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Ao se fazer uma análise teológica dos comentários da Bíblia de Estudo Batalha Espiritual

e Vitória Financeira sobre o tema “pobreza” e “Teologia da Prosperidade”, percebe-se


alguns equívocos doutrinários, conforme abaixo:

Pobreza é escravidão! Ela amarra as pessoas, impedindo-as de terem as coisas que


necessitam. A pobreza leva à depressão e ao medo. Não é a vontade de Deus que você viva
na escravidão da pobreza. É hora de Deus acabar com a escravidão das dívidas e da pobreza
no meio do seu povo! É chegado o momento da liberação de uma unção financeira especial,
que quebrará as cadeias da escassez e o capacitará a colher com abundância! (Bíblia de
Estudo Batalha Espiritual e Vitória Financeira, introdução xxvii)

Tais idéias são equivocadas pelas seguintes razões:

- Pobreza é escravidão

Pobreza nem sempre é “escravidão espiritual”, aliás, na maioria dos casos trata-se apenas
de uma condição sócio-econômica, fruto do pecado, da acomodação, da injustiça social, do
egoísmo e de outras mazelas. Você pode ser pobre, e mesmo assim, não ser escravo da
pobreza. Você pode ser pobre e ser feliz! João Batista (Mt 3.4), Jesus (Lc 2.21-24 com Lv
12.8), Pedro e João (At 3.1-6), Paulo (2 Co 6.10) e tantos outros servos de Deus, apesar de
pobres não eram “escravos” da pobreza. É preciso lembrar que a riqueza também pode
promover escravidão (Mt 6.19-24). Desta maneira, não é a pobreza ou a riqueza em si que
torna alguém escravo, mas sim, a forma como lidamos com essas condições sócio-
econômicas.

- A pobreza leva à depressão e ao medo

A pobreza “pode” levar alguém à depressão e ao medo, mas não necessariamente. Todos
nós conhecemos pessoas que sobrevivem com poucos recursos financeiros, que não são
depressivas nem vivem amedrontadas, pois confiam no Senhor que supre todas as nossas
necessidades (Mt 6.31-34). Conhecemos também muitos ricos que são depressivos e
amedrontados. A própria Bíblia adverte quanto ao males da riqueza mal adquirida e
administrada (1 Tm 6.9-10).

- Não é a vontade de Deus que “você” viva na escravidão das dívidas e da pobreza
no meio do seu povo

Você quem? Isso significa que todos os crentes deveriam ser ricos? Você quem? Aquele que
comprou a referida Bíblia, ou foi alcançado por seus princípios e ensinamentos? Não amados,
nem todos seremos ricos. As razões pelas quais isto não vai acontecer são as mais diversas
e complexas possíveis e envolvem fatores sociais, pessoais, espirituais, circunstanciais e
outros. Se você contribui com as suas ofertas e dízimos, é trabalhador honesto, se esforça
para manter-se qualificado na profissão que exerce, administra com sabedoria o salário que
recebe e mesmo assim não alcança a riqueza, não fique triste nem frustrado, contentai-vos
com o que tendes (Fp 4.11; Hb 13.5). Seja rico para com Deus (Lc 12.21). Saiba que o mais
importante nesta vida não é o quanto você tem, mas o que você é diante do Senhor. Se um
dia você ficar rico, dê graças a Deus, se nunca isso acontecer, dê graças a Deus também (1
Ts 5.18).

- É hora de Deus acabar com a escravidão das dívidas e da pobreza no meio do seu
povo
Por qual razão Deus só resolveu acabar com a escravidão das dívidas e da pobreza agora, se
os fundamentos deste comentário sempre estiveram na Bíblia? Será que Jesus, Paulo, os
demais apóstolos, os pais da igreja, os reformadores, os missionários que experimentaram
fome e nudez pela causa do mestre nunca enxergaram isso? Deus os privou desta “visão”
(aliás, mais uma daquelas visões que só trazem confusão e promovem heresias no Reino de
Deus)? Somos uma geração “especial”? Outra coisa, quem disse que a riqueza acaba com as
dívidas? Muitos ricos estão proporcionalmente mais endividados do que alguns pobres. A
questão da dívida relaciona-se com a forma com de administrarmos os recursos e não em
sermos pobres ou ricos.

- É chegado o momento da liberação de uma unção financeira especial

Percebe-se que se trata de mais uma “unção especial”, como foi a “unção do riso”, “unção do
leão” e outras “unções”, todas fruto de uma interpretação bíblica equivocada e tendenciosa,
desassociada de uma análise exegética séria e genuinamente cristã (é bom lembrar que boa
parte dos argumentos e notas da citada Bíblia está fundamentada no Antigo Testamento em
promessas direcionadas para o povo de Israel). Não existe uma “unção especial financeira”.
O que a Bíblia nos revela é a bondade, generosidade, misericórdia e graça de Deus, que faz
com ele derrame abundantemente suas dádivas sobre aqueles que contribuem com alegria e
liberalidade, promovendo assim socorro aos necessitados, recursos para a obra missionária,
manutenção do trabalho do Senhor e o suprimento de outras necessidades (2 Co 9.6-15).

Observe o comentário abaixo:

Se você estiver carregando um fardo financeiro pesado, Deus o libertará. Ele não quer que
você lute semana após semana apenas para suprir necessidades básicas. Ele quer libertá-lo
da ansiedade mental e da preocupação que oprimem sua mente. (Bíblia Batalha Espiritual e
Vitória Financeira, p. 278)

Algumas coisas precisam aqui ser esclarecidas:

- A ênfase do referido comentário deixa de ser dada ao “fardo do pecado” (Mt 11.28-29) e
passa ao “fardo financeiro”.

- O comentário afirma que Deus não quer que “lutemos” para suprimento de nossas
necessidades básicas, mas que deseja que sejamos ricos. Na verdade, o Senhor Jesus nos
ensina que não devemos “lutar”, no sentido dado pelo comentarista (lutar ansiosamente) por
uma simples razão, é o próprio Deus que supre nossas necessidades básicas como comer,
beber e vestir:

Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos
vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste
sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas (Mt 6.31-33)

- Diz ainda o referido comentário: “Ele quer libertá-lo da ansiedade mental e da preocupação
que oprimem sua mente”. Ora, não é a riqueza que nos livra da ansiedade, mas sim, nosso
contentamento e confiança em Deus que em todas as coisas e situações nos fortalece:

Digo isto, não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e qualquer
situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as
circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância
como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece. (Fl 4.11-13)

- É necessário lembrar que ser rico, não é em si mesmo pecado (1 Tm 6.17-19),


contudo, uma teologia que prioriza a riqueza na vida do cristão não é ortodoxa nem
bíblica.

Observe agora a ligação entre a visão sobre pobreza da referida Bíblia com a teologia da
Prosperidade. Comecemos observando alguns textos escritos ou falas em defesa da
Teologia da Prosperidade:

“[...] um outro observou: ‘ Sabe, Jesus e os discípulos nunca andaram num Cadilac.’ Não
havia Cadilac naquela época. Mas Jesus andou num jumento. Era o Cadilac naquela época –
o melhor meio de transporte existente. Os crentes têm permitido ao diabo lesá-los em todas
as bênçãos que poderiam usufruir. Não era intenção de Deus que vivêssemos em pobreza.
Ele disse que éramos para reinar em vida como reis. quem jamais imaginaria um rei vivendo
em estrita pobreza? A idéia de pobreza simplesmente não combina com reis.” (HAGIN, p. 48
apud PIERAT, 1993, p. 59)

E mais:

“[...] Filho de Deus, Jesus não andou em pobreza. Leia cuidadosamente a alimentação dos
cinco mil. Quando eles viram os cinco mil, literalmente disseram isto. Agora eu sei que os
teólogos farão com isso, mas eu não estou tentando impressionar os teólogos. Estou
tentando impressionar pessoas que querem saber o que a Palavra de Deus diz. Estou
tentando colocar alguma verdade em seu espírito. E você lê a narrativa, e ela literalmente
diz: o discípulo disse: “Compraremos comida e alimentaremos todos estes? E eles disseram:
‘duzentos dinheiros seriam necessários para alimentar a todos. Iremos nós comprar a
comida?’. Eles tinham o dinheiro na bolsa para alimentar cinco mil, mais as mulheres e
crianças. Estou lhe dizendo, Jesus não liderou um ministério de pobreza”. (Jonh Avanzini,
gravado em 14.12.91, no programa Beliver’s Voice of Victory, apud ROMEIRO, 1993, p. 42).

Perceba que a citação do texto de Jo 6.7 é tendenciosa e distorcida. A Bíblia Almeida Revista
e Corrigida traduz da seguinte forma:

“Filipe respondeu-lhes: Duzentos dinheiros não lhe bastarão, para que cada um deles tome
um pouco.”

A Almeida Revista e Atualizada diz:

“Respondeu-lhe Filipe: Não lhe bastariam duzentos denários de pão, para receber cada um o
seu pedaço.”

A Bíblia de Jerusalém narra:

“Respondeu-lhe Filipe: Duzentos denários de pão não seriam suficientes para que cada um
recebesse um pedaço”.

Na NTLH lemos:
“Filipe respondeu assim: para cada pessoa poder receber um pouco de pão, nós
precisaríamos gastar mais de duzentas moedas de prata.”

Por fim a NVI relata:

“Filipe lhe respondeu: Duzentos denários não comprariam pão suficiente para que cada um
recebesse um pedaço.”

Perceba quem em nenhuma das versões acima o texto passa a idéia, ou expressa
claramente que eles tinham tal quantia. O que Filipe faz é simplesmente um cálculo de
quanto seria necessário para alimentar a multidão. Mesmo se naquela ocasião eles
dispusessem deste valor, não significaria que sempre tinham dinheiro em abundância.

Observe ainda a seguinte declaração:

Deus quer que seus filhos usem a melhor roupa. Ele quer que eles dirijam os melhores
carros e quer que eles tenham o melhor de tudo[...] simplesmente exija o que você precisa.
(Kennteh Hagin, New Thressholds of faith, 1985, p. 55 apud Idem, p. 43)

Agora compare com o que está publicado como comentário na Bíblia de Estudo Batalha
Espiritual e Vitória Financeira:

“Jesus veio destruir as obras do Diabo: ‘Para isso o Filho do Homem se manifestou: para
destruir as obras do Diabo’ (1 Jo 3.8). O pecado, a enfermidade, a pobreza e a morte são
jugos do Inimigo! Você não tem de ficar amarrado à pobreza! Jesus veio libertá-lo de todo
jugo que o Inimigo queira impor sobre você!” (p. 278)

O que há em comum entre os textos citados? A resposta é clara: todos estão construídos
sobre os fundamentos da Teologia da Prosperidade. A lógica desta teologia é simples:
doença e pobreza são do diabo. Se o Cristão está doente ou vive em pobreza, encontra-se
debaixo do jugo do inimigo, ou nem é crente de verdade (ou o suficiente):

Se alguma coisa não estiver dando certo, é porque não contém qualquer virtude ou
substância que dá vida. Descarte-a, por não ser um pensamento correto [...] (é) cristianismo
de baixo nível [...] (TILTON apud ANKERBERG e WELDON, 1996, p. 72).

Seguindo esse raciocínio, segue abaixo uma lista ampliada de personagens bíblicos que
viveram debaixo do jugo do Inimigo:

- Eliseu (2 Rs 13.14-21) Enfermidade

- João Batista (Mt 3.4) Pobreza

- Jesus (Lc 2.21-24 com Lv 12.8) Pobreza (imagina que nem ele escapou!!!!)

- Lázaro (Jo 11.1-5) Enfermidade

- Pedro e João (At 3.1-6) Pobreza

- Paulo (2 Co 6.10) Pobreza


- Epafrodito (Fp 2.27) Enfermidade

- Timóteo (1 Tm 5.23) Enfermidade

- Trófimo (2 Tm 4.20) Enfermidade

Certamente conhecemos na atualidade, homens e mulheres de Deus (como os citados


acima), que se encontram enfermos ou vivem em situação de pobreza (alguns inclusive
vivenciam as duas situações). Será que todos eles estão debaixo do jugo de Satanás.
Embora o Inimigo possa promover enfermidades e pobreza, nem toda enfermidade e
pobreza surgem da parte dele:

“Por que, pois, se queixa o homem vivente? Queixe-se cada um dos seus próprios pecados.”
(Lm 3.39)

Se não fizermos exames de saúde periódicos ou não tivermos uma boa educação alimentar,
e isto resultar numa enfermidade, a culpa é do Diabo? É claro que não, a culpa é nossa!

Se não administrarmos bem as finanças, não tratarmos com cuidado o orçamento doméstico,
se fizermos um mau investimento, a culpa sempre será do Inimigo?

Volto a ressaltar que fatores sociais, econômicos, culturais e pessoais são a causa de muitos
sofrimentos e privações na vida do cristão.

A prosperidade é uma doutrina bíblica (Dt 28.1-14; Js 1.8; Sl 1.1-3, 1 Co 16.1-2 etc), mas,
uma vez desassociada de seu contexto, reduzida ao simples fator financeiro e transformada
em mera barganha, resultará em distorções e prejuízos de ordem espiritual e material para
os seus propagadores e seguidores.

Que o Senhor continue nos livrando destes “ventos de doutrina” que nos induzem ao erro e
ao engano (Ef 4.14)

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