em sociedade, precisamos nos adequar a rotinas
e regras. Um bebê ao nascer, já se insere em um mundo de regras, e horários
necessários para seu crescimento e desenvolvimento saudável. A escola terá
o papel de ensinar, e aos pais sempre caberá o papel de educar. Cada família,
assim como cada escola, possui suas regras disciplinares e de convivência,
assim como suas rotinas particulares que precisam ser respeitadas. É impres-
cindível que a criança compreenda e acate tais regras, pois isso legitima sua
autonomia. Sua capacidade de querer fazer o certo, de respeitar os colegas, os
professores e também a si mesma, precisa ser movido por um querer interno
e não necessariamente por reguladores externos. O SIM e o NÃO, o PODE e
o NÃO PODE, o CERTO e o ERRADO, o BOM e o RUIM, o comportamen-
to ACEITÁVEL e o comportamento INACEITÁVEL, devem ser ensinados
desde muito cedo, para que possam fazer parte de suas condutas e valores
na prática por onde for. O meio social, sem dúvida, proporcionará pela vida
toda situações desafiadoras, em que nosso conteúdo interno será de extre-
ma importância, na condução de nossos pensamentos, sentimentos, ações e
reações. Portanto, a capacidade de se autocontrolar, deve ser estimulada a se
desenvolver desde muito cedo na criança.

Nós, pais, somos responsáveis em preparar nossos filhos para a vida, para
serem autônomos e confiantes. E, nesse caminho, o AMOR é imprescindível;
mas só o amor não basta! Vários ingredientes emocionais são necessários:
regras geram segurança e confiança e, sem dúvidas, não somente a escola,
mas a vida nos exigirá tais capacidades.

Geralmente, é no início da escolaridade, que os primeiros traços e rabiscos


mais elaborados, são produzidos. A partir desse momento, a coordenação
motora fina, será precisamente desenvolvida; e posteriormente exigida. Para
que esta coordenação seja estimulada, deixo aqui algumas dicas:

• Brinque com seu filho de blocos de encaixe, de toquinhos de


madeira, e de lego.

• Brinque de tampar e destampar vasilhas plásticas, garrafas


PET, tubos de pasta de dente.

• Brinque de encher e esvaziar conta-gotas e seringas.

• Brinque de massinha, de argila, de tinta.... Use tinta com os


dedos, com cotonetes e com pincéis.

• Monte quebra-cabeças.

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• Pinte com giz de cera (grosso e fino).

• Rabisque com giz na calçada e na lousa.

• Faça colarzinhos com macarrão e com miçangas.

• Brinque de rasgar papéis e depois de recortar revistas.

São várias as maneiras de estimular e trabalhar a coordenação motora fina


da criança! Sem dúvidas, todos esses estímulos serão importantes na prepa-
ração para a escrita.

As capacidades de aprendizagem da criança podem e devem ser estimuladas


em casa, nos passeios, nas brincadeiras, etc. Os cinco primeiros anos de vida
são essenciais para o desenvolvimento cerebral. Nossas janelas de inteligên-
cia começam a se abrir desde a vida pré-natal; e tem o seu ápice dos dois
aos seis anos de idade. A criança precisa ser estimulada, e ao mesmo tempo
respeitada de acordo com seu nível de maturidade, a fim de que o processo
de aprendizagem possa fluir.

Para Vigotsky, um indiscutível meio de aprendizagem é o brinquedo, so-


bretudo as brincadeiras do tipo “faz de conta”, em que a criança fantasia
situações e vive experiências imaginárias. O brincar é a primeira e talvez
a mais importante atividade, por intermédio da qual nos desenvolvemos e
nutrimos nossa capacidade de ATENÇÃO e FOCO.

O brincar permite a construção da subjetividade e da singularidade da crian-


ça. É brincando e imaginando que podemos “transformar realidades”, ini-
ciando o processo das construções de pensamento, extremamente necessárias
para a aprendizagem.

Citando Alicia Fernandez:


“Através do brincar, vai se construindo o corpo, e vai-se experienciando a
autoria gestual. O bebê, atendendo a si próprio ao ser atendido, vai desen-
volvendo a atividade atencional(...) É no fazer, que a criança vai construindo
a inteligência e a capacidade de atenção”.

Portanto, não esqueça de que entre as atividades que fazem parte da rotina
da criança precisa existir o tempo para brincar. Porém este brincar precisa
ser saudável, e não eletrônico. Os tablets e aparelhos eletrônicos estimulam
o aumento da ansiedade, acelerando o pensamento, e podendo acarretar
prejuízos no sono e na aprendizagem (dificuldade de foco, por exemplo).
Não podemos deixar que se perca a capacidade da livre imaginação, e da
construção dos pensamentos, que ocorre por meio do livre brincar.

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Proporcione este espaço para o livre criar, incentive os diálogos e fantasias,
respeite este momento tão rico e tão importante para a aprendizagem da
criança. E, se você se permitir se incluir neste universo imaginário de seu
filho, com certeza a experiência será muito mais significativa!

Meninos e meninas, homens e mulheres, pensam e sentem de maneiras diver-


sas e muitas vezes diferentes; pois sua organização cerebral possui diferenças
estruturais profundas. A carga genética que trazemos, e os estímulos am-
bientais que recebemos influenciarão na aprendizagem, e em nossas reações
emocionais. Mas, a organização cerebral, com certeza, diferenciará muito os
interesses e habilidades de cada um.

Sabemos que os meninos possuem habilidades melhores que as meninas. Me-


ninos são melhores no raciocínio lógico, na pontaria, em localizações espaciais
e em atividades que envolvam ação. As meninas têm maior habilidade para a
percepção visual, coordenação motora fina, percepção emocional e fluência
verbal. As meninas costumam ser melhores “leitoras de sentimentos”, como
diz Celso Antunes.

Lembrando que toda regra tem exceção, e que cada SER é especial e único.
Como seres humanos que são, os filhos inauguram em nossas vidas uma viagem
imprevisível, inusitada e, muitas vezes, arriscada. Porém SURPREENDENTE!

Que possamos ser porto seguro para nossas crianças; nesta desafiadora jor-
nada da escolaridade, que nos reservará grandes desafios; e, no entanto, IN-
FINITAS POSSIBILIDADES!

Referências Bibliográficas
ANTUNES, C. A construção do afeto. São Paulo: Augustos, 2003.

Copyright, 1996. Delachaux ET Niestlé AS.

FERNÁNDEZ, A. A atenção aprisionada. Artmed, 2012.

PIAGET, J. O nascimento da inteligência. Zahar, 1970, 1975, 1978.

WEBER, L. Eduque com carinho. Juruá, 2007.

78
NATALY CORREIA
CRP 06/139562
(11) 96671-4558
natyevangelica@gmail.com
@natalycorreiapsico
Nataly Correia

• Psicóloga inscrita sob CRP 06/139562

• Pós-graduada em Psicopedagogia

• Analista do Comportamento

• Pós-graduanda em Intervenções Precoce, pelo CBI OF MIAMI

• Curso introdutório e avançado na metodologia Denver, pelo Mind Institute,


realizado no Canadá

• Acompanhamento de avaliações e aplicação de (VB-MAPP) em Miami

• Psicóloga Coordenadora na Equipe Mayra Gaiato

• Especialista em atendimento a pessoas com atraso de desenvolvimento em


geral e autismo

• Palestrante de cursos voltados para treinamento na ciência ABA e baseado


na metodologia Denver.

79
Dificuldade de Aprendizagem: É Possível Aprender
Mesmo Assim?

Essa é uma pergunta que muitas pessoas me fazem nas escolas, instituições e
até mesmo pais de crianças, pois geralmente queremos enquadrar o outro à
nossa forma de ver o mundo, não percebendo que cada pessoa tem sua forma
de acomodação e assimilação do conhecimento.

Para Piaget, todo ser humano é provido de inteligência, e por isso, toda criança
é capaz de aprender, usando-se da assimilação, ou seja, adaptando-se às no-
vidades por meio do que foi conquistado durante a vida. Já na acomodação,
um novo aprendizado pode ser construído modificando uma ideia que estava
fixada. Acontecendo, assim, uma mudança constante.

Apesar de ser um tema de extrema importância, pois a educação é o que pode


transformar o mundo, as questões relacionadas à aprendizagem só foram
colocadas em destaque com início das pesquisas entre os anos de 1950 e 1970.

Mas afinal, qual a diferença entre dificuldade de aprendizagem e distúrbio


de aprendizagem?

O termo distúrbio ou transtorno de aprendizagem tem sido usado para indi-


car uma dificuldade em receber conteúdos, para aquisição de novos aprendi-
zados, ou alteração importante na habilidade criativa para resolver situações
problema.

A dificuldade de aprendizagem também pode estar relacionada a fatores


externos, sendo eles: Socioambiental, indicando uma dificuldade em passar
o conhecimento ao aluno, seja por falta de técnica ou preparo. Em algu-
mas situações, o profissional não tem liberdade para passar o conteúdo de
uma forma diferente, essa dinâmica em passar o conteúdo é importante,
pois cada indivíduo aprende de um jeito. Algumas pessoas são mais visuais
e se beneficiam de imagem, vejo isso claramente com o público que atendo
que são crianças dentro do espectro autista que, em sua grande maioria, se
beneficia de imagem, pelo fato de ser algo concreto. No entanto, existem
pessoas, consideradas típicas (sem transtornos, deficiências ou distúrbios),
que jamais conseguiriam “se virar” em um aeroporto sem as indicações de
setas e mensagens visuais presentes.

Outras pessoas aprendem melhor ouvindo, ou por repetição e em alguns


momentos preferem até gravar a aula. Outro estilo de aprendizagem que é
possível notarmos no meio escolar são os alunos que aprendem por copiar
e quanto mais copiam, mais memorizam e assimilam o conteúdo. Há tam-

80
bém alunos que preferem falar, ou seja, compartilhar o que aprendeu dando
sentido a informação recebida e assim fixando o aprendizado. E por fim,
existem pessoas como eu, que gostam de movimento, assim atrelando uma
atividade física ou dinâmica de grupo, ou praticando o que lhe foi passado,
conseguem melhor adquirir um novo conhecimento.

Identificar o estilo de aprendizagem do aluno permite ao professor trabalhar


de forma individualizada, promovendo aos alunos um desenvolvimento
eficaz sem exceção.

Outro fator externo que pode fazer com que apareça uma dificuldade de
aprendizagem é a falta de motivação e emoção no conteúdo passado, pois
com motivação, sendo prazeroso e emocionante, há mais chances de um
aprendizado ir para memória de longo prazo. Por isso, é importante que os
alunos gostem do professor, pois a tendência é que ocorra uma associação e
eles tenham um desempenho melhor nas aulas.

Isso se confirma, pois, Piaget e Vygotsky, muito antes da comprovação da


Neurociência, já mencionavam a emoção, como fator importante no processo
de fixar a informação passada. Falta de infraestrutura, conforto e harmonia
também podem fazer com que um aluno tenha dificuldades de aprendizagem.

Além disso, é importante que o professor esteja atento às mudanças de com-


portamento do aluno, pois fatores externos como: separação dos pais, am-
biente que não seja suficientemente bom (em casa ou na escola), agressões
físicas e/ou psicológicas de qualquer tipo, entre outros fatores, podem fazer
com que o aluno tenha um rendimento abaixo da média. O ambiente aver-
sivo pode, sim, trazer danos a todas as áreas da vida se não forem tratados
com profissional adequado. Piaget descreve que a negligência, de qualquer
tipo pode desencadear lacunas no desenvolvimento cognitivo. Contudo,
percebemos que a prevenção é a melhor aliada para diminuir o número de
alunos com atraso significativo e dificuldade de aprendizagem, pois nem
sempre isso vem do aluno.

E quando a dificuldade é realmente um transtorno ou dificuldade de apren-


dizagem? O que fazer?

Primeiro, é importante que os pais estejam atentos ao desenvolvimento do


aluno durante todo ano letivo, pois as dificuldades nem sempre aparecem
somente nas notas finais de cada bimestre, podemos detectá-las acompa-
nhando as tarefas realizadas no dia a dia e participando das reuniões de pais.

Professores também podem ajudar e muito, se notarem as dificuldades de


aprendizagem em seus alunos, quantificando, fazendo o que o analista do
comportamento chama de análise funcional. Isso é feito a partir de anotações,

81
como, por exemplo: em quais momentos o aluno emite os comportamentos
de dificuldade, quais os estímulos que antecedem esse comportamento, qual
intervenção já foi realizada e se houve efeito. Tudo deve ser anotado, para
ter base, a fim de chamar o responsável pelo aluno e pedir que ele procure
um profissional, que com esses detalhes, avaliará se a criança tem algum
transtorno, deficiência, etc. Nesse momento, será possível a indicação de um
neurologista, psiquiatra infantil, psicólogo, psicopedagogo, fonoaudiólogo
ou outro profissional tecnicamente capacitado para lidar com essa situação.

Essa conversa com os pais deve ser franca, no entanto, acolhedora. Sabemos o
quanto é difícil, mas é a melhor forma para intervir com o intuito da criança
não acumular atrasos. Quanto mais precoce for a intervenção, mais maleável
o cérebro estará e, assim, compensará os atrasos, criando novos caminhos.
Tudo isso é possível graças à neuroplasticidade, mesmo diante de uma difi-
culdade a criança será capaz de aprender, se forem usadas técnicas baseadas
em evidências validadas cientificamente.

Existem diversos transtornos específicos de aprendizagem, também há outros


não diretamente ligados ela, mas que podem prejudicar a aprendizagem. Sendo
eles de acordo com DSM V:

Deficiência intelectual: pode existir sozinha ou associada a algum transtorno,


tendo diversos graus, e pode variar de leve a profunda.

Transtorno da linguagem ou fala: na qual a criança tem dificuldade


de comunicação.

Transtorno do espectro autista: prejuízo na comunicação verbal e não verbal,


linguagem associada principalmente à socialização, movimentos repetitivos,
por exemplo, flapping (movimentos de balançar as mãos e corpo) e brinca-
deiras estereotipadas, sempre da mesma forma, sem variar muito. Também
existem casos leve, moderado ou grave.

Transtorno de déficit de atenção com ou sem hiperatividade: são aquelas


crianças que se distraem muito facilmente, ou não conseguem finalizar uma
atividade, tendo dificuldade em alternar entre os estímulos, sem perder sua
linha de raciocínio. Aliada a isso, algumas crianças possuem também a hi-
peratividade e não conseguem ficar muito tempo paradas, inclusive, esses
alunos geralmente são mais notados pelo professor, por acabar “atrapalhando”
o andamento da aula.

Perturbação da aprendizagem específica: podendo apresentar dificuldade


na escrita, leitura e matemática.

82
Apraxia: dificuldade em pronunciar palavras, também pode atrapalhar por
não ser compreendido.

Com diagnóstico feito e com uma equipe multidisciplinar atendendo à criança,


será traçado um plano individualizado com metas esclarecidas. É importante
que a escola também seja orientada por esses profissionais, assim os ganhos
de aprendizagem desse aluno será aumentado. Em alguns casos, pequenas
adaptações no material ou na forma de passar o conteúdo podem fazer com
que o aluno seja beneficiado. A ideia é que com equipe, pais e escola traba-
lhando juntos possa ocorrer uma inclusão verdadeira.

Em alguns casos é benéfica a presença de um profissional que, neste caso,


pode ser um acompanhante terapêutico, o mesmo poderá ajudar a criança
como mediador e, além disso, poderá orientar o professor como interagir
melhor com esse aluno, poderá auxiliar também na adaptação dos materiais.

Em algumas escolas onde realizei reuniões e orientei os acompanhantes tera-


pêuticos de alunos com deficiência e/ou transtorno, realizei algumas pequenas
mudanças no ambiente geral e isso colaborou.

Para crianças com déficit de atenção e/ou hiperatividade, como autismo e


deficiência intelectual, ou questões ligadas à aprendizagem, sempre oriento o
professor que o mesmo escolha um lugar para a criança sentar, de preferência
longe da porta ou da janela, pois nesses espaços, geralmente, há barulhos
ou estímulos que podem competir com a aquisição de novos aprendizados.

Nos casos de crianças com dificuldade de fala, oriento junto ao fonoaudiólogo,


o uso do PECS (Comunicação por Meios de Trocas de Figuras), podendo,
assim, ajudar o paciente dentro das suas limitações, acompanhar e ir de en-
contro ao desenvolvimento dos demais alunos na parte pedagógica e, com
isso, favorecer também as relações sociais, promovendo um empoderamento.
Em todos os casos é importante reforçar, sempre, o esforço da criança e o
caminho que ela percorre até conseguir realizar uma atividade, pois quando
alguém acredita em nosso potencial e nos valoriza, isso faz com que por mais
que seja difícil, sentimos que não estamos sozinhos. O mais importante é que
o ambiente não seja aversivo e sim motivador e que possamos criar uma rede
de apoio entre as crianças, professores, família e profissionais.

As crianças de modo geral, típicas ou atípicas, também se beneficiam quando


há metas claras, por exemplo: primeiro uma coisa e depois outra. Painéis de
rotina com imagens também são muito bem-vindos.

Juntar um aluno que tenha uma forma de aprender mais prática e gosta de ensinar,
para assim adquirir conhecimento, com aquele que se beneficia da repetição e gosta

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de ouvir, pode ser uma dupla bem dinâmica. Portanto, pensar quem vai sentar
ao lado de quem durante a aula também é um forte aliado para os professores.

Trazer coisas concretas e práticas também ajuda o aluno a absorver e entender


melhor o que está sendo passado. Em algumas escolas, os acompanhantes
terapêuticos, ou até mesmo os pais, terem acesso ao conteúdo para antecipar
ao aluno que apresenta algum tipo de dificuldade também ajuda.

Perguntar ao aluno como ele prefere que o conteúdo seja passado também
ajuda, porque ninguém vai conhecê-lo melhor que ele mesmo.

Outra dica é usar aquela habilidade que o aluno tem para ensinar novas coi-
sas, pois todos temos alguma área em que nos destacamos, às vezes, pode ser
desenhar, música, futebol, etc. O importante é se adaptar ao ser humano, que
é único em sua totalidade.

Conclui-se que, mesmo com dificuldades de aprendizagem, sendo a criança


típica ou atípica, é possível, sim, aprender. Desde que os professores, escola,
pais, profissionais e o aluno, estejam alinhados, trabalhando em prol de um
objetivo comum, que é o aluno aprender, acreditar e perseverar. Para algo dar
certo, é necessário um conjunto de fatores, assim como para algo dar errado
também. Então, que tal colocar isso em prática?

Referências Bibliográficas
PORTES, D. S. A importância das neurociências na formação do professor
de inglês. Rev. Psicopedagogia 2015; 32(98): 168-81. Disponível em: <http://
pepsic.bvsalud.org/pdf/psicoped/v32n98/07.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2019.

NATEL, M. C.; TARCIA, R. M. L.; SIGULEM, D. A aprendizagem humana:


cada pessoa com seu estilo. Rev. psicopedag., São Paulo, v. 30, n. 92, p. 142-148,
2013. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-84862013000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 ago. 2019.

MACEDO, L. A questão da inteligência: todos podem aprender? In: OLI-


VEIRA, M. K.; SOUZA D. T. R. e REGO T. C. (Orgs.). Psicologia, educação
e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002.

Autismo compreender e agir em família. Sally J. Rogers (2012).

Dificuldades de aprendizagem: proposta de avaliação Interdisciplinar. Ciasca (2003).

Manual Diagnóstico e estatísticos dos transtornos mentais DSM V.


file:///C:/Users/55119/Downloads/DSM%20V.pdf

84
LYANA JUFFO
CRP 05/38148
(021) 98880-7330
lyanajuffo@gmail.com
@psicologalyanajuffo
Psicóloga Lyana Juffo
www.psicologalyanajuffo.com

• Formada em Psicologia desde 2008 pelo Centro Universitário Celso Lisboa/


RJ; Inscrita sob CRP 05/38148

• Formação Clínica em Psicoterapia Corporal Reichiana

• Formação Clínica em Brainspotting e EMDR

• Formação em EMDR com Crianças

• Especialização em Psicologia Hospitalar pela UFRJ

• Experiência com atendimentos clínicos a todas as idades desde 2009

• Experiência no trabalho com gestantes e pais de bebês internados em UTI


Neonatal como psicóloga da Maternidade Perinatal por quatro anos.

85
A Visão que a Criança Tem de Si e do Mundo

Desde a gestação a criança começa a desenvolver um vínculo com seus pais.


Hoje em dia já se sabe que o bebê consegue ouvir sons quando ainda está na
barriga da mãe, e que os reconhece após o nascimento. A partir desse vínculo
criado desde a gestação é que a criança começa a se reconhecer enquanto
sujeito no mundo.

Da concepção até os dois anos, fase também conhecida como os primeiros mil
dias de vida, temos uma grande janela de oportunidades devido ao grande
desenvolvimento físico e psíquico que ocorre. Essa fase é a mais importante,
pois nela são criadas as bases de todo o desenvolvimento do nosso ser.

No início da vida o bebê se reconhece a partir do olhar da mãe ou de quem


exerce essa função. A forma como os primeiros cuidados são realizados
poderá fazer uma grande diferença na visão que a criança terá de si. Assim,
se a criança se sente acolhida quando tem as suas necessidades atendidas e
se ela se sente segura com esse cuidado, são questões que merecem atenção
nesse início da vida. O estado emocional dos cuidadores influencia muito,
pois a criança necessita de um cuidador afetuoso para conseguir regular e
organizar o que sente. Essa necessidade se estende pelos primeiros anos de
vida, principalmente até os três anos, quando a criança começa a conseguir
reconhecer suas emoções e a aprender a expressá-las melhor.

Cada pessoa desenvolve ao longo da vida uma capacidade de interpretar o


mundo que é muito particular, por isso não existe um guia único que sirva
para todas as famílias. No decorrer de meus anos de clínica, atendendo crian-
ças e seus cuidadores, pude perceber que o mais importante no início da vida
é uma disponibilidade afetiva e o estabelecimento de uma boa comunicação
com a criança. E para que isso aconteça da melhor forma possível, é funda-
mental que os pais e/ou cuidadores se conheçam muito bem.

A criança vai começar a interpretar o mundo e a construir a visão que tem de


si mesma a partir dessas primeiras relações. Enquanto bebê interpreta a partir
da forma como é cuidado, olhado, acolhido e tem as suas necessidades básicas
atendidas. Um bebê que tem cuidadores atentos e disponíveis vai compreen-
der que pode relaxar e se acalmar. Seu sistema nervoso não fica em estado de
alerta e isso resulta em um bebê relaxado, mais calmo. Por outro lado, se uma

86
mãe fica sozinha e sobrecarregada com os cuidados do bebê e da casa, esse
bebê vai sentir essa sobrecarga no contato com a mãe e expressar com choro
e insatisfação constantes. No início da vida o bebê é bastante conectado com
a mãe, sendo capaz de perceber suas emoções e, muitas vezes, as expressa.
Devido a isso, torna-se fundamental que não só os bebês sejam cercados de
cuidados nesse período inicial, como também essa mãe que está vivendo um
momento tão importante. Para que a mãe possa estar bem e disponível para
essa relação intensa com o bebê, ela também precisa ser cercada de cuidados.

No primeiro ano de vida a visão que a criança vai começar a construir sobre
si e sobre o mundo que a cerca está relacionada aos cuidados recebidos e às
emoções sentidas. Como ainda não tem a linguagem verbal bem desenvolvida,
a linguagem corporal e emocional são a melhor forma de comunicação com
esse bebê. Isso é um desafio para a maioria dos cuidadores e uma orientação
que gosto de passar é que os pais parem um pouquinho, respirem profunda
e lentamente algumas vezes e percebam como estão se sentindo. Só conse-
guimos estar disponíveis para o cuidado com uma criança quando estamos
calmos e atentos às nossas próprias emoções. Gosto de usar a analogia do
avião, onde somos orientados a “em caso de emergência durante o voo, colocar
a máscara de oxigênio primeiro em nós mesmos e depois auxiliar idosos e
crianças com as suas máscaras”.

Esse é um aprendizado que serve para toda a vida, principalmente para os pais
nessa difícil missão de educar. Em um momento difícil, pare, respire fundo,
acalme-se primeiro, perceba as suas emoções para depois conseguir atender
às necessidades de seu filho. Dessa forma, seu cuidado será mais efetivo e a
mensagem que a criança vai receber é a de que está tudo bem, pois tem um
adulto passando a segurança que ela precisa.

Quando o bebê começa a engatinhar e a andar, começa também a explorar o


mundo. Logo depois, com a entrada na creche ou na escola, a criança começa
a explorar outras relações, e essas experiências vão consolidando a visão que
ela está construindo sobre si mesma e sobre o mundo. Nesta fase começa a
difícil missão de ensinar o que pode e o que não pode, o que é certo e errado.
Missão esta que se torna ainda mais difícil porque a criança ainda não tem
controle sobre suas emoções e não sabe se expressar bem, aprendizado que
exige tempo, dedicação e muita repetição. Como esse aprendizado vai aconte-
cer está relacionado com a forma que os cuidadores irão guiar esse processo e
também com a forma singular de cada um para interpretar essas orientações.

87
Disciplina Positiva pode auxiliar nessa fase com instruções claras, passa-
das de forma amorosa e baseadas em uma comunicação respeitosa com
a criança, equilibrando gentileza com firmeza. Não funciona dar longas
explicações nessa idade, e sim, você vai precisar falar muitas vezes no
começo! Essa é uma fase desafiadora mesmo! A criança leva tempo para
aprender e esse processo exige paciência, dedicação e muito amor. Ah!
Sim, essa fase vai passar!

Aprender a lidar com as emoções e a expressá-las de uma forma saudável


é um desafio até mesmo para grande parte dos adultos. Criar o hábito de
parar para prestar atenção ao corpo, ao que estamos sentindo, nomear
esse sentimento e refletir sobre o motivo que nos deixou assim, vai auxiliar
no autoconhecimento. Não é uma tarefa fácil, mas acredito que a prática
leva ao aperfeiçoamento. A prática de Mindfulness ajuda nesse processo de
prestar atenção ao momento presente e pode ser feita com crianças bem
pequenas. Pais e filhos podem praticar juntos criando um momento gostoso
de conexão e de comunicação.

Apenas reprimir as emoções dos pequenos dizendo que não pode fazer isto
ou aquilo porque não é o certo, não costuma ser um bom caminho. Uma
boa relação se desenvolve baseada no respeito, e para ensiná-los a respeitar
precisamos praticar esse respeito com eles também. Nomear o que eles
sentem é importante para que aprendam sobre aquela emoção e sobre o
que fazer. Alguns exemplos:

• “Eu sei que você está chorando porque queria brincar mais,
mas agora precisamos ir! Você pode ir brincando com seu
boneco enquanto voltamos para casa”;

• “Você pode chorar e respirar fundo para se acalmar! Está


tudo bem!”;

• “Tudo bem ficar triste por ter que ir embora. O que lhe aju-
daria a se sentir melhor?”.

Pode ser que você já tenha tentado falar assim e não tenha sentido que foi
bem-sucedido na comunicação. Mas nesses exemplos você respeita o direito
da criança de sentir tristeza, nomeia o sentimento para que ela aprenda e
permite que ela se expresse chorando. Com a repetição em várias situações

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diferentes, ela vai aprender, se sentir ouvida e acolhida. Um abraço cari-
nhoso também é muito bem-vindo! Falar com calma, olhando nos olhos
da criança, ajuda bastante.

Dessa forma seu filho vai compreender que o que ele sente importa, que
está sendo visto e cuidado por você. Vai se sentir amado e importante,
sentimentos que formam uma boa base para uma autoestima elevada. Por
outro lado, se o contrário for frequente, ou seja, se a criança só ouve que
“não pode porque não”; se não pode chorar para expressar o que sente; se
não for acolhida nos momentos de crise; a criança começa a entender que faz
tudo errado, que não é boa o suficiente e passa a construir crenças negativas
sobre ela mesma que podem acompanhá-la por toda a vida, tornando-se a
base de uma autoestima baixa.

É fundamental prestar atenção nas mensagens que estão sendo passadas para
os filhos no dia a dia. E como a interpretação é muito singular, só conseguimos
saber o que se passa na cabecinha deles com uma boa comunicação, com um
olhar atento e amoroso.

Um bom exercício que nos ajuda a ficar mais conectados com as crianças,
é entrar em contato com a criança que você foi um dia. Você pode tirar um
tempinho para lembrar da sua infância. Como era a sua relação com seus pais?
Como foi o seu início na escola? Como você agia quando estava com raiva? O
que você gostava de fazer? Se for possível converse com seus familiares para
ajudar a lembrar. Do que você sentia falta quando era criança?

Muitas crenças que temos sobre nós mesmos, agora na vida adulta, foram
construídas na infância. Parar e rever a sua história é um bom exercício de
autoconhecimento e vai ajudar bastante na relação com seus filhos.

Seu filho pode ser muito diferente do que foi sonhado ou idealizado por
você um dia. Se essa for a sua dificuldade, existe um trabalho a ser feito no
sentido de abandonar essa idealização e aceitar seu filho como ele é, com
seus encantos e fragilidades. Estimulando a desenvolver seus potenciais, mas
respeitando as suas características e preferências.

Construindo uma boa relação com o filho desde o início, auxiliando no


aprendizado sobre as emoções e sobre como lidar com elas de uma forma
saudável, os próximos desafios tendem a ser mais tranquilos. Se a criança se

89
sente amada, aceita e respeitada no que sente desde o início da vida, ela vai se
sentir mais segura diante das experiências que surgirem, tendo os pais como
apoio e base segura, onde encontram ajuda e acolhimento quando necessário.

Finalizando esta reflexão, a visão que a criança vai ter sobre si e sobre o mundo
será baseada, principalmente, nas experiências que ela vai ter desde a gestação
e nos primeiros anos. Essas experiências com seus cuidadores e pessoas mais
próximas serão a base das relações futuras. O autoconhecimento é funda-
mental para que essa relação se construa baseada no amor e no respeito ao
que sentimos, favorecendo a construção de uma boa comunicação que vai ser
aprimorada por toda a vida. Somente com uma boa comunicação é possível
saber se os valores que você considera importantes estão sendo passados ou
não para seus filhos.

É importante lembrar que a Psicologia é uma ciência que existe para auxiliar
nesse processo complexo de educar e do autoconhecimento. Acredito em
uma Psicologia preventiva que ainda não é muito conhecida. O trabalho
do psicólogo não precisa ser solicitado apenas em momentos de crise, esse
trabalho pode ser feito para auxiliar nesse processo de autoconhecimento e
nessa busca por construir relações emocionalmente mais saudáveis e felizes.

Referências Bibliográficas

MALDONADO, MARIA. TEREZA. Psicologia da gravidez. 1ª. Edição. Rio


de Janeiro: Ideias & Letras, 2016.

NELSEN, J.; ERWIN, C.; DUFFY, R. Disciplina positiva 0 a 3 anos. Barueri:


Manole, 2018

SNEL, E. Quietinho feito um sapo: exercícios de meditação para crianças (e


seus pais). Rio de Janeiro: Rocco, 2016

90
CIBELE VOGEL
CRP 01/7651
(61) 9 8127- 3610
espontanearpsi@gmail.com
@espontaneoser/ @donoqueviralaco/ @espontanear
CibeleVogelPsi/ donoqueviralaco/ Espontanear

• Psicóloga inscrita sob o CRP 01/7651

• Psicopedagoga Clínica e Institucional, Professora, Palestrante e Consultora


Educacional; com formação em Psicodrama pelo CPP/DF

• Atua na área clínica desde 1999 e na área educacional desde 1995

• Pós-graduada em Psicopedagogia pelo EpsiBA - Buenos Aires. Especialista


em Orientação Educacional e Gestão Escolar

• Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Instituto Saber

• Pós-graduanda em Abordagem Sistêmica da Família e Terapia Familiar

• Coautora dos livros Conectando Pais e Filhos e O poder da autoestima –


Editora Conquista (2019)

• Proprietária da Espontanear - Espaço de Desenvolvimento do Ser, clínica


de psicologia e psicopedagogia

• Coordenadora do projeto Click! - Aconchego DF

• Membro do Grupo Abayomi - um olhar precioso para a infância. Idealiza-


dora do projeto EspontâneoSer - Cultivando o bem-viver

• Idealizadora e co-criadora nos projetos Escola de Crescimento para pais e


Do Nó que vira Laço - Conectando Pais e Filhos.

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Filhos por Adoção: A Importância de Revelar a Verdadeira
História

Conta! Conta!... Quantas vezes você quando criança pediu para que lhe con-
tassem a sua história? Sim! Somos feitos das nossas histórias: as que sabemos,
as que nos contaram, as que idealizamos e as que precisamos descobrir. Saber
como chegamos, como era antes de sermos “nós”, saber a nossa história nos
nutre e liberta para que cada um seja autor da própria história.

Muitas famílias constituídas pela adoção temem “o momento da revelação”,


porém se há algo a ser revelado é porque algo está escondido. E que vínculo
se constitui saudavelmente em uma relação com coisas escondidas? Não se
ama aquilo que não se conhece plenamente, que não se mostra por inteiro,
que não está junto para sustentar o que nos dói.

A revelação sobre a família de origem nos coloca novamente em contato


com nossas motivações para a adoção, com nossos receios e medos sobre a
segurança do vínculo que estamos estabelecendo, o vínculo construído. É
natural que esse momento seja um pouco perturbador, pois nos coloca “cara
a cara” com o medo de ainda não termos sido adotados por nossos filhos, de
termos que dividir afeto, de que estejamos em desvantagem. A segurança que
precisamos vem da nossa capacidade de trabalhar nossas emoções constan-
temente. Ser família é um constante pertencer-se!

Pais biológicos, família de origem, genitores... são parte da vida de seu filho,
mesmo que ele tenha chegado recém-nascido. Escolher ser família por adoção
é trazer consigo a certeza de que a história de nosso filho começou antes de
nós e que é direito dele ter acesso a ela. Ao tornarmo-nos pais por adoção
passamos a ser guardiões desse tesouro que é a história de vida dele. O “marco
zero” não foi vivido conosco, mas a maneira como lidaremos com isso será
determinante para o desenvolvimento emocional do filho que chega.

É compreensível que muitas famílias tentem adiar a incorporação da história


anterior a história familiar, uma vez que teremos que dar voz às incertezas,
aos medos, às interpretações... Certamente pensamos que se é algo tão difícil
para nós, quanto será para eles, não é mesmo?

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Justamente por isso, precisamos acolher e apresentar a história de vida para
que esse nó seja desfeito. Tudo aquilo que é velado ganha uma dimensão
incalculável e, com isso, perdemos a possibilidade real de ressignificar aban-
dono, negligência, impossibilidade de cuidar, de mostrar que velhas histórias
podem ter novos finais quando estabelecemos uma conexão real com aquilo
que nos fez família: a capacidade de amar. Rejeitar parte da história do filho
que chega é simbolicamente rejeitá-lo em sua realidade.

Não podemos esquecer que adoção é uma caminhada partilhada para a vida
toda. Questões sobre sua chegada, nascimento e família biológica sempre
farão parte da história que você está construindo com seu filho, pois é a
história dele e isso jamais poderá ser descartado ou tido como escondido
ou de menor valia. Entrar em contato com a história anterior e dar a ela o
valor adequado é liberar espaço para a vinculação real que acontece quando
podemos ser quem somos e dizer o que sentimos e ainda sentir que somos
amados na integralidade.

O momento da revelação é como um ritual de passagem que pode servir para


unir ainda mais uma família, uma vez que estaremos juntos a partir desse
“novo nascer”. Entrar em contato com sua história anterior é uma possibili-
dade de refazer lutos e preencher lacunas que fragilizam a autoimagem e, por
vezes, dificultam a capacidade de vincular-se à nova família.

Ao filho que “nasce por adoção” deve ser proporcionada a experiência de


resgaste da sua história com uma real atitude de disponibilidade para o que
se pergunta, ao mesmo tempo que evitaremos a exposição demasiada da
verdade. Schettini (2009) indica que é necessário apresentar o indispensável
sem impor ao filho aquilo que ele ainda não deseja encontrar.

Certamente revisitar a história de origem trará relatos dolorosos ou talvez


algumas perguntas sem resposta. E como pais, o que podemos fazer com
aquilo que desconhecemos? Deixar clara nossa possibilidade de fazer conhe-
cer o que é possível e o que for desejado. A medida que o relacionamento de
confiança se aprofunda, mais certeza ele terá que você o ama do jeito que ele
é e com tudo que o compõem.

Jamais poderemos esquecer que toda adoção se inicia com uma perda. Perda
presente em todos os envolvidos. Para os genitores é a perda de seu fruto
biológico, da relação que poderia ter sido, de uma parte real de si mesmo.

93
Para os pais por adoção a perda de uma possibilidade de estar junto desde
sempre, perda de uma exclusividade histórica e emocional, perda de uma
história idealizada. E para a criança adotada, a perda dos pais de origem, da
primeira experiência de pertencer, da relação que te fez ser alguém. Negar
essas perdas é negar o impacto emocional que isso tem na nossa construção
como sujeito, na maneira como nos relacionaremos com as pessoas e com
o mundo. É entrando em contato com nossas perdas e dores que liberamos
espaço para novas vinculações e pertencimentos.

Dar voz às histórias pessoais tem que ser um movimento de caminhar junto,
de mãos dadas com o zelo e acolhimento com o qual se transporta um tesou-
ro, afinal a verdade da filiação é singular e se faz na relação de quem a vive e
pode contá-la com os fatos que sabe e com aqueles que lhe foi permitido saber.

Para o filho por adoção recuperar a narração da sua própria história é primor-
dial estabelecer um autoamor capaz de fazê-lo seguir adiante, sem acreditar
que deve algo a alguém, que em algum momento ele pode novamente ser
retirado da história ou que ele tem que ser o mais próximo do que esperam
que ele seja para poder “ficar”.

É preciso ter espaço para suprir suas curiosidades, lamentar suas perdas,
expressar suas raivas, dores e indignações; reconhecer-se diferente e ainda
assim pertencer sem que seja necessário “proteger” a história iniciada com
a adoção de sua história de origem. Aquilo que é sabido pode ser amado,
recontado, ressignificado e ter seu lugar de importância na história que nos
faz ser únicos e ser o que somos.

Toda existência espera pelo seu revelar para que possa efetivamente SER! Ao
consultar o dicionário encontramos em primeira linha: “revelar (verbo tran-
sitivo) tirar o véu a; deixar ver, patentear, mostrar, descobrir, fazer conhecer
o que era ignorado ou secreto; divulgar: revelar sua insegurança ou culpa”.
Diante de tantas relações estabelecidas, do convite ao “é preciso ver” como
poderemos ser família sem “a tal revelação?”.

Em muitos casos a revelação se dará processualmente, em várias fases e por


várias vezes. Quanto menor a criança mais incorporado ao dia a dia deve ser
o “passado-presente”. Desde o momento da chegada devemos criar vias de
diálogo para que seja uma temática fluida, assim como se conta o nascimento
de qualquer ente da nossa família, o parto da adoção também deve ser uma

94
história naturalmente familiar. Os detalhes íntimos pertencem aos perso-
nagens principais (pais e filhos) e somente a eles; jamais devem ser nutrição
para a curiosidade alheia, ao passo que sendo naturalizados pelos envolvidos
perdem até o posto de excepcionalidade, sendo integrados à história da família
como tantas outras.

Para que possamos ser autores da nossa própria história precisamos conhecer
nossos inícios, rupturas e dar voz aos sentimentos que acompanham esse
processo. Toda adoção nasce de uma perda anterior e isso precisa ser elabo-
rado para que se tenham espaço real para o pertencimento que caracteriza
o ser família.

É muito comum que os adotados passem por sentimentos ambivalentes frente


à adoção em algum momento de suas vidas. Por mais amoroso que seja seu lar
e sua família pós-adoção, ela só existe porque em algum momento houve uma
ruptura (que muitas vezes foi vivida, mas não elaborada; que é sentida, mas
não revelada) e isso faz com que se estabeleça um laço com medo de rejeição
não verbalizado, e com a falsa culpa (emoção que se estabelece quando algo
doloroso acontece, sem que tenhamos controle, mas pelo qual nos sentimos
de alguma forma responsáveis). Para desatar isso é preciso que se tenha per-
missão para trazer à tona tudo o que envolve “fui adotado”.

Mesmo os bebês trarão consigo a sensação de ruptura e precisarão de auxílio


para construção/elaboração da história a qual pertence, desde a sua gestação.
As emoções nos habitam muito antes de aprendermos a entender os fatos e
a racionalizar; e elas nos comandam com intensidade visceral dando vazão
àquilo que não compreendemos, mas precisamos expressar.

Histórias com lacunas, com partes escondidas são desestabilizantes e só re-


forçam nossa sensação de que não é confiável. Como confiar se não me foi
revelado o que necessito, o que é meu desde a origem?

Ser família por adoção é navegar em mares por muitas vezes desconhecidos,
mas não ignorados. Trazendo consigo a atitude de disponibilidade para a
busca e construção da narrativa que dá razão ao nosso existir. Independen-
temente das dificuldades que serão reveladas nesse caminhar, “é importante
entender a emergência do desejo, mesmo que não enxerguemos os caminhos
para se chegar até ele”. (Schettini, 2009)

95
Diante disso, precisamos ter claro que filho é adotado uma única vez. Se torna
filho e assim o será, mas a sua história com a adoção será para sempre. Ela fará
parte de toda a sua existência e para isso deve ser presente no nosso cotidiano.

Seu filho chegou bebê? Foi uma adoção tardia? Não importa com que idade
chegou; o importante é que você reconheça a realidade da adoção desde o
primeiro contato. “Estamos muito felizes por termos adotado você. Estou
muito contente que você seja nosso. Desde o dia que você chegou e me tornei
seu pai (sua mãe) e...”. Faça de todos os momentos possibilidades de inser-
ção da história familiar a partir da adoção. Se estamos seguros eles também
estarão para naturalizar e relatar “o nascimento por adoção”. Fale sempre,
mesmo que não diretamente sobre a história dele integrando na narrativa o
antes e o agora.

Com os menores um bom recurso é utilizar as histórias para ir apresentando


as diversas possibilidades de ser família. Busque nas histórias infantis, contos
que trazem a adoção: Tarzan; SuperMan; “Flávia e o bolo de chocolate”, de
Mirian Leitão; “Somos um do outro”, de Tood Parr; e outros tantos que com
uma pequena pesquisa você poderá encontrar. Pode-se também criar uma
história, uma fábula que mostre a história de vocês e integrá-la à rotina de
conto de histórias. Conte-a com alguma frequência (e não se admire se ele
pedir: conta de novo! Conta aquela história... até que chegue o momento
onde ele desejará sua confirmação: Essa é nossa história?!) e esteja sempre
disponível para as perguntas e associações que podem surgir.

Tenha em casa fotos do momento do encontro, do “nascimento pela adoção”.


Alguns autores sugerem que se prepare um álbum com fotografias que contem
esse momento da chegada com as informações que se tem (fotos da materni-
dade ou da instituição de acolhimento, fotos dos encontros com os pais por
adoção, da chegada em casa, das primeiras vivências em família) e que o deixe
disponível para a manipulação da criança, como se fosse uma materialização
do “nascimento da nossa família”. O mais importante será sempre a maneira
cuidadosa e afetuosa que contaremos a história, sem grandes fantasias, mas
intensa na capacidade de transmitir a importância que é estar inserido em
uma família que nasceu da escolha de amar.

E sobre a história real? Converse sempre! Prepare-se para estar disponível para
responder as perguntas que surgirão. E quando não souber? Diga também:
“Olha, isso eu não sei, mas podemos tentar saber! Quando você chegou, o que

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soubemos foi...”. A criança não precisa ter acesso irrestrito ao que é sabido,
mas ela precisa saber o que é fundamental para que ela possa “juntar as peças”
da própria história. O importante é não inventar e tampouco mentir. E não
esqueça: a história é importante, mas a maneira como será contada é mais
importante ainda. É nessa narrativa que será reafirmado o vínculo de amor
e cuidado que foi estabelecido no momento que vocês se tornaram família.

Busque saber o máximo sobre a história de origem de seu filho. Guarde com
cautela o “tesouro” que são os registros, a certidão de nascimento originária,
as informações do processo. Uma hora ele pode querer saber mais detalhes
sobre o início e tendo idade e maturidade para tal deve ter seu direito resguar-
dado. Todos nós queremos saber como tudo começou e com filho por adoção
não será diferente. Cuidar desse tesouro para que se seja disponibilizado, se
e quando for necessário, certificará ao seu filho que ele foi amado em sua
integralidade desde o primeiro instante, pois você conhece, respeita a história
de vida dele desde o início, juntamente com tudo que construíram juntos.

Cultive a serenidade necessária para compartilhar a história de seu filho na


hora adequada (ele te indicará por meio das perguntas que fará) elaborando
a complexa tarefa de separar as circunstâncias dolorosas de sua história ori-
ginária de quem ele é como pessoa.

Esteja preparado para lidar com as perguntas que vem da escola, dos cole-
gas e da sociedade em geral, fortalecendo-o para que o mesmo se aproprie
da própria história, entendendo que a maneira como um filho chega não é
qualificador do SER filho. Filho é filho e ponto! E a adoção é só mais uma
maneira de se tornar filho e ser família.

Não o nomeie como “filho do coração”. Todo filho é filho do corpo inteiro!
Nasce da barriga de alguém, ao qual seremos eternamente gratos por ter nos
dado o dom da vida, e se torna filho pela capacidade que temos de cuidar,
amar e proteger juntamente com toda a complexidade que é ser família.

Aprenda a ouvir as mensagens faladas e subentendidas de seu filho. Muitas


vezes ele te contará histórias de outros como uma forma de acessar a própria
história. Quanto mais intimidade tiverem e o vínculo fortalecido, mais à
vontade ele estará para “se mostrar por inteiro”.

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Confie no vínculo construído por vocês. É na capacidade de ressignificar o
passado e escrever o momento presente que a adoção se estabelece. Tenha
certeza que uma história não precisa substituir a outra para que a relação
pais-filhos esteja estabelecida; que todo filho sendo gerado ou não precisa ser
adotado para que possa pertencer; assim como os pais precisam ser adotados
por seus filhos.

Não se apaga o passado. Não se esconde o que foi vivido, afinal o mais im-
portante da história de uma família não está em onde ela começa, mas em
tudo que a faz permanecer como tal e o pertencimento que se estabelece
pelo amor que permitimos existir além de qualquer determinação genética.

Conhecer nossa origem é o ponto inicial de uma história que tem muito a ser
escrita e elaborada. Sejamos então os autores de uma história rica de partilha
e pertencimento, afinal a vida tratou de juntar quem nasceu para se amar.

Referências Bibliográficas

LEVINZON G. K.; Lisondo A. D. Adoção: desafios da contemporaneidade.


São Paulo: Bluchet, 2018.

ELDRIDGE, S. Vinte coisas que filhos adotados gostariam que seus pais
adotivos soubessem. São Paulo: Globo, 2004.

HAMAD, N. A criança adotiva e suas famílias. Rio de Janeiro: Companhia


de Freud, 2010.

MORAES, P. J. F. S.; FALEIROS, V. P. Adoção e devolução: resgatando his-


tórias. Jundiaí: Paço Editorial, 2015.

SCHETTINI FILHO, L. Pedagogia da adoção: criando e educando filhos


adotivos. Petrópolis: Vozes, 2009.

TUMA, J. M. C. Adoção ao alcance de todos: uma conversa clara e direta


sobre (quase) tudo o que você gostaria de saber. Curitiba: Juruá, 2019.

98
ANGELA LUPO
CRP 06/32630
(11) 98184-2988
a.lupoangela@gmail.com
@psicologaangelalupo
Angela Lupo

• Psicóloga Clínica inscrita sob CRP 06/32630, com 30 anos de formada

• Pós-graduada em Psicopatologia e Psicossomática pela Universidade São


Camilo

• Pós-graduanda em Terapia Sexual, Educação e Saúde pelo Instituto de En-


sino, Orientação e Saúde (IEPOS)

• Coautora do Livro Anorexia, Bulimia e Obesidade – Dr. Salvador de Rosis


Busse – Ed. Manole

• Revisão Científica do Livro: Terapia de Estratégias para Combater a Bulimia


Nervosa – David L. Tobin – Ed. Roca

• Trabalhou no Caps Infantil e Adolescentes por 15 anos

• Atualmente atua como Psicóloga do Ambulatório de Violência Sexual e


Aborto Legal do Hospital Pérola Byington e em Consultório Particular.

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Como Falar dos Cuidados com o Corpo para Previnir o
Abuso Sexual?

Tenho trabalhado com crianças vítimas de abuso sexual na infância e na ado-


lescência. Acompanho cada relato de sofrimento expresso nos olhos cheios de
lágrimas, carregados de culpa e vergonha. Esses mesmos olhinhos ainda têm
que lidar com a devastação futura – desestrutura e desorganização da família,
na vida social e escolar, somado ao medo que paralisa. Por isso, pensei na
contribuição que poderia dar para pais e cuidadores escrevendo este capítulo.

Quanto mais nos conscientizarmos, quanto mais conhecermos sobre o assun-


to, maiores serão as possibilidades de evitar ou mesmo enfrentar o problema.
Para isso, é preciso entender como acontece o abuso sexual.

A violência sexual é um fenômeno universal que acomete todas as culturas,


classes sociais, religiões e etnias. Ela é caracterizada por uma ação com o uso
da força física.

O abuso sexual é toda situação em que uma criança ou adolescente é utili-


zado para gratificação sexual de alguém. Nós como pais e educadores, não
imaginamos que possa existir essa dura realidade. O conhecimento acerca
do assunto nos dá ferramentas para que nos cerquemos de cuidados, a fim
de evitar que nossas crianças e adolescentes venham a passar por esse tipo
de vivência, que deixa tantas consequências desastrosas.

Quanto maior a exposição da criança à situação de abuso sexual e quanto


mais próximo for o parentesco, pior é o prognóstico. Portanto, quanto mais
cedo percebermos ou evitarmos, menor será o sofrimento futuro; para isso,
precisamos pensar nas formas de prevenção, nos tipos de abusos e como eles
acontecem.

Tipos de abusos sexuais em crianças e adolescentes


O abuso sexual é caracterizado como uma violação aos direitos humanos
e, de acordo com as leis brasileiras, “presume-se ocorrência de violência em
qualquer ato sexual praticado por pessoas maiores de idade com pessoas de
idade inferior a 14 anos”.

As violências são eventos considerados intencionais, portanto passíveis de


prevenção. Quando temos o conhecimento do fato, podemos tomar as devidas
providencias para evitar, resistir ou revelá-lo.

100
A crença de que para existir abuso sexual é necessária a conjunção carnal
favorece para que as crianças e adolescentes sejam submetidas ao abuso por
longos períodos. Existem várias formas desse tipo de violência acontecer, por
isso precisamos conhecê-los, a fim de prevenir e tomar as medidas necessárias:

• Sem contato físico: chantagem, ameaça, conversa de assédio, telefonemas


obscenos, mostrar os órgãos sexuais, masturbar-se na frente da criança/ado-
lescente, filmar, mostrar material pornográfico por meios digitais, pornografia
de vingança, cyberbullyng, entre outros.

• Com contato físico: carícias de cunho sexual, tentativas de conjunção car-


nal, sexo oral, sexo vaginal e/ou anal e masturbação do adulto no corpo da
criança.

É necessário saber que a maior parte dos abusos em crianças, ocorre dentro
de casa, tendo como principal agressor o pai, seguido de padrasto, avô, tio,
vizinhos e outros. Ocorre de forma lenta e gradativa, seu objetivo final é a
conjunção carnal. Com isso, o agressor “ganha confiança” da criança e a
mantém nessa situação, muitas vezes, por anos.

A criança não é capaz de consentir o abuso sexual; nenhuma criança gosta


disso ou quer ser abusada. Ela tem muito medo, vergonha e sentimento de
culpa, o que a leva a guardar esse segredo, às vezes, por anos e anos. O silêncio
é tóxico e quanto antes ele for quebrado, será melhor para evitar/minimizar
as consequências desastrosas oriundas desse ato.

Elas ficam confusas entre o que é certo ou errado, principalmente em crian-


ças muito pequenas. É uma relação assimétrica, isto é, desigual, em que o
menor fica submetido ao poder do adulto. O agressor atribuí culpa à criança
pelo que pode acontecer caso o assédio seja revelado, e ela acredita e se sente
responsável, caso ocorra a separação dos pais ou a desorganização familiar,
mantendo-se por anos em silêncio, como forma de “preservar a família”.

Para melhor entendermos o impacto desse tipo de violência, nos Quadros 1 e


2, a seguir, estão as estatística dos atendimentos no Ambulatório de Violência
Sexual – CRSM – Hospital Pérola Byington – dos últimos cinco anos.

101
Quadro 1 – Série histórica dos atendimentos no ambulatório de violência
sexual (2014 a 2018) por faixa etária.

Série Histórica dos Atendimentos no Ambulatório de Violência Sexual


Faixa Etária 2014 2015 2016 2017 2018
(anos)
0 à 11 1139 1176 1450 1722 1784
12 à 17 707 692 899 1083 994
Acima de 18 640 758 1126 1389 1362
Total 2486 2626 3475 4194 4140

Quadro 2 – Série histórica dos atendimentos no ambulatório de violência


sexual (2014 a 2018) por gênero.

Série Histórica dos Atendimentos no Ambulatório de Violência Sexual


Gênero 2014 2015 2016 2017 2018
Feminino 2155 2288 3109 3749 3688
Masculino 331 338 366 445 452
Total 2486 2626 3475 4194 4140

Como podemos observar, há um número maior de vítimas de abuso sexual


com idade entre zero e 11 anos. É importante deixar claro que ocorre também
em meninos, eles têm mais dificuldade de revelar por causa de questões so-
ciais, culturais e pelo receio de serem questionados acerca da sua sexualidade.

A prevenção ao abuso sexual tem sido um tema divulgado pelas mídias so-
ciais, televisão, rádio e jornais, por meio de planos de governo, programas de
prevenção, ações contra a pedofilia e ampliação da lei de proteção às crianças
e adolescentes. Com isso, houve um aumento considerável no número de de-
núncias, conforme observamos na estatísticas apresentadas nos Quadros 1 e 2.

Fiquem atentos aos sinais


Nem todas as crianças contam sobre o abuso sexual, mas elas nos revelam a
partir de sinais e sintomas:

• receio de uma pessoa específica;

• isolamento, apatia;

102
• perda da espontaneidade;

• agressividade;

• mudança de comportamento sem razão aparente;

• aumento ou redução de ingestão de alimentos;

• comportamento e brincadeiras sexualizadas;

• desenhos estereotipados que demonstram conhecimento sexual inadequado


para a idade;

• mudança no padrão do sono, insônia, medo de dormir sozinha, pesadelos;

• ansiedade, insegurança;

• dores abdominais e nos genitais;

• secreção vaginal;

• enurese noturna (xixi na cama);

• queda do rendimento escolar.

Estes são os sinais e sintomas mais comuns em crianças e adolescentes que


sofrem abuso sexual. Elas nos mostram de alguma forma que algo não vai
bem, porque o assunto de sexualidade e erotização não faz parte do universo
infantil.

Que atitudes tomar diante de uma suspeita?


Quando observar algo diferente, pergunte, mostre à criança que pode confiar
e falar, que será acreditada e protegida. O diálogo é muito importante, atitudes
de fúria contra o agressor e julgamentos contra a criança/adolescente não
favorecem para interromper o ciclo da violência.

É muito importante realizar a denúncia na Instituição de Justiça (é importante


que se procure uma delegacia comum ou uma especializada como a Delega-
cia de Repressão à Pedofilia ou a Delegacia da Mulher), afastar a criança do
agressor e protegê-la. Para fazer a queixa não é necessário ter provas, somente
a palavra da criança/adolescente, os indícios e sinais são suficientes.

103
A denúncia tem vários aspectos: o terapêutico e o de prevenção de futuros
crimes, ou seja, a criança defendida inicia o processo de reparação e a res-
ponsabilização do agressor, contribui para que mais crianças abusadas não
sejam abusadas por aquele indivíduo.

De igual importância é procurar um profissional da saúde especializado em


tratar de violência, para ajudar a vítima a lidar com os sintomas do estresse
pós-traumático e a ressignificar a violação vivida.

Como prevenir o abuso sexual?


A informação é a ferramenta decisiva na prevenção do abuso. Ela deve ser
assertiva e ponderada, a fim de para não se transformar, quando em idade
adulta, em medo de relações íntimas.

A educação sexual é uma das principais estratégias de prevenção. É preciso sa-


ber a melhor hora e maneira de falar com as crianças acerca do próprio corpo.

A seguir estão algumas dicas de como orientar os menores, de acordo com a idade:

• Entre um ano e meio e três anos: ensine seu filho a nomear as partes do
corpo, inclusive a parte íntima seja pelo nome científico ou por apelidos fa-
miliares. Nomeie como você faz com as outras partes do corpo: olhos, nariz,
boca, etc.

• Entre três e cinco anos: converse sobre as partes privadas do corpo. Ensine
que tem o direito de recusar toques e carinhos, por mais inocentes que sejam
ou pareçam. Nunca force seu filho a beijar ou abraçar alguém caso não sinta
vontade. Quando obrigamos uma criança a receber toques/carinhos sem sua
vontade, ensinamos que ela não é dona do próprio corpo. Oriente a criança
a buscar uma pessoa de confiança, caso necessite de ajuda. O banho é um
momento que favorece esse tipo de conversa. Repita o assunto se perceber
que é necessário.

• Entre cinco e oito anos: oriente a respeito do tipo de carinho que pode ou
não pode ser permitido; ninguém pode tocar nas suas partes íntimas nem fazer
carinhos em que a criança se sinta desconfortável ou constrangida. Motive a
criança revelar a um adulto de confiança sempre que algo estranho acontecer.

• Entre oito e onze anos: deve ser iniciada discussão sobre conceitos e regras
de conduta sexual e informações básicas sobre reprodução humana. É ne-
cessário orientar sobre o respeito ao próprio corpo e o corpo do outro, bem
como o respeito quando o outro diz “não me toque”.

104
É importante salientar que crianças com deficiências, quaisquer que sejam,
são grandes alvos para os abusadores. Precisamos ficar atentos aos comporta-
mentos, pois eles nos dizem muito. Em qualquer tipo de violência, denuncie
e crie uma rede de proteção, e que nela estejam a família e os demais órgãos
competentes, a fim de dar suporte à criança/adolescente.

Recado das crianças para os pais


No atendimento clínico de crianças que sofreram abuso sexual, perguntei a
elas quais os conselhos que dariam para os pais ou responsáveis de outras
crianças. Elas levaram muito a sério e construíram as seguintes opiniões:

• [...olhe mais para gente do que para o celular, a gente dá brecha...] (ado-
lescente de dezessete anos que sofreu abuso do pai dos seis aos onze anos).

• [...damos pequenos toques para dizer que não estava tudo bem, não que-
ria ir para casa do meu pai...] (adolescente masculino de treze anos que foi
abusado pelo pai aos 10 anos).

• [...se minha mãe tivesse perguntado antes eu teria contado...] (adolescente


de treze anos abusada pelo pai desde a infância).

• [...olhe mais para a gente e fique menos no celular, meu pai era um “ho-
mem bonzinho”, por isso conseguia enganar, ele confundia muito a gen-
te...]Criança de 7 anos que sofreu abuso sexual do pai, desde bebê, junto com
sua irmã dois anos mais nova)

[...preste mais atenção em nós, é mais importante ter eles do que coisas...](Ado-
lescente que sofreu violência extrafamiliar aos 14 anos)

É de extrema importância dedicar atenção aos nossos filhos, não apenas a


ouvir o que nos dizem, mas prestar atenção ao comportamento deles. Abuso
sexual é um tema que tanto as crianças quanto os adultos têm dificuldade em
falar. Quando observar qualquer mudança no padrão do sono, alimentação,
desempenho escolar ou atitudes, é sinal que algo não vai bem com a crian-
ça/adolescente. Os pais/cuidadores devem tentar se aproximar, perguntar e
procurar ajuda de um profissional qualificado.

105
Referências Bibliográficas
ARCARI, C. Prevenção de violência sexual para crianças. Instituto Cores.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação Geral N.35 Sobre


violência de gênero contra as mulheres do comitê para eliminação de to-
das as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW). Série tratados
internacionais de direitos humanos. Brasília. 2019.

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São Paulo: Summus.

SANDERSON, C. Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais e professores


para proteger crianças de abusos sexuais. São Paulo: M. Books do Brasil, 2005.

SANTOS, B. R.; IPOLITO, R. Guia de referência: construindo uma cultura de


prevenção à violência. São Paulo: Childhood Brasil – Instituto WCF, 2009. p. 145.

MARRA, M. M. Conversas criativas e abuso sexual: uma proposta para o


atendimento psicossocial. São Paulo: Ágora, 2016.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Saúde. Coordenadoria de Serviços de


Saúde. Centro de Referência da Saúde da Mulher – Ambulatório de Violência
Sexual – Hospital Pérola Byington – Estudos de Casos de 2014 a 2018.

106
MARIANA FERREIRA
CRM -SP 121280

(11) 4999-1368
prodigscontato@gmail.com
@prodigsoficial
Pródigs: Pró-Dignidade Sexual

• Residência Médica em Medicina Legal e Perícias Médicas pela FMUSP

• Médica Legista do Núcleo de Sexologia Forense do IML de São Paulo, Programa


Bem-Me-Quer

• Sexóloga Criminal, especialista em Sexualidade Humana pela FMUSP

• Professora concursada da Academia de Polícia do Estado de São Paulo

• Componente da equipe de capacitação de policiais civis em Depoimento


Especial (Lei 13.431/17) da Academia de Polícia do Estado de São Paulo

• Idealizadora e responsável pelo Curso de Especialização em Identificação


e Métodos de Prevenção à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes
da Academia de Polícia do Estado de São Paulo

• Componente da equipe de especialistas da Helix Cursos, idealizadora e respon-


sável pelo curso de Sexologia Forense-Crimes Sexuais e Transtornos Mentais

• Fundadora da ação social de prevenção à Violência Sexual, Pródigs: Pró-


Dignidade Sexual.

107
O Limite da Manifestação do Carinho: Cama Compartilhada,
Beijo na Boca, Banho, Etc.

O povo brasileiro é conhecido mundialmente por ser um povo alegre, expres-


sivo e com grande facilidade em manifestar afeto, até mesmo com desconheci-
dos. Em um artigo do site americano Business Insider, são listados oito hábitos
brasileiros que podem causar estranhamento em outras nacionalidades, como
o excesso de proximidade física, que ultrapasse a distância de um aperto de
mão, cumprimentos com beijos e abraços, toques em braços, ombros e mãos
enquanto conversam com outras pessoas, indiferente se são íntimas ou não,
bem como demonstrações de afeto em público, situações nas quais podem
acontecer beijos e abraços calientes entre casais em ambientes públicos.

Essas características de proximidade física e manifestações explícitas de afeto


fazem parte da cultura de nosso país, não sendo diferente, portanto, quando se
trata da relação entre adultos e crianças, em que a troca e estímulo de carinhos
físicos são naturais e fazem parte do desenvolvimento infantil.

O contato físico é fundamental para a criança, desde o seu nascimento, mo-


mento em que a interação com sua mãe, já nos primeiros segundos de vida,
são determinantes para o desenvolvimento saudável desse indivíduo. Porém o
grande desafio é saber o limite do contato físico, o que é considerado natural
e saudável, do que em nada agrega em termos de afeto e pode se tornar fator
de vulnerabilidade para a criança.

Nada mais gostoso do que dar milhares de beijinhos em seus pequenos e peque-
nas, abraçar, fazer cafuné, beijar o dodói, dar um cheiro, dormir todos juntinhos
na mesma cama, essas são práticas carinhosas muito conhecidas e realizadas
em nossa cultura, mas será que tudo pode? Será que tudo é adequado?

O que parece tão inocente e natural pode ser completamente adulterado quan-
do se trata de abuso sexual infantil. Infelizmente, abusadores e abusadoras
sexuais usam da justificativa do “carinho”, como forma de atrair e manter
as vítimas sob abuso.

É muito importante que saibamos o que é realmente o carinho, o qual pode


ser definido como demonstração cativante de amor ou benevolência, carícia,
afago, gesto meigo e afetivo, e cabe aos responsáveis pela criação e formação,

108
ensinar a criança, para que tenha a possibilidade de identificar o que pode e
o que não pode ser realizado com ela.

Por mais que sejamos mães e pais cuidadosos, que adoremos expressar nosso
amor por meio do contato físico, é fundamental que saibamos que existe um
limite físico entre o corpinho da criança e o nosso, que existem práticas que
não são adequadas e podem naturalizar o acesso de estranhos.

A criança tem que ter consciência de que possui um corpo que é dela, que tem
partes chamadas de íntimas que só podem ser tocadas em algumas situações
específicas e por pessoas específicas. Não devemos forçar o seu contato físico e
demonstração de afeto com adultos conhecidos ou estranhos, ou com pessoas
que a criança demonstre claramente rejeitar.

É muito comum vermos mães e pais obrigando seus filhos e filhas a beijar
e abraçar outros adultos, como forma de demonstração de boa educação, e
caso não façam o que lhe pedem ou ordenam, são repreendidas com ênfase
pelos seus pais, muitas vezes chamando-as de mal-educadas e, como se diz
lá no interior, de “bichos do mato”.

Quantas vezes ouvi comentários como: deixa de ser bicho do mato menina!
Precisa educar melhor essa mocinha! Que horror, onde estão as boas maneiras?

Pois bem, mal sabia eu que aquele desconforto e até repulsa que sentia em
ter que abraçar e beijar algumas pessoas era totalmente compreensível e que
estava ligado ao meu desenvolvimento do afeto e noção corporal.

Isso mesmo, noção corporal, a consciência e identificação do próprio cor-


po, dos limites entre o interno e o externo, do contato com o outro, com o
mundo que está ao nosso redor. Durante o desenvolvimento infantil, esse
conhecimento se instala gradativamente e é ensinado no contato familiar e
por intermédio de práticas e atividades escolares, bem como com a interação
social de forma geral.

Não devemos forçar o contato físico durante a infância, principalmente com


adultos, nem mesmo com familiares. Essa iniciativa deve partir da própria crian-
ça e ser de forma espontânea, de acordo com as características de cada pessoa,
umas são mais expressivas e afetuosas do que as outras. Quando isso acontece, a
criança pode entender que não é dona do próprio corpo e afeto, que deve interagir
fisicamente, mesmo que não deseje ou que se sinta desconfortável.

109
Se não quer beijar, não quer abraçar, não tem importância, não é sinal de
falta de educação, de boas maneiras ou de rebeldia, é apenas o seu direito
de expressar os sentimentos de forma natural e espontânea, pode-se sugerir
que mande um aceno ou um beijo à distância como uma nova forma de
cumprimentar alguém.

Já nos primeiros anos de vida, a criança desenvolve, no que tange ao contato


físico e sensibilidade, duas percepções principais, o que é carinho e o que é
dodói, a simplificação ocorre devido seu grau de entendimento e estímulo,
de maneira que se você der um beijinho em sua bochecha, ela entende que é
carinho, se você beijar sua genitália é carinho também, se você der um be-
liscão em seu braço, ela denomina a sensação de dor como dodói e se tentar
uma penetração em sua vagina ou ânus é dodói também.

Essa diferenciação ficou muito clara para mim durante os atendimentos pe-
riciais, ao longo de dez anos de trabalho com inúmeros casos atendidos, com
um total de aproximadamente três mil casos realizados, principalmente nos
casos de menores de 14 anos de idade, ou seja, de vulneráveis, quanto mais
tenra a idade, mais frequente o uso desses termos. Quando solicitadas a ex-
plicar o que havia acontecido, período anterior à lei do depoimento especial
(13.431/2017), o uso de dodói estava associado à penetração vaginal ou anal,
e carinho para manipulação genital e sexo oral. Já ouvi inúmeras vezes frases
como: “papai fez dodói aqui”, apontando para a região íntima e local aonde
ocorreu a penetração. “o tio faz carinho com a língua em mim, na minha “‘ti-
tica’”. “a tia gosta de fazer carinho com o dedo no meu buraquinho do cocô”.

Conforme vai crescendo e recebendo informações adequadas, essa percepção


se expande e qualifica, tendo maior capacidade de entender a diferença entre
os toques e contatos físicos, porém isso é aprendido e pode ser desenvolvido
já na primeira infância. Isso justifica o porquê de grande parte das vítimas
não compreender o que está acontecendo, de não saber que estão sendo abu-
sadas, pois não possuem o conceito do que é sexo, pornografia ou erotização,
do que é violência ou abuso sexual. Segundo Georges Cognet2, acabam por
manifestar o desconforto, angústia, medo e dor, por meio de sinais e sintomas
físicos ou psíquicos, chegando em casos mais graves a acontecer a perda da
percepção positiva do mundo e até mesmo o suicídio.

2. Georges Cognet é psicólogo clínico francês, professor na École des Psychologues Praticiens,
autor do livro Compreender e interpretar desenhos infantis.

110
Devemos evitar brincadeiras e toques desnecessários na genitália da criança,
como beijos, mordidas, beliscões e até mesmo assopros.

Também não é aconselhável mantê-las na mesma cama, principalmente se


os casais mantêm relações sexuais no local, alguns acreditam que como es-
tão dormindo, não há problema, que não verão nada, porém muitas vezes
a criança está acordada ou acorda durante o ato e podem reproduzir o que
presenciaram, como um caso que tive conhecimento, em que a criança havia
simulado a prática de sexo oral com uma amiguinha da mesma classe, e após
investigações descobriu-se que ela havia visto os pais praticando o ato e queria
mostrar para a coleguinha o que havia presenciado.

O famoso selinho na boca, tão inocente e tão praticado pelos pais e cuidadores,
deve ser evitado também, não só por questões de saúde, mas também porque
infelizmente os agressores sexuais utilizam dessa prática para convencer sua
vítima de que isso é permitido com ele também.

Depois de tantos anos de trabalho, identifiquei como um dos pontos comuns


nos relatos das vítimas infantis, o desconhecimento do que estava acontecendo
e a certeza de que o que acontecia era carinho, pois o abusador explicava as
práticas sexuais dessa maneira, naturalizando assim o estupro.

“Ele disse que era carinho”. Essa é uma das expressões que mais ouço em
minha atuação profissional, tanto como Médica Legista durante as perícias,
quanto como Sexóloga Criminal nos eventos que realizo.

Em um dos casos que atendi, uma criança era abusada sexualmente por
conhecido. Ele levava a garota para sua casa e com ela praticava sexo oral e
a obrigava a realizar nele, inúmeras vezes. Quando me contou o que havia
acontecido, disse que ele falou que o que estavam fazendo era carinho, que
todo papai que ama realmente sua filhinha faz isso, que ela só não sabia disso
antes, porque não tinha papai.

Essa é uma das características do estuprador de crianças, principalmente em


casos crônicos, ou seja, por longo período, eles utilizam como ferramenta de
convencimento o uso de expressões como carinho e brincadeira, para acalmar
a vítima e torná-las mais acessíveis às suas práticas abusivas.

111
Diferente do que a maioria das pessoas acredita, o estupro de crianças em
sua maioria, não acontece com o uso da violência e força física, ao contrário,
quem pratica o abuso tem preferência pelas práticas sexuais menos invasivas,
como manipulações genitais, carícias pelo corpo, sexo oral e masturbações,
deixando as penetrações para o final do processo ou quando a vítima já está
desqualificada, para que possam manter a vítima e satisfazer sua própria
libido pelo máximo de tempo possível, por isso que um grande número de
pessoas só descobre que foi vítima de estupro na adolescência, quando rece-
bem informações sobre sexo e sexualidade, conceitos desconhecidos ao longo
da infância. Essa forma de agir, esse padrão de comportamento do agressor
sexual infantil, pode refletir na área pericial também, aonde perícias podem
resultar negativas, ou seja, sem vestígios laboratoriais ou físicos, dificultando
assim o trabalho dos profissionais da perícia.

Durante o curso de Sexologia Forense que ministro, sobre Crimes Sexuais


e Transtornos mentais, muitas pessoas compartilham suas experiências e
histórias de abuso infantil, e é frequente me dizerem que não tinham a cons-
ciência do que realmente havia acontecido, que só se deram conta que foram
vítimas de estupro quando já haviam crescido e até mesmo, algumas pessoas
despertam durante o curso. Em uma das ocasiões, uma jovem de 35 anos me
disse: “só agora percebo que “aquilo” não era normal, não era carinho, não
era brincadeira, na verdade, ele me estuprava”.

Depois de atender a tantas crianças durante as perícias, percebi que existe


um padrão de abuso, uma espécie de evolução do contato físico e da comu-
nicação entre o agressor e elas. Diante disso, criei um gráfico de evolução
do processo do abuso infantil, em que o carisma, poder de convencimento
e desenvolvimento da confiança, aparecem como características marcantes
do agressor no início do processo e o contato físico (considerado natural e
carinhoso) é utilizado como estratégia para acostumar a criança ao seu corpo,
permitindo uma abordagem crescente, finalizando o processo em práticas
sexuais invasivas, como penetrações vaginais e anais.

Em uma entrevista realizada pela apresentadora de TV americana Oprah


Winfrey, que foi vítima de estupro na infância, conversa com quatro agres-
sores sexuais de crianças, e um deles explica seu método para ganhar a con-
fiança e conseguir ter relações sexuais, com a “colaboração” de suas vítimas.
Ele relata que vai acostumando a criança ao seu corpo e toques, começa com
abraços e beijos, de uma forma natural e aceitável socialmente, depois evolui

112
para a manipulação genital por cima da roupa, depois por baixo, tudo de
uma maneira que a vítima acredite que é normal, geralmente essas práticas
acontecem na presença dos cuidadores, sem que eles percebam, para que as
vítimas se sintam ainda mais seguras, pois se a mamãe e o papai estão por
perto, está tudo bem.

Ainda hoje, muitas pessoas confundem falar sobre sexualidade com crian-
ças, com ensiná-las a fazer sexo, que ao tocar no assunto de partes íntimas,
possam torná-las erotizadas ou hipersexualizadas, ou seja, é um grande tabu
para a maioria das famílias. Chego a retirar crostas de sujeira da genitália
de algumas crianças, durante a perícia, as quais nunca foram higienizadas
adequadamente, devido medo de seus pais tocarem a sua parte íntima, com
receio de machucá-las ou promover sensações “inadequadas”.

No entanto, não falar com elas sobre suas partes do corpo, as partes íntimas e
sobre os toques físicos que não podem acontecer, facilita a vida desses agres-
sores sexuais, os quais contam com o silêncio e a ignorância, pois se suas
vítimas nunca ouviram falar, por exemplo, que beijar suas partes íntimas
não é permitido, quando eles forem realizar o ato, e disserem que é apenas
carinho e uma simples brincadeira, elas não terão como não acreditar, pois
não receberam informação diferente.

Por essa razão é de extrema importância, que a família, a escola e os cuida-


dores em geral, tenham como prioridade a educação responsável e adequada
das crianças, usando a prevenção como principal ferramenta, pois só assim
teremos a real capacidade de reduzir os casos de estupro infantil.

Referências Bibliográficas
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Casa, 2014.

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USF, Itatiba, v. 9, n. 2, p. 211-218, dez. 2004 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.
org/scielo.php?=sci_arttext&pid=S1413-82712004000200012&lng=pt&nrm=-
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113
ARCARI, C. Gogô: de onde vem os bebês?. Curitiba: Caqui, 2019.

ARCARI, C. Pipo e Fifi: ensinando proteção contra violência sexual. Curi-


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SALTER, A. C. Predadores: pedófilos, estupradores e outros agressores


sexuais. São Paulo: M. Books, 2009.

114
THAINÁ MATOS
CRP 06/95992

(11) 98754-9279
matospsi@hotmail.com
@matospsicoach
thainamatospsi

• Graduada em Psicologia, inscrita sob CRP 06/95992

• Pós-graduada em Psicologia Hospitalar e Saúde Pública

• Especialista em Luto

• Coach de Vida e Carreira

• Atuando há mais de 10 anos na área clínica, atendendo a diversas demandas

• Vem dedicando os últimos anos a auxiliar pais e filhos a terem sucesso em


suas relações.

115
Relação da Criança com Animais de Estimação

Ao longo da minha vida convivo com animais de estimação. Foram muitos


bichinhos e ainda me lembro muito bem e com muito carinho de cada um
deles: cachorro, gato, peixe, coelho, galinha, tartaruga e hamster. Hoje tenho
a alegria de conviver com a Princesa, uma cachorrinha vira-lata que resgatei
da rua há 4 anos. Cada um deles tiveram importância e contribuíram muito
para meu desenvolvimento. Será que podem existir benefícios dessa convi-
vência na vida de outras crianças?

Como os animais de estimação entraram na vida do ser humano?

Para começar, é importante entender como os animais começaram a fazer


parte da vida cotidiana dos seres humanos. Esta relação é mais antiga do que
se imagina e o processo de domesticação dos animais pelo ser humano, teve
início na pré-história e essa proximidade era relatada em pinturas nas caver-
nas. Nesse período os animais eram utilizados como forma de proteção do
território onde o homem habitava, auxiliando também na caça, no transporte
de cargas e dos humanos, transformando a relação que antes era de predação
em uma relação de domesticação. (Giumelle e Santos, 2016)

Serpell (2013) relata que também foram encontrados restos arqueológicos de


cachorros-lobos domésticos, do período Paleolítico, enterrados junto com
seres humanos, o que pode demonstrar uma forte relação afetiva entre eles.
Essa relação do homem com os animais de estimação foi se intensificando
ainda mais ao longo do tempo, principalmente no Brasil, como demonstram
os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), atual-
mente o Brasil ocupa o ranking de 4º país com mais animais de estimação
no mundo, com cerca de 132 milhões de bichinhos. Sendo que destes, 52,2
milhões são cães e 22,1 milhões são gatos.

Benefícios da convivência das crianças com os animais de estimação

Mas até que ponto a relação com os bichos de estimação pode ser considerada
benéfica? Essa é uma dúvida que alguns pais de pacientes já trouxeram para os
atendimentos em meu consultório, quando os filhos insistem em ter um ani-
mal de estimação. Não é uma pergunta fácil de responder, pois existem ainda
algumas controvérsias e poucos dados científicos sobre este tema. Porém os

116
estudos e pesquisas realizados até agora, mostram que os humanos podem
se beneficiar muito desta relação, principalmente se tratando das crianças.

Educar nunca foi uma tarefa tão difícil como tem sido com a geração de crian-
ças atuais, pois algumas acabam tendo problemas em lidar com as emoções,
são intolerantes a frustrações, inseguras e têm dificuldades de se colocar no
lugar do outro. Isso porque alguns adultos têm tido dificuldades de perceber
que as crianças precisam proteger suas emoções por meio de atividades lúdicas
como brincadeiras, atividades criativas como música e pintura e também por
intermédio do relacionamento com a natureza, em que podemos incluir o
contato com os animais de estimação.

Os bichos de estimação podem atuar como facilitadores do contato social,


além de influenciarem na maneira dos seres humanos se relacionarem en-
tre si, tendo contribuição importante também no desenvolvimento infantil.
Já existem estudos científicos que associam a criança que tem animal de
estimação a níveis mais elevados de empatia e comportamentos sociáveis.
Seguindo esse pensamento, as crianças que têm a oportunidade de conviver
com bichinhos de estimação podem se tornar mais afetuosas, solidárias, sen-
síveis, resilientes a situações estressantes, responsáveis e, ainda, compreender
melhor a morte e o luto.

Ter um animal de estimação proporciona para a criança a oportunidade de


assumir, muitas vezes, com o auxílio dos pais, a responsabilidade sobre ou-
tro ser, identificando assim suas necessidades, como alimentação, passeio e
necessidades fisiológicas. Outro papel importante que o animal de estimação
pode desempenhar é o de melhor amigo da criança, uma vez que a criança
consegue conversar e compartilhar com o animalzinho, sem se preocupar
com julgamentos, não tendo também a necessidade de atender a expectativas.

Alguns estudos demonstram os benefícios de se ter a guarda de animais para


a saúde, como: redução do risco de doença cardiovascular, risco reduzido para
alergias respiratórias, no caso de crianças expostas a alérgenos de animais até
o primeiro ano de vida, além de bem-estar físico e psicológico em idosos que
vivem sozinhos, aumento da atividade física, redução da angustia, ansiedade
e depressão.

É importante ressaltar que bebês e crianças pequenas são mais suscetíveis a


contrair zoonoses (doenças típicas de animais que podem ser transmitidas

117
aos seres humanos e vice-versa), pois tocam superfícies potencialmente con-
taminadas e costumam colocar objetos na boca, inclusive as próprias mãos.
Por isso é importante que as crianças pequenas sempre tenham a supervisão
de um adulto durante a interação com animais, a fim de evitar que façam
brincadeiras agressivas ou beijem os animais. Também sendo importante
lembrá-las de lavar as mãos após o contato com qualquer animalzinho.

O papel dos bichinhos de estimação no luto infantil

Para nossa sociedade, falar de morte ainda é muito difícil, principalmente


quando se trata das crianças. Porém a morte é um processo natural e esperado
que inevitavelmente enfrentaremos ao longo da vida e quanto antes formos
preparados para lidar com ela, mais resilientes nos tornaremos para suportar
outras perdas no decorrer da vida.

Infelizmente, alguns adultos omitem das crianças assuntos relacionados à


morte, por acharem que elas não têm maturidade ou preparo para entender o
que está acontecendo. Porém a criança percebe a morte e vivencia o processo
de luto de acordo com seu desenvolvimento cognitivo, sendo que antes dos
sete anos a morte pode ser vista como um evento temporário e reversível,
mas após essa idade, seu conceito de morte assemelha-se ao de um adulto.

A dificuldade de falar sobre a morte acentua-se ainda mais quando se trata de


um bichinho de estimação. Isso ocorre, pois existem alguns tipos de luto que
muitas vezes não são reconhecidos pela sociedade, uma vez que o relaciona-
mento, apesar de intenso, não é legitimado, como acontece na perda de um
bichinho. Contudo, é importante reforçar que o luto é uma resposta natural à
perda de um elemento de valor, seja ele um ente querido, um relacionamento,
um emprego e até um animal de estimação.

Os processos de luto na infância têm mais chances de se tornarem pato-


lógicos do que os que ocorrem na adolescência e na idade adulta, fazendo
com o que o indivíduo venha a reagir de maneira equivalente em perdas
futuras. Entende-se, então, que quando o luto é bem elaborado, a criança
tem mais chances de vivenciar com mais resiliência as futuras perdas que
venha a enfrentar. Na tentativa de proteger os filhos da dor da perda, muitos
pais acabam omitindo ou mentindo sobre a morte do animal de estimação
e tentam substituir o animalzinho morto por outro semelhante, acreditando
que a criança não vai notar. Porém é importante salientar que essa atitude

118
pode dificultar o processo de luto infantil, pois tira-se a oportunidade de a
criança expressar e sentir seu pesar, para conseguir lidar e elaborar a morte
de maneira mais adequada.

Muitas vezes, por conta da falta de maturidade e poucas habilidades de comu-


nicação, algumas crianças acabam tendo dificuldades de falar e expor o que
estão sentindo. Por isso, os adultos têm papel fundamental em proporcionar o
espaço adequado e necessário para encorajar a expressão desses sentimentos,
que pode ser feito de maneira lúdica por meio de cartinhas ou desenhos, por
exemplo, no caso de morte do bichinho de estimação.

Como escolher o bichinho mais adequado para o meu filho?

Alguns pais têm dúvidas de qual seria o bichinho mais adequado para os
filhos, para essa escolha é importante levar algumas coisas em consideração
como: raça, nutrição, treinamentos, cuidados veterinários, tempo e custos
necessários para cuidar do animal, espaço disponível na casa e as espécies
ou raças que melhor se adaptam ao estilo de vida da família.

Também é importante saber que nem todo animal é adequado para qual-
quer criança. O segredo para o sucesso dessa relação é o respeito mútuo. Aos
cinco anos, a maioria das crianças já demonstram mais autocontrole para
serem orientadas a interagir com segurança com os animais. O que pode não
acontecer com crianças menores, fazendo com que existam mais riscos de
tornar essa interação negativa.

É indispensável lembrar que um animal de estimação não deve ser adquirido


apenas para uma diversão temporária dos pequenos, devendo ser considera-
do como parte da família para que sua companhia seja a mais gratificante e
segura o possível. Para isso, é importante que as interações entre as crianças
e os animais sejam sempre supervisionadas por um adulto.

A seguir, podemos conferir algumas dicas importantes que podem auxiliar


na escolha do bichinho de estimação mais adequado para as crianças:

• Aves: são animais que podem exigir treinamento e socialização para serem
apropriados como bichinhos de estimação. Podem ser barulhentas e fazer
sujeira por conta de não controlarem os esfíncteres (músculo que controla a
saída dos excrementos). Tem um custo relativamente barato, porém neces-

119
sitam de gaiola, poleiros e alimentação equilibrada. Podem morder e têm
uma vida mais longa, sendo 10 anos para periquitos até várias décadas para
papagaios, por exemplo. As aves pequenas como periquitos, podem ser mais
sociáveis, porém aves grandes costumam se apegar a um adulto e por isso
talvez não sejam tão indicadas para crianças.

• Animais peludos pequenos (coelho, hamster, porquinho-da-índia, den-


tre outros): podem ser bons bichinhos de estimação, não são muito caros,
fáceis de cuidar, porém exigem limpeza constante da gaiola. São animais
que apesar de reconhecerem o contato humano, não costumam procurar
por ele, nem gostam de ser segurados por muito tempo e, por isso, podem
morder. Tem um tempo de vida curto sendo um a dois anos para roedores
pequenos e cinco a doze anos para coelhos e porquinhos-da-índia. São mais
recomendados para crianças de cinco a doze anos, pois as mais velhas tendem
a perder o interesse mais fácil.

• Peixes: são considerados bons para todos os estilos de vida, porém podem
ter um custo alto, pois a depender da espécie, além do aquário necessitam
também de filtro apropriado e aquecimento. Não exigem muitos cuidados
além da alimentação, porém a limpeza do aquário deve ser feita frequente-
mente. São bons animais para ensinar as crianças sobre cuidado e responsa-
bilidade, apesar de não demonstrarem apego aos seres humanos. Suas vidas
são curtas, sendo de 1 a 2 anos para peixes de aquários comuns e são animais
recomendados para todas as idades.

• Gatos: variam entre arredios ou até os muito sociáveis. A maioria gosta


da companhia humana e, se tratados com respeito a seu espaço, podem ser
ótimos animais de estimação para as crianças, principalmente acima de cinco
anos de idade. Requer assistência veterinária de rotina (castração, vacinação,
vermifugação e exames anuais), comida, água, abrigo e ambiente enriquecido
com brinquedos e arranhadores. Se maltratados ou mal socializados podem
morder ou arranhar, vivem em média de quinze a vinte anos.

• Cachorros: possuem uma grande variedade de raças, tamanhos, tempera-


mentos e comportamentos. Assim como os gatos, necessitam de assistência
veterinária (castração, vacinação, vermifugação e exames anuais). Necessitam
também de comida, água, brinquedos, socialização e exercícios. Normalmente
são muito apegados às famílias e podem ser considerados “melhores amigos”
das crianças, principalmente para as maiores de cinco anos. É importante

120
lembrar que qualquer cão pode morder se provocado ou acuado. Sua ex-
pectativa de vida varia de nove a dezesseis anos, sendo que os cães menores
tendem a viver mais que os maiores.

Apesar de ainda existirem poucos dados científicos sobre os impactos dos


animais de estimação na vida do ser humano, é inegável os benefícios aponta-
dos pelos estudos já existentes e pelos relatos positivos de tutores de animais,
principalmente quando se trata da interação com as crianças.

Dentre os benefícios já conhecidos da interação entre crianças e bichinhos


de estimação, podemos citar o desenvolvimento de habilidades sociais, res-
ponsabilidade, empatia, amizade e maior resiliência para lidar com as perdas
e o luto.

Para a escolha do bichinho de estimação mais adequado para a família, é


indispensável levar-se em consideração tanto as características dos animais,
como das crianças. Também é importante incluí-las nesta escolha para se
construir uma relação de lealdade, afeto e respeito entre eles.

Infelizmente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem


cerca de 30 milhões de animais abandonados no Brasil. Pensando nisso, na
hora de escolher o bichinho de estimação, que tal visitar uma Organização
Não Governamental (ONG) e optar pela adoção? Os animais adotados cos-
tumam ter uma maior capacidade de adaptação, por terem passado muito
tempo na rua ou em abrigos, além de serem animais únicos, certamente,
retribuirão o seu gesto com muito carinho e gratidão.

Referências Bibliográficas
BECK, A. M. A saúde e o desenvolvimento da criança e os animais. In: Mc-
CARDLE, P.; et al. (Org.). Os animais em nossa vida: família, comunidade
e ambientes terapêuticos. Tradução de Mônica Saddy Martins. Campinas:
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Cabral. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.67-94.

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CASELLATO, G.; et al. (Org.). Dor Silenciosa ou Dor Silenciada?: perdas
e lutos não reconhecidos por enlutados e Sociedade. São Paulo: Livro Pleno,
2005, p.19-32.

121
CURY, A. Ansiedade: como enfrentar o mal do século: a Síndrome do Pen-
samento Acelerado: como e por que a humanidade adoeceu coletivamente,
das crianças aos adultos. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 107-111.

GIUMELLI, R. D.; SANTOS, M. C. P. Convivência com animais de estima-


ção: um estudo fenomenológico. Rev. abordagem gestalt, Goiânia, v.22, n.1,
p.49-58, jun.2016. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S1809-68672016000100007&lng=pt&nrm=iso. Acesso
em: 23 jun. 2019.

HAVERKOS, L.; et. al. As implicações dos animais de estimação na saúde


pública: nossos animais e os animais dos outros. In: McCARDLE, P.; et al.
(Org.). Os animais em nossa vida: família, comunidade e ambientes tera-
pêuticos. Tradução de Mônica S. Martins. Campinas: Papirus, 2013, p.79-103.

IBGE - População de Animais de Estimação no Brasil – 2013. Disponível


em: <http://www.agricultura.gov.br/assuntos/camaras-setoriais-tematicas/
documentos/camaras-tematicas/insumos-agropecuarios/anos-anteriores/
ibge-populacao-de-animais-de-estimacao-no-brasil-2013-abinpet-79.pdf/
view>. Acesso em: 30 jul. 2019.

KNIGHT, S. e HERZOG, H. All creatures great and small: new perspectives


on psychology and human-animal interaction, 2009. Disponível em: <https://
www.researchgate.net/publication/241645032_The_Impact_of_Pets_on_Hu-
man_Health_and_Psychological_Well-Being_Fact_Fiction_or_Hypothesis>.
Acesso em: 22 jun. 2019.

MAZZORRA, L. O luto na infância. In: MAZZORRA, L.; TINOCO, V.; et al


(Orgs.). Luto na infância: intervenções psicológicas em diferentes contextos.
São Paulo: Livro Pleno, 2005, p.17-34.

SERPELL, J. A. As perspectivas históricas e culturais das interações dos se-


res humanos com animais de estimação. In: McCARDLE, P.; et al. (Org.).
Os animais em nossa vida: família, comunidade e ambientes terapêuticos.
Tradução de Mônica Saddy Martins. Campinas: Papirus, 2013, p.27-40.

WOOD, L. J. Os benefícios das interações dos seres humanos com os animais


para a comunidade: efeito dominó. In: McCARDLE, P.; et al. (Org.). Os ani-
mais em nossa vida: família, comunidade e ambientes terapêuticos. Tradução
de Mônica Saddy Martins. Campinas: Papirus, 2013, p.41-60.

122
ANA PAULA ECKERT
CRM-SP 91088

(11) 98816-1097
pediatriaintegral.anapeckert@gmail.com
@pediatriaintegral.dranapeckert

• Médica pediatra e mãe, com especialização em Oncologia Pediátrica e for-


mação complementar em Medicina Antroposófica.

• No consultório atendo famílias de forma personalizada e humanizada,


prezando o atendimento integral da criança, com atenção aos aspectos físi-
cos, psíquicos e emocionais, considerando o ambiente familiar e escolar na
discussão clínica das queixas e sintomas. Valorizo o protagonismo da família
e do paciente nas decisões terapêuticas, considerando de suma importância
o envolvimento de todas as partes para o sucesso da terapêutica proposta.

Formação

• Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos

• Residência médica em Pediatria, Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

• Especialização em Oncologia Pediátrica pelo Instituto de Oncologia Pediá-


trica (IOP/ UNIFESP/GRAACC)

• Curso de extensão em Medicina Antroposófica pela ABMA- SP.

123
Como Falar de Morte e Doenças com Crianças

Falar de doença e morte parece um tema assustador e muito pouco pro-


vável, ainda mais com crianças, mas é de suma importância e muito mais
próximo do que possamos imaginar. Pais, educadores e profissionais de
saúde precisam estar preparados para abordar tais temas de forma leve
e amorosa.

Engana-se quem pensa que os profissionais médicos estão preparados


para falar abertamente de doenças com seus pacientes. Infelizmente, a
formação médica atual é bastante limitada neste tema, e os profissionais
são treinados e preparados apenas para curar as dores físicas, sendo a
morte e todos os sentimentos emocionais que acompanham o processo
do adoecer físico, pouco abordados e muitas vezes vistos como fracassos
pessoais.

Antes de falarmos de morte, é importante termos uma definição atual


e real do que seja “Saúde”. A Organização Mundial de Saúde (OMS) a
definiu, em 1948, como o estado de completo bem-estar físico, mental e
social e não apenas pela ausência de doenças ou enfermidades.

Por esse conceito, milhões de pessoas de todas as idades seriam con-


sideradas não saudáveis praticamente o tempo todo. Na atualidade, é
comum vermos adultos doentes crônicos muito mais saudáveis do que
adolescentes, retratando uma necessidade do olhar integral e ampliado
para a saúde.

Em virtude da dissonância entre os termos saúde e doença, atualmente


o termo salutogênese tem sido utilizado de maneira mais frequente nos
tópicos de discussão em saúde, e seu significado (do latim salus: saúde,
gênese: origem) busca tratar a origem da saúde, no aspecto físico, anímico
e espiritual, trazendo um novo paradigma para saúde no século XXI.

A morte não é uma doença. O nascimento e a morte fazem parte do pro-


cesso da vida, sendo o princípio e fim. Certezas únicas do nosso existir...
Ainda assim, frente a esse absolutismo, somos todos tomados por certa
apreensão quando pensamos na morte como o fim de um processo vital,
que muitas vezes ocorre de forma precoce, invadindo nossas vidas com

124
paradas abruptas em tenra idade. A infância nos remete à idade dos des-
cobrimentos, das conquistas e vitórias, nesse início de caminhada não nos
parece justo sermos surpreendidos com obstáculos e paradas abruptas.

A morte não deve ser colocada do lado de fora da vida, uma vez que está
muito próxima de nós. Basta nos depararmos com a violência diária que
presenciamos nas grandes metrópoles, as guerras frias nos países distan-
tes, ataques terroristas pelo mundo e as assustadoras histórias de ataques
a escolas e igrejas. Tudo cada vez mais próximo de nós, noticiados em
horário nobre e amplamente discutidos nas mídias sociais.

Até mesmo nos contos de fadas, por mais difícil que nos possa parecer,
as crianças de alguma forma estão expostas ao tema, seja nas mortes
interrompidas das princesas Branca de Neve e Bela Adormecida, ou no
sutil desaparecimento dos pais da Ana e Elsa, no filme Frozen. Por isso,
o tema deve ser abordado de forma sutil e carinhosa, de modo a não
evoluir para um imaginário distante e amedrontador.

Ao longo da infância a criança, muitas vezes, se depara com a morte em


diversas situações, seja no falecimento de seu bichinho de estimação
ou de alguma pessoa próxima. Ou, mais sutilmente, como a separação
dos pais, representando a morte da família constituída; ou ainda a dor
da diferença, que pode ser referida em pacientes portadores de doenças
crônicas ou câncer, os quais sofrem ao se perceberem como diferentes.

Mas como estar preparados para abordar tais assuntos com nossas crian-
ças? A literatura infantil pode ser um importante recurso mediador na
comunicação com a criança em relação à morte. Um excelente material
de apoio para lidarmos com situações de luto é a publicação “A arte de
falar da morte para crianças”, em que a autora aborda de forma profunda
o tema e percorre pelos aspectos cognitivos e emocionais relacionados
às perdas nas diferentes fases do desenvolvimento infantil, além de de-
mostrar o quão importante é a atenção aos sentimentos expressados por
essas crianças. As crianças que sofrem perdas importantes sentem medo
de serem devoradas pela intensidade de seus sentimentos.

A morte não é apenas uma dificuldade cognitiva, mas também um de-


safio afetivo para o pensamento da criança. Diversos estudos na área
da Psicologia do Desenvolvimento relataram que a criança até os dois

125
anos de idade não têm nenhuma compreensão da morte, devido a sua
incapacidade de apreensão de qualquer concepção abstrata. Entretanto,
nessa faixa etária, a criança é capaz de intuir a morte por intermédio de
sua experiência de dormir e acordar, a qual permite a percepção do “ser”
e “não ser”. Nessa idade, a criança não tem a clareza de que a morte é
irreversível, pois seu entendimento geralmente é baseado na experiência
dos desenhos infantis, em que um personagem pode ser esmagado por
uma bigorna e voltar a andar normalmente no mesmo episódio.

As crianças entre cinco e sete anos de idade são muito vulneráveis a


situações de morte, pois possuem desenvolvimento cognitivo para com-
preendê-la, entretanto não possuem capacidade para lidar com ela.

O livro A criança diante da morte: desafios correlacionou os estágios


do desenvolvimento estabelecidos por Piaget à aquisição do conceito de
morte nas diferentes faixas etárias. A autora demonstrou que a percepção
de morte na criança é distinta daquela observada na população adulta
e variável de acordo com sua capacidade cognitiva e pensamento má-
gico/concreto. Isso reforça a importância de conhecimento do universo
infantil e suas particularidades, a fim de que a conversa sobre a perda
seja adequada e oportuna ao momento de vida da criança, o que tornará
muito mais fáceis sua aceitação e compreensão.

É de fundamental importância destacar a influência que os pais e res-


ponsáveis exercem nos primeiros anos da infância. Adultos enlutados
não estão preparados para ajudar as crianças, uma vez que não foram
capazes de elaborar de maneira adequada suas próprias perdas. Impor-
tante transmitir às crianças a possibilidade de solução e, acima de tudo,
acolhimento e proteção durante todo o período de luto.

É necessário que estejamos preparados para cuidar dessa criança, ofe-


recendo o acolhimento para enfrentar os sentimentos e curar sua dor e,
acima de tudo, renovar suas esperanças de futuro. Esse fato é de extrema
importância não apenas no caso da morte física, mas também em situa-
ções de doenças que exigem afastamento das rotinas escolar e social, o
que também representa uma perda importante em fase da vida na qual
a socialização e a aceitação social são de extrema importância.

126
A dor é evento presente na maioria dos processos de doenças crônicas e agu-
das. Nos dias atuais, um conceito ampliado de dor, denominado “Dor Total”
descreve o fenômeno da dor em suas dimensões física, emocional, social,
espiritual, interpessoal e familiar.

Precisamos respeitar cada indivíduo e a sua dor, seja ela física ou de caráter
ampliado, uma vez que cada dor é a dor de uma pessoa, com sua história,
sua etnia, personalidade, contexto, momento, etc.

Muitas crianças que vivenciam perdas ou o diagnóstico de doenças graves


sofrem de dores psíquicas que não podem ser tratadas com medicamen-
tos analgésicos potentes. Elas precisam de conforto e acolhimento para
superar seus medos e inseguranças diante dessas novas situações.

Não é raro crianças se mostrarem indiferentes diante de diagnósticos


graves ou mesmo diante de uma perda, sendo, muitas vezes, a forma
pela qual se protegem do sofrimento que vivenciam. Nestas situações,
o ideal é que os adultos próximos estejam disponíveis e atentos para
conversar e oferecer o conforto necessário, respeitando o processo cog-
nitivo e emocional individual em cada faixa etária, bem como as perso-
nalidades individuais. Durante o processo de luto, as crianças oscilam
entre momentos de brincadeira e entrar em contato com a perda do ente
querido. Podem perguntar pela pessoa falecida inúmeras vezes entre
uma brincadeira e outra.

Mudanças de atitude devem ser observadas de maneira cuidadosa, muitas


vezes retratadas por introspecção ou agressividade, ou mesmo altera-
ção do hábito alimentar, sendo a voracidade ou inapetência situações
de queixa frequente nos quadros de luto infantil. O sono também pode
ser influenciado em situações de perda e retrata o medo de dormir e a
sensação de abandono e desamparo. A agressividade em crianças, es-
pecialmente quando vivenciam um processo de luto, é um sinalizador
de estar em contato com uma tristeza da qual não sabem como lidar.

O tema “perda” deve ser discutido com qualquer criança, porém as que
passam por processos de adoecimento podem ter maior necessidade de
obter informações e expressar sentimentos em relação às suas vivências,
fantasias e anseios. Na vivência hospitalar é muito frequente que as crian-
ças vivenciem perdas reais de amizades feitas durante a internação, e essa

127
proximidade pode aumentar em muito o medo da morte e a incerteza
de futuro. Elas também vivenciam as fases clássicas de negação, raiva,
depressão, negociação e aceitação diante de processos de perdas.

A escola é o segundo ambiente de socialização da criança e, com a famí-


lia, desempenha papel fundamental no desenvolvimento do ser humano.
Nesse sentido, educadores necessitam estar preparados para as possíveis
situações de luto ou mesmo doenças que as crianças possam trazer para a
sala de aula, de modo a acolher os medos e questionamentos relacionados
às realidades individuais.

É também na escola onde as crianças têm contato com diversas situações


que remetem ao conceito de morte simbólica: como as mudanças de série,
de classe, de professores, de amigos; situações essas que são importantes
para a elaboração de perdas maiores e da morte concreta.

A vivência de diagnóstico de doenças graves na família ou na escola


inevitavelmente acarreta mudanças, sejam elas grandes ou pequenas, e
a forma como os adultos lidarão com o processo da doença estará dire-
tamente refletida na maneira pela qual a criança se expressará diante da
situação, uma vez que as crianças refletem o ambiente em que vivem e
as mais jovens são fortemente sensibilizadas pelas emoções dos pais ou
responsáveis diretos.

No ambiente escolar, a forma como o grupo recebe um aluno com diag-


nóstico de doença grave ou mesmo como abordam a morte impacta dire-
tamente a todos os envolvidos, e por este motivo, é de suma importância
o trabalho informativo com os outros alunos e com os professores sobre
temas como adoecimento, hospitalização e perdas.

Um lindo trabalho desenvolvido inicialmente envolvendo os personagens


de Mauricio de Sousa e, posteriormente, ampliado para vários outros
personagens do universo infantil foi desenvolvido para uma campanha
publicitaria na unidade de oncologia pediátrica do Instituto de Oncolo-
gia Pediátrica (IOP/GRAACC/UNIFESP). Essa campanha apresentava
personagens carecas, aproximando a realidade do paciente com câncer
nas rodas infantis. Essa universalização de uma questão crítica como a
perda de cabelo pode aproximar e tornar mais real a possibilidade de
adoecer e de tratar-se, amenizando o sofrimento do diagnóstico para
ambos os lados, o do paciente e dos que convivem com ele, sejam estes
familiares, professores, amigos.

128
A morte deve ser exposta à criança de forma concreta e sem metáforas,
e conversas sinceras são a melhor maneira de abordagem deste tema tão
profundo. Para ajudarmos a criança a enfrentar adequadamente suas per-
das precisamos primeiramente nos conectar verdadeiramente com elas,
o que permite confiança mútua, e a partir daí, compreensão e atenção
às expressões de seus sentimentos. A maneira como acolheremos esses
sentimentos influenciará diretamente o modo como a criança vivenciará
a experiência da perda.

Uma questão muito levantada pelas pessoas refere-se ao fato de a criança


participar ou não de visitas hospitalares e/ou cerimônias de sepultamen-
to. Para essas questões, costumo sugerir que conversem abertamente
com a criança (independente da idade, pois mesmo os mais pequenos
são capazes de compreender) e expliquem o que poderão encontrar ao
chegar no local. Informações sobre o local e as pessoas devem ser dadas
aos pequenos. Também é importante ressaltar que a criança pode querer
ir embora a qualquer momento, fazendo esse “combinado”. Para tanto, é
importante contar com alguém que possa ficar com as crianças no caso
de não quererem ir ou optarem por ir embora.

Referências Bibliográficas

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Agerami-Camon, V. (Org.), Atualidades em psicologia da saúde. São
Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2004.

KUBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fon-


tes, 2002.

LOPES, D. L. O.; VALLE, E. R. M. A organização familiar e o acontecer


do tratamento da criança com câncer. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2001.

MORAES, W. A. Salutogênese e auto-cultivo: uma abordagem multi-


disciplinar. Saúde, educação e qualidade de vida. ABMA – Associação
Brasileira de Medicina Antroposófica, 2015.

129
PAIVA, L. E. A arte de falar da morte para crianças: a literatura in-
fantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores.
Aparecida: Ideias e Letras, 2011.

SAUNDER, C., SYKES, N. The management of terminal malignant


disease London: Edward Arnolf, 1993.

TORRES, W. C. A criança diante da morte. São Paulo: Casa do Psicólogo,1999.

130
PODCAST-IGO?

(35) 99249-0910/ (11) 98755-1017


contato@podcastigo.com.br
@podcastigo
PodCast-igo?
PodCast-igo?
www.podcastigo.com.br

O “PodCast-igo?” é um projeto idealizado pelas educadoras parentais Maria-


na Boschi (Mana) e Marina Magalhães (Nina) e surgiu a partir do desejo de
compartilhar com os pais e educadores, dicas práticas da Disciplina Positiva
para lidar com o mau comportamento das crianças e adolescentes, sem prê-
mios e sem castigos.

Marina Magalhães

• Terapeuta Ocupacional

• Mestre em Educação e Saúde

• Especialista em Ergonomia e Design Instrucional

• Professora universitária e palestrante, com experiência em saúde mental,


inclusão de pessoas com deficiência e reabilitação profissional.

Mariana Boschi

• Pedagoga com mais de 15 anos de experiência em sala de aula e coordenação

• Especialização em Neurociências e Comportamento

• Consultora educacional, palestrante, formadora de professores, membro


fundadora e do conselho administrativo da Associação Brasileira de Disci-
plina Positiva.

O “PodCast-igo?” conta com diversos canais de comunicação, onde são com-


partilhados podcasts que respondem a perguntas e problemas reais vivenciados
pelos pais e educadores, além de textos e ferramentas para promover formas de
educação sem violência, pautadas pelo respeito mútuo, com firmeza e gentileza.

131
Pode Castigo? Considerações Sobre o Uso do Castigo
Como Ferramenta Educativa

Sequência
Eu era pequena. A cozinheira Lizarda
tinha nos levado ao mercado, minha irmã, eu.
Passava um homem com um abacate na mão
e eu inconsciente:
“Ome, me dá esse abacate...”
O homem me entregou a fruta madura.
Minha irmã, de pronto: “vou contar pra mãe que ocê
pediu abacate na rua.”
Eu voltava trocando as pernas bambas.
Meus medos, crescidos, enormes...
A denúncia confirmada, o auto, a comprovação do delito.
O impulso materno... conseqüência obscura da
escravidão passada,
o ranço dos castigos corporais.
Eu, aos gritos, esperneando.
O abacate esmagado, pisado, me sujando toda.
Durante muitos anos minha repugnância por esta fruta
trazendo a recordação permanente do castigo cruel.
Sentia, sem definir, a recreação dos que ficaram de fora,
assistentes, acusadores.
Nada mais aprazível no tempo, do que presenciar a
criança indefesa
espernear numa coça de chineladas.
“é pra seu bem,” diziam, “doutra vez não pedi fruita na rua.”

(Cora Coralina, Vintém de Cobre,1983)

“É para o seu bem”. Provavelmente você tenha ouvido, ou quem sabe, até
dito esta mesma frase presente no poema de Cora Coralina para justificar
um castigo. Embora comum, a intenção de proteger, ensinar e promover o
bem-estar por meio do castigo é uma ideia de caráter paradoxal. Sem dúvidas,
este é um assunto complexo e que gera muitas divergências, seja entre pais ou
profissionais da saúde e educação. Afinal, pode ou não usar o castigo? Ele é
eficaz? Quais são os seus efeitos a curto e longo prazo? Neste capítulo serão
apontadas algumas evidências e posicionamentos, a fim de esclarecer tais
questões e auxiliar os pais nas escolhas das ferramentas que desejam utilizar
na educação dos seus filhos.

132
Para começar, é importante entender o significado da palavra castigo e as
origens desta prática. Castigo vem do verbo castigar, cuja origem vem do
latim castigare, que significa tornar puro ou purificar. No dicionário, é tido
como pena que se aplica a um culpado, advertência enérgica, imposição de
uma obrigação ou ainda uma sanção aplicada para reprimir uma conduta in-
correta. É uma prática usada em diversos contextos e que ao longo da história
tem um papel central na organização das relações humanas, em resposta à
transgressão de regras sociais. Pode ser mais ou menos severo – da aplicação
de multas à pena de morte; da simples suspensão de privilégios até uma surra
violenta e brutal. Embora comumente associado ao sofrimento físico, pode
ser aplicado de diferentes formas, conforme listado a seguir:

• Castigo físico: inclui bater, seja com a mão ou outros objetos (vara, cinto,
palmatória, chicote, chinelos...), assim como chutar, socar, chacoalhar, em-
purrar, beliscar, puxar os cabelos, queimar, deixar cicatrizes, etc.

• Castigo restritivo: abrange retiradas de privilégios como não ver televi-


são, não utilizar o celular ou jogos, assim como a restrição/impedimento na
livre circulação e participação em atividades, seja prendendo em casa, não
deixando ir ao parque, eventos, etc.

• Castigo impositivo: submissão a algo penoso, como exigir que se permaneça


em posições desconfortáveis, obrigar que faça trabalhos pesados ou exercícios
intensos/exagerados. Inclui também imposição a algo que seja oneroso (por
exemplo, pagamento de multa).

• Castigo humilhante: compreende o abuso verbal, ameaças, intimidação,


crítica excessiva, ridicularizarão, ignorar, menosprezar, etc.

O castigo como ferramenta educativa na infância


Historicamente as ações punitivas recaem com mais rigor sobre aqueles que
se encontram socialmente marginalizados e em situação de vulnerabilidade,
como os pobres, os negros, as mulheres e as crianças. No entanto, as relações
sociais têm se transformado ao longo dos séculos, sendo cada vez menos
aceitos os castigos, punições ou qualquer forma de violência e discriminação
entre grupos sociais.

133
Em relação às crianças, observa-se uma demora da sociedade para reconhe-
cê-las como cidadãs de direito. Até a década de 1970, havia pouquíssimos
estudos sociológicos relativos às crianças e à infância. No Brasil, a primeira
vez que a criança teve seus direitos reconhecidos pelo Estado foi pelo Artigo
227 da Constituição Federal de 1988, quando se estabeleceu que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à alimentação,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.3

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, foi


um marco importante, reforçando a premissa do Artigo 227 da Constitui-
ção Federal, ao garantir respaldo jurídico e criminalizar a violência contra
as crianças. Contudo, a legislação existente não foi suficiente para assegurar
que as crianças fossem educadas sem o uso de violência. Recentemente, no
avanço da discussão em torno dessa problemática, a Lei Menino Bernardo
(2014), também conhecida como Lei da Palmada, veio para proibir quaisquer
formas de castigo físico, inclusive no âmbito doméstico. Infelizmente, a prá-
tica do castigo infantil continua presente e legitimada na sociedade atual e
a proposta desta lei tem se demonstrado polêmica, dividindo a opinião de
especialistas, pais e educadores.

Estamos em meio a um processo de mudanças e não há um consenso ab-


soluto sobre o tema. Talvez você tenha argumentos para adotar o uso do
castigo como uma estratégia para educar os seus filhos e pense que esta é
uma forma válida para ensinar lições a eles. Gostaríamos de contribuir com
alguns aspectos que nos levam a acreditar que o castigo, embora possa ser
efetivo no curto prazo, não é o caminho mais eficaz para educar os seus filhos
e prepará-los para a vida.

Um exercício de empatia
Vamos propor um exercício. Pense em alguns dos castigos listados anterior-
mente e imagine que foram direcionados a você, talvez vindos do seu chefe,
professor ou parceiro. Por exemplo, você chega atrasado em um compromisso
de trabalho e o seu gerente, para lhe ensinar a ser pontual, o ridiculariza na
frente dos seus colegas e o obriga a trabalhar em pé até o fim do expediente.
Como você se sentiria? Ficaria estimulado a chegar no horário no dia seguin-
te? Talvez sua resposta aqui seja sim, mas provavelmente, a motivação para
mudar viria do medo ou da vergonha. Este pode ser um resultado “positivo”
a curto prazo, pois de fato o seu chefe teria conseguido o que pretendia, a
3. Trecho original da Constituição Federal de 1988. O artigo 227 foi revisado em 2010 pela EC 65.

134
sua pontualidade nos compromissos de trabalho. Mas e a longo prazo? Você
acredita que a atitude do seu chefe o ajudaria a melhorar a sua pontualidade
nos outros compromissos do seu dia a dia? Você se sentiria motivado a co-
laborar com esse chefe em outras situações? Ou você já estaria pensando em
procurar outro emprego?

Esta cena pode parecer extrema e absurda, mas fazemos isso o tempo todo
com as crianças com o objetivo de educá-las e ensinar habilidades de vida
necessárias para a vida adulta, como responsabilidade, respeito e cooperação.
O que é visto como um abuso ou desrespeito a um adulto é frequentemente
aceito como normal no trato com uma criança. Por que esperamos que a
reação das crianças ao castigo seja diferente? Se aceitamos que as crianças
são pessoas com direito à dignidade e respeito, precisamos, então, repensar
as nossas práticas educativas.

Porque não usar o castigo


Lócus de controle: o castigo é uma ferramenta de controle externo, que não
garante que a criança aprenda a fazer o que é certo. Talvez no curto prazo o
castigo possa fazer com que o mau comportamento cesse, como no exercício
proposto anteriormente, mas será que a criança vai agir corretamente na
ausência desse controle externo?

Mudança de foco: o castigo faz com que a criança desvie a atenção do pro-
blema a ser tratado e de como solucioná-lo para a punição que está sofren-
do. Isso significa que, ao ser castigada, ela não irá refletir sobre o seu mau
comportamento, mas sim pensar no castigo que recebeu ou na atitude do
adulto – “Isso doeu!” / “Isso foi injusto!” / “Como meu pai foi mau comigo!”.
Perde-se a oportunidade de conduzir a criança a reavaliar o seu próprio com-
portamento e/ou pensar em formas de reparação.

Efeitos no cérebro: estudos apontam que os castigos levam as crianças a


sentirem medo e raiva, liberando cortisol – o hormônio do estresse –, que
a longo prazo pode impactar negativamente no desenvolvimento saudável
do cérebro. Em casos de punições duras e severas, observa-se inclusive a
redução de conexões e de células cerebrais. Além disso, quando um dos pais
provoca dor e ameaça ao filho, este vivencia um paradoxo biológico que não
pode ser solucionado: o que fazer quando os cuidadores, que são referências
de proteção, são os mesmos que causam dor e medo? Circuitos distintos são
ativados ao mesmo tempo no cérebro, podendo torná-lo desorganizado em
seu funcionamento.

135
Reagir ou pensar?: ao usar o castigo e a punição física, as crianças se sentem
ameaçadas, sendo ativadas as regiões mais primitivas do cérebro, responsáveis
pelas reações de luta, fuga ou paralisação. Como alternativa, você pode utilizar
estratégias mais eficazes para disciplinar, estimulando o cérebro pensante e
racional do seu filho e ajudando-o a refletir sobre suas ações e a tomar decisões
mais assertivas e saudáveis.

Autoestima: crianças submetidas a castigos e punições tendem a se sentir


deprimidas e desvalorizadas, com prejuízos na autoestima. Diversos estu-
dos apontam relações entre castigos físicos e problemas de saúde mental na
vida adulta, incluindo depressão, ansiedade e uso de drogas. Além disso, a
criança castigada pode generalizar esta conduta como aceitável e submeter-se
a relacionamentos abusivos em outros cenários e contextos, até mesmo na
vida adulta.

Exemplo: crianças veem, crianças fazem. Ao usar o castigo você ensinará seu
filho que esta é uma forma válida para resolver problemas. Se você bate no
seu filho, ele provavelmente irá reproduzir este comportamento em outras
situações ou contextos.

Distanciamento: as relações marcadas pelo uso de castigos e ameaças geram


sentimentos como ressentimento, resistência e rebeldia ao invés de proxi-
midade e confiança, podendo resultar na “obediência” – seja por medo ou
passividade – ou na dissimulação e uso de mentiras para evitar o castigo e
a punição.

Impasses: algumas pessoas defendem que o castigo é necessário para as crian-


ças se desenvolverem, mas como justificar essa prática? Pense nos impasses
que se levantam em torno do castigo. Quando e sob quais condições sua
prática é justificável? Existem tipos de castigos que se justificam e outros não?
Quem deve ser castigado? Quem tem direito/autoridade moral para castigar?
Se o mau comportamento continuar, qual o próximo passo? Gritar mais alto?
Bater com mais força? Como avaliar se a menina do poema de Cora Coralina
deveria ter sido castigada? Não existem respostas claras para essas questões,
pois perpassam pela subjetividade e pelo ponto de vista individual.

Se não o castigo, então o quê?


Seja proativo: quando nos sentimos desafiados, tendemos a reagir impulsi-
vamente com o nosso cérebro primitivo. Para evitar o castigo, é importante
agir proativamente e pensar em estratégias para lidar com o comportamento
desafiador que tragam um resultado “ganha-ganha”, que beneficie as duas

136
partes. Converse com seu filho, encontrem juntos uma solução e testem por
no mínimo uma semana para avaliar os efeitos.

Foque em soluções: a punição e castigo normalmente visam a extinguir


o mau comportamento e ensinar uma lição para as crianças, tendo o foco
na ação que se passou e na pessoa que errou. Ao focar na solução, busca-se
resolver de fato o que está causando o mau comportamento e evitar que
ele se repita, atribuindo responsabilidade ao invés de culpa. Desta forma as
crianças aprendem uma importante habilidade de vida que é a capacidade
de resolução de problemas.

Conecte-se: muitas vezes, as crianças se comportam de forma inadequada ou


desafiadora por não se sentirem aceitas e importantes. Você demonstra para
seu filho o quanto ele é importante para você? Suas ações transmitem essa
mensagem de forma clara? Invista em tempo de qualidade para aumentar a
conexão entre vocês.

Não leve para o pessoal: as crianças estão o tempo todo buscando entender o
seu lugar e o seu papel na família, escola e outros grupos aos quais pertencem.
O mau comportamento do seu filho pode ser a solução que ele encontrou
para um problema que você não está vendo e não uma ação planejada e
direcionada a você.

Preserve seu filho: descubra uma ferramenta de autorregulação que seja


eficiente para você se acalmar nos momentos de estresse. Afaste-se do seu
filho até que o ímpeto de uma reação violenta tenha passado, assim você
será um bom modelo de autocontrole, além de preservar a integridade física
e moral do seu filho.

Pergunte-se: sinto-me confortável ou culpado depois de corrigir o meu fi-


lho? Eu agiria da mesma forma com outra criança com quem tenho menos
intimidade? Eu permitiria que outro adulto tivesse a mesma atitude com o
meu filho? Eu gostaria de ser tratado assim? E, finalmente, minhas estratégias
de educação provocam dor, medo, vergonha ou deixam claro para meu filho
quanto eu o amo?

Muitos adultos bem-sucedidos foram educados com o uso de castigos e pu-


nições e, talvez, você seja um deles. A intenção deste texto não é julgar ou
apontar uma única forma para educação dos filhos. Nosso intuito é provocar
reflexões e apontar novos caminhos, afinal estamos em constante transforma-
ção e aprendizado e acreditamos que é possível educar as crianças de forma
firme e gentil, com mais conexão, respeito e empatia.

137
Referências Bibliográficas
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qualidade na primeira infância. Trabalho de conclusão de curso (Graduação
em Pedagogia). Universidade de São Paulo, 2008.

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ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/
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SIEGEL, D. J. Disciplina sem drama: um guia prático para ajudar na educação,


desenvolvimento e comportamento dos seus filhos. São Paulo: nVersos, 2016.

138
GRACE FALCÃO
CRP 05/23360

(21) 99705-9345
gracefalcao@gmail.com
familia_consciente
Escola de Pais Família Consciente
www.gracefalcao.com

• Psicóloga inscrita no CRP 05/23360, graduada em 1990. Especialista em


Psicopedagogia pela UCAM-RJ, Neuropsicologia pelo CNA e Santa Casa-RJ
e pós graduando em Psicologia Positiva, Ciência do Bem-Estar e Autorrea-
lização na PUC-RS

• Possui Ensino Continuado em Psicologia Médica na UFRJ

• Coach pela Sociedade Latino Americana de Coaching (SLAC); Coach In-


fantojuvenil – criança e adolescente – Rio Coaching; Coach Parental – Expert
Parent Coaching – Jaqueline Vilela; IMS Coaching Vocacional – Orientação
Vocacional

• Formação em Terapia Cognitiva Comportamental (TCC) – CPAF

• Hipnoterapeuta pelo Instituto Brasileiro de Hipnose – IBH

• Certificação em Discipline Positive Association (PDA) – Educadora Parental


em Disciplina Positiva. Idealizadora da Escola de Pais Família Consciente,
com o objetivo de levar informações relevantes sobre comportamento, de-
senvolvimento infantojuvenil e ajudando a restaurar famílias

• Presta consultoria e orientação a escolas com alunos que apresentam difi-


culdades comportamentais e de aprendizagem, além de atuar em consultório
clínico atendendo, criança, adolescente e adulto tanto presencial, como online
no mundo todo

• Meu objetivo sempre foi capacitar pessoas a aliviar suas dores e os pais a
lidar com a nova geração, utilizando recursos e ferramentas eficazes para
harmonizar e conectar as famílias.

139
Disciplina Positiva: Educar Requer uma Dose Equilibrada
de Firmeza e Gentileza

Embora a sociedade tenha evoluído – e muito – a percepção sobre a educação,


ainda sustenta-se a ideia de que castigos, punições e recompensas trarão bons
resultados ao disciplinar uma criança e/ou um adolescente. Jane Nelsen, psi-
cóloga americana doutora em educação, ao perceber que tais “técnicas” são
ineficazes, lança, ainda na década de 1980, seu primeiro livro sobre o assunto
intitulado Disciplina positiva. A discussão abordada é clara: como substituir
esse modelo, que é, de fato, inadequado? Partindo dessa indagação, venho
trazer para o público interessado, principalmente pais e professores, como
compreender e utilizar as contribuições da disciplina positiva para a educação
da criança e do adolescente nos universos familiar e escolar, e, assim, tornar
o disciplinamento um processo mais humanizado, respeitoso e digno com
os direitos das crianças.

A percepção que possuímos sobre a disciplina muda de acordo com o tempo


em que estamos inseridos. No século XIX, por exemplo, a criança não tinha
o direito a expressar sua opinião contra qualquer argumento do adulto, prin-
cipalmente confrontar a autoridade dos pais ou questionar suas ordens. Nos
dias atuais, o aluno é incentivado a participar dos questionamentos trazidos
em sala de aula e, no âmbito familiar, observa-se que os pais levam as opiniões
dos filhos em consideração. Há uma mudança positiva de perspectiva, o que
contribui para o processo de ensino-aprendizagem das novas gerações de
crianças e adolescentes. Ainda assim, para cada época, há uma maneira de
pensar e agir. Mudam-se as concepções, mas um fenômeno permanece: o
uso dos castigos e punições como caminho para disciplinar.

Vale compreendermos que tanto os pais como os professores reproduzem nos


filhos e alunos os modelos de educação herdados de seus núcleos familiares.
Geralmente, quando os adultos precisam conduzir a criança a cumprir nor-
mas e regras, o fazem com humilhações. Nesse contexto, os adultos já esperam
que a criança ou o adolescente saiba como se comportar adequadamente para
todas as situações. O resultado é que a criança sente-se envergonhada pelo
que fez ou ainda nutre sentimento de raiva pela maneira como foi tratada,
levando-a a ter reações que vão comprometer seu estado emocional. Na visão
dos adultos, a melhor maneira de conter as crianças e adolescentes ainda é
por meio do uso de gritos, xingamentos, barganha, recompensas, castigos de

140
todas as formas (inclusive os físicos). A pesquisadora americana Jane Nelsen
(2015) questiona assertivamente: “de onde tiramos a absurda ideia de que,
para levar uma criança a agir melhor, precisamos antes fazê-la se sentir pior?”.
A autora defende o uso da disciplina positiva como caminho para pensar os
processos de disciplina, indisciplina e sanções, questionando profundamente
a forma como lidamos com tais fenômenos.

Segundo Nelsen (2007), onde há muita ordem, mas pouca liberdade não há
escolhas. A regra é: “você faz porque eu mando”. Adultos que tiveram uma
criação autoritária provavelmente têm a autoestima comprometida, sentem-se
incapazes de solucionar tarefas e ultrapassar obstáculos que são comuns a
todos no desenvolvimento natural da vida; são pessoas que possivelmente
terão resultados acadêmicos muito baixos e níveis de estresses muito altos.
Neste sentido, a utilização da punição física como uma prática disciplinar não
apenas reafirma o poder dos pais sobre os filhos, mas também impõe medo,
favorecendo o desequilíbrio na relação e também prejudicando a reciproci-
dade de afeto entre eles. No modelo da disciplina positiva, as regras não são
impostas pelos pais, mas combinadas entre pais e filhos, fazendo com que
a criança saiba que faz parte do processo e sinta que sua opinião também é
importante e respeitada. Quando o filho acerta, também tem o carinho, o
afeto e a validação de suas atitudes. “Decidiremos juntos as regras para nosso
benefício mútuo... quando tivermos problemas, também procuraremos, em
conjunto, as soluções mais proveitosas para todos os envolvidos.”.

É importante saber que os pais não devem agir por impulso ou fazer o que se
têm vontade no calor do momento, mas colocar-se sempre no lugar da criança
e do adolescente e pensar com qual maneira gostariam de ser tratados no
momento de um comportamento inadequado, ou ao chamarem sua atenção
por alguma falha que possam ter cometido. Nesse contexto, convido a uma
breve reflexão: tente se lembrar de como foi seu modelo de criação. Como
seus pais reagiam a algum comportamento que você praticou de maneira
inocente? Quantas broncas você levou e não conseguiu entender o motivo de
tanta raiva ou irritação por parte deles? Quantos castigos pesados você sofreu
por pequenos deslizes? Agora tente lembrar como você enfrentava a situação.
Como expressava a sua emoção? Com choro ou birra? Fazia tudo ao contrário
da ordem recebida ou obedecia cegamente por medo? Qual era o sentimento
que você experimentava em relação aos seus pais naquele momento?

141
Colocar-se sempre no lugar da criança ou jovem é uma estratégia muito uti-
lizada por pais que utilizam a disciplina positiva como método de educação
infantojuvenil. Quando a criança tem boas atitudes, também desfrutam do
carinho, do abraço e da validação de suas atitudes; ela se sentirá, portanto,
incentivada a melhorar e a superar seus próprios desafios. Os adultos que
tiveram pais participativos e que utilizaram um modelo de educar como o da
disciplina positiva possivelmente são pessoas autossuficientes, independentes,
com alto grau de empatia e autoestima elevada. Logo, a disciplina constitui
um elemento indispensável para que o ser humano possa ter civilidade e
senso coletivo.

A escola é um ambiente que favorece esse tipo de vivência, e é onde a criança


e o adolescente aprendem a se socializar e perceber modelos de criação e
hábitos diferentes dos praticados em seu seio familiar. Essa convivência é
essencial para o desenvolvimento individual, pois humaniza o indivíduo,
dando a ele condições de ser cidadão. Sem disciplina não há autonomia do
sujeito, de forma que dificulta transformar crianças em adultos responsáveis
por sua própria vida e por suas relações interpessoais.

Para que seja possível educar filhos com responsabilidade e consciência de


seu papel na sociedade, é necessário que a disciplina se inicie logo após o
nascimento, pois, mesmo sem ter consciência de sua existência, os bebês
já conseguem perceber os hábitos e rotinas da família. A dificuldade em
conter os filhos existe por diversos motivos, mas talvez o maior deles seja o
excesso de permissividade: no século XXI, a mulher já se encontra totalmente
responsável por si mesma: é uma cidadã autônoma, economicamante ativa
e que possui, muitas vezes, dupla jornada de trabalho. É uma mudança não
apenas psicológica, mas também estrutural da sociedade. Se a mulher não
é mais “obrigada” a ficar em casa cuidando de seus filhos, quem assumirá o
papel de “cuidador”? É comum, portanto, que os pais – sobretudo a mãe –
busquem formas de suprir essa ausência.

Movidos pelo sentimento de culpa, os responsáveis acabam (como uma forma


de recompensa) cedendo a todos os pedidos de seus filhos. Isso é um proble-
ma, pois cria uma conclusão básica (e lógica) na cabeça da criança: “se meus
pais sempre me atendem, eles estão à minha disposição”. Esse pensamento/
comportamento irá se repetir em qualquer ambiente que frequentar – cre-
che, escola, casa de outros familiares, etc. Há, infelizmente, um estímulo
involuntário para que a criança desrespeite as regras desses ambientes em

142
questão. Aplicar o disciplinamento não significa que a criança não possa se
divertir, ao contrário, ela deve, mas precisa paralelamente aprender a colaborar
e adquirir responsabilidades. Os adultos precisam ensinar limites, a ajudar
na organização da rotina familiar, respeitar horários e saber que para cada
atividade existe um momento e um tempo adequado para serem praticados,
e para isso não há necessidade utilizar palavras rudes a fim de se conseguir
o resultado almejado.

O modelo proposto pela disciplina positiva leva a uma profunda reforma na


comunicação entre pais e filhos, professores e alunos, de forma a encorajar
as crianças a serem mais assertivas e colaborativas. Um exemplo comum
que ocorre nas famílias é utilizar frases como: “já falei mil vezes que não é
mais para fazer isso” ou “quantas vezes vou ter que repetir isso?”. O tom de
voz ameaçador e sem paciência não cria conexão com a criança, levando-a a
não se sentir capaz de realizar a tarefa, ou, simplesmente, a reagir de forma
negativa e, consequentemente, esquivar da ordem recebida. A abordagem
que segue pelo caminho do meio entre os castigos físicos, humilhações e a
total permissividade é a melhor forma de levar as crianças e os adolescentes
a se comprometerem com o que eles precisam fazer. Essas novas gerações
não aceitam mais imposições e regras rígidas, principalmente quando não
fazem sentido para eles.

Vale enfatizar que estamos vivendo tempos em que o acesso à informação


está ao alcance de todos, inclusive das crianças, tornando a sala de aula, que
nada mudou, entediante e sem conexão para que eles se interessem pelo con-
teúdo pedagógico e pelo ambiente escolar. Os pais e professores precisam
urgentemente estudar e se preparar utilizando ferramentas que possibilitam
melhorar as estratégias para o manejo com os filhos e alunos, levando em
consideração a individualidade de cada ser humano. É igualmente importante
estudar sobre o desenvolvimento infantojuvenil, neurociência, além de ter um
olhar mais apurado para identificar se a criança apresenta algum transtorno
psicológico e/ou psiquiátrico para encaminhar aos serviços especializados, a
fim de ter acompanhamento e tratamento adequados.

Diante do exposto, a indisciplina apresenta-se como um importante obstáculo


no processo de ensino-aprendizagem. Deve ser levado em consideração que
as crises de indisciplina e exteriorização dos sentimentos como: raiva, choro
constante, irritabilidade podem estar disfarçadas em outras questões, tais
como medo, vergonha, necessidade de se sentir aceito, dramas familiares e

143
outras infinidades de sentimentos que existem na subjetividade humana. No
entanto, é importante enxergar o disciplinamento como fundamental para a
mudança social. Isso quer dizer que o docente e os pais não devem almejar a
obediência submissa do aluno ou filho, ou que as relações em aula ou no lar
fluam em um “mar silencioso”, mediante o emprego da violência na criança,
mas que se importem com uma educação a longo prazo, preparando-a para
lidar com os conflitos cotidianos de maneira coerente e respeitosa, ensinando
habilidades sociais para o enfrentamento da vida.

O disciplinamento propriamente dito é falho quando alguns princípios bá-


sicos deixam de existir como, por exemplo, o respeito. É comum encontrar
educadores e pais com ideias controversas no que diz respeito a encontrar o
equilíbrio entre rigidez e permissividade. De fato, a crença na impossibilidade
de ser firme e gentil ao mesmo tempo convida os docentes e pais a continua-
rem atuando por meio de humilhações e castigos corporais (um comporta-
mento verdadeiramente autoritário), pois ainda há o contexto cultural que
coloca a criança em condição de submissão frente ao adulto.

Para ilustrar, darei um exemplo: uma criança de seis anos quer o brinquedo
do seu colega de classe, e este não quer emprestá-lo. Ele ficou irritado e decidiu
que ia pegar a força. Na disputa, o brinquedo quebrou. As mães de ambos
recebem um bilhete da escola relatando o ocorrido. Uma das mães, usando
de paciência e utilizando um tom de voz suave, porém firme, diz para o seu
filho que soube do acontecido com o seu colega e verbaliza que gostaria de
saber o que o levou a querer o brinquedo do colega (perceba que a mãe não
criticou e nem o acusou). O filho explica que ficou com muita vontade de
conhecer o brinquedo novo do colega e quis pegar, e disse que é feio o amigo
não emprestar. A mãe comenta: imagino que o brinquedo deva ser muito
legal, e segue fazendo a pergunta: como foi que seu colega reagiu quando
viu que o brinquedo quebrou? O filho responde: ele chorou e ficou triste.
A mãe novamente pergunta: como você se sentiria se fosse contigo, e o que
gostaria que o colega fizesse para reparar o acontecido? O filho responde que
ia chorar também e que gostaria que o colega pedisse desculpas e comprasse
o mesmo brinquedo para ele. A mãe encoraja o filho e diz que a solução por
ele apresentada foi muito boa e que ele sempre tem boas soluções. Em seguida
a mãe indaga: como você poderia fazer para comprar esse brinquedo para
seu colega? O filho responde que poderá tirar dinheiro do cofrinho que ele
estava juntando para comprar um videogame novo.

144
No exemplo acima, a mãe não utilizou gritos e tampouco punições diretas:
fez primeiro uma conexão e disse que, se o filho tomou essa atitude, foi por
que o brinquedo era muito legal. Em seguida, ela o fez refletir sobre suas
motivações e perguntou-lhe como deveria reparar o acontecido. A criança
entendeu que atitudes como essa gera uma consequência.

Sem o modelo da disciplina positiva, a mãe chegaria em casa e, ao saber do


acontecido, gritaria com a criança e diria que ela não faz nada certo; ficaria,
também, uma semana inteira sem jogar videogame. Conclusão: colocar o
filho de castigo e aplicar uma punição sem ter a correlação com o ocorrido
não faria a criança de fato perceber seu erro. Nesse caso, o mais assertivo é
redirecionar seu comportamento para uma atitude consciente.

É imprecindível a necessidade de se desenvolver um novo olhar sobre o mau


comportamento. As crianças nem sempre conseguem usar a comunicação
verbal adequada, ou seja, sem gritos, choros ou confusões para se expressar,
pois ainda não possuem maturidade suficiente para nomear suas emoções.
Portanto, pais, mães e educadores precisam ajudá-las a decodificar seus sen-
timentos e a enxergar o que não está visível.

O objetivo desse capítulo é estimular os pais e docentes a repensarem suas


práticas e ações, bem como abrir um canal de escuta para falar sobre receios,
crenças e valores, trazidos de tão longa data e difíceis de serem removidos.
Acredito que, com o engajamento dos pais, cuidadores e docentes, em breve
poderemos desfrutar de gerações mais preparadas e resilientes para trans-
formar a humanidade e tornar as relações mais justas, com mais respeito,
cortesia e senso de coletividade.

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plina.pdf> Acesso em: 5 mai. 2019.

146
EDER MAGRI
CRP 06/99901

(11) 98465-3802
psicologoedermagri@outlook.com
@psicologoedermagri
Psicólogo Eder Magri
www.psicologoedermagri.com/blog
www.linkedin.com/in/edermagri

• Psicólogo clínico, inscrito sob o CRP 06/99901

• Graduado pela Universidade Nove de Julho

• Especialização em Psicoterapia Breve Psicanalítica pelo Instituto Sedes


Sapientiae

• Formação SUPERA - Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência


de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção
social e Acompanhamento através de parceria UNIFESP/UNIVESP

• Profundo respeitador das histórias humanas. Encantado pelo trabalho no


desenvolvimento emocional de adolescentes e adultos. Trabalho dedicado
para que cada paciente descubra ou redescubra a preciosidade e potencial
que carrega dentro de si.

147
Pais Permissivos, Autoritários ou Negligentes: Quais os Riscos?

Vivenciar a experiência da paternidade e da maternidade, é sem dúvida


uma das vivências mais ricas para um ser humano e que mais mexem com
as emoções e sempre mexerão. Quanta mudança isso traz para os adultos
que recebem um filho.

Agora, se você é pai ou mãe, já sabe do que estou dizendo. Embora a maioria
das pessoas tenha condição biológica de se reproduzir e de gerar filhos,
nem todas elas têm preparo emocional para isso.

O convite para este mergulho no oceano da criação de filhos e suas emo-


ções tem o objetivo de sensibilizar e alertar para que as condutas extremis-
tas não dominem a experiência de maternidade ou paternidade.

Pais saudáveis

Quando você observa quem cuida das crianças e dos adolescentes ao seu
redor, observará que na maioria das vezes esses cuidados são realizados
pelos pais. No entanto, nem sempre esta tarefa é exclusiva dos pais, à medi-
da que outras pessoas, como parentes ou cuidadores, também contribuem
nesse papel.

Para um dos grandes autores da psicologia, chamado D. W. Winnicott, a de-


finição de mãe vai além daquela que gera uma criança, mas sim de um adulto
que realiza a chamada função materna. E esta função materna é considerada
vital para sobrevivência do bebê nos seus primeiros meses de vida.

O mesmo autor fala sobre a função paterna, que na maioria das vezes é
exercida pelo pai. Ele diz: “o pai tem uma função também importante:
‘pode ajudar a criar um espaço em que a mãe circule à vontade’.”.

Essa distância entre a mãe e o bebê, o pai e o bebê e, consequentemente, o


ambiente e o bebê é muito marcante no período de desenvolvimento inicial
dele, que marcará todo desenvolvimento desse ser humano.

148
Já o oposto também pode acontecer. O “cuidar demais” ou o “descuido” po-
dem abrir espaço para os riscos na formação e desenvolvimento da criança.

Os riscos

Por meio de um olhar mais aproximado na história daqueles que carregam


algum sofrimento de longa data, é muito comum verificar que existiram
falhas graves no suporte familiar, e que suas consequências transbordam
para aspectos da saúde, educação e desenvolvimento social.

A família é um fator de risco? Se estivermos falando de pais extremistas,


superprotetores ou negligentes, com as características que iremos falar
agora, serão, sim, um fator de risco, ou mais que isso, serão um ambiente
de risco.

Ao considerarmos a própria família como um ambiente de risco, se faz


necessário compreendê-los não de uma forma taxativa e determinista.
Pais que se tornaram algozes dos seus filhos geralmente também vieram
de famílias desestruturadas ou foram submetidos a situações em que as
experiências de ternura foram raras ou inexistentes. E isso explica muita
coisa.

É perceptível as marcas que os pais deixam nos filhos, inclusive na vida


adulta. Se não receberam um gesto de carinho ou apoio não saberão como
fazer isso ao se tornarem pais. O prejuízo disso se torna o grande alerta
deste texto.

A herança cultural e de valores familiares transmitida dos pais para os


filhos influenciarão muito em como estes filhos de hoje serão pais amanhã.
Sendo assim, a ideia desta reflexão não é julgar esses pais ou considerar
que não haja possibilidade de mudança, mas justamente o contrário. Por
existir a possibilidade de reflexão e mudança é que este texto existe. Sem
isto não haveria sentido escrever estas linhas.

Ao olharmos para os riscos envolvidos nas maneiras empobrecidas afe-


tivamente de criar os filhos, nos deparamos com consequências em que
muitas vezes estão envolvidos diversos fatores.

149
Entre os fatores mentais é possível observar: sintomas depressivos, trans-
tornos de ansiedade, entre outros. No caso de fatores de personalidade,
destacam-se: baixa autoestima, estresse, baixo rendimento escolar, menor
socialização, impulsividade, baixa tolerância à frustração, entre outros.
Além disso, estes filhos terão muito mais dificuldade em reconhecer os
próprios limites e o dos outros. Ao entrarem na adolescência, que é um
período marcado pelas novas experiências, aumenta a probabilidade de
tornarem-se frágeis e mais suscetíveis ao consumo de drogas, álcool, ta-
baco, prática de sexo promíscuo, envolvimento em acidentes e mortes no
trânsito, uso excessivo da internet e/ou jogos e suicídio.

Imagine seu filho dependente de alguma das substâncias ou práticas acima.


Só de imaginar é bastante angustiante, não é mesmo?

Os fatores familiares que apontam para fragilidade no vínculo e que co-


locam os filhos em riscos são: uso de álcool e outras drogas pelos pais,
ausência de vínculo afetivo familiar, presença de conflitos familiares, es-
trutura familiar precária, pouca supervisão dos pais, ausência de regras
claras e/ou de limites em relação ao comportamento dos filhos, situações
estressantes como mudança de cidade ou perda de um dos pais.

E dentro deste ambiente de risco podemos realizar uma distinção entre os


estilos de pais na relação de criação dos filhos. Para compreendermos esses
riscos vale mencionar características destes três tipos de pais: permissivos,
autoritários ou negligentes.

Pais permissivos

A permissividade é caracterizada por pais que, na relação com os filhos,


não têm firmeza ou controle em seus discursos e atitudes. Agem permitin-
do e aprovando sempre o que eles desejam, nunca apresentando um limite.

Vamos considerar um bebê ou uma criança que não recebe limites daquilo
que quer fazer. Ele poderá tornar-se um adolescente e, posteriormente, um
adulto sem limites. E isso abre espaço para que tenham inúmeros prejuízos
no seu desenvolvimento social e individual.

150
Uma criança ou adolescente que não respeita o espaço público ou mesmo
privado e compartilhado será visto e recebido, muitas vezes, com hosti-
lidade. O que poderá ser muito confuso para lidar, pois se em casa ele é
tratado como “rei”, em que todos os seus “súditos” o obedecem e atendem a
seus caprichos, ao se deparar com os limites existentes fora de casa, sempre
virá acompanhado com uma dose extra de sofrimento e dificuldade de
compreensão de tanta diferença ou indiferença.

As consequências não param por aí. Quando os pais não querem frustrar
o filho e fazem todas as suas vontades, certamente não estão se dando
conta de que estão tirando dele a capacidade de lidar com o impedimento
e frustração fora de casa, fazendo-o sofrer mais ainda e com grande risco
de não receber um acolhimento desta dor.

Sendo assim, é muito saudável para o desenvolvimento do seu filho que,


desde cedo, limites lhe sejam apresentados. E é claro que dar limites não
será tarefa fácil, mas você pode minimizar isso usando uma ferramenta
muito útil, o diálogo.

Dialogar com seu filho, em qualquer idade, demonstrará que os limites


nos ajudam a conviver em sociedade e que não são a demonstração de que
são menos amados. Pelo contrário, somente quem ama é que irá cuidar e
deixar como legado valores familiares preciosos para seu desenvolvimento.

Este diálogo pode e deve acontecer em qualquer idade cuidando para que
a comunicação seja feita de acordo com a idade e nível emocional do seu
filho. Com as crianças deve-se explorar os recursos lúdicos, brincadeiras e
histórias como ferramentas valiosas neste momento. Com os adolescentes
uma conversa franca e atitudes acolhedoras com uma comunicação não
violenta podem contribuir para fluir a relação.

Pais autoritários

Seguimos para outro extremo. Considerando o significado de autoritário


como sendo aquele a favor do princípio de submissão cega à autoridade.
Vejamos seus desdobramentos.

151
O bebê nasce e por sua natureza explora tudo ao seu redor. Começa pela
mãe, ele próprio e aos poucos vai expandindo este ambiente. Mas pais
autoritários irão determinar que esta exploração tenha limites, muito res-
tritos por sinal. Aqui existe o risco de mutilar emocionalmente este filho,
à medida que toda manifestação de atitude ou limite dele é determinada
e imposta pelos pais, baseado em experiências vividas com seus próprios
pais ou sem referências.

A presença de pais autoritários em uma família em que há um adolescente


certamente haverá será conflituosa, uma vez que nessa fase da vida ele,
por sua natureza, passa a questionar as atitudes e os valores apresentados
pelos pais ao longo de sua vida.

Nos dias atuais, a sociedade passa por constantes mudanças, elas são mais
visíveis no campo tecnológico, mas os impactos podem ser percebidos em
todos as outras esferas. E ser rígido e inflexível com os filhos pode deixar
traços disso neles. Podem, com isso, faltar vivências em seu desenvolvimento
que lhes permitam sobreviver a todas essas mudanças. E cada vez mais os
filhos acabam percebendo que há um mundo lá fora e que é muito atraente.

Algumas vezes, para acessar esse mundo, confrontam ou distanciam-se


de seus pais, a fim de explorarem esse mundo escondidos deles. Há um
distanciamento físico e principalmente emocional, deixando-os à mercê
de outras pessoas que exploram essa oportunidade e que os conduzem aos
fatores de risco já apresentados aqui.

Aos pais de hoje, vale refletir e lembrar que um dia já foram filhos em
formação, e que ao comparar os valores familiares de seus pais ou gerações
anteriores, muitas vezes já não cabem ou resolvem problemas mais atuais.

Talvez entendam que a educação e os valores familiares transmitidos pe-


los seus pais tenham lhe garantido uma boa educação. Mas a que preço?
Reduzir a própria cobrança e realizar um constante exercício de olhar por
outros pontos de vista contribui para uma aproximação com os filhos. E
assim, possibilitando ser uma escolha dos filhos darem continuidade à
cultura e valores familiares, mas de modo a afetividade esteja presente.

152
Pais negligentes

Caracterizados por atitudes de indiferença, falta de controle e afeto, temos


os pais negligentes.

Ser pais afetivos é mostrar interesse real pelo filho. Perguntar como foi o
dia do dele e não se satisfazer com a primeira resposta genérica que ele der
como: “ah foi normal”, principalmente quando é adolescente, pois existe
uma natural necessidade de preservar um espaço próprio. Entretanto, se
a participação dos pais e a demonstração de um real interesse é um hábito
estimulado desde cedo, quando criança, este hábito perdurará durante a
adolescência e ter essa aproximação será mais tranquilo.

Demonstrar real interesse pelo dia do seu filho vai muito além de cum-
prir um protocolo. Saber dos passos que ele está dando no mundo é uma
verdadeira satisfação.

Conclusão

Pais mais afetivos contribuem para o desenvolvimento dos filhos em todas


as instâncias da vida. Permitem que haja o questionamento pelos filhos, mas
sem deixar de seguir os valores definidos para nortearem a criação deles.

São grandes entusiastas dos projetos dos filhos aparando as arestas, mas
de modo algum sufocando sua criatividade e seus sonhos.

Hoje sabemos que o acesso à informação é muito fácil e abundante. No


entanto, muito mais do que ter a informação, é fundamental ter vivências.

Podemos entender que ninguém é totalmente independente, pois se não


fossem os ensinamentos e valores de vida transmitidos pelos pais ou cui-
dadores, os filhos ficariam sem nenhuma referência de vida. Cultive o afeto
e constituirá um ser humano do qual se sentirá honrado em sua jornada.

Diante de tantos extremos observados ao longo do texto, considere cultivar


atitudes em que haja o equilíbrio para não ser um pai ou mãe permissivo,
negligente ou autoritário. Pondere o peso e a brandura para que no final
exista e perdure o amor.

153
Referências Bibliográficas

CALLIGARIS, C. A adolescência. Publifolha. 2011

DAVIS, M. e WALLBRIDGE, D. Limite e espaço. Rio de Janeiro: Imago,1982.

PIRES, S. Desamparo na infância. Biblioteca 24 horas, 2013.

SILVA, E. A.; MICHELI, D. Uso, abuso e dependência de drogas. In: Adolescên-


cia, uso e abuso de drogas: uma visão integrativa. São Paulo: Fap-Unifesp, 2011.

154
DENISE FRANCO
CRP 06/61310

(11) 99960-2333 / 2955-8823


denisefranco@cultivandoequilibrio.com.br
@cultivandoequilibrio
@euqueroocaosdainfancia
www.cultivandoequilibrio.com.br

• Psicóloga Clínica inscrita sob o CRP 06/61310

• Mãe da Mari e do Lilo e apaixonada por Psicologia e Maternidade, trabalho


todos os dias para florescer onde a vida me plantou e deixar no mundo a
minha singela contribuição.

• Formação em Terapia Cognitiva, Gestão Emocional e Orientação Familiar.


Especialista em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae

• Certificada pelo Positive Discipline Association dos EUA como Educadora


Parental, Educadora de Primeira infância e de Professores em Disciplina
Positiva

• Idealizadora do @cultivandoequilíbrio e do @euqueroocaosdainfancia,


onde oferece cursos, consultorias e treinamentos para pais e educadores

• Realiza atendimentos clínicos, e cursos (presenciais e online) pelo portal


Cultivando Equilíbrio, além de informações sobre Inteligência Emocional e
Disciplina Positiva

• Coautora dos livros “Psicologia Sem Fronteiras” e “Saúde Emocional na


escola: um novo olhar sobre a educação”.

• Autora do ebook “ Eu quero o caos da infância” que traz reflexões e práti-


cas sobre a maternidade, inspirada na Disciplina Positiva e na experiência
incrível de viver a maternidade real.

155
Inteligência Emocional na Infância: Uma Conversa Para
Pais e Filhos

Quando recebemos o presente de educar um filho para a vida, recebe-


mos também um pacote cheio de desafios. Ser mãe e pai é uma grande
descoberta que nos reconfigura no mundo. Desde a chegada dos filhos
somos imersos em um universo de emoções. Sentimos alegria ímpar ao
ouvir as primeiras palavras e medo de falhar quando colocamos limites.
Experimentamos a tristeza e a preocupação em cada episódio de febre nas
madrugadas e também a raiva quando somos desafiados nas crises de birra.

Lidar com a emoção dos pequenos pode ser desafiador, mesmo para os
mais experientes. As emoções são conhecidas e vivenciadas de forma
universal em todas as culturas e estão presentes nos melhores e piores
momentos da nossa vida. Se somos constituídos por emoções e experi-
mentamos as emoções desde nossa infância, poderíamos supor que essa
não seria a tarefa mais desafiadora na educação dos filhos. Todavia, au-
xiliar os filhos na descoberta das próprias emoções é um grande desafio,
se desejarmos educar crianças capazes de lidar positivamente com suas
emoções e que encontrem formas respeitosas consigo mesmas e com o
mundo para resolver as situações conflituosas do dia a dia.

Emoções não são boas ou ruins, apenas fazem parte de nós, da nossa
história e da nossa interação com o mundo. Ao classificá-las em boas ou
más, corremos o risco de limitá-las, julgando quais devem ser eliminadas
e quais devem ser aceitas. Antes de mais nada, é preciso considerar que
todas as emoções são importantes para a desenvolver harmoniosamente
a inteligência emocional nas crianças.

Os pais são importantes referenciais para ensinar aos filhos logo cedo
que as emoções existem. Sentir medo, raiva, alegria e tristeza faz parte
da vida desde que ele chegou ao mundo. É uma tarefa importante a fa-
mília ajudar as crianças a nomearem suas emoções, para que no futuro
tenham habilidades de vida essenciais para autocontrole e autogestão das
próprias emoções.

156
Existem diversas formas de agir e ensinar sobre as emoções, diante de
uma crise de birra, por exemplo; mas quero destacar aqui duas formas
de intervenções que podem ser úteis para gerenciar os momentos mais
críticos com gentileza e firmeza.

Intervir imediatamente muitas vezes nem é uma escolha a ser feita; é uma
forma de encerrar o conflito emergente. Mas nas intervenções imediatas
nem sempre conseguimos ensinar sobre emoções e habilidades de vida,
visto que longos discursos não costumam funcionar muito bem nessas
situações. Você e a criança possivelmente estão vivendo um momento de
estresse e sabemos que, nessa hora, a aprendizagem fica prejudicada. Nas
intervenções imediatas, que ocorrem no momento do “caos”, os pais po-
dem ajudar traduzindo o que a criança está sentindo: “você está com raiva
porque não pode mexer na tinta agora”. Porém, em outro momento, não
muito distante do fato ocorrido, convoque seu filho para uma conversa
ou uma reunião familiar. Olhe nos olhos, segure nas mãos. Assim você
estará fazendo intervenções posteriores, mostrando que o fato vivenciado
não foi esquecido ou desvalorizado. Cada fato que é verdadeiramente
considerado pela família e, valorizado do ponto de vista emocional, pode
ser transformador. Nesse momento fale que você percebeu que ele estava
de um jeito e que depois que aconteceu o fato, ele ficou de outro porque
ficou com raiva, com medo, ou triste. Explique com afeto, firmeza e genti-
leza que existem formas diferentes e construtivas de se resolver conflitos.
Para terminar a conversa, convide-o a se corresponsabilizar pelas suas
atitudes. Pense e imagine, com seu filho, como pode ele reagir diferente e
positivamente em uma próxima situação semelhante. Dê sugestões, ideias,
imaginem juntos possibilidades de superação e coloque-se à disposição
para estabelecer uma parceria de afeto, respeito e encorajamento. Isso
fará com que ele se sinta aceito e importante, além de seguir o propósito
com mais determinação.

Lidando com a raiva

Entre as quatro emoções que estamos abordando neste capítulo, podemos


dizer que raiva é a emoção que mais desafia o autocontrole. A raiva que
surge nas crises de birra, por exemplo, é a emoção que mais contamina as
emoções dos adultos. Se pensarmos na tristeza ou no medo infantil, con-
seguimos agir, de maneira geral, mais empaticamente com os filhos, sem
mergulhar na emoção. Imagine seu filho com medo. Você, como educador

157
que maneja a situação, o ajudará a vencer o medo e não necessariamente
sentirá o medo dele. Com a emoção da raiva nem sempre é assim.

Sem dúvidas o amor é a emoção que permeia as relações afetivas e as ações


educativas dos pais. Por isso, falar sobre a raiva pode ser um tabu, mas se
você acessar agora a última crise de birra que você vivenciou com seu filho
vai encontrá-la. A raiva, embora rotulada como uma emoção negativa,
não precisa assumir o contexto apenas negativo. Ela pode ser uma energia
para mudança de algo que “não vai bem na vida”. Seu filho pode aprender
com você que diante da raiva não é preciso se descontrolar, agredir ou
agir de forma impulsiva. Mostre à ele outras possibilidades, dê sugestões
de autocontrole. Quando sentir raiva, ele pode procurar um adulto que
o ajude a mediar a situação. Pode sair para beber água e voltar mais cal-
mo. Pode procurar um cantinho na sua casa e ir até ele para se acalmar.
Ensinando seu filho manejar de forma positiva a emoção da raiva, você
está ensinando como ser mais tolerante e pacífico sem desconsiderar a
energia positiva que a raiva traz para as mudanças necessárias.

Quando a criança está descontrolada diante da frustração ela pode as-


sumir uma postura agressiva e desafiadora com os pais, contrapondo
os limites e colocando a prova o autocontrole. Imediatamente, os pais
que estão como condutores da situação sentem-se na obrigação de reagir
também, pois a raiva da criança prontamente se projeta neles. Quando
os pais não conseguem trabalhar seu próprio autocontrole diante dessa
emoção, a raiva torna-se inimiga e impede de encorajar os filhos para
atitudes positivas. Controle o volume da sua voz, afaste-se se precisar
e volte mais tranquilo. Peça abraço ou sugira um contato visual. Olhar
nos olhos ou segurar as mãos pode mudar a percepção do fato. Esse é um
treino possível que requer empenho e autopercepção.

Lidando com a tristeza

A emoção da tristeza nas crianças costuma ser motivo de aflição para os


pais. Ver um filho triste ou chateado é dolorido. É também um sinal de
alerta importante para olhar nos olhos e atentar-se aos comportamentos
que se seguem. Algumas vezes a criança que está triste não consegue
exatamente dizer o que a está deixando assim. Isso acontece porque ela
ainda tem pouca clareza sobre si mesmo e sobre suas emoções e por isso
pode alterar a percepção da realidade e dos fatos. Assim como os adultos,

158
as crianças também desejam superar os momentos de tristeza. Os pais
devem ficar atentos se a criança estiver apresentando muitas caracterís-
ticas de melancolia e tristeza com persistência e intensidade aumentadas
e avaliar com um profissional de saúde mental qual é o melhor caminho
para ajudá-la.

Ao ficar triste, seu filho comunica uma realidade interna importante. Essa
é uma ocasião em que os pais podem mostrar aos filhos a confiança e o
acolhimento. Descaracterizar a tristeza, assim como potencializá-la não
é o melhor caminho. Os pais podem usar o momento para dizer ao filho
que ​sabem o que é a tristeza, que entendem o que ele está sentido e que
essa emoção faz parte da vida. T ​ ambém podem aproveitar essa conversa
para encorajar a criança falando que acreditam que ele será capaz de su-
perar esse momento​. Isso estabelecerá entre vocês um vínculo respeitoso,
de confiança e afeto. Quando estiverem falando sobre tristeza, mostre a
ele as vezes que você foi resiliente diante das intempéries da vida e como
sobreviveu às suas próprias tristezas. Conte a ele que quando ficamos
tristes, ficamos também mais introspectivos e refletimos muito sobre nós
mesmos. Ensine a pintar, escrever textos e mostre uma música ou uma
poesia linda que foi escrita em um momento de tristeza.

A emoção da Tristeza pode ser um grande aprendizado sobre resiliência.


Não tenha receio de mostrar suas tristezas aos seus filhos ou de falar
sobre os momentos nos quais você também se sentiu triste. Isso não é
sinal de fraqueza, dividindo histórias e compartilhando algumas das
suas experiências, você comunica muito mais do que dando conselhos.
Use seu bom senso para escolher as histórias que farão sentido naquele
momento de vida e que você acredita que o ajudará e nunca abandone o
afeto e a gentileza nas palavras. Atente-se para não cair na armadilha de
oferecer coisas para preenchê-los, atendendo a todas as suas vontades.
Essa alternativa pode realmente trazer um efeito analgésico diante da
tristeza infantil, mas talvez não seja a escolha mais acertada. Mais do
que coisas para preencher esse momento, seu filho precisa que você o
aceite, o compreenda e o ensine sobre superação. Ele espera encontrar
em você apoio e segurança para entender que tudo pode terminar bem
e que você estará por perto. Nem sempre a causa da tristeza pode ser
solucionada pela criança. Se os pais puderem intervir ou ajudar deverão
fazê-lo para que os filhos não carreguem consigo a sensação de solidão.
Mas há tristezas, como a perda de uma pessoa querida, por exemplo,

159
que não podem ser solucionadas e que serão doloridas para os pequenos.
Diante disso eles precisam ser acolhidos, precisam de carinho, de afeto
e de cuidados especiais para superar esse momento. Por esse motivo é
preciso conversar sobre essa emoção na infância. Permita que a criança
experimente a certeza do amor incondicional da família. Um ambiente
de harmonia, acolhimento, compreensão, cooperação e afetividade ser-
vem como contraponto para as situações tristes. Não é possível evitar
a tristeza, mas é possível oferecer segurança e apoio para os momentos
mais doloridos, sejam grandes ou pequenos.

Lidando com o medo

O medo na infância é uma emoção complexa. Ele pode aparecer em mui-


tos momentos e pode estar ligado a fatos reais ou imaginários. Assim
como as outras emoções, é importante aprender a gerenciar e compreender
o medo desde a infância. É ele que acompanhará seu filho nos momentos
que precisar se manter alerta diante de um perigo real, mas é ele também
que pode paralisá-lo diante de um desafio ou de uma situação que precisa
ser enfrentada. O medo pode aparecer camuflado como uma ansiedade
de separação, por exemplo. Crianças que têm dificuldade de ficar longe
dos pais, mesmo nos lugares nos quais deveriam sentir confiança, estão
comunicando medos importantes e, muitas vezes, precisam de ajuda.

Converse e use seu bom senso para acolher quando for necessário ou
sugerir pequenos enfrentamentos. Não use o medo como um recurso
para controlar comportamentos: “para de chorar senão o bicho vem te
pegar”. O medo é uma emoção difícil para a criança. Algumas vezes ela
precisa de apoio, outras vezes ela precisa de encorajamento, mas em todas
as situações ela precisa de você para traduzir e interpretar a emoção e
sugerir formas construtivas e positivas de manejo.

Lidando com a alegria

A alegria é aquela emoção que todo mundo quer sentir. E como é pra-
zeroso e intenso viver a alegria dos filhos. Não há nada que se compare.
Embora a alegria, entre todas as emoções, seja a mais desejada, ela é tão
importante quanto as outras emoções. Conversar sobre alegria é também
um grande aprendizado para pais e filhos. Embora pareça controverso, a
alegria tem pouco espaço nas conversas familiares, pois o foco das inter-

160
venções, muitas vezes, recai sobre a raiva, o medo e a tristeza. Celebrar
pequenas vitórias, agradecer juntos, compartilhar as emoções vivenciadas
traz ganhos emocionais importantes para a criança.

Ensinar os filhos que a vida é cheia de pequenas alegrias é, antes de tudo,


uma delícia, mas é também um jeito de ensinar sobre essa emoção. Viver
os pequenos momentos, comer pipoca juntos, dar abraços inesperados,
dançar junto e separado, brincar com tinta, passear no parque ou tomar
banho de chuva ficam registrados na mente e no coração dos pequenos.
Crianças não precisam de eventos grandiosos para experimentar a alegria.
Proporcionar alegria não é necessariamente proporcionar mais coisas. A
alegria não precisa de patrocínio. Ela é uma emoção natural que pode e
deve ser alimentada por momentos simples e cotidianos e precisa assu-
mir seu devido lugar com valor nas famílias. Embora fiquemos felizes e
satisfeitos em proporcionar aos filhos o melhor com nossos recursos, o
que também é importante, a emoção da alegria tem seu maior valor nos
momentos e nas experiências. Ensine seu filho a valorizar as pequenas
alegrias. Escrevam juntos situações cotidianas, colecionando e registran-
do os bons momentos e encha um pote de gratidão.

Ensine que a felicidade pode ser uma coleção de bons momentos vividos
e apreciados.

Educando com o controle das emoções

Educar os filhos para a vida e ensiná-los sobre suas próprias emoções é


experimentar o amor incondicional. É compreender que passos pequenos
levam longe. É treinar a constância e a empatia para equilibrar a firmeza
e a gentileza oferecendo seu afeto e mostrando com segurança o caminho
que deseja percorrer. Educar corações exige amor, tolerância e esperança.
Amor para seguir persistente, tolerância para acolher e esperança para
imaginar quem você deseja que te olhe nos olhos daqui a uns 20 anos e
te lembre de que você fez seu melhor. Eu quero filhos que me olhem nos
olhos, e que sejam capazes de compor suas próprias histórias conectadas
às emoções que os compõem.

161
Referências Bibliográficas

ADLER, A. C
​ ooperation between the sexes​. N
​ ew York: Anchor Books, 1978.

NELSEN, J.; LOTT, L..; GLENN, H.S. D


​ isciplina positiva​. São Paulo:
Pensamento Cultrix, 1981.

SELIGMAN, M. E. P. ​Felicidade autêntica: usando a nova psicologia


positiva para a realização permanente.​Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

SIEGEL, J. DANIEL.; BRYSON T. P​. O cérebro da Criança.

VYGOTSKY, L. S. ​Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem​. São


Paulo: Ícone/Edusp, 1988.

WINNICOTT, D. W. ​O ambiente e os processos de maturação. Porto


Alegre: Artes Médicas, 1983.

162
MILENA BLANCO

(71) 98884-4253
colenamamaedigital@gmail.com
@colenamamaedigital
Cole na Mamãe Digital

• Formada em Turismo pela Universidade Salvador

• Trabalha como estrategista digital e coach digital ajudando famílias cons-


truírem uma relação saudável com a tecnologia

• Mãe de uma adolescente de 13 anos e uma criança de 9 anos, cria conteúdos


reais para o Cole na Mamãe Digital, um Instagram voltado para pais analó-
gicos entenderem seus filhos digitais

• Responsável pelo bate-papo “Crianças no mundo digital, como proteger


nossos filhos?” onde conversa com pais que sentem seus filhos cada vez mais
digitais e não conseguem acompanhá-los.

163
Como Lidar com o Uso da Internet?

A tecnologia moderna trouxe consigo grandes avanços e conveniências que


todos nós gostamos. Também trouxe desafios que ainda estamos tentando
descobrir como lidar. Entre as mais exigentes é a necessidade de garantir que
nossos filhos saibam como usar a internet de maneira saudável e produtiva.

O mundo está em constante mudança e não é diferente com pais e filhos


dessa nova geração. Apesar dos pais serem bastante conectados, os filhos
conseguem se superar a cada novidade lançada. A geração Z não conhece um
mundo sem computadores, wi-fi, banda larga, aplicativos, etc., trocou a TV
pelos vídeos de Youtube, os ídolos do esporte pelos “Youtubers”, não fazem
ideia do que seja um disquete, uma fita cassete e até mesmo o MP3 já está
obsoleto para essa geração. Sem dúvida nenhuma eles sabem muito mais de
computadores, aplicativos e dispositivos eletrônicos que seus pais.

Sendo assim, a maioria das crianças e adolescentes deve ser ensinada a usar
a internet de forma responsável, assim como a maioria das pessoas aprende
a dirigir com responsabilidade. Uma das primeiras coisas que passa pela
cabeça dos pais é proibir o uso da internet. Mas será mesmo que essa é uma
decisão inteligente? Assim como na condução, é preciso educação, prática
supervisionada, regras e limites razoáveis para desenvolver essas habilidades.

A Internet é um recurso incrível onde aprendemos sobre as notícias e entre-


tenimento, socializamos, conversamos, compramos e isso enriquece nossas
vidas de maneira que não poderíamos imaginar.

Como pai/mãe, obviamente, você quer ajudar seus filhos a navegar nesse
mundo digital com segurança, responsabilidade e com níveis crescentes de
independência. E isso nem sempre é fácil. No entanto, à medida que o uso da
internet se torna mais familiar e mais incorporado à vida cotidiana, os pais
são cada vez mais conectados e antes de pensar em educar nossos filhos, nós
pais, precisamos fazer uma avaliação crítica do nosso comportamento diante
dos dispositivos eletrônicos. Não esqueçam que somos exemplo e entender
as verdadeiras limitações que pais e filhos enfrentam no mundo digital é o
primeiro passo para encontrar estratégias eficazes que a família possa usar
para maximizar as oportunidades e minimizar os riscos.

164
Precisamos assumir essa responsabilidade de monitorar o uso de internet
dos nossos filhos, pois somos pais digitais sim, tanto que sabemos que é um
processo longo e árduo e por isso precisamos de comprometimento, porque
a lista de razões é extensa. Vai de riscos que a internet e as redes sociais re-
presentam para os menores, restringir o tempo de exposição à tela, controle
dos aplicativos e jogos online até o conteúdo que eles consomem.

Como uma mulher antenada e ligada em novas tecnologias, além de mãe de


uma adolescente de 13 anos e de uma criança de 9 anos, te digo com toda
firmeza: vá além da limitação de tempo de tela. Crie seu filho para ser um
cidadão digital, assim como você o educa para a vida real.

Uma das perguntas que mais me fazem é “devo monitorar meu filho na
internet?”. E a resposta é sim, você deve, afinal, a Internet está cheia de poten-
cial para as crianças serem expostas a conteúdos inadequados, assim como
interações prejudiciais, como intimidação e assédio.

Se estamos certos de querer que nossos filhos sejam boas pessoas, o próximo
passo é entender como utilizar os meios digitais de forma responsável, crítica,
criativa e cuidar de todos os recursos que a rede oferece, já que a internet é
permanente. E, para ensinar nossos filhos, também precisamos aprender
junto deles, pois somos o exemplo.

Vou compartilhar aqui com vocês cinco ideias para educar crianças e ado-
lescentes digitais que vêm ganhando força com a hashtag #digitalpareting.

1. Diálogo: crie uma conexão com seus filhos, sem diálogo não há confian-
ça. Ouça suas histórias, compartilhe suas experiências, seja receptivo para
que contem seus problemas, tanto no mundo real quanto no digital. Esteja
presente quando criarem um perfil em uma rede social, navegue junto com
seu filho e assista seus youtubers preferidos, observe os jogos, as conversas
com amigos, as postagens. Conversem sobre os usos, os vícios, a grandeza e
os perigos do mundo digital.

2. Etiqueta digital: as redes sociais não deixam de ser extensões de nossas


vidas, dessa forma é essencial explicar a seu filho sobre os malefícios da ex-
posição em excesso, de fotos comprometedoras no feed das redes sociais,
de comentários maldosos em fotos de amigos ou famosos, de compartilhar
fake news, correntes ou algo que possa machucar alguém. Antes de publicar

165
qualquer coisa sobre outro ser humano, peça para ele se colocar no lugar da
pessoa. Ele iria gostar? Também é importante a criança ou adolescente saber
que conversar com o fone de ouvido nas alturas não é nem um pouco edu-
cado assim como ouvir música com volume muito alto em lugares públicos.

3. Regras e limites: quando ensinamos nossos filhos a dirigir, raramente


entregamos as chaves aos nossos filhos de 18 anos e dizemos “divirtam-se!”
Em vez disso, colocamos limites, com base na responsabilidade e na matu-
ridade deles. O mesmo deveria acontecer com a internet e as mídias sociais,
devemos estabelecer regras saudáveis que modelem os limites, o respeito e o
autocontrole que se aplique a todos, inclusive aos adultos.

4. Supervisão: a partir do momento que nossos filhos começarem a admi-


nistrar com responsabilidades seu tempo e obrigações no mundo digital, nós
pais, devemos gradativamente conceder acesso à internet e mídias sociais.
Comecem com o acesso a computadores e dispositivos eletrônicos em áreas
comuns, com limite de tempo durante o dia e combinem um horário à noite
para entregar os celulares e regular o sono.

5. Educação digital: assim como ensinamos os perigos da vida real, pre-


cisamos ensinar nossos filhos sobre os benefícios e malefícios do uso da
internet. Como encontrar informações, se conectar com família e amigos, a
importância da imagem online. Importante eles entenderem que todos nós
criamos nossa imagem por meio da nossa presença online e essa imagem
pode afetar nossas vidas de inúmeras maneiras. Precisamos também ensinar
os perigos das mídias sociais e como reagir perante situações problemáticas
como cyberbullying, assédio, roubo de identidade.

Para ajudar nessa difícil jornada, os pais podem contar com recursos de con-
trole parental disponíveis em diversos dispositivos eletrônicos, inclusive em
canais de TV por assinatura e até mesmo no Youtube. São de fácil down-
load, basta seguir a orientação e o passo a passo. Alguns são pagos, outros
gratuitos como o Google Familylink – que usamos desde o ano passado –,
ele nos permite ter noção de quanto tempo cada filha passa nos aplicativos,
e assim conseguimos dar um limite diário de uso, colocar um horário para
bloquear à noite, além de ele ter um localizador. Um aliado muito importante
para os pais.

166
A internet é um espaço público, como uma praça. Não são apenas pessoas
amigas que transitam por lá, por isso é preciso muita atenção ao navegar no
mundo digital para identificar os riscos, que são muitos. Dispersão, ameaças,
pedidos de nudes (fotos sem roupas), encontros reais com pessoas virtuais
são alguns desses riscos.

Precisamos ter certeza que nossos filhos farão boas escolhas quando estão
conectados à internet. Então se as criançsa se tornam obsessivas por jogos ou
redes sociais, se ficam na defensiva ou tentam esconder jogos e determinados
sites, ou ainda mostram sinais de ansiedade sobre sua vida virtual, é um sinal
de que passou da hora dos pais ligarem o alerta vermelho.

Nossas crianças e adolescentes têm direito à preservação da imagem, da pri-


vacidade, da identidade, da autonomia, dos valores, das ideias e das crenças,
bem como respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Infelizmente, a maioria dos responsáveis não conhecem esses direitos, então
se seu filho ou algum conhecido teve um desses direitos violados denuncie
na delegacia mais próxima.

O site Safernet (www.safernet.org.br) é um importante aliado. Entre os con-


teúdos disponibilizados, orientam a:

1. Preservar todas as provas (diálogo suspeitos, e-mail ofensivos, etc.), im-


primindo e salvando. O ideal é ir a um cartório e fazer uma declaração de
fé pública de que o crime em questão existiu, ou lavrar uma Ata Notarial do
conteúdo ilegal/ofensivo. Esses procedimentos são necessários porque, como
a internet é dinâmica, as informações podem ser tiradas do ar ou removidas
para outro endereço a qualquer momento.

2. Com todas as provas em mãos, procure a Delegacia de Polícia Civil mais


próxima do local de residência da vítima e registre a ocorrência. Você também
pode ir a uma Delegacia Especializada em Crimes Cibernéticos.

3. Solicite a remoção do conteúdo ilegal e/ou ofensivo enviando uma carta


registrada para o prestador do serviço de conteúdo na internet, que deve
constar os indícios de autoria do(s) crime(s). No Safernet, inclusive, tem um
modelo dessa carta.

167
O site ajuda também pessoas que praticaram o cyberbullyng e estão arrepen-
didas, por meio do do Helpline (www.helpline.org.br), um canal de ajuda,
seguro, no qual crianças e adolescentes podem conversar com psicólogos
sem precisar se identificar, sendo ajudados a pensar em alternativas para os
problemas que estão enfrentando no mundo digital.

A internet e as mídias sociais se tornaram ferramentas importantes da vida


moderna. Os jovens precisam de educação, limites adequados à idade e prá-
tica supervisionada, a fim de desenvolverem as habilidades necessárias para
gerenciar com segurança os benefícios e riscos desse recurso em evolução.
Se você está preocupado com esse processo para seus filhos, lembre-se que
tudo começa com a comunicação.

Certifique-se de que sua conexão com eles seja forte e que eles estejam dis-
postos a ser honestos com você sobre o que está acontecendo em suas vi-
das. Ponha regras fortes em vigor para protegê-los e permitir que eles ganhem
liberdade gradualmente quando estiverem prontos para isso.

Referências Bibliográficas

CUNHA, J. A.; NEJM, R. Diálogo Virtual 2.0: Preocupado com o que acon-
tece na internet, quer conversar?. 4.ed. Salvador: SaferNet Brasil, 2015. 48 p.:il.

KILBEY, E. Como criar filhos na era digital. Tradução Guilherme Miranda.


1.ed. São Paulo: Fontanar, 2018.

PRICE, C. Celular: como dar um tempo – o plano de 30 dias para se livrar


da ansiedade e retomar a sua vida. Tradução Guilherme Miranda. 1.ed. São
Paulo: Fontanar, 2018.

168
BEATRIZ PAKRAUSKAS
CRESS 23.996

beasocialworker@gmail.com
@stopviolenci
Beatriz Pakrauskas
www.stop-violencia-seja-free.com.br

• Bacharel em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

• Especialista em Proteção e Prevenção à Violência Doméstica contra a Criança


e Adolescente pela Faculdade Paulista de Serviço Social – FAAPS

• Especialista em Impactos da Violência na Saúde pela Fundação Oswaldo


Cruz- FIOCRUZ/ Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca-ENSP

• Pós-graduanda em Educação, Saúde e Terapia Sexual pelo Instituto de En-


sino, Pesquisa e Orientação em Saúde- IEPOS e Hospital Pérola Byington

• Atividade profissional se desenvolveu na área da Assistência Social, em Servi-


ço de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes - SAICA e Serviço
de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência – SPVV

• Atualmente atendo crianças, adolescentes e mulheres no Ambulatório de


Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Centro de Referência da Saúde
da Mulher Hospital Pérola Byington e presto serviço a uma Consultoria Es-
pecializada em Saúde Mental para Empresas.

169
Como Adotar uma Comunicação Não Violenta?

A comunicação não violenta (CNV) é uma metodologia elaborada pelo Dr.


Marshall B. Rosenberg, mediador internacional, pacificador e terapeuta. Parte
das primícias que a linguagem é o ponto central para deixar a vida mais plena.
Este artigo apresenta os fundamentos sócio-históricos das raízes da violência
em nossa cultura e comenta as bases da CNV, a intenção não é esgotar os dois
assuntos que se conectam, mas provocar pais, educadores e responsáveis a
repensar seus paradigmas, crenças e valores sedimentados.

Na maioria das sociedades contemporâneas as crianças e adolescentes são


pessoas com condições peculiares de desenvolvimento, cidadãos, sujeitos de
direitos e de liberdades fundamentais.

Nem sempre foi desse modo, portanto, penso ser interessante resgatar um
pouco de história para entendermos como se desenvolveu o conceito de in-
fância. Na história da humanidade é muito recente o conceito de proteção à
criança, que antes não eram vistas ou ouvidas, além de serem tratadas como
“pequenos adultos”.

Ao longo da construção sócio-histórica da infância no Brasil, temos a con-


fluência dos seguintes tipos étnicos e socioculturais de crianças: as portuguesas
pobres, que vinham trabalhando nas embarcações; as portuguesas de famílias
ricas; as escravas negras africanas; as indígenas e, depois, as crianças mestiças.

Os pensadores que antecediam ao século XVIII, segundo Day et Alii (2003,


p.11), acreditavam na utilidade dos castigos, punições e espancamentos de
chicotes, ferros e paus como método eficaz de educar as crianças, pois elas
poderiam ser “moldadas de acordo com os desejos dos adultos”. Nos escritos
quinhentistas dos jesuítas são relatados que os indígenas entregavam seus
filhos para serem educados por eles. As punições eram aplicadas aos indíge-
nas que fugissem, faltassem à missa ou à escola. Um aspecto importante era
o autoflagelo ensinado às crianças como forma de penitência e purificação.

Esse quadro é bem peculiar, estamos começando a refletir e a entender, o


porquê de a maioria de nós brasileiros trazemos a violência em nossas raízes e
na história social de nossas famílias. Nossa origem está marcada por determi-
nantes socioculturais que tinham suas bases na compreensão de uma época,
com sua visão de homem e mundo especifico, seria extremamente injusto da
nossa parte com a história da humanidade realizarmos julgamentos morais,
esse não é nosso objetivo.

170
Observamos em comentários nas redes sociais, fóruns e debates, que vários
extratos da sociedade civil, afirma-se a favor da agressão como um método
corretivo e saudável de dar limites aos filhos, sem questionar sua origem e as
consequências físicas, psicológicas e sociais. Esse senso comum colabora em
formato de um escudo protetor da vida privada de cada família, como “lócus
intocável”, e favorece uma forma de esconder os crimes e abusos cometidos
contra as crianças e adolescentes.

Nessa organização da sociedade violenta, que exerce a agressão física de forma


naturalizada como “corretivo bom”, encontra dentro da estrutura familiar, o
local por excelência de prática. O espaço doméstico da família está destina-
do às relações interpessoais privadas, em contraposição ao espaço público.
Quando pensamos em espaços privado e público da família, pode ocorrer que
fora de casa vivamos a cidadania com direitos e deveres; e, dentro de casa, a
não cidadania, é possível que haja uma autoridade absoluta e que devemos
cumprir as regras criadas por essa pessoa, caso contrário seremos punidos. Ou
seja, fora da vida familiar se exercia a cidadania, enquanto dentro da família
era o pátrio poder a exercer as decisões e regras da família.

O doutor em Psicologia Clínica e criador da CNV, Marshall Rosenberg, inicia


sua obra sobre como criar filhos compassivamente narrando uma experiência
em grupo de pais e mães, que ilumina o que afirmamos, sobre a não cidadania
no lar e a cidadania no espaço público.

Ele refere que uma das dinâmicas que empregava nas oficinas de maternagem
e paternagem era dividir o grupo em dois subgrupos, dando a mesma tarefa:
escrever numa folha de papel um diálogo com alguém em situação de conflito,
e ele sinalizava qual seria o conflito.

Os grupos em espaços separados, com a mesma tarefa, foram comunicados


quem é a pessoa do conflito. Em um grupo, a pessoa é um filho; no outro,
um vizinho. Na plenária, quando socializavam as narrativas, não revelavam
seus interlocutores do debate. E conclui Marshall, após a leitura dos diálogos
de cada grupo, questionando os participantes, solicitando para avaliarem o
grau de respeito e compassividade. Em todas as vezes que fez essa dinâmica,
o grupo em que o interlocutor era um filho apresentava menos respeito e
compassividade que o outro, ou seja, o quanto é permissivo ofender, xingar
e destratar uma pessoa somente por sermos pais.

A primeira tarefa, e difícil de se executar, é perceber o quanto somos violentos


no nosso cotidiano, não reconhecemos a nossa violência, porque relacionamos
violência com matar, ferir, armas, brigas e guerra. A violência “passiva”, ou
seja, aquela dissimulada, provoca raiva na pessoa que a recebe e pode ser o
estopim da violência física.

171
A maioria de nós adultos contemporâneos vivemos uma educação meritocrá-
tica, somos avaliados pelo “merecimento”, diante das falhas e erros devemos
ser corrigidos a base de julgamento, insulto, crítica e agressão física para
entender nosso erro e nos corrigirmos. Esse modo de educação está fixado
em recompensas e punições. Essa forma de viver não traz felicidade e não
gera o estado interior de maravilhar-se diante da vida.

Essa dinâmica introjetada em nós aparece quando erramos. Imediatamente


começamos um diálogo interno de recriminações e desqualificações, dizemos:
“como fui burro!” ou expressões semelhantes, que despertam sentimentos
ruins. Uma das dicas ótimas dadas por Dr. Marshall é fazermos o seguinte
questionamento: “como percebemos que estamos nos auto educando de modo
violento?”. Três sentimentos sinalizam isso: depressão, culpa e vergonha.

Ainda segundo o mesmo autor, existe uma diferença entre empatia e simpa-
tia. Empatia: exportar-se, levar sua consciência a entender o outro, sentir ou
experienciar a dor de outra pessoa como se fosse a sua própria, sem interesse
de aliviar o sofrimento do outro. Na empatia eu desconsidero meu paradigma,
a fim experimentar o que o outro está vivendo naquele momento.

A empatia é a capacidade de nos conectarmos às outras pessoas de forma


profunda; é a entrega do presente da nossa presença total. A compreensão
intelectual é diferente de empatia, é dizer: “eu te entendo”. Empatia é feita na
vivencia do agora. O que está vivo na pessoa agora, foco nos sentimentos e
necessidades do agora.

Simpatia é importar-se, é trazer para si o problema do outro, pode ser também


a habilidade de perceber a situação de forma similar à pessoa envolvida, coo-
peração na resolução e desejo de aliviar o sofrimento do outro. Exercer sim-
patia é colocar meus valores e crenças com o intuito entender a outra pessoa.

O exercício da empatia conosco mesmo é fundamental para sermos compassivos


e termos atitudes empáticas com os outros, porque é difícil sentir pelos outros
o que não sentimos por nós. E quando o outro é nosso filho ou filha? E quando
temos modelos de educação a seguir? Muitas vezes pais e mães afirmam que
não conseguem criar seus filhos como seus pais o criaram! E esse parâmetro é
torturador. Dessa forma, Marshall afirma que criamos o inferno na terra quando
acreditamos na existência de protótipos maravilhosos de pais e mães.

Em uma aula de capacitação sobre comunicação não violenta, Dr. Rosenberg


ensinou que não devemos buscar “ser perfeitos”, porém menos ignorante.

172
A comunicação não violenta é uma importante ferramenta que contribui
efetivamente na ajuda da conexão conosco mesmo e com os outros, restabe-
lecendo uma relação humanizadora e compassiva, com objetivo de solucionar
conflitos pacificamente.

O ponto central é um novo conceito sobre o ser humano, todos nós, temos
aspectos em comum, e a renovação mental é a partir do que nos identifica e
nos une. Deixar de lado a visão pessimista do ser humano, que desfigura a
humanidade no outro e estimula atacar ou se defender.

Essa programação mental transforma a linguagem cotidiana com valores de


paz, de franqueza e de abertura ao diferente. A comunicação não violenta
incentiva desaprender paradigmas antigos, fixados em julgamento, medo,
obrigação, punição, recompensa e vergonha.

Os quatro componentes da CNV são: observação (o que eu observo/ouço/vejo),


sentimentos (emoção ou sensação), necessidades (o que eu preciso ou o que
é importante para mim) e os pedidos (você estaria disposto ou gostaria de...).

As observações, a identificação de sentimentos e das necessidades exigem a


empatia, a retirada de rótulos e julgamentos, o desafio do olhar para dentro de
nós, da nossa interioridade e reconhecer nossos valores inegociáveis, crenças
fantasiosas, preconceitos e ajuizamentos.

É importante entender que para ampliar nossa comunicação devemos


reaprender a ouvir e a falar com os conceitos da CNV. Ouvir e falar são a
chave. Ouvir: pedidos, observações, sentimentos e necessidades. Falar: pe-
didos, observações, sentimentos e necessidades.

Marshall transmitiu seu conhecimento e o processo de amadurecimento da


CNV a partir de muitas histórias e diálogos, esteve em muitas instituições
de ensino divulgando uma nova metodologia para construir espaços edu-
cacionais harmônicos e diminuir a violência. Depois passou a ser chamado
para situações graves de conflitos em comunidades, brigas entre gangues e
policiais e conflitos internacionais.

Apresentaremos algo concreto da vivência de Marshall e suas orientações, a


fim de que possamos compreender na prática como usar a CNV nas relações
entre pais e filhos. De todos os exemplos dados em seus ensinamentos, Dr.
Marshall apresenta o risco de usar a palavra filho/criança como um rótulo que
retira a dignidade de pessoa da criança, designando uma relação assimétrica,
que torna o adulto uma autoridade, que tem o poder e o saber, com o objetivo
de fazer o filho/criança se comportar de determinado modo.

173
Caso exemplar: uma mãe queixou-se ao Dr. Marshall de que o filho se recu-
sava a ir à escola. Ela dizia para ele se arrumar para ir à escola, e ele dizia: não!
Motivada a exercitar a empatia, tentou entender os sentimentos que estavam
escondidos na resposta “não” e as necessidades do filho. Ela disse: “estou
percebendo que você sente frustação de ir à escola, porque tem necessidade
de ter mais tempo para brincar”. O filho respondeu negativamente, disse que
não gostava da escola porque tudo era para o futuro. Estude para ter um bom
trabalho! Estude para ser alguém na vida! Esse discurso não correspondia às
suas necessidades momentâneas. A mãe fez uma conexão empática e, antes
que pudesse responder, foi atender ao telefone; quando regressou, seu filho
estava vestido e pronto para ir à escola.

Dicas:
• Abandone a ideia de que existem pais perfeitos.
• Aprenda com seus erros.
• Evite julgamentos.
• Exercite o diálogo.
• Tome conhecimento das suas necessidades e sentimentos.

Referências Bibliográficas
AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. A longa jornada: da domesticação ao
protagonismo infanto-juvenil. Disponível em: <www.recriaprojetos.com.
br>. Sala do Conhecimento / Nuvem Estudos, 2014.

DAY, Vivian Peres et al. Violência doméstica e suas diferentes manifes-


tações. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul, Porto Alegre, v. 25, supl. 1, p. 9-21, abr.
2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-81082003000400003&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 20 ago. 2019.

FALEIROS, V. P. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e


trauma. Serviço Social & Saúde, Campinas, v. 2, n. 2, p. 65-82, 19 jan. 2005.
Disponível em: <https://doi.org/10.20396/sss.v2i1.8636441>. Acessado em: 20 ago. 2019.

PRIORE M. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a colônia e o impé-


rio. Historia das crianças no Brasil. 7.ed. São Paulo: Contexto, 2013, p. 84-106.

ROSENBERG, M. B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos: sua


próxima fala mudará o seu mundo. Tradução de Grace Patrícia Close Deckers.
São Paulo: Pallas Athenas, 2019.

ROSENBERG, M. B. Criar filhos compassivamente: maternagem e pater-


nagem na perspectiva da comunicação não violenta. Tradução de Tônia Van
Acker. São Paulo: Pallas Athenas, 2019.

174
LETÍCIA CORDEIRO

(31) 99794-7101 / 99959-7101


contato@duenna.com.br
@leticiacordeirooficial
@duennagestaoresidencial

• Pós-graduada em Direito Público

• Personal Organizer desde 2010

• Especialista em Gestão Residencial

• Primeira formação técnica pela empresa “OZ! Sistemas de Organização


Ltda”, referência nacional sobre assuntos de organização, cujas metodologias
foram desenvolvidas por pesquisas internacionais tutoriadas pela NAPO
(National Association of Professional Organizers) a maior e mais importante
associação de profissionais de organização do mundo, sediada nos EUA

• Perfil elaborativo, estratégico e agregador

• Atuação prática no mercado da organização

• Instrutora, palestrante e divulgadora da atividade de organização profissio-


nal pela TV, rádios, jornais e revistas e em eventos e feiras gerais.

175
A Organização Como Fator Diferencial na Educação Infantil

Muito se discute, nos dias de hoje, sobre a importância da boa educação


infantil. E com o objetivo do debate, também quero provocar você com
uma pergunta muito simples, mas que a resposta, e principalmente a
sua prática, é desafio para os pais: “você está ensinando ao seu filho os
conceitos da organização? ”

Assim, vou convidar você a ampliar o paradigma da organização, além


das dobras, além de colocar cada coisa em seu lugar. Vamos alinhar a
organização a um fator diferencial na educação infantil. E se isso faz
sentido para você, que pretende o melhor na educação de seu filho, nossa
troca será extraordinária.

Ao longo desses nove anos trabalhando como Gestora Residencial, per-


cebi que os responsáveis pelas crianças se sentem perdidos, porque nem
mesmo eles tiveram uma boa orientação em organização. Em sua grande
maioria, desacreditam que este ensino deve fazer parte de uma rotina de
cuidados com a criança. E quando falo que a organização tem fator fun-
damental na família, já que é nas relações familiares que formamos nossa
base e estrutura de indivíduo e adotamos os hábitos de equilíbrio pessoal,
muitos me olham como se minhas palavras não fossem compreendidas.

Sempre que tenho a oportunidade, gosto de afirmar aos pais que também
cabe a eles essa linda tarefa de incluir os conceitos da organização ao
desenvolvimento infantil. Meu objetivo é alertar para o quão importante
é a organização na vida do ser e que trabalhar a organização no âmbito
familiar é agregador e fortalece os laços familiares. Isso é grandioso e
eu posso lhe afirmar.

Se criamos nossos filhos para o mundo, qual adulto você pretende apre-
sentar? Um organizado e independente ou aquele que não dá conta de
suas próprias coisas? Penso que esse questionamento é muito sério, mas
ainda não está incorporado em nossa sociedade brasileira no quesito
educação.

176
Interessante notar, nesse ponto, que mães e pais acabam “deixando para
lá” a falta de organização dos filhos nos primeiros anos. Os brinquedos
brotam nos lugares mais improváveis e sempre há alguma coisa fora do
lugar, mas por ser tudo tão fofo e legal a prioridade acaba sendo, na ca-
beça dos pais, a liberdade “falsa” de brincar da criança, que deve vir em
primeiro lugar. Só que esta concepção, normalmente atinge seu ponto
máximo na adolescência, quando pode ser bem difícil negociar uma
simples arrumação do quarto.

Os pais precisam, desde cedo e aos poucos, fazer com que a criança en-
tenda que ela também faz parte da rotina de organização – não por uma
imposição, ou porque os seus responsáveis são chatos, mas para mostrar
que, em casa, é papel de todo mundo cuidar dela.

É importante ensinar a criança a se organizar, a participar da rotina do-


méstica, a ter horários para tarefas, etc. Essa é uma maneira de ajudá-la
a participar da dinâmica familiar e receber orientação em organização
de forma contínua e apropriada para a sua idade.

Vejo que muitos pais pensam no investimento intelecto-educacional dos


filhos. Você já se deu conta que ensinar a organização também deve fazer
parte da formação? A criança precisa saber recolher os seus brinquedos
e guardar, entender que não deve deixar a toalha molhada sobre a cama,
não espalhar meias sujas no banheiro ou até mesmo deixar restos de co-
mida pelo quarto, tudo de forma natural, dentro de uma rotina familiar.

A todo responsável afirmo que é mais fácil ser organizado do que desor-
ganizado e acertar na educação dos conceitos de organização da criança
não tem preço. Uma criança que se encontra em um ambiente organizado
e tranquilo tem liberdade para viver, ser feliz, aprender e criar.

Estudo de caso

Na minha prática profissional já vi, algumas vezes, o preço a ser cobrado


da família quando há a desestrutura nesta orientação, e quero compar-
tilhar uma situação muito impactante, quando em 2013 recebi um cha-
mado de uma mãe que queria uma prestação de serviço de organização
para uma filha:

177
”Um apartamento muito bem decorado e ambientes bem organiza-
dos: cozinha, sala, quartos do casal e de seu outro filho de 22 anos,
com boa distribuição das quantidades de coisas. Limpos. Quando
então paramos na porta do quarto da filha, o único ambiente em
que a porta ficava fechada. Essa mãe me diz, “Letícia, não se as-
suste, esse ambiente é bem diferente dos demais, e eu não consigo
controlar a desorganização de minha filha. Eu desisti e minha única
forma é manter a porta fechada”.

Deparei-me com um mundo à parte, de uma forma tão desorganizada


e tumultuada que imaginei naquele momento a dor que aquela mãe
e aquela família estavam passando. Não havia acúmulos, não era um
caso de acumulação. Havia ali um desleixo, quase que proposital, com
roupas, livros, calçados, mala de viagem desfeita a mais de dois meses...

A história contada era de uma filha que não ligava para suas coisas
desde pequena. As duas crianças, no dizer daquela mãe, eram bem
diferentes. O filho sempre tinha facilidade em guardar e manter os
seus pertences. Já a filha, muito desorganizada. Nasceu assim! O
filho, não, era presente de Deus.

Não houve ensinamentos sobre organização. O grande erro daqueles


pais foi tentar a mesma medida de orientação e persistência com as
duas crianças. Como a filha era muito mais difícil, a mãe sempre
arrumava tudo, catava tudo, buscava e procurava (nos lugares mais
inacreditáveis) os brinquedos e coisas da filha.

O resultado: a mãe, depois de uma vida sem ensinar, apenas fazendo,


cansou-se e deixou a bagunça acumular esperando que sua filha mu-
dasse sua visão de organização, o que não iria ocorrer por ausência de
percepção, e aquela situação estava gerando um grande conflito familiar.

A mãe esperava, como um passe de mágica, uma mudança de compreensão


da filha. Mas me diga você leitor, como uma criança cuida daquilo que
não tem valor para ela? Bem, para essa história familiar, de uma forma
resumida, o trabalho foi dar novo significado ao hábito de negligenciar suas
coisas pessoais, porque não houve o aprendizado de organizar e cuidar.

178
Como ensinar formas de organização

Qual é a fórmula para melhor inserir os conceitos da organização na


estrutura de educação de uma pessoa? Se pensarmos que o universo da
criança é em sua maioria o “brincar”, é neste universo que os pais devem,
inicialmente, implementar os conceitos da organização.

Também é fundamental ter persistência. Assim se começa: antes de


perder a paciência, lembre-se de que é possível ensinar a criança a ser
organizada. Mas os pais devem ter consciência do quanto exigir e do
quanto permitir; visto que o nível de compreensão de organização de
uma criança é diferente de um adulto e, muitas vezes, será necessário
ensinar de forma lúdica.

Um diferencial é envolver a criança na organização e não apenas que


ela continue a organização que o seu cuidador fez. É essencial que seja
lógico para a criança o lugar onde é guardado e porque, para que assim
essa atitude se transforme em um hábito.

Mostre e ensine o processo de organização, de acordo com a maturidade


da criança; explique o que está fazendo e peça ajuda. Faça desse processo
um contato natural familiar, como passear e estudar. E quando a criança
fizer algo relacionado à organização, elogie e incentive e só corrija em
medida necessária, orientando-a. Não refaça tudo, principalmente na
frente da criança.

Se os pais querem estimular o sentido da organização ou uma mudança


de comportamento em seus filhos, não espere um resultado perfeito logo
de início. Precisa paciência para repetir, dia após dia, o que deve ser
melhorado, e não desista de pedir ajuda dos filhos quando for organizar
sua casa.

E, acima de tudo, seja um exemplo. Os pais precisam dar o exemplo da


organização prática para seus filhos. Com certeza, o exemplo dos pais
vale muito para as crianças. A ajuda e orientação dos pais são importan-
tes, mas é o exemplo que fará a diferença e contribuirá para que a família
toda adote um ritmo de organização.

179
Dicas para o dia-a-dia

Como primeira e essencial dica prática para o “ensinar a se organizar”


é evitar o acúmulo de coisas para a criança. Acredito que hoje um fator
de dificuldade é o acúmulo, e, além disso, a quantidade de objetos dis-
poníveis para a criança, que não se envolve com um brinquedo, ficando
perdida e desmotivada frente a tantas opções aleatórias.

Observe a forma como a criança interage e forma as suas brincadeiras e


monte kits com brinquedos ou brincadeiras em caixas organizadoras. Às
vezes peças iguais, outras vezes conjuntos de peças que compõem uma
brincadeira formatada pela própria criança. Deixe esses kits ao alcance
das crianças para que ela mesma tenha condições de escolher e guardar
o que for utilizado. Se houver dificuldade de a criança entender como se
guarda os kits de brinquedos, faça marcações coloridas neles e em suas
caixas, assim pela cor, inicialmente, a própria criança saberá onde cada
brinquedo deve ficar.

Isso é ensinar de forma natural a devolver o que pegamos; um dos pri-


meiros aprendizados da organização.

Faça coisas simples, mas que toda criança consiga assimilar. Instale gan-
chos na porta do guarda roupa ou na parede para que a própria criança
pendure os objetos de uso diário como mochila ou pijamas, para parti-
ciparem da organização do ambiente, além de seus brinquedos.

Não desanime e não se perca, porque organizar pode ser um desafio,


principalmente se exigir uma mudança de comportamento. Esse desafio
pode ser maior ou menor, dependendo da capacidade de mudança e a
consciência de cada um. Nada difícil ou pesado e sim leve, agregando
resultados positivos para você e sua família.

Lembre-se sempre de que a organização e o seu ensino devem ser na-


turais, compreendidos e não impostos, e os responsáveis pela criança
têm fator fundamental neste assunto, para permitir que ela absorva os
conceitos e a importância da organização e do cuidado em sua vida.

Um facilitador é saber que a organização é uma capacidade que pode ser


desenvolvida ou trabalhada em todos nós, independente do “tanto” de

180
organização que temos embutidos em nosso ser ou de termos esse tema
em nossa formação pessoal ou em nossos hábitos. Assim, toda criança
tem capacidade de se tornar organizada. Ensine isso ao seu filho.

Dados sobre organização

Falando em dados técnicos e embasados dessa importância, digo que a


psicologia em desenvolvimento infantil afirma que “Os pais que ajudam a
criança a arrumar os objetos que usou e que, aos poucos, passam a exigir
que ela cuide das suas coisas por conta própria não só estão permitindo
que ela desenvolva uma nova habilidade que promove sua autoestima
como estão ajudando-a a entender melhor a noção de responsabilida-
de” (Carla Poppa, mestre em desenvolvimento infantil pelo núcleo de
psicossomática da PUC-SP).

Dados também revelam que a criança que desenvolve seu potencial de


organização tem mais chance de se tornar um estudante mais eficiente
e um profissional bem-sucedido (Revista Crescer, setembro de 2014).

De uma forma geral, dados sobre o potencial da organização indicam


que as pessoas organizadas economizam dinheiro, estressam-se menos,
possuem mais tempo para a família e aceitam mudanças de processos
com mais facilidade, tanto nas relações íntimas como nas profissionais
(Revista Exame, outubro de 2016).

Conclusão

Educar filhos para a vida é, também, possibilitar suas habilidades em


organização, o que os tornarão mais fortes frente aos desafios ao longo
da vida.

Faça essa reflexão e ensine os conceitos da organização e aposte nela


como um diferencial na educação de seu filho. E tenha certeza de que a
recompensa virá para todos como o acolhimento, a parceria e a produ-
tividade familiar.

E então: “você está educando o seu filho a ser organizado? ”

181
Referências Bibliográficas

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nizadas. Disponível em: <https://www.diarioonline.com.br/noticias/elas/
noticia-428376-exemplo-e-a-chave-para-ensinar-as-criancas-a-serem-or-
ganizadas.html>. Acesso em: 21 ago. 2019.

SCHLENGER, S.; ROESCH, R. Organize-se. 1.ed. New York: Harbra.

ZAGURI, T. Limites sem trauma. 90.ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

182
RAQUEL TEZELLI
CRP 01/13601

(61) 9133-2987
rtezelli@gmail.com
@raquell.tezelli
Vamos falar sobre adolescência?

• Graduada em Psicologia, inscrita sob CRP 01/13601

• Psicóloga de Adolescentes e Adultos

• Especialista clínica na abordagem Comportamental

• Formação em Coaching Profissional e Pessoal

• Acredita que sua missão envolve contribuir positivamente na jornada de


jovens e adultos a fim de transformar essas vidas. Para isso, possui redes
sociais voltadas para pais e profissionais interessados no assunto da fase da
Adolescência e lista de transmissão direcionado para psicólogos que inclui
reflexões e sugestões de manejo clínico.

183
Automutilação na Adolescência: Um Grito Silencioso

Este capítulo tem como objetivo abordar a temática da automutilação na pré-


-adolescência e na adolescência, a fim de alertar a respeito da vulnerabilidade
que um jovem pode se encontrar nessa fase da vida. Ademais, pontuar as difi-
culdades de discriminação do natural e do patológico na adolescência devido
às peculiaridades presentes como as alterações hormonais, o desenvolvimento
cerebral e a mudança de visão social do jovem. Por fim, descrever algumas
motivações que levam o adolescente à automutilação, citar os diagnósticos
associados a esse comportamento e discorrer sobre como ajudar alguém que
aja de tal modo.

A adolescência e suas peculiaridades

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a adolescência


compreende a fase entre os 10 e 19 anos de idade e considera os aspectos
biológicos, psicológicos e sociais como parte desse período. Já o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) define o período da adolescência dos 12 aos
18 anos de idade. Essa divergência das idades cronológicas é uma tentativa
para padronizar de modo quantitativo essa fase da vida. No entanto, estudos
recentes têm estimado que o final da adolescência pode ser estendido até os
25 anos, de acordo com os critérios sociopsicológicos, ou seja, o modo que o
jovem interage entre o mundo interno (biológico e psicológico) e o mundo
externo (social e fisionomia).

O início da adolescência é marcado pela fase da puberdade ou pré-adoles-


cência, pelas mudanças físicas e hormonais. Nas meninas, tais alterações
acontecem entre os 10 e os 12 anos e, nos meninos, dos 12 aos 14 anos.

As principais modificações nos meninos são: alteração na voz, crescimento


do pênis e dos testículos, aparecimento do pomo de adão e a primeira eja-
culação. Já nas meninas surgem as glândulas mamárias, os pelos pubianos e
nas axilas, o crescimento na região da bacia – os quadris e o início do ciclo
menstrual. Nesse período, é comum os jovens se sentirem estranhos ao se
olharem no espelho pela dificuldade de se reconhecerem naquele corpo que
está em transição do infantil para a adolescência.

184
As modificações ambientais (sociais) e psicológicas são também presentes na
fase da adolescência. O aumento da demanda na grade curricular escolar, as
exigências de mudança de comportamento perante a família e a sociedade,
a aceitação do jovem pelo seu “novo eu”, a familiarização do mesmo diante
de seu corpo, a descoberta de sua sexualidade e a vivência das práticas se-
xuais são fatos que fazem o jovem se questionar e buscar as respostas dessas
interrogações. Esse é o início da busca de sua identidade, que possui tempo
indeterminado no percurso dessa caminhada.

O desenvolvimento cerebral ocorre em paralelo às alterações físicas, hormo-


nais, sociais e psicológicas no qual deve ser considerado como um fator que
contribui na complexidade do comportamento do adolescente. Nesse aspecto,
estudos realizados nos EUA examinaram o percurso do cérebro humano
nos primeiros 21 anos de vida e verificaram que ele desenvolveu apenas 80%
de sua maturidade e os 20% restantes incluem as conexões mais sensíveis e
significativas durante a adolescência. Essa descoberta tem influência direta
nos comportamentos de oscilação de humor, irritabilidade, impulsividade,
dificuldade de concentração, postura explosiva, busca e consumo de álcool
e outras drogas e prática de ações de risco.

O período da adolescência é a fase de transição para a vida adulta e o jovem


possui dificuldades em entender o seu papel, o seu lugar – os adultos também
não possuem uma clareza quanto a essa delimitação. Diante de todos os
aspectos considerados e presentes nesse momento da vida é compreensível
a característica confusa e perdida de um jovem. Em suma, é um período no
qual ocorrem inúmeras mudanças biológicas incontroláveis com impacto
direto nas mudanças físicas, comportamentais e sociais, cuja expansão dessas
experiências lhes dará acesso a diversas emoções e sensações nunca vividas
anteriormente.

A automutilação e suas diferentes facetas


A automutilação, autolesão ou cutting é definida como toda lesão provocada
pelo próprio sujeito em seu corpo traduzida pelo sofrimento psicológico que
o jovem sente naquele momento. O modo mais comum da automutilação
é o corte com algum objeto afiado em partes do corpo, mas há outras ma-
neiras como queimaduras, arranhões, ingestão de substâncias químicas,
autoagressão e agravamento de lesões já existentes. Com frequência, esses
comportamentos são associados com a intenção de suicídio, que é a segunda
maior causa de morte a nível global na faixa etária de 19 a 24 anos.

185
Todo indivíduo possui uma história de vida que advém de vivências duran-
te sua caminhada e, ao analisar os motivos de um ato de automutilação, é
necessário considerar as variáveis nas áreas de sua vida com a finalidade de
evitar a generalização a respeito do mesmo.

É preciso diferenciar as lesões em dois aspectos:

1. Automutilação com intenção de suicídio: na qual se inicia sem esse


objetivo, mas ao longo do tempo, a intenção se torna presente.

2. Autolesão sem intenções suicidas: na qual tem o propósito de marcar seu


corpo de algum modo, com algum significado.

Independente da intenção, o fato em si reflete um comportamento patológico


que clama por ajuda sobre um sofrimento que ultrapassa aquilo que o jovem
consegue expressar em palavras.

A postura de muitas pessoas, principalmente familiares, diante de um qua-


dro de cutting é de brigar, ignorar e/ou chorar perante a ferida. Essas reações
expressam os sentimentos mais comuns nos relatos daqueles que convivem
com essa realidade: raiva, desespero, negação e tristeza. Além disso, existe
o pensamento do familiar em relação ao ato de automutilação, de ser com o
fim de “chamar a atenção”, mesmo diante do comportamento dos jovens de
se preocuparem em realizar cortes em partes do corpo que possam manter
escondidos embaixo de blusas de mangas compridas, por exemplo.

O fato é que um jovem com o psicológico saudável não age desse modo para
chamar a atenção de algo ou alguém. Essa prática expressa claramente um
pedido de ajuda e a prioridade é atender a essa súplica.

Os bastidores de um jovem que se automutila

O ato de se automutilar tem crescido entre os jovens de modo perturbador.


Proporcionalmente, os responsáveis por esses jovens e/ou pessoas que parti-
cipam do seu cotidiano, têm questionado muito mais acerca dos motivos que
levam um jovem a realizar tal agressão. Nesse cenário, as interrogações são
tentativas de entender o acontecimento, a fim de pensar em estratégias que
possam evitar que a tragédia se repita ou que venha a extinguir essa possi-
bilidade. Afinal, a partir do momento que é revelada a situação e o contexto

186
que evocou determinado comportamento há uma probabilidade de prevenir
sua ocorrência futura. Para isso, Skinner defende que todo contexto ou situa-
ção que altere o comportamento em alguma instância deve ser considerado
nessa análise.

Pesquisas e estudos apontam quatro principais intenções relatadas com mais


frequência na automutilação:

1. A primeira é a tentativa de transferir a dor interna para uma dor externa, a


partir da sensação da dor psicológica (interna) sair de seu corpo pelo sangue
que escorre através do corte e lhe resulta em um alívio momentâneo.

2. A outra intenção é a automutilação ser uma punição a si por ter se tornado


uma pessoa “fracassada”, um “peso”, uma “aberração” ou até mesmo uma
punição a si por algo ruim que fez e o auto-perdão está inalcançável.

3. Há também a negação por sua sexualidade e a ansiedade de conviver com


ela. A partir do momento que o jovem se percebe nessa realidade, ele teme o
que lhe pode acontecer, se culpa e a autolesão é o escape de sua revolta interna.
Em paralelo, pode haver a interferência de algumas questões religiosas, em
que sua sexualidade pode ser considerada como uma doença.

4. A quarta intenção é a insatisfação quanto ao seu corpo, pois em uma cultura


na qual há um modelo de beleza predominante, àqueles que não o seguem
deixam marcas em si como registro de sua sensação de exclusão.

Um jovem que pratica a automutilação possui um histórico que identifica


a origem de seus pensamentos, sentimentos e suas ações. O núcleo familiar
é o primeiro e o principal grupo social que o indivíduo tem convívio. Ele é
a primeira e principal demonstração de afeto e segurança que o indivíduo
possui. Esse contexto é o maior modelo de como o indivíduo irá se relacionar
interpessoalmente no futuro. Assim, na presença de um quadro de desamparo
afetivo é previsível que no decorrer do tempo, o jovem demonstre ausência
de valor em si, necessidade excessiva de ser aceito, depreciação quanto a sua
autoimagem, dificuldade de confiar no outro, medo extremo de rejeições nas
relações interpessoais, estranheza quanto ao modo de se socializar com os
outros e uma grande vulnerabilidade emocional.

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Em um ambiente onde houve abuso sexual e/ou estupro em alguma fase de
sua vida, o jovem costuma ter uma mistura de sentimentos que transpassam
desde repulsa e nojo a compaixão de si. Nesses casos, é muito comum o abu-
sador ser conhecido da família ou ser integrante da mesma, o que resulta na
omissão da vítima, pois caso ela verbalize, podem acontecer conflitos fami-
liares desastrosos que serão mais uma culpa a ser carregada. Desse modo, a
vítima opta pelo silêncio e esse segredo poderá lhe acompanhar pelo resto da
vida e, é possível que lhe acompanhe pelas e feridas por todo o corpo.

No contexto escolar, a prática do bullying pode ser uma das responsáveis ou


a principal responsável pela autoestima dilacerada de um jovem. Essa prática
consiste no adolescente receber todos os dias ou vários dias, mesmo que de
modo alternado, agressões verbais e físicas, a respeito de si. Essas ofensas são
internalizadas e a vítima as interpreta, a longo prazo, como verdades ditas sobre
si nas quais se tornam a descrição de sua personalidade. Essa conclusão lhe faz
ter uma autoimagem e auto-percepção distorcida que reflete em sentimentos
e pensamentos negativos, os quais impulsionam atos violentos contra si.

A automutilação traz consigo uma série de marcas internas que se externa-


lizam de modo impactante aos olhos de quem assiste essa tragédia. O sofri-
mento de quem a executa rompe o racional e sufoca a sua possível dor. Cada
marca registrada no corpo é interpretada como uma maneira de lidar com
essa dor. As suas histórias familiares, escolares, pessoais e/ou sociais possuem
relação direta com esse ato e o seu olhar quanto ao que lhe acontece pode estar
distorcido pelo seu sofrimento. No momento em que um corte em si não lhe
traz uma dor real, o emocional está em desarmonia e pode comprometer a
integridade física desse ser.

A ajuda ensurdecedora

A família é a principal fonte de ajuda ao jovem em sofrimento, pois é o am-


biente onde ele pode sentir-se amado e acolhido. A palavra família inclui
qualquer membro na árvore genealógica que possui vínculo forte o suficiente
para que o jovem se sinta aceito.

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É recorrente a família ficar estática e desesperada ao se deparar com tais
comportamentos na sua realidade familiar. Outro fato comum é um jovem
que se automutila chegar para a sessão de psicoterapia acompanhado por
um membro familiar que não são os pais. Afinal, os pais têm dificuldade em
aceitar que seu filho pratica tal ato e carregam uma culpa ensurdecedora que
os fazem se envergonhar perante outras pessoas.

No âmbito familiar e social, as pessoas que convivem com esses jovens víti-
mas e autores da automutilação podem lhes oferecer ajuda. A principal ajuda
é disponibilizar a escuta para que o indivíduo verbalize o que lhe acontece
internamente mesmo que o jovem não se expresse em um primeiro momento.
No início é comum o jovem ser resistente a essa conversa, mas após algumas
tentativas do familiar ou do amigo, ele pode aceitar e, gradualmente, ver-
balizar aquilo que o sufoca. Porém, é importante ressaltar que essa escuta é
com foco no desabafo do adolescente, no interesse da pessoa em acolher suas
palavras e sua dor. Assim, não é o momento de emitir opinião ou julgamentos
a respeito, mas de demonstrar aos poucos ao jovem que ele precisa de ajuda
profissional, e, se for o caso, acompanhá-lo nessa primeira consulta.

O jovem que pratica a automutilação se encontra em situação de vulnerabi-


lidade emocional que silencia o racional. Em alguns casos, é um ato isolado
que foi resposta a algum incomodo emocional intenso, mas em outros casos
a autolesão é consequência de quadros psiquiátricos e psicológicos como
Transtorno de Personalidade (Bipolar/Borderline), Transtorno de Depressão
e Esquizofrenia. Esses diagnósticos distorcem drasticamente a visão que o
indivíduo tem de si e as relações interpessoais sofrem modificações severas
em suas vivências que alteram o sentido das mesmas.

Nesse contexto, se você percebe que seu filho ou alguém conhecido tem re-
corrido à automutilação, ofereça ajuda e fale sobre a importância em buscar
tratamento profissional com psicólogo e, na maioria dos casos, acompanha-
mento com psiquiatra. Além desses profissionais, o indivíduo é constituído de
corpo e mente, o que torna importante incluir na rotina desse jovem exercícios
físicos e uma boa alimentação. Afinal, um tratamento na sua totalidade deve
considerar essas duas instâncias como parceiras que dependem uma da outra
para manter o funcionamento humano em harmonia.

189
Referências Bibliográficas

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adolescentes: teoria e intervenção psicológica. 1ª edição. Porto Alegre: Art-
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