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INTRODUÇÃO
Vemos que a questão da interdisciplinaridade acompanha a Geografia desde a
sua instituição como ciência moderna. Entretanto, as discussões mais específicas acerca
da interdisciplinaridade (e mesmo da intradisciplinaridade), propriamente dita, surgem a
partir da década de 1970.
O objetivo principal deste estudo é abordar a questão da interdisciplinaridade na
Geografia de uma forma crítica, contextualizá-la e propor um caminho de integração
através dos estudos do cotidiano e do lugar.
No contexto da mundialização, a Geografia assume cada vez mais um papel
multidimensional, que busca responder à crescente complexidade das relações
socioespaciais. Assim, entendemos que um único método não seja suficiente, mas qual
seria o caminho para integrá-los sem cair em confusão ainda maior? Se tomarmos como
exemplo os principais métodos utilizados na Geografia, que acabaram definindo
correntes dentro dessa disciplina: o hipotético-dedutivo, o fenomenológico e o
materialismo dialético?
Frente à insuficiência de afirmações como: “a interdisciplinaridade não se
ensina, não se aprende, apenas vive-se”, poder-se-ia perguntar, como? Então,
necessariamente se desembocaria numa questão acerca do método, que se coloca como
um dos objetivos específicos deste trabalho.
Como procedimentos metodológicos adotamos: levantamento bibliográfico
acerca da abordagem da interdisciplinaridade de um modo geral, assim como de sua
abordagem na geografia e, afora esta questão, de temas da geografia urbana,
especialmente, sobre a segregação socioespacial; uso de dados estatísticos, mapas e
imagens, e realização de entrevistas semi-estruturadas com a população.
A INTERDISCIPLINARIDADE
Richcard Hartshorne (1978), em debate na década de 1960 sobre a
especificidade da Geografia em relação às outras ciências, sustentava que a Geografia
preocupar-se-ia com os aspectos, não em si mesmos, mas na sua qualidade de elementos
de integração de áreas, não reconhecendo os dualismos como Geografia Física e
Humana, e sim estudos tópicos e regionais, que constituiriam métodos distintos, mas
não opostos.
Todos os estudos em Geografia analisam as variações espaciais e as conexões
de fenômenos em integração. Não existe dicotomia ou dualismo. Pelo
contrário, verifica-se uma gradação ao longo de um contínuum, desde os
estudos que analisam os complexos mais elementares em variação espacial
através do mundo, até os que analisam as mais complexas integrações em
variação espacial dentro de limites de áreas reduzidas (HARTSHORNE,
1978, p. 129)
Assim nenhuma ciência daria conta de abordar todos os fatos, mas sim que cada
fato em sua essência reflete a realidade, que só pode ser interpretada de modo
aproximativo. Segundo o autor, “[...] no pensamento dialético o real é entendido e
representado como um todo que não é apenas um conjunto de relações, fatos e
processos, mas também sua criação, estrutura e gênese” (KOSIK, 2011, p. 51).
A proposta seria a abordagem da totalidade como um sistema aberto, dinâmico
em sua concreticidade, ou seja, lógica e histórica.
[...] assim também a categoria da totalidade perde o caráter dialético se é
entendida apenas ‘horizontalmente’, como relação das partes e do todo, e se
desprezam os seus outros caracteres orgânicos; a sua dimensão ‘genético-
dinâmica’ (criação do todo e a unidade das contradições) e a sua dimensão
‘vertical’ que é a dialética de fenômeno e essência (KOSIK, 2011, p. 63).
O LUGAR
É no lugar que as estratégias maiores de reprodução convergem e interagem com
as especificidades de reprodução da vida, como indicou Martins (1992), onde se dá o
confronto entre a História e a memória, lugar do cotidiano e não da História.
O lugar se coloca como o espaço onde se concretiza o cotidiano, o espaço de
extensão e apropriado pelo corpo, de manifestação do vivido e definido pelo uso. É
neste que o cotidiano se efetiva; segundo Amélia L. Damiani (1999, p. 168): “O
cotidiano, como conjunto de atividades e relações, efetua-se num espaço e num tempo
sociais: o lugar e suas temporalidades”.
O lugar é definido pelo uso através dos sentidos, no plano do imediato, do vivido.
Portanto, por uma prática socioespacial que constrói referências, uma identidade, pela
vivência nesse lugar. Nesse sentido, Ana Fani A. Carlos (1996) propõe a abordagem do
lugar pela tríade: habitante-lugar-identidade.
É no lugar que se desdobra a relação (contraditória) entre o mundial (conjunto de
relações sociais de produção desenvolvido em escala global) e o local (plano do vivido,
do uso). O mundial penetra o local, sem contudo eliminar suas particularidades.
Ana Fani A. Carlos (1996, p. 66) assinala dois fenômenos contraditórios na
relação entre o cidadão e a metrópole, que se verificam no lugar: o estranhamento,
resultado da perda de referenciais e criação de novos padrões associados ao mundial
(individualismo, anonimato etc.); e o reconhecimento, resultado da constituição de
identidades que ocorrem no plano do vivido, pelas experiências de vida em determinado
lugar.
Damiani (1999) considera ainda que o lugar não é apenas o particular, mas o
diferente. Desse modo, a autora aponta duas noções de lugares: o diferente em relação
aos outros lugares e ao mundo; e o da particularização, ou seja, aquele constituído pela
segregação.
Apesar do cotidiano e o lugar se apresentarem como homogêneo, fragmentado e
hierarquizado, resultado da reprodução do mundial e sua forma de desenvolvimento
desigual, nem tudo foi reduzido a sua lógica e normatização. Nos interstícios dessa
ampla sistematização do cotidiano e dos lugares, a vida resiste, e surge o espaço (e o
momento) para o espontâneo, o informal, a obra humana, no qual novas formas de
apropriação vão se definindo.
Procuramos considerar também esses modos particulares de vida que convivem (e
resistem) a um padrão urbano ligado à reprodução do mundial, que indiscutivelmente se
impõe. Entretanto, ele não destruiu todas as outras formas de relações que se
desenvolveram no passado e persistem, ou buscam sua inserção nesse “novo” urbano.
Nesse sentido, a pesquisa busca também considerar o movimento entre essas tendências
(mundial/local, segregação/inserção) que resultam na construção do cotidiano, em suas múltiplas
diversidades e especificidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARLOS, Ana Fani A. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
DAMIANI, Amélia Luisa. O lugar e a produção do cotidiano. In: CARLOS, Ana Fani
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São Paulo: Boitempo, 2006.
GEORGE, Pierre. Sociologia e geografia. Rio de Janeiro: Cia. Editora Forense, 1969.
HARTSHORNE, Richard. Propósitos e natureza da geografia. São Paulo: Hucitec,
1978.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 9ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.
São Paulo: Papirus, 1993.
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MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes,
2012.
MARTINS, José de Souza. Subúrbio: Vida cotidiana e história no subúrbio da
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