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ESPECIAL - 2020 REVOLTA NA RAZÃO JACOBIN.COM.

BR

BRASIL
BRASIL

“Cante comigo, cante


Irmão americano
Liberta tua esperança
Com um grito na voz!”

MERCEDES SOSA

DERRUBEM ESTE MURO


ESPECIAL - 2020
“Não há limites nesta luta até
a morte. Não podemos ficar
indiferentes ao que acontece em
qualquer parte do mundo, pois a
vitória de qualquer país sobre o
imperialismo é a nossa vitória;
assim como a derrota de qualquer
país é uma derrota para todos nós.”

— ERNESTO CHE GUEVARA


Camaradas

PUBLISHER TRADUTORES A revista Jacobin é uma voz destacada da


Cauê Seigner Ameni Letícia Bergamini esquerda radical no mundo. Agora, em português,
Hugo Albuquerque Giuliana Almada contribui no Brasil para uma perspectiva socialista
Manuela Beloni Caroline Freire na política, economia e cultura.
Felipe W. Martins
CONSULTORA EDITORIAL Ádamo da Veiga ASSINATURAS
Sabrina Fernandes Débora Nascimento IMPRESSA R$ 50,00
Victor Alexander DIGITAL R$ 25,00
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Rafael Grohmann PLANO JACOBINO R$ 70,00
Guilherme Ziggy Marco Tulio Vieira PLANO BOLCHEVIQUE R$ 130,00
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Marianna Braghini Conselheiro Ramalho, 945, conjunto 02,
Aline Klein
Deborah Almeida Bela Vista, São Paulo, CEP 01331-001
DIREÇÃO DE ARTE Mauro Costa Assis
Alles Blau / Fábio Fernandes Autonomia Literária © 2020
Elisa von Randow Melanie Boehmer ISSN: 2675-0031

Julia Masagão Natanael Alencar


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DESENVOLVIMENTO DESIGN GRÁFICO Blooks Livraria (SP e RJ)
Victor Marques Rodrigo Corrêa Livraria da Travessa (SP, RJ e Portugal)
Livraria Leonardo da Vinci (RJ)
APOIO EDITORIAL PREPARAÇÃO Livraria Tapera Taperá (SP)
Benjamin Fogel Livia Azevedo Lima Livraria Simples (SP)
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DE TRADUÇÃO
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DESCRIÇÃO DE CAPA
CIRCULAÇÃO
dezembro de 2020

TIRAGEM
7 mil exemplares

VISITAS NO SITE
4.086.590 desde 2019
Especiais especial - 2020 jacobin brasil

28
Mais que um
simples muro
LOREN BALHORN

52
Reforçando
muros,
sabotando o
desenvolvimento
74 ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA

Tempos de
barbárie
pedem ousadia 98
Corpos
MICHAEL LÖWY

(in)capazes
ANAHÍ GUEDES DE MELLO 

116
A vida subalterna
em estações
TULIO CUSTÓDIO
Colaboradores
capa
Helton Mattei

Sabrina Fernandes é consultora Suzane Jardim é historiadora pela Paris Marx apresenta o podcast
editorial de Jacobin Brasil e produtora USP, mestranda pela UFABC, tecnológico de esquerda Tech Won’t
do canal Tese Onze. educadora e abolicionista penal. Save Us; edita a Radical Urbanist.
Pesquisa relações raciais e processos
Marília Moschkovich é doutora John Carl Baker é diretor sênior de
históricos de criminalização.
pela UNICAMP e pesquisadora- programas do Fundo Plowshares.
colaboradora do Núcleo de Estudos Hugo Gusmão é geógrafo pela USP e Seus escritos foram publicados em
sobre Marcadores Sociais da criador do projeto Desigualdades Bulletin of the Atomic Scientists,
Diferença (NUMAS) no departamento Espaciais, trabalho pioneiro no Brasil. New Republic e Defense One.
de antropologia da USP.
Camila Galetti é mestre em Tulio Custódio é sociólogo e curador
Victor Marques é professor de sociologia, doutoranda pela UnB e de conhecimento.
filosofia na UFABC e responsável pelo pesquisa a ascensão da extrema
Rud Rafael é coordenador nacional
desenvolvimento de Jacobin Brasil. direita, antifeminismo e afetos.
do MTST Brasil, integra a Frente Povo
André Pagliarini é historiador, Michael Löwy é diretor de pesquisa Sem Medo e Frente de Resistência
pesquisador de América Latina e emeritus do Centro Nacional de Urbana Latinoamericana. É também
leciona no Dartmouth College. Pesquisa Científica, em Paris. educador da ONG Fase.
Loren Balhorn é editor contribuinte Antonio Ugá Neto é advogado, Joana Salém Vasconcelos é
de Jacobin Magazine e coeditor, junto mestrando em Serviço Social na UFAL, doutoranda em história econômica
a Bhaskar Sunkara, de Jacobin: Die diretor da ANPG e militante do PCB. pela USP. Autora de História agrária da
Anthologie (2018). revolução cubana (2016) e
Benjamin Fogel é historiador e editor
coorganizadora de Cuba no século
Camila Chaves é relações públicas, contribuinte de Africa is Country e
XXI: dilemas da revolução (2017).
mestre em comunicação e escritora. Jacobin Magazine.
Guilherme Cianfarani é fundador
Allende Renck é crítico de arte, Anahí Guedes de Mello é doutora pela
da Quequeré Jogos, especializada
professor, curador e tradutor. UFSC, pesquisadora da Anis - Instituto
em jogos políticos e culturais.
de Bioética e membro do GT Estudios
Ana Luíza Matos de Oliveira é Desenvolveu, entre outros, o jogo
Críticos en Discapacidad do CLACSO.
economista pela UFMG, mestra e Brasil: um país de tolos.
doutora em Desenvolvimento Pedro Charbel é assessor do PSOL na
Aline Klein é professora, tradutora e
Econômico pela UNICAMP e Câmara dos Deputados, formado em
diretora editorial de Jacobin Brasil.
professora da FLACSO Brasil. relações internacionais e mestre em
sociologia pela USP. Foi coordenador Guilherme Ziggy é poeta, jornalista,
latino-americano do Comitê Nacional diretor de criação de Jacobin Brasil e
Palestino de BDS. autor de Consultas Autônomas (2019).

Créditos das imagens p.28 Uma das primeiras barreiras levantadas pela RDA em Berlim, agosto de 1961. [Peter Horree / Alamy
Stock Photo] p.31 Construção do Muro de Berlim, RDA, 1961. [mccool / Alamy Stock Photo] p.34 Soldado soviético constrói o Muro
de Berlim, RDA, 1961. [dpa picture alliance / Alamy Stock Photo] p.37 Início da construção do Muro de Berlim, RDA, 1961. [DPA picture
alliance / Alamy Stock Photo] p.43 Doméstica, reprodução, 2012. p.44 Que horas ela volta?, reprodução, 2015. p.45 Benzinho,
reprodução, 2018 p.46 Catálogo da Semana de Arte Moderna, 1922. p.47 Mário de Andrade (sentado), Anita Malfatti (sentada, ao
centro) e Zina Aita (à esq. de Anita), em 1922. [Foto Arquivo Mario de Andrade do IEB/USP] p.48 Un cadavre, panfleto surrealista
distribuído pelos poetas André Breton e Louis Aragon entre 1924 e 1930. p.49 Mouvement Dada: 8.Dada-Soirée, litografia, 1919
[Spencer Collection, The New York Public Library]; Manifeste du Surréalisme, André Breton, 1924. p.50 Pau-brasil, de Oswald de
Andrade, 1925; Parque Industrial, de Mara Lobo (Patrícia Galvão/Pagu), 1932; Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, 1922. p.51
Abaporu, de Tarsila do Amaral, 1928. p.52-58 Gráficos da Universidade de Atlanta, Biblioteca do Congresso Americana p.71Andre
Penner, AP. p.77 João Laet. AFP/Getty Images. p. 80 Noah Berger, AP. p.89 Marcha da família com Deus pela liberdade, Estadão, 1964.
p.91 Paulo Maluf, Estadão, 1964. p.95 Fernando Collor de Mello, Manoel Novaes, 1987. p.98 The Noun Project , The Pyramid School
p.114-115 Kim Jong-un, @xenoself p.130-133 Jorge Royan p.139 Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung – Organ der
Demokratie), jornal de oposição dirigido por Karl Marx, 1849. [Archive Collection / Alamy Stock Photo].
Seções 755,3 mil

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129 mil

1994 2005 06 08 10 12 14 16 2019

LINHA CAPITAL QUER QUE EU ARMAS CASA O FIM DO


DE FRENTE CULTURAL DESENHE? DA CRÍTICA GRANDE COMEÇO

8 42 62 86 104 126
TRIBUNA REDFLIX EMPIRISMO BALA GIRONDINOS FRENTE
Para Do que falo VULGAR NA AGULHA Solidariedade POPULAR
despertar quando falo Do lado Anti-império entre muros Solidariedade
os que de minha mãe de dentro ANTÔNIO UGÁ PEDRO CHARBEL pra valer
dormem CAMILA CHAVES SUZANE JARDIM RUD RAFAEL

SABRINA FERNANDES 88 108


46 66 ANOTAÇÕES VERSALHES 130
11 POR OUTRO DESIGUAL E Corrupção Diga sim à FUNDO DO BAÚ
COMBINADO
LADO é a maior ins- exploração Driblando
MEGAFONE
O Cidade de tituição do espaço à Cubana
A internet extremos
fala bumerangue do Brasil e não ao JOANA SALÉM

da história HUGO GUSMÃO


BENJAMIN FOGEL capitalismo
VASCONCELOS

12
ALLENDE RENCK
70
espacial 136
PARIS MARX
PLENÁRIA LINHA DO PROLET-
Situação TEMPO KULTURA
114
crítica Entre afeto Coquetel-
O PIOR ESTADO
MARÍLIA MOSCHKOVICH e política molotov
E VICTOR MARQUES,
NATALIA SZERMETA, CAMILA GALETTI A mídia
BEATRIZ ACCIOLY, esconde o 138
TIRZA DRUMMOND E
RHAYSA RUAS imperialismo VALOR DE USO
estadunidense Marx era,
JOHN CARL BAKER
20 acima
AFETOS de tudo,
E DESAFETOS
um grande
Todo jornalista
Poderoso ALINE KLEIN E
(demais) GUILHERME ZIGGY
ANDRÉ PAGLIARINI
Linha
de
frente
Um tijolo
de cada vez
LINHA DE FRENTE
TRIBUNA POR SABRINA FERNANDES

Para despertar
os que dormem

Os muros são altos, mas a rebeldia é barulhenta.

¶ EM 1994, O EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO


NACIONAL (EZLN) se levantou contra a longa sucessão de
governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI) no
México e fez história com a oposição ao acordo comercial do
Nafta. As primeiras expressões dos zapatistas datam desde
1983, antes de sua notável aparição pública, e atuam até hoje no
estado de Chiapas. Inspirados em Emiliano Zapata, liderança da
revolução mexicana no começo do século XX, os zapatistas
também servem de inspiração para movimentos sociais,
lutadoras e lutadores, grupos de indignados e para quem busca
uma visão de resistência e liberdade fora dos moldes da frágil
democracia liberal.
Hoje, o EZLN ainda resiste. A repressão estatal toma contornos
diferentes de acordo com o governo, e mesmo depois de
expirado o prazo de todas as acusações do PRI, a ousadia dos
zapatistas em construir autonomia territorial não agrada os
megaprojetos desenvolvimentistas aos quais a auto-organização
indígena é um obstáculo. O movimento, que antes recebia
atenção entusiasmada da imprensa e de intelectuais,
especialmente pela sua presença digital e suas táticas de
comunicação simbolizadas pela figura do Subcomandante
Marcos, hoje Subcomandante Galeano, não atrai mais os
mesmos olhares. Na década de 1990, quando um muro

8
derrubado na Europa clamava derrotas, a tática zapatista
significava novo fôlego, indígena, periférico e com notável
participação das mulheres.
Esse fôlego não resultou em uma nova revolução mexicana.
Afinal, na década seguinte, o ímpeto capitalista e imperialista
das grandes potências, com seus estados favoritos a tiracolo,
incentivou novos muros. A ideia de construir uma longa barreira
na fronteira entre México e Estados Unidos agora elege
presidentes. Os muros que contornam Gaza e a Cisjordânia
garantem contratos e a permanência de primeiros-ministros.
As paredes dos presídios consolidam a aliança entre racismo e
Estado penal. E o grande muro de Cuba, el bloqueo, segue como
arma econômica para garantir que ilhas de resistência
permaneçam exatamente isso: ilhas.
Há uma polêmica sobre o que significa a recente priorização
dos zapatistas em construir suas ilhas de resistência. É um
recuo tático devido à repressão? Ou seria uma tentativa de
preservar o que se tem, enquanto alternativas mais gerais
parecem distantes ou até mesmo impossíveis? Será que
desistiram de tomar o poder e se contentaram com pequenas
ilhas autônomas? Ou essas experiências são combustível para
oportunidades que surgirem? As respostas certamente ecoam
décadas e décadas de divergências entre marxistas, entre
anarquistas e também entre marxistas e anarquistas.
Independentemente da conclusão sobre a extensão da estratégia
zapatista, seus erros e acertos, há que se aprender com os
próprios princípios dessa construção, isto é, com uma
construção de baixo.
O famoso “já basta” não é exclusividade dos zapatistas. Ele
comunica o cansaço produtivo de focos de resistência ao redor do
mundo. É visível nos protestos do Black Lives Matter, na
organização de entregadores de aplicativo, nas marchas do
retorno em Gaza, e nas vozes dos Wet’suwet’en no Canadá. O “já
basta” não é suficiente, pois rebelar-se é necessário, mas é preciso
rebelar-se rumo a algo, o que exige sucessivos atos de resistência

9
e trabalho estratégico perene. Mesmo assim, o “já basta” é um
lembrete capaz de atear fogo no pavio, como nos lembra o rapper
GOG, repetido por vozes de movimentos ao redor do Brasil.
Mesmo com seu escopo regional, as provocações políticas dos
zapatistas perturbam uma esquerda que perdeu a imaginação e uma
outra que, apesar de correta em enxergar a ruptura revolucionária
como meio para mudar a realidade, não valoriza o ato de criar
pequenas bolhas de aprendizado no meio do caminho. Apenas uma
ruptura é capaz de garantir a derrota do agronegócio, mas isso não
impede o MST de avançar a agroecologia como modo de produção de
alimentos. Apenas uma ruptura é capaz de frear a mudança
climática, mas isso não impede que os sindicatos se organizem por
empregos de transição de carbono. Apenas uma ruptura é capaz de
eliminar as rígidas fronteiras dos países capitalistas, mas isso não
impede que a solidariedade trabalhadora alimente o migrante que
bate à porta.
Cercamentos são ferramentas essenciais da formação capitalista,
portanto é de se esperar que a globalização e os desenvolvimentos
tecnológicos proporcionem um vasto leque de opções de muros
físicos, virtuais e simbólicos. Aos capitalistas, sobra imaginação
destrutiva. E aos que resistem? A complexidade de derrotas não
pode ser justificativa para o fim da imaginação política e os
experimentos, ainda que limitados em escala, de um mundo
alternativo. Mesmo que não tenhamos a força de um movimento
revolucionário para derrubar esses outros muros, a partir do lado
justo da história, ao trabalharmos o imperativo constante do “já
basta” podemos identificar os muros de frente. Podemos escalá-los,
analisar sua composição, avistar os inimigos, e, mesmo que um
pouco distante, imaginar que sociedade queremos construir tanto
do lado de lá como do lado de cá – quando os muros caírem, quando
nós os derrubarmos.

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LINHA DE FRENTE
MEGAFONE

A internet fala

Jamé Jacobin... muito tendenciosa! Deixe sua mensagem após


<_ @GuilhermeNagano, Internet o sinal Achei horrível a revista.
<_ @microagressoes, Internet
Esse é jacobino desde criancinha
Nem li e já emocionei hahaha. Baudelaire, queijos & vinhos
<_ @emicida, São Paulo Tomar um banho ouvindo uma
playlist com Radiohead e Led
“Nunca na história desse país...” pra depois ler a entrevista do Zé
Jacobin é a melhor revista em Dirceu pra Jacobin. Me atualizar
circulação nesse país!!! dos memes. Hegel à meia-luz para
<_ @ocronico, Internet dormir. <_ @joatimbc, São Paulo

Bom-dia, Vietnã Não li meu Só não esqueça de beber água


texto matinal da Jacobin hoje. Nossa senhora, será que terei
<_ @cansadaevelha, Internet que passar o dia compartilhando
as postagens da Jacobin?
ANOTADO <_ @sofpenhauer, Internet
QUE LIXO ESQUERDOPATA!
<_ @patriotadedireita, Internet Nossa produção entrará em
contato A melhor coisa foi me
Deus fez o alimento, o diabo viciar em ler textos da Jacobin
acrescentou o tempero Brasil. Inclusive quem quiser me
Essa quarentena tá me deixando dar uma edição de presente estou
um N-O-J-O! Tô lendo tudo que eu aceitando! <_ @duartegio, Internet
queria ler – Cervantes e Joyce – e
muitos artigos da Jacobin Brasil. Já tentamos e a ciência verificou
O próprio nojo! <_ @patrikthames, ser impossível Vocês conseguem
Mato Grosso postar algum artigo que não seja
no mínimo sensacional?
Você sabe o que é caviar? <_ @alefdoreaa, Bahia
Jacobin = LeftDeluxeMagazine.
<_ @NUCOOLX, Internet
LINHA DE FRENTE POR MARÍLIA MOSCHKOVICH
PLENÁRIA E VICTOR MARQUES, EM CONVERSA
COM NATALIA SZERMETA,
BEATRIZ ACCIOLY, TIRZA DRUMMOND
E RHAYSA RUAS

Situação crítica

Vozes das frentes de luta em meio às


contradições de uma pandemia sob o capital.

O que significa NATALIA SZERMETA: O Brasil é o


sétimo país mais desigual do
BEATRIZ ACCIOLY: Contextos
pandêmicos costumam
uma crise mundo. Nossa história carrega descortinar, salientar e
sanitária a dor e a marca da escravização de
negros, negras e indígenas durante
potencializar desigualdades,
violências e injustiças já
global diante quatrocentos anos, e da ditadura existentes. O caso atual não
da conjuntura militar que por vinte anos
silenciou, torturou e assassinou
é diferente. Existe um conceito
em estudos antropológicos que
bolsonarista a população, sobretudo a é muito útil para analisarmos
no Brasil? trabalhadora. Somos um país
estruturado por desigualdades
situações de pandemia, epidemias
ou endemias: a ideia de “eventos
raciais, sociais, econômicas e de críticos”, elaborado pela
gênero. A crise sanitária que pesquisadora indiana Veena Das.
estamos atravessando evidenciou Esses “eventos críticos”, embora
todas essas desigualdades, além muito generalizados e atingindo,
de aprofundar a crise econômica. de alguma maneira, quase todas
Dada a desigualdade gritante, as pessoas, não são democráticos.
a pandemia atinge de forma Eles atingem de formas
diferente a população; mulheres extremamente díspares os
periféricas, os negros, os diferentes grupos sociais, sendo
trabalhadores mais pobres de fortemente marcados por
modo geral são os mais atingidos, desigualdades raciais, regionais,
e os primeiros a sofrer os de gênero e de classe social.
impactos da crise.

12
TIRZA DRUMMOND: Em uma
sociedade capitalista como a
nossa, que tem suas riquezas
exploradas pela elite nacional
e internacional, a classe
trabalhadora fica completamente
desamparada, tratada como
item descartável. É um genocídio;
não é por acaso. A precarização do
Sistema Único de Saúde (SUS), que
acontece há anos e se aprofundou
com o governo fascista, demonstra
o quanto, mesmo durante a
pandemia, a prioridade tem sido
RHAYSA RUAS: A primeira morte transferência de renda e o tardio
enriquecer os planos de saúde
por Covid-19 confirmada no Rio Auxílio Emergencial, muitos
e os setores privados da Educação.
de Janeiro é ilustrativa de como as trabalhadores dependem
O desemprego desenfreado e a
históricas desigualdades sociais do trabalho diário nas ruas para
inexistência de medidas de
brasileiras se explicitam em colocar comida na mesa. Antes
segurança para os trabalhadores,
tempos de pandemia: trata-se do da pandemia, 67% das famílias
enquanto aumentam as benesses
caso de uma empregada doméstica, brasileiras já estavam endividadas,
financeiras para os bancos,
negra, moradora de área periférica pelo menos 12% dos trabalhadores
configuram uma situação que
que teve que continuar trabalhando estavam desempregados, e 41%
evidencia que, para essa elite, os
mesmo depois que seus patrões na informalidade. Em cidades como
únicos que precisam sobreviver
voltaram com sintomas de uma o Rio de Janeiro, as favelas e
são os ricaços, a burguesia. Nós,
viagem à Itália. Os patrões periferias viveram um cenário em
trabalhadores, podemos nos expor,
sobreviveram, ela morreu em uma que as forças policiais literalmente
adoecer e levar a doença para
unidade de saúde pública. É foram matar as pessoas dentro de
dentro de nossas casas, porque
inegável – e não é surpreendente – casa: segundo os dados da Rede de
para eles somos descartáveis.
que as mais altas taxas de Observatórios da Segurança, em
Quem de nós vai ter acesso à
letalidade da doença ocorrem entre abril de 2020, as operações policiais
saúde, a itens básicos de higiene e
negros, indígenas e trabalhadores já haviam aumentado cerca de
a equipamentos de proteção?
pobres. Vimos o direito ao 27,9% em relação ao ano anterior, e
distanciamento social, que deveria as mortes por intervenção policial,
ser universal, se tornar um 57,9%. Cenário que só começou a se
privilégio para os grupos sociais de arrefecer com a recente vitória dos
renda mais alta: sem um salário movimentos de favela em relação
fixo ou vínculo empregatício à Arguição de Descumprimento de
formal, mesmo com políticas de Preceito Fundamental (ADPF) 635 no
Supremo Tribunal Federal.

13
PLENÁRIA

A pandemia intensificou os
desafios de várias frentes de luta,
como é o caso das violências
de gênero e doméstica.
Quais particularidades vêm à
tona nesse cenário?

NATALIA SZERMETA: Durante a crise escassez do acesso à água e ao


sanitária, a principal orientação saneamento básico. Tudo isso
feita por organizações impacta diretamente as
internacionais e líderes de todo possibilidades de enfrentar uma
o mundo foi “fique em casa”. crise sanitária, aumentando os
No Brasil, despejos e remoções números de mortos e infectados.
continuaram acontecendo e a A população em situação de
população em situação de rua insegurança habitacional é
aumentou. Nada foi feito para também a mais afetada pelo
mudar a realidade de um país desemprego e pela precarização do
que carrega a marca de ter mais emprego; com a pandemia tiveram
casas sem gente do que gente sua renda e seus salários
sem casa. Existem 7,9 milhões diretamente atingidos. Uma das
de casas vazias, um exemplo consequências disso foi o aumento
claro da desigualdade e agravamento dos casos de
estruturante. Cerca de 5 milhões violência doméstica e feminicídio,
de domicílios brasileiros estão uma vez que muitas mulheres
localizados em favelas e 42% do passaram a ter de conviver 24
déficit habitacional diz respeito horas por dia com seus agressores.
à situação de coabitação: em
aproximadamente 12 milhões
de lares, habitam mais de três
pessoas por dormitório. Mais de
5,4 milhões vivem em domicílios
sem banheiro, sem falar na

14
SITUAÇÃO CRÍTICA

BEATRIZ ACCIOLY: Isso está quinto país do mundo em número muita atenção o controle desses
diretamente relacionado à de feminicídios. Esse agravamento agressores sobre a comunicação
principal medida de prevenção e era, portanto, esperado pelas das mulheres. Celulares vigiados,
mitigação dos estragos trazidos pessoas que trabalham com essa quebrados ou escondidos,
pela pandemia: as orientações de questão. Testemunhamos um ausência de privacidade, proibição
distanciamento social. Via de regra aumento nos relatos de violência de utilização de redes sociais.
isso significou ficar em casa, ou doméstica atrelado a uma maior Podemos ainda mencionar outras
insistir para que o máximo de dificuldade em denunciar ou pedir questões associadas a gênero
pessoas ficasse a maior quantidade ajuda, afinal, há uma série de durante a pandemia que colocam
de tempo possível dentro de suas órgãos públicos fechados ou com as mulheres em situações de
casas. Só que, no Brasil, a casa é um horários reduzidos, diminuição de muito risco, como a quantidade
lugar perigoso para as mulheres. oferta de transporte público e de mulheres que estão na
É dentro de seus lares que as fechamento de escolas e creches chamada “linha de frente” nos
mulheres estão em maior risco de que implicam em maior serviços de saúde, em especial em
sofrerem toda sorte de violência. responsabilidade no cuidado posições hierarquicamente mais
Estatisticamente, se uma pessoa com as crianças... Enfim, o que já baixas ou menos prestigiosas,
é mulher, as formas de violência era difícil – buscar ajuda para ou mesmo as mulheres que
mais prováveis de serem vividas romper com a violência doméstica desempenham serviços
por ela são aquelas oriundas de – se tornou quase impossível. domésticos pagos que ora foram
relações familiares e amorosas, No trabalho com a organização dispensadas, ora se viram
e não entre desconhecidos. Justiceiras, em que tenho atuado obrigadas a continuar indo ao
Embora esta não seja uma desde março, criada com o trabalho, expondo a si e suas
realidade específica do Brasil, em propósito de auxiliar mulheres famílias em detrimento do
nosso caso estamos falando de em situação de violência conforto das famílias que as
um país extremamente desigual doméstica durante as medidas empregam.
em termos de gênero. Somos o de distanciamento, me chamou

Nossa história carrega a dor e a marca


da escravização de negros, negras e
indígenas durante quatrocentos anos, e
da ditadura militar que por vinte anos
silenciou, torturou e assassinou a
população, sobretudo a trabalhadora.

15
PLENÁRIA

RHAYSA RUAS: A pandemia os subprimes tinham uma TIRZA FERREIRA: O trabalho dos
explicita a contradição central relação direta com o modo entregadores de aplicativos
do capitalismo: a relação capital precário de produção da vida escancara muitas das contradições
x trabalho, que aparece também imposto a essas comunidades. do aprofundamento da
como a subordinação da Assim, depois de dois mandatos precarização dos vínculos
produção da vida humana ao de governo Obama, o atual trabalhistas, ainda mais durante
lucro. Isso também traz à luz status da população negra e a uma pandemia. O fato de que não
com mais intensidade as conjuntura de protesto existe nenhum vínculo
desigualdades de raça e gênero, demonstra o esgotamento do empregatício é completamente
e é importante que se diga que, ciclo da política negra de naturalizado e tratado de forma
não à toa, muitos Estados inclusão e diversidade: mesmo bastante positiva. Mesmo quando
capitalistas – que já estavam no com expansão das políticas de ainda não havia estourado a
caminho do neoliberalismo reconhecimento e ampliação de pandemia da Covid-19, a falta de
autoritário – aproveitaram a negras e negros em espaços de vínculos e as artimanhas dessas
pandemia para ampliar seu poder, a situação da população empresas para burlar as frágeis
poder punitivo e aprofundar a negra em geral piorou. No Brasil, leis trabalhistas já acontecia de
militarização e o autoritarismo. vemos um fenômeno muito forma desenfreada. A narrativa
O que aconteceu nos EUA e se parecido. Nós, militantes dessas empresas ignora a realidade
espalhou por todo o mundo é negras, favelados e periféricos, de uma classe trabalhadora cada
fruto da confluência desses não podemos esquecer o avanço vez mais composta por jovens sem
fatores estruturais e da militarização de nossas vidas perspectiva de futuro no mercado
conjunturais, e de um e territórios, e do poder de trabalho e por trabalhadores
movimento negro que, passando punitivo estatal (refletido, entre que não conseguem ter acesso às
por sucessivas experiências de outras coisas, nos autos de suas aposentadorias depois da
expropriação direta desde a crise resistência e no encarceramento reforma que destruiu a
de 2008, amadureceu e se tornou em massa) que vimos acontecer aposentadoria da nossa classe.
capaz de se converter mesmo no período dos E essa falta de vínculo também
multirracial. Vimos revoltas “governos progressistas” do PT. naturaliza que não exista qualquer
populares multirraciais e com Durante todo esse tempo, os relação de garantias trabalhistas
fortíssimo teor anticapitalista movimentos negros, de favela e para os entregadores. Não temos
tomarem as ruas. Vale a pena de periferia no Brasil acesso ao básico de proteção,
lembrar também que, nos EUA , protestaram incansavelmente nenhuma gota de álcool em gel
foi a população negra e latina contra o genocídio da população ou máscaras. Além disso, mesmo o
quem mais sofreu os efeitos da negra, ao mesmo tempo que lucro dos donos de aplicativos
crise financeira de 2008, já que fizeram avançar a pauta da tendo dobrado durante a
inclusão e diversidade nos pandemia, o valor das entregas só
espaços de poder e de decisão. diminui e nossas rendas também.
É graças a eles que temos hoje a Estamos expostos à Covid-19 e
questão racial na ordem do dia não temos nenhuma garantia de
de todas as instituições e acesso à saúde, caso fiquemos
organizações políticas. doentes, ou de renda básica para
nos mantermos sem precisar
trabalhar.

16
SITUAÇÃO CRÍTICA

Em um mundo pós-pandemia,
ou seja, pós-vacina, estaremos
de volta ao antigo normal?

TIRZA FERREIRA: Será que o acesso à BEATRIZ ACCIOLY: Não há por


vacina será gratuito e amplo para que imaginar que as
toda a população ou ao menos distribuições de vacinas ou
para o grupo de risco? Eu imagino medicações não seguirão a lógica
que vamos importar uma vacina das desigualdades, chegando
que será comprada por empresas primeiro nas elites dos centros
privadas de pesquisa e laboratórios urbanos, por exemplo. É preciso
privados e, se depender do governo lutar para que curas ou
neoliberal do Bolsonaro, vendida prevenções sejam pensadas em
por valores absurdamente caros. termos de direitos fundamentais
e não como bens de consumo,
como muito tem acontecido com
os testes rápidos. Quem tem
dinheiro, testa. Quem não tem,
fica a ver navios. O SUS, que é
nossa principal defesa contra a
pandemia, está sob judice, sendo
esvaziado de reconhecimento e
de recursos. Sem um sistema de
saúde público e gratuito que
garanta o acesso a remédios ou
vacinas, o cenário se desenha
ainda mais macabro.

Toda a classe trabalhadora tem


muito o que aprender a partir dessas
experiências de solidariedade e
de luta, e que essas experiências
são a condição de possibilidade para
o amadurecimento de um debate
mais coletivo sobre o que precisa
ser feito daqui em diante.

17
PLENÁRIA

O que as organizações da
classe trabalhadora e a sobre classe, gênero e raça. Tenho
dito que, no Rio, podemos dividir
esquerda podem aprender a as ações em dois grandes grupos,

partir dessa experiência? ambos focados em garantir a


reprodução da vida da classe
trabalhadora durante a pandemia,
apesar da negligência estatal: ações
de garantia da produção da vida e
ações de pedagogia política. Nas
primeiras, encontramos ações
voltadas a garantir a produção
da vida, que incluem, entre outras,
NATALIA SZERMETA: A pandemia RHAYSA RUAS: Acho que é o mapeamento de demandas, a
evidenciou as desigualdades e fundamental o registro da arrecadação e distribuição
também a crueldade do memória das ações dos de doações individuais e
neoliberalismo e a falácia de sua movimentos sociais durante a institucionais e o acesso a serviços
eficácia. No Brasil, por exemplo, o pandemia. Aqui no Rio de Janeiro, para garantia da segurança
SUS mostrou-se importantíssimo, e certamente em outros estados alimentar, água potável, saúde
e em todo o mundo medidas de do Brasil, foram os movimentos física e mental (incluído o acesso
intervenção estatal salvaram a negros, de favela e periferia e, em a materiais de higiene), proteção
economia e a vida de muita gente. alguma medida, as associações social e renda mínima, apoio
A pandemia deixou claro que não de moradores ou de trabalhadores jurídico e funerário, além da
podemos seguir nos comportando que literalmente garantiram a higienização das favelas. Já as
da mesma forma, precisamos sobrevivência das suas ações de pedagogia política
mudar nossos valores e nossa comunidades durante a Covid-19. concentram um trabalho de
relação com a natureza. Temos o Toda a classe trabalhadora tem formação, mobilização e incidência
dever de tirar lições desta crise e muito o que aprender a partir política. Nesse conjunto, podemos
apresentar um projeto de dessas experiências de citar as ações (incansáveis!)
sociedade que contraponha a solidariedade e de luta, e que essas dos comunicadores populares e
ganância, o individualismo e o experiências são a condição de comunitários em combater
lucro a qualquer custo. Um projeto possibilidade para o a propagação generalizada
que coloque a vida em primeiro amadurecimento de um debate de notícias falsas por parte do
lugar e enfrente os interesses do mais coletivo sobre o que precisa governo, e em informar as pessoas
capital. ser feito daqui em diante. Isso sobre como agir em caso de mortes
porque, muito para além de ações de Covid-19, violência policial
de doação/ filantropia, essas e doméstica; o ato de recolher
ações trazem em si a memória da relatórios dos trabalhadores da
organização comunitária de base, linha da frente e ajudar depois a
essencial à preservação da denunciar e protestar contra a
comunidade negra e à luta popular falta de Epis; o trabalho de
no Brasil, e a prática coletiva que advocacy institucional voltado
incorpora hoje debates unitários à responsabilização do Estado;

18
SITUAÇÃO CRÍTICA

a militância de mães e familiares de idosos, trabalhadores do memória coletiva de luta que


de vítimas contra a violência setor de transporte de pessoas e existe para além das instituições.
estatal; a luta pela garantia dos de alimentos, trabalhadores da Uma história constitutiva da
direitos humanos e libertação limpeza urbana etc. Foram várias nossa classe trabalhadora, mas
imediata das pessoas presas, as mostras de solidariedade entre muitas vezes esquecida pela nossa
impulsionada pelo movimento essas categorias e para com as memória coletiva. E todas essas
abolicionista; o trabalho de mesmas, e é muito importante que ações guardam uma marca em
formação política online, com a classe trabalhadora como um comum: elas priorizam a vida,
aulas e debates ao vivo; e, todo – principalmente a que em detrimento do lucro. São
finalmente, a organização de milita em organizações políticas expressão da solidariedade
manifestações públicas, de rua. – não perca de vista os relatos e as humana. Em um país marcado
Outro grande aprendizado pode experiências desses trabalhadores pela banalização da morte e
ser auferido da atuação e nesse período, inclusive as formas objetificação de corpos, isso é
mobilização dos trabalhadores de organização espontâneas que condição de possibilidade para
essenciais, que estiveram na linha brotaram nessa conjuntura tão pensarmos que outro futuro ainda
de frente do combate à Covid-19 – adversa. O que podemos extrair é possível.
enfermeiras, médicas, cuidadores de todas essas experiências é uma
LINHA DE FRENTE
AFETOS E DESAFETOS POR ANDRÉ PAGLIARINI ILUSTRAÇÃO JOHNNY BRITO

Todo Poderoso uma agenda reacionária de costu-


mes só faria sentido se caminhasse

(demais) junto com o liberalismo econômico


e vice-versa. O pastor presume um
conservadorismo natural por parte
de seus seguidores, hipótese que não
é desmentida pela história recente.
Em 2018, por exemplo, Jair Bolsonaro
obteve 11 milhões de votos a mais do
Silas Malafaia, o primeiro que Fernando Haddad entre o eleito-
rado evangélico de diversas denomi-
televangelista brasileiro com nações, enquanto que o candidato do
predileção pelos poderosos. PT venceu entre adeptos de religiões
afro-brasileiras, sem religião, ateus e
agnósticos. Em pesquisa divulgada
pelo Datafolha dias antes do segundo
turno, 59% dos evangélicos declara-
ram votar em Bolsonaro e 26% em
Haddad. Entre os católicos, que ainda
constituem o maior grupo religio-
so do Brasil, os dois praticamente
¶ O PASTOR SILAS MALAFAIA tem mil bilidade dos pais. O vídeo segue com empataram. A vitória de Bolsonaro,
razões pelas quais brasileiros evangé- Malafaia denunciando o fato de Braga portanto, contou com uma conside-
licos não deveriam votar em candi- ter apoiado o governo Dilma Rous- rável prefêrencia evengélica.
datos de esquerda. Em um vídeo no seff que, em suas palavras, quebrou O fato do candidato do PT ter obti-
YouTube de setembro de 2016, ele exi- economicamente o país. Ao encerrar do um apoio tão inexpressivo entre
ge enfaticamente que crentes votem o discurso de modo animado e igual- os evangélicos pode não ser uma sur-
contra Glauber Braga, na época candi- mente raivoso, o pastor diz: “você que presa dada a conjuntura atual, mas
dato a prefeito de Nova Friburgo (RJ). é cristão não se deixe enganar – ele não foi sempre assim. Na véspera do
Com nítido desgosto, Malafaia inicia o lutou durante quatro anos contra os segundo turno em 2006, pesquisas
vídeo com o alerta de que Glauber Bra- nossos princípios e agora quer nosso mostraram Lula com 59% das inten-
ga é do PSOL: “Pense no que é de mais voto. Diga não a Glauber Braga!”. O ções de voto entre os evangélicos
radical contra o pensamento cristão,” candidato perdeu para Renato Brava contra 41% para Geraldo Alckmin.
esbraveja. “Essa gente apoia aborto, do PP por 5 mil votos. Quatro anos mais tarde, o PT seguiu
casamento gay, liberação de droga e Malafaia gravou diversos vídeos com vantagem mesmo que com um
ideologia de gênero.” Essa última, para contra alguns candidatos específi- resultado mais apertado, 51% do voto
ele, é “uma das coisas mais nojentas”, cos nas eleições daquele ano, todos evangélico para Dilma e 49% para
pois supostamente “erotiza crianças com basicamente o mesmo argu- Serra. A primeira derrota do PT entre
em escolas […]” e ignora o imperativo mento de que partidos progressis- os evangélicos se deu nas eleições de
legal de que segundo o Artigo 229 da tas ameaçam os valores morais e 2014, quando Aécio Neves conquis-
Constituição federal, como lembra o econômicos dos eleitores evangé- tou 53% dos votos contra 47% para
pastor, a “educação moral” é responsa- licos. Segundo a lógica de Malafaia, Dilma. Esse declínio deixa claro que

20
AFETOS E DESAFETOS

Malafaia é um líder
destacado mas não
o resultado de Haddad não foi uma
imune a críticas de Pinheiro em um perfil de Malafaia
anomalia, e sim o desfecho previ- outros fiéis. Quando na revista Piauí, pentecostais tam-
sível de uma derrocada em câmera
lenta. Por isso, talvez a pergunta
acusado de vender bém acreditam “em dons espiri-
tuais extraordinários, como a cura
mais latente para a esquerda bra- bênçãos, respondeu: de enfermidades, o exorcismo, a
sileira é se os evangélicos estão ou
não permanentemente fora de seu
“Quem pensa assim liberação de profecias”. Enquanto o
pentecostalismo sempre pregou uma
alcance. Se depender de Silas Mala- é um estúpido! Acha relação íntima do indivíduo com o
faia, um dos líderes religiosos mais
influentes e habilidosos do Brasil, a
que eu sou criança evangelho, nem sempre colocou
muita fé nos meios de comunicação
resposta categórica será “sim”. Mas para vender para facilitar essa conexão. Nisso, os
esse resultado ainda não está dado. A
esquerda precisa encontrar meios de
bênçãos, rapaz! neopentecostais inovaram.
Quando o pentecostalismo che-
escalar os muros que hoje separam a O que eu faço, e é gou ao Brasil no início do século XX,
maioria dos evangélicos das pautas
progressistas que no passado sensi-
bíblico, é liberar uma segundo Jonas Christmann, seus
adeptos já pregavam “o tradicio-
bilizaram religiosos para questões palavra profética”. nalismo nos costumes e a rigidez
sociais urgentes, como o alto custo moral”. De início, evitavam a política
de vida da classe trabalhadora e a e a mídia como formas de ampliar
necessidade da reforma agrária. É seu número de seguidores por con-
preciso compreender Malafaia, seu siderar tais atividades “mundanas
discurso e seu apelo, para superá-lo ou diabólicas”. Essa atitude mudou
e, quem sabe, derrotá-lo. experiência pentecostal. Em uma das gradativamente ao longo dos anos.
passagens mais fundamentais para o Um exemplo disso é a Assembleia de
pentecostalismo, Atos 2:4, os segui- Deus, maior e mais antiga denomi-
LÍNGUAS DE FOGO dores de Jesus reunidos em Jerusalém nação pentecostal do Brasil, que se
O neopentencostalismo é, talvez, a descreveram o seguinte evento: “de empenhou em eleger lideranças de
denominação evangélica mais proe- repente veio do céu um som, como suas fileiras para a Assembleia Cons-
minente no Brasil. É abraçadada de um vento veemente e impetuoso, tituinte em 1986. Jonas Christmann
por líderes como Malafaia em seu e encheu toda a casa em que esta- Koren, que pesquisou amplamente a
ministério Vitória em Cristo, ligado vam assentados. E foram vistas por trajetória de Malafaia, destaca que “o
à Assembleia Mundial de Deus, e Edir eles línguas repartidas, como que de uso das mídias de massa pelos pen-
Macedo, da Igreja Universal do Reino fogo, as quais pousaram sobre cada tecostais também passou a ser mais
de Deus. O pentecostalismo geral- um deles. E todos foram cheios do aceito, chegando a serem amplamen-
mente se refere a um tipo de praxe Espírito Santo, e começaram a falar te utilizadas, principalmente pelas
espiritual cristã que prioriza uma noutras línguas, conforme o Espírito chamadas neopentecostais,” entre
relação direta com o Espírito Santo Santo lhes concedia que falassem”. as quais o pastor se destaca.
em conflito real contra o demônio. O Essa e outras passagens, como Atos Silas Lima Malafaia nasceu no Rio
neopentecostalismo abarca o movi- 10:10, dão aos pentecostais o apoio de Janeiro no dia 20 de janeiro de 1958,
mento carismático de líderes como teológico para aderir à doutrina da formou-se em teologia pelo Instituto
Malafaia e outros. Pentecostais fazem evidência inicial de que o batismo Bíblico Pentecostal e em psicologia
particular uso do Evangelho de Lucas no Espírito é demonstrado ao falar pela Universidade Gama Filho. O pai
e do livro de Atos como guias para a em línguas. Como explicou Daniela era militar e também pastor, a mãe

22
TODO PODEROSO (DEMAIS)

era professora. A relação com Elizete se que a notícia era: “uma sacana-
Malafaia começou na adolescência e gem para dizer que pastor apanhou
dura até hoje. O casal tem um filho dinheiro dos otários. Que pastor é
e duas filhas. Foi no início da déca- milionário porque tem um bando de
da de 1980 que Malafaia começou a babaca de quem ele toma dinheiro.
apresentar um dos programas evan- Mas eu não vou tolerar isso”.
gélicos pioneiros da TV brasileira, Malafaia rejeita a pecha de lucrador
hoje chamado Vitória em Cristo. Em mas não tem problema com o lucro
sua biografia oficial, Malafaia conta em si. Está amparado pela Teologia
que “para manter o programa de TV da Prosperidade, segundo a qual as
e conseguir apoiar projetos sociais, bênçãos financeiras alcançadas e
Deus [lhe] deu a estratégia de fundar o bem-estar físico são sempre fru-
a Associação Vitória em Cristo (Avec), to da vontade de Deus para com o
que, atualmente, atende mais de 3 indivíduo. Ao fiel cabe apenas ter fé,
mil pessoas diariamente por meio discurso positivo e doar às causas
de projetos espalhados pelo Brasil e religiosas. O pastor já chamou de
na África”. O trabalho que sustenta “idiota” qualquer um que seja contra
os vários projetos da Avec é intei- essa leitura da Bíblia.
ramente voluntário, de acordo com Malafaia é um líder destacado, mas
Malafaia. De fato, o grande dom do não imune a críticas de outros fiéis.
pastor é, com suas pregações, alcan- Quando acusado de vender bênçãos,
çar os fiéis onde estes estiverem por respondeu: “Quem pensa assim é um
meio de livros, CDs e DVDs. Em 1999, Além disso, através de inúmeros estúpido! Acha que eu sou criança
ele fundou a editora Central Gospel, projetos, congressos, e encontros, a para vender bênçãos, rapaz! O que
hoje a segunda maior editora evan- Avec atinge mais de 100 mil pessoas eu faço, e é bíblico, é liberar uma
gélica do país. Não por acaso sua em praças públicas pelo Brasil, de palavra profética”. Mas como bem
autobiografia termina com a seguin- acordo com Pinheiro. Em 2013, a Avec apontado por outro desafeto do
te citação: “Meu sonho: investir em faturou 45 milhões de reais, a maior pastor, os expoentes de Teologia da
pessoas!”. parte em ofertas e doações de fiéis. Prosperidade não encorajam seus
Mas Malafaia também gosta que De posse desses recursos, Malafaia se fiéis a darem dinheiro para obras de
as pessoas invistam nele. A sede da tornou pessoalmente rico e hoje viaja caridade alheias ou para ONGs laicas
Associação Vitória em Cristo ocupa o Brasil e o mundo em um jato Gulfs- – ou seja, “a ‘bênção’ só é válida se eu
uma área de 40 mil metros quadra- tream III comprado por 4 milhões de semear no campo deles”.
dos Jacarépaguá, na Zona Oeste do dólares nos Estados Unidos. Mesmo A Teologia da Prosperidade tem
Rio. Na descrição de Pinheiro para a assim o pastor rejeita veementemen- um significado político mais amplo
revista Piauí: “A construção moderna te a ideia de que religião seja apenas do que apenas enriquecer de forma
e envidraçada contrasta com os arre- uma fonte lucrativa de renda para extraordinária seus pastores mais
dores de comércio pobre e terrenos ele e seus pares. Em reportagem da famosos. De acordo com o sociólogo
baldios abandonados. A entidade Forbes de 2013, Malafaia foi classi- Gedeon Freire de Aguiar, a Teologia
cristã – considerada sem fins lucra- ficado como o terceiro pastor mais da Prosperidade só faz sentido den-
tivos, o que a exime do pagamento rico do Brasil, com uma fortuna de tro de um contexto neoliberal: “Teo-
de impostos – financia as ações do 150 milhões de dólares. Enfurecido e logia da Prosperidade e neoliberalis-
ministério religioso de Malafaia”. ameaçando processar a revista, dis- mo são, como diz o provérbio popular,

23
AFETOS E DESAFETOS

Não é difícil identificar


as condições que
a casa e o botão. São irmãos siame-
permitiram a uma parte central da base política
ses. Um não existiria sem o outro […]”. ascensão da Teologia conservadora sem a qual o partido
Segundo ele, não existiam condições
econômicas e sociais propícias para
da Prosperidade e a de Reagan não ganha eleições. Em
seu livro recém-lançado, The Power
a Teologia da Prosperidade surgir no agenda conservadora Worshippers: Inside the Dangerous
Brasil nos anos 1970, assim como
teria sido impossível o neolibera-
que ela faz parte Rise of Religious Nationalism [ain-
da sem edição no Brasil], a jornalista
lismo ter despontado na década de quando olhamos a que cobre a direita evangélica nos
1920. Não é difícil identificar as con-
dições que permitiram a ascensão da
desestruturação do Estados Unidos, Katherine Stewart,
examina as estratégias e as princi-
Teologia da Prosperidade e a agen- Estado, o crescente pais personalidades do movimento
da conservadora que ela faz parte
quando olhamos a desestruturação
individualismo e que transformou a religião em uma
ferramenta de dominação. Stewart
do Estado, o crescente individualis- consumismo observa que “as pessoas frequen-
mo e consumismo apresentados pela
história brasileira recente.
apresentados pela tam a igreja por uma série de razões
pessoais honrosas, incluindo amor
Malafaia não têm olhos apenas história brasileira a Deus e às Escrituras, solidarieda-
para suas igrejas, como afirmou o
colunista Bernardo Mello Franco,
recente. de étnica e familiar, apreciação da
comunidade e desejo de marcar as
o pastor “fez fama no púlpito, mas passagens mais significativas da
adora um palanque”. Em fevereiro vida. Muitos também parecem estar
de 2020, Malafaia sentou para con- buscando segurança em um mundo
versar com Bolsonaro e essa foi tal- incerto. Em um cenário de crescente
vez a entrevista mais amena pela desigualdade econômica, desindus-
qual o presidente já foi submetido. entre os dois é um símbolo trágico trialização, rápidas mudanças tecno-
Sorrindo, Malafaia teceu elogios ao da política que prevaleceu nas urnas lógicas e instabilidade climática, as
presidente por não negociar com em 2018: o casamento do moralismo pessoas em todos os pontos do espec-
os partidos para compor uma base religioso com o autoritarismo polí- tro econômico sentem que o mundo
no Congresso. Para ele, esses acor- tico consagrado no altar do libera- entrou em um estado de desordem.
dos teriam sido “uma das fontes de lismo econômico. A religião oferece consolo, identida-
corrupção no país”. Destilando seu de e a sensação de que a posição de
veneno, argumentou em favor da alguém no mundo é segura”.
agenda econômica do governo, per- AQUI, ACOLÁ Tudo isso se aplica também ao caso
guntando ao presidente: “O que que Para entender a força política dos brasileiro, em que violência, reformas
adianta dar tanto privilégio para o evangélicos brasileiros, é preciso antipopulares, e desemprego dificul-
trabalhador e não ter emprego?”. Bol- olhar para os Estados Unidos, onde tam o surgimento de redes solidárias
sonaro, que busca continuidade para esse segmento religioso tem tido laicas. “No entanto”, de acordo com
a agenda de reformas antitrabalhis- papel de destaque há décadas. O Stewart, “muitas vezes o preço da
tas iniciadas com vigor no governo republicano Ronald Reagan foi o certeza nas congregações conser-
de Michel Temer, respondeu que “é primeiro político moderno da direi- vadoras estadunidenses é a rendi-
melhor menos direito e emprego do ta estadunidense a mobilizar de ção da vontade política de alguém.
que mais direito e desemprego. Essa forma estratégica o voto evangélico. Os fiéis absorvem a mensagem de
é a questão do Brasil”. A conversa Desde então, evangélicos formam que o mundo está dividido entre os

24
TODO PODEROSO (DEMAIS)

Ainda não se sabe


se a erosão gradual
puros e os impuros, insiders e out-
do projeto lulista No início de fevereiro de 2015,
siders. Eles têm a certeza de que, se foi a causa ou a Malafaia comemorou chamando de
estiverem em conformidade, esta-
rão dentro.” As implicações políticas
consequência de “uma vitória espetacular” a eleição
do evangélico Eduardo Cunha para a
são claras: “Para fazer parte dessas mudanças internas presidência da Câmara. Em um tweet
reuniões de fiéis, votar e se organi-
zar pela agenda nacional da direita
no mundo da época, afirmou que tal vitória
humilhava o PT: “Vão ter que nos atu-
é um pré-requisito, bem como uma evangélico. Mas rar”. Seis meses depois, após Cunha
necessidade espiritual. Como afir-
mou Stephen Strang, CEO da publi-
não resta dúvida ser denunciado pela Procuradoria-
-Geral da República por corrupção e
cação pentecostal Charisma, ‘Trump de que Malafaia lavagem de dinheiro, o pastor negou
não pode vencer sem a nossa ajuda.
Cada um de nós deve fazer a nossa
entende bem como ter estendido seu apoio a ele. Even-
tualmente, Malafaia se aproximou de
parte. Deus exige isso.’” Do mesmo aproveitar as Bolsonaro, a quem permanece colado
modo, pastores pentecostais brasi-
leiros traçam uma linha direta entre
oportunidades até hoje. Mesmo diante da Covid-19,
Malafaia tem seguido o exemplo do
a eleição de candidatos de extrema políticas que se presidente, minimizando o poten-
direita e a vontade de Deus.
apresentam. cial devastador da pandemia global.
Ainda não se sabe se a erosão gradual
do projeto lulista foi a causa ou a
JOGO DO PODER consequência de mudanças internas
Para Stewart, existe uma muralha no no mundo evangélico. Mas não resta
meio-campo do jogo de poder políti- dúvida de que Malafaia entende bem
co. “Por um lado, você pode contatar como aproveitar as oportunidades
eleitores para dizer o que eles preci- se vangloriava de ter tido acesso aos políticas que se apresentam.
sam ouvir a fim de que eles votem a corredores do poder de Brasília. Mas O próprio Lula, para tentar recu-
seu favor. Por outro lado, você pode em 2010, segundo relato do jornalista perar a parcela de apoio popular
entrar e se reunir com os poderosos Simon Romero, Malafaia começou perdido, tem estudado as pregações
que de fato mandam. Nos últimos a dar sinais de distanciamento do televisivas de pastores evangélicos,
anos, o movimento nacionalista cris- PT. Em conversa breve com a então modalidade que Malafaia ajudou a
tão teve um sucesso extraordinário candidata e ex-guerrilheira Dilma introduzir no Brasil. Durante sua
em jogar o jogo por dentro.” No Brasil Rousseff afirmou que não tinha nada prisão de 580 dias em Curitiba, Lula,
também isso pode ser visto, Malafaia de pessoal contra ela: “Eu acho que que tinha na TV uma de suas poucas
em especial tem se mostrado adep- você é uma mulher inteligente e qua- distrações, disse à Balloussier que
to a navegar as mudanças políticas lificada. Mas como posso votar em utilizou os programas de padres
no país ao longo dos últimos trinta você se passei quatro anos brigando e pastores como um aprendizado.
anos. Admitiu ter votado duas vezes com o grupo do seu partido apoiando Chegou a brincar que queria “entrar
em Lula, inclusive em 1989 quando, um projeto de lei para beneficiar os nessa” e que já estava inclusive com
como afirma, apresentado pela jor- gays […]?” E assim o apoio político “jeitão de ser pastor”. A seu modo,
nalista Anna Virginia Balloussier, do pastor se deslocava do petismo, ele tenta apaziguar os ânimos que
“destoou dos colegas que viam em que vivia a iminência de seu declí- afastaram o PT do eleitorado evangé-
[Lula] um belzebu comunista e o nio, para uma direita cada vez mais lico que vê em Malafaia um grande
apoiou”. No período Lula, o pastor reacionária. líder. Seu partido corre nessa direção,

25
AFETOS E DESAFETOS

O trabalho de
base contra os
mas, de acordo com a reportagem de
todo-poderosos Braga – “aborto, casamento gay, libe-
Balloussier, “há dentro do PT quem da direita ração de droga e ideologia de gênero”.
diga que o esforço para dialogar com
evangélicos, por ora, é mais espuma
conservadora, Pautas como essas, escreve Koren,
estão no contexto do que Antonio
do que sustância. Também reconhe- no entanto, sempre Gramsci chamou de “pequena polí-
cem, nos bastidores, que pastores
alinhados são de menor porte, têm
foi terreno da tica”, sendo essas “questões parciais
e cotidianas que se apresentam no
influência limitada”. Ou seja, não há esquerda. interior de uma estrutura já estabe-
ainda no Brasil nenhum pastor da lecida em decorrência de lutas pela
estatura de Malafaia ou Edir Macedo predominância entre as diversas fra-
disposto a pedir voto para os parti- ções de uma mesma classe política”.
dos progressistas. Tais disputas se diferem da chama-
O trabalho de base contra os todo- da “grande política”, envolvida de
-poderosos da direita conservado- “questões ligadas à fundação de novos
ra, no entanto, sempre foi terreno Estados, à luta pela destruição, pela
da esquerda. Daniel Elias, líder de defesa, pela conservação de determi-
uma pequena Assembleia de Deus em nadas estruturas orgânicas econômi-
Duque de Caxias (RJ), se encarregou coordenadora da progressista Frente co-sociais”. Para Gramsci, a “grande
de fazer esse projeto, ainda segundo de Evangélicos pelo Estado de Direi- política” também envolve “reduzir
Balloussier. Seu trabalho consiste em to: “É muito comum pensarem que tudo à pequena política”. Conforme
“armar esses crentes com argumen- essa escolha de fé é de quem não tem escreveu Carlos Nelson Coutinho,
tos” para não aceitarem a ladainha do alternativa, que a miséria empurra sobre o que ele denominou de “hege-
pastor que diz que “cristão genuíno a pessoa para esse lugar. Coloca o monia da pequena política”, é precisa-
não vota em esquerda”. Daniel res- outro sempre no lugar suspeito, de mente “através da exclusão da grande
salta a importância desse debate ser quem não tem autonomia”. Ela tam- política que se apresenta a hegemonia
feito “de evangélico pra evangélico”, bém destaca os deslizes na guerra de na época do neoliberalismo”.
pois “o camarada não considera mui- narrativas. Quando Lula clama para A despeito de seus feitos marcan-
to a palavra de fora. Quem falou que si um “jeitão de pastor”, a fala “ecoa tes na redução da pobreza, os limi-
Bolsonaro é enviado de Deus foram bem para quem já está no mesmo tes do lulismo enquanto projeto
os pastores. Quem rebatia isso não campo”. “Mas o antipetismo faz com político também se enquadram na
era de dentro”. Ele nos dá exemplos que essa frase soe desrespeitosa para rubrica da pequena política. Talvez
práticos de como comprar essa briga. outros tantos.” não seja impossível um líder popular
Se o evangélico for contra o casamen- Jonas Christmann Koren sustenta que levanta bandeiras progressistas
to homoafetivo, diga “simples, então que Malafaia “propõe a seu público como Lula ganhar de novo uma par-
você não casa”. Segundo Daniel, essa um engajamento político em ques- cela expressiva do voto evangélico.
lógica é a mesma aplicada ao consu- tões específicas, apresentadas pelo O próprio Lula, mesmo que pontual-
mo de bebidas álcoolicas por evan- pastor como sendo fundamentais mente, já mostrou que tal apoio pode
gélicos, uma vez que a maio- ria não aos ‘valores cristãos’, geralmente ser conquistado. Porém, para aque-
bebe cerveja, mas também não faz ligando questões morais e sexuais.” les que estiverem mais preocupados
lobby para proibir o álcool. Mas há Entre esses assuntos, estão aqueles em travar lutas na arena da grande
ainda quem enxergue certas doses mencionados no vídeo do YouTube política, será difícil alcançar esses
de preconceito por parte da esquerda, em que ataca o então candidato a eleitores. Entre outras coisas, o muro
como explica Nilza Valéria Zacarias, prefeito de Nova Friburgo, Glauber Malafaia nos separa deles.

26
POR LOREN BALHORN TRADUÇÃO EVERTON LOURENÇO

Mais que
um simples
muro
Em muitos aspectos
a República
Democrática Alemã
conseguiu construir
uma sociedade mais
igualitária que sua
contraparte ocidental,
mas desde o princípio
o Muro de Berlim
se ergueu como um
horroroso símbolo de
suas contradições.
LOREN BALHORN

¶ O MURO DE BERLIM é uma lembrança histórica carências do socialismo – as eleições fraudulentas,


por mais tempo do que se manteve de pé. De fato, a incapacidade de viajar livremente e a sedução
2020 marca o trigésimo aniversário da reunifi- dos bens de consumo ocidentais – acabaram por
cação alemã e, com ela, do fim do socialismo de definir suas aspirações.
estado na Europa Oriental. Em 3 de outubro de Ao invés da democratização e do rejuvenesci-
1990, a República Democrática Alemã (RDA), que mento do socialismo que alguns esperavam inicial-
serviu como o aliada mais leal da União Soviéti- mente, os levantes de 1989/90 trouxeram consigo a
ca e hospedou dezenas de milhares de soldados consolidação por toda a Europa da vida econômica
do Exército Vermelho por quarenta anos, abdi- neoliberal e baseada no mercado. Foi o preço a
cou voluntariamente de sua soberania territorial pagar em troca de liberdades políticas básicas e
e foi anexada pelo antigo lado ocidental como uma liberdade de movimento nominal. Os partidos
parte da República Federal Alemã. Apenas onze comunistas que governaram por décadas caíram
meses depois que o muro de Berlim “caiu”, em 9 em desordem, apressadamente reformulando sua
de novembro de 1989, e menos de 29 anos após imagem como social-democratas ou dissolven-
sua construção, o que havia sido considerada uma do-se por completo. A queda do bloco soviético
fronteira fixa e impermeável deixou de existir, também desmoralizou grandes parcelas da esquer-
enquanto em torno dela todo um sistema socio- da do outro lado da Cortina de Ferro, levando ao
político se desintegrou. colapso do movimento comunista internacional
Fato histórico ou não, o espectro de ditaduras e ajudando a preparar o cenário para a virada da
totalitárias e economias estagnadas que supos- social-democracia na direção do neoliberalismo
tamente caracterizava o Bloco Oriental continua no final da década.
sendo citado como “prova” incontestável de que Porém, além do drama de 1989, o que significou a
o capitalismo seria o único sistema social e eco- transição do socialismo para o capitalismo para as
nômico viável – e, o único realmente desejável. pessoas que a fizeram? Os cidadãos da RDA foram
Além disso, argumentam os críticos, o colapso do isolados de seus piores efeitos pela sua integração
socialismo em 1989 teria demonstrado que, quando no estado de bem-estar social comparativamen-
pode escolher, a maioria dos trabalhadores opta te generoso da Alemanha Ocidental, não obstan-
pela abundância material do capitalismo e pela te, também assistiram sua economia entrar em
democracia liberal em detrimento de qualquer colapso e sua população diminuir drasticamente.
coisa que um sistema socialista tenha a oferecer. Ainda hoje, as cicatrizes do período continuam
Esse argumento não deixa de ter um certo fundo escancaradas por toda a região.
de verdade – afinal, a revolta na Alemanha Orien- Nos anos 1990 o desemprego disparou, a infraes-
tal foi caracterizada por milhões de pessoas que trutura pública entrou em colapso e milhões de
tomaram as ruas para exigir eleições democráticas pessoas se viram forçadas a emigrar para encontrar
e que, enfim, votaram em um governo conservador trabalho. Em um estudo para o Banco Mundial,
e pela rápida integração no Ocidente capitalista. o economista Branko Milanović estimou que os
Embora na época muitos alemães orientais não níveis de pobreza nos antigos países socialistas
percebessem que isso significaria a destruição aumentaram de 4%, em 1989, para impressionan-
do extenso estado de bem-estar social da RDA, tes 45% em meados da década de 1990. Quando as
quaisquer ganhos que a classe trabalhadora rece- economias começaram a se recuperar, o crescimen-
besse no socialismo evidentemente não foram o to permaneceu concentrado nos setores de altos
bastante para manter sua lealdade quando che- salários. Para a maioria, a promessa capitalista de
gou o momento de decisão. No fim das contas, as mobilidade social continua um sonho distante.

30
Ao invés da democratização e
do rejuvenescimento do socialismo
que alguns esperavam inicialmente,
os levantes de 1989/90 trouxeram
consigo a consolidação por toda a
Europa da vida econômica neoliberal
e baseada no mercado.
LOREN BALHORN

Embora os europeus orientais desfrutem de ascensão de Adolf Hitler. Depois de consolidar


mais liberdades políticas e da opção de viajar para o poder em 1933, seu Partido Nazista dizimou
o exterior (se puderem pagar), o capitalismo se sistematicamente as organizações de esquerda e
provou incapaz de lhes garantir meios de subsis- massacrou milhares de militantes. Em 1939, ele
tência, e com frequência a vida pública está repleta mergulhou o mundo em uma guerra de proporções
de corrupção e desilusão. No entanto, com 1989 catastróficas, causando destruição incalculável e
ainda fresco na memória, o socialismo permanece organizando o extermínio em massa dos judeus
como uma relíquia desacreditada do século XX , da Europa no Holocausto.
que teve sua chance e fracassou. O capitalismo, Os comunistas encarregados de construir uma
apesar de todas as suas falhas, parece não ter nova ordem após 1945 enfrentavam, portanto, uma
alternativa. Esse impasse político – na verdade tarefa impossível: como implementar o socialismo
civilizacional – levanta questões importantes para em um país devastado por seis anos de guerra e
a incipiente esquerda internacional: será que o doze anos de horror fascista, dividido ao meio
socialismo do século XX poderia ter se saído dife- pelas potências ocupantes e agora sujeito a inca-
rente? Estará o socialismo do século XXI fadado pacitantes pagamentos de reparação? Como con-
a repetir seus erros? fiar na classe trabalhadora, a força social que os
marxistas acreditavam que naturalmente lutaria
pelo socialismo, depois dela ter falhado de maneira
ERGUIDOS A PARTIR DAS RUÍNAS tão espetacular em deter os nazistas?
Que muitas vezes a repressão severa e a censura Mesmo no final da guerra, apenas uma pequena
pervasiva caracterizavam a vida na RDA é algo que parcela da população alemã se engajou em resis-
está dado, e os socialistas não fazem nenhum favor tência organizada. Ao contrário da visão comunista
a si mesmos ao ignorar esse fato ou descartá-lo de uma ruptura revolucionária levada a cabo pelas
como propaganda. Contudo, reduzir a RDA ao Muro massas com consciência de classe, na realidade o
e à polícia secreta não nos ajuda muito a entender socialismo chegou à Alemanha Oriental por meio
como e por que esse Estado veio a existir, para das baionetas do Exército Vermelho. Os soviéticos
não mencionar que isso obscurece completamente haviam derrotado a invasão alemã e finalmen-
tudo o que acontecia dentro de suas fronteiras. te libertado a maior parte da Europa, perdendo
Por décadas, milhões de pessoas na RDA e em pelo menos 20 milhões de cidadãos no processo.
outros países socialistas apoiavam ativamente e Compreensivelmente, eles não iriam a lugar algum.
se identificavam com o sistema, mesmo que em Governando em nome dos soviéticos, estavam
graus variados. Angela Davis até completou seu milhares de comunistas e antifascistas entre uma
doutorado na Universidade Humboldt, em Berlim população de 16 milhões, muitos dos quais até
Oriental. Devemos realmente acreditar que todas pouco tempo nazistas e que, de alguma forma,
elas sofreram lavagem cerebral? Ou será que havia tinham de ser reintegrados à sociedade. Enquanto
elementos na vida daquela sociedade que a redi- em países como Itália e Iugoslávia os comunis-
miam e que levavam a esse apoio? tas haviam conquistado seguidores em massa por
O Muro e o Estado que o construiu são inse- seu papel de liderança na luta pela libertação, os
paráveis do cenário histórico de seu surgimento comunistas na Alemanha Oriental não podiam
– segundo todos os relatos, um parto bem difí- dizer o mesmo. Essa contradição assombraria a
cil. O poderoso movimento dos trabalhadores RDA por toda a sua existência, sua legitimidade
da Alemanha, que chegou a ser o mais influente sempre repousando em sua autorrepresentação
do mundo, falhou miseravelmente em impedir a como o ponto culminante de uma luta antifascista

32
MAIS QUE UM SIMPLES MURO

que, na realidade, havia sido imposta por Moscou Blankenhorn e o diretor do parlamento da Alema-
e dependia do seu apoio. nha Ocidental Hans Trossmann, o lado oriental
A constelação do pós-guerra tinha duas impli- realizou uma tentativa concertada de purgar os
cações imediatas: em primeiro lugar, como todas níveis executivos do Estado da influência nazista
as “democracias populares” da Europa Oriental, a – auxiliado pelas dezenas de comitês antifascistas
RDA enfrentava desafios econômicos extremos sob a liderança de trabalhadores, que surgiram
desde o início, incapaz de importar tecnologia após a guerra.
ocidental e forçada a se reconstruir em grande Para muitos que sobreviveram ao fascismo e que
parte por conta própria. Em segundo lugar, a desejavam uma Alemanha nova e melhor, a RDA
experiência das décadas de 1930 e 1940 alimentou aparecia como a escolha natural. Vários intelec-
uma suspeita generalizada das massas em parte tuais de esquerda e artistas de destaque, como o
da liderança comunista, descrita pelo historiador renomado dramaturgo Bertolt Brecht, o compositor
Martin Sabrow como uma “geração de patriarcas Hanns Eisler, o filósofo Ernst Bloch e o teórico
desconfiados” que buscavam exercer o poder em jurídico Wolfgang Abendroth, optaram por mudar
nome dos operários e camponeses, mas que não para o leste e prestar seus serviços à causa. Alguns
podia contar com eles para que exercessem esse acabaram indo embora decepcionados, enquanto
poder por conta própria. outros escolheram ficar criticando as fraquezas
A maioria desses “patriarcas” havia passado anos e os excessos do Estado, mas, não obstante, per-
na resistência ilegal, cumprido longas sentenças manecendo leais ao que consideravam um esforço
em prisões e campos de concentração (alguns não sincero de construir uma sociedade melhor.
eram apenas comunistas, mas também judeus), Além desses exemplos famosos, não se deve
e tinha o desejo genuíno de construir uma nova esquecer que durante a primeira década da RDA
Alemanha antifascista. Wilhelm Pieck, o primeiro mais de 500 mil alemães escolheram migrar não
e único “Presidente” da RDA, era um dos comu- para o Ocidente, mas para o Oriente. As esperanças
nistas mais conhecidos do país e até havia sido desses pioneiros políticos estavam encapsuladas
preso com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na no novo hino nacional do país, escrito pelo próprio
fatídica noite em que os dois foram assassinados Eisler: “erguidos a partir das ruínas, voltados para
por soldados de extrema direita. Erich Honecker, o futuro nós permanecemos”.
que lideraria a RDA entre 1971 e 1989 e que foi um
símbolo de seu fracasso aos olhos de milhões de
pessoas, serviu bravamente na resistência e passou FORTIFICANDO O ESTADO
dez anos nas prisões nazistas. Tais biografias eram ANTIFASCISTA
típicas dos primeiros líderes da RDA . Como, então, um Estado que começou com tan-
Embora um monopólio comunista sobre o poder to otimismo, proclamando orgulhosamente suas
estivesse garantido pela presença soviética, entre credenciais antifascistas e sua fidelidade à classe
vários setores da população o entusiasmo por mui- trabalhadora, acabou construindo um muro para
tas das reformas iniciais do governo era verda- manter essa classe dentro de suas fronteiras?
deiro – especialmente a redistribuição de terras e O “Muro Protetor Anti-Fascista”, como era conhe-
o expurgo quase que completo (pelo menos com- cido no jargão oficial, não foi construído até agos-
parativamente) dos ex-nazistas da vida pública. to de 1961, doze anos após a fundação da RDA e
Enquanto um número considerável de ex-nazistas dezesseis anos depois do Exército Vermelho ter
ocupava posições governamentais de alto nível ocupado a Alemanha Oriental. Sua construção
no Ocidente, como o chefe de diplomacia Herbert marcou o ponto culminante de uma década de

33
LOREN BALHORN

militarização dos 1.400 quilômetros de compri- vam por deixar o país não por convicção política,
mento da “fronteira alemã interna”, iniciada em mas por frustração econômica? Como estabilizar
1952, quando foram esticados os primeiros trechos e consolidar a nova ordem socialista, se perdiam
de arame farpado. centenas de milhares de trabalhadores saudáveis
Ao contrário do resto do bloco oriental, a divi- todos os anos?
são da Alemanha pelos Aliados significava que Nos dois anos anteriores à construção do Muro,
os cidadãos insatisfeitos com a RDA poderiam a RDA enfrentou outra rodada de dificuldades
partir para o Ocidente capitalista e ao mesmo econômicas existenciais. Os soviéticos sempre se
tempo permanecer no próprio país. E assim o opuseram à separação física de Berlim Oriental e
faziam: cerca de 3,5 milhões de pessoas se muda- Ocidental, na esperança de eventualmente recupe-
ram antes da construção do Muro. Muitos eram rar o controle de toda a cidade. Porém, no final da
profissionais experientes que poderiam receber década de 1950, a migração para o exterior estava
salários mais altos no Ocidente, o que represen- ficando insustentável, e Berlim Oriental implorava
tava dificuldades existenciais para um Estado a Moscou permissão para fechar a fronteira de
incipiente, com uma necessidade desesperada uma vez por todas, para que a RDA não entrasse
de mão de obra qualificada para reconstruir sua em colapso. Em vez de um sinal de força, foi uma
economia destruída. expressão da fraqueza do Estado, preso em meio
Enquanto a Alemanha Ocidental desfrutava de a uma Guerra Fria que ele dificilmente poderia
generosos empréstimos e subsídios concedidos dissipar e sem a qual ele provavelmente nem teria
pelo Plano Marshall, financiado pelos Estados existido, para início de conversa. Muitos pensa-
Unidos, e logo entraria no longo ciclo de expansão vam que o Muro seria um mal temporário, mas
econômica conhecido como o “Milagre do Reno”, o necessário, a fim de proteger o nascente Estado
lado oriental era forçado a pagar extensas repara- socialista da subversão e do colapso.
ções de guerra à União Soviética, desmantelando e
enviando para o leste mais de 2 mil fábricas – 30%
de sua capacidade industrial restante. O cresci- NEM TUDO ERA TÃO BOM
mento ficou atrás do Ocidente e a diferença entre O Muro era feio, ameaçador e, sem dúvida para
os padrões de vida dos trabalhadores tornou-se muitos cidadãos era algo de partir o coração, mas
cada vez mais aparente. Até mesmo o levante de a estabilidade econômica e geopolítica que ele
17 de junho de 1953 – hoje reverenciado como uma garantia também deu à RDA a chance de cons-
rebelião pela democracia e pela unidade alemã truir uma sociedade que, embora longe de ser
– foi desencadeado principalmente por queixas perfeita, era amplamente caracterizada por uma
econômicas, como destacou um dos principais modesta prosperidade e igualdade social entre
slogans do dia, “trabalho por peça é assassinato”. classes e gêneros. Isso se reflete no fato de que,
Certamente, as autoridades da RDA não tinham quando consultados por pesquisas, a maioria
problemas com ex-nazistas, conservadores e dos orientais hoje enfatiza a igualdade como o
outros oponentes políticos saindo do país. Durante valor social mais importante. Os trabalhadores
toda a Guerra Fria, a Alemanha Oriental muitas tinham garantia de emprego, moradia e creches
vezes optou por deportar dissidentes, geralmen- integrais, enquanto os alimentos básicos e outros
te em troca de quantias consideráveis por parte bens eram fortemente subsidiados. Embora os
do governo da Alemanha Ocidental, em vez de salários representassem apenas metade do que
desperdiçar recursos preciosos com vigilância e era recebido no lado ocidental, os preços ajustados
prisão. Mas o que fazer com os muitos que opta- em relação aos ganhos faziam com que o poder

34
MAIS QUE UM SIMPLES MURO

Reduzir a RDA ao Muro e à polícia


secreta não nos ajuda muito a entender
como e por que esse Estado veio a
existir, para não mencionar que isso
obscurece completamente tudo o que
acontecia dentro de suas fronteiras.
LOREN BALHORN

de compra real dos trabalhadores da RDA fosse regime em público, os trabalhadores eram, em
mais ou menos o mesmo. todos os sentidos, autoconfiantes e propensos
Apesar das noções populares a respeito de a dizer o que pensavam quando se tratava de
uma casta corrupta de burocratas do partido questões sobre o local de trabalho. Em seu livro
vivendo dos frutos do trabalho no socialismo, recente sobre a estrutura de classes da RDA ,
as distinções de classe na RDA na verdade foram Steffen Mau descreve como o enaltecimento
drasticamente reduzidas, tanto em termos mate- dos trabalhadores pelo Estado como a ostensiva
riais como culturais. Os trabalhadores da indús- “classe dominante” lhes fornecia uma margem de
tria ganhavam significativamente mais que os manobra considerável para reclamar dos proble-
empregados de colarinho branco, e a diferença mas e moldar suas condições de trabalho. Como
salarial entre trabalhadores manuais e instruídos demonstrou a pesquisa de Kristen R. Ghodsee, a
em geral era de apenas 15%. Mesmo a elite do integração das mulheres no mercado de trabalho
partido, enclausurada em um subúrbio fechado e o acesso a creches as tornaram muito menos
ao norte de Berlim, conhecido como Wandlitz, dependentes de seus parceiros. Elas eram livres
desfrutava de um padrão de vida modesto, se para se divorciar de maridos abusivos e desfru-
comparado à classe dominante de hoje. tavam de uma vida significativamente mais
Sobretudo nas primeiras décadas de existência, autodeterminada. Hoje, muitos alemães orientais
o sistema educacional da RDA abriu suas portas descrevem essa relação com o trabalho como uma
às massas, enviando milhares de jovens traba- das coisas de que mais sentem falta no sistema
lhadores para a universidade e, depois, para os antigo. Embora agora eles tenham a liberdade de
níveis médios de gerência da economia estatal reclamar do governo, exercer qualquer influência
e do partido. Enquanto as velhas hierarquias de em seu local de trabalho está fora de questão.
status permaneciam firmes no lado ocidental, Na política surgiu uma dinâmica semelhante,
simbolizadas pelo seu sistema escolar de três até certo ponto. As eleições na RDA , compreen-
níveis, quase feudal, no lado oriental surgia uma sivelmente repudiadas por muitos como uma
nova maioria com pessoas que se identificavam farsa, pressionavam o partido a demonstrar von-
ativamente como trabalhadores e que em graus tade de responder às preocupações do público,
variados adotavam atitudes igualitárias como caso contrário os eleitores poderiam deixar de
produto de sua socialização. Todos os estudantes comparecer às votações e envergonhar as auto-
da Alemanha Oriental frequentavam as mesmas ridades locais. Um exemplo disso foi o referendo
escolas por dez anos, e os filhos dos trabalhado- de 1968 sobre a segunda constituição da RDA ,
res – pelo menos os que concordavam politica- realizado no início de abril, depois de dois meses
mente com o regime – tinham garantia de acesso de consultas públicas. Milhões de cidadãos par-
prioritário ao ensino superior. Com o fim da anti- ticiparam dessas discussões e milhares envia-
ga burguesia e com os novos governantes, mui- ram suas críticas e sugestões. Que o referendo
tos deles recrutados da classe trabalhadora, essa em si seria aprovado era uma conclusão prévia,
parcela emergente se tornou o alicerce cultural e mas o governo realmente incorporou algumas
social da RDA . A cultura da classe trabalhadora, sugestões do público e respondeu com since-
ou no mínimo sua versão sanitizada e aprova- ridade a perguntas críticas.
da pelo regime, era exaltada publicamente e os Com o passar do tempo, esses aspectos mais
marcadores de status passaram a ser mal vistos. promissores da vida na RDA começaram a desa-
Um resultado político dessa transformação parecer. As economias centralmente planeja-
social foi que, apesar de incapazes de criticar o das na Europa Oriental tinham problemas para

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O Muro era feio, ameaçador e, sem dúvida para
muitos cidadãos era algo de partir o coração,
mas a estabilidade econômica e geopolítica que
ele garantia também deu à RDA a chance de
construir uma sociedade que, embora longe de
ser perfeita, era amplamente caracterizada por
uma modesta prosperidade e igualdade social
entre classes e gêneros.
A situação política que nossa
geração enfrenta é muito diferente
daquela da primeira metade do
século XX. Se o fascismo retornar
às praias da Europa, não haverá um
Exército Vermelho para vir em
nosso socorro. O que resta do
antigo movimento comunista é
uma sombra de seu antigo eu.
MAIS QUE UM SIMPLES MURO

permanecer competitivas no mercado global, MAIS SORTE DA PRÓXIMA VEZ


superadas pelo Ocidente mais rico e avançado, e Com o “socialismo realmente existente” morto
eram incapazes de se adaptar às mudanças nos e enterrado, a questão sobre se ele constituiria
processos de produção. Especialmente após a ou não uma alternativa viável ao capitalismo
crise do petróleo em 1973, a RDA se viu forçada realmente existente é, de certa forma, supérflua.
a assumir grandes montantes de dívida para A situação política que nossa geração enfrenta
manter sua economia funcionando e passou é muito diferente daquela da primeira metade
a ter mais dificuldade para investir em novas do século XX. Se o fascismo retornar às praias
tecnologias. A Guerra Fria também se acirrou no da Europa, não haverá um Exército Vermelho
início dos anos 1980, com a invasão soviética do para vir em nosso socorro. O que resta do anti-
Afeganistão e a escalada da retórica nos Estados go movimento comunista é uma sombra de
Unidos, aumentando a mentalidade de cerco. seu antigo eu. Se pretendemos encontrar um
Como resultado, a insatisfação popular com caminho para o socialismo no século XXI, ele
a vida por trás da Cortina de Ferro se tornava será necessariamente muito diferente daquele
cada vez mais abundante. Após várias décadas trilhado pelos nossos predecessores.
de mobilidade social pronunciada, a estrutura Dito isso, também seria irresponsável ape-
social da RDA ficou ossificada e os jovens mui- nas rejeitar a experiência como uma “abomina-
tas vezes se viam incapazes de galgar posições ção stalinista”. Quer optemos por chamá-la de
em suas carreiras. As crescentes dificuldades socialismo quer não, os homens e mulheres que
econômicas significavam que, embora os tra- viviam e trabalhavam na RDA passaram quatro
balhadores continuassem a ganhar salários décadas construindo uma sociedade que eles
decentes e desfrutassem de amplos benefícios enxergavam como tal e registraram uma série
sociais, muitas vezes não havia bens suficientes de realizações notáveis. Como seus camaradas
nas prateleiras – e os que estavam disponíveis em Cuba ou no Vietnã, seu Estado começou e
eram de qualidade notavelmente inferior ao que terminou sob cerco e em significativa desvan-
os trabalhadores podiam comprar no Ocidente, tagem material, herdando sociedades marcadas
um fato reforçado todos os dias pela mídia da por séculos de subdesenvolvimento, opressão e
Alemanha Ocidental. (em alguns casos) ocupação imperialista. Que a
O partido no poder, liderado por uma geração repressão política tenha sido um componente
de comunistas idosos, já na casa dos sessenta importante desses regimes é algo trágico, para
ou setenta anos, mostrou-se incapaz de lidar dizer o mínimo, mas dadas as circunstâncias de
com o agravamento da situação e reagiu cer- seu surgimento, combinadas com as escolhas
rando suas fileiras. A repressão aumentou e políticas ao longo do caminho, é difícil imaginar
o partido resistiu com teimosia a qualquer qualquer outro resultado.
reforma na linha da perestroika de Mikhail Sem dúvida, a falta de uma democracia política
Gorbachev na União Soviética. Quando as coi- funcional e a ausência de uma imprensa livre
sas chegaram ao ponto culminante de 1989, deixaram a RDA incapaz de fazer um uso pro-
a maioria dos trabalhadores da Alemanha dutivo de opiniões divergentes e de enfrentar
Oriental havia deixado de se identificar com os desafios impostos pelos novos desenvolvi-
o regime, fazendo com que qualquer tentativa mentos socioeconômicos. Embora as ameaças
de reforma superficial soasse como manobra externas citadas para justificar essas restri-
oportunista, em vez de um interesse genuíno ções passassem longe de ter sido inventadas,
em mudar as coisas para melhor. neste caso a cura acabou se revelando pior que

39
a doença. A censura e a repressão, concebidas comida suficiente para comer e acesso à educa-
ostensivamente como medidas temporárias até ção – algo que nenhuma sociedade capitalista
a consolidação e o pleno desenvolvimento do pode reivindicar hoje.
Estado dos trabalhadores, em última instância Ela também nos lembra que, nos 172 anos des-
acabaram por facilitar a alienação e a oposição de que Marx e Engels publicaram o Manifesto
desses mesmos trabalhadores em relação ao Esta- Comunista, o socialismo quase nunca chegou ao
do que pretendia ser seu. poder por meio da pura revolução dos trabalha-
A experiência da RDA não é algo que os socia- dores que os marxistas tendem a imaginar. A
listas deveriam tentar repetir. Não obstante, estratégia socialista requer uma disposição de
podemos olhar para muitas de suas realizações abertura para novas situações e possibilidades.
em educação, moradia pública, assistência infan- Muito frequentemente, será necessário compro-
til e relações trabalhistas como evidências de meter nossa visão. O Muro de Berlim nos mostra
que a sociedade não precisa ser conduzida pelo que esse tipo de comprometimento, no entanto,
interesse dos ricos. É possível garantir que todos só pode ir até certo ponto, sob o risco de acabar
tenham um lugar para morar, assistência médica, minando o próprio socialismo.
Capital
cultural
Para arrastar
margens violentas
CAPITAL CULTURAL
REDFLIX POR CAMILA CHAVES

Do que falo quando


falo de minha mãe

Doméstica, de Gabriel Mascaro, Que horas ela volta?,


de Anna Muylaert, e Benzinho, de Gustavo Pizzi,
apresentam retratos sensíveis sobre a situação das
trabalhadoras domésticas no Brasil.

¶ MINHA MÃE É CONTADORA DE HISTÓRIAS que não


são só suas. Contou que ainda criança fora apartada de
sua irmã gêmea e enviada ao sul do País com a sedutora
promessa de que iria estudar. Como forma de retribuir à
oferta, precisava cuidar das crianças e das tarefas da
grande casa dos que a receberiam. Desamparada num
tempo em que a erradicação do trabalho infantil
doméstico não era reivindicada, organizou os meios e
voltou para casa anos depois. Fugida. Parece um filme,
mas era a vida propriamente dita. Selecionei três
produções do cinema nacional que discutem questões
de gênero, raça e classe permeadas pelas relações de
trabalho doméstico. De alguma forma, elas materializam
nas telas histórias como as de minha mãe.

42
DOMÉSTICA
2012 ▶ DRAMA/FAMÍLIA ▶ 1H16M

Muitas trabalhadoras domésticas brasileiras poderiam


ter suas histórias confundidas com as de Vanuza, Dilma,
Maria, Helena, Flávia, Sérgio ou Lucimar, personagens da
vida real retratados no documentário de Gabriel Mas-
caro. Na proposta, sete adolescentes recebem câmeras
para filmar o cotidiano das empregadas que trabalham
em suas casas. Ao estabelecer o ponto de vista dos
jovens patrões como ponto de partida dessas jorna-
das, o documentário revela a delicada teia de relações
entre trabalhadoras e empregadores, que ora comporta
carinho e intimidade, ora ergue muros como expressão
de hierarquia e distanciamento. Nas histórias, há todo
tipo de local de trabalho: desde a mansão, com diversos
empregados e funções aparentemente bem delimitadas,
até a pequena casa de periferia, com paredes de tijolos
à vista, onde uma mulher contrata outra mulher para
cuidar de seus filhos e da casa enquanto cumpre sua jor-
nada de trabalho, também como empregada doméstica.
Todos os rostos e relatos de vida revelados ao lon-
go do filme confirmam o perfil e o lugar ocupado na
sociedade por esses trabalhadores no Brasil, país que
segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
possui a maior população de empregadas domésticas do
mundo. Esse número chegou a 6,3 milhões de pessoas,
de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua (Pnad Contínua), desse total, 97%
são mulheres. Nos últimos anos, com muitas lutas e
mobilizações, a categoria conquistou alguns direitos
históricos, como a aprovação da Proposta de Emenda
à Constituição nº 478/2010, a PEC das domésticas; da
Emenda Constitucional nº 72/2013; e da Lei Complemen-
tar nº 150/2015, que estabeleceu garantias como salário,
horas extras, férias remuneradas e registro em carteira.
Como no filme de Mascaro, esse tipo de trabalho
ainda é marcado por informalidade e precarização e,
assim como os seus personagens, é majoritariamente
ocupado por mulheres negras, de baixa escolaridade
e renda.

43
REDFLIX

QUE HORAS ELA VOLTA? Em Mulheres, raça e classe, Angela Davis fala sobre o
2015 ▶ DRAMA/COMÉDIA ▶ 1H54M legado da escravidão às mulheres negras e da histórica
negação de suas vidas privadas. “O enorme espaço que o
Certo dia recebi uma ligação emocionada de minha trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras repro-
mãe, que estudou até a oitava série, contando que a filha duz um padrão estabelecido durante os primeiros anos
de Val – personagem interpretada por Regina Casé no de escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham
filme Que horas ela volta? – iria entrar na universidade. todos os outros aspectos de sua existência ofuscados
Estava orgulhosa como se fosse uma conquista pessoal. pelo trabalho compulsório”, destaca, lembrando que
Na história de Anna Muylaert, a pernambucana Val se apenas ocasionalmente elas eram vistas como esposas,
muda sozinha para São Paulo a fim de trabalhar como mães ou até mesmo donas de casa.
empregada doméstica e buscar melhores condições de Muylaert constrói uma protagonista que, à primeira
vida para a filha, Jéssica. Anos depois, a filha telefona vista, parece não ter vida fora do trabalho: vive num
e diz que irá para a cidade prestar vestibular. De início, apertado quarto nos fundos de uma imensa casa e, prin-
os patrões de Val recebem a menina de braços abertos, cipalmente, dedicou parte de sua vida aos cuidados de
mas as diferenças culturais e de comportamento acabam um filho que não é o seu, enquanto não é reconhecida
deteriorando as relações estabelecidas no interior da como mãe por sua própria filha. Se associado ao momen-
casa. Como o jogo de xícaras pretas e brancas compradas to atual, Que horas ela volta? pode ser lido como uma
por Val para presentear sua patroa, as personagens e dura e divertida crítica a uma sociedade que, ao mesmo
as relações no filme são construídas por contraste e tempo que inclui empregadas domésticas na lista de
aproximação, visíveis na conhecida expressão “como serviços essenciais durante a pandemia de coronaví-
se fosse da família”, na qual o“como se fosse” revela rus, não reconhece parte significativa de vidas que são
aquilo que não é. grandes demais para caber num quarto de empregada.

44
BENZINHO INVISÍVEIS
2018 ▶ DRAMA ▶ 1H38M Anos mais tarde, minha mãe foi convidada à casa daquela
família para a qual trabalhou quando menina. Foi com
Infindáveis por sua própria natureza, as tarefas a esperança de um encontro bom. Porém, ao chegar, foi
domésticas não têm valor de troca e, portanto, não surpreendida com o fato de que aquele não era um con-
são valorizadas. Benzinho, filme de Gustavo Pizzi, abre vite para um café, mas sim para um dia de faxina. Ela
uma importante possibilidade de debate sobre esse foi embora de imediato.
tema. No drama, acompanhamos a trajetória de Irene Em meio ao peso da herança escravista e às contradi-
– personagem interpretada por Karine Teles –, uma ções desta sociedade, o emprego doméstico é diminuído,
mãe de família que precisa lidar com a partida de menosprezado e estigmatizado, ao mesmo tempo é uma
seu filho mais velho, Fernando, que vai tentar a vida precondição da produção capitalista, porque é por meio
como jogador de handball na Alemanha. Sob a trama dele que o capitalismo reproduz e mantém a força de
de aparência simples, vemos uma mulher engolida trabalho. Para mudar esse cenário, é necessário que novas
pela necessidade dos cuidados com as crianças, com instituições assumam boa parcela das obrigações que
o trabalho informal, com as expectativas do marido recaem sobre as mulheres da classe trabalhadora. Empre-
e com a vida da irmã que luta para se desvencilhar de gos em nível de igualdade salarial, pressão por serviços
um relacionamento abusivo e, por isso, lhe pede abrigo. sociais e benefícios trabalhistas ocupam o centro das
Angela Davis discute o trabalho doméstico como reivindicações sobre a socialização desse tipo de trabalho.
um produto dinâmico da história, apontando que, Buscar, no cinema nacional, personagens com as
antes do estabelecimento da propriedade privada, a mesmas condições de vida das mulheres que exercem
divisão sexual do trabalho era complementar e não trabalho doméstico de forma remunerada é um modo
hierárquica. Com a Revolução Industrial, a produção de dar luz a milhões de pessoas que dedicam a maior
econômica foi deslocada da casa para a fábrica, e o parte de suas horas a tarefas repetitivas, exaustivas,
trabalho doméstico desempenhado pelas mulheres invisíveis. No documentário Doméstica, conhecemos
passou por um desgaste. “Enquanto os bens produ- personagens reais e suas dolorosas trajetórias. Como
zidos em casa tinham valor principalmente porque os registros foram feitos por filhas e filhos de seus pró-
satisfaziam às necessidades básicas da família, a prios patrões, a narrativa pode constranger diante da
importância das mercadorias produzidas em fábricas ideia de que, talvez, ali não haja traço que aponte para
residia predominantemente em seu valor de troca – outras perspectivas de vida. Já em ficções como Que
em seu poder de satisfazer as demandas por lucro dos horas ela volta? e Benzinho, embarcamos nas histórias
empregadores”, afirma Davis. No filme de Pizzi, nos acompanhando o ponto de vista de fortes personagens
deparamos com uma personagem que não se dá conta femininas, mulheres que, em meio ao caos, se aliam a
da opressão vivida por força do trabalho doméstico, outras mulheres, descobrem seus desejos de mudança e
mas que, acima de tudo, deseja: construir uma casa, os reivindicam. Entre fugas e enfrentamentos, podemos
estudar e conseguir, em uma fábrica, um emprego encontrar a beleza em identificar, reconhecer e se emo-
que lhe permita ganhar seu próprio dinheiro e assim cionar com histórias de mulheres que lutam e desejam.
mudar o rumo de sua vida. É sobre isso que falo quando falo de minha mãe.

45
CAPITAL CULTURAL
POR OUTRO LADO POR ALLENDE RENCK

O bumerangue
da história

Compreender as propostas estéticas do modernismo


brasileiro nos possibilita tomar agência sobre a
nossa história e o que pode ser depois.

VINTE E DOIS É LOGO ALI


¶ Ao ler a obra máxima do escritor Ralph Ellison, O homem
invisível (1952), o crítico literário e professor do departamento
de literatura da Universidade de Columbia, Robert O’Meally,
nos propõe pensar a história como um bumerangue.
Para O’Meally, em Ellison, a história “não veio de Deus, mas
foi arremessada por mãos humanas: ela circula, ascende,
mergulha, revém e ataca. É um brinquedo esportivo, uma
arma e uma metáfora para ações autodestrutivas”.
Pensar hoje o acontecimento modernista brasileiro – na forma
da Semana de Arte Moderna de 1922 e seus desdobramentos – é,
de certo modo, avistar esse bumerangue da história em pleno
voo; é se posicionar de tal maneira a não só capturá-lo (por meio
do discurso crítico) mas também tomar uma posição sobre o
seu próximo lançamento. É justamente com isso em mente que
me proponho a refletir sobre esse marcante acontecimento
estético da história recente.
A Semana de Arte Moderna, que aconteceu entre os dias
11 e 18 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal da cidade de
São Paulo, é um evento incontornável quando se tem como
objetivo uma leitura crítica da recepção modernista no Brasil e,
a partir dessa recepção, a elaboração social que reverberou
desse mesmo movimento. Para poder entender como o
modernismo pervive no contemporâneo, primeiro há de se
observar os distintos fatores que estruturaram o modernismo
e a sua interpretação brasileira.

46
47
POR OUTRO LADO

UM ACONTECIMENTO TRAUMÁTICO
No contexto artístico-histórico brasileiro, a Semana de Arte
Moderna de 1922 pode ser pensada como um acontecimento
traumático. Esse trauma é constituído pela própria natureza do
evento proposto na semana. Fruto do entendimento de um certo
grupo de artistas e intelectuais brasileiros quanto ao caráter
ultrapassado das apresentações estéticas que os rodeavam, ela
carregava em si o signo da ruptura em sintonia com os eventos ao
redor do mundo que marcavam aquele princípio de século.
Em 1907 o cubismo se apresentava na Europa como proposta
vanguardista, em 1913, nos Estados Unidos, acontece a exposição
de arte moderna Armory Show, 1916 é o ano em que os dadaístas
de Zurique começam a promover seus encontros noturnos, 1917
data a revolução soviética, em 1918 tem início o Harlem
Renaissance, em 1924 o Manifesto do surrealismo é publicado, e
assim por diante. É em meio à essa traumática ruptura que o
poeta Oswald de Andrade viaja para a Europa e retorna ao Brasil
grávido de uma cobiçosa demanda por diferenciações estéticas
que culminaria na Semana de 1922.
A ambiência discursiva que fomentou a promoção da Semana
de Arte Moderna é importante porque faz com que possamos
compreender as disposições políticas que conversavam de
maneira íntima com esse evento. Afinal de contas, o trauma da
Semana não se limitou, de maneira alguma, aos sete dias de Uma arte que
fevereiro concentrados no Theatro Municipal de São Paulo.
A bem da verdade, a Semana de Arte Moderna em si não teve
integrasse o popular
um efeito grandioso em seu acontecimento: foram as suas ao erudito na música,
reverberações que de fato marcaram a história da arte no Brasil.
E isso ocorreu pois as propostas que se cristalizaram na Semana de
que rompesse
1922 – a proposta de uma arte que integrasse o popular ao erudito com formas clássicas
na música, que rompesse com formas clássicas e desativasse a
figuração como única forma pictórica na pintura, que valorizasse
e desativasse a
o espaçamento, a pausa e a transgressão métrica em poesia, entre figuração como
outras – sintonizavam de maneira aguda com uma certa
emergência política que preocupava o início do século XX.
única forma pictórica
Até ali o século já havia sido marcado pela Primeira Guerra na pintura, que
Mundial e o fim dessa guerra não tinha dissolvido as tensões
que a engatilharam. De fato, a destruição territorial e a crise
valorizasse o
econômica subsequentes à Grande Guerra fundamentaram espaçamento, a pausa
um certo tipo de insatisfação que, por sua vez, serviu de
combustível para que um discurso de ódio fosse propagado
e a transgressão
de maneira irrefreada pelo continente europeu e a partir dele métrica em poesia.
começasse a se espalhar.

48
O BUMERANGUE DA HISTÓRIA

É a essa atmosfera que as vanguardas artísticas parecem


querer responder. E é a partir dessa tentativa de elaborar um
posicionamento diante de uma ambiência política que tinha como
base o afastamento do outro que a Semana de Arte Moderna se
torna um acontecimento poético na história cultural brasileira.
Existia ali, naquele evento, uma proposição de, a partir do
ato poético, inclinar-se em direção ao outro. É isso que podemos
pensar, por exemplo, da ideia antropofágica oswaldiana, que
fomentava uma comunhão corporal; da sinfonia vernacular
proposta por Mário de Andrade em seus desvarios literários
das telas de Tarsila do Amaral que integravam na pintura uma
imaginação revolucionária ao romper com estéticas formalistas
predefinidas, e assim por diante.
É absolutamente importante compreender como a Semana
de 1922 se inseria na partícula singular de aceitação da diferença
no contexto social brasileiro de início do século para que
possamos fazer uma análise da forma como essas propostas
pervivem hoje e como, a partir delas, talvez possamos elaborar
o nosso presente.

49
POR OUTRO LADO

SOBRE MUROS E PONTES


Ao refletir sobre 1922 em 2020 penso ser inevitável traçar um
paralelo entre as emergências políticas que se enfrentavam por lá
e aquelas que hoje se apresentam. Em 2017, o filósofo Alain Badiou,
em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, afirmou observar no
cenário geopolítico mundial uma semelhança aguda entre o agora e
o que ele entendia como as forças geopolíticas que cristalizaram a
Primeira Guerra Mundial. A análise de Badiou sintoniza uma
ambiência política que demanda um mergulho no que havia,
historicamente, de estratégia para a desativação dessa problemática.
Se hoje pode-se pensar consonâncias políticas emergenciais com
o período que deu início ao que o historiador Eric Hobsbawm
chamou de Guerra mundial dos 31 anos, então observar o movimento
histórico que se desdobrou de lá até aqui é uma forma de se
preparar para lidar melhor com essas mesmas emergências.
E de fato é possível afirmar que a crise política que hoje toma
forma tem simultaneamente como sua raiz e seu objetivo a
construção de uma relação de falta, uma falta estética que de certa
maneira o próprio Alain Badiou nos ajuda a apontar. Em seu livro
Em busca do real perdido (2017), o autor indica a raiz da crise política
que vivemos na direção da construção de uma falsa imagem de
completude ideológica que se deu com o fim da União Soviética.
A partir do momento que o discurso neoliberal e a ideia de fim
da história se propagaram, a tensão estética e a mobilidade
político-discursiva que a, nas palavras de Badiou, hipótese
comunista propiciava foi propositalmente apagada do debate
público: criou-se um muro ideológico que tinha em sua fundação
os mitos neoliberais do individualismo, da meritocracia, do
american way of life etc. Esse muro serve de pedra angular da crise
política contemporânea, na medida em que ele é replicado como
ideologia hegemônica entre os corpos que vivem sob o regime
propagandista do capitalismo. É esse mesmo muro que faz
ressurgir aquela construção do outro como inimigo e da diferença
como nociva, é esse mesmo muro que impede o laço, impede a
comunidade. E foi contra esse muro que a Semana de Arte
Moderna de 1922 se levantou.
Se pensarmos a história como um bumerangue e levarmos em
consideração as palavras de Robert O’Meally, aceitamos então que
a história “circula, ascende, mergulha, revém e ataca” e
entendemos que a forma como nos relacionamos com a história é
aquilo que determina como ela se movimenta: ao lançar um
bumerangue é necessário prestar atenção para que ele não nos
atinja em seu retorno.

50
O BUMERANGUE DA HISTÓRIA

MONUMENTO À BARBÁRIE
Atentar às propostas estéticas da Semana de Arte Moderna é
perceber o movimento do bumerangue, é compreender que, se
utilizarmos corretamente esse instrumento, podemos derrubar
os muros subjetivos que foram levantados pela ideologia
hegemônica para colonizar os inconscientes. Se em 1922 Oswald
de Andrade podia propor uma comunhão corporal que promovia
a metamorfose, Tarsila do Amaral quebrar o conservadorismo
das formas, Mário de Andrade promover uma revolução
vernacular na literatura e os modernistas de uma maneira geral
podiam integrar o popular e o corporal na proposta artística, a
nós hoje cabe reinserir suas apaixonadas propostas nesse lugar

A forma como social do corpo.


Essa leitura da história nos dá a potência para pensá-la
nos relacionamos como aquilo que retorna, aquilo que se movimenta de maneira

com a história quase-previsível, mas nunca certamente. A arte, argumenta


Robert O’Meally, se apresenta como uma demanda absoluta
é aquilo que para lidar com essa movimentação errática da história, na

determina como medida em que ela possui uma potência infinita de


desenvolvimento e pode mudar a história afirmando as
ela se movimenta: existências singulares dos corpos que vivem, que lutam,

ao lançar um que se relacionam e que sentem. Para o escritor, a arte é um


ato simbólico que nos “oferece ferramentas para o viver”.
bumerangue é Dessa forma, é nossa tarefa como sujeitos críticos

necessário prestar contemporâneos reinserirmos à ordem do dia propostas


estéticas que outrora marcaram a história brasileira,
atenção para que reinterpretá-las e reelaborá-las. O acontecimento modernista

ele não nos atinja e a Semana de Arte Moderna de 1922 no Brasil não acabaram,
mas continuam se movimentando eternamente através do
em seu retorno. bumerangue da história. A todo o momento, fragmentos
desejosos desse acontecimento orbitam o discurso crítico e
podem ser restaurados como estratégia crítica.
Se existe algo que a Semana de 1922 tinha como intuito
colocar em cena é que a existência unitária e absoluta é uma
ilusão alienada. O mundo é feito de fragmentos e é a partir deles
e de como os elaboramos que algo pode ser construído. Toda
diferença é bem-vinda e o erro é apenas uma perspectiva. De
certa forma podemos dizer que os modernistas entenderam
muito bem o que o filósofo Walter Benjamin viria a dizer em
sua sétima tese sobre o conceito de história, quando mencionou
que todo monumento à cultura é simultaneamente um
monumento à barbárie e afirmou que a tarefa do materialista
histórico é escovar a história a contrapelo. Agora resta nós.

51
POR ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA

Reforçando
muros, sabotando
o desenvolvimento
No Brasil há muros reais que cercam a
propriedade privada, e muros metafóricos, no
campo do discurso e da política socioeconômica,
criados para manter desigualdades bastante
palpáveis. Um desses muros é a proposta
fiscalista do Banco Mundial para a Educação.

52
¶ UM DOS TRAÇOS MAIS DEFINIDORES DO BRASIL é a desi-
gualdade. Sua origem está na nossa história, com a formação de
um país baseado na exploração de negros, indígenas, mulheres,
pobres. Já os outros, a minoria, do alto de suas fortalezas (reais ou
metafóricas) encontram maneiras de se manter sempre no poder,
fazer transições negociadas e segurar as rédeas dos processos de
transformação social. Assim foi com o fim da escravidão, em que
forças políticas ligadas aos grandes proprietários e ao status quo se
alternaram entre se opor à abolição e buscar que a passagem para
o trabalho livre ocorresse da forma mais lenta e negociada pos-
sível, sem reparação aos ex-escravizados. Assim foi também com
o fim da Ditadura Militar, cujo legado maléfico de autoritarismo,
corrupção e desigualdade varremos para debaixo do tapete. No
Brasil, a desigualdade é um projeto deliberado, a fim de preservar
a concentração do poder econômico e social.
Se a desigualdade nos distingue de outros países, nossos grandio-
sos muros, que criam espaços exclusivos e excludentes, também. É
só observar um bairro de luxo em qualquer grande cidade brasileira.
Muros são formas de proteger a propriedade de alguns. No Brasil
é impensável questionar a propriedade privada, tida como direito
absoluto, mesmo que a lei afirme que ela deve cumprir uma função
social. Muros são “necessários” para manter a “normalidade” de
uma sociedade tão desigual. Muros reais, físicos, mas também
metafóricos, no campo do discurso, igualmente violentos, com
os quais estamos às voltas como brasileiros.

53
ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA

DESIGUALDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL


Com frequência aponta-se que a saída para a desigualdade, essa
que leva a sociedade brasileira a erguer muros, seria a educação.
De fato, a educação é um grande marcador de desigualdade: ter
acesso à educação em geral significa aumento de renda. Mas
no Brasil este é um marcador especialmente importante. Por
exemplo, apesar de toda a expansão e democratização em ter-
mos de raça/cor, renda e região no início do século XXI, ainda
hoje, o acesso à educação superior no Brasil se mantém como
um instrumento de segregação. Segundo o relatório Education
at a Glance 2018 da Organização para Cooperação e Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE), em uma comparação dos diferenciais
de salário de trabalhadores com ensino médio completo e com
educação superior em países da OCDE e parceiros (Brasil, Costa
Rica e Lituânia), o Brasil é o país mais desigual: aqui o salário
de um trabalhador com educação superior é 2,5 vezes o salário
de um trabalhador com ensino médio completo. A média da
OCDE é de 1,5 vezes.
Por um lado, o acesso à educação tem impactos na desigual-
dade, mas a desigualdade prévia também tem forte impacto no
acesso à educação. No Brasil, como afirma o professor Reginaldo
Moraes em “Expansão do ensino superior: o que isso nos ensina
sobre o vínculo entre as relações sociais e as políticas de educa-
ção”, como a educação e os diplomas são essenciais para definir
qualidade de vida, prestígio e poder, a ampliação do acesso pode
gerar corrosão das relações sociais tradicionais, dos status e das
hierarquias. Em países com diferenças sociais menos marcadas,
esse acesso pode ser menos crucial.
Por outro lado, é um problema pensar a educação como solução
para todos os problemas da desigualdade e, por vezes, enxergá-la
como escolaridade pura e simplesmente. Existem muitos douto-
res sem consciência social, sem consciência de seus privilégios.
Prova disso é que no Brasil as mulheres já são mais escolarizadas
que os homens, mas esse fato não impede que ainda tenhamos
salários mais baixos e que a diferença salarial entre gêneros
aumente proporcionalmente com a escolaridade. Infelizmente,
a desigualdade no país, em suas diversas formas, não diminuirá
somente com o aumento da escolaridade de grupos vulneráveis.
O problema é mais complexo. Antes de tudo, uma educação que
consiga inverter esse quadro de desigualdade no Brasil precisa ser
libertadora. “O que pretende a revolução autêntica é transformar
a realidade que propicia este estado de coisas, desumanizante
dos homens,” já dizia Paulo Freire em Pedagogia do oprimido.

54
REFORÇANDO MUROS, SABOTANDO O DESENVOLVIMENTO

No Brasil é
impensável
questionar a
propriedade privada, Não é possível justificar toda a estrutura de desigualdade no
tida como direito Brasil apenas através do sistema educacional, dizer que os traba-
absoluto, mesmo lhadores não conseguem emprego por falta de “empregabilidade”,
ou que a produtividade nacional é baixa por falta de “capital
que a lei afirme que humano” . Os engenheiros e advogados que hoje trabalham como
ela deve cumprir motoristas de aplicativos estão aí para provar que não há solu-
ções fáceis: a educação pública, laica e de qualidade precisa ser
uma função social. pensada dentro de um plano de reestruturação produtiva verde
Muros são e de redução das desigualdades múltiplas, gestadas ao longo da
história do Brasil.
“necessários”
para manter a COMO NÃO GARANTIR UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE
“normalidade” de É lugar-comum dizer que é preciso gastar em educação? Nem tanto.
uma sociedade A recente disputa na discussão do novo Fundeb para retirada do
Custo Aluno-Qualidade (CAQ) mostra que não. Neste e em outros
tão desigual. momentos, muitos atores importantes no debate público brasileiro
Muros reais, físicos, defenderam e defendem corte no orçamento para a educação.
Na batalha pelo orçamento público para a educação, há um ator
mas também fundamental que precisa ser lembrado: o Banco Mundial, velho
metafóricos. conhecido por seu apoio a políticas de ajuste fiscal. O Banco é um
antigo defensor do que se pode chamar de “fiscalismo”, ou seja, a
prioridade da política econômica é “equacionar” a questão fiscal
(reduzir a dívida pública), o que quase sempre é feito com corte
de gastos (em áreas sociais). Esse raciocínio, contudo, desconsi-
dera que realizar cortes tem impacto na atividade econômica, no
crescimento econômico e na arrecadação de impostos, podendo
gerar uma ampliação da relação dívida/PIB, o que coloca o país
em um ciclo vicioso no qual, para “fechar as contas”, é preciso
cortar cada vez mais. Está sempre na mesa a possibilidade de
realizar o “ajuste” com aumento da carga tributária, mas com
frequência argumenta-se que esse tipo de medida angaria mais
oposição. Bom, deixando de lado esse “porém”, realizando cortes
e supondo “sanadas” as contas públicas, a confiança do setor
privado voltaria e aí sim seria possível aumentar o gasto social.
É a repetição do “esperar o bolo crescer” de Delfim Netto durante
a Ditadura Militar que sempre deixa os gastos sociais para mais
tarde. Essa lógica se repete não só em documentos do Banco, mas
em documentos que foram lançados pelo MDB, “Uma ponte para
o futuro” (em outubro de 2015) e “A travessia social” (em abril de
2016), e em editoriais de grandes jornais brasileiros, mesmo em
meio à pandemia da Covid-19. É uma ideia transmitida ao público
por meio de comparações entre o orçamento público e o domés-

55
ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA

“O que pretende
a revolução
autêntica é
transformar a
tico, refutando a possibilidade de aumento de dívida pública em
períodos de crise ou desconsiderando que o orçamento público realidade que
é diferente do doméstico: famílias não podem, por exemplo, emi- propicia este
tir moeda ou controlar sua arrecadação através da definição do
sistema tributário. estado de coisas,
O esquema estilizado descreve com fidelidade o que ocorre no desumanizante
Brasil desde 2015. Com a adoção da austeridade retroalimentando
a adoção da austeridade, há sempre alguém por aí afirmando que dos homens,”
não decolamos ainda porque não fizemos determinada reforma já dizia Paulo Freire
liberalizante, sob pressão de grandes grupos econômicos e dos
meios de comunicação de massa. Tanto é que, por mais que Jair em Pedagogia
Bolsonaro seja criticado, a política econômica de Paulo Guedes do oprimido.
não sofre críticas dos grandes meios de comunicação. No entanto,
a grande maioria da população foi prejudicada pela reestrutu-
ração fiscal no país, em especial com a Emenda Constitucional
(EC) 95/2016, que constitucionalizou o corte do gasto social (sem
mexer no desigual sistema tributário brasileiro). Os efeitos da
austeridade foram e são distribuídos na sociedade brasileira de
forma injusta.
De volta ao Banco Mundial: após a destituição de Dilma Rousseff,
a instituição financeira publicou em 2017 um documento de apoio
à austeridade chamado “Um ajuste justo: análise da eficiência e
equidade do gasto público no Brasil”, com sugestões específicas
para o campo da educação. Há muitos estudos e relatórios do
Banco sobre a educação no Brasil, porém este é um dos princi-
pais por sua conexão direta com a política econômica e por sua
influência no debate público mais recente no país.
O documento se propõe a auxiliar o governo brasileiro a cum-
prir a EC 95/2016 e tornar os gastos brasileiros mais eficientes,
cortando os “gastos que privilegiam os ricos para distribuir para
os mais pobres”. Ele aponta a necessidade de controlar o aumento
e o engessamento do gasto, que “impede o crescimento das des-
pesas discricionárias e do investimento no país”. Em resumo, o
documento propunha, à época, economia de pelo menos 7% do
PIB com cortes até 2026 nas seguintes áreas: “1,8% advindos da
reforma da previdência; 0,9% do PIB em reduções na massa sala-
rial dos servidores públicos; 0,2% do PIB em ganhos de eficiência
em aquisições públicas; 1,3% do PIB resultantes da racionalização
dos programas de assistência social e de apoio ao mercado do
trabalho; 2% do PIB em reduções nos créditos subsidiados e nos
gastos tributários de apoio às empresas; 0,3% do PIB por meio da
eliminação de créditos tributários para a saúde; 0,5% do PIB em
reformas no financiamento do ensino superior; além de 1,3% do

56
REFORÇANDO MUROS, SABOTANDO O DESENVOLVIMENTO

PIB resultante de reformas para melhorar a eficiência nos seto-


res de saúde e educação”. Na prática, o Banco Mundial propõe
cortar gastos sociais supostamente ruins, para assim melhorar
a confiança, aumentar investimentos e retomar o crescimento
econômico, para enfim... ampliar os gastos sociais! Nessa lógica,
a política social, em saúde e educação, encontra-se está subor-
dinada ao fiscalismo.
Afirma-se ainda que ajustes fiscais ocorridos anteriormente
prejudicaram os mais pobres de forma desproporcional, mas que
agora seria diferente: o documento apresentado tentaria cortar
gastos de forma mais justa. Ao mesmo tempo, defende-se a des-
vinculação constitucional dos mínimos de gasto para saúde e
educação, pois a pressão fiscal teria sua origem na indexação de
grande parte das despesas primárias federais ao PIB, às receitas
ou ao salário mínimo, bem como na vinculação generalizada
das receitas e nos níveis mínimos de gastos obrigatórios. Difícil
entender como o corte dos gastos não prejudicaria os trabalha-
dores mais pobres, que justamente dependem de saúde e educa-
ção públicas. Segundo o documento, haveria espaço para cortes,
pois os gastos nos últimos anos antes da vigência da EC 95/2016
nessas áreas ficaram acima do gasto mínimo. Ou seja, propõe
abertamente a redução desses gastos tão essenciais, agora sem
a trava constitucional.
Segundo o Banco Mundial, o “rápido crescimento” das despesas
primárias foi o motivador estrutural da deterioração fiscal e, “sem
reformas, a expansão dos gastos primários resultará em déficit
estrutural ainda maior no futuro. Para reverter essa tendência, é
necessário um ajuste fiscal de cerca de 5% do PIB para atingir um
saldo primário de cerca de 2% do PIB, capaz de estabilizar a dívida”.
A política fiscal brasileira, conforme o documento, seria pouco
eficiente na redução da desigualdade e da pobreza. No entanto,
como mostram a Cepal (“Panorama Fiscal de América Latina y el
Caribe 2015: Dilemas y espacios de políticas”), e os pesquisadores
Fernando Gaiger Silveira e Luana Passos (“Justiça fiscal no Brasil:
obstáculos e possibilidades”), na América Latina e no Brasil a
política fiscal beneficia os grupos de renda mais baixa com os
gastos públicos em saúde e educação, seguido pelos gastos com
aposentadorias e pensões. Inclusive, mais à frente no documento
do Banco, lê-se que o problema da desigualdade estaria mais con-
centrado no sistema tributário que, por ser regressivo, acaba por
neutralizar os efeitos positivos das transferências aos mais pobres.
Tratando especificamente de educação, o documento tem suges-
tões concretas e que muito influenciaram a discussão pública.

57
ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA

É preciso (re)discutir
o orçamento público
no Brasil, o que
não deve ser tarefa
Porém, nenhum dos argumentos apresentados é propriamente
novo. O texto repete lugares-comuns como “gastos com as uni- somente dos
versidades federais são desperdiçados”, pois os custos de um “especialistas”
estudante no setor privado “são mais baixos” (ignorando que
as universidades públicas também são o locus da pesquisa e da escolhidos pelos
extensão, não só do ensino) e que o “valor agregado” da universi- grandes meios
dade pública medida pelo Enade seria muito semelhante ao das
instituições privadas, porém a um “custo” mais alto. de comunicação
Segundo o documento, haveria um alto nível de ineficiência na para repetir a ladainha
educação superior pública, de tal forma que os mesmos resultados
poderiam ser atingidos com cerca de 17% menos de recursos. Afirma- em apoio ao Banco
-se que “universidades e institutos federais poderiam economizar Mundial. Opinar
aproximadamente R$ 10,5 bilhões por ano e ainda assim adicionar
o mesmo valor que adicionam atualmente”. Universidades esta- sobre o orçamento
duais poderiam economizar cerca de R$ 2,7 bilhões por ano. Mas público deve ser
a proposta é limitar o financiamento a cada universidade com
base no número de estudantes, o que geraria uma economia de algo acessível a
aproximadamente 0,3% do PIB. todas e todos.
Estaria o Banco ciente do já grave quadro de desfinanciamento
das instituições públicas de educação superior? De que ano após
ano pesquisadores brilhantes já formados deixam o país em
busca de valorização? E que, mesmo assim, muitas instituições
tiveram/ têm papel-chave no combate à pandemia de Covid-19?
Além disso, reafirma-se no documento a necessidade de cobrar
algum tipo de taxa dos estudantes, pois eles seriam a elite: apon-
ta-se que mais de 65% dos estudantes pertence aos 40% mais ricos
da população em 2014. Porém, a metodologia do estudo confunde
Instituições Federais de Ensino (categoria mais ampla) com Uni-
versidades Federais (contida na primeira) e se baseia somente em
dados da juventude (18 a 24 anos), sendo que os jovens que cursam
graduação tendem a ter renda mais alta que os estudantes de ensi-
no superior em geral. Além disso, o recorte de 40% da população
é demasiado amplo, pois os 40% mais ricos no Brasil, em 2015,
representavam indivíduos com renda domiciliar per capita acima
de um salário mínimo, o que claramente não caracteriza uma elite.
Há de se ponderar também que o quadro da educação superior
mudou muito desde o início do século XXI e, em 2015, dois terços
dos estudantes de graduação no Brasil possuíam renda domiciliar
per capita de até dois salários mínimos.
O Banco Mundial sugere, então, que o Brasil passe a cobrar pelo
ensino em universidades públicas, citando o modelo do Fies das
privadas: “não existe um motivo claro que impeça a adoção do
mesmo modelo para as universidades públicas. A extensão do Fies

58
REFORÇANDO MUROS, SABOTANDO O DESENVOLVIMENTO

às universidades federais poderia ser combinada ao fornecimento moldes, não prejudicarão novamente os
de bolsas de estudo gratuitas a estudantes dos 40% mais pobres da mais vulneráveis?
população, por meio da expansão do programa Prouni”. Aparente- Quanto à proteção social, o conceito
mente, a proposta é criar um “Prouni” das instituições públicas. Ao “pobreza” passou a assumir centralidade
invés de pleitear maior democratização do acesso às instituições nas formulações do Banco Mundial des-
públicas, a solução é, claro, cobrar. Segundo o documento “essas de o início dos anos 1990. Priorizar os
reformas juntamente melhorariam a equidade e economizariam “pobres” como alvo de políticas socais
pelo menos 0,5% do PIB do orçamento federal”. O que opinariam implica o deslocamento da noção uni-
universitários chilenos ou estadunidenses atolados em dívidas versalizada de direito para a focaliza-
estudantis? Ou mesmo nossos egressos que têm dívidas com o Fies? ção, levando à supressão da cidadania
Em nome de supostamente combater desigualdades causadas social, em sua ideia e realidade. Uma
pela política social e pela educação, com formulações equivocadas das políticas indicadas para a redução
sobre a desigualdade e a educação no Brasil, a proposta do Banco da pobreza seria a ampliação do “capital
Mundial é transformar tudo para manter tudo igual: fazer reformas humano” ou da “empregabilidade”, para
que cortam o gasto em educação a fim de preservar (na verdade, que o indivíduo pobre e excluído possa
ampliar) as desigualdades. Ou é possível garantir educação de competir com os demais no mercado,
qualidade sem financiamento adequado? voltando à importância da educação
segundo a visão do Banco.
Para a questão urbana, Pedro Fiori
REFORÇANDO MUROS, SABOTANDO Arantes em “O ajuste urbano: as políti-
O DESENVOLVIMENTO cas do Banco Mundial e do BID para as
O Banco Mundial tem importante papel na expansão do setor cidades” mostra como o “ajuste urba-
privado de provisão de direitos sociais, em especial na educação. no” se torna a tônica da política social
Assim como o Banco internalizou interesses da política externa do Banco Mundial para as cidades dos
estadunidense, no Brasil houve uma internalização das propostas países do Sul Global a partir dos anos
da instituição financeira na política educacional. Hoje, tanto por 1980-90, levando a uma urbanização de
interesses da elite brasileira quanto pela formação dos quadros baixos padrões. Assim, a qualidade do
que controlam a política institucional, a política econômica e a ambiente construído na América Latina
política educacional, a agenda do fiscalismo floresce. é nitidamente inferior, se comparada
Essa simbiose de agendas interna e externa pode ser vista na à dos países centrais. Enquanto isso,
política social brasileira subordinada ao fiscalismo, com maior o Banco Mundial passa a afirmar que
ênfase desde 2015. Mas não só na educação: na saúde, na proteção o “planeta de favelas” não resultou da
social, na questão urbana, a atuação do Banco Mundial tem sido globalização e das políticas de ajuste,
no sentido de promover o fiscalismo a privatização, a focalização mas de “má governança”.
da política pública (em oposição à universalização), mesmo que à Assim, na política social como um
custa do bem-estar social. Por exemplo, em um relatório do Banco todo, o Banco Mundial pressiona por
(“Relatório sobre o desenvolvimento mundial 1993: investindo na maior focalização, privatização, rebaixa
saúde”) há uma menção a que políticas de ajuste macroeconômi- dos padrões mínimos de sociabilidade
co em geral levam a uma piora dos índices de desenvolvimento e desconsidera os efeitos do próprio sis-
humano. Esse argumento está presente também no próprio “Um tema em ampliar desigualdades. Propõe
ajuste justo”, lançado pelo Banco 24 anos depois: afirma-se que uma política social “mínima”, que “cai-
ajustes fiscais ocorridos anteriormente prejudicaram mais os ba” nos objetivos de ajuste fiscal, exa-
mais pobres. Por que acreditar que os ajustes atuais, nos mesmos tamente como fez ao auxiliar o gover-

59
ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA

no Temer nos cortes na política social tão social tem efeitos positivos no curto e no longo prazo, ao
em 2017. Não se parte do objetivo de impactar o consumo, o bem-estar, a produtividade, mas, além
desenvolvimento, do gasto necessário de tudo, a questão social é um direito. Assim, a educação está
para alcançar um patamar definido pela além do campo da economia e certamente muito além de uma
sociedade, mas sim de uma visão limi- visão fiscalista.
tada de política social, que nem sequer Sem ampliar o gasto em política social, em especial na educação,
considera a perspectiva do direito social. não é possível derrubar os muros. É preciso (re)discutir o orça-
Não à toa foi acolhido no Banco mento público no Brasil, o que não deve ser tarefa somente dos
Mundial o ex-ministro da educação “especialistas” escolhidos pelos grandes meios de comunicação
Abraham Weintraub, que entre outras para repetir a ladainha em apoio ao Banco Mundial. Opinar sobre
barbaridades afirmou em reunião com o orçamento público deve ser algo acessível a todas e todos.
senadores que no contexto da pan- Disfarçadas de novas, modernas, as ideias apregoadas pela ideo-
demia (sem aulas presenciais e com logia fiscalista são as mesmas de sempre, que privilegiam somente
estudantes mais pobres prejudicados), a elite e mantém privilégios, segmentações, desigualdades. Assim
o Enem não seria adiado, pois “o Enem foi ao longo de toda a história brasileira até hoje: cortar dos pobres
não foi feito para corrigir injustiças”. e transformar direitos em mercadorias é o que sempre foi feito
Infelizmente é preciso ainda defen- por aqui. Para derrubar os muros, para que eles percam a razão
der o óbvio: o investimento na ques- de ser, é preciso derrubar tais discursos e práticas.
Quer
que eu
desenhe?

Não existe revolução


de autoCAD
QUER QUE EU DESENHE? INFOGRÁFICO
DESIGUAL E COMBINADO POR SUZANE JARDIM RODOLFO ALMEIDA

Do lado
de dentro

As últimas décadas de uma


democracia encarcerada no Brasil.

¶ A DITADURA MILITAR BRASILEIRA terminou em 1985, de direitos intrínsecos ao cárcere. O cerne da lógica
deixando a esperança de liberdade no ar – uma liberdade que tornou invisível a discussão entre os intelectuais
oficializada e institucionalizada pela Constituição de da democracia liberal no final do século XVIII se repete
1988 – a Constituição Cidadã. O fim da repressão oficial nas democracias neoliberais e cá estamos imersos no
chegou, e os anos seguintes trouxeram uma nova repres- encarceramento em massa, e nem sequer temos a pos-
são que se manteve aplaudida, financiada e reclamada sibilidade de conhecer o tamanho do problema.
pela maior parte da população e das forças políticas, Em fevereiro de 2020, as fontes disponíveis traziam
incluindo as progressistas. números diferentes sobre a quantidade de pessoas pri-
Bernard Harcourt, em The invisibility of the Prison in vadas de liberdade, a análise de presos provisórios ao
Democratic Theory: A Problem of “Virtual Democracy”, longo dos anos usa as mesmas fontes de antes, mas apre-
percebe o encarceramento como invisível desde o sur- sentam números que não se encaixam e alguns dados
gimento da teoria democrática estadunidense. Para o demográficos, como raça e escolaridade, chegam até nós
autor, essa invisibilidade se justifica, entre outras coisas, com silêncios que muito dizem. Com uma população
pela estratégia de conquista política focada no traba- cada vez maior e unidades prisionais sem interesse,
lho com os respeitáveis e morais, não interessando aos preparo e metodologia diante da lotação, o estudo dos
movimentos sociais nem sequer a representação dos dados sobre encarceramento tem diversas discrepâncias
presos, dada a noção de “imoralidade” do crime. O fato e omissões. As informações sobre a parcela sem direito à
da prisão ter impacto e peso desproporcional entre cidadania e liberdade na democracia não são confiáveis,
os negros e as classes menos favorecidas economica- se mostram confusas e são facilmente convertidas em
mente também foi visto por Harcourt como elemento fontes de privação de direitos. Não há como analisar o
determinante no desinteresse dos grandes teóricos da que não conhecemos, não há como garantir cidadania,
democracia liberal pela temática – por não afetar o saúde e direitos a quem não está na contabilidade de
poder e os grupos dominantes, não parecia importante dados, não há como garantir a vida de quem não existe
estudar e denunciar a contradição de se planejar uma oficialmente. Permanecem cercados, “imorais”, os silen-
sociedade democrática unida às retiradas e violações ciados da nova democracia.

62
Expansão Banco Nacional de Monitoramento de

da malha
Prisões do Conselho Nacional de Justiça

862 mil
carcerária Infopen/Depen

773 mil
Monitor da Violência - Nev-USP/
Fórum Brasileiro de Segurança Pública

756 mil

Raça/cor
da população
privada de 657,8 mil
Presos para quem
liberdade há informação
de raça

438,7 mil
Pretos e pardos

Incidência de
tuberculose

Segundo o
Ministério da
Saúde, em 2018,
40 casos 140 casos
para cada dez
casos de
tuberculose
confirmados, um
ocorreu em a cada 100 mil a cada 100 mil
penitenciárias.
pessoas pessoas

População
População privada
brasileira de liberdade
DESIGUAL E COMBINADO

Evolução da população Desproporção


privada de liberdade no Brasil em crescimento
1985 — 2019 Desde o final formal do período
ditatorial, a população privada de
liberdade no Brasil se multiplicou
por mais de 10 vezes
Em 1990, 1 a cada 1.666
brasileiros estava preso

Mulheres
encarceradas
100% Das 38,4 mil mulheres privadas de liberdade em 2017...

60% 64% 66%


51%
38% Estudaram até no
máximo o ensino Estavam Eram jovens
Eram presas fundamental encarceradas por Eram abaixo dos
provisórias incompleto tráfico de drogas negras 34 anos
DO LADO DE DENTRO

População privada População


de liberdade brasileira

de 69,9 mil de 135 mi Em junho de 2019, um a cada


292 brasileiros estava preso

+ 55,3%
+9

para 210 mil


80
,5
%

para 755,3 mil

65
QUER QUE EU DESENHE? INFOGRÁFICO
DESIGUAL E COMBINADO POR HUGO GUSMÃO RODOLFO ALMEIDA

Cidade de extremos

A maior metrópole do país é exemplo de


como o capitalismo divide nossas cidades.

¶ QUALQUER UM QUE JÁ tenha cru- dos lançamentos imobiliários em São


zado de transporte público a maior Paulos, a disparidade é ainda maior
cidade brasileira saberá reconhecer nos extremos da cidade, alguns dis-
que o verdadeiro título que São Paulo tritos como Marsilac e Parelheiros
merece é de capital das desigualda- no extremo Sul e no Itaim Paulista
des. A arquitetura, infraestrutura e e Jardim Helena do extremo Leste
condições de moradia da cidade são não tiveram nenhum lançamento
diametralmente opostas a depender imobiliário durante o ano inteiro
do bairro. de 2018. A prefeitura de São Paulo é
A região central e a zona oeste quem autoriza e fiscaliza os lança-
concentram a maior quantidade de mentos imobiliários e mesmo assim
lançamentos imobiliários anualmen- ela depende de uma empresa externa
te e tem os maiores valores por m2 para o fornecimento dos dados.
quadrado da cidade. Alguns distritos A ganância capitalista, a falta de
como Moema e Itaim Bibi, conheci- políticas públicas de urbanização e
dos por empreendimentos de luxo e moradia, são as responsáveis pelos
condomínios fechados que se pare- enormes muros que são erguidos
cem com verdadeiras cidades mura- anualmente nos bairros ricos. A
das, acumulam valores em vendas especulação imobiliária é quem
superiores a R$1 bilhão. Já em alguns leva o trabalhador paulistano aos
distritos da zona leste, em bairros extremos da cidade, sendo obriga-
marcados por pequenos empreendi- do a enfrentar horas de transporte
mentos populares e moradias auto- público para chegar aos locais de
construídas, as vendas não passam trabalho. Só nos resta imaginar e
de R$200 milhões. lutar para que nossas cidades, pré-
Segundo a Empresa Brasileira de dios, casas e bairros sejam erguidos
Estudo de Patrimônio - EMBRAPESP , para atender às demandas sociais de
que desde 1977 coleta dados mensais seu povo.

66
Tremembé
Anhanguera

Jd. Helena

Santana
Perdizes
Pinheiros Itaim Paulista
Itaquera
Itaim Bibi Tatuapé
Morumbi

Raposo
Tavares Cd. Tiradentes

Campo
Limpo Santo Bela Vista Iguatemi
Amaro São Rafael
Vila Mariana
Capão
Redondo Moema

Jd. Ângela

Cd. Dutra
Valor médio do m²
dos lançamentos residenciais
verticais em São Paulo em 2018

R$ 6.158 — R$ 9.802
Grajaú R$ 3.991 — R$ 6.158
R$ 2.939 — R$ 3.991
Parelheiros R$ 212 — R$ 2.939
Sem lançamentos
Marsilac Favelas, cortiços e
loteamentos irregulares

FONTE: HABITASAMPA, GEOSAMPA E EMBRAPESP.

67
DESIGUAL E COMBINADO

Tremembé
Anhanguera

Jd. Helena

Santana
Perdizes
Pinheiros Itaim Paulista
Itaquera
Itaim Bibi Tatuapé

Raposo
Tavares Cd. Tiradentes

Campo
Limpo Santo Iguatemi
Amaro São Rafael
Vila Mariana
Capão
Redondo Moema

Jd. Ângela

Cd. Dutra
Nº de lançamentos
residenciais verticais
em São Paulo em 2018

10 — 15
Grajaú
7 — 10
4—7
Parelheiros
1—4
Sem lançamentos
Marsilac Favelas, cortiços e
loteamentos irregulares

FONTE: HABITASAMPA, GEOSAMPA E EMBRAPESP.

68
CIDADE DE EXTREMOS

Tremembé
Anhanguera

Jd. Helena

Santana
Perdizes
Pinheiros Itaim Paulista
Itaquera
Itaim Bibi Tatuapé
Morumbi

Raposo
Tavares Cd. Tiradentes

Campo
Limpo Santo Iguatemi
Amaro São Rafael
Vila Mariana
Capão
Redondo Moema

Jd. Ângela

Cd. Dutra
Valor de vendas
total dos lançamentos residenciais
verticais em São Paulo em 2018

R$ 1 bilhão — R$ 1,8 bilhão


Grajaú
R$ 504 mi — R$ 1 bilhão
R$ 200 mi — R$ 504 mi
Parelheiros
R$ 1 — R$ 200 mi
Sem lançamentos
Marsilac Favelas, cortiços e
loteamentos irregulares

FONTE: HABITASAMPA, GEOSAMPA E EMBRAPESP.

69
QUER QUE EU DESENHE?
LINHA DO TEMPO POR CAMILA GALETTI

Entre afeto
e política

Quais são os laços que unem política e


afeto dentro do galopante crescimento
da população evangélica no Brasil.

¶ O PROTAGONISMO dos evangéli- cas pela Igualdade de Gênero, Movi-


cos na arena política brasileira tem mento Negro Evangélico e Rede de
sido um fenômeno em evidência nas Mulheres Negras Evangélicas são
últimas décadas, e podemos dizer que alguns exemplos de iniciativas
está atrelado à ascensão da extrema que lutam para a defesa dos direi-
direita no país. Esse tema proporciona tos garantidos pela Constituição de
diversos caminhos para análise e nos 1988 (direitos civis, políticos, sociais,
incita a identificar quem são esses econômicos etc.) e pela legislação
atores, interpretar suas estratégias internacional de Direitos Humanos. 
de atuação e mobilização do ativismo A participação política dos evan-
entre seus fiéis. Também provocam gélicos como um todo se potenciali-
reflexões: os interesses sociais são a zou durante a Assembleia Nacional
tônica da interação entre política e Constituinte (ANC), realizada entre
religião? Que afetos são mobilizados 1987 e 1988. A ANC contou com um
a partir dessa relação? grande contingente de deputadas
Os evangélicos não constituem e deputados de confissão cristã
um bloco unificado e homogêneo, evangélica, reconhecida/os como
há diversas vertentes, concepções e uma “grande novidade” política. A
movimentos inclusive que se pautam maioria se amparava na ideia de que
pela defesa da democracia. Cristãos a Bíblia é a constituição espiritual
Contra o Fascismo, Frente Evangélica do homem e, por isso, devia ter sua
pelo Estado Democrático, Evangéli- presença destacada na mesa da ANC.

70
LINHA DO TEMPO

Naquele período, a bancada evan- mas: nas relações estabelecidas entre questão. Afinal, é importante não
gélica da Constituinte era compos- os irmãos, com outros indivíduos, separar os sofrimentos individuais
ta por 33 parlamentares, hoje esse com os pastores e com a comuni- do modo como o coletivo lida com
número saltou para 107 deputadas/ dade em geral. Além disso, muitas eles e das implicações de tal atitude,
os federais de um total de 531 (21%). vezes a igreja é o único espaço de como a mobilização política de pas-
Amparados no discurso “cristão vota socialização a que jovens da periferia tores neopentecostais. Isso resultou
em cristão”, muitos pastores atuam têm acesso e onde podem, por exem- em uma força tarefa por boa parte
como cabos eleitorais de candidatos plo, aprender a tocar instrumentos dos evangélicos para eleger Jair Bol-
com pautas conservadoras, atraindo musicais de forma gratuita. sonaro presidente do Brasil, a partir
os evangélicos, que representam cer- Narrar experiências de sofrimento da resposta que ele supostamente
ca de 20% do eleitorado brasileiro, um não é simples. Demanda criar uma daria ao “espectro comunista”, à cor-
número significativo e que demons- unidade na tentativa de discer- rupção em vigência e à estrutura de
trou sua força nas eleições de 2018. nir causas e efeitos, de formar um amparo demandada.
Esse dado corresponde ao aumen- mosaico que permita vislumbrar A crescente polarização durante o
to da precarização, das desigualda- como o sofrimento social se confi- governo petista teve o seu ápice sim-
des econômicas, da falta do acesso gura, levando em conta as contradi- bólico quando, durante a votação do
a serviços essenciais, já que gran- ções sociais, o capitalismo, o senso impeachment de Dilma Rousseff em
de parte da população evangélica de urgência das pessoas que preci- 2016, foram colocadas grades sepa-
é composta por pessoas pobres e sam de amparo e não o encontram rando apoiadores da então presiden-
com baixos índices de escolariza- no Estado. ta e os manifestantes pró-impeach-
ção, trabalhadores precarizados, não Nesse contexto, o assistencialis- ment na Esplanada dos Ministérios,
brancos, mulheres. mo feito pelas igrejas se manifesta em Brasília. 
O número de igrejas neopentecos- de diversas formas, por exemplo, no A presença de um muro é uma
tais tem crescido nas periferias do trabalho com a população carcerária. estratégia para conter tensões, con-
Brasil, principalmente a partir da Por conta do presídio ser uma ins- flitos e produzir a invisibilização do
década 1990. Segundo Campos, essa tituição punitiva, com frequência o outro. Consequentemente, cria uma
é uma “empresa” sintomática do pro- caráter socializador é posto de lado. realidade que não existe, além de
cesso de integração do neopentecos- Apesar de terem como finalidade a potencializar o mal-estar que, segun-
talismo à lógica de mercado vigente evangelização dos detentos, as igre- do o psicanalista Christian Dunker,
no Brasil neoliberal. O conjunto de jas promovem acolhimento, oferecem se origina da ausência de lugar – o
estratégias mercadológicas é incor- proteção e conforto espiritual, e mui- não pertencimento remetendo tam-
porado de maneira intencional pela tas vezes garantem também o acesso bém às noções de angústia, desam-
administração da igreja que deseja a itens básicos de higiene. O mesmo paro. O isolamento pautado por um
conquistar sua “clientela”. tipo de trabalho é realizado nas casas muro pode ser lido como um método
Contudo, os afetos mobilizados a de recuperação para dependentes de tratamento moral, no sentido de
partir das igrejas são muitos, tor- químicos ou usuários de álcool, em evidenciar a dicotomia do eu versus
nando-se uma das justificativas sua maioria subsidiadas por igrejas. o outro.
para o crescimento de evangélicos Tais fatores corroboram para o Quando muros são erguidos, o sen-
no Brasil o fato de que as políticas crescimento do número de evangé- timento de segurança se manifes-
públicas não chegam à população licos no Brasil, pois a gramática da ta, mas quem se sente seguro nesse
mais vulnerável. demanda faz com que a igreja exer- contexto? Por que o outro representa
É possível sentir-se amparado no ça o papel do Estado, tornando-se algo que mobiliza o medo? O filósofo
universo evangélico de diversas for- sustentáculo para os indivíduos em Vladimir Safatle afirma que o circui-

72
ENTRE AFETO E POLÍTICA

O desamparo pode ser suprimido a


partir da representação fantasmática
da autoridade, que se apresenta na
promessa de amparo. Há afetos que Entender a heterogeneidade, estar
só a igreja produz e propaga. disposto ao diálogo, elaborando as
pautas em comum com os evangéli-
cos progressistas, pode ser um cami-
nho para o enfraquecimento do que
está em evidência. Afinal, muitos ati-
vistas, acadêmicos, pastores e religio-
sos pentecostais e neopentecostais se
identificam com um projeto político
de sociedade mais justa, criticam o
capitalismo predatório, o controle dos
corpos e a falsa moralidade.
É preciso, por parte da esquerda,
se aliar a essas pessoas, que estão
to dos afetos está entrelaçado com que vai corroer e destruir tudo, caso organizadas e articuladas, na ten-
o corpo político não apenas porque esteja entre nós. E assim demonizam tativa de uma construção conjun-
este é o espaço no qual afeições são cada vez mais a figura de militan- ta entre os diferentes movimentos
produzidas, mas também porque ele tes de esquerda, das feministas, dos sociais para o desmantelamento de
é produto de afeições. Nessa discus- LGBTQIA+ etc. um reacionarismo que se estruturou
são, o desamparo é considerado o na religiosidade. 
primeiro estado afetivo de impo- Essas pessoas são cristãos que não
tência que deve ser ultrapassado no E A ESQUERDA COM ISSO? compactuam com os mercadores da
processo de maturação individual. Após evidenciar a mobilização dos fé, que cotidianamente sequestram o
O desamparo pode ser suprimido a afetos via lideranças evangélicas em Jesus da justiça social e dos direitos
partir da representação fantasmática consonância com o fortalecimento humanos, são ativistas que de fato
da autoridade, que se apresenta na de uma extrema direita amparada dão voz às mulheres, aos LGBTQIA+,
promessa de amparo. Há afetos que no conservadorismo – o moralismo aos negros e negras, aos indígenas e
só a igreja produz e propaga, oca- potencializando a ideia da religião às indígenas, e aos vulneráveis. 
sionando regimes de gestão social como a salvaguarda dos costumes –, Por fim, é necessário destacar
e produção de formas de vida que torna-se necessário questionar como que esse ascenso conservador não
revelam uma corporeidade especí- a esquerda tem lidado com isso. se encerra no aumento do eleitorado
fica. Com isso, muitas igrejas aca- Há décadas, alguns setores da evangélico, mas esse eleitorado é par-
bam selecionando as pautas que são esquerda enxergam os evangélicos te do processo, e foi essencial para a
importantes ou não, criando uma como um bloco homogêneo, aliena- eleição de Bolsonaro em 2018. 
doutrina conivente com o resulta- do, com baixa escolaridade e pouco O desafio daqui em diante é cons-
do esperado. Se adequam, transicio- aberto ao diálogo. Com isso, pode- truir pontes com o bloco evangélico
nando para o que proporciona mais -se dizer que a esquerda acabou por mais progressista para que seja pos-
retorno e engajamento das pessoas. literalmente jogar os evangélicos no sível vislumbrar um projeto capaz
O ativismo político exercido por colo da direita. Esta, por sua vez, têm de cauterizar a extrema direita,
essas lideranças angaria apoio dos produzido o apagamento de um cris- aceitando que fundamentalistas e
seus, incitando o medo do outro tianismo atrelado a pautas de justiça conservadores não representam a
como um afeto destrutivo, enxer- social em prol de uma narrativa béli- pluralidade das experiências evan-
gando esse outro como um inimigo ca da diferença: do eu versus o outro. gélicas no Brasil.

73
ENTREVISTA COM MICHAEL LÖWY POR SABRINA FERNANDES

Tempos
de barbárie
pedem Enfrentamentos diversos

ousadia
tem se acirrado ao redor
do mundo. Michael Löwy
aponta como apenas
lutas convergentes podem
construir a força necessária
para a dimensão dos
desafios à frente.

74
¶ A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS se apresentou como um
desafio global e expôs as enormes desigualdades entre as
nações, desde o acesso a um sistema de saúde justo, de qua-
lidade, até o diferente tratamento recebido de acordo com o
governo no poder. Crises são, inevitavelmente, relacionadas
às fronteiras, seja por sua natureza internacional, seja pelas
dinâmicas econômicas e geopolíticas que geram disputas
entre países sobre projetos e recursos. Não há como falar, por
exemplo, de uma crise na Venezuela sem levar em conta os
elementos externos à Venezuela. Não se pode compreender
o bolsonarismo sem notar a influência ideológica da direita
estadunidense e as dinâmicas de desmonte e privatização
no Brasil que atendem a uma burguesia internacional. ¶ A
iminente catástrofe ecológica, que não se trata apenas da
mudança climática, mas que tem nela seu maior catalisador,
coloca em xeque nossa capacidade de mobilização urgente
contra o capitalismo e suas falsas soluções, ao mesmo tempo
que buscamos a autonomia dos povos oprimidos. A conversa
com o militante e pensador ecossocialista, Michael Löwy,
ilumina tracejos de um possível caminho de ação.
75
MICHAEL LÖWY

SABRINA FERNANDES: Michael, eu gostaria de começar com possuem algumas preocupações com
uma pequena discussão sobre como o entendimento de direitos humanos, ora com governos
fronteiras passa por um contexto específico no século XXI. cada vez mais autoritários? É a ten-
Parece que as mudanças climáticas escancararam de vez dência dessa década?
o quão artificiais as fronteiras entre países são, mas ainda ML: Como você bem resumiu, aos capitalistas, à
assim o quão fortes, quando consideramos a disputa de oligarquia financeira, aos grandes industriais
poder geopolítica sobre os rumos do planeta? e ao agronegócio interessa garantir seus lucros.
MICHAEL LÖWY: A crise ecológica e a mudança climática de fato O resto são detalhes sem muita importância.
não conhecem fronteiras. Por isso é mais do que nunca decisivo Se o governo assegura uma agenda econômica
o internacionalismo, a organização de um movimento planetário neoliberal, como a de Paulo Guedes, ele terá
contra a oligarquia fóssil e, em última análise, contra o próprio o apoio, ativo em alguns setores, passivo em
sistema capitalista, que é, como reconhece o Papa Francisco, outros, das classes dominantes. Certo, mem-
intrinsecamente perverso. bros mais cultos da elite, ou mais liberais no
Isso não impede que as potências capitalistas, enquanto sentido político, podem ficar incomodados
promovem a globalização neoliberal, que é ativamente esti- com as insanidades e o autoritarismo neofas-
mulada pelo Banco Mundial, o FMI e a Organização Mundial cista de um Bolsonaro, mas será que assumirão
do Comércio – todos comprometidos com a indústria fóssil e uma oposição consequente? Até agora isso não
o ecocídio – disputem as partes do mercado mundial e tentem aconteceu... Nos Estados Unidos, a situação é
impor sua hegemonia imperial. É verdade que assistimos a um diferente, um setor da elite dominante, asso-
fenômeno novo, o “nacional-liberalismo”, com Donald Trump, ciado ao Partido Democrata, gostaria de por
Bolsonaro, Shinzo Abe, no Japão, Boris Johnson e outros, que fim ao delirante episódio Trump.
ao mesmo tempo proclama um nacionalismo agressivo e um Nada disso é novo, o capitalismo sempre
neoliberalismo brutal, o que não é nada contraditório. pôde se adaptar a quase tudo: escravidão, tra-
Por último, embora as fronteiras sejam cada vez mais arti- balho “livre”, democracia parlamentar, fascis-
ficiais, os vários governos das potências imperialistas tra- mo, ditadura militar, governos liberais, social-
tam, por todos os meios, de construir muros, barreiras de -democratas, nacionalistas ou autoritários. O
arame farpado eletrificado, e instalar patrulhas de polícias essencial é que se garanta a taxa de lucro e a
para impedir o acesso de imigrantes desesperados em busca acumulação do capital.
de sobrevivência a seus países. SF: As grandes potências possuem uma
E Marx já não havia explicado que o sistema capitalista não doutrina imperialista que entende suas
pode existir sem formas violentas e bárbaras de dominação? próprias fronteiras como impenetráveis,
SF: É interessante, porque a direita liberal, que ajudou a mas as dos outros como alvos a serem
fortalecer figuras como o Bolsonaro, agora finge que não penetrados e/ ou demolidos. Como isso
é com ela. Como a extrema direita possui esse teor forte se manifesta na construção de uma
de nacionalismo e bastante conservadorismo social, os resistência em países periféricos?
liberais tentam se distanciar da imagem negativa do Bol- ML: As intervenções imperialistas têm se mul-
sonaro, mas sabemos que não enxergam nenhum proble- tiplicado nas últimas décadas, seja na Améri-
ma em continuar com as políticas de Paulo Guedes, caso ca Latina, seja no Oriente Médio. Temos que
cheguem ao executivo novamente. Essa junção não é nada combater essas intervenções, que obedecem
contraditória, como você disse, até porque estudos sérios exclusivamente a interesses econômicos e
da história do liberalismo demonstram sua ligação com os geopolíticos dessas potências, em especial os
sistemas mais perversos, como a escravidão. Será que o Estados Unidos, sem por isso apoiar os regimes
que vivenciamos hoje é um modo do capitalismo garantir ditatoriais, em particular no Oriente Médio,
seus ganhos não importa a forma? Ora com governos que que se encontram em conflito com o império.

76
TEMPOS DE BARBÁRIE PEDEM OUSADIA

A questão é diferente na América Latina, onde os governos são mulheres oprimidas, com o socialismo e com
progressistas, por exemplo, na Venezuela, na Bolívia e em Cuba, a ecologia; mas ao mesmo tempo era parte
que, com todos os limites, enfrentam a intervenção imperia- de vários coletivos, de associações e de um
lista estadunidense. Nesse caso, é importante a solidariedade partido combativo (PSOL).
internacional com a resistência anti-imperialista desses países. Na primeira linha do combate ecológico se
SF: Acredito que um dos grandes méritos da dialética encontram as vítimas diretas dos desastres
marxista, especialmente na interpretação do marxismo provocados pela voracidade destruidora do
humanista, é romper com uma visão dualista, segundo a capitalismo: comunidades indígenas, mulhe-
qual os problemas estariam somente no indivíduo, cabendo res, movimentos camponeses, mas também
a ele transformar sua própria microrrealidade, ou total- aqui são indivíduos que encarnam o comba-
mente localizados na estrutura, de modo a negar a agência te. Indivíduos que muitas vezes pagam com a
de indivíduos no processo. Mesmo assim, sinto que esse vida esse compromisso, como foi o caso, entre
entendimento ainda é difícil de comunicar nos esforços de tantos outros, de Berta Cáceres, dirigente indí-
politização, quando a doutrina neoliberal segue puxando a gena em Honduras, vítima de paramilitares
responsabilidade somente para o indivíduo e alguns grupos por encabeçar a resistência a projetos ecocidas.
socialistas negligenciam a importância da agência e liber- Não por acaso nesses dois exemplos são
dade individual. Você acha que a consciência ecológica mulheres que representam a dignidade e a
pode ser terreno fértil para unir esses campos de batalha? coragem do combate socioecológico: não por
ML: Já nos escritos do Jovem Marx, encontramos uma concepção uma essência feminina abstrata, mas por sua
humanista dialética que rompe tanto com o individualismo condição social concreta, as mulheres são
liberal quanto com um organicismo conservador. Com efeito, mais sensíveis aos estragos ambientais pro-
a luta socioecológica é um bom exemplo da necessidade de vocados pelo sistema.
uma visão marxista dialética da agência individual e coletiva. SF: Essa convergência de motivações é
Isso se traduz em dois níveis: um é a complementaridade entre algo muito forte no movimento ecosso-
iniciativas individuais, por exemplo, a alimentação vegetariana, cialista. Vemos pessoas que se juntam a
e as mudanças estruturais, como o fim dos subsídios à indústria partir das mais diversas preocupações.
da carne, e/ ou a defesa da floresta contra a expansão destrui- Seria o ecossocialismo um grande pon-
dora do gado. Para os ecossocialistas, não se trata de opor uma to de convergência das lutas sociais a
iniciativa à outra, mas de ganhar os vegetarianos para as lutas partir do materialismo histórico? Uma
sociais. Dois, as mobilizações socioecológicas, e um possível síntese socialista que, ao trazer a natu-
processo revolucionário de transição ao ecossocialismo, não reza para o primeiro plano, agrega as
são possíveis sem que os indivíduos, em grande número, se potências de todas as lutas? Isso me
unam a esse combate coletivo. lembra o que Sônia Guajajara costuma
Sem dúvida essa luta exige uma vasta coalização social de dizer: a luta pela Mãe Terra é a mãe de
forças: trabalhadores do campo e da cidade (de ambos os sexos), todas as lutas. Me parece um atraso
juventude rebelde, comunidades indígenas, comunidades cristãs, grande quando organizações socia-
população negra, mulheres, intelectuais, artistas e muitos outros. listas negam que a natureza atravessa
Mas esses grupos ou essas classes são compostos de indivíduos, todas as nossas relações.
cada um com sua história, sua cultura, sua consciência. Sua ML: O ecossocialismo pode contribuir para a
motivação pode ser cristã, socialista, ecológica, feminista, ou convergência das lutas, ao revelar, com a ajuda
uma convergência de todas estas; ou então, produto de uma do materialismo histórico, a íntima relação
experiência direta da destruição ambiental. entre exploração capitalista, racismo, domi-
Marielle Franco era uma pessoa única, singular, por seu com- nação patriarcal e destruição da natureza. Mas
promisso irredutível com o povo negro das favelas, com as essa convergência deve respeitar a autonomia

77
MICHAEL LÖWY

dos movimentos e das lutas sociais, suas respectivas agendas, são fanaticamente anti-ecológicos, negam o
seus objetivos. A convergência não é imediatamente dada, deve perigo de mudança climática, e buscam, por
ser pacientemente construída, por meio do diálogo e das expe- todos os meios, promover os interesses eco-
riências de luta. O Fórum Social Mundial, com todos seus limites, cidas da oligarquia fóssil, nos Estados Unidos,
foi uma experiência interessante de convergência desse tipo. ou do agronegócio, no Brasil. Acabar com o
A questão ecológica, a relação com a Mãe Terra, se torna atual- regime desses personagens sinistros é um
mente – e logo será mais ainda – a questão política decisiva de imperativo categórico, ao mesmo tempo, e
nossa época. Nos próximos anos, na luta para impedir a catástrofe inseparavelmente, social e ecológico. O que
da mudança climática irreversível, vai se decidir o futuro da eles estão fazendo é, simplesmente, acele-
humanidade por séculos, se não milênios. É muito decepcionante rar ao máximo a corrida suicida do trem da
que tantos companheiros socialistas ainda não tenham se dado civilização capitalista industrial em direção
conta deste desafio: a ficha ainda não caiu, como se dizia no meu ao abismo da mudança climática. Enquanto
tempo – quando ainda havia telefones com fichas. É tarefa nossa, isso, os “razoáveis”, os capitalistas “ecológicos”,
como ecossocialistas, criticar essa cegueira política, tratando, estão propondo pintar de verde a locomotiva.
pacientemente, de convencer nossos camaradas da esquerda. SF: Vejo como vários capitalistas têm
SF: Recentemente, tenho visto análises sobre um “ecofas- investido em debates como o do Green
cismo”, que me lembra certos elementos do movimento New Deal para garantir que qualquer
ambiental mais misantropo, especialmente no final do projeto de lei aprovado nesse sentido
século XX . Isso inclui discussões que culpam o ser humano seja favorável aos seus investimentos.
como espécie, em vez do conjunto do modo de produção e Como Naomi Klein falou no This Chan-
do padrão “civilizatório”, até discussões alarmistas sobre ges Everything, há até mesmo grandes
crescimento populacional e medo de refugiados. No fundo, burgueses da indústria de combustíveis
me pergunto se as conclusões de tais movimentos e pes- fósseis investindo em renováveis. Qual
soas não passam da busca pela resposta mais fácil, mesmo o tamanho do desafio que encontramos
que seja a resposta errada. Enfrentamos o risco de ter a luta em trazer a ecologia para o centro da
ambiental cooptada não somente pelos ecocapitalistas e discussão, quando os capitalistas agem,
suas soluções de mercado, mas também pelos conserva- com todo seu aparato, para promover
dores da extrema direita? mais um passo na mercadorização da
ML: Esse perigo existe, sem dúvida. Há ecologistas “fundamen- natureza? A financeirização da nature-
talistas” que denunciam a espécie humana como responsável za já é uma realidade no mercado global.
pela catástrofe ecológica. Outros, sem ir tão longe, acham que ML: De fato, há muitos anos já existe um “capi-
o problema principal é o excesso de população. Alguns poucos talismo verde”, interessado no mercado das
chegam ao extremo de propor uma espécie de ditadura ecológica energias renováveis, e governos propondo polí-
– o filósofo ecologista do século passado, Hans Jonas, chegou a ticas de “desenvolvimento sustentável”. Até o
especular com essa ideia. Mas são poucos os que representam Fundo Monetário Internacional jura que vai
um verdadeiro “ecofascismo”: se trata, pelo menos por enquanto, promover uma economia ecológica. E o resul-
de um fenômeno marginal. A extrema direita “fascistante”, na tado de tudo isso? Nada! Ou pior: enquanto
Europa por exemplo, insiste que a ecologia não interessa, o os discursos ficam cada vez mais verdes, o
verdadeiro problema são os refugiados e imigrantes. Eles têm céu fica cada vez mais cinzento... As emis-
manifestado um ódio tremendo por figuras como Greta Thun- sões de gases fósseis não só não diminuíram,
berg, que alguns acusam de ser uma perigosa “feiticeira”, uma como continuam aumentando, e os cientistas,
comunista, uma inimiga da civilização ocidental etc. cada vez mais preocupados, soam o sinal de
Os principais representantes de um neofascismo do sécu- alarme. Sob pretexto de “proteger” a natureza,
lo XXI, personagens como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, se desenvolvem políticas de privatização das

78
SABRINA FERNANDES

Embora as fronteiras
sejam cada vez mais
artificiais, os vários
governos das potências
imperialistas tratam,
por todos os meios, de
construir muros, barreiras
de arame farpado
eletrificado, e instalar
patrulhas de polícias
para impedir o acesso de
imigrantes desesperados
em busca de sobrevivência
a seus países.
MICHAEL LÖWY

florestas. Se desenvolvem enormes “mercados de direitos de É claro que as multinacionais ianques


emissão”, ótimo negócio para bancos e empresas, péssimo para não são as únicas a promover a destruição
o meio ambiente. ambiental. As canadenses não ficam atrás, em
Existem ótimos trabalhos de pensadores ecossocialistas des- termos de devastação de nosso continente,
mistificando essas propostas: O impossível capitalismo verde, e têm encontrado, muitas vezes, resistências
de Daniel Tanuro, e O Deus que fracassou: o capitalismo verde, populares tenazes. É o caso, por exemplo, do
de Richard Smith. O capitalismo não pode existir sem expan- Peru, onde a população de Cajamarca se opôs
são ilimitada, produtivismo, consumismo, e depende, há dois a uma companhia mineradora canadense, que
séculos, das energias fósseis. Só uma batalha socioecológica pretendia explorar uma mina de ouro utilizan-
intransigente pode fazê-lo recuar, num primeiro momento, antes do a água dos rios. Com a palavra de ordem
de poder superá-lo com um outro modo de produção, ou melhor, “¡Agua sí, oro no!”, a mobilização popular se
um outro modo de vida. levantou contra este projeto destruidor.
SF: Poderia comentar como a colonização segue sendo um No próprio Canadá, as multinacionais que
fator central na reprodução econômica, cultural e militar na exploram o petróleo mais sujo do planeta, em
América Latina? Regiões ricas em bens naturais parecem termos de emissões de CO2, o das chamadas
muito vulneráveis à dominação externa, especialmente “areias betuminosas”, estão tentando expro-
quando já existe uma dimensão histórica. Penso, por exem- priar as terras indígenas e construir enormes
plo, nas mineradoras canadenses e em seu papel destruidor oleodutos em seus territórios. James Hansen,
na nossa região, ao mesmo tempo que atuam também de o famoso climatologista estadunidense, che-
forma contraditória no próprio Canadá: são símbolos de gou a dizer que, se esse petróleo for extraído
desenvolvimento, enquanto seguem expropriando terri- e exportado pelos oleodutos, a luta contra a
tórios dos povos originários do Norte. mudança climática estará perdida. As comu-
ML: José Carlos Mariátegui, o genial fundador do marxismo lati- nidades indígenas do Canadá têm levado uma
no-americano, já havia prevenido em 1928: se não houver uma luta corajosa contra estes sinistros projetos de
alternativa socialista indo-americana (hoje diríamos afro-indo-a- “desenvolvimento”, com o apoio de socialistas,
mericana), os países da América Latina estão condenados a serem ecologistas e sindicalistas. Ao defender seus
semicolônias do império norte-americano. É o que vemos até hoje, territórios ancestrais e seus rios, essas comu-
sob formas “modernizadas”: para retomar a famosa imagem de nidades estão na primeira linha do combate da
Eduardo Galeano, as veias da nossa América continuam abertas, humanidade para prevenir a catástrofe ecoló-
e nossas economias continuam submetidas aos imperativos do gica planetária.
mercado mundial, controlado por Nova York, Londres, Berlim etc. Anticolonialistas tem se mobilizado no mun-
E não se trata só da pilhagem de nossas riquezas naturais: do inteiro em solidariedade aos indígenas do
se trata da destruição sistemática do meio ambiente, das flo- Canadá. Recentemente foi publicado em várias
restas, o envenenamento dos rios. O caso da multinacional de línguas um manifesto internacional de apoio
petróleo Chevron no Equador, que deixou um imenso território à sua luta, assinado por uns duzentos artistas
totalmente poluído e destruído, é só um exemplo entre muitos. e poetas surrealistas de dezenas de países.
Tudo isso se passa, bem entendido, com a cumplicidade ativa SF: Em um dos seus textos recentes,
dos vários governos neoliberais que têm se sucedido na Amé- você falou sobre a “racionalidade
rica Latina nas últimas décadas. A exceção foi Cuba, desde 1959, democrática das classes populares”.
e, de forma parcial, algumas experiências anti-imperialistas Uma visão tradicional e elitista da
no continente, como com Hugo Chávez, na Venezuela. Marx política afirma com frequência que a
já havia previsto, no Capital, que o “progresso” capitalista é maior parte da população tem preguiça
um progresso na ruína das duas fontes da riqueza: a terra e o de participar da política, resumindo-se
trabalhador. A América Latina é um belo exemplo dessa regra. ao voto, mas eu vejo isso como um pro-

80
TEMPOS DE BARBÁRIE PEDEM OUSADIA

blema de tempo e de organização política. Uma mulher ML: É importantíssimo a esquerda, e as forças
periférica que trabalha oito horas ao dia fora de casa, gasta populares construírem sua própria mídia e
três horas no transporte público e ainda precisa cuidar utilizarem as redes sociais para difundir sua
das tarefas domésticas, se não participa de decisões mensagem. No Brasil, um setor importante da
políticas cotidianas não é necessariamente por falta de Igreja é solidário com os movimentos sociais
interesse, mas por exaustão. Que políticas nos ajudam a e utiliza suas próprias redes de comunicação.
romper barreiras de tempo de disponibilidade para facilitar Existem também alguns espaços a serem utili-
o florescimento dessa racionalidade democrática? zados na grande imprensa, sobretudo quando
ML: A racionalidade democrática das classes populares é uma esta acaba sendo obrigada, como é o caso no
aposta dos revolucionários. Nem sempre o comportamento da Brasil, a se opor ao governo. Temos de utilizar
população obedece a tal critério, mas, em última análise, nossa todos os meios para combater as fake news,
esperança é que essa racionalidade será hegemônica. que sempre foram, desde Joseph Goebbels, o
Na batalha para permitir que as camadas oprimidas, e em método favorito dos fascistas.
particular as mulheres, possam participar da vida política, A batalha da comunicação no Brasil não
tem um lugar muito importante a exigência de uma redução passa só pela mídia. O Carnaval é um espaço
da jornada de trabalho. Com menos horas de trabalho e mais fundamental, e a performance das Escolas de
tempo livre, se criam condições para uma efetiva participação Samba de esquerda no ano passado foi um
democrática. Não por acaso Marx escreveu no Capital que a grande avanço! O mesmo vale para as torcidas
redução da jornada de trabalho era o primeiro passo para esta- de futebol, que neste ano assumiram a van-
belecer o Reino da Liberdade. No caso das mulheres, é essencial guarda do protesto contra Bolsonaro.
a luta por serviços públicos para a infância, como creches, e É verdade que a direita conseguiu hegemo-
pela partilha igualitária das tarefas domésticas entre os sexos. nizar os protestos de rua de 2014 a 2016, mas
Mas mesmo nas difíceis condições atuais, e das últimas isso dificilmente poderá acontecer agora, com
décadas, não faltaram momentos em que a irrupção das mas- a capacidade de mobilização do bolsonarismo
sas populares, dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, em franco declínio.
conseguiu colocar na ordem do dia uma agenda democrática SF: Quando a pandemia do coronavírus
e popular: as grandes greves do ABC em 1978-79, a fundação do foi declarada, muito se falou na gran-
PT em 1980 e do MST alguns anos depois, a mobilização de 1984 de imprensa sobre um “novo normal”,
pelas “Diretas Já”, a campanha pelo impeachment de Collor, e em que as pessoas se sentiriam mais
assim por diante, até as Jornadas de 2013. Não tenho dúvidas conectadas e reveriam suas postu-
de que o mesmo acontecerá, mais cedo ou mais tarde, contra ras diante das mortes e do sofrimen-
a clique neofascista que atualmente governa o Brasil. to, porém, mais uma vez, o sistema se
SF: No caso de 2013, tivemos o desafio. As Jornadas come- adaptou. Você vê a possibilidade de
çaram com uma cara bastante popular, especialmente na algum grande evento global realmente
demanda por direito à cidade, mas a despolitização das pau- agir como catalizador de uma mudança
tas cresceu à medida que as ruas ficaram mais cheias. Vejo civilizatória que não seja esforço direto
que existe hoje na esquerda um certo medo de movimentos de um programa ecossocialista?
massivos sem lideranças centrais, pois a direita, sobretudo ML: Não posso prever se haverá ou não eventos
através da grande imprensa, possui uma capacidade de catalisadores no futuro. Mas não podemos
cooptação enorme. Ao mesmo tempo, Bolsonaro e Trump esperar por alguma catástrofe ou epidemia
alimentam desconfiança contra a grande imprensa que para lutar por uma mudança civilizatória.
não lhes é favorável, mas com o intuito de promover fake Precisamos, desde já, começar a populari-
news mais despolitizadoras ainda. Como fica a batalha por zar nosso programa ecossocialista. É muito
comunicação e uma mídia mais democrática nesse cenário? importante difundir conferências, brochuras,

81
TEMPOS DE BARBÁRIE PEDEM OUSADIA

Obviamente, não há
nenhuma garantia de
que o ecossocialismo
vencerá, e que
a humanidade
conseguirá escapar
da catástrofe.
Esta é uma APOSTA,
pela qual engajamos
nossa vida, individual
e coletivamente.
TEMPOS DE BARBÁRIE PEDEM OUSADIA

livros e multiplicar as iniciativas nas redes sociais para explicar a defesa da Amazônia e dos Povo da Floresta
nossa proposta, a impossibilidade de um “capitalismo verde”, e contra a sanha destruidora das mineradoras e
a necessidade de uma transição ecológica revolucionária. Não do latifúndio; a redução da jornada de traba-
por acaso o interesse pelo ecossocialismo tem se intensificado lho, sem diminuição do salário, como solução
no Brasil e no resto do mundo. Aliás, acaba de ser fundada uma ao dramático crescimento do desemprego.
Rede Global Ecossocialista (Global Ecosocialist Network) que SF: Diante disso tudo, dá para manter “o
se propõe a estabelecer vínculos entre os ecossocialistas do pessimismo da razão e o otimismo da
Norte e do Sul do planeta. vontade”? Enquanto a época de coa-
Entretanto, o principal ponto de partida são as lutas con- ches liberais promove a busca pelo
cretas, socioecológicas, que se enfrentam com a lógica do “lado bom da coisa”, é fácil se desanimar
sistema. Por exemplo, as lutas de comunidades indígenas, na com as derrotas. O que você diria para
Amazônia e em outras regiões do país, contra a devastação de quem se sente desanimado politica-
nossas florestas e nossos rios pela mineração, pelo agronegó- mente no momento?
cio, pelo gado e pela soja; a luta do MST contra os pesticidas ML: As derrotas, assim como as vitórias, fazem
e por uma reforma agrária favorável à agricultura orgânica; a parte da história do socialismo e das lutas
luta da juventude das grandes cidades pelo transporte públi- sociais. O pessimismo da razão nos adverte
co gratuito, demolindo as catracas. Poderia multiplicar os da gravidade da situação, do perigo crescente
exemplos. É nessas lutas que se desenvolve uma consciência de catástrofe ecológica e do grande poder de
anticapitalista, assim como a compreensão da necessidade de nossos adversários, neofascistas e neoliberais
auto-organização pela base, e a consciência de que somente – ou os dois ao mesmo tempo! Mas também há
pelo combate coletivo se consegue impor as exigências dos sinais de esperança: o socialismo nunca teve
oprimidos e explorados. tantos partidários e simpatizantes nos Estados
A tarefa dos ecossocialistas é participar dessas lutas, apoiá- Unidos e na Inglaterra como hoje. A mobiliza-
-las, ajudar a organizá-las, levando em seu seio a proposta ção da juventude contra a mudança climática,
ecossocialista. inspirada pelo apelo de Greta Thunberg, mobi-
SF: Se o “normal” era parte do problema e o “novo normal” lizou milhões no mundo inteiro. Poderíamos
atua como mais do mesmo, especialmente quando con- multiplicar os exemplos, inclusive no Brasil.
sideramos o enriquecimento de bilionários durante um Obviamente, não há nenhuma garantia de
dos períodos mais difíceis para a população global, que que o ecossocialismo vencerá, e que a huma-
medidas imediatas nos seriam úteis para unir demandas nidade conseguirá escapar da catástrofe. Esta
gerais e desafiar essa ordem que se renova? é, como diriam Lucien Goldmann, meu mestre,
ML: Com efeito, as classes dominantes, assim que a pandemia e Daniel Bensaïd, meu camarada, uma APOSTA,
se acalmar um pouco, tratarão de voltar ao business as usual, pela qual engajamos nossa vida, individual
ao mesmo de sempre, ao paraíso dos exploradores, em que uma e coletivamente. Se os revolucionários só
dúzia de multimilionários possui o equivalente da riqueza de se mobilizassem estando seguros da vitó-
metade da humanidade. ria, nunca teria havido uma revolução... Este
Elaborar um programa de demandas é tarefa de todos, não então é o otimismo da vontade: como dizia
posso dar uma resposta efetiva. Mas acho que um programa Brecht, quem luta pode perder, quem não luta
desse tipo, no Brasil, deveria incluir, entre outros objetivos, já perdeu...
uma profunda reforma fiscal que acabe com os escandalosos
privilégios de uma ínfima minoria de oligarcas; uma reforma
agrária radical, com critérios ecológicos, favorecendo a agri-
cultura camponesa e orgânica contra o agronegócio ecocida;

83
Armas
da crítica

Para quem vive de lucro,


Amazon e Amazônia
são a mesma coisa
ARMAS DA CRÍTICA
BALA NA AGULHA POR ANTÔNIO UGÁ

Anti-império

O imperialismo desenhou fronteiras, nós vamos apagá-las. IMPERIALISMO, ESTÁGIO


SUPERIOR DO CAPITALISMO
Vladimir Ilyich Lenin /
R$30,00 / Expressão Popular

¶ AS GRANDES TRANSFORMAÇÕES do capital (1913), e Nikolai Bukharin, em


da sociedade capitalista entre o final Imperialismo e economia mundial (1915).
do século XIX e início do século XX A principal síntese, no entanto, está
empurraram o mundo para uma na contribuição de Lênin, em Imperia-
guerra generalizada. A partilha do lismo, estágio superior do capitalismo,
mundo por algumas poucas grandes escrito em 1916 e publicado em 1917.
potências capitalistas e as rivalidades Fundamentada nas contribuições
decorrentes disso despertaram deba- econômicas de Hobson e Hilferding,
tes intensos e demandaram formu- com uma exaustiva análise de dados
lações no âmbito do marxismo para estatísticos da economia mundial,
compreensão desse processo com- bem como da crítica de diversos
plexo. A categoria central de todas teóricos burgueses da época, é uma
essas formulações é o imperialismo. obra essencial para compreender o AS VEIAS DO SUL
CONTINUAM ABERTAS:
Tal categoria foi apresentada pelo imperialismo em sua totalidade como DEBATES SOBRE O
economista burguês John A. Hob- etapa particular do desenvolvimento IMPERIALISMO DE NOSSO
TEMPO Emiliano López (Org.) /
son em Imperialismo, publicado em do capitalismo. R$32,00 / Expressão Popular
1902. De uma perspectiva pacifista e Na obra, o revolucionário russo bus-
reformista, a obra apontava o papel ca analisar as cinco caraterísticas fun-
do capital financeiro na disputa entre damentais do imperialismo:
os diferentes países imperialistas. É
só com O capital financeiro (1910), do 1) A concentração da produção 3) A exportação de capitais, diferente
austríaco Rudolf Hilferding, que se e do capital alcançou um grau da exportação de mercadorias,
apresenta a primeira crítica marxista tão elevado de desenvolvimento adquire uma importância
ao processo de substituição do capi- que criou monopólios que particularmente grande;
talismo de concorrência pelo capital desempenham um papel 4) A formação de associações
financeiro, com a uniformização do decisivo na vida econômica; internacionais monopolistas de
capital industrial, comercial e bancá- 2) A fusão do capital bancário capitalistas, que partilham
rio baseada nas grandes associações com o capital industrial o mundo entre si;
monopolistas. Esse mesmo debate e a criação, baseada nesse 5) A conclusão da partilha territorial
pode ser encontrado nas contribui- “capital financeiro”, da do mundo entre as potências
ções de pensadores marxistas como oligarquia financeira; capitalistas mais importantes.
Rosa Luxemburgo, em A acumulação

86
O desenvolvimento dos monopó- setores da esquerda atual secunda- sociais capitalistas e pré-capitalis-
lios e do capital financeiro em ape- rizem o tema. tas caracterizavam a relação entre
nas alguns poucos países ampliou Em 2020, o economista argenti- as nações imperialistas e os países
a opressão nacional e a tendência no Emiliano López organizou o livro coloniais ou dependentes. No mun-
para anexações, violando a inde- As veias do sul continuam abertas: do atual, o predomínio das relações
pendência e autodeterminação de debates sobre o imperialismo de nosso capitalistas em quase todas as par-
diferentes povos, aprofundando, tempo. Neste trabalho, ele procura tes do mundo impõe o marco da
como explica Lênin, “a exploração afirmar a centralidade da categoria relação capital-trabalho entre as
de um número cada vez maior de para compreensão do mundo atual, nações imperialistas e oprimidas.
nações pequenas ou fracas por um apresentado uma síntese das refle- Desse modo, apresenta-se como
punhado de nações riquíssimas ou xões marxistas mais recentes sobre fundamental a vinculação entre a
muito fortes”. Foi justamente a dis- o tema no cenário internacional. teoria do valor de Marx e o impe-
puta pela partilha do mundo pelas O artigo “Imperialismo na era da rialismo, articulada pela categoria
grandes potências do capitalismo globalização”, que abre a coletânea, da superexploração desenvolvida
imperialista que fundamentou a apresenta de modo sintético as posi- inicialmente pelo teórico brasileiro
Primeira Guerra Mundial, caracte- ções do casal de economistas india- Ruy Mauro Marini.
rizada por Lênin como uma “guerra nos Prabhat Patnaik e Utsa Patnaik. Ainda na coletânea podemos ver
de conquista, de banditismo e de Os autores partem da compressão como E. Ahmet Tonak, Atílio Boron e
rapina”, em suma, uma guerra impe- do imperialismo como o mecanismo Gabriel Merino debatem as formas de
rialista, que ergueu cercas no novo que veda o potencial aumento dos transferência de valor entre o Norte
plano colonial. preços de fornecimento dos pro- e o Sul Global, os impactos da crise
A análise de Lênin buscava não dutos primários e matérias-primas capitalista e a ascensão da China nas
apenas compreender as transfor- provenientes dos países periféricos, estratégias de segurança nacional
mações do capitalismo, como tam- minando o valor do dinheiro nos paí- dos Estados Unidos e as divergentes
bém superar a conformação à ordem ses metropolitanos. O argumento é estratégias imperialistas em disputa
dominante na Segunda Internacional o principal fundamento da obra A neste país para lidar com sua crise
e dotar os explorados e oprimidos do Theory of Imperialism, publicada em de hegemonia no mundo. Apesar de
mundo de instrumentos necessários 2017 nos Estados Unidos, mas ainda concordarem sobre a pertinência da
para o combate à ordem do Capital. A inédita no Brasil. categoria imperialismo, os autores
crítica leninista ao imperialismo foi Já no instigante artigo “Explora- apresentam diferentes posições
fundamental para a Revolução Russa ção e superexploração na teoria do sobre ela, sua evolução durante as
e para as demais revoluções socia- imperialismo”, o teórico John Smith fases do capitalismo e seus funda-
listas, lutas de resistência e liberta- postula que, se a forma madura e mentos atuais.
ção nacional do século XX, servindo completamente desenvolvida do Diante do cenário de crise global,
como guia teórico para movimentos capitalismo industrial foi o que catástrofe ambiental, golpes de Esta-
e partidos nas antigas colônias na tornou possível a elaboração de do e acirramento dos conflitos entre
América Latina, África e Ásia. O Capital por Karl Marx, somente potências militares, retomar o deba-
Mais de cem anos após a publi- com a forma totalmente desenvol- te do imperialismo é imprescindível
cação da obra clássica de Lênin, o vida do imperialismo é possível o para compreensão da realidade do
imperialismo como categoria teórica desenvolvimento de uma teoria que capitalismo contemporâneo, e mais
e parte da luta política segue dire- explique o imperialismo contempo- que isso, para dotar os oprimidos e
tamente atrelado à radicalidade de râneo. No início da etapa imperia- explorados de instrumentos neces-
projetos emancipatórios, ainda que lista do capitalismo, as formações sários à resistência..

87
ARMAS DA CRÍTICA POR BENJAMIN FOGEL
ANOTAÇÕES TRADUÇÃO ALINE KLEIN

Corrupção é a maior
instituição do Brasil

Como seguidos golpes militares e ditaduras oligárquicas


institucionalizaram a corrupção brasileira.

¶ A CORRUPÇÃO É INTRINSECAMENTE POLÍTICA. Nos


dias de hoje é comumente definida como o abuso de cargos
públicos, enquanto as iniciativas anticorrupção são apresen-
tadas por parte da mídia como equivalentes à “boa gover-
nança”. A corrupção é considerada quase por unanimidade
uma coisa ruim, e é excepcionalmente raro um político
abraçar o rótulo de corrupto. Rotular de corruptos aqueles
que chegaram ao poder público por meio da corrupção põe
em questão a própria legitimidade desse poder. O resultado
é que a oposição à corrupção nunca é neutra. A anticorrup-
ção geralmente assume a forma de uma nostalgia específica,
baseada na suposição de que a política era mais limpa e
ética no passado. Em essência, opor-se à corrupção promete
retificar o que está fora de ordem, em vez de propor uma
visão alternativa superior ao status quo. Em nenhum lugar
as políticas contestadas de corrupção e anticorrupção são
mais claras do que no Brasil.

88
ANOTAÇÕES

Atualmente o país enfrenta uma crise política que ameaça brasileira. FHC seguiu argumentando
explodir sua arquitetura democrática. A chave para entendê-la que a “questão moral” do caráter cor-
é a Operação Lava Jato, criada em 2014 e que se tornou a maior rupto e antidemocrático do PT, que pare-
investigação anticorrupção da história do Brasil. Ela foi responsá- cia “ser uma preocupação das classes
vel por “descobrir” uma rede de corrupção envolvendo bilhões de médias educadas, agora se tornou uma
dólares em doze países e resultou em mais de trezentas denúncias preocupação do povo em geral” como
e cem condenações, entre elas a prisão de dois ex-presidentes da um resultado da Lava Jato. A implica-
República, Lula em 2018 e Michel Temer em 2019. ção era que a Lava Jato e a cruzada dos
A operação ajudou a construir o resultado da eleições de 2018 poucos iluminados haviam despertado
quando o então juiz Sérgio Moro condenou Lula, que aparecia em as massas do sono político induzido
primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, a doze anos pelo PT e pelo carisma de Lula. Esses
de prisão, impedindo-o de concorrer à presidência e deixando sentimentos têm pouca relação com a
um espaço aberto para o neofascista Jair Bolsonaro assumir o história política do Brasil. Foi nessa base
cargo. Moro foi amplamente recompensado por seus esforços: que muitos “comentaristas respeitáveis”
Bolsonaro o nomeou para seu governo como seu novo Ministro justificaram o voto em Bolsonaro como
da Justiça, embora eles tenham se separado no início de 2020. A um voto anticorrupção.
Lava Jato teve também um papel relevante na queda da presi-
denta Dilma Rousseff, que sofreu impeachment em 2016 acusada
de “crimes de responsabilidade” e pedaladas fiscais para cobrir PRIVATIZANDO A VIDA PÚBLICA
gastos sociais. Hoje é ainda mais evidente como a Lava Jato não A República Populista do Brasil surgiu
era uma investigação anticorrupção, mas um projeto político por meio de um golpe militar, que reti-
em si, com sua própria agenda. rou do poder o então ditador Getúlio
Com um toque de cinismo e uma dose ainda maior de revi- Vargas em 29 de outubro de 1945. Depois
sionismo histórico, intelectuais, eruditos e políticos de direita dessa data, três presidentes brasileiros
e de centro promoveram o mito de que a corrupção brasileira foram destituídos do cargo após se
foi sistematizada, ou mesmo inventada, pelo Partido dos Traba- verem do lado errado dos principais
lhadores e seu líder Lula. O partido, portanto, representa uma movimentos anticorrupção. Em 1954,
aberrante força antidemocrática que a Lava Jato deveria eliminar. o presidente Getúlio Vargas cometeu
Um exemplo desse discurso está no que disse o ex-presiden- suicídio após o escândalo de corrupção
te Fernando Henrique Cardoso em uma conferência no Wilson conhecido como Mar de Lama e uma
Center de 2017. Segundo ele, a corrupção antes do PT chegar ao campanha violenta liderada por Car-
poder em 2002 consistia em “atos individuais ou uma mistura los Lacerda, político e editor de direita.
de clientelismo com leniência, não um mecanismo fundamental Em 1964, forças semelhantes desem-
para um governo ganhar e reter poder”. A suposta inovação do PT penharam um papel fundamental na
foi sistematizar a corrupção para que ela se tornasse uma forma coalizão militar e civil que derrubou
permanente de governança. o presidente reformista João Goulart,
A fim de disfarçar suas próprias falhas e menosprezar os triun- levando o país a trinta anos de regime
fos políticos de Lula, o principal partido da oposição, o Partido militar. Fernando Collor de Mello, um
da Social Democracia Brasileira (PSDB), de centro-direita, criou carismático outsider de um clã oligár-
a confortável ficção de que a corrupção foi responsável pelas quico de Alagoas, eleito em 1990 com
quatro vitórias eleitorais sucessivas do PT. Seguindo essa lógica, a expectativa do expurgo dos funcio-
outros partidos passaram a retratar a corrupção, como uma doença nários públicos corruptos, foi cassado
específica do PT e como uma ameaça existencial à democracia em 1992 após protestos anticorrupção.

90
ANOTAÇÕES

Agora, embora escândalos de corrupção sempre tenham feito parte implantada se a hegemonia do bloco
da política brasileira, raramente resultavam em condenações e, dominante parece frágil. Permite a um
portanto, acabaram em pizza. Collor, por exemplo, foi salvo da grupo comprar apoio político. É, em
acusação e autorizado a retornar à política como senador assim essência, a privatização da vida pública.
que o escândalo cessou. A fluidez ideológica e a flagrante fal-
Os militares justificaram o golpe de 1964 como uma medida ta de disciplina partidária no sistema
necessária para proteger o Brasil do comunismo e de uma clas- político brasileiro também podem ser
se política incuravelmente corrupta. Depois justificaram suas atribuídas à manipulação desse sistema
medidas mais autoritárias como essenciais para livrar o país pela ditadura militar. A partir de 1965,
das “doenças” malignas do populismo e do comunismo, termos os líderes da ditadura tentaram forta-
que carregavam fortes associações com corrupção. A retórica lecer sua posição por meio da criação
anticorrupção do regime militar provou ser basicamente isso, de dois partidos: a Aliança pela Renova-
apenas retórica, já que políticos corruptos continuaram a prospe- ção Nacional (Arena), partido oficial do
rar sob a ditadura. Os próprios militares aproveitaram as amplas governo, e o Movimento Democrático
oportunidades de utilizar o poder do Estado em benefício pró- Brasileiro (MDB). O governo concluiu
prio. Na verdade, a corrupção sob a ditadura atingiu níveis tão que, como a oposição estava concen-
altos que começou a afetar a coesão e a eficiência operacional trada nas maiores áreas urbanas do
dos militares, levando os líderes a concluir que um retorno ao Brasil, ele poderia se focar em ofere-
regime civil era necessário para salvar o regime militar da mesma cer favores comerciais para obter apoio
doença que dizia erradicar. das máquinas políticas predominante-
A impressionante vitória de Bolsonaro em 2018 foi baseada em mente rurais do país. Segundo Thomas
parte na mitologia de que o governo militar tinha sido menos Skidmore, os estados menores e mais
corrupto do que o governo civil e que Bolsonaro poderia res- pobres do Brasil tendiam a ser gover-
taurar os valores dessa época, que se degeneraram sob o regime nados por máquinas políticas oligár-
“corrupto comunista” do PT. No entanto, longe de ser uma inova- quicas que eram pró-militares, ideolo-
ção do PT, a corrupção há muito está imbricada na estrutura da gicamente conservadoras e mais do que
política brasileira. Sua persistência não é causada por nenhuma dispostas a trocar votos por favores. O
peculiaridade da cultura ou da moral nacional. Em vez disso, regime militar se solidificou ao garantir
tem sido um instrumento central no controle das elites sobre que seus apoiadores, principalmente no
o poder político. Norte e Nordeste, estivessem sobrer-
A corrupção no Brasil reflete características específicas da eco- representados no Legislativo.
nomia política nacional e internacional. É uma questão sistêmica, As reformas constitucionais aprova-
não um produto das deficiências da cultura política brasileira. O das em 1967 e 1969 liberaram os proje-
retrato da corrupção como uma troca encoberta entre um mer- tos econômicos do estado de qualquer
cado político e um mercado social ou econômico, envolvendo a tipo de supervisão, reforçando ainda
troca ilícita de dinheiro ou favores por tratamento privilegiado, mais o patrimonialismo como forma
é apenas parte do quadro. Na verdade, a corrupção é uma estra- de governar. O sociólogo Francisco
tégia política usada para permitir que atores privados exerçam de Oliveira observou que não houve
influência sobre as instituições ou o Estado. Como argumenta nenhum esforço “para acabar com o
Gramsci, a corrupção pode servir como uma forma de governo patrimonialismo, ou para resolver o
quando é impossível governar apenas por consentimento e a agudo problema do financiamento
força é uma estratégia política muito arriscada. Nos Cadernos do interno da expansão capitalista, que
cárcere, ele explica que a corrupção ou a fraude é uma estratégia fora o calcanhar de Aquiles da conste-

92
CORRUPÇÃO É A MAIOR INSTITUIÇÃO DO BRASIL

A corrupção
política há muito
está imbricada
na estrutura da lação de forças anteriores”. O efeito foi a separação da moralidade
política brasileira. e da legitimidade do processo de acumulação de poder, a cor-

Sua persistência rupção destacando-se como uma característica da estratégia de


desenvolvimento da ditadura. A distribuição de favores tornou-se
não é causada necessária para preparar o caminho para projetos de desenvol-

por nenhuma vimento em grande escala, enquanto a regulamentação informal


da política econômica por meio de acordos de bastidores isentos
peculiaridade da de gestão democrática fortalecia o vínculo entre funcionários

cultura ou da moral do Estado e capitalistas.


No final dos anos 1970, a ditadura no Brasil perdia o folêgo,
nacional. Em vez atormentada por escândalos de corrupção, fraco desempenho

disso, tem sido econômico e uma oposição renovada. Essa oposição estava dividida
em dois campos: a oposição oficial representada pelo Movimento
um instrumento Democrático Brasileiro (reorganizado em 1979 como PMDB e nova-

central no controle mente como MDB em 2018) e novos movimentos e organizações


mais radicais. O MDB reuniu uma gama diversificada de tendências
das elites sobre o políticas dentro do quadro brasileiro: liberais, conservadores da

poder político. velha escola, oligarquias políticas tradicionais e até mesmo ele-
mentos da esquerda nacionalista e comunista. O segundo campo
foi representado, entre outros, pelo crescente movimento sindical
militante do Brasil, localizado na esquerda radical, que incluía
ainda aqueles que tinham abraçado a luta armada, bem como
os que a rejeitaram, e a esquerda católica agrupada em torno da
Teologia da Libertação. A oposição à ditadura culminou com uma
aliança entre os dois campos de oposição por meio da campanha
das Diretas Já.
A ditadura finalmente acabou com a eleição indireta do can-
didato do MDB, Tancredo Neves, um ex-ministro solidamente
centrista do gabinete de Vargas. Em uma bizarra reviravolta do
destino, Neves morreu logo após assumir o cargo e foi substi-
tuído pelo vice-presidente José Sarney, um forte defensor da
ditadura militar e uma das faces mais visíveis da classe corrup-
ta do Brasil. Após a queda da ditadura, o MDB solidificou sua
posição de partido de centro, rejeitando tanto a oportunidade
de incorporar as reivindicações da esquerda ao seu programa
como os apelos dos movimentos sociais para o exercício de uma
nova forma de política, por medo de alienar seus constituintes
patrimoniais.
O PT foi fundado em 1980 por meio da união da esquerda católica,
do novo movimento sindical, dos trotskistas e dos radicais que
sobreviveram à malfadada luta armada brasileira. Tornou-se uma
grande força política, atraindo novos movimentos sociais para seu
rebanho, incluindo os trabalhadores rurais e os crescentes movi-

93
ANOTAÇÕES

mentos LGBTQIA+ e feministas. Podemos dizer, na verdade, que CORRUPÇÃO:


o PT incorporou todos aqueles que o MDB tinha deixado de lado. DO PT A BOLSONARO
A transição para a democracia foi, portanto, negociada em um O PT se adaptou a esse sistema depois
fórum moldado pelo regime autoritário que excluiu a maioria de chegar ao poder em 2002, fez coali-
dos poderosos movimentos sociais do país. zões com vários partidos rentistas para
Em sua encarnação atual, a corrupção sistêmica no Brasil é, governar por uma variedade de meios,
em grande parte, resultado do acordo político enraizado na alguns justos, outros ilegais. Nesse caso,
Constituição de 1988, que simultaneamente institucionalizou a corrupção é praticada como forma
direitos sociais fortes e solidificou o poder das forças políticas de governança. O escândalo do Men-
que apoiaram a ditadura. A esquerda podia se gabar de suas salão de 2005, centrado na revelação
vitórias em termos de direitos sociais, mas, ao mesmo tempo, a de que o PT vinha pagando a deputa-
Constituição preservou o sistema político criado pela ditadura dos e senadores de partidos menores
militar. Ao conceder a cada estado, independentemente de seu uma mensalidade de cerca de R$ 30 mil
tamanho, um mínimo de oito e um máximo de setenta deputados, em troca de apoio à legislação petis-
o sistema político deu peso especial aos estados que apoiaram ta, ilustra essa dinâmica. O escândalo
a ditadura, uma vez que os estados rurais menores controlados envolveu várias das principais figuras
por aliados corruptos dos militares receberam representação do PT; o chefe da Casa Civil de Lula e
igual aos maiores e mais urbanizados. Como resultado, o sistema estrategista, José Dirceu, que renunciou
político brasileiro ainda está em dívida com pequenos partidos e mais tarde foi considerado culpado
locais que representam máquinas políticas que existem prin- de uma série de acusações e condenado
cipalmente para trocar votos por favores. Havia uma lógica a sete anos de prisão. Ex-guerrilheiro,
política distinta por trás disso: ao garantir que a esquerda teria ele continua sendo uma figura lendária
que lidar com a máquina política corrupta se quisesse governar, da esquerda brasileira. Também impli-
os militares e a burguesia foram capazes de se isolar dos perigos cados no escândalo estavam o minis-
de um futuro governo de esquerda. tro da Fazenda, Antonio Palocci, que
O sistema político está preso no pântano da fragmentação mais tarde serviria como chefe da Casa
dos partidos, às vezes caracterizado como “presidencialismo Civil de Dilma, e atualmente cumpre
de coalizão”, o que significa que o presidente deve montar uma doze anos de prisão; o presidente do
coalizão que não seja partidária para aprovar qualquer coisa no partido, José Genoino, e o tesoureiro
Congresso. O presidente está à frente do sistema político que cen- Silvio Pereira.
traliza o poder no governo e descentraliza o poder no legislativo O Mensalão nasceu da tentativa do
por meio de um sistema de lista aberta em que os candidatos não PT de evitar uma aliança com o MDB.
apenas competem contra outros partidos, mas contra candidatos Fazer isso significaria que o MDB exigi-
dentro de seu próprio partido, minando a disciplina partidária e ria cargos de gabinete e controle sobre
sua identidade. Os legisladores têm poucos motivos para temer elementos do gasto público em troca
a retribuição dos líderes de seus próprios partidos por quebrar de seu apoio. Comparado a protestar
as fileiras e têm fortes incentivos para trocar seus votos pelos contra o MDB, subornar membros de
materiais necessários para aplacar seus apoios. O resultado é um partidos pequenos para apoiarem o
sistema que força o presidente a usar seu poder de barganha com governo parecia o mal menor, como
um legislativo difuso. Para formar uma coalizão governamental argumentou Perry Anderson. O Men-
eficaz, o executivo precisa distribuir os benefícios pelo Congresso, salão teve como alvo as principais
entregando os cargos de gabinete a partidos menores ou distri- figuras do PT, mas deixou MDB e PSDB
buindo benefícios econômicos aos parceiros do governo. ilesos. Restou ao PT chegar a um acordo

94
ANOTAÇÕES

com o MDB para garantir a sobrevivência de sua coalizão de INSTITUCIONALIZANDO


governo, o que levou o partido aos trágicos acontecimentos A ANTICORRUPÇÃO
da presidência de Dilma. Uma grande ironia da história recente
Tendo chegado ao poder com a promessa de erradicar a do Brasil é que a Lava Jato só foi possível
corrupção e instituir uma nova forma de fazer política, Bol- por causa das reformas anticorrupção
sonaro enfrentou, desde os primeiros momentos, as mesmas aprovadas, que foram usadas por seus
dificuldades que seus antecessores encontraram no governo inimigos para destruir o governo Dilma.
do Brasil. Já de início ele provou ser excepcionalmente inepto Desde que Bolsonaro chegou ao poder
na política de coalizão, alienando aliados antes leais e amigos na onda anticorrupção, seu governo
em potencial. começou a desmantelar os mecanis-
O resultado foi um governo mudando a cada crise, enquan- mos legais que ajudaram a trazê-lo
to os filhos do presidente insultam alguns dos atores mais ao poder para proteger o presidente e
importantes da política brasileira e apoiadores leais de seu pai seu clã mafioso, que está sob investi-
nas redes sociais. Bolsonaro declarou que seu reinado será de gação federal por tudo, desde lavagem
“nova política” e se recusou terminantemente a negociar com de dinheiro a dinheiro anônimo que
o Congresso, deixando seus poderosos patrocinadores cada financiou esquemas de notícias falsas.
vez mais nervosos sobre o futuro de suas queridas políticas, Outra ironia é que o discurso anticor-
em particular a Reforma Previdenciária. A recusa inicial de rupção talvez tenha se tornado a maior
Bolsonaro em jogar bola com os líderes que dominam a política linha de ataque contra o governo Bol-
brasileira produziu um governo incipiente e sem direção em sonaro. Muitas das mesmas vozes que
seu primeiro ano de mandato, dominado por intrigas cada vez atacaram a Lava Jato e o uso oportu-
mais bizarras e travessuras imprudentes no Twitter. nista do discurso anticorrupção contra
Então a Covid-19 chegou ao Brasil. Quando o governo de o PT agora estão apontando o grau de
Bolsonaro lançou o que poderia ser a pior resposta do mundo corrupção no governo e nas ligações do
à pandemia, ele enfrentou uma revolta dentro de seu próprio presidente e sua família com a máfia
gabinete e mais de trinta pedidos de impeachment sentados carioca. Embora Bolsonaro seja clara-
na mesa do presidente do Congresso. Pareceu por um tempo, mente corrupto – ele passou a maior
enquanto as conspirações estrondeavam todas as noites aos parte de sua carreira no partido de
gritos de “Fora Bolsonaro”, que a pandemia poderia acabar com Maluf, argumentando que ser corrupto
seu governo. Mas aconteceu o oposto. Bolsonaro mudou de não é o suficiente para prejudicar seria-
rumo e finalmente concordou em jogar com o Centrão, repas- mente um presidente – a política anti-
sando bilhões para as seções mais venais do Congresso em corrupção agora representa o fato de
busca de garantir o futuro de sua presidência. Ele então rompeu que a oposição carece de uma alterna-
definitivamente com a Lava Jato, ao nomear um procurador- tiva programática coerente a Bolsonaro,
-geral domesticado e intervir diretamente na Polícia Federal especialmente desde a implementação
para anular as investigações sobre seu clã. Moro renunciou e do subsídio de emergência da Covid-19
as principais figuras da Lava Jato foram expulsas e seus pode- no valor de seiscentos reais por mês.
res reduzidos. Embora isso possa ter acabado com quaisquer A centro-direita compartilha mais ou
ilusões persistentes de que uma ruptura fundamental com a menos a mesma visão de economia e
cultura de corrupção endêmica do Brasil foi alcançada, tam- agenda social de Bolsonaro, sem o ola-
bém institucionalizou a anticorrupção como o caminho para vismo, enquanto a esquerda está presa
travar batalhas políticas.

96
CORRUPÇÃO É A MAIOR INSTITUIÇÃO DO BRASIL

em apelos nostálgicos e moralistas ou muito fraca e dividida para O debate anticorrupção não será uma
formar uma oposição unificada. fórmula política vencedora em 2022. Não
O exemplo mais recente disso é a queda do governador do Rio é exatamente uma plataforma confiá-
de Janeiro, Wilson Witzel, que foi destituído do cargo em agosto vel durante uma crise econômica sem
sob a acusação de desvio de dinheiro reservado para aquisições precedentes e uma pandemia global. Ir
emergenciais relacionadas à Covid-19. Witzel, que foi eleito apro- atrás de fundos de campanha mal aplica-
veitando a onda de Bolsonaro, logo se tornou um potencial adver- dos ou contratos públicos cobrados em
sário do presidente nas eleições de 2022 e entrou publicamente em excesso não colocará comida na mesa
confronto com Bolsonaro por causa de medidas de quarentena. das pessoas nem aliviará a carga dos
Embora Witzel seja quase culpado, sua destituição do cargo deve hospitais do país. De fato, o “rouba, mas
ser vista como um precedente para o futuro, a anticorrupção faz” é uma plataforma eleitoral a ser tes-
será usada para resolver disputas políticas em vez de eleições. O tada e comprovada durante o que talvez
discurso anticorrupção substituirá os políticos de que você não seja a pior crise econômica da história..
gosta, em vez de qualquer tentativa de reformar o sistema político
do país. O Brasil agora institucionalizou o combate à corrupção
como uma extensão de sua crise política permanente.
POR ANAHÍ GUEDES DE MELLO

Corpos
(in)
capazes A crítica marxista da
deficiência. As lutas
anticapacitistas e
anticapitalistas estão do
mesmo lado da trincheira.

¶ AS BARREIRAS INVISÍVEIS que cercam a luta anticapacitista das pessoas


com deficiência no capitalismo sempre estiveram à margem dos debates e
das pautas da esquerda no Brasil. Essa percepção se deve à narrativa hege-
mônica da deficiência como uma experiência individual e “isolada”. Ao ser
dissociada de outras lutas sociais, a deficiência dificilmente é concebida
enquanto experiência coletiva.
A deficiência ora é um marcador social de diferença, ora uma forma de
opressão que opera com outras categorias como classe, gênero, sexualida-
de, raça. De acordo com a teoria social “clássica” da deficiência, há duas
maneiras de compreender a deficiência, uma é baseada no modelo médico;
outra, no modelo social. Em poucas linhas, no modelo médico a deficiência
está localizada no corpo do indivíduo, de modo que ela é vista com um
“problema” individual, objetivando-se a cura ou a medicalização do corpo.
No modelo social, a deficiência não se encerra no corpo, ela é o produto
da relação entre um corpo com impedimentos físicos, visuais, auditivos,
intelectuais ou psicossociais e um ambiente incapaz de prover acessibili-
dade. Desse modo, o modelo social da deficiência desloca a compreensão
da deficiência do corpo do indivíduo para o contexto das barreiras sociais
impostas pela estrutura social. A deficiência vai além da perspectiva indi-
vidualista, de âmbito privado, e passa a ser uma questão da esfera pública
do Estado e da sociedade.

99
ANAHÍ GUEDES DE MELLO

Ao passar do viés médico para o


social, a deficiência deixa de remeter
a ideias como “incapacidade” e “limi-
tação”, sentidos estes que podem ser
atribuídos a noções como falta, per-
da e déficit. Os movimentos sociais
da deficiência do Brasil passam a
adotar, sem qualquer ressalva, os
termos “deficiência” e “pessoa com
deficiência” como questão de orgulho
porque entendem que a deficiência
é um atributo (uma qualidade) que
a distingue de outros grupos sociais
e não um problema (incapacidade).
Essa virada discursiva sobre a As pessoas com deficiência estão, Engels, em seu texto A situação da
deficiência teve sua origem nos anos portanto, excluídas do mercado classe trabalhadora na Inglaterra
1980, com a contribuição da primeira de trabalho não por culpa de suas (1845), registra que somente no ano de
geração de teóricos sociais da defi- limitações funcionais, tampouco 1843 o hospital de Manchester teve
ciência, majoritariamente compos- por causa das atitudes e práticas que tratar 962 lesões entre os “feri-
ta por homens com lesão medular discriminatórias de empresas e mer- dos” e “mutilados” devido a acidentes
alinhados à perspectiva marxista. cados de mão de obra, mas devido de trabalho relacionados ao manu-
Essa geração apontou a discrimi- ao próprio sistema de organização seio de máquinas. O autor narra:
nação socioeconômica como uma do trabalho dentro da economia “Poucas vezes andei por Manches-
das principais formas de opressão capitalista, que se baseia nos prin- ter sem cruzar com três ou quatro
contra as pessoas com deficiência, cípios da competição e da obtenção aleijados, acometidos dessa deforma-
em sociedades capitalistas, já que o do máximo lucro. Essa dimensão de ção da coluna e das pernas que pude
advento do capitalismo trouxe gran- exploração da força de trabalho das observar inúmeras vezes; conheço
de desvantagem para as pessoas com relações capitalistas implicou a ideia pessoalmente um estropiado […] que
deficiência a partir da percepção de da deficiência como “tragédia pes- foi mutilado em Pendleton, na fábri-
que elas não poderiam se adaptar soal”, cujo corpo requer tratamento ca do senhor Douglas, industrial que
às novas exigências laborais, por médico a fim de buscar a “cura” ou ainda hoje desfruta, entre os operá-
meio do emprego especializado nas mesmo “recuperar” a funcionalidade rios, de reputação pouco invejável
fábricas. Ou seja, a industrialização perdida. Desse modo, as pessoas com por impor jornadas de trabalho
demandou cada vez mais a separação deficiência devem ser controladas, extremamente longas, que atraves-
e distinção do indivíduo em relação à tuteladas pelo Estado capitalista, por savam noites inteiras. Não é difícil
sociedade à medida que a divisão da meio da institucionalização e medi- identificar de imediato, entre os alei-
mão-de-obra se especializa e se indi- calização forçadas de seus corpos e jados, aqueles que foram estropiados
vidualiza crescentemente no mundo subjetividades. dessa maneira – todos têm o mesmo
do trabalho, de modo que estar des- Ademais, há a questão da “deficien- aspecto: os joelhos curvados para
provido da capacidade de trabalhar tização” do trabalhador, quando este dentro e para trás, os pés voltados
por causa de um corpo deficiente é se torna uma pessoa com deficiência para dentro, as articulações defor-
estar desprovido da capacidade de devido a acidentes de trabalho ou madas e grossas e, frequentemente,
ser um membro “útil”, “ativo” e “pleno” a condições precárias do trabalho a coluna desviada para a frente ou
de direitos e deveres da sociedade. prolongado. Por exemplo, Friedrich para o lado.”

100
CAPAZES DE SER E FAZER

A produção social da deficiência também é


“naturalizada” pelos saberes dominantes,
cujos significados atribuídos à deficiência
estão organizados em um sistema de Esse padrão molda a corponorma-
tividade de nossa estrutura social
aparente oposição binária de presença e pouco afeita à diversidade corporal,
ausência (capacidade versus deficiência). frequentemente associando a capaci-
dade de uma pessoa com deficiência
à funcionalidade de estruturas cor-
porais de modo a avaliar moralmente
o que as pessoas com deficiência são
capazes de ser e fazer. Assim, quan-
do uma pessoa não enxerga com
os olhos, não ouve com os ouvidos
e não anda como um bípede, ela é
lida como “deficiente” e passa a ser
percebida culturalmente como “inca-
Por isso a deficiência é primaria- raiz está nas mesmas instituições paz”, inclusive incapaz para o traba-
mente uma questão de classe, um econômicas e políticas que servem lho. Por isso, o capacitismo impede
componente intrínseco das lutas de base para o patriarcado hete- a percepção de que é possível um
anticapitalistas, deve compor todas rossexista, o racismo e a lesboho- cadeirante andar sem ter pernas, um
as pautas das lutas da classe trabalha- motransfobia. Esta é a primeira surdo ouvir com os olhos e um cego
dora. Pensar os impactos do sistema interpretação para o capacitismo, enxergar com os ouvidos.
capitalista capacitista sobre os cor- isto é, uma forma de discriminação A segunda interpretação para o
pos deficientes provoca também uma contra um grupo social específico, capacitismo é concebê-lo como uma
reflexão sobre os modos pelos quais o das pessoas com deficiência. Está estrutura, ou seja, uma normativi-
as pessoas com deficiência elaboram atrelado ao dispositivo da “capaci- dade corporal e comportamental
a “economia pelo corpo”. Falar da “eco- dade compulsória” que hierarquiza baseada na premissa de uma fun-
nomia pelo corpo” implica olhar para e induz pessoas com deficiência a cionalidade total do indivíduo. Essa
a materialidade do que chamamos, almejarem padrões de aparência e de ideia remete ao pensamento de Fio-
abstratamente, de economia, pensan- funcionalidade implicados no ideário na Kumari Campbell, para quem o
do nos jogos de “deficientização” do de um corpo “saudável”, “belo”, “pro- capacitismo reporta a uma matriz
trabalho a partir dos entrelaçamentos dutivo”, “funcional”, “independente” de inteligibilidade corporal e com-
da deficiência com ambientes, barrei- e “capaz”. Na perspectiva marxista, portamental que traça seus próprios
ras, classe, gênero, raça, sexualidade, a pessoa com deficiência é um corpo limites entre natureza e cultura ao
geração, Estado, economia, política fora da ordem capitalista, porquanto definir como “ordem natural das
e cidadania. Aliás, a deficiência e um corpo de “menor valor” e “inca- coisas” uma corporalidade com-
o capacitismo como categorias de paz” para o trabalho e por isso um pletamente funcional e capacitada,
análise ampliam o potencial analíti- obstáculo para a produção. De fato, isto é, um corpo sem deficiências e
co e político de superar hierarquias as pessoas com deficiência são um doenças. Essa interpretação implica
de opressão sustentadas pela lógica grupo social bastante invisibilizado que várias corporalidades podem ser
capitalista neoliberal que incide na das lutas anticapitalistas e dos deba- lidas como ininteligíveis – incluídos
corponormatividade, na qual a bran- tes sobre o mundo do trabalho no corpos femininos, negros, indígenas
quitude e a hetero-cis-normatividade capitalismo contemporâneo, apesar e LGBTQIA+. E pressupõe, no entanto,
estão implicadas. da materialidade do corpo deficiente uma hierarquia de corpos dissiden-
O capacitismo é a opressão vivida ser fortemente demarcada do ponto tes, com os corpos deficientes no
pelas pessoas com deficiência e sua de vista da “aptidão” para o trabalho. topo da estrutura capacitista. Por

101
ANAHÍ GUEDES DE MELLO

isso, faz sentido a afirmação de que cas sociais e discursos que a colocam as pautas das lutas anticapacitis-
o capacitismo está para as pessoas como o oposto da capacidade. No tas. A própria opressão capacitista
com deficiência como o racismo entanto, o contrário da deficiência se reflete nas relações hierárquicas
para as pessoas negras e indígenas, não é eficiência, mas capacidade. O da divisão de classes que sustenta
o sexismo para as mulheres e a les- oposto da eficiência é ineficiência. a divisão sexual, racial e funcional
bohomotransfobia para as pessoas Assim, não faz sentido usarmos (d) do trabalho em sociedades capita-
LGBTQIA+. eficiência para indicar jogos biná- listas. Por isso, se quebrássemos os
A produção social da deficiência rios “deficiência/eficiência” ou mes- muros que nos impedem de dialogar
também é “naturalizada” pelos sabe- mo atenuar uma suposta valoração com todo o campo progressista das
res dominantes, cujos significados negativa da categoria deficiência. lutas sociais das esquerdas, vería-
atribuídos à deficiência estão orga- Se o capacitismo é uma estrutura mos que a deficiência deixaria de ser
nizados em um sistema de aparen- que dificulta o acesso das pessoas uma existência solitária para ser uma
te oposição binária de presença e com deficiência à cidadania, sendo pauta interseccional, se deslocando
ausência (capacidade versus defi- atravessado pelos muros das desi- da experiência individual para a
ciência) que, na verdade, se revelam gualdades de classe, gênero, raça e experiência coletiva, a fim de que
interdependentes. Nesse sentido, a sexualidade, então as lutas antica- as lutas anticapitalistas, feministas,
noção de deficiência se materializa e pitalistas, feministas, antirracistas antirracistas, antiLGBTfóbicas e anti-
se retroalimenta por meio de práti- e antiLGBTfóbicas devem incorporar capacitistas caminhem juntas..
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GIRONDINOS POR PEDRO CHARBEL MARCELA CANTUÁRIA

Solidariedade entre muros

A criminalização do BDS palestino, que desafia fronteiras


locais, atesta a ameaça do movimento aos interesses
comerciais da vigilância e xenofobia global.

¶ LOGO APÓS DONALD TRUMP assumir a presidência A GLOBALIZAÇÃO DA BARBÁRIE


dos EUA em 2017, o primeiro-ministro israelense Benja- O apoio de Israel ao muro estadunidense revela que as
min Netanyahu declarou apoio à sua proposta de cons- formas pelas quais essa disseminação ocorre são tão con-
trução de um muro na fronteira com o México. Mais do cretas quanto perversas. A Magal Security Systems, uma
que uma amostra do previsível alinhamento entre os das empresas israelenses responsáveis pelo cerco ilegal à
dois governos, esse endosso revela a busca constante do Faixa de Gaza, foi uma das primeiras a oferecer ao projeto
regime israelense por legitimidade e apoio econômico de Trump todo seu conhecimento adquirido em violações
em contextos de violações de direitos humanos. Para o perpetradas contra o povo palestino. Na sequência, a filial
Estado de Israel, novos muros e novas fronteiras milita- estadunidense da Israel Aerospace Industries (IAI) foi
rizadas figuram tanto como oportunidades de multipli- selecionada para construir um dos protótipos do muro na
cação das bases principiológicas de seu regime de apar- fronteira com o México. No portfólio da IAI, destacam-se
theid, colonização e ocupação, quanto como potenciais drones armados e letais, além de tecnologias de vigilância
mercados para as tecnologias e serviços desenvolvidos empregadas no Muro do Apartheid.
no contexto dessas violações do direito internacional. O muro construído pelo Estado de Israel é considerado
Essa dinâmica de opressão do povo palestino pelo ilegal pela Corte Internacional de Justiça e tem mais de
regime israelense é também um laboratório para uma 85% de sua extensão dentro da Cisjordânia, território
lucrativa indústria global de segregação, controle, palestino sob ocupação israelense desde 1967. Entrecor-
repressão, racismo e militarização dos espaços urba- tando vilas e plantações palestinas, o muro cria guetos
nos e fronteiriços. Nesse cenário, destaca-se a atuação e anexa territórios. A Elbit Systems, uma das principais
da campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções responsáveis por sua construção, exporta sua experiên-
(BDS) ao regime israelense e às empresas e instituições cia para a barreira já existente entre os EUA e o México
cúmplices de suas violações. Ao reivindicar o fim da desde 2006. No governo Obama, a empresa foi contratada
cumplicidade internacional com os crimes do Estado de para construir mais de cinquenta torres de vigilância na
Israel, o movimento BDS busca impedir que os direitos fronteira estadunidense, violando o território indígena
mais básicos do povo palestino sigam sendo violados e, da nação Tohono O’odham, no estado do Arizona.
ao mesmo tempo, dificulta a disseminação das práticas Na Europa, onde políticas antimigratórias constituem
e discursos que se configuram nessas violações. muros muitas vezes invisíveis, mas igualmente atrozes, o

104
1 05
GIRONDINOS

regime de apartheid israelense também busca sustentação


política e econômica. Drones armados produzidos pela
Elbit são utilizados pela Agência Europeia da Seguran-
ça Marítima (EMSA) para patrulhar o Mediterrâneo. São
drones diferenciados, já que foram “testados em campo”
durante o massacre perpetrado por Israel na Faixa de
Gaza em 2014, o que oferece vantagem comercial para as
empresas israelenses. A Agência Europeia da Guarda de
Fronteiras e Costeira (Frontex), notória violadora dos direi-
tos de migrantes e refugiados, já realizou testes com drones
armados da IAI – os mesmos utilizados para o assassinato
de dezenas de palestinos durante a operação israelense
“Chumbo Fundido” entre 2008 e 2009, na Faixa de Gaza.
Esses laços macabros também se multiplicam no Sul
Global: se no passado, armas e treinamentos israelenses
abasteceram o apartheid sul-africano e diversas ditaduras
latino-americanas, hoje este complexo industrial encontra A INTERNACIONALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA
terreno fértil nos processos de militarização, repressão Em seu parecer sobre a ilegalidade do Muro do Apar-
e racismo que assolam os povos da América Latina, Ásia theid, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) também
e África. Não à toa, o Estado de Israel é um dos maiores pontuou a obrigação de Estados terceiros reconhece-
exportadores de armamentos do mundo, ocupando o rem o muro israelense como ilegal, não auxiliando na
primeiro lugar deste ranking, se considerado propor- sua manutenção nem em demais violações do direito
cionalmente o tamanho de sua população e economia. humanitário perpetradas por Israel. A multiplicação
O Brasil, que antes da eleição de Jair Bolsonaro já figu- de laços internacionais entre Estados e empresas com
rava entre os maiores compradores de armas de Israel, as violações israelenses revela que esta obrigação tem
se aproxima cada dia mais do regime israelense e de sua sido sistematicamente ignorada, cabendo à sociedade
indústria. Em sua vergonhosa viagem a Israel, Bolsonaro civil agir para mudar essa situação.
não só demonstrou total subserviência política a Trump É nesse contexto que, em 2005, inspirados pelos esfor-
e Netanyahu, como firmou novos acordos de cooperação ços internacionais que ajudaram a pôr fim ao apartheid
com aquele Estado, inclusive em âmbito militar. O esforço sul-africano, movimentos e organizações da sociedade
não surpreende, uma vez que Israel figura como um aliado civil palestina emitiram um chamado por solidariedade
ideal para os processos de militarização da sociedade efetiva através de campanhas de Boicote, Desinvestimen-
brasileira e do genocídio da população negra em curso. to e Sanções (BDS). Ao estimularem movimentos sociais e
No nível estadual, as tecnologias, táticas e doutrinas pessoas de consciência de todo o mundo a de fato pres-
desenvolvidas sobre o povo palestino chegam via com- sionarem o regime de colonização israelense, palestinos
pras diretas e convênios de cooperação e treinamento. e palestinas também promoveram uma descolonização
No Rio de Janeiro, antes mesmo de tomar posse como da própria noção de solidariedade internacional, esta-
governador, Wilson Witzel viajou a Israel, interessado belecendo que não há mais espaço para falsa caridade e
em adquirir drones israelenses para ações nas favelas declarações vazias. Em vez disso, o movimento BDS pro-
cariocas. Por sua vez, a Polícia Militar paulista, que dispõe move a formação de uma rede internacional de alianças
de seis caminhões blindados israelenses utilizados para contra as bases de sustentação do regime israelense –
reprimir manifestações, anunciou, no início de 2020, a sejam elas econômicas, políticas, acadêmicas ou culturais.
compra de metralhadoras de guerra da Israel Weapon O movimento BDS estrutura seu chamado por meio
Industries (IWI) para a Rota, seu batalhão mais letal. de três reivindicações que, baseadas no direito inter-

106
SOLIDARIEDADE ENTRE MUROS

Ao estimularem movimentos sociais e pessoas


de consciência de todo o mundo a de fato
pressionarem o regime de colonização
israelense, palestinos e palestinas também
promoveram uma descolonização da própria
noção de solidariedade internacional,
estabelecendo que não há mais espaço para
falsa caridade e declarações vazias.

nacional, representam o anseio do povo palestino por Vitórias de campanhas como essas são apenas exemplos
autodeterminação. A primeira demanda diz respeito ao da efetividade deste movimento em desafiar as bases do
desmonte do muro e a necessidade de Israel pôr fim à regime israelense. O BDS cresce tanto no nível econômico
ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, incluindo e militar como cultural e acadêmico, afrontando vínculos
Jerusalém Oriental. Em segundo lugar, o movimento institucionais com as violações israelenses e não permi-
reivindica o fim da discriminação racial, institucio- tindo que o apartheid, a colonização e a ocupação sejam
nalizada em dezenas de leis discriminatórias contra normalizados. O sucesso do movimento é tamanho que
palestinos e palestinas que vivem dentro do Estado Israel tem feito o que pode para freá-lo. Por um lado, o
de Israel, compondo 20% da população israelense. Por Estado israelense promove esforços de publicidade deli-
último, exige-se que os mais de 5 milhões de palestinas berados por meio da arte e da cultura, almejando encobrir
e palestinos refugiados pelo mundo tenham seu direito ou colorir suas violações com algum verniz; por outro,
inalienável de retorno respeitado, em conformidade avança na tentativa desesperada de criminalizar o BDS e
com a resolução 194 da Organização das Nações Unidas. a solidariedade com a luta do povo palestino.
As respostas a esse chamado têm sido inspiradoras e Ao considerar esse movimento não violento por liber-
efetivas. Em oposição à lucrativa indústria dos muros dade, igualdade e justiça como uma “ameaça estratégica”,
e da militarização, movimentos constroem campanhas o Estado de Israel revela onde reside a força, mas tam-
BDS que desafiam até mesmo empresas como a Elbit, a bém a fragilidade, de seu projeto racista e militarista:
grande produtora de drones israelense e construtora do nos laços de cumplicidade internacional. É justamente
Muro do Apartheid na Cisjordânia. Graças a campanhas ao avançar sobre esses laços que o BDS conecta lutas
BDS em diversas partes do mundo, contratos bilionários e internacionaliza a resistência. Das favelas do Rio de
com essa gigante israelense foram cancelados na França, Janeiro à Faixa de Gaza, da fronteira com o México
na Dinamarca e no Brasil, e a empresa perdeu o inves- à Cisjordânia, aqueles e aquelas que lutam contra o
timento de bancos como o HSBC e o britânico Barclays. racismo e a militarização se insurgem, juntos e juntas,
Atualmente, ela também enfrenta fortes campanhas na contra as alianças entre Estados e empresas que glo-
Europa e nos EUA, motivadas tanto pela solidariedade ao balizam a barbárie. .
povo palestino, quanto pela luta contra a militarização
das fronteiras e criminalização da migração.

1 07
CASA GRANDE POR PARIS MARX
VERSALHES TRADUÇÃO EVERTON LOURENÇO

Diga sim à exploração


do espaço e não ao
capitalismo espacial

Jeff Bezos e Elon Musk têm uma visão do espaço que


atende aos estreitos interesses capitalistas. No entanto,
não queremos servidão por contratos em uma colônia
marciana – queremos uma exploração do sistema solar
que beneficie a humanidade como um todo.

¶ EM 30 DE MAIO, com mais de dois anos


de atraso, a SpaceX finalmente colocou
astronautas no espaço. O presidente Donald
Trump esteve presente no lançamento.
Depois de pressionar pela militarização do
espaço, com a formação da Força Espacial
dos EUA, Trump fundiu sua visão com a do
fundador da SpaceX, Elon Musk, declaran-
do que “em breve estaremos pousando em
Marte e logo teremos as maiores armas já
imaginadas em toda a história”.

1 08
VERSALHES

Os bilionários
espaciais – com
Musk e o CEO
No início do mandato de Trump, Musk enfrentou críticas por fazer
da Amazon, Jeff
parte do conselho consultivo do governo e por se recusar a renunciar, Bezos, à frente –
mesmo quando o presidente proibiu a entrada de muçulmanos no país.
Acreditava-se que Musk pretendia se beneficiar de subsídios públicos
têm pouco interesse
maiores, além dos bilhões que a Nasa deu à SpaceX, e ele caminha para no bem-estar
isso com o plano de Trump para levar astronautas de volta à Lua em 2024.
Mais recentemente, os dois demonstraram as mesmas opiniões sobre a
da maioria da
pandemia, quando compartilharam informações enganosas sobre saúde, população.
e quando Musk ecoou os apelos de Trump pela “abertura da economia”
para “devolver às pessoas sua liberdade”.
Acreditam que
O lançamento em 30 de maio simbolizou tanto o desejo de Trump de o espaço deve
projetar a imagem de uma reavivada grandeza estadunidense como a
necessidade de Musk de reforçar o mito que possibilita sua riqueza e
ser projetado para
estabelecer as bases para uma indústria espacial privatizada. pessoas ricas
Os bilionários espaciais – com Musk e o CEO da Amazon, Jeff Bezos,
à frente – têm pouco interesse no bem-estar da maioria da população.
como eles.
Acreditam que o espaço deve ser projetado para pessoas ricas como eles,
com pouca menção sobre onde a classe trabalhadora se encaixaria nessa
história. Ambos construíram suas riquezas por meio da exploração e suas
visões do futuro não passam de uma extensão de suas ações presentes.

UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA


As práticas de negócios de Musk e Bezos são cada vez mais conhecidas e
têm estado às claras durante a pandemia. Musk tentou reivindicar que a
fábrica da Tesla em Fremont, na Califórnia, seria um “serviço essencial”,
até que autoridades o forçaram a fechá-la; depois ele a reabriu, desafiando
as ordens sanitárias. Como CEO da Tesla, Musk tem um longo histórico
de oposição à sindicalização dos trabalhadores, dirige a companhia em
meio a um alto índice de acidentes de trabalho (que a empresa tentou
encobrir), e até mesmo ordenou que um ex-funcionário fosse hackeado
e assediado depois de ter denunciado as práticas da empresa.
Enquanto isso, Bezos possui um histórico semelhante de abuso dos
trabalhadores. Os armazéns da Amazon são conhecidos por terem taxas
de acidentes maiores que a média do setor; a empresa tem lutado con-
tra a sindicalização e as histórias sobre as terríveis condições vividas
pelos funcionários são lendárias. Durante a pandemia, isso prosseguiu,
com a empresa deixando de impor distanciamento social ou de for-
necer equipamentos de proteção adequados até que os trabalhadores
começaram a entrar em greve; além disso, a Amazon recusou-se a ser
transparente com as informações sobre infecções e demitiu os que
ousaram criticar a empresa – tudo isso enquanto a riqueza de Bezos
crescia mais de 30 bilhões de dólares.

110
DIGA SIM À EXPLORAÇÃO DO ESPAÇO E NÃO AO CAPITALISMO ESPACIAL

Mas as coisas vão além disso, porque


as visões de mundo desses bilionários
começaram a se formar muito antes
deles iniciarem os impérios sobre os
quais reinam atualmente.
Musk não teve uma infância comum,
e sim uma criação endinheirada duran-
te o apartheid da África do Sul. Seu
pai era engenheiro e dono de parte de
uma mina de esmeraldas na Zâmbia.
Como contou à revista Business Insider:
“Éramos muito ricos. Tínhamos tanto
dinheiro que às vezes nem conseguía-
mos fechar nosso cofre”. No livro Elon
Musk: Tesla, SpaceX, and the Quest for
a Fantastic Future [Elon Musk: Tesla,
SpaceX e a busca por um futuro fan-
tástico], Ashlee Vance descreve como
Musk recebeu dinheiro de seu pai
quando estava iniciando um de seus
empreendimentos originais. Ele tam- gens abastadas, possibilitadas pela extração de recursos. Quando
bém tinha uma admiração especial por escavamos suas ideias para um futuro no espaço, fica explícito que
seu avô, que se mudou do Canadá para eles buscam estender essas condições para o cosmos, em vez de desa-
a África do Sul do apartheid depois de fiá-las em favor de uma exploração espacial pelo benefício de todos.
se manifestar “contra a interferência
do governo nas vidas dos indivíduos”.
A história de Bezos não é muito dife- O FUTURO QUE ELES QUEREM
rente. Seu pai era um rico engenheiro de Musk e Bezos são as principais figuras à frente do impulso moderno
petróleo em Cuba enquanto Fulgencio pela privatização e colonização do espaço por meio de suas res-
Batista estava no poder [1940-1944 e pectivas empresas, a SpaceX e a Blue Origin. Suas visões diferem
1955-1959]. No livro Bit Tyrants: The Poli- ligeiramente, Musk prefere colonizar Marte, enquanto Bezos tem
tical Economy of Silicon Valley [Tiranos mais interesse em construir colônias espaciais na órbita da Terra.
dos bits: a economia política do Vale do Em 2016, Musk afirmou que começaria a enviar foguetes a Mar-
Silício], Rob Larson explica que o pai te em 2018. Isso nunca aconteceu, mas sua obsessão não parou
de Bezos deixou a ilha após a Revolu- por aí. Musk está determinado a fazer dos humanos uma espécie
ção Cubana e passou sua perspectiva multiplanetária, enquadrando nossas escolhas como colonização
“libertária” para o filho. Os pais de Bezos do espaço ou o risco de extinção. Bezos diz que a Terra é o melhor
investiram quase 250 mil dólares na planeta do nosso sistema solar, mas que se não colonizarmos o
Amazon em 1995, quando ela estava espaço, estaremos nos condenando à uma “condição estacionária
começando. e ao racionamento”.
Esses barões do espaço ganharam Esses enquadramentos atendem aos interesses desses bilionários
seus bilhões por meio da exploração e fazem parecer que colonizar o espaço seria uma escolha óbvia e
de seus funcionários e vieram de ori- necessária, quando não é. Ao mesmo tempo, ignoram sua culpabilidade

111
VERSALHES

O interesse
coletivo da
humanidade é
pessoal e o papel do sistema capitalista que eles buscam reproduzir
beneficiado quando
na raiz dos problemas dos quais eles dizem que precisamos fugir, aprendemos
em primeiro lugar.
Os bilionários têm uma pegada de carbono muito maior do que
mais sobre o
as pessoas comuns, com Musk voando em seu jato particular por sistema solar
todo o mundo, embora alegue ser um campeão da causa ambiental.
A Amazon, enquanto isso, corteja as empresas de petróleo e gás com
e o universo para
serviços em nuvem para tornar seus negócios mais eficientes, e a Tesla além dele,
vende uma falsa visão de sustentabilidade que serve de propósito
a pessoas como Musk, enquanto o capitalismo continua levando o
mas tais missões
sistema climático à beira do precipício. Colonizar o espaço não nos devem ser
salvará da distopia climática movida a bilionários.
Esses bilionários, no entanto, não escondem a quem atenderiam
impulsionadas
os seus futuros. Musk já forneceu vários números diferentes para pelo ganho de
o preço de uma passagem a Marte, mas eles nunca são baratos. Ele
disse a Vance que as passagens custariam entre 500 mil e 1 milhão
conhecimento
de dólares, por isso ele acredita que “é altamente provável que haja científico e pelo
uma colônia marciana autossustentável”. Entretanto, os trabalha-
dores de tal colônia sem dúvida não seriam capazes de comprar sua
aumento da
própria ida. Em vez disso, Musk tuitou um plano para a servidão cooperação global,
por contrato em Marte, segundo o qual os trabalhadores tomariam
empréstimos para comprar suas passagens e as pagariam mais tarde
e não pelo
porque “haverá muitos empregos em Marte!”. nacionalismo e
Bezos é ainda mais aberto sobre como a força de trabalho teria de
se expandir para atender a sua expectativa, mas não tem muito a
pela obtenção
dizer sobre o que eles farão da vida. Seu plano para manter o “cres- de lucros.
cimento e dinamismo” econômico exige que a população humana
cresça até atingir um trilhão de pessoas. Ele afirma que isso criaria
“mil Mozarts e mil Einsteins” que viveriam em colônias espaciais
que deverão abrigar um milhão de pessoas cada, com a superfície da
Terra sendo destinada principalmente ao turismo. Enquanto isso, o
trabalho industrial e de mineração seria deslocado para a órbita, a
fim de deixar de poluir o planeta e, embora ele não reconheça isso
explicitamente, é provável que você encontre muitos desses trilhões de
trabalhadores na labuta pelo seu senhor espacial e seus descendentes.

O ESPAÇO NÃO DEVERIA BENEFICIAR OS CAPITALISTAS


Em 1978, Murray Bookchin investiu contra um certo tipo de futurismo
que buscava “estender o presente rumo ao futuro” e que desejava que
“corporações multinacionais se tornassem corporações multicósmi-
cas”. A maior parte desse pensamento sobre o futuro tem obsessão
por possíveis transformações tecnológicas, mas busca preservar as

112
DIGA SIM À EXPLORAÇÃO DO ESPAÇO E NÃO AO CAPITALISMO ESPACIAL

relações sociais e econômicas existentes um renovado impulso dos EUA rumo ao espaço, que canaliza maciços
– “o presente como existe hoje, projeta- fundos públicos para bolsos privados e que busca abrir os corpos
do para daqui a cem anos”, como colocou celestes para a extração capitalista de recursos.
Bookchin. Esse é o cerne da visão dos Isso não quer dizer que precisamos interromper a exploração
bilionários espaciais para o futuro. espacial. O interesse coletivo da humanidade é beneficiado quando
O espaço foi usado por presiden- aprendemos mais sobre o sistema solar e o universo para além dele,
tes anteriores nos EUA para reforçar mas tais missões devem ser impulsionadas pelo ganho de conhe-
o poder e a influência estaduniden- cimento científico e pelo aumento da cooperação global, e não pelo
ses, mas era amplamente aceito que nacionalismo e pela obtenção de lucros.
o capitalismo acabava nos limites da E, ainda assim, é exatamente nisso que os bilionários espaciais
atmosfera. Esse não é mais o caso – e e os autoritários estadunidenses encontraram uma causa comum,
assim como as expansões capitalistas com Trump declarando em uma coletiva de imprensa da Nasa que
do passado se deram à custa dos pobres “uma nova era de ambição americana começou agora”, poucas horas
e trabalhadores para enriquecer uma antes de cidades por todo o país terem sido colocadas sob toque
pequena elite, o mesmo acontecerá com de recolher, em junho. Antes que o espaço possa ser explorado de
esta. Bezos e Trump podem ter uma rixa uma forma que beneficie toda a humanidade, as relações sociais
pública, mas isso não significa que seu existentes precisam ser transformadas, e não estendidas rumo às
interesse mútuo não seja atendido por estrelas como parte de um novo projeto colonial.

Independência editorial 
se faz com interdependência
A Elefante existe graças a seus leitores e leitoras.
Venha conosco e amplifique as discussões
sobre América Latina, feminismo, antropologia,
descolonização e alternativas.

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CASA GRANDE POR JOHN CARL BAKER
O PIOR ESTADO TRADUÇÃO GIULIANA ALMADA E DÉBORA NASCIMENTO

A mídia esconde
o imperialismo
estadunidense

Os veículos de comunicação tradicionais


gostam de retratar a Coreia do Norte como
um ator irracional determinado a destruir
os Estados Unidos. No entanto, é impossível
compreender o programa nuclear da Coreia do
Norte sem considerar o militarismo dos EUA.

¶ NA PRIMEIRA SEMANA DE SETEMBRO, o New York Coreia do Norte — que podem carregar tanto ogivas
Times publicou um alerta na primeira página: a Coreia convencionais quanto nucleares — ameaçam, portanto,
do Norte conduz testes de mísseis que revelam avanços aliados dos EUA e “ao menos oito bases estadunidenses,
tecnológicos destinados à subversão dos sistemas de que abrigam mais de 30 mil soldados nesses países”.
defesa antimísseis estadunidenses. É improvável que estenógrafos do Pentágono, como
Como em tantas outras reportagens sobre questões Sanger e Broad, questionem o porquê de os Estados Uni-
relacionadas à Coreia do Norte, o artigo — escrito por dos terem dezenas de milhares de soldados e oito bases
David Sanger e William Broad — retrata algo legitima- militares no nordeste da Ásia — sendo uma delas a maior
mente preocupante (tensões inflamadas entre países e mais cara base militar estadunidense no mundo, a
detentores de armas nucleares nunca são coisa boa), Camp Humphreys. Mas os jornalistas do Departamento
enquanto convenientemente ignora o papel que o mili- de Defesa dos EUA devem ao menos reconhecer os riscos
tarismo estadunidense, camuflado como estratégia de da implantação de tecnologia de defesa antimíssil em
defesa, desempenhou na criação desse problema. uma região ainda tecnicamente em guerra — e onde
Sanger e Broad afirmam que os recentes testes norte- um dos lados desenvolveu um programa de armamento
-coreanos revelam “maior alcance e capacidade de mano- nuclear. Sanger e Broad não mencionam esse assunto.
bra, que podem sobrecarregar as defesas estadunidenses Em vez disso, sugerem — estranhamente — que os testes
na região”. Alguns desses mísseis, eles observam, são com mísseis da Coreia do Norte fazem parte de uma cam-
projetados para derrotar sistemas de defesa antimís- panha de “pressão máxima” contra os Estados Unidos.
sil como o Aegis e o Patriot, fornecidos pelos Estados A ideia de que um cerco de ostracismo internacional
Unidos ao Japão e à Coreia do Sul. Os novos mísseis da seria capaz de pressionar os Estados Unidos em qual-

114
mundo todo. A retirada dos Estados Unidos do Tratado de
Mísseis Antibalísticos em 2002 marcou o silencioso início
do colapso do controle de armas nucleares. O Tratado de
Forças Nucleares de Alcance Intermediário, estabelecido
entre a União Soviética e os Estados Unidos em 1987, está
perdido, em parte devido a uma disputa relacionada às
implantações de defesa antimíssil dos EUA na Europa.
E as novas armas nucleares assustadoras da Rússia que
tanto ouvimos falar? Elas foram projetadas para deter as
defesas antimíssil estadunidenses. Você pode apostar que
a China também está de olho nesses desenvolvimentos.
Não é difícil entender o motivo. A defesa estratégi-
ca antimíssil tem um histórico risível, mas potências
detentoras de armas nucleares como a China e a Rús-
sia precisam considerar que esses sistemas poderão vir
a funcionar algum dia. Elas têm uma escolha a fazer:
investir em novas tecnologias hoje ou apostar colocando
sua própria existência na reta amanhã. Como James J.
Cameron disse após o lançamento da Revisão de Defesa
Antimíssil de 2019: “O risco hoje é de Moscou e Pequim
enxergarem qualquer expansão na defesa antimíssil
como uma intensificação da suspeita de um primeiro
ataque estadunidense — em uma crise, destruindo suas
forças nucleares ofensivas ao atacá-las preventivamen-
quer coisa, desnecessário dizer, é tola. No entanto, este te”. Ele segue: “Isso poderia levar a uma nova corrida
é o sistema de política externa sobre o qual estamos armamentista, com adversários dos EUA construindo
falando, em que a própria diplomacia é vista como uma um maior número de mísseis com maior capacidade
concessão a Kim Jong-un. Uma explicação mais pre- [ênfase minha].” Ou seja, exatamente o que estamos ven-
cisa e sensata para os testes atuais é que eles fazem do agora — tanto em arenas regionais (Coreia do Norte)
parte de uma espiral antagônica de desenvolvimento como globais (China e Rússia).
armamentista e de contradesenvolvimento. Os Estados Convenientemente, o New York Times deixa de fora
Unidos, que investem pesado em tecnologias de defesa todo esse histórico — enquanto omite também o papel
antimíssil, alegremente encorajaram o Japão e a Coreia central desempenhado pelo presidente sul-coreano, Moon
do Sul a implantá-las nos últimos anos (quem se lembra Jae-in na redução das tensões na península. O leitor médio
do sistema THAAD?). Os norte-coreanos, compreendendo pode acabar pensando que a Coreia do Norte — um
esses movimentos como uma ameaça às suas próprias “reino eremita” irracional que avança com seu progra-
capacidades, responderam de maneira bastante lógica: ma nuclear em um caso absolutamente excepcional de
desenvolvendo novas tecnologias para impedi-los. Isso imprudência internacional — está decidida a aniquilar
não é chocante ou surpreendente — é basicamente a os Estados Unidos e seus aliados.
primeira lição de relações internacionais. Um ponto de partida mais útil seria interpretar os
Embora previsível, é lamentável que Sanger e Broad novos mísseis da Coreia do Norte em relação ao fetiche
ignorem essa dinâmica — porque a obsessão dos Esta- estadunidense pela defesa antimíssil, mas isso exigiria
dos Unidos com a defesa antimíssil está inflamando lançar um olhar crítico sobre o império estadunidense.
as relações não apenas na península coreana, mas no Essa perspectiva terá de ser procurada em outro lugar.

115
POR TULIO CUSTÓDIO ILUSTRAÇÃO CAMILA ROSA

O neoliberalismo não
apenas individualiza,
como também fragmenta

A vida
sujeitos até eles sentirem
que não farão diferença.

subalterna
em estações
“Os tempos fazem você sofrer quando as estações mudam”

¶ FALAR DE NEOLIBERALISMO também tem sido


falar de precarização, flexibilização e austeri-
dade. Como dimensões materiais da vida dos
trabalhadores, estas são abordagens essenciais
para entender os meandros do capitalismo, da
forma como ele tem se desenvolvido desde os
anos 1970. Mas há um movimento com o lado
mais subjetivo da realidade que envolve também
a disseminação de modos de vida.

117
TULIO CUSTÓDIO

Uma música de Curtis Mayfield, “Quando as estações mudam”


(“When Seasons Change”, de 1975), comunica essa dinâmica:

“Time makes you suffer when seasons change


Can’t call no names when you got your own self to blame
Praying to Jesus make me a little stronger
So I might live the life a little bit longer
So many changes going in and out of my life
How can anyone survive
When everybody’s been made a sacrifice
Look all around and see yourself so weak and so vulnerable
So you’re trying to be strong but your money ain’t too long O neoliberalismo,
And it’s so terrible”
além do sistema de
“Os tempos fazem você sofrer quando as estações mudam financeirização,
Não há quem chamar quando você tem só a você mesmo para culpar
Rezando para Jesus me fazer um pouco mais forte
reflete um conjunto
Para que possa viver a vida um pouco mais longa de valores e visão
Tantas mudanças entrando e saindo em minha vida
Como alguém pode sobreviver a isso
de mundo e uma
Quando todo mundo tem feito um sacrifício racionalidade
Olhe em volta e se veja tão fraco e tão vulnerável
Então você está tentando ser forte mas o dinheiro está curto
política. Ele atua na
E isso é tão terrível” transformação
O neoliberalismo tem uma dimensão trágica. É necessário perceber sua
e na mudança das
realidade de fragmentação e deterioração dos sujeitos. Tal condição de normas de diversas
deterioração como forma de reprodução da nossa vida de explorados e
dominados dificulta enxergar “uma luz no fim do túnel”.
esferas.
Mas por que falar de uma dimensão trágica quando buscamos elemen-
tos para uma insurgência tão urgente, para uma transformação? Porque
invariavelmente é a condição na qual muitas pessoas estão e só lidando
com ela podemos propor alternativas para escapar desse cenário.
Desde os anos 1970, o neoliberalismo tem “mudado a estação do mundo”,
e isso se refletiu nas nossas subjetividades. E há explicações estruturais e
concretas. No universo do trabalho, as pessoas estão cada vez mais aflitas,
mais ansiosas, lutando e se ocupando a todo momento para que não sejam
eliminadas. A competitividade e o sofrimento fazem parte do jogo, mas
não como um mero efeito colateral. Eles existem como elemento essencial,
formam aquilo que já é “dado”, e muitas vezes é inquestionável.
As condições sociais e estruturais a que os trabalhadores estão submetidos
no neoliberalismo são reproduzidas também com um processo constante de
deterioração de nossas subjetividades. Esse processo atravessa: a) a lógica
competitiva e de isolamento atrelada à crença de que não há outra forma de

118
A VIDA SUBALTERNA EM ESTAÇÕES

viver a não ser dentro do capitalismo; b) o fato de que a flexibilização de igualdade ou liberdade, ocorre como
torna-se uma regra, e a condição de ser descartável e solúvel, uma um “norte simbólico” daquilo que preci-
realidade, e por último c) a condição de deterioração subjetiva das samos seguir e defender sem pensar. O
pessoas por meio do conceito do filósofo Cornel West, niggerization. efeito produzido por essa lógica é a ação
São três partes de um movimento que envolve fragmentação, esperada dos indivíduos focados neles
dessimbolização e deterioração em torno do neoliberalismo. Jun- mesmos; ou seja, se o mundo é um mer-
tos condicionam a subalternidade dos trabalhadores no sistema. cado em competição, cabe a você lutar
É o movimento que sai do sofrimento e da vitimização para a pelo que é seu e não olhar pelos outros.
tragédia. Ou seja, ao contrário do drama – em que há mudança –, a Portanto, vemos a redução – e até a anu-
tragédia é aquilo que não se muda, que parece ter destino dado. A lação – do sentimento de solidariedade.
manutenção da estrutura se alimenta do sentimento de que “não Isso formaliza, entre todos os sujeitos,
se poder fazer nada para mudar”. a sensação de que estão por si mesmos,
ou seja, estão sempre competindo com
FRAGMENTANDO: todos. A fórmula “o homem é o lobo do
Não há quem chamar quando você tem só a você mesmo para culpar homem” opera aqui na sua força ideal
máxima. E o afeto que dá sentido a essa
Desde as revoluções burguesas, o indivíduo é o famoso protago- ação é o medo.
nista da modernidade. No neoliberalismo, sua fragmentação é um Outra forma é a “subjetivação do
processo aprofundado de apartamento do meio, do corpo social. modelo empresa”. Bem, o que significa
O indivíduo é um ser-por-si-só. isso? Que os sujeitos nesse contexto se
Nós sabemos que o indivíduo é a figura de ação, noção fundamen- enxergam, estabelecem uma imagem
tal que organiza as expectativas dos sujeitos em torno dos ideais de si, a partir do modelo empresarial.
de igualdade e liberdade. O indivíduo é aquele que supostamente O sujeito se torna, como têm defendido
age em benefício próprio e possui formas e potencial para deci- diversos autores, um “sujeito-empre-
dir seus caminhos, por vontade própria e, claro, esforço próprio. sarial”. A realidade do sujeito-empre-
O que ocorre nesse momento da história é a exacerbação dessa sarial é a da disseminação dos valores
imagem de indivíduo por meio de dois processos: 1) a lógica da de mercado, e da mercadorização das
competitividade como norma generalizada de interação social; e esferas da vida, na medida em que a)
2) a subjetivação do modelo empresa. ampliam o corte de laços de solida-
O neoliberalismo, além do sistema de financeirização, reflete um riedade a partir da concorrência gene-
conjunto de valores e visão de mundo e uma racionalidade política. Ele ralizada – assim como na questão da
atua na transformação e na mudança das normas de diversas esferas: competitividade, “empresas competem”
política, econômica, social e também no subjetivo, como surgimento – e b) a subjetivação empresa torna os
de um novo sujeito e o desenvolvimento de novas patologias psíquicas. sujeitos parte de uma relação indivi-
Há um sofrimento causado pela subjetivação neoliberal, uma muta- dualizada, na qual suas vantagens e seu
ção subjetiva provocada pelo neoliberalismo. Tal mutação promove autoinvestimento são a base do que
o “egoísmo social”, a negação da solidariedade e da redistribuição, conforma sua existência.
e fortalece movimentos reacionários e fascistas. Esse novo sujeito empresarial é fru-
A introjeção da norma de competitividade é um dos elementos cen- to da produção de uma “subjetividade
trais. O que ocorre com a ampliação da forma mercado como ideal de contábil” pela criação de concorrência
interação, na qual temos um conjunto de sujeitos que se comportam sistêmica entre os indivíduos. Toda sua
como empresas se relacionando, a competição se torna uma maneira ação contém uma gramática empresa-
“natural” de agir. Afinal, o que fazem as empresas em um “livre merca- rial em torno de si: ele “investe”, ele
do capitalista”? Competem! A competição, em condições nada ideais “enxuga”. Até sua educação financeira,

119
TULIO CUSTÓDIO

em um contexto no qual mais sujeitos se veem apartados de direitos


como previdência, passa por uma gramática do mercado: ele precisa
ser austero, ter uma “balança (individual) comercial positiva”. Para
se tornar competitivo, não basta poupar, também é preciso investir.
Como a frase célebre de Margaret Thatcher: “A economia é o método,
mas o objetivo é transformar o espírito”. A transformação do espírito
passa pela conformação dos sujeitos à determinação de se tornarem
mercadorias: solúveis e descartáveis.
Além disso, o neoliberalismo incorpora a administração do sofri-
mento como um fator de aumento de produtividade. Ajuda a gerir o
sofrimento em extensão e intensidade para criar retóricas de desem-
penho e controle interiorizado, organizar uma gramática de (falsa)
identidade, modos de trabalho e produção de experiências. Nesse
sentido, é fundamental compreender que o sofrimento, apesar de ser
estruturado em processos sociais e condicionantes, é lido e tratado
a partir da racionalidade neoliberal, como uma questão de instância
íntima, individual.
Mesmo que o sofrimento estava respaldado em uma instância mais
ampla, coletiva, há uma espécie de cartilha moral de que o sofrimento
deve ser lido e vivido de maneira individual. O sofrimento inoculado
ao trabalhador a partir das condições de produção amplia o lucro, e se Além do clima de
torna uma base de viver da flexibilização. Fica explícita a existência de
um conflito entre o discurso (da Liberdade e do Eu S/A) e a realidade.
medo, ansiedade e
O sujeito neoliberal é a própria mercadoria: ele precisa ser empreen- alerta, a flexibilização
dido, comercializado, consumido ou descartado. Mas nesse processo,
no qual ele produz e põe em circulação a si mesmo, também se amplia
constante amplia a
o fosso do sofrimento da condição e do discurso, em proporção cres- noção de “nenhuma-
cente, tornando quase inenarrável a experiência do sofrer.
Aqui voltamos à questão dos afetos. Vale sublinhar que o contexto de
valia” dos sujeitos,
competição ativa, cada vez mais presente em diversas esferas da vida, um esvaziamento de
é responsável por gerar uma condição subjetiva degradada, depressiva.
As emoções que respondem a esse contexto são base de um sofrimento
sentido, caso esteja
constante dos sujeitos. Seres acuados, ansiosos, depressivos, surtados, fora da situação de
estressados, “pifados”: o que poderia ser exceção, um problema pontual,
se torna a regra.
mercado.
A racionalidade neoliberal é responsável por gerir esse sofrimento
que desagua desse quadro objetivo das formas de vida. O sofrimento
não é um paralisador ou um obstáculo. Em situações de exploração, é
a partir dele que novas circunstâncias são produzidas. O sujeito que
age competitivamente busca lucros e “investe em si”, nas suas decisões
de trabalho, estudo e até em escolhas afetivas, é o sujeito que tem sua
subjetividade deteriorada. Assim, com medo, ansiedade e em estado
de alerta, o sujeito se fragmenta do corpo social, e ao mesmo tempo é
estabelecido o processo de deterioração de sua subjetividade.

120
A VIDA SUBALTERNA EM ESTAÇÕES

DESSIMBOLIZANDO: pemproletarização”, promovendo uma


Tantas mudanças entrando e saindo em minha vida/ instabilidade moral, uma aventura e um
Como alguém pode sobreviver a isso/ Quando todo mundo tem feito desmonte de dignidade que acomete o
um sacrifício sujeito precário. O foco é a determinação
de uma conduta empreendedora.
A condição material na qual está inserido o sujeito no neolibe- A cidadania neoliberal propõe um
ralismo, aquele que internaliza a lógica da competitividade e o sujeito livre a cuidar de si mesmo. Na
modelo de subjetivação empresarial, é o que possibilita e dinamiza verdade, a liberdade se torna sinônimo
tal situação. Neoliberalismo é o sistema da economicização da de empreendedorismo, e a igualdade,
vida, e isso ocorre em grande parte pela flexibilização constante a possibilidade de competir, ambas
e aguda da experiência. falsamente possíveis.
Isso implica na flexibilização do trabalho, que envolve pessoas Por conseguinte, a dessimbolização
estarem sujeitas a contratos temporários de prestação de servi- atravessa os afetos e a constituição
ços, modalidades precarizadas de vínculos (ou não vínculos), e a subjetiva da pessoa. Além do clima
ausência de garantias e direitos. Com o esvaziamento do emprego, de medo, ansiedade e alerta, a flexibi-
transformado em trabalho sem relação ou possibilidade de estabe- lização constante amplia a noção de
lecer identidade, há uma operação um pouco mais complexa aqui: “nenhuma-valia” dos sujeitos, um esva-
a dessimbolização dos trabalhadores. ziamento de sentido, caso esteja fora
A flexibilização atende ao fluxo do capital de economicizar tudo, da situação de mercado. Ao esvaziar
de se apropriar de todas as esferas para reproduzir acumulação símbolos, esvazia o significado do tra-
e circular mercadorias. Tudo é vendável, e assim, tudo é circulá- balho como atividade na vida da pes-
vel. Os sujeitos são solicitados a se livrar de todas as sobrecargas soa. O sujeito, então, se sente apartado
simbólicas que garantiriam suas trocas, incluindo o trabalho. Esta do grupo e os sentidos de coletividade
é a dessimbolização. O valor simbólico é desmanchado, restando são esvaziados para serem preenchidos
apenas o simples e neutro valor monetário da mercadoria. Nada por valores de mercado, pautados na
mais e nenhuma outra consideração (seja ela moral, tradicional, racionalidade neoliberal, com a lógi-
ou transcendental) pode entravar sua livre circulação: o jogo da ca da concorrência e a empresa como
circulação infinita e expandida da mercadoria. modelo de subjetivação.
O neoliberalismo cria uma condição para esse sujeito, quando A dessimbolização atinge até o prin-
introduz um novo estatuto do objeto e aguarda que os indivíduos cípio de ser um cidadão, de ocupação
se transformem a fim de se adaptarem à mercadoria. O capitalismo do público. Como nos ensina Wendy
é o sistema dos “corpos produtivos”, mas também da redução dos Brown, a racionalidade neoliberal esva-
espíritos, da mentalidade. Essa conduta de si e de outros acaba por zia o engajamento social e o senso de
minar a liberdade tão prometida pelo neoliberalismo. A forma de vida protagonismo voltado ao bem comum
que seria de maior liberdade se torna um contexto no qual sujeitos e se apropria da lógica do sacrifício,
legitimam sacrifícios: são governados por conjuntos de máximas apontada ao cidadão. O sacrifício é
normativas, também vulneráveis aos perigos da vida e pontos. compartilhado por todos os viventes
Os sujeitos se tornam “mediocrizados”. Nada vai além do que a naquele contexto, para garantir a eco-
mercadoria vale em circulação. Isso exige que esse novo sujeito seja nomia saudável e crescimentos, mas
precário, acrítico e psicotizante. É preciso que esteja aberto a todas sempre é protagonizado pelo indiví-
as flutuações identitárias – em especial a partir do consumo – e, con- duo. Surge uma nova forma de perten-
sequentemente, pronto para todas as conexões mercadológicas. Em cer e existir: a cidadania sacrificial.
suma, é o modelo do trabalhador flexibilizado ideal: a partir da flexi- Sacrifício significa “esvaziar-se de si
bilização, produz-se sujeitos dessimbolizados, uma espécie de “lum- por Deus”. No caso do neoliberalismo,

121
TULIO CUSTÓDIO

“Deus” é o mercado, e o sujeito é sacrificado em relação ao proje-


to de crescimento econômico, quase uma dimensão teológica do
capitalismo.
A gestão do sacrifício é caracterizada pela conjunção entre delegação
e responsabilização: a) delegação para que o indivíduo resolva proble-
mas gerados pela estrutura; e b) responsabilização pela moralização
da ação econômica que acompanha a economicização do político.
É a sobrecarga moral, posta sobre o elemento mais fraco no fim da
linha, de ter que discernir e seguir corretamente as estratégias de
valorização do capital humano. Os sujeitos são configurados como
elementos inteiramente responsáveis e culpabilizáveis por suas vidas
e pela vida da sociedade. Por meio desse binômio atuação-culpabi-
lização, são duplamente responsabilizados: espera-se que cuidem
de si mesmos – e são culpabilizados por seu próprio fracasso em
prosperar – e do bem-estar econômico – e são culpabilizados pelo
fracasso da economia em prosperar. Cidadania sacrificial impõe
uma disposição para privação, insegurança e exposição em prol do
consenso neoliberal. Para trabalhadores, isso significa que a soli-
dariedade e o sacrifício, antes voltados aos sindicatos (nas greves e
paralisações), são agora redirecionados para o capital (downsizing,
licenças, horas e benefícios reduzidos).

DETERIORANDO:
Olhe em volta e se veja tão fraco e tão vulnerável/ Então você está
tentando ser forte mas o dinheiro está curto/ E isso é tão terrível

Tudo isso nos leva à situação da completa e constante deterioração


da condição subjetiva dos trabalhadores sob o capital. O neolibe-
Ser niggerizado é
ralismo é o sistema que, perfeitamente e em sincronia, consegue ser desumanizado
impor um movimento de alteração da forma e da substância da
vida das pessoas. Há transformação do trabalho, com a precariza-
– experiência de
ção e flexibilização, medidas de austeridade, entre outras. Assim, subalternização
também ocorre a modificação da substância trabalhador, o ser
humano, alterado pela racionalidade neoliberal que o fragmenta e
concreta e totalizante.
dessimboliza sua condição. Niggerização é um
No entanto, não podemos perceber esse movimento apenas como
efeito colateral. Pelos indícios que a gestão do sofrimento mobiliza
estado de terror, no
nesse contexto histórico, é possível crer que a subjetividade dete- qual os indivíduos se
riorada é uma condição sem a qual o capital não pode se reproduzir.
Sujeitos fragmentados e deteriorados subjetivamente são funda-
sentem inseguros,
mentais para reprodução sistêmica. desprotegidos,
A fim de entender o que desejamos expor, trazemos para a cena
o conceito de niggerization, do filósofo Cornel West, cunhado no
sujeitos à violência
interior da teoria crítica racial. West usa niggerization para com- randômica e ao ódio.
122
A VIDA SUBALTERNA EM ESTAÇÕES

preender como todos estão à venda e vivem intimidados, com vozes tomando frente na organização das for-
que não importam na sociedade. mas de vida dos trabalhadores. A perda
A deterioração da condição subjetiva, marcada por ansiedade, se configura em sofrimento, manifesta-
angústia, medo e frustração, entre outros sentimentos, é a base do do em angústia, raiva, medo, ansiedade
sofrimento que acomete a classe trabalhadora na contemporanei- e frustração. Esses afetos atravessam
dade. No entanto, esse sofrimento não se configura como efeito e condicionam uma realidade social
colateral ou aquilo que pode demarcar falhas do sistema, mas sim ampla que reproduz aqueles sujeitos
é incorporado como maneira de sujeitar formas de vida que são como desempoderados, “rebaixados”
condicionadas e consentem à exploração nesse contexto. socialmente, desacreditados das con-
Apesar da conotação fortemente racializada do termo, nos inte- dições de mudança e transformação da
ressa compreender aqui como niggerization é utilizado para situar realidade a qual estão submetidos. São
uma discussão sobre lugar instituído, histórica e materialmente, de formas de expressão das narrativas de
marginalidade social e econômica, e a reprodução de uma condi- sofrimento do sujeito precarizado.
ção subjetiva de subalternidade a partir desse lugar. West conecta Enquanto movimento, niggerization
essa condição subjetiva de forma mais ampla para uma sociedade se configuraria como a instituição da
atravessada pelo neoliberalismo. Em suma, é sobre a generalização tragédia sobre a condição instituída
da condição deteriorada de existência. de subalternidade dos sujeitos para
O conceito foi proposto por West para refletir e diagnosticar a exploração e dominação. Ou seja, ser
sociedade estadunidense após o 11 de setembro de 2001, em uma niggerizado é incorporar elementos
mescla do vilipêndio social, econômico e ético perpetrado pelo de dois tipos: descartáveis e solúveis.
neoliberalismo, o militarismo e a gansgterização da sociedade. O Trata-se de formas concretas trágicas,
conceito de niggerization é emprestado pelo próprio West da teoria imersas numa lógica da racionalidade
crítica racial e do entendimento sobre processos de degradação e neoliberal e de um realismo capitalista,
deterioração subjetivas diante do sistema, como forma de manu- fora do qual – e principalmente contra
tenção e reprodução concreta da desigualdade racial. Diante des- o qual – se calcifica uma ilusão fanta-
sa conjuntura, toma uma dimensão ampla acerca da exploração e siosa de transformação, mudança.
subalternização da classe trabalhadora. Portanto, nosso esforço não deve
Nas palavras do filósofo, ser niggerizado é ser desumanizado – se ater apenas a uma prática concreta
experiência de subalternização concreta e totalizante. Niggerização que transforme as relações de traba-
é um estado de terror, no qual os indivíduos se sentem inseguros, lho e as condições objetivas dos tra-
desprotegidos, sujeitos à violência randômica e ao ódio. É sobre a balhadores, mas também à mudança
condição de manutenção das pessoas ordinárias em um estado de política e ideológica configurada pela
medo, intimidação, desesperança e falta de apoio, ausência de laços. “transformação do espírito” posto pela
Essas pessoas, diz West, andam curvadas, sentem que suas vozes racionalidade neoliberal, contra a ten-
não contam, que não podem fazer a diferença. tação de “não achar uma saída” para o
Niggerization é o movimento constante de deterioração de condições realismo capitalista. O neoliberalismo
subjetivas, e que possibilita a ampliação das condições objetivas da é a nova estação que veio, mudando o
acumulação capitalista e financeirização do capital. Esse movimento clima, impondo sofrimento. Um sufo-
está expresso no conjunto de afetos que remontam às condições con- co que é possível transcender. Vamos
cretas de precarização e flexibilização perpetradas no neoliberalismo, fazer chover.
isto é, o medo, a ansiedade, o estado de alerta, a frustração e a apatia.
A deterioração poderia ser delineada por meio da perda de laços
de significados e sentidos, atribuídos no processo do trabalho, resul-
tado da racionalidade neoliberal conectada aos valores de mercado

123
O fim do
começo

Marreta para todo mundo!


O FIM DO COMEÇO
FRENTE POPULAR POR RUD RAFAEL ILUSTRAÇÃO ÉRIKA SPÍNDOLA

Solidariedade
pra valer

Comida no prato em meio à pandemia.

¶ EM POUCO MAIS DE SEIS MESES, a pandemia ações levaram esperança aos territórios popu-
do novo coronavírus mudou radicalmente a lares sitiados cotidianamente pelo Estado, pelo
experiência na Terra. A imagem das metró- Capital e por diversas forças políticas, econô-
poles como grandes formigueiros humanos micas e culturais. Daqui de Recife, na periferia
deu espaço a uma experiência de intensivo do capitalismo com profundas raízes coloniais,
isolamento social. O que virá ainda está em buscaremos conectar vários desses processos
disputa. Quais são os muros que permanece- que ecoam pelas periferias do mundo.
rão de pé após esse evento inédito, mas que A realidade de óbito civil, decorrente da
pode nos permitir passar a limpo séculos de omissão do Estado, em que vivem as famílias
relações sociais desiguais? trabalhadoras nos territórios periféricos, está
Gritos por justiça que ecoam nas mobiliza- ainda mais evidente com a estratégia genoci-
ções de rua e nas redes – “Vidas negras impor- da na reposta do governo de Jair Bolsonaro
tam”, “Vida acima do lucro”, “Nenhum direito à pandemia.
a menos” – criaram rachaduras nos muros das Mesmo diante desse cenário, a periferia pare-
diversas opressões que se coadunam com a ce fazer sinalizações ambíguas. A dinâmica
brutal crise sanitária. dos bairros populares nos tempos atuais pode
A pandemia escancarou a desigualdade levar a questionamentos sobre como é possí-
nacional, que mesmo encoberta por barreiras vel, em um momento de crise, tantas pessoas
discursivas, capazes de criar inúmeras zonas ainda estarem na rua. Como se as pessoas não
de conforto, não estava tão escondida assim. entendessem a gravidade da situação.
Em muitos casos, esses muros caíram ou sofre- A necropolítica imposta através da desterri-
ram abalos importantes, mas ainda existem torialização forçada, das ausências de garantias
aqueles que parecem ser intransponíveis. básicas como água e comida e da ostensiva
Somados a essa indignação, que tem em si militarização ganhou uma resposta à altura
distintos potenciais demolidores, algumas em tempos de Covid-19. No vocabulário de

126
resistência dos movimentos sociais: “Não mor- nas ocupações e assentamentos que está tudo
reremos de vírus, nem de bala e nem de fome”. sempre bem: “Aqui na comunidade está tudo
As campanhas pela defesa do isolamento normal”. Basta insistir um pouco e as respostas
social, necessário para evitar a transmissão da mudam: uma companheira comentava “aqui,
Covid-19, se mostraram insuficientes diante quem fica doente toma chá, come alho, limão,
das condições de vida nas periferias, onde a gengibre, porque sabe que não vai ser atendido
falta de água na torneira, comida na mesa, no posto. A gente já vive com rato, barata e
espaço e ventilação adequada impossibilitam o tanta coisa, já deve ter ficado imune”. As falas
distanciamento e outras medidas necessárias. são sempre intercaladas com relatos de mortes
Diante da constante dor, alguns muros são de parentes e pessoas conhecidas. A resiliência
erguidos como autodefesa pelos próprios inicial dá espaço a um panorama aberto de
oprimidos. É comum ouvir de companheiras dores profundas, mas também de resistência.

127
FRENTE POPULAR

Os casos conhecidos são inúmeros. Uma Ações como o Fundo de Emergência para
mulher que deu à luz na maternidade sem Sem-Tetos afetados pelo Coronavírus, organi-
nenhum cuidado sanitário, um trabalhador zadas pelo MTST Brasil, distribuíram duzentas
ambulante que ganhava o pão vendendo na toneladas de alimentos nas periferias e para
praia, mas que agora não pode sair de casa. pessoas em situação de rua nos centros urba-
Assim como as mulheres que comercializa- nos. Foram criadas cooperativas de costura
vam bebidas e alimentos no terminal inte- para fabricação de milhares de máscaras; ser-
grado de ônibus e metrô próximo a uma das viços jurídicos, de saúde e psicológicos foram
ocupações do MTST e que nem sequer conse- oferecidos.
guiram acessar o auxílio emergencial. Relatos Cabe destacar o papel que diversos coletivos
de idosos e jovens companheiros lidando de juventude negra e mulheres vêm tendo
com depressão e alcoolismo tornaram-se nos territórios. Eles construíram diálogos
comuns nos bairros periféricos. São tantas entre si e têm contribuído nas diversas eta-
trajetórias possíveis, todas elas exigem uma pas de enfrentamento à pandemia, garantin-
resposta direta, mas nenhuma é necessaria- do o direito à informação e realizando ações
mente individual. Água, alimentação, saúde, solidárias que culminam em processos orga-
cuidado, moradia e trabalho não são questões nizativos e em mobilização política.
individuais. As relações de vizinhança e solidariedade,
Com essa crise, entendemos como é essen- que garantiram esses serviços essenciais, abri-
cial o trabalho dos profissionais de saúde, ram novas discussões, como a economia de
dos operadores do transporte público, das bairro, quais itens devem constar nas cestas
pessoas que construíram redes de solidarie- básicas, formação de redes de distribuição nas
dade, que lutaram para o acesso aos servi- periferias das cidades de alimentos orgâni-
ços de infraestrutura. Estamos aprendendo cos produzidos no campo. Assistimos à res-
também que tudo isso passa por organização significação do trabalho por uma crise que
política, pela articulação entre as necessi- demonstrou a centralidade dessas alternativas
dades sociais e o fazer coletivo cotidiano. de produção na estruturação da sociedade.
Se em um momento como este não formos Para além da resistência defensiva que o
capazes de reconhecer a importância de tais momento exige, esse exercício de solidarie-
vínculos, fracassaremos. dade de classe deve ser capaz de se desdobrar
em organização política compromissada com
as lutas antirracistas, antipatriarcais e inter-
O FLORESCER DA nacionalistas.
REVOLUÇÃO SOLIDÁRIA Um desses exemplos, a experiência da Frente
Para organizações de base territorial como o de Resistência Urbana latino-americana, foi
MTST não foi fácil reestruturar as formas de decisivo para solapar as fronteiras nacionais.
atuação e de organização da luta popular sem Em meio à pandemia, os Ollazos foram criados
poder contar com o espaço das assembleias, por iniciativa do Movimiento de Pobladores
das mobilizações de rua, das novas ocupações Ukamau – Cooperativa de Apoio Mútuo no Chi-
ou os encontros de formação política. Mas le – e de organizações argentinas como a Frente
as respostas de caráter emergencial foram Popular Darío Santillán. Os Ollazos levaram
tecendo redes de solidariedade vigorosas. às ruas da Argentina mil pontos de distribui-

128
SOLIDARIEDADE PRA VALER

Estamos
aprendendo
também que tudo
isso passa por
organização política,
pela articulação entre ção com panelas cheias de comida para serem
divididas entre as famílias nos bairros popula-
as necessidades res. Também a Minga Solidaria, realizada pelo

sociais e o fazer Congreso de los Pueblos, levou alimentação


às famílias que lutam pela paz nas periferias
coletivo cotidiano. da Colômbia. Assim foram derrubados alguns

Se em um momento muros do medo. E assim somaram-se sonhos


e suor pelas periferias do mundo.
como este não Em uma iniciativa, povos originários e

formos capazes movimentos populares convocaram e reu-


niram mais de 160 organizações de 16 países
de reconhecer a da América Latina. Outro encontro realizado

importância de por organizações do norte da África e Oriente


Médio pediu o cancelamento da dívida exter-
tais vínculos, na e o abandono dos acordos de livre comércio.

fracassaremos. Discussões como a soberania alimentar e


dos territórios, sem financeirização da natu-
reza, o combate às desigualdades, a defesa dos
comuns, o trabalho com direitos, o fim da
repressão policial, a defesa do sistema público
de saúde e a taxação das grandes fortunas
aparecem cada vez mais nas pautas dos movi-
mentos populares.
Não podemos afirmar que o neoliberalismo
será sepultado diante dos resultados catas-
tróficos no combate ao novo coronavírus no
mundo. No entanto, é inegável que os recentes
levantes antirracistas, feministas e populares
são capazes de produzir esperança. É preciso
estarmos preparados para os longos processos
de resistência que estão por vir e investir na
formação de novos vínculos de produções
progressivas com horizontes estratégicos cria-
dos a partir de uma pedagogia territorial, que
leve cada vez mais em conta as experiências
das periferias e das camadas mais populares
do mundo.
Só a aposta na organização política, na soli-
dariedade e no internacionalismo de classe é
capaz de nos oferecer uma saída. É o que nos
dá esperança de ocupar com vida todos os
lugares separados por muros.

129
O FIM DO COMEÇO
FUNDO DO BAÚ POR JOANA SALÉM VASCONCELOS

Driblando
à Cubana

“A primeira coisa que um povo faz para


dominar outro é separá-lo dos demais
povos”, dizia José Martí em 1891.

¶EM AGOSTO DE 1961, Che Guevara representou Cuba na reunião do


Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Esta-
dos Americanos (OEA), em Punta del Este, no Uruguai. Foi uma reunião
histórica por duas razões: primeiro, porque ali se criou a Aliança para o
Progresso, por meio da qual os Estados Unidos passaram a difundir sua
agenda reformista para a América Latina. Segundo, porque logo depois da
reunião, Cuba foi expulsa da OEA , ainda que estivesse, desde 1959, imple-
mentando as diretrizes da Carta de Punta del Este com mais compromisso
que qualquer outro país. Ou justamente por isso.
A participação de Cuba no evento foi memorável. Quando a delegação
aterrissou em Montevidéu, depois de uma viagem com quatro escalas em
um velho avião da companhia Cubana de Aviación, havia um mar de gente
com bandeiras cubanas e uruguaias, cantando palavras de solidariedade.
Ao ver a multidão, Che Guevara comentou: “por coisas como esta, vale a
pena qualquer sacrifício do mundo”. No percurso de Montevidéu a Punta
del Este, as rotas estavam tomadas de uruguaios solidários à revolução.
Tanta paixão popular era percebida como uma ameaça pelos EUA .
Em seu discurso principal de Punta del Este, em 8 de agosto, Che citou
as palavras premonitórias de José Martí: “O povo que compra, manda.
O povo que vende, serve. É preciso equilibrar o comércio para assegu-
rar a liberdade. O povo que quer morrer vende a um só povo, e o que
quer salvar-se vende a mais de um”. Martí havia feito esse discurso na
Conferência Monetária das Repúblicas da América em Washington, em
1891. Na época, ele era um exilado cubano proibido de voltar à ilha, mas
representava oficialmente a delegação argentina e uruguaia no evento.

130
FUNDO DO BAÚ

Simples e incômodo, Che prosse-


guiu citando Martí: “O influxo exces-
sivo de um país no comércio de outro
se converte em influxo político. […]
A primeira coisa que um povo faz
para dominar outro é separá-lo dos
demais povos. O povo que quer ser
livre, seja livre em negócios. Distri-
bua seus negócios entre países igual-
mente fortes”. Para revolução cubana,
Martí nunca foi apenas uma estátua
ou ícone fetichista, porque suas pala-
vras traziam a força da experiência
vivida. Ele foi o primeiro pensador
latino-americano que se deu conta
da grande inflexão dos EUA no fim
do século XIX: de exemplo de liber-
tação anticolonial para novo colo-
nizador e imperialista. A revolução
cubana foi martiana porque o povo
cubano quis ser livre.

UMA RELAÇÃO ABUSIVA denses ocorreu seis vezes até 1933, contra a estatização das proprieda-
De certo ponto de vista, o bloqueio quando uma rebelião popular der- des estadunidenses. No mesmo mês,
estadunidense contra Cuba foi mais rubou o ditador Gerardo Machado a URSS se ofereceu para comprar o
continuidade que ruptura: era a e com ele caiu a emenda. Mas logo açúcar destinado aos EUA , delinean-
insistência do padrão dominador depois, em 1934, foi assinado um do o que estava por vir.
diante do imprevisto revolucionário. Tratado de Reciprocidade, que nova- Em setembro de 1961, os EUA
O bloqueio foi aquela reação chanta- mente proibia Cuba de fazer acordos vetaram investimentos do capi-
gista e ameaçadora de quem perdeu com outros países sem autorização tal privado em Cuba, por meio do
poder e não soube lidar com a per- dos EUA . Foreign Assistance Act. Em feverei-
da. A dominação neocolonial, como Foi preciso uma revolução para ro de 1962, Kennedy declarou que
numa relação abusiva, ergue muros que Cuba rompesse o ciclo vicio- produtos estadunidenses estavam
para cercear a liberdade do outro, so do abuso, em 1959. O abusador proibidos de entrar em Cuba e vice-
em favor da paranoia monopolista entrou em negação. Sua psique diz: -versa. Em agosto, foi determinado
do controle. “Você não poderá se relacionar com que a Agência dos Estados Unidos
Desde 1902, com a Emenda Platt, mais ninguém, se não seguir minhas para o Desenvolvimento Interna-
Cuba foi proibida de assinar tratados regras”. O bloqueio foi erguido por cional (USAID, na sigla em inglês)
com outros países sem antes consul- partes, tijolo a tijolo, entre 1960 e não atenderia mais países que aju-
tar os EUA , que também conquistou 1963. Começou em dezembro de 1960, dassem Cuba. Em outubro, navios
o direito de ingerência militar sobre com a recusa dos EUA em pagar por 3 que tivessem aportado em países
o território da ilha. A violação de milhões de toneladas de açúcar cuba- socialistas foram interditados nos
Cuba por forças armadas estaduni- no já contratadas. Era uma resposta EUA. Em fevereiro de 1963, cidadãos

132
DRIBLANDO À CUBANA

A revolução
cubana foi
martiana porque
o povo cubano estadunidenses foram proibidos de
viajar à ilha, obstruindo o contato
DRIBLANDO O BLOQUEIO
Quem já circulou pelas ruas de
quis ser livre. entre milhares de famílias cubano- Havana sabe que a cidade é como
-americanas. O muro se completou uma grande oficina mecânica. Em
quando, em dezembro de 1963, os todas as ruas há automóveis antigos,
EUA exigiram que outros países modelos dos anos 1940 e 1950, com
rompessem relações diplomáticas e capôs abertos, sendo remontados,
comerciais com Cuba, se quisessem pintados, remexidos por dentro. No
obter seus empréstimos. seu dia a dia, os cubanos driblaram
Colonialismo, imperialismo e o bloqueio aprendendo a consertar
patriarcado são sistemas abusivos motores e máquinas de todos os
que operam dentro da mesma lógi- tipos, inventar peças de reposição
ca: não concebem a possibilidade da com matérias-primas improváveis e
autodeterminação do outro; silen- sucateadas. Com jogo de cintura, o
ciam a voz e bloqueiam a liberdade povo cubano se tornou o maior inimi-
de grandes contingentes populacio- go da obsolescência programada. Eles
nais; erguem muros de classe, raça e consertam tudo que foi programado
gênero; querem controlar territórios, para quebrar na indústria capitalista.
recursos naturais, trabalho, corpos. Utilizam princípios ativos mais bara-
Quanto mais veem seu poder amea- tos para produção de medicamentos,
çado, mais reagem com violência. que são patenteados e caríssimos no

133
FUNDO DO BAÚ

mercado mundial. Essa criatividade subdesenvolvimento. No entanto, tanto, tem sua cota de mérito sobre
popular e científica, digamos, repre- naquele ano 99% da cana foi colhida as conquistas sociais cubanas. Por
senta um ângulo otimista sobre os manualmente. Sem eximir a revolu- outro lado, incentivou uma cultura
efeitos deletérios do bloqueio. ção cubana de suas contradições e política autoritária, com hierarquias
No entanto, o bloqueio foi sem equívocos, é inegável que o fracasso e burocracias perniciosas. Na lon-
dúvida um dos principais obstácu- da safra de 1970 também foi causado ga duração, o esquema prejudicou
los para industrialização por subs- pelo bloqueio. Como consequência, Cuba. Quando a URSS ruiu, o PIB e
tituição de importações prometida a ilha se acoplou de maneira mais o bem-estar social cubano despen-
pela revolução. A impossibilidade de dependente ao Conselho para Assis- caram junto. Nos anos 1990, a ilha
obter peças de reposição no merca- tência Econômica Mútua (Comecon) mergulhou na crise. E o abusador
do externo que fossem compatíveis nos 1970 e 1980. voltou a violar.
com sua estrutura produtiva rapi- O salvadorenho-palestino Schafik
damente impediu o funcionamen- Hándal chamou o fenômeno de isola-
to normal de indústrias consolida- mento forçado de Cuba em relação à SOBERANIA PERIFÉRICA
das no país, incluindo a açucareira. América Latina de “revolução inser- Os EUA caracterizaram mal a revolu-
Importar bens de capital se tornou tada”, pois Cuba foi constrangida a ção cubana, pelo mesmo motivo que
um desafio complexo, conside- sobreviver num entorno hostil, cer- saíram derrotados do Vietnã: subes-
rando a falta de acesso à indústria cada de ditaduras anticomunistas. timaram o poder popular. Por isso,
capitalista e as peculiaridades da Enquanto existiu a URSS, o México o desamparo de Cuba nos anos 1990
indústria soviética. Logo nos anos foi o único país latino-americano foi interpretado pelo país como uma
1960, o governo lançou a campanha que manteve relações constantes e grande oportunidade. Nessa década,
“Construa sua própria máquina”, para normais com a ilha. Frente a esse os atentados dos Hermanos al Res-
estimular equipes de trabalhadores desafio, a estratégia cubana foi aco- cate e de outros bandos terroristas
na autoprodução do que necessita- plar-se à URSS , vendendo açúcar contaram com a conivência de Bill
vam. Cada fábrica ou unidade pro- caro e comprando petróleo e bens Clinton e do FBI. Os EUA aperta-
dutiva da ilha tinha seu Comitê de industriais baratos, a “preços polí- ram o bloqueio com a Lei Torricelli
Peças de Reposição para solucionar ticos”. Esse esquema, imposto pela (1992) e a Lei Helms-Burton (1996). A
adversidades técnicas com improvi- conjuntura específica da Guerra primeira ampliava sanções contra
so. A gambiarra cumpriu seu papel Fria, adiou algumas promessas da empresas e países que negociassem
revolucionário. revolução, embora tenha viabilizado com Cuba, interditava transnacio-
Ao mesmo tempo, a mecanização muitas outras. nais com parcela de capital estadu-
da agricultura representou um desa- O bloqueio conduziu Cuba a um nidense, prometia financiamento
fio muito maior do que os revolu- padrão dependente em relação ao a organizações anticastristas. Já a
cionários supunham, em razão das bloco soviético, mas essa dependên- segunda estabelecia que só o Con-
dificuldades em equacionar forne- cia nunca foi comparável à anterior. gresso dos EUA poderia encerrar o
cedores de tratores externos com É um equívoco pensar a relação bloqueio e definia valores de inde-
design customizado das máquinas, Cuba-URSS na chave do “imperia- nizações cubanas devidas aos EUA
que fossem apropriadas ao relevo e lismo”. Muito pelo contrário, durante quando o regime caísse. Novamente,
solo da ilha. Os dirigentes cubanos trinta anos a transferência de valor o backlash do abusador e a paranoia
esperavam uma safra mecanizada fluiu do centro (URSS) para periferia da vingança.
em 1970 para atingir a meta de 10 (Cuba). Foi uma relação dependente e A inflexão de dezembro de 2014
milhões de toneladas de açúcar e paradoxal. No curto prazo viabilizou e a estratégia soft-power de Obama
assim desenlaçar a armadilha do financeiramente a revolução e, por- não perduraram nem três anos. No

134
DRIBLANDO À CUBANA

fim de 2017, Trump acusou o governo do seu direito ao desenvolvimento. 6% do PIB (ONE), além de constran-
cubano de “ataques sônicos” contra A socióloga Julie Feinsilver aposta ger a lógica do abusador. Bloqueada
os funcionários da nova embaixa- que a diplomacia médica é uma das há sete décadas, Cuba tornou-se um
da dos EUA em Havana e os retirou razões fundamentais do apoio da paradigma alternativo de política
de lá, com base em uma narrativa Assembleia Geral da ONU ao fim externa, substituindo a rivalidade
de ficção científica (se comprovou do bloqueio. Em 28 anos, apenas empresarial viril pela aliança solidá-
depois que o ruído vinha de grilos). O dois países votaram invariavel- ria com os povos, a reciprocidade, a
fim do bloqueio, que nunca chegou a mente pelo bloqueio: EUA e Israel. valorização da vida. À revelia de seu
ser politicamente viável, voltou a ser Em 2019, o Brasil se somou a essa abusador, Cuba nos ensina sobre as
uma impossibilidade. Apesar disso, ilustre minoria pela primeira vez enormes possibilidades da economia
a perenidade da revolução cubana na história. do cuidado como horizonte revolu-
demonstra que pode existir uma Na pandemia do novo corona- cionário. Por isso, mesmo os piores
“soberania periférica”. vírus, cubanos mais jovens disse- problemas da revolução cubana não
Em 67 anos, os prejuízos do blo- ram #EsteEsMiGiron, enquanto os impedem que seu sistema de valo-
queio já somam 933 bilhões de dóla- mais de 30 mil médicos cubanos res nos sirvam de bússola contra a
res. Desde 1992, o governo cubano espalhados por 62 países fizeram a barbárie.
entrega um relatório anual à ONU diferença. Em média, a diplomacia
calculando esse dano e defenden- médica gera receitas equivalentes a
O FIM DO COMEÇO
PROLETKULTURA POR GUILHERME CIANFARANI

Coquetel-molotov

Porque o saber é o maior incêndio.

1. Pessoa a execer por mais tempo o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido no século XX.
2. Mulher negra que se recusou a ceder seu local no ônibus para um branco, em 1955 no Alabama.
3. Abertura ecônomica realizada na URSS em 1986.
4. Programa de vigilância global estadunidense revelado por Edward Snowden.
5. Organização jihadista nigeriana.
6. Movimento político marxista surgido na Itália no fim dos anos 1950.
7. Primeiro deputado federal indígena do Brasil, eleito em 1982.
8. Grupo contracultural brasileiro de teatro e dança que atuou de 1972 a 1976.
9. Usina hidrelétrica construída na bacia do rio Xingu.
10. Geógrafo brasileiro de renome mundial, três vezes vencedor do prêmio Jabuti, falecido em 2012.
11. Sucesso do rapper Sabotage.
12. Primeiro jornal voltado para o público homossexual no Brasil.
13. Seu valor atual é de R$1.045,00.
14. Grupos organizados para disputar o poder político em uma República.
15. País do grupo de extrema direita Pravyi Sektor.
16. Antigo nome de Istambul, cidade da Turquia.
17. Série apresentada por Carl Sagan no início dos anos 1980.
18. Produtos de base em estado bruto, com cotações globais.
19. Plataforma de prototipagem eletrônica de hardware livre e placa única.
20. Como ficou conhecido João Cândido, líder da Revolta da Chibata.
21. Ave de rapina da América do Sul.
22. Principal órgão e centro do sistema nervoso.
23. Primeira Usina do Programa Nuclear Brasileiro.
24. Local onde teve origem a Revolução Cubana.
25. Sistema de vigilância das sociedades disciplinares, segundo Michel Foucault.

18) COMMODITIES 19) ARDUÍNO 20) ALMIRANTE NEGRO 21) CARCARÁ 22) CÉREBRO 23) ANGRA UM 24) SERRA MAESTRA 25) PANÓPTICO
10) AZIZ ABSABER 11) UM BOM LUGAR 12) LAMPIÃO DA ESQUINA 13) SALÁRIO MÍNIMO 14) PARTIDOS 15) UCRÂNIA 16) CONSTANTINOPLA 17) COSMOS
1) MARGARET THATCHER 2) ROSA PARKS 3) PERESTROIKA 4) PRISM 5) BOKO HARAM 6) OPERAÍSMO 7) MÁRIO JURUNA 8) DZICROQUETTES 9) BELO MONTE

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11
13 8
4

1 37
25 14 10
18
21
7
15

12 L A M P I Ã O D A E S Q U I N A 2

9
18 24
1
17
22 5

3
19 23

20
6
O FIM DO COMEÇO
VALOR DE USO POR ALINE KLEIN E GUILHERME ZIGGY

Marx era, acima Sim. Antes de se tornar o revolucionário que conhe-


cemos, Marx foi um grande jornalista. Em 1845, aos 24

de tudo, um anos, aceitou seu primeiro emprego no jornal de oposição


Gazeta Renana, onde chegaria ao cargo de editor. Mais

grande jornalista adiante, ao lado de seus camaradas, sairia para criar


o próprio jornal. Seus inúmeros artigos nos deixaram
exemplos candentes do que fazer. Como jornalista, Marx
embaçou as fronteiras nacionais, apresentou ao mun-
do as condições bárbaras em que estavam submetidos
trabalhadores e camponeses do seu tempo e deu início
à prática militante que viria a ser conhecida como inter-
nacionalismo operário.
E seguimos, leais cães de guarda.
Aqui na Jacobin, procuramos praticar o jornalismo
independente que Marx nos ensinou; que descarta fon-
tes palacianas e dá voz aos ignorados, que acredita no
trabalho coletivo como instrumento de superação e que
¶NESTES TEMPOS DE GRANDES AMEAÇAS, quando o sabe que é urgente a tarefa de ampliar a divulgação das
capitalismo avança em sua marcha global de destruição ideias socialistas.
e escassez e a esquerda mais do que nunca expande as Para isso, contamos com a exaustiva e brilhante con-
fronteiras de sua fragmentação, seguimos confiantes na tribuição de muita gente abnegada e comprometida com
tarefa de contribuir para a divulgação da ciência do povo. as lutas sociais. O coração desse projeto é composto por
Custa acreditar que apenas doze meses nos sepa- militantes, pensadores, professores e artistas, que como
ram da primeira edição de Jacobin Brasil! Meses que leais cães de guarda, se dispõem contra o jornalismo que
– sabemos – parecem décadas. Atravessamos juntos a faz coro ao anticomunismo dos populistas de extrema
maior crise sanitária do último século e as subsequen- direita acima de nós. Não nos furtamos ao enfrentamento
tes políticas genocidas dos que nos governam. Vimos dos poderosos nem à polêmica – sem perder de vista
um aumento exponencial do desemprego e da fome, o rigor necessário para a ampliação dos bons debates.
na mesma proporção que a violência e a ganância das Certa vez, quando editor da Gazeta Renana, Marx escre-
elites, com seus sindicatos policiais do crime, progridem veu que as tentativas práticas podem até ser derrubadas
pavorosamente. Como prova do inferno que o capita- de um só golpe, já as ideias que conquistamos e incor-
lismo nos obriga a suportar, assistimos a Amazônia e poramos em nossa perspectiva estão forjadas em nossa
o Pantanal arderem nas chamas do agronegócio, colo- consciência, “são amarras das quais não nos livramos
cando em risco a razão de ser de muitos povos e muitas sem partir nossos corações; são demônios que superamos
etnias que habitam essas terras. Esperamos que mesmo apenas quando a eles nos submetemos”.
diante deste cenário, nossa revista leve uma centelha Essa é a razão (na revolta) de Jacobin Brasil. Todos e
da esperança socialista ao leitor que, para chegar até todas vocês, que acreditam na possibilidade de cons-
aqui, tem navegado por águas tão turvas. trução de um mundo mais justo para os povos de todo o
Isolados em nossas casas, trabalhamos incansáveis planeta, saibam que podem contar conosco. Agradecemos
para renovar este compromisso e produzir para vocês profundamente às leitoras e aos leitores que compraram
a segunda edição de Jacobin Brasil. A fim de realizar esta edição. E, por fim, deixamos o convite para que conti-
tamanha tarefa em tempos tão adversos, procuramos nuem a nos acompanhar e prestigiem o trabalho dedicado
seguir os conselhos deixados por um importante e mui- da nossa equipe de editores e tradutores jacobinos no
tas vezes desconhecido jornalista: Karl Marx. site, nas redes sociais e nos livros da coleção Jacobin.

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ESPECIAL - 2020 REVOLTA NA RAZÃO JACOBIN.COM.BR

BRASIL
BRASIL

“Cante comigo, cante


Irmão americano
Liberta tua esperança
Com um grito na voz!”

MERCEDES SOSA

DERRUBEM ESTE MURO


ESPECIAL - 2020

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