Você está na página 1de 14

Desenvolvimento de materiais didáticos de

português para surdos articulando necessidades


da educação básica e formação de graduandos

Giselli Mara da Silva


FALE-UFMG, professora

Angélica Beatriz Castro Guimarães


EBA-UFMG, professora

RESUMO: Na educação bilíngue para surdos, o português igura


como a segunda língua (L2) do aprendiz e deve ser ensinado por meio
de metodologias especíicas. Neste texto, apresenta-se um projeto de
desenvolvimento de materiais didáticos para o ensino de português
como L2 para surdos, conduzido por uma equipe composta por
professores e alunos das áreas: de Letras, responsável pela criação do
conteúdo; e de Design Visual, responsável pela programação visual
do material. A elaboração do conteúdo visou ao desenvolvimento de
atividades condizentes com uma proposta interacionista de ensino de
língua, considerando as especiicidades de surdos aprendizes iniciantes
do português como L2, focando em atividades de leitura e escrita do
português em contextos diversos. Também a proposta gráica do material
visou à interação com esses aprendizes, focando em estratégias visuais
que possam auxiliar no ensino do português escrito, além de considerar
aspectos funcionais e subjetivos da programação visual.
Palavras-chave: português como segunda língua; surdo; materiais
didáticos; diagramação; ilustração; usabilidade
ABSTRACT: In bilingual education for the deaf, Portuguese igures as
the second language (L2) for the learner and should be taught through
speciic methodologies. This work presents a project that addresses the
development of educational materials for the teaching of Portuguese as
L2 for the deaf, conducted by a team of teachers and students of the ield
of Languages, responsible for creating the content and Visual Design,
which will be used to formulate the visual material. The elaboration
144 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

of the content aims at the development of activities consistent with a


language teaching interactionist proposal, considering the speciics of
deaf beginner learners of Portuguese as L2 and focusing on reading and
writing activities in Portuguese in different contexts. Also the graphic
proposal of the material aims at the interaction with these learners,
focusing on visual strategies that may help with the teaching of written
Portuguese, as well as consider functional and subjective aspects of
visual programming.
Keywords: Portuguese as second language; deaf; educational materials;
layout; illustration; usability

1. Introdução

Na proposta de educação bilíngue para surdos, o português é


ensinado como segunda língua (L2), sendo o aprendiz surdo comparado
a outros aprendizes ouvintes de português como L2 (PL2), resguardadas
as especiicidades relativas à condição da surdez e ao pertencimento a um
grupo sócio-cultural minoritário usuário de uma língua de sinais. Nesse
sentido, nos últimos anos, tem-se intensiicado o debate sobre o ensino
de português para surdos e a importância de determinadas ações para
que esse grupo de brasileiros efetivamente tenha acesso ao português.
Dentre essas ações, destacam-se aqui as pesquisas na área, a formação de
professores especialistas no ensino de português, a criação de materiais
didáticos, entre outros.
Considerando a importância do papel da Universidade no
desenvolvimento de questões relativas à educação básica, iniciamos no
ano de 2014 um projeto1 cujo objetivo é o desenvolvimento de materiais
didáticos de nível básico para aprendizes surdos de PL2. De modo geral,
pode-se dizer que, além do objetivo de contribuir com o fortalecimento da
proposta de educação bilíngue para surdos por meio do desenvolvimento
de materiais didáticos, o projeto visa dar oportunidades de formação para
estudantes de graduação, especialmente da área de Letras e Artes, já que

1
Este projeto foi desenvolvido na Faculdade de Letras da UFMG, no âmbito do
Programa Acadêmico de Promoção da Inclusão e Acessibilidade, promovido em 2014
e 2015 pela Pró-Reitoria de Graduação da UFMG e continuado, a partir de 2016, pelo
Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da UFMG. Contamos também com o apoio da
Pró-Reitoria de Extensão da UFMG a partir de 2015.
Desenvolvimento de materiais didáticos de português..., p. 143-156 145

esses graduandos terão oportunidade de atuar em sua área de formação e


reletir sobre tais experiências, consolidando suas habilidades para uma
futura atuação proissional.
No presente texto, pretendemos então apresentar o processo
de execução deste projeto e seus objetivos, bem como os resultados
atingidos até o momento. Inicialmente, na seção 2, salientamos a
importância do desenvolvimento de materiais didáticos de nível básico
para aprendizes surdos, apontando também as contribuições do projeto
para os graduandos envolvidos. Na seção 3, apresentamos sucintamente
o trabalho de elaboração do conteúdo e do design visual do material
didático. Finalmente, encerramos o artigo com algumas considerações
sobre a experiência, especialmente os desaios na construção de um
material independente.

2. A importância do desenvolvimento de materiais didáticos de PL2 para surdos

Como se disse inicialmente, a proposta de Educação Bilíngue para


Surdos enfrenta alguns desaios em sua implementação no cotidiano das
escolas. No que tange especiicamente ao ensino de PL2, a escassez de
materiais didáticos é um dos problemas que, juntamente com a falta de
formação de professores (SILVA; COSTA; LOPES, 2014), precisa ser
devidamente considerado. Diniz, Stradiotti e Scaramucci (2009), fazendo
uma relexão sobre os materiais didáticos no ensino de português para
falantes de outras línguas, reiteram a importância do material didático
no caso do ensino de PL2, já que muitos professores que atuam na área
não têm formação especíica para a atuação nesse contexto de ensino.
No caso dos surdos, tal problema se agrava considerando-se
a absoluta escassez de materiais didáticos. O mercado editorial não
apresenta publicações de português como L2 para surdos2; o que
se encontra são trabalhos com “sugestões” de atividades a serem
desenvolvidas pelos professores, tal como as publicações do Ministério
da Educação – a saber: Salles et al., 2004 e Quadros; Schmiedt, 2006,
as quais não apresentam uma progressão nas atividades conforme o

2
Existe uma coleção no mercado, intitulada Projeto Pitanguá, que traz livros didáticos
traduzidos para a Libras. Porém, a tradução de um material didático de português como
língua materna não o converte em material adequado para os surdos, já que esses
aprendizes vão aprender o português como L2.
146 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

nível de aprofundamento em diferentes níveis de conhecimento pelos


aprendizes. Outra publicação institucional é o livro de Albres (2010), que também
demanda conhecimentos prévios dos alunos, já que o nível dos textos não condiz com
aprendizes iniciantes de PL2 e é explicitamente endereçado a adolescentes. No que
tange ao nível básico 1 do português, não encontramos publicações para
surdos, nem mesmo no âmbito das instituições públicas ou de instituições
de ensino particulares.
Soma-se à justiicativa relacionada à escassez de materiais,
a articulação do projeto com as atividades de ensino a estudantes de
graduação que se interessam por tal temática. Na graduação em Letras,
temos oferecido uma disciplina de Linguística Aplicada, intitulada no
caso da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) como “Tópicos em Lingüística Aplicada ao Ensino – Português
como segunda língua para Surdos”. Essa disciplina pretende contribuir
com a formação inicial de futuros professores de português para surdos,
sendo que os alunos matriculados, não raras vezes, demonstram o interesse
de articular os conhecimentos da disciplina com a atuação no ensino de
português, o que poderia ser concretizado parcialmente em tal projeto.
O projeto também se articula com as habilidades de comunicação visual
desenvolvidas nos cursos Cinema de Animação e Artes Digitais (CAAD),
da Escola de Belas Artes (EBA-UFMG), e Design, da EBA-UFMG e
Escola de Arquitetura (EA-UFMG). Para ambos os cursos, destaca-se a
oportunidade de direcionar a programação visual para um público bem
delimitado. O graduando passa a exercer suas habilidades como artista e
como designer em função das especiicidades de um conjunto conhecido
de usuários inais – alunos surdos e seus professores – e deve direcionar
seus esforços no atendimento das necessidades desse público.

3. O processo de desenvolvimento do material didático

O desenvolvimento do material é realizado por uma equipe


composta por professores e estudantes da área de Letras e de Design
Visual. Inicialmente, o conteúdo é criado pela equipe de Letras, composta
pela professora orientadora e pelos estudantes da graduação em Letras,
bolsistas do projeto, e por uma estudante da pós-graduação que atua como
voluntária. Em seguida, o conteúdo é enviado à equipe de design visual,
composta também por uma professora orientadora e por estudantes de
graduação – bolsistas do projeto oriundos dos cursos Design e Cinema
Desenvolvimento de materiais didáticos de português..., p. 143-156 147

de Animação e Artes Digitais (CAAD), que, por sua vez, desenvolvem


a programação visual do material, criando as ilustrações e a proposta de
diagramação.
Ao longo de todo o processo, as duas equipes estão em constante
contato para a construção e revisão das propostas por meio de reuniões
presenciais e outras ferramentas de interação on-line. Assim, a criação
do material não se dá de forma linear, havendo reiteradas revisões do
conteúdo e do design conforme se avançam nas etapas de elaboração
do material e se delineiam mais claramente as respostas às necessidades
de aprendizagem do público-alvo. Abaixo, apresentam-se sucintamente
o trabalho de elaboração do conteúdo e do design visual do material
didático.

3.1 A elaboração do conteúdo do material didático


Conforme Leffa (2008), a produção de materiais de ensino deve seguir
minimamente as seguintes etapas: análise, desenvolvimento, implementação e avaliação.
Considerando tal proposta, iniciamos nosso trabalho estabelecendo o público a que se
destinaria o material. Nesse sentido, considerando que a aprendizagem de
uma L2 é favorecida no caso de aprendizes na tenra idade e, considerando
o nível precário do ensino e da aprendizagem de português como L2
para surdos na atualidade, como atestam alguns trabalhos (por exemplo,
SILVA, 2010), optamos por criar materiais didáticos para o nível básico
do português, voltados para crianças surdas a partir de 9 anos de idade,
que já tenham adquirido habilidades básicas concernentes ao processo
de alfabetização. Inicialmente, pensar sobre as necessidades desses
aprendizes não foi tarefa fácil, já que diferente de outros aprendizes
de português como L2, essas crianças não estão apenas aprendendo
uma nova língua, mas também aprendendo a ler e escrever. Assim, são
inúmeras as necessidades desses aprendizes no que tange ao português
escrito.
Em seguida, partimos para o desenvolvimento do material. Um dos pontos do
processo de desenvolvimento é a deinição da proposta de abordagem. Assim, buscamos
seguir as propostas mais atuais de ensino de L2, numa perspectiva
interacional, dialogando com autores que discutem materiais didáticos no
ensino de segunda língua (LEFFA, 2008), de português para estrangeiros
(DINIZ; STRADIOTTI; SCARAMUCCI, 2009). Além disso, pretende-
se considerar as especiicidades do aprendiz surdo, considerando as
148 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

pesquisas na área de ensino de leitura e escrita para surdos (SALLES et


al., 2002; SILVA, 2010; PEREIRA, 2014, entre outros).
Após deinirmos a abordagem, buscamos criar um banco de textos
autênticos com diferentes temáticas relacionadas às vivências de crianças
e adolescentes de maneira geral, bem como interesses de adolescentes
surdos. Em seguida, deinimos as temáticas das unidades e partimos
para a criação das atividades, contemplando as habilidades de leitura
e escrita, além das competências lexical e gramatical. Juntamente com
o material impresso, foram elaborados também vídeos em Língua de
Sinais Brasileira (Libras) com textos instrucionais, contendo explicações
e sistematizações de conteúdos abordados no material impresso.
Assim, o material é composto por livro e vídeos, sendo que ambos se
complementam.
As etapas inais da elaboração do conteúdo foram a implementação
e a avaliação do projeto, por meio da aplicação do material, ainda em
formato “caseiro” (ver igura 1), numa turma de alunos surdos de uma
escola da rede pública da Grande BH. Nesse estágio, o material conta
apenas com os textos, atividades e alguns recursos visuais simples
indicados pela própria equipe de Letras, sendo que a elaboração gráica
do material será conduzida posteriormente, após a revisão do conteúdo.
Durante todo o processo de construção dos materiais, foi realizado
o trabalho de formação das bolsistas. Foram selecionados textos teóricos
contemplando as temáticas da elaboração de materiais didáticos e do
ensino de L2, de PL2 e de PL2 para surdos. Além da leitura compartilhada
de textos, as graduandas realizaram a análise de materiais didáticos de
português para estrangeiros, bem como a análise de materiais de ensino
de português como língua materna para crianças. Esse processo de
formação teórica e a análise de materiais possibilitaram às alunas maior
consciência sobre o trabalho de criação de materiais, bem como sobre as
especiicidades dos aprendizes surdos na aprendizagem de PL2. Foi muito
importante também o trabalho realizado por elas no acompanhamento da
aplicação do material, já que elas puderam presenciar a atuação de uma
professora juntamente com um intérprete de Libras-português, avaliando
a adequação do material às necessidades dos aprendizes surdos.
Desenvolvimento de materiais didáticos de português..., p. 143-156 149

3.2 A elaboração gráica do material


A elaboração gráica do material se inicia a partir do momento
em que a equipe da área de Letras disponibiliza uma unidade completa
do material, testada em escola e revisada ao menos uma vez. A equipe
de design visual, em contato com a equipe pedagógica, promove a
programação visual do material buscando privilegiar a experiência de
seus usuários inais: alunos e professores. O material disponibilizado pela
equipe de Letras vem montado em um editor de texto comum, de modo
visualmente básico, mas funcional. Nessa fase, já existem indicações da
demanda de comunicação visual: há imagens ilustrando o material, mas
são obtidas na Internet, sem preocupação com direitos autorais, ainal
não serão publicadas.
A partir desse material, começa o processo de trabalho da
equipe de design visual. A metodologia se desdobra no levantamento
das necessidades dos usuários, transformação dessas necessidades em
requisitos de projeto, e, inalmente, implementação desses requisitos
em forma de programação visual. Trata-se de uma abordagem derivada
de metodologias centradas no usuário (GARRETT, 2011; PREECE;
ROGERS; SHARP, 2013), tomadas de modo simpliicado e com a
limitação de conhecermos o usuário inal apenas por meio da equipe
pedagógica do projeto – que têm contato com alunos e professores, e
testam o material. A etapa de listagem das necessidades é feita a partir do
material entregue pela equipe pedagógica. Com ele é possível conhecer quais são as
demandas da unidade e quais necessidades do aluno e do professor podem ser satisfeitas
através do projeto gráico. Essas demandas são registradas em forma de anotação no
próprio arquivo digital do material entregue. Nessa fase, as duas equipes estão em
interlocução constante sobre as possibilidades da programação visual, pois é necessária
uma visão ampla sobre o público e as abordagens didáticas. Na etapa seguinte, as
necessidades levantadas na etapa anterior são listadas e transformadas em requisitos do
projeto gráico. Esses requisitos apontam para as tarefas que devem ser cumpridas para
que a programação visual seja realizada: quantas ilustrações, pictogramas, desenhos
de sinais, etc., e eventuais orientações sobre sua realização. As tarefas listadas nessa
etapa são delegadas às bolsistas de acordo com as competências de cada uma. Durante
a implementação, as estudantes de graduação realizam as ilustrações e diagramação do
material gráico, que juntas integrarão a programação visual. Nessa fase as bolsistas têm
autonomia para propor abordagens visuais. A interlocução é constante entre bolsistas
e orientadora, e todo o trabalho é discutido e aprovado, o que promove a formação das
150 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

estudantes. Nesta, que é a etapa mais longa para a equipe de design visual, é utilizada
uma plataforma on-line chamada Trello3, que auxilia no gerenciamento de um luxo
de trabalho em equipe. A etapa de implementação da primeira unidade está quase
concluída. Uma vez que o nível básico seja todo concluído, com a da programação
visual de todo o material, este poderá ser disponibilizado para escolas e testado por
um público maior. A partir dos retornos, poderemos ter subsídios para revisar o que já
foi feito e planejar melhor o próximo nível.
A programação visual é uma importante etapa do desenvolvimento
dessa proposta de material didático. Dado que o público-alvo são crianças
usuárias da Língua Brasileira de Sinais, e que a oralização não é pré-
requisito para o acompanhamento do material, o aprendizado do português
escrito como L2 deve se apoiar exclusivamente em estímulos visuais.
Partindo dessa ideia, a equipe de design visual trabalha em conjunto com
a equipe pedagógica com a inalidade de aumentar a eiciência – por meio
do projeto gráico – do projeto didático proposto. Com isso, busca-se
contribuir para o desenvolvimento de estratégias visuais que possam
auxiliar no ensino do português escrito a crianças surdas, considerando
a escassez de materiais com essa abordagem no Brasil. Nessa busca, há
uma faixa de aspectos a serem considerados: uns mais objetivos e outros
mais subjetivos. De um lado está o aspecto funcional do material e, de
outro, a percepção sensível, afetiva e emocional de alunos e professores
sobre ele. Para contemplar a efetividade funcional do material didático
através de recursos gráicos, ele deve ser pensado como um mediador do
ensino-aprendizagem, que tem a intenção de fazer com que determinado
conteúdo seja trabalhado da melhor forma possível por seus prováveis
usuários: alunos, professores e, eventualmente, intérpretes de Libras
auxiliares do professor. Nesse sentido, as decisões de projeto para a
publicação devem ser tomadas em função de seu uso: aspectos como
usabilidade e design centrado no usuário são levados em consideração.
Uma abordagem especíica de ensino deve contar com um projeto gráico
adequado, pensado a partir da abordagem – português escrito como
L2, nível básico – e das especiicidades do público – crianças surdas,
faixa etária de 9 a 12 anos. Por isso o projeto gráico é pensado mais
em função das características do público-alvo e da rotina de sala de aula
desse público, não sendo uma adaptação ao público surdo de materiais
didáticos tradicionais voltados a crianças ouvintes da mesma faixa etária.

3
http://trello.com
Desenvolvimento de materiais didáticos de português..., p. 143-156 151

A abordagem funcional do material proposto anda lado a lado


com aspectos mais subjetivos da programação visual. Segundo Donald
Norman (2008), o design não deve se comprometer apenas com o bom
funcionamento, mas também com a identiicação afetiva e emocional
com seu usuário. Nesse sentido, oferecer uma boa possibilidade de uso
através de boa legibilidade é importante, mas o envolvimento afetivo
do público-alvo com os conteúdos trabalhados pode ser potencializado
através da apresentação visual. Esse envolvimento favorece o aprendizado
por aumentar a tolerância dos estudantes em relação ao processo de
aprendizagem, que por vezes é bastante árduo e sempre exige esforço.
Norman (2008) airma que projetos atraentes ao público-alvo funcionam
melhor. Por isso a programação visual também se preocupa em criar
identiicação entre o público e o material proposto, para que os estudantes
e professores se sintam representados e respeitados.

Figura 1 – Exemplo de página do material Figura 2 - Página reproduzida na ig. 1,


sem diagramação e ilustrações próprias diagramada e ilustrada pela equipe de
design visual

Para contemplar tanto os aspectos mais objetivos quanto os


mais subjetivos da programação visual, diversas necessidades foram
levantadas e buscou-se atendê-las dentro das possibilidades do projeto.
152 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

Quanto aos aspectos objetivos, foi preciso deinir um formato para a


publicação, uma identidade visual consistente, e também um repertório
gráico para diagramar as diferentes atividades propostas. Em relação
ao formato da publicação, são consideradas a versão impressa e o DVD,
contendo vídeos complementares com a tradução em Libras de alguns
textos instrucionais. Para a versão impressa, conversas com a equipe
pedagógica e professores apontaram para a necessidade de letras grandes
e entrelinhas ainda maiores nas lacunas a serem preenchidas pelos
alunos (textos do material em corpo 14 e lacunas com entrelinhas corpo
19). Devido a esses requisitos, foi escolhido um formato grande para o
impresso, semelhante ao formato de livros infantis ilustrados (21,5 x
22,5 cm): nesse formato, o conteúdo pode ser distribuído ao longo das
páginas sem sobrecarregar o aluno, e também é permitido que este interaja
com a publicação, seja desenhando, escrevendo, circulando ou ligando
palavras e imagens. A Figura 2 mostra uma página diagramada ao lado
de uma página de conteúdo entregue pela equipe pedagógica (Figura 1).
Também estão sendo pensadas as relações entre o material
impresso e o digital. Uma das ideias avaliadas é de que o professor
poderia querer projetar as páginas do livro para a turma, por meio de um
projetor data-show, enquanto explica as atividades aos alunos em Libras,
permitindo que esses possam ver o material e a sinalização do professor.
Este uso, desejável, ica condicionado à disponibilidade pela escola de
computador e projetor para as aulas. Para essa inalidade, as páginas já
possuem uma proporção muito similar à oferecida pelos projetores atuais
na escala 4:3, sendo assim, o material em formato digital, pronto para
a impressão, já seria adequado para a projeção. Sobre a interação entre
material impresso e vídeos complementares em DVD, estuda-se oferecer
acesso, no próprio DVD, à versão digital do impresso com a adição
de hiperlinks, e/ou um índice contendo todos os vídeos separados por
unidade e por página, para acesso a esse conteúdo. Toda sessão contendo
material complementar é marcada com o ícone “Acessível em Libras”4.
Quanto à identidade visual, foi desenvolvida uma marca para o
projeto “Português como segunda língua para surdos” e uma paleta de
cores a ser usada nas diferentes unidades do material didático previstas

4
Este símbolo foi criado pelo Centro de Comunicação (Cedecom) da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e está disponível em https://www.ufmg.br/marca/
libras/.
Desenvolvimento de materiais didáticos de português..., p. 143-156 153

para publicação. A marca5 leva em consideração as ideias fundamentais


do projeto: abordagem visual de ensino da língua escrita, sendo que
o repertório comum dos estudantes é a Libras. A paleta de cores para
identiicação das unidades tem tonalidades encontradas em materiais
expressivos e de escritório, muito usados por crianças em idade escolar,
e que são encontrados facilmente no comércio (lápis de cor, canetas
hidrocor e notas auto-adesivas, por exemplo). Quanto ao repertório
gráico para a diagramação das atividades, constatou-se que havia dois
tipos de interação propostos nas atividades: atividades focadas na leitura
e na escrita, e discussão em Libras entre os estudantes. Foram criados
pictogramas para sinalizar os diferentes tipos de atividade e assim
tornar essa informação direta, o que dispensa a leitura do enunciado
para descobri-la, e permite identiicar o tipo de atividade a partir de
um rápido golpe de vista. Isso pode ser útil para os alunos, que estão
em fase inicial da língua escrita, como também para os professores,
no contexto da preparação de aula. Os aspectos mais subjetivos, que
visam à representação do público-alvo com a inalidade de obter mais
envolvimento e empatia, foram contemplados principalmente por meio
da elaboração de ilustrações. O trabalho com as ilustrações envolveu a
criação de personagens e o uso da linguagem das histórias em quadrinhos.
Os principais personagens da publicação são Lili e Guto, dois estudantes
com idades compreendidas na faixa etária dos alunos aos quais o material
se destina, respectivamente 10 e 11 anos. O aspecto físico dos personagens
também leva em consideração a representatividade na sociedade brasileira
e nas escolas públicas, ambiente em que o material está sendo testado
e ao qual se destina. Ambos os personagens são luentes em Libras e,
por vezes, aparecem sinalizando nas ilustrações. Os personagens ou
conversam entre si ou se dirigem aos alunos, instigando-os sobre algum
assunto ou orientando sobre o uso do material (por exemplo, pedindo
para que assistam a algum vídeo do material complementar). Os balões de
histórias em quadrinhos utilizados são diferentes quando os personagens
sinalizam ou quando falam. O balão de fala é aquele tradicional das
histórias em quadrinhos (HQs), que aponta para a boca do personagem

5
A marca pode ser vista no website do projeto: http://www.letras.ufmg.br/
portuguesl2surdos/, consultado em 23/02/2016
154 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

que fala; enquanto o balão de sinalização é inspirado em uma história6


do personagem Humberto, de Maurício de Souza, e aponta para as mãos
do personagem. O personagem Guto fala e sinaliza, enquanto Lili sempre
sinaliza. Segundo o peril deinido para a criação dos personagens, Lili é
surda e Guto é ouvinte. Os personagens Lili e Guto aparecerão em todas
as unidades com seu estilo especíico de ilustração. Outras ilustrações
também são necessárias, como aquelas referentes a vocabulário (exemplo:
casa grande, casa pequena; um cachorro, dois cachorros). Nesse caso,
são feitas no mesmo estilo para uniicar a linguagem visual utilizada.
Também está sendo desenvolvido um personagem próprio para atividades
de vocabulário que relacionem sinais da Libras e palavras do português.
A linguagem visual deste é semelhante à dos personagens Lili e Guto,
porém mais simpliicado e com proporções mais realistas para favorecer
a legibilidade.

Considerações inais
No desenvolvimento do conteúdo, um dos grandes desaios
tem sido a compreensão das necessidades dos aprendizes que estão se
alfabetizando em uma nova língua. A escolha de textos autênticos para o
material, por exemplo, é altamente complexa, pois demanda analisar os
conhecimentos linguísticos dos aprendizes, como também a consideração
de questões de direitos autorais. Além disso, transitar com os alunos entre
o português escrito e a Libras para ressigniicar as práticas de leitura e
escrita do cotidiano exige bastante cuidado (não só dos elaboradores de
materiais, como também dos professores em sala de aula). Quanto ao
desenvolvimento da programação visual, tem sido muito instigante para a
equipe de design visual. Nesse projeto são colocados em prática diversos
conhecimentos sobre contemplar as necessidades do usuário através
do design, e também é exercitada a atuação do artista e do designer no
segmento da educação infantil. Além disso, a vivência de um luxo de
trabalho em equipe e a interação constante com as desenvolvedoras do
conteúdo didático é enriquecedora para todas as envolvidas. Aprimorar
as pesquisas com os usuários e a resposta a elas através da programação

6
Publicada na revista Mônica, nº 239, de maio de 2006. A história está disponível na
íntegra em alguns endereços na web. Um deles é: http://oicinadelibras.blogspot.com.
br/2014/04/turma-da-monica-aprendendo-falar-com-as.html, consultado em 12/02/2016
Desenvolvimento de materiais didáticos de português..., p. 143-156 155

visual é aprendizado constante que contribui na formação das estudantes


envolvidas.
De modo geral, a experiência de desenvolvimento do material
didático tem sido um desafio para os professores e bolsistas, que
trabalhando de forma independente, sem relação com o mercado editorial,
estão desenvolvendo constantemente os conhecimentos e processos
necessários à efetivação do trabalho. O retorno obtido de professores e
alunos participantes dos testes tem sido positivo, e o mérito do projeto foi
reconhecido através de Menção Honrosa na Semana do Conhecimento
de 2015 da UFMG. Porém, o caminho para a elaboração desse material
didático está apenas começando. Nesse percurso, o público-alvo e os
bolsistas participantes – alunos de graduação – serão beneiciados.
Esperamos atuar em novas unidades, desejando que o material didático
proposto cumpra seu papel na sociedade.

Referências bibliográicas

ALBRES, N. de A. Português... eu quero ler e escrever. São Paulo, SP:


Instituto Santa Teresinha, 2010.
DINIZ, L. R. A.; STRADIOTTI, L. M.; SCARAMUCCI, M. V. R.
Uma análise panorâmica de livros didáticos de português do Brasil para
falantes de outras línguas. In: DIAS, R.; CRISTOVÃO, V. L. L. (Org.). O
livro didático de língua estrangeira: múltiplas perspectivas. Campinas,
SP: Mercado de Letras, 2009. p. 265-304.
GARRETT, J. J. The Elements of User Experience: User-Centered Design for the Web
and Beyond. 2 ed. Berkeley: New Riders, 2011.
LEFFA, V. J. Como produzir materiais para o ensino de línguas. In:
LEFFA, V. J. (Org.). Produção de materiais de ensino: prática e teoria.
2. ed. Pelotas: Educat, 2008. v. 1. p. 15-41.
NORMAN, D. Design Emocional: por que adoramos (ou detestamos) os
objetos do dia-a-dia. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
PEREIRA, M. C. C. O ensino de português como segunda língua para
surdos: princípios teóricos e metodológicos. Educar em Revista, Curitiba,
Brasil, Edição Especial, n. 2, p. 143-157, 2014.
156 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015

QUADROS, R. M. de; SCHMIEDT, M. L. P. Idéias para ensinar


português para alunos surdos. Brasília: MEC, SEESP, 2006.
ROGERS, Y.; SHARP, H.; PREECE, J. Design de interação: além da interação humano-
computador. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2013.
SALLES, H. M. M. L. et al. Ensino de Língua Portuguesa para Surdos :
caminhos para a prática pedagógica. Brasília: MEC, SEESP, 2004. 2 v.
(Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos).
SILVA, G. M. Lendo e sinalizando textos: uma análise etnográica das práticas de
leitura em português de uma turma de alunos surdos . 2010. 222f. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
SILVA, G. M. da; COSTA, J. M. da; LOPES, L. P. S. Formação de
Professores de Português para Surdos: entre o ideal, o real e o possível.
Caminhos em Linguística Aplicada, Taubaté, Brasil, v.11, n. 2, p. 1-23,
2014.

Você também pode gostar