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Doi: dx.doi.org/10.12804/apl32.2.2014.04
Resumo Resumen
O psicodiagnóstico é uma técnica de avaliação breve, El psicodiagnóstico es una técnica de evaluación bre-
realizada a partir de um conjunto de instrumentos, atra- ve, realizada a partir de un conjunto de instrumentos,
vés dos quais se obtém diversas formas de compreensão, por medio de los cuales se obtienen diversas formas
dependendo da orientação teórica do profissional. O ob- de comprensión, dependiendo de la orientación teórica
jetivo desta pesquisa é compreender como se apresenta del profesional. El objetivo de esta investigación es
no psicodiagnóstico a psicodinâmica entre a criança comprender cómo se presenta en el psicodiagnóstico
porta-sintoma e a família. Realizou-se uma pesquisa la psicodinámica entre el niño porta-síntoma y la fami-
qualitativa por meio de estudo de casos, a partir da lia. Se realizó una investigación cualitativa por medio
análise documental de processos psicodiagnósticos, in- de estudio de casos, a partir del análisis documental de
terpretados à luz da Psicanálise Vincular. Os resultados procesos psicodiagnósticos, interpretados a la luz del
sugerem que o psicodiagnóstico pode desempenhar uma Psicoanálisis Vincular. Los resultados sugieren que el
função intermediária entre paciente e família, produzin- psicodiagnóstico puede desempeñar una función inter-
do efeito terapêutico e auxiliando a criação da demanda mediaria entre paciente y familia, produciendo efecto
de tratamento. Também se observou a função interme- terapéutico y auxiliando la creación de la demanda del
diária que a criança exerce entre as diferentes dimensões tratamiento. También se observó la función intermedia-
de subjetivação da família. ria que el niño ejerce entre las diferentes dimensiones
Palavras-Chave: Psicodiagnóstico, intersubjetividade, de subjetivación de la familia.
psicanálise Palabras clave: Psicodiagnóstico, intersubjetividad,
psicoanálisis
* Bastos B. M., Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS; Falcke D. Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.
A correspondência relacionada com este artigo deve ser direcionada a Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Centro de Ciências da Saúde,
Av. Unisinos, 950 Sala 2A109, Jardim Itu Sabará. 93022000 - São Leopoldo, RS – Brasil. Correio eletrônico: martabbastos@gmail.com
Para citar este artigo: Bastos, B. M., Falcke, D. (2014). A função intermediária do psicodiagnóstico e da posição de porta-sintoma na
dinâmica familiar. Avances en Psicología Latinoamericana, 32(2), 231-245. doi: dx.doi.org/10.12804/apl32.2.2014.04
superpõe entre os sujeitos que pertencem a estrutura alianças, contratos e pactos, sendo os lugares e
deste parentesco, os quais podem remeter a noção obrigações determinantes na sua manutenção (Piva
de que tudo que é vivido por um sujeito, pode ser et al., 2010).
dividido com o outro e pelo outro. As alianças produzem efeitos além dos sujeitos,
No estudo da criança como porta-voz de uma das circunstâncias, sendo a via de transmissão da
realidade ampliada, a proposta de Kaës (1997, vida psíquica entre as gerações e entre os sujeitos
2011) sobre o grupo e os seus sujeitos favorece a contemporâneos de um grupo. A partir deste pres-
compreensão sobre os três espaços psíquicos im- suposto, Kaës (2011) propõe a noção de que um
plicados nesta realidade: o grupo como entidade sujeito não existe sem o outro, e sem o vínculo
específica, o vínculo entre os membros do grupo e que os une e os contém. As alianças inconscientes
o sujeito singular em sua grupalidade intrapsíquica. demandam obrigações do sujeito frente ao grupo,
Para o autor, o grupo está dentro dos sujeitos que ao mesmo tempo em que lhe oferecem benefícios.
o compõem e os sujeitos são o grupo. O autor tra- A satisfação derivada delas pode ser observada
balha com a noção de que os sujeitos são grupos e através do custo psíquico que confere ao sujeito.
que, devido a suas grupalidades, estes se constituem A análise da dinâmica familiar fornece acesso
singularidades grupais. O inconsciente se estrutura ao conhecimento dos conteúdos individuais das
como grupo, portanto, o sujeito do inconsciente é formações inconscientes, na medida em que estão
o sujeito do grupo. A realidade psíquica do grupo articuladas às estruturas intersubjetivas inconscien-
não se reduz a do sujeito. No entanto, a realidade de tes do grupo. Da mesma forma ocorre o contrário,
cada membro é atravessada pela do grupo. O equi- pois as alianças inconscientes estão nos pontos de
líbrio econômico entre a dedicação e o recebimento ligação dessas dimensões. Estes fenômenos oco-
de conveniências faz com que o sujeito tenha que se rrem pela necessidade de reparação em nome da
submeter ao vínculo para existir e ser reconhecido. ameaça catastrófica da emergência dos conteúdos
As fantasias, os processos associativos, as ati- inconscientes. O retorno destes, caso estejam re-
vidades oníricas e os afetos são vivenciados pelo calcados, ocorre através de seus efeitos na cadeia
grupo, mas na medida em que são comuns e com- associativa grupal, nas transferências, nos sonhos,
partilhados produzem as suas variações, que como nos sintomas partilhados e nas funções fóricas. A
consequência proporcionam as derivações secun- função fórica é o processo que inclui e supera a
dárias e singulares de cada sujeito do grupo. O tra- fronteira entre as diferentes dimensões dos casais,
balho intersubjetivo se manifesta nestes processos, das famílias e instituições. Ela implica a ligação
pois são as razões que mantém as psiques unidas e simultânea dos campos intrapsíquico e intersub-
são os lugares de passagem de uma subjetividade a jetivo. Compreende, conforme Kaës (2011) três
outra dos processos de transformação. Não obstan- funções: (a) porta-palavra: quando um dos sujeitos
te, estes conteúdos são vivenciados em grupo, mas é portador de uma fala a qual nem todos dispõem,
possuem uma versão singular secundária, o que embora seja importante também aos outros. (b)
demarca o processo de subjetivação (Kaës, 2005). porta-sonhos: os sujeitos se encarregam de trans-
No estabelecimento da vida psíquica em gru- formar identificações e transferências pessoais e do
po, processos e formações psíquicas originais são grupo em códigos e mobilizam, com os processos
criadas e constituem a matéria prima das alianças primários e secundários, os processos terciários que
inconscientes e mecanismos como o recalque, a correspondem à lógica social e cultural, articulando
denegação, a rejeição ou a clivagem de represen- os sonhos com os mitos; (c) porta-sintoma: possi-
tações ameaçadoras. O termo aliança inconsciente bilita o retorno do recalcado no espaço psíquico do
se refere a uma formação psíquica intersubjetiva grupo e nos espaços psíquicos internos de cada um.
criada pelos sujeitos de um grupo para firmar, em Outras possibilidades apontadas por Kaës (2011)
cada um e na base do vínculo, os investimentos são os porta-ideais e os porta-criptas, sendo os
narcísicos e objetais. O grupo, ligado desta forma, primeiros manifestados através de uma figura de
cria sua realidade psíquica de acordo com estas liderança, que recebe e representa uma parte dos
ideais de cada um a partir da eleição de um objeto nome também de interesses individuais construídos
comum, poderoso e unificador, representando a por sua história e conforme sua estrutura. De acor-
alma do corpo imaginário grupal. Os segundos do com esta complexidade que envolve o sujeito
remeteriam a função que um sujeito exerce como do e no grupo, pode-se considerar que através dos
o de bode expiatório ou possuído. instrumentos no psicodiagnóstico, a avaliação po-
A função fórica, a escolha de seu portador e de de adquirir um caráter consciliente nas diferentes
sua função são delineadas pelas necessidades es- dimensões dos processos de subjetivação.
truturais da vida grupal. No caso, cada membro do Partindo-se desses pressupostos, o presente
grupo assume um lugar determinado pelas redes estudo visa compreender como se manifesta, no
identificatórias, pelos cenários fantasmáticos, pelas psicodiagnóstico, a psicodinâmica entre a criança
relações de objeto e de defesa. Todas as funções se porta-sintoma e sua família. Mais especificamen-
colocam nos pontos de intersecção da fantasia te, objetivou-se compreender como o sintoma da
inconsciente comum e partilhada, nos discursos criança se articula com as características da dinâ-
associativos e na transferência (Kaës, 2005). Da mica familiar, a partir da leitura intersubjetiva, e
mesma forma, todas apresentam a matéria das como se manifestam as alianças inconscientes pa-
alianças inconscientes, dos contratos narcísicos, tológicas da criança com sua família na testagem,
dos pactos denegativos, da comunidade de dene- além de avaliar diferentes demandas do sujeito e
gação. O sujeito que exerce a função fórica se liga da família que possam ser apresentadas no material
aos outros sujeitos fóricos, que ocupam seu lugar da avaliação.
e função específicos nestas alianças. Os portado-
res destas funções indicam a tópica, a modalidade Método
econômica, dinâmica e semiótica dos processos
grupais (Kaës, 2011). A pesquisa se caracteriza como documental, re-
Todas as funções possuem seu caráter psicopa- trospectiva, com delineamento de estudo de casos
tológico, versões neuróticas, perversas e psicóticas. múltiplos (Yin, 2005). Foram usados como fontes
Embora existam características comuns a todas as de dados os relatos da avaliação psicodiagnóstica
funções fóricas, no trabalho analítico é necessário da criança, incluindo a testagem psicológica, a en-
fazer a discriminação do que contém neste processo trevista lúdica e as entrevistas com os pais.
que remete aos pontos de ligação do sujeito e o que
cabe à estrutura do grupo. A delegação é um proces- Participantes
so complexo, que implica a projeção, identificação
projetiva ou depósito num aparelho psíquico exter- Participaram deste estudo duas crianças e suas
no, estando pré-disposto a receber partes da psique famílias, encaminhadas por duas escolas parti-
que um outro não consegue reter em si, que, por sua culares do município de Porto Alegre, as quais
vez, deposita em outro com o propósito de evitar atendem uma clientela de nível sócio-econômico
o destino que seria seu (Amaro et al., 2007). Este médio. Considerou-se que o critério para seleção
mecanismo é comum em casos em que a criança dos participantes fosse por conveniência, pelo fato
assume uma parte inaceitável ou irrealizável da da pesquisa ter sido realizada a partir dos casos en-
psique dos pais. As funções fóricas não podem ser caminhados diretamente ao consultório particular
apenas compreendidas a partir do que determina o da pesquisadora, situado no mesmo município.
sujeito assumi-la num determinado grupo, ou por Foram considerados os seguintes critérios de in-
um lugar predisposto pelo grupo na sua organi- clusão: presença de sintomas emocionais, identifi-
zação. A função e o lugar fórico que o sujeito ocu- cados a partir de queixas escolares de dificuldade
pa precisa ser analisado a partir do próprio desejo de comportamento ou de aprendizagem, idade de
inconsciente que o sujeito possui de ocupar esta seis a nove anos, inexistência de condição clínica
posição. Ele porta a palavra, a fantasia, o conflito, que pudesse intervir nos resultados da atividade ini-
o sintoma do outro, mas realiza seu próprio fim, em cial de psicodiagnóstico e de qualquer medicação
em uso. As crianças foram escolhidas na medida Foram realizados, nessa etapa, o HTP, o Desenho
em que pertencessem a famílias com os genitores da Família, o WISC III, o Teste das Fábulas e a
casados, não participando os casos em que os pais Entrevista Lúdica. No final deste período de ava-
eram separados. Também foram excluídas do estu- liação, foram realizadas consultas para a devolução
do crianças cujos pais realizavam alguma espécie do psicodiagnóstico.
de tratamento psicológico. Cabe salientar que o projeto de pesquisa foi
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Instrumentos Unisinos (Parecer nº 148/2011) e que aqueles que
aceitaram participar da pesquisa assinaram um Ter-
Foram utilizados como fonte de dados os relatos mo de Cessão de Informações, autorizando o uso
do processo de avaliação psicológica, que inclui a dos dados da avaliação para fins do estudo. Como
realização dos testes psicológicos, a entrevista lú- a pesquisa foi realizada com base nos atendimentos
dica com a criança e sessões de entrevistas com os já realizados, não foi exigida nenhuma modificação
familiares. Como parte do processo de atendimento nos procedimentos realizados no atendimento para
do paciente, as entrevistas com os genitores oco- fins de investigação.
rreram de maneira que fosse possível obter o maior
número de informações a respeito do histórico da Procedimentos de Análise dos Dados:
criança, da família e do casal. Não existiu uma or-
dem de assuntos, favorecendo a compreensão da A análise dos dados ocorreu a partir do enten-
cadeia associativa que os participantes construíram, dimento de cada caso como único e singular, ou
bem como o entendimento que possuíam dos pro- seja, cada caso foi analisado em profundidade
cessos psicodinâmicos e do contexto no qual esta- (análise vertical). Posteriormente à compreensão
vam inseridos. As entrevistas foram relatadas por de cada um, foram analisados os aspectos comuns
escrito após o final de cada sessão. No processo de e diferenciais de interações entre os casos descritos
avaliação foram utilizados ainda os seguintes ins- (análise horizontal), o que possibilitou a ampliação
trumentos: a) Genograma (McGoldrick & Gerson, da compreensão do fenômeno, não numa tentativa
2007); b) Entrevista Lúdica (Werlang, 2003a); c) de generalização dos dados, mas sim de aprofun-
HTP (Buck, 2003); d) Desenho da família (Wer- damento do entendimento da dinâmica vincular da
lang, 2003b); e) WISC – III (Wechsler, 1991; adap- criança sintomática com sua família (Yin, 2005).
tada e padronizada por Figueiredo, 2002); f) Teste
de Fábulas (Düss, 1940; traduzido e adaptado para Resultados
a população brasileira por Cunha & Nunes, 1993).
Caso 1 – Carlos
Procedimentos de Coleta de Dados
Carlos, seis anos e nove meses, foi encaminhado
A pesquisa teve como fonte de dados os relatos pela escola para realizar uma Avaliação Psicodiag-
dos atendimentos ocorridos no consultório parti- nóstica devido a sua dificuldade de permanecer
cular da pesquisadora. Na realização dos atendi- entrosado nas atividades em grupo, em manter a
mentos, após o contato inicial por telefone foram atenção nas tarefas solicitadas e em se manter
agendados os primeiros encontros somente com os sentado em sua classe, além de ser muito displi-
pais das crianças. Nestas consultas, promoveu-se cente quanto à organização e manutenção do seu
um espaço para coleta do maior número de infor- material. O paciente era o segundo filho de Fernan-
mações possíveis sobre o contexto e desenvolvi- do e Helen, sendo irmão mais novo de Natália, a
mento físico, emocional/social, cognitivo/lingüís- qual possuía 09 anos e estudava na mesma escola.
tico da criança e da família, além da construção Fernando, 36 anos, trabalhava no setor de vendas
do genograma da mesma. O segundo momento e Helen, 38 anos, era profissional da saúde. Na
correspondeu ao processo de avaliação da criança. primeira consulta, realizada somente com os pais,
o casal se apresentava bastante contrariado com o ternando com sua mãe, a avó paterna do paciente,
encaminhamento, referindo que não concordavam os cuidados e condução deles para as atividades
com a indicação de avaliação ou tratamento que a extraclasses e escolares. Inicialmente, o casal apa-
escola fizera, pois o filho era inteligente e estava rentava uma relativa solidez conjugal, com papéis
apresentando este comportamento, segundo eles, parentais satisfatoriamente estabelecidos, o que se
devido à incapacidade da professora de estabelecer observava pelo seu discurso referente ao respeito
um vínculo efetivo com o mesmo. à hierarquia entre pais e filhos, pela forma como
No entanto, os pais relatavam a dificuldade de apresentaram sua história prévia conjugal e da
manejo com o menino, pois se surpreendiam com constituição da família, além da maneira como de-
a atitude de Carlos, parecendo não comemorar as monstravam preocupação em relação ao bem-estar
aquisições de seu crescimento. Eles referiam que do menino, pois não associavam sua problemática
o filho parecia não ter crítica quando estes fatos a nenhum evento ou fator preocupante em relação
relatados ocorriam, ficando em dúvida se ele era à vida familiar. No entanto, ao descrever a rotina
capaz de compreender as orientações dos pais e das familiar, algumas lacunas foram sendo apresenta-
educadoras da escola. No entanto, não duvidavam das. A hora das refeições, principalmente o jantar,
da capacidade cognitiva do filho, pelo contrário, mesmo no final de semana, não era uma atividade
surpreendiam-se com os comentários ou raciocí- compartilhada e constituída pela presença de todos,
nios lógico-matemáticos que ele demonstrava. sendo cada um responsável pela sua refeição. Além
Outra razão de preocupação e fantasia do casal disso, tanto a mãe quanto o pai não acompanhavam
era a de que o paciente não se sentisse valorizado pessoalmente a vida escolar dos filhos, se limitando
pela família como era Natália, pois os grupos de a levar e buscar os filhos na frente da escola, e se
origem de ambos proporcionaram para a menina revezando em dias de reunião com os professo-
muitos privilégios por ser a primeira neta destes res, permanecendo somente metade do tempo nos
dois núcleos familiares. Fernando e Helen descre- encontros. Eles também mantinham uma postura
veram a menina como sendo muito bonita e inteli- muito passiva frente ao contato com a professora,
gente, tendo sucesso em tudo que fazia. De acordo referindo que não recebiam nenhuma comunicação
com o que percebiam, Carlos não expressava raiva da mesma pela agenda.
ou qualquer sentimento negativo em relação à irmã, Na entrevista inicial com Carlos, foi realizada a
pelo contrário, às vezes, buscava reproduzir o que Entrevista Lúdica, na qual ele brincou com bone-
a irmã fazia, mesmo sendo atividades nitidamente cos, soldados e animais. Na medida em que sele-
do gênero feminino. cionava os personagens, separava-os para compor
Sobre as famílias de origem, Fernando era na- grupos de famílias da mesma espécie que, em sua
tural de Porto Alegre, possuindo três irmãos mais história, eram salvos pelos soldados, pois “estavam
novos do casamento de seus pais – dois irmãos e presos em fortalezas indestrutíveis”. O menino
uma irmã, além de outra irmã menor da segunda selecionou da caixa de brinquedos dois canhões
união de seu pai. Helen possuía somente mais uma e ele e a profissional tinham a tarefa de quebrar as
irmã mais nova e seus pais foram casados até o fa- muralhas da fortaleza. Carlos pareceu estabelecer
lecimento de seu pai em 2007. O convívio com as um vínculo cooperativo; mesmo ficando um pouco
famílias de origem era eventual, predominando o tímido, mostrou-se curioso pelo ambiente do con-
contato com a família de Fernando, principalmente sultório e se despediu de forma afetuosa.
quanto aos cuidados dos filhos que eram realizados No HTP e Desenho da Família, realizados na
pela avó paterna. sessão seguinte, foi possível coletar os seguintes
Sobre as relações familiares, o casal referiu que dados através do levantamento: no primeiro, foi
passavam por um momento estressante, em que os possível compreender questões referentes ao pa-
horários de trabalho de Helen não favoreciam a ciente e como ele estava sentindo o ambiente e sua
participação da mãe do cotidiano dos filhos. Fer- relação com ele. Foram apontadas as seguintes
nando possuía maior flexibilidade de horário, al- questões: dificuldade momentânea de adaptação a
situações novas, sofrimento e receio quanto ao am- foram: Compreensão Verbal –108– Médio, Orga-
biente, tendência ao descontrole emocional, frágeis nização Perceptual –109– Médio, Resistência à
capacidades egóicas, intensa agressividade reprimi- Distração –119– Médio Superior, Velocidade de
da e limitação para lidar com sentimentos hostis, Processamento –115– Médio Superior. Cabe sa-
desatenção como manifestação da agressividade lientar que contou no relatório entregue aos pais a
e/ou oposição, ansiedade referente ao processo de explicação de que os resultados de QI e Índices Fa-
separação-individuação, dependência, tendência de toriais se referiam ao potencial cognitivo do sujeito,
utilizar a negação como mecanismo de defesa, re- na presente data. Carlos alcançou escores acima do
traimento, insegurança e fantasias de inferioridade, esperado para sua faixa etária, tanto na parte Verbal,
assim como necessidade de gratificação imediata. quanto na escala de Execução. No entanto, pode-se
No Desenho da família, o paciente represen- entender que os resultados acima de sua média no
tou e identificou sua própria família. Embora a subteste de Vocabulário (escore: 16 pontos) revela
cena criada e descrita pelo paciente remetesse a as seguintes características: bom ambiente cultural
um momento de prazer, sugerindo uma união do familiar e escolar, bom potencial intelectual, defe-
grupo (símbolo na roupa dos bonecos), a preca- sas intelectualizadas, bom potencial para psicote-
riedade na composição das figuras humanas e a rapia ou tendência a permanecer em tratamento,
distribuição dos personagens na folha sugere uma bom potencial para aprendizagem. Por outro lado,
falha na configuração do grupo. A diferença entre a alteração discrepante (déficit em relação a sua
as gerações era fragilmente esboçada, mas existe e própria média) apresentada nos resultados de Car-
a disparidade fraterna era claramente apresentada. los no subteste de Informação (escore: 09 pontos)
Estes resultados, somados ao conteúdo do HTP pu- sugere a seguinte compreensão: pouca motivação
deram sugerir e favorecer a compreensão de como para tarefa, atitude hostil frente ao aprendizado,
o paciente percebia dinamicamente as diferentes dificuldade de compreensão e da linguagem, pouco
questões de demanda da família e de si mesmo. interesse em relação ao ambiente e ao contato com a
No Teste de Fábulas, aplicado na mesma consul- realidade, pouca ambição intelectual no momento,
ta do HTP, foi possível observar itens significativos prejuízo na integração das experiências de palavras,
na compreensão dinâmica, pois Carlos apresentou objetos, fatos e relações, ambivalência frente aos
resultados que sugerem forte passividade e depen- estímulos educacionais.
dência das figuras cuidadoras, com ambivalência Além dos resultados relevantes, Carlos apresen-
quanto à figura materna. O paciente apresentou tou escores que podem sugerir também tendências
intensos sentimentos de culpa e autopunição, não e características que podem ser entendidas através
associados à triangulação edípica e posição fálica. dos dados articulados, os quais auxiliam a com-
Seus desejos de reconhecimento são intensos e ele preensão mais abrangente de sua personalidade.
se mostrou ambivalente frente à disputa fraterna. Seus escores baixos em Compreensão e Arranjo
Na aplicação do WISC-III, a qual implicou duas de Figuras (escores: 11 e 10, respectivamente),
sessões da avaliação, Carlos atingiu resultados embora dentro da média esperada para a população
além da média esperada para sua idade cronológica de sua faixa etária, podem sugerir um prejuízo na
para a parte Verbal e Execução (MV e ME = 12). capacidade intelectual em razão de fatores emocio-
No entanto, nos subtestes de Informação, o paciente nais latentes. O subteste de Compreensão reflete os
obteve um déficit estatisticamente relevante quan- fatores emocionais que prejudicam as capacidades
to a sua própria média. Por outro lado, no teste de cognitivas e enfrentamento do ambiente diário. Por
Vocabulário, o menino obteve um ávit, uma discre- sua vez, os escores baixos neste subteste podem
pância estatisticamente significativa (Significância indicar um estado transitório de desatenção, dificul-
= 0.05) em relação a sua própria média (Figueiredo, dades de planejamento em situações consecutivas
2002). Seus resultados em QI foram: Verbal –113– e causais e indicar a tendência ansiosa e impulsiva
Médio Superior, Execução –112– Médio Superior, do sujeito em lidar com diferentes situações. Os
Total –113– Médio Superior. Seus Índices Fatoriais dados levantados na aplicação desta Escala também
idade, e porque discordavam muito em relação à limitado em poder dar atenção ao filho, pois ele já
criação de Rodrigo, que nasceu meses depois que possuía uma idade avançada para ter disposição de
Nanci foi morar com Marcos. A mãe referia que brincar com ele, ao mesmo tempo em que tentava
o marido não participava da vida do filho e que o de algumas formas diferentes chamar sua atenção.
menino ainda o solicitava nas brincadeiras, ou ati- Além disso, denunciou que, nestes momentos,
vidades escolares, mas Marcos não correspondia. Nanci não facilitava a aproximação de Rodrigo
Além disso, o pai do paciente fazia uso diário de com o pai.
maconha quando chegava em casa, afastando-se Na sessão seguinte, foi realizada a Entrevista
do filho e da esposa. Ele permanecia trancado em Lúdica com Rodrigo, na qual ele pediu para jogar
seu quarto enquanto estava sob o efeito da droga, alguns jogos de tabuleiro, como Combate e Dete-
impossibilitando Rodrigo ou a esposa de entrarem tive. Ele parecia interessado pelo ambiente e pelos
no local. brinquedos, além da razão pela qual veio consultar.
Nanci tinha dúvidas quanto à manutenção do O paciente parecia um menino retraído, que se ex-
casamento. Referiu que fazia faculdade para ter pressava de forma infantilizada em alguns momen-
maior estabilidade financeira, para que pudesse se tos, afinando a voz e usando muito expressões na
separar do pai de Rodrigo caso concluísse que a re- forma diminutiva. Pareceu preocupado em estabe-
lação não tivesse futuro. No entanto, afirmava que lecer um vínculo com a profissional e demonstrou
grande parte do insucesso da relação era devido aos receio em comemorar sua vitória nos jogos. No
problemas gerados pelos cunhados e não por falta final da consulta, conversou-se sobre o objetivo da
de entrosamento do casal. Ela temia a repercussão avaliação e ele demonstrou contrariedade sobre a
destes eventos na vida do filho e na forma como situação familiar e escolar. Rodrigo referiu que não
ele entendia a realidade familiar. Conta que os dois entendia o porquê de seus tios não gostarem de sua
eram muito unidos, e que ele tinha comportamentos mãe, nem o porquê seus pais pareciam desinteres-
que não inspiravam grandes preocupações em casa, sados às vezes um pelo outro. Quanto à escola, re-
como um menino adequado para sua idade. clamou dos outros meninos da turma, referindo que
A entrevista seguinte foi realizada com Marcos, eles eram muito injustos na forma de lidar com ele.
o pai de Rodrigo, que também referiu que ainda Da mesma forma, a professora parecia não entender
tinha esperanças que a relação familiar se rees- o que ele sentia, segundo seu relato. Demonstrou
truturasse na medida em que eles estabelecessem receio frente à escola e certa insegurança sobre o
um vínculo mais pacífico com seus irmãos. Nesta sentimento de seus pais em relação a ele.
entrevista, o pai esclareceu que não acreditava A consulta seguinte foi dedicada à realização
que o menino tivesse qualquer prejuízo cognitivo, do HTP, Desenho da Família e do Teste de Fábu-
mas que concordava que o clima da família estava las. Nos resultados do primeiro, foi possível fazer
muito pesado devido às discordâncias entre os pais o levantamento das seguintes questões: sentimen-
e entre estes e sua família de origem. Naquela cir- tos de rejeição; preocupação, sofrimento e receio
cunstância, pensavam em comprar um novo imóvel quanto ao ambiente; tendência ao descontrole emo-
para que a família fosse morar, com a ideia de que cional, frágil capacidade egóica; capacidade de
as brigas com Nanci não ocorressem mais. Sobre adiar gratificação; insegurança; efeito de estresse;
o uso de maconha, referiu que havia parado havia agressividade reprimida; ansiedade; dependência;
três dias, com a intenção de restabelecer a confiança e busca da fantasia de grandiosidade como recurso
a harmonia familiar. Marcos referiu que ficava para lidar com sentimentos; retraimento; tendência
muito magoado e sensível com o clima criado entre à regressão.
sua família e a esposa, além de sofrer por assistir e O Desenho da Família revelou um material que
acompanhar a doença de seus pais. Também ficava sugeria uma imaturidade das figuras parentais, sem
preocupado com a condição do filho em presenciar uma distinção clara a respeito das gerações. Além
estas discussões. No entanto, quanto aos desencon- disso, a cena reportava ao “dia em que o mundo
tros dele e do filho, Marcos contou que ele se sentia acabaria”, representado como um momento frio
interesse em pedir a separação. Este pedido já de- sua família e a maneira como passou a demonstrar
monstrava a ambivalência do casal e o despreparo suas insatisfações, Rodrigo se sentiu mais aliviado
nesta circunstância para encarar a problemática do e compreendido, intensificando o vínculo com a
grupo. Na devolução, Nanci ficou satisfeita com a profissional.
avaliação, se surpreendendo quanto à forma com
que o resultado mapeava as aptidões e déficits que Discussão dos resultados
Rodrigo apresentava no momento. No entanto, de
acordo com a impressão da profissional, ela não Os casos de Carlos e Rodrigo se constituem em
aceitou a proposta de atendimento familiar, visto um material que possibilita a análise da dinâmica
que não acreditava na legitimidade do desejo do do sujeito do e no grupo. Através dos dados da tes-
marido em mudar, mas aceitou a indicação de psi- tagem psicológica, diante das circunstâncias que
coterapia para Rodrigo, uma vez que compreendeu foram relatadas, as famílias de ambos pacientes
a repercussão e prejuízo para ele em assumir o pa- eram marcadas por uma fragilidade na constituição
pel de porta-sintoma da família. De toda forma, foi da parentalidade e da conjugalidade. A função fóri-
apresentada para a mãe do paciente a compreensão ca assumida pelo paciente porta-sintoma relatado
de que o atendimento vincular poderia servir justa- evidencia a dinâmica na qual cada sujeito que é
mente como um trabalho que pudesse favorecer a escolhido para ser o portador do sintoma aceita e
tomada de decisões sem maiores danos colaterais se indica para tal compromisso. Eles se permitem
principalmente para seu filho, independente do tipo e se oferecem a esta eleição na medida em que os
de conclusão a que chegassem, sendo a favor ou organizadores psíquicos inconscientes que presi-
não de uma separação. dem à formação do aparelho psíquico do grupo
Por outro lado, na consulta realizada com Mar- falha e determina os lugares e postos no grupo.
cos para apresentação dos dados da avaliação, o pai Nos casos relatados, a falha na conjugalidade e
do menino se surpreendeu e ficou muito satisfeito na parentalidade, bem como as fragilidades indi-
com os resultados do psicodiagnóstico, aceitando viduais de cada genitor, contribuiu para que estas
inclusive a indicação do atendimento vincular, a fim crianças tomassem lugar em predisposições de
de que o filho ficasse mais imune a tensão gerada posições comandadas pelas redes de identificação,
pelos desentendimentos da família. Comentou que pelas relações de objeto, pela configuração dos me-
participaria do trabalho na medida em que Nanci canismos de defesa apreendidos, pelos mandatos
contatasse o atendimento vincular. Neste momento, fundamentais do grupo. A fragilidade dos apoios
o paradoxo, o impasse do casal também se apre- à qualidade da vida pulsional destes sujeitos e a
sentava, pois Marcos sabia da intenção de Nanci predominância de estabelecimentos de alianças
de não realizar este trabalho. Ambos ainda perma- inconscientes alienantes e não estruturantes, asso-
neciam muito projetivos na maneira de abordar os ciadas às falhas na capacidade destes cuidadores de
problemas da família e do casal, o que acabava por mediar a vida destas crianças em seu mundo am-
intensificar a angústia da possibilidade de encontro pliado, auxiliou na configuração de prejuízo emo-
no setting terapêutico. cional e interferência no aprendizado das crianças
Diante do impasse e desacordo do casal, Mar- (Papp, Goeke-Morey & Cummings, 2004).
cos e Nanci foram capazes de somente coordenar Através da análise psicodinâmica dos meca-
o início do atendimento de Rodrigo. A entrevista nismos inconscientes de Carlos e Rodrigo, a pré-
de devolução da avaliação com o menino foi muito condição para o cargo de porta sintoma de ambos
positiva, pois o paciente foi capaz de visualizar seu fica clara, na medida em que há tendência à auto-
potencial, favorecendo através de dados concretos punição, associada à intensa desvalia e fantasia de
a melhora de sua autoestima, bem como de perce- rejeição e preocupações com o ambiente e vínculos
ber como seus sentimentos poderiam obstruir as afetivos. Estas fantasias associadas ao compro-
suas capacidades. Na medida em que pôde ter uma misso narcísico assumido em nome da família, na
breve compreensão sobre o lugar que ocupa em medida em que se comprometem com uma aliança
pacientes que buscam por uma orientação que Buck, J. N. (2003). H-T-P:casa-árvore-pessoa, técnica
ilusoriamente simplifique suas vidas. No entanto, projetiva de desenho: manual e guia de interpre-
o profissional precisa possuir um conhecimento tação. Tradução Renato Cury Tardivo; revisão
satisfatório da teoria e da prática de avaliação para de Iraí Cristina Boccato Alves. São Paulo: Vetor.
realizar um trabalho ético, e que saiba inclusive as Cunha, J. A. (2003a). Estratégias de avaliação: perspec-
limitações que os instrumentos e suas informações tivas em psicologia Clínica. In J. A. Cunha et al.
podem obter. Ao mesmo tempo em que deve estar Psicodiagnóstico – V. (pp. 19-22) Porto Alegre:
aberto para a diversidade de possibilidades de leitu- Artmed.
ras que se tornam possíveis a partir do contato com Cunha, J. A. (2003b). Fundamentos do psicodiagnóstico.
o paciente e com o material coletado. Muito mais In J. A. Cunha et al. Psicodiagnóstico – V. (pp.23-
do que instrumentos diversificados ou modelos 31) Porto Alegre: Artmed.
revolucionários de avaliação, o olhar do terapeuta Cunha J. A., Nunes, M. L. T. & cols. (1993). Teste de
pode ser o guia para a compreensão do sofrimento Fábulas: forma verbal e pictórica. São Paulo:
e das demandas do paciente. Espera-se que essa Centro Editor de Testes e Pesquisas em Psicologia.
pesquisa possibilite com que possam ser levantadas Finkel, L. A. (2009). O Lugar da Mãe na Psicoterapia da
novas ideias para futuras investigações e práticas Criança – uma Experiência de Atendimento Psi-
profissionais em Psicologia, inclusive a respeito da cológico na Saúde Pública. Psicologia, Ciência e
formulação de psicodiagnósticos vinculares. Profissão, 29(1), 190-203.
As teorias atuais, embasadas de uma compreen- Gastaud, M. B., Basso, F., Soares, J.P.G., Eizirik, C. L.
são epistemológica que contemple a diversidade, & Nunes, M. L. T. (2011). Preditores de abando-
permite ao pesquisador a criação de novas propos- no de tratamento na psicoterapia psicanalítica de
tas de leitura e intervenção do trabalho com instru- crianças. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do
mentos já existentes, como os testes psicológicos. Sul, 33(2), 109-115.
Da mesma forma, o entendimento da complexidade Hack, S. M. P. K. & Ramires, V. R. R. (2010). Adoles-
de redes intersubjetivas instiga a criação de novas cência e divórcio parental: continuidades e rup-
ferramentas que auxiliem o profissional a investi- turas dos relacionamentos. Psicologia Clínica,
gar e entender como o sujeito e o grupo podem se 22(1), 85-97.
constituir e cambiar conteúdos. Kaës, R. (2011). Um singular plural – A psicanálise à
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