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Qualia Epifenoménicos

Frank Jackson

É inegável que as ciências físicas, químicas e biológicas nos deram muita


informação acerca do mundo em que vivemos e acerca de nós próprios. Vou usar a
etiqueta «informação física» para este tipo de informação e também para a
informação que automaticamente a acompanha. Por exemplo, se um cientista
médico me diz o suficiente sobre os processos que decorrem no meu sistema
nervoso, e sobre a forma como estes se relacionam com acontecimentos no mundo
à minha volta, com o que aconteceu no passado e é provável que aconteça no
futuro, com o que acontece a outros organismos semelhantes e dissemelhantes, e
coisas deste género, ele ou ela fala-me — se eu tiver bastante inteligência para
conjugar apropriadamente as coisas — sobre aquilo a que muitas vezes se chama o
«papel funcional» desses estados em mim (e nos organismos em geral, em casos
semelhantes). A esta informação, e a outras do mesmo género, aplicarei também a
etiqueta «física».
Não pretendo que estas observações superficiais constituam uma definição de
«informação física» e das noções correlativas de propriedade física, processo, e aí
por diante, mas que indiquem o que tenho aqui em mente. É bem sabido que há
problemas em dar uma definição precisa destas noções, e também da tese
fisicalista segundo a qual toda a informação (correcta) é informação física99. Mas —
ao contrário de algumas pessoas — considero que a questão da definição atravessa
os problemas centrais que quero discutir neste ensaio.
Sou aquilo a que por vezes se chama um «fanático por qualia». Penso que há
certas características das sensações corpóreas em especial, mas também de certas
experiências perceptivas, que nenhuma quantidade de informação puramente física
inclui. Digam-me tudo o que há para dizer de físico acerca do que se passa num
cérebro vivo, o tipo de estados, o seu papel funcional, a sua relação com o que se
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
Ver p. ex. D. H. Mellor, «Materialism and Phenomenal Qualities», Aristotelian Society Supp. Vol. 47 (1973),
107-119; e J. W. Cornman, Materialism and Sensations (New Haven e Londres, 1971)

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passa noutros momentos e noutros cérebros, etc., etc., e seja eu tão inteligente
quanto possível em conjugar tudo, não me terão falado acerca da dolorosidade das
dores, da pruridez das comichões, dos acessos de ciúmes, ou sobre a experiência
característica de saborear um limão, cheirar uma rosa, ouvir um ruído intenso ou ver
o céu.
Há muitos fanáticos por qualia e alguns afirmam que a sua rejeição do
Fisicalismo é uma intuição não argumentada100 . Penso que estão a ser injustos
consigo próprios. Eles dispõem do seguinte argumento. Nada do que se poderia
afirmar de um género físico capta o cheiro de uma rosa, por exemplo. Logo, o
Fisicalismo é falso. Segundo a nossa compreensão, este é um argumento
perfeitamente aceitável. Não vem obviamente a propósito questionar a sua validade,
e a verdade da premissa é intuitivamente óbvia tanto para eles como para mim.
Tenho todavia de admitir que é fraco de um ponto de vista polémico. Há,
infelizmente para nós, muitas pessoas que não consideram a premissa
intuitivamente óbvia. A tarefa então é apresentar um argumento cujas premissas
sejam óbvias para todos, ou pelo menos para tantos quanto possível. Procuro fazer
isto em §I com aquilo a que chamarei «o argumento do conhecimento». Em §II
contrasto o argumento do conhecimento com o argumento modal e em §III com o
argumento do «como é ser» [what it is like to be]. Em §IV lido com a questão do
papel causal dos qualia. O principal factor que impede as pessoas de admitir os
qualia é a crença de que se lhes teria de dar um papel causal no que se refere ao
mundo físico e especialmente ao cérebro101; e é difícil fazer isto sem parecer
alguém que acredita em fadas. Procuro em §IV voltar esta objecção argumentando
que a perspectiva de que os qualia são epifenoménicos é uma perspetiva
perfeitamente possível.

I O Argumento do Conhecimento a Favor de Qualia

As pessoas variam consideravelmente na sua capacidade para discriminar cores.


Suponhamos que numa experiência para catalogar esta variação se descobre Fred.

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100
Particularmente em discussão, mas ver, p. ex., Keith Campbell, Metaphysics (Belmont, 1976), p.67.
101
Ver, p. ex., D. C. Dennett, «Current Issues in the Philosophy of Mind», American Philosophical Quarterly,
15 (1978), 249-261.
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! "1/!
Fred tem melhor visão das cores do que qualquer outra pessoa de que há registo;
faz todas as discriminações que alguém já fez e além disso faz uma que nem
sequer podemos começar a fazer. Mostre-se-lhe um conjunto de tomates maduros e
ele dispõe-nos aproximadamente em dois grupos iguais, de uma maneira
completamente coerente. Ou seja, se lhe vendarem os olhos, baralharem os
tomates, retirarem a venda e lhe pedirem para os ordenar novamente, ele dispõe-
nos exactamente nos mesmos dois grupos.
Perguntamos a Fred como faz isto. Ele explica-nos que nenhum tomate maduro
lhe parece ter a mesma cor, e de facto isto é verdade a respeito de muitíssimos
objectos que classificamos conjuntamente como vermelhos. Ele vê duas cores onde
nós vemos uma e consequentemente desenvolveu para seu próprio uso duas
palavras «vermelho1» e «vermelho2» para assinalar a diferença. Talvez nos diga
que tentou muitas vezes ensinar a diferença entre vermelho1 e vermelho2 aos seus
amigos mas nada conseguiu, concluindo que o resto do mundo sofre de daltonismo
vermelho1-vermelho2 — ou talvez tenha tido sucesso parcial com os seus filhos, não
importa. Em todo o caso ele explica-nos que seria completamente errado pensar
que, porque «vermelho» aparece tanto em «vermelho1» como em «vermelho2», as
duas cores são matizes da mesma cor. Fred apenas usa o termo comum
«vermelho» para se ajustar mais facilmente ao nosso uso limitado. Para ele,
vermelho1 e vermelho2 são tão diferentes entre si e entre todas as outras cores
como são entre si o amarelo e o azul. E o seu comportamento discriminatório
confirma isto: Fred separa os tomates vermelho1 dos tomates vermelho2 com a
maior facilidade numa ampla variedade de circunstâncias observacionais. Além
disso, uma investigação da base fisiológica da excepcional capacidade de Fred
revela que o seu sistema óptico consegue distinguir dois grupos de comprimentos
de onda no espectro vermelho tão nitidamente como nós conseguimos distinguir o
amarelo do azul.102
Penso que devíamos admitir que o Fred pode ver, ver realmente, pelo menos
uma cor mais do que nós; vermelho1 é uma cor diferente de vermelho2. Somos para
Fred como uma pessoa com daltonismo total verde-vermelho é para nós. A narrativa
de H. G. Wells «O País dos Cegos» é sobre uma pessoa que vê numa comunidade

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102
Coloque esta e simplificações semelhantes à frente, em termos da teoria de Land, se preferir. Ver, p. ex.,
Edwin H. Land, «Experiments in Color Vision», Scientific American, 200 (5 de Maio de 1959), 84-99.

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totalmente cega103 . Esta pessoa nunca consegue convencê-los de que é capaz de
ver, que tem um sentido extra. Eles ridicularizam este sentido como completamente
inconcebível e tratam a sua capacidade para evitar cair em valas, para vencer
combates, etc. precisamente como essa capacidade e nada mais. Cometeríamos o
erro deles se nos recusássemos a admitir que Fred consegue ver uma cor mais do
que nós.
Que tipo de experiência tem Fred quando vê vermelho1 e vermelho2? Como é ou
são a nova cor ou cores? Gostaríamos muito de saber mas não sabemos; e parece
que nenhuma quantidade de informação física sobre o cérebro e sistema óptico de
Fred no-lo diz. Descobrimos talvez que os cones de Fred reagem diferentemente a
certas ondas luminosas na secção vermelha do espectro que não fazem qualquer
diferença para os nossos (ou talvez ele tenha um cone extra) e que isto leva em
Fred a um âmbito mais vasto dos estados cerebrais responsáveis pelo
comportamento visual discriminatório. Mas nada disto nos diz o que realmente
queremos saber acerca da sua experiência de cor. Há algo acerca disso que
desconhecemos. Mas sabemos, supostamente, tudo acerca do corpo de Fred, o seu
comportamento e disposições para comportamento e sobre a sua fisiologia interna,
e tudo sobre a sua história e relação com outros que se possa dar numa explicação
física das pessoas. Temos toda a informação física. Logo, saber tudo isto não é
saber tudo sobre Fred. Segue-se que o fisicalismo deixa algo de fora.
Para reforçar esta conclusão, imaginemos que em resultado das nossas
investigações sobre o funcionamento interno de Fred descobrimos como tornar a
fisiologia de toda a gente como a de Fred nos aspectos relevantes; ou talvez Fred
doe o seu corpo à ciência e quando da sua morte somos capazes de transplantar o
seu sistema óptico para outra pessoa — mais uma vez, os detalhes subtis não
importam. O ponto importante é que tal acontecimento suscitaria enorme interesse.
As pessoas diriam, «Finalmente saberemos como é ver a cor extra, finalmente
saberemos como Fred diferiu de nós no modo como lutou para nos informar durante
tanto tempo.» Então não pode dar-se o caso de que sabíamos tudo sobre o Fred
desde o início. Mas ex hypothesi sabíamos desde o início tudo sobre o Fred que
figure no esquema fisicalista; portanto o esquema fisicalista deixa algo de fora.
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)1.
!H. G. Wells, The Country of the Blind and Other Stories (Londres, sem data.).
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Coloquemos as coisas assim. Depois da operação, saberemos mais acerca de
Fred e em especial sobre as suas experiências de cor. Mas de antemão tínhamos
toda a informação física que poderíamos desejar sobre este corpo e cérebro e na
verdade tudo o que alguma vez figurou nas explicações fisicalistas da mente e da
consciência. Portanto há mais para saber do que tudo isso. Portanto o fisicalismo é
incompleto.
Fred e as a(s) nova(s) cor(es) são, como é evidente, essencialmente dispositivos
retóricos. Pode-se exprimir a mesma ideia com pessoas normais e cores familiares.
Maria é uma cientista brilhante que, por alguma razão, é obrigada a investigar o
mundo a partir de uma sala a preto e branco através de um monitor de televisão a
preto e branco. Especializa-se na neurofisiologia da visão e adquire, suponhamos,
toda a informação física que há para obter sobre o que se passa quando vemos
tomates maduros, ou o céu, e usamos termos como «vermelho», «azul», etc.
Descobre, por exemplo, justamente que combinações de comprimento de onda a
partir do céu estimulam a retina e exactamente como isto produz através do sistema
nervoso central a contracção das cordas vocais e a expulsão de ar dos pulmões que
resulta na elocução da frase «O céu é azul». (Dificilmente se pode negar que é em
princípio possível obter toda esta informação física a partir da televisão a preto e
branco, de contrário a Universidade Aberta teria necessariamente de usar televisão
a cores.)
O que acontecerá quando libertarem Maria da sua sala a preto e branco ou lhe
derem um monitor de televisão a cores? Aprenderá ela algo ou não? Parece
simplesmente óbvio que aprenderá algo acerca do mundo e a experiência visual
que temos dele. Mas então é inegável que o seu conhecimento anterior era
incompleto. Mas ela tinha toda a informação física. Logo há mais para ter do que
isso e o fisicalismo é falso.
Evidentemente, poder-se-ia usar o mesmo estilo de argumento epistémico para o
paladar, a audição, as sensações corporais e em geral para os vários estados
mentais que se diz terem (segundo variadas formulações) sentimentos em bruto,
características fenoménicas ou qualia. A conclusão em cada caso é a de que os
qualia ficam de fora da história fisicalista. E a força polémica do argumento
epistémico é ser tão difícil negar a afirmação central de que se pode ter toda a
informação física sem ter toda a informação que há para ter.

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II O Argumento Modal

Por argumento modal quero dizer um argumento do seguinte estilo104. Os


cépticos acerca de outras mentes não cometem um erro em lógica dedutiva,
independentemente do que mais esteja incorrecto na sua posição. Nenhuma
quantidade de informação física sobre outrém implica logicamente que ele ou ela
está consciente ou que sente seja o que for. Consequentemente há um mundo
possível com organismos exactamente como nós em todos os aspectos físicos (e
lembremo-nos que isso inclui estados funcionais, história física, etc.) mas que
diferem de nós profundamente na medida em que não têm vida mental consciente
de todo. Mas então o que será que nós temos e a eles lhes falta? Nada físico ex
hypothesi. Em todos os aspectos físicos nós e eles somos exactamente
semelhantes. Por consequência há mais em nós do que o puramente físico. Assim o
fisicalismo é falso.105
Objecta-se por vezes que o argumento modal não compreende o fisicalismo com
base em que a doutrina é apresentada como uma verdade contingente106. Mas dizer
isto é dizer apenas que os fisicalistas restringem a sua afirmação a alguns mundos
possíveis, incluindo especialmente o nosso; e o argumento modal dirige-se apenas
contra esta afirmação menor. Se nós no nosso mundo, quanto mais seres em
quaisquer outros, têm características adicionais às das nossas réplicas físicas
noutros mundos possíveis, então temos características não físicas ou qualia.
A dificuldade com o argumento modal, ao invés, é assentar numa intuição modal
discutível. Discutível porque é posta em causa. Alguns negam sinceramente que
possa haver réplicas físicas de nós noutros mundos possíveis que não obstante

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
104
Ver, p. ex., Keith Campbell, Body and Mind (Nova Iorque, 1970); e Robert Kirk, «Sentience and
Behaviour», Mind, 83 (1974), 43-60.
Ver, p. ex., W. G. Lycan, «A New Lilliputian Argument Against Machine Functionalism», Philosophical
Studies, 35 (1979), 279-287, p. 280; e Don Locke, «Zombies, Schizophrenics and Purely Physical Objects»,
Mind, 85 (1976), 97-99.
105
Apresentei o argumento à maneira inter-mundista em vez de na habitual intra-mundista, para evitar
complicações inessenciais respeitantes à sobreveniência, anomalias causais e coisas semelhantes.
106
Apresentei o argumento à maneira inter-mundista em vez de na habitual intra-mundista, para evitar
complicações inessenciais respeitantes à sobreveniência, anomalias causais e coisas semelhantes.

! "1*!
sejam desprovidos de consciência. Além disso, pelo menos uma pessoa que em
tempos teve a intuição tem agora dúvidas107.
Contar cabeças pode parecer uma abordagem medíocre a uma discussão do
argumento modal. Mas muitas vezes não podemos fazer melhor quando estão em
causa intuições modais, e lembre-se que o nosso objectivo inicial era encontrar o
argumento com a maior utilidade polémica.
Evidentemente, enquanto protagonistas do argumento epistémico podemos muito
bem aceitar a intuição modal em causa; mas isto será uma consequência de já
termos um argumento a favor da conclusão de que os qualia são deixados de fora
da história fisicalista, não a nossa base para essa conclusão. Além disso, o assunto
é complicado pela possibilidade de a conexão entre assuntos físicos e qualia é
como a que por vezes se verifica entre qualidades estéticas e qualidades naturais.
Dois mundos possíveis que concordam em todos os aspectos «naturais» (incluindo
as experiências de criaturas sencientes) têm de concordar também em todas as
qualidades estéticas, mas é plausível sustentar que as qualidades estéticas não
podem reduzir-se às naturais.

III O Argumento «Como é ser»

Em «Como é Ser um Morcego?» Thomas Nagel argumenta que nenhuma


quantidade de informação física nos pode dizer como é ser um morcego, e que nós,
seres humanos, na verdade, não podemos imaginar como é ser um morcego108. A
sua razão é a de que aquilo que isto é só pode ser compreendido pela perspectiva
de um morcego, a qual não é a nossa perspectiva e não é algo captável em termos
físicos que são essencialmente termos igualmente compreensíveis de muitas
perspectivas.
É importante distinguir este argumento do argumento epistémico. Quando me
queixei de que todo o conhecimento físico sobre Fred não era suficiente para nos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
107
Ver R. Kirk, «From Physical Explicability to Full-Blooded Materialism», The Philosophical Quarterly, 29
(1979), 229-237. Ver também os argumentos contra a intuição modal em, p. ex., Sydney Shoemaker,
«Functionalism and Qualia», Philosophical Studies, 27 (1975), 291-315.
)14
! The Philosophical Review, 83 (1974), 435-450. Há que dizer duas coisas acerca deste artigo. Uma é que,
apesar das minhas dissociações vindouras, estou em dívida para com o mesmo. A outra é que a ênfase muda
através do artigo e no final Nagel objecta não tanto ao fisicalismo como a todas as teorias da mente que
subsistem, por ignorar pontos de vista, incluindo as que admitem qualia (irredutíveis).
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dizer como era a sua experiência de cor especial, não me queixava de não
descobrirmos como é ser o Fred. Queixava-me de que há algo a respeito da sua
experiência, uma sua propriedade, da qual permanecíamos ignorantes. E se e
quando chegarmos a saber o que esta propriedade é continuaremos sem saber
como é ser o Fred, mas saberemos mais acerca dele. Nenhuma quantidade de
conhecimento sobre Fred, físico ou não, redunda em conhecimento «a partir de
dentro» sobre Fred. Não somos o Fred. Há assim todo um conjunto de itens de
conhecimento que se exprime em formas verbais como «que sou eu próprio que
[…]» que Fred tem e nós simplesmente não podemos ter porque não somos ele.109
Quando Fred vê a cor que só ele pode ver, uma coisa que sabe é o modo como a
sua experiência da cor difere da sua experiência de ver o vermelho, etc., outra é que
ele próprio a vê. Tanto os malucos do fisicalismo como os dos qualia deviam
reconhecer que nenhuma quantidade de informação de qualquer tipo que outros
tenham acerca de Fred redunda a conhecimento do segundo. A minha queixa,
porém, referia-se ao primeiro e era a de que a qualidade especial da sua
experiência é certamente um facto acerca da mesma, o qual o fisicalismo deixa de
fora porque nenhuma quantidade de informação física nos disse o que é.
Nagel fala como se o problema que levanta fosse o de extrapolar a partir do
conhecimento de uma experiência para outra, de imaginar como seria uma
experiência que não é familiar, com base em experiências que são familiares. Em
termos do exemplo de Hume, do conhecimento de matizes de azul podemos
conceber o que seria ver outros matizes de azul. Nagel argumenta que a dificuldade
com os morcegos e outros é a de que são demasiado dissemelhantes de nós. É
difícil ver aqui uma objecção ao fisicalismo. O fisicalismo não faz afirmações
especiais sobre os poderes imaginativos ou extrapolativos dos seres humanos, e é
difícil ver por que precisa de o fazer110.
Seja como for, o nosso argumento epistémico não faz qualquer pressuposição
sobre este aspecto. Se o fisicalismo fosse verdadeiro, a suficiente informação física
sobre Fred obviaria qualquer necessidade de extrapolar ou realizar façanhas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
O conhecimento de se em termos de David Lewis, «Attitudes De Dicto and De Se», The Philosophical
Review, 88 (1979), 513-543.
110
Ver os comentários de Lawrence Nemirov sobre «What is it […]» na sua recensão de T. Nagel, Mortal
Questions, em The Philosophical Review, 89 (1980), 473-477. Estou aqui particularmente em dívida para com
uma discussão com David Lewis.
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especiais de imaginação ou compreensão de modo a saber tudo acerca da sua
experiência de cor especial. A informação estaria já na nossa posse. Mas
evidentemente não está. Era esse o busílis do argumento.

IV O Papão do Epifenomenalismo

Haverá alguma razão realmente boa para recusar sustentação à ideia de que os
qualia são causalmente impotentes no que diz respeito ao mundo físico?
Argumentarei que a favor da resposta negativa, mas ao fazer isto nada direi acerca
de duas perspectivas associadas à posição epifenomenalista clássica. A primeira é
a de que os estados mentais são ineficazes no que diz respeito ao mundo físico.
Tudo o que me preocuparei em defender é ser possível sustentar que certas
propriedades de certos estados mentais, nomeadamente aquelas a que chamei
«qualia», são tais que a sua posse ou ausência não faz diferença para o mundo
físico. A segunda é a de que o mental é totalmente ineficaz do ponto de vista causal.
Apesar do que direi pode ser que o leitor tenha de sustentar que a instanciação de
qualia faz diferença para outros estados mentais embora não para algo que seja
físico. Na verdade, considerações gerais respeitantes a como o leitor poderia vir a
estar ciente da instanciação de qualia sugerem semelhante posição111.
Há três razões canónicas que se apresenta para sustentar que um quale como a
dolorosidade de uma dor tem de ser causalmente eficaz no mundo físico, e assim,
por exemplo, que a sua instanciação tem por vezes de fazer diferença para o que
acontece no cérebro. Nenhuma, segundo argumentarei, tem força real. (Estou muito
em dívida para com Alec Hyslop e John Lucas por me convencerem disto.)
Supõe-se que seja simplesmente óbvio que a dolorosidade da dor é parcialmente
responsável pelo procurar evitar a dor pelo sujeito, dizendo «Dói», etc. Mas, para
inverter Hume, qualquer coisa pode ser incapaz de causar qualquer coisa.
Independentemente de quão amiúde B se segue a A, e independentemente de quão
inicialmente óbvia parece a causalidade da conexão, a hipótese de que A causa B
pode ser derrotada por uma teoria abrangente que mostra ambos como efeitos
distintos de um processo causal comum subjacente.
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)))
! Ver a minha recensão de K. Campbell, Body and Mind, em Australasian Journal of Philosophy, 50
(1972), 77-80.

! ")"!
i) Para o leigo a imagem no monitor do punho de Lee Marvin a mover-se da
esquerda para a direita imediatamente seguida pela imagem da cabeça de
John Wayne a mover-se na mesma direcção geral parece tão causal como
qualquer outra coisa.11214 E evidentemente em incontáveis westerns
imagens semelhantes à primeira são seguidas por imagens semelhantes à
segunda. Tudo isto conta exactamente para nada quando conhecemos a
teoria abrangente acerca de como as imagens relevantes são ambas
efeitos de um processo causal subjacente que envolve o projector e o
filme. O epifenomenista pode dizer exactamente o mesmo sobre a
conexão entre, por exemplo, a dolorosidade e o comportamento. É
simplesmente uma consequência do facto de que certos acontecimentos
no cérebro causam ambos.
ii) A segunda objecção relaciona-se com a teoria darwinista da evolução.
Segundo a selecção natural as características que evoluem ao longo do
tempo são as que conduzem à sobrevivência física. Podemos pressupor
que os qualia evoluíram ao longo do tempo — temo-los, as formas de vida
mais primitivas não — e assim deveríamos esperar que os qualia sejam
conducentes à sobrevivência. A objecção é que dificilmente nos poderiam
ajudar a sobreviver se nada fazem no mundo físico.

O apelo deste argumento é inegável, mas há uma boa resposta ao mesmo. Os


ursos polares têm pelagens particularmente espessas e quentes. A teoria da
evolução explica isto (supomos) chamando a atenção para que ter uma pelagem
espessa e quente é conducente à sobrevivência no Árctico. Mas ter uma pelagem
espessa é concomitante a ter uma pelagem pesada, e ter uma pelagem pesada não
é conducente à sobrevivência. Atrasa o animal.
Será que isto significa que refutámos Darwin porque descobrimos uma
característica resultante da evolução — ter uma pelagem pesada — que não é
conducente à sobrevivência? Claro que não. Ter uma pelagem pesada é uma
concomitante inevitável de ter uma pelagem quente (no contexto, o isolamento
moderno não estava disponível) e as vantagens, em termos de sobrevivência, de ter

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112
Cf. Jean Piaget, «The Child’s Conception of Physical Causality», reimpresso em The Essential Piaget
(Londres, 1977).

! ").!
uma pelagem quente superaram as desvantagens de ter uma pesada. Tudo o que
podemos retirar da teoria de Darwin, neste sentido, é que se deve esperar de
qualquer característica desenvolvida que seja ou conducente à sobrevivência ou um
produto secundário de outra que é conducente à sobrevivência. O epifenomenista
defende que os qualia se subsumem na última categoria. São um produto
secundário de certos processos cerebrais que são muito conducentes à
sobrevivência.
iii) A terceira objecção baseia-se num aspecto sobre como chegamos a tomar
conhecimento de outras mentes. Temos conhecimento de outras mentes
pelo conhecimento sobre outro comportamento, pelo menos em parte. A
natureza da inferência é assunto de alguma controvérsia, mas não é
assunto de controvérsia o proceder do comportamento. É por isso que
pensamos que as pedras não sentem e os cães sentem. Mas, prossegue a
objecção, como pode o comportamento de uma pessoa dar alguma razão
para acreditar que ela tem qualia como os meus, ou na verdade quaisquer
qualia de todo, a menos que este comportamento possa ser considerado
como resultado dos qualia. A pegada de Sexta-feira era indício de Sexta-
feira porque as pegadas são resultados causais de pés ligados a pessoas.
E um epifenomenista não pode considerar o comportamento, ou na
verdade qualquer coisa física, como um resultado de qualia.

Mas considere-se a minha leitura no The Times que o Spurs ganhou. Isto fornece
um excelente indício de que The Telegraph também relatou que Spurs ganhou,
apesar do facto de que (confio) The Telegraph não recebe os resultados do The
Times. Cada um envia os seus próprios jornalistas ao jogo. A reportagem do The
Telegraph não é em sentido algum resultado da reportagem do The Times, mas o
último constitui um bom indício do anterior, ainda assim.
O raciocínio envolvido pode ser reconstruído assim. Leio no The Times que Spurs
ganhou. Isto dá-me razão para pensar que o Spurs ganhou porque sei que a vitória
do Spurs é o candidato mais plausível a ser aquilo que causou a reportagem no The
Times. Mas sei também que a vitória do Spurs teria tido muitos efeitos, incluindo
quase de certeza uma reportagem no The Telegraph.
Estou a argumentar a partir de um efeito para a sua causa e daí novamente para
outro efeito. O facto de nenhum efeito causar o outro é irrelevante. Agora o

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epifenomenista admite que os qualia são efeitos daquilo que se passa no cérebro.
Os qualia nada causam que seja físico mas são causados por algo físico. Daí que o
epifenomenista possa argumentar a partir do comportamento de outros para os
qualia de outros argumentando a partir do comportamento de outros novamente
para as suas causas nos cérebros de outros e novamente para os seus qualia.
O leitor poderá muito bem sentir, por uma razão ou outra, que esta é uma cadeia
de raciocínio mais duvidosa do que o seu modelo no caso das reportagens
jornalísticas. Tem razão. O problema das outras mentes é um dos grandes
problemas da filosofia, o problema das outras reportagens jornalísticas não é. Mas
não há aqui qualquer problema especial do epifenomenismo por oposição ao,
digamos, interaccionismo.
Há uma resposta muito compreensível às três réplicas que acabei de fazer.
«Muito bem, não há uma refutação arrasadora da existência de qualia
epifenoménicos. Mas ainda assim são uma excrescência. Nada fazem, nada
explicam, servem apenas para tranquilizar as intuições dos dualistas, e permanece
um mistério total como se ajustam à mundividência científica. Resumindo, não
compreendemos nem podemos compreender o como e o porquê dos qualia.»
Isto é perfeitamente verdadeiro; mas não é uma objecção aos qualia, pois
assenta numa perspectiva demasiado optimista do animal humano e dos seus
poderes. Somos produtos da Evolução. Compreendemos e sentimos o que
precisamos de compreender e sentir de modo a sobreviver. Os qualia
epifenoménicos são totalmente irrelevantes para a sobrevivência. Em nenhum
estágio da nossa evolução a selecção natural favoreceu os que conseguem
compreender como são causados e as leis que os regem, ou na verdade por que
razão existem de todo. E é por isso que não somos capazes.
Não se constata suficientemente que o fisicalismo é uma perspectiva
extremamente optimista dos nossos poderes. Se é verdadeiro, temos, numa
aproximação muito geral, confessadamente, uma compreensão do nosso lugar no
esquema das coisas. Certos assuntos de grande complexidade superam-nos — há
uma quantidade assustadora de neurónios — mas em princípio temos tudo. Mas
considere-se a probabilidade antecedente de tudo no Universo ser de um tipo que é
irrelevante de uma ou outra maneira para a sobrevivência do homo sapiens. É
seguramente muito baixa. Mas então tem de se admitir que é muito provável haver
uma parte do esquema total das coisas, talvez uma grande parte, de cujo

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conhecimento ou compreensão nenhuma quantidade de evolução alguma vez nos
aproximará. Pela simples razão de que tal conhecimento e compreensão são
irrelevantes para a sobrevivência.
Os fisicalistas tipicamente sublinham que na sua perspectiva somos uma parte da
natureza, o que está muito bem. Mas se somos uma parte da natureza, somos
como a natureza nos deixou depois de tantos anos de evolução, e cada etapa nessa
progressão evolutiva tem sido uma questão de acaso constrangida apenas pela
necessidade de preservar ou aumentar o valor de sobrevivência. A maravilha é
compreendermos tanto quanto compreendemos e não é espantoso que haja
assuntos que superam completamente a nossa compreensão. Talvez o modo como
os qualia se ajustam exactamente ao esquema das coisas seja um desses
assuntos.
Esta pode parecer uma perspectiva demasiado pessimista da nossa capacidade
de articular uma imagem verdadeiramente abrangente do nosso mundo e do nosso
lugar nele. Mas suponha-se que descobríamos no leito do mais profundo oceano um
género de lesma marinha com manifestações de inteligência. Talvez a
sobrevivência nessas condições exigisse poderes racionais. Apesar da sua
inteligência, estas lesmas marinhas têm apenas uma concepção muito restrita do
mundo por comparação à nossa, sendo a explicação disto a natureza do seu
ambiente imediato. Não obstante, desenvolveram ciências que funcionam
surpreendentemente bem nestes termos restritos. Têm também filósofos, chamados
«lesmistas». Alguns autodenominam-se «lesmistas estritos», outros confessam-se
lesmistas liberais.
Os lesmistas austeros defendem que os termos restritos (ou muito semelhantes a
estes que se pode introduzir à medida que progride a sua ciência) bastam em
princípio para descrever tudo sem deixar de fora coisa alguma. Estes lesmistas
austeros admitem em momentos de fraqueza sentir que a sua teoria deixa algo de
fora. Resistem a este sentimento e aos seus adversários, os lesmistas liberais,
chamando a atenção — de um modo absolutamente correcto — para que nenhum
lesmista alguma vez foi bem-sucedido em explicitar como este resíduo misterioso se
ajusta na perspectiva muito bem-sucedida que as suas ciências têm e desenvolvem
a respeito do modo como o seu mundo funciona.
As nossas lesmas marinhas não existem, mas poderiam existir. E também podem
existir seres que estejam para nós como nós estamos para as lesmas marinhas.

! ")3!
Não podemos adoptar a perspectiva destes superseres, porque não somos eles,
mas a possibilidade de tal perspectiva é, segundo penso, um antídoto para o
optimismo excessivo113 .

Universidade de Monash

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Estou em dívida para com Robert Pargetter por uma série de comentários e, apesar da sua dissensão, pelo
§IV de Paul E. Meehl, «The Complete Autocerebroscopist» em Mind, Matter, and Method, org. Paul
Feyerabend e Grover Maxwell (Minneapolis, 1966).
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